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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 61 – “De amor escrevo, de amor trato e vivo”: o discurso amoroso na lírica e na narrativa literária em Língua Portuguesa. 77 A CONFISSÃO INTIMISTA NA CORRESPONDÊNCIA AMOROSA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ESTUDO PRAGMÁTICO Isabel Roboredo SEARA 1 RESUMO Je n’ai rien à te dire sinon que ce rien, c’est à toi que je le dis”. Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, Paris, Seuil, 1977. Neste estudo, propomo-nos examinar essas marcas paradoxais de “la littérature de l’âme” (segundo LAMARTINE 1856), dessa escrita vagabunda e inquietante, desse espaço íntimo onde se desenham movimentos pulsionais de regressão e de transgressão (Brenot 2000, p.36). A correspondência, como afirmou Roland Barthes, é sempre “une entreprise tactique destinée à défendre des positions, à assurer des conquêtes” (1977, p. 188), em que a primordial é justamente a da sua identidade. A carta é um espaço vital na construção do sujeito e a interacção epistolar é o lugar privilegiado de uma verdadeira ontogénese (Diaz 2002, p. 61). Numa perspectiva pragmática, estudámos as diferentes manifestações e estratégias de delicadeza em texto epistolar amoroso, nomeadamente as formas de abertura, de pré- fecho e de fecho de missiva e alguns topoi, relicários únicos destas cumplicidades, por vezes, religiosamente guardadas, qual remoto fétiche. Ao revelar os sentimentos mais profundos do eu, a carta de amor privilegia as temáticas do abandono, da separação, do sofrimento, da confidência, que se singularizam através de procedimentos retórico-discursivos particularmente originais e fecundos, nomeadamente presentes nos actos da confissão e da confidência. A nossa investigação é tributária dos estudos de pragmática linguística, nomeadamente da teoria da delicadeza de BROWN & LEVINSON (1987), que se articula com as diferentes teorias do epistolar (BRAY 1992, HAROCHE-BOUZINAC 1995 e DIAZ 2002). O corpus para a nossa análise consta da obra D’este viver aqui neste papel descripto - Cartas da Guerra, de António LOBO ANTUNES, Lisboa, D. Quixote, 2005. PALAVRAS-CHAVE: género epistolar; correspondência amorosa; topoi; estratégias retórico-discursivas 1 Universidade Aberta, Departamento de Humanidades, Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica, 147 – 169-001 LISBOA, Portugal, [email protected]

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(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3

SLT 61 – “De amor escrevo, de amor trato e vivo”: o discurso amoroso na lírica e na narrativa literária em Língua Portuguesa.

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A CONFISSÃO INTIMISTA NA CORRESPONDÊNCIA AMOROSA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ESTUDO PRAGMÁTICO

Isabel Roboredo SEARA1

RESUMO

“Je n’ai rien à te dire sinon que ce rien, c’est à toi que je le dis”. Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, Paris, Seuil, 1977.

Neste estudo, propomo-nos examinar essas marcas paradoxais de “la littérature de l’âme” (segundo LAMARTINE 1856), dessa escrita vagabunda e inquietante, desse espaço íntimo onde se desenham movimentos pulsionais de regressão e de transgressão (Brenot 2000, p.36). A correspondência, como afirmou Roland Barthes, é sempre “une entreprise tactique destinée à défendre des positions, à assurer des conquêtes” (1977, p. 188), em que a primordial é justamente a da sua identidade. A carta é um espaço vital na construção do sujeito e a interacção epistolar é o lugar privilegiado de uma verdadeira ontogénese (Diaz 2002, p. 61). Numa perspectiva pragmática, estudámos as diferentes manifestações e estratégias de delicadeza em texto epistolar amoroso, nomeadamente as formas de abertura, de pré-fecho e de fecho de missiva e alguns topoi, relicários únicos destas cumplicidades, por vezes, religiosamente guardadas, qual remoto fétiche. Ao revelar os sentimentos mais profundos do eu, a carta de amor privilegia as temáticas do abandono, da separação, do sofrimento, da confidência, que se singularizam através de procedimentos retórico-discursivos particularmente originais e fecundos, nomeadamente presentes nos actos da confissão e da confidência. A nossa investigação é tributária dos estudos de pragmática linguística, nomeadamente da teoria da delicadeza de BROWN & LEVINSON (1987), que se articula com as diferentes teorias do epistolar (BRAY 1992, HAROCHE-BOUZINAC 1995 e DIAZ 2002). O corpus para a nossa análise consta da obra D’este viver aqui neste papel descripto - Cartas da Guerra, de António LOBO ANTUNES, Lisboa, D. Quixote, 2005. PALAVRAS-CHAVE: género epistolar; correspondência amorosa; topoi; estratégias

retórico-discursivas

1 Universidade Aberta, Departamento de Humanidades, Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica, 147 – 169-001 LISBOA, Portugal, [email protected]

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Objectivos desta investigação

Encetamos a apresentação deste nosso trabalho, elencando os principais objectivos da

investigação:

Reflectir sobre esta forma específica do género epistolar: a carta de amor

Definir e caracterizar a carta de amor, evidenciando as marcas paradoxais de

“cette “littérature de l´âme”, deste “estendal do ego” (LOBO ANTUNES,

17.6.712);

Destacar as temáticas da paixão exarcebada, do sofrimento, da separação e da

confidência amorosa nos textos em análise;

Descrever alguns mecanismos linguístico-textuais que realçam a cumplicidade,

presentes na confissão intimista;

Argumentar sobre as formas de exacerbar o sentimento amoroso através da

escrita epistolar

2 Esta notação (17.6.71) respeita naturalmente a datação (dia, mês, ano) das cartas constantes da obra D’este viver aqui neste papel descripto. Cartas de Guerra, organização de Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, Lisboa, Dom Quixote, 2005. A escolha da referência à datação foi privilegiada já que existem cartas que ocupam várias páginas e tornar-se-ia mais difícil a citação. Neste caso, a expressão citada consta da página 203.

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Considerações prévias sobre a carta de amor

Se aceitarmos a definição de carta de amor, dada por Philippe Brenot, mais facilmente

perceberemos a importância dessa transfiguração da palavra, criada a partir da ausência:

«La lettre d’amour est le témoignage d’un moment d’exception entre deux êtres qui

partagent un sentiment, malgré, ou avec ceux qui les entourent. Même après des siècles,

les lettres d’amour conservent intacte cette magie de la transfiguration de la langue par

les inventions littéraires qui permet la passion, et par mille détails que contiennent ces

billets hors du temps.» (BRENOT 2000, p. 26)

A ausência converte-se assim na condição primeira da interacção epistolar amorosa,

ausência essa que cria um vazio que gera o desejo, ausência que mantém a distância,

ausência necessária, ausência dolorosa, sofrida, taciturna que carreia a solidão, o

desespero. A interacção epistolar amorosa é o lugar de todas as modalidades de

ausência, dado que o amor se destina a alguém que falta, e a escrita é o seu único

testemunho vivo.

«La lettre d’amour se concentre, (…) à l’instar de tout discours amoureux, sur la gestion

des rapports individuels entre les participants ; elle établit entre deux partenaires,

séparés dans l’espace, une interaction qui vise à la création, à la modification ou à la

confirmation d’une relation affective ». (AMOSSY, 1999, p. 74)

A outra condição da escrita da carta de amor é a sua relação com o tempo, a sua

inscrição no momento, de modo a que toda a distância espácio-temporal seja abolida,

numa espécie de busca de um presente permanente. Daí a frequência epistolar na

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construção deste dialogismo amoroso e a necessidade de explicar detalhadamente as

rotinas diárias, de forma a mostrar o preenchimento desse tempo de separação, sempre

conotado como tempo de espera, de desconforto e de sofrimento. Essa necessidade de

actualização é válida para as rotinas quotidianas que se desejam partilhar, mas assume

uma importância inigualável para os propósitos e as juras amorosas que, exaradas com

mais facilidade no discurso escrito, contribuem para a inscrição e a perenização do

sentimento íntimo. Como afirma Brenot, «la lettre d’amour est un journal quotidien

enrubanné de formules intimes et d’émotions continues». (2000, p. 38)

A carta de amor é, assim, o espaço de encontro, o espaço ideal de reencontro, em que a

actualização do desejo de comunhão física e espiritual, a sublimação do sentimento

amoroso, incrementados pela distância e pela ausência, configuram um lugar de

confidências e de « dévoilement de soi » que transborda em toda a superfície textual.

Corroboramos as reflexões de Brengues sobre a correspondência amorosa e a sua

relação com o sagrado, quando este afirma que a epístola amorosa constitui um acto

positivo que assenta numa dupla negação. Constitui um acto positivo na medida em que

tem como finalidade a aproximação e junção de dois seres apartados um do outro,

operando a carta, à semelhança do pergaminho e da sua natureza ancestral, essa ilusão, a

ilusão da substituição. E este acto positivo inscreve uma dupla negação: a negação do

espaço e a negação do tempo. Neste sentido, a correspondência amorosa é datada,

amiúde, quase até ao minuto, desvendando uma parcelização do tempo que se escoa

lentamente.

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Apresentação do corpus

O corpus das cartas que analisámos consta da obra de António Lobo Antunes3 D’este

viver aqui neste papel descripto, Cartas de Guerra, Lisboa, D. Quixote, 2005.

O prefácio desta compilação de cartas explica o contexto e o motivo da sua publicação.

Estas cartas foram organizadas pelas filhas de ALA, Maria José e Joana Lobo Antunes.

São cartas escritas “por um homem de 28 anos na privacidade da sua relação com a

mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra colonial em Angola, sem

pensar que algum dia viriam a ser lidas por alguém” (ALA, p. 11).

Importa ab initio atentar na justificação do título da obra D’este viver aqui neste

papel descripto Cartas de Guerra: numa carta,escrita de Chiúme, datada de 12.7.71,

ALA escreve:

Minha jóia querida,

Mais uma longa e triste segunda-feira, “deste viver aqui neste papel descrito”, como o

Ângelo Lima diz numa carta ao Professor Miguel Bombarda

Esta citação era igualmente o título que ALA tinha escolhido para aquele que viria a ser

o seu primeiro romance publicado: Memória de Elefante.

3 Doravante referir-nos-emos a António Lobo Antunes por ALA para simplificação do texto.

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Funções da escrita epistolar amorosa

A carta de amor é o testemunho de momentos de excepção entre dois seres que

partilham um sentimento amoroso: “la lettre d’amour est un gage de fidélité”

(BRENOT 2000, p. 27).

A primeira função da carta de amor é conjurar a ausência e escrever-se todos os dias é

um dos primeiros fantasmas do discurso amoroso. A ausência converte-se na condição

primeira da interacção epistolar amorosa.

A ausência cria um vazio e gera o desejo. A ausência é dolorosa, sofrida, taciturna,

desesperada. Assim, e na sequência do trabalho de Brenot, poderemos elencar as

principais funções do discurso epistolar amoroso:

Formular a ausência

Exprimir o desejo

Dizer o sofrimento

Estar com e em o outro

Ser a expressão do amor, da confidência, da intimidade, do

desabafo, a confissão sentimental ou simplesmente o relato das

rotinas dramáticas do quotidiano

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Análise de alguns mecanismos linguístico-textuais:

a) as formas de tratamento como marcadores de intimidade

“L’intime commence avec d’ innombrables termes amoureux dont les amants se baptisent”. (BRENOT 2000: 52)

As formas de tratamento mostram a diversidade das expressões apelativas utilizadas.

Isoladas do seu contexto, estas formas perdem o seu sentido e raiam o ridículo, ainda

que justamente sublinhem a intimidade amorosa.

As aberturas das cartas iniciam-se repetidamente por expressões, com variantes em

torno da palavra jóia:

Minha jóia preciosa (16.1.71)

Minha amada jóia (4.2.71)

Minha linda jóia querida (7.2.71)

Minha jóia preciosa e querida (8/9.2.71)

Minha jóia linda e bonita (15.2.71)

Minha formosa jóia querida (6.3.71)

Minha querida mulher, minha adorada jóia (22.3.71)

Minha única e formosa jóia (8.3.71)

Minha namorada querida (27.1.1971)

Meu amor (1.3.71)

Meu amor querido (2.4. 71)

Meu amor lindo e bonito e querido e adorado (11.5.71)

Minha Zezinha adorada e querida (22.5.71)

Minha flor querida e linda (3.6.71)

Meu querido e único e grande amor (8.6.71)

Minha pequenina (14.6.71)

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Ainda sobre as formes de tratamento, sobressai a utilização de vocábulos com

sufixo -inho. Este sufixo -inho é, Segundo Lindley Cintra, o mais frequente na língua

portuguesa, desde tempos antigos.(CUNHA e CINTRA, 1994, p. 93).

Em português é muito produtivo porque traduz a expressão do afecto, sendo

normalmente utilizado nas formas de tratamento entre pessoas próximas, familiares

queridos e em relações amorosas, para expressar valores de carinho. Por outro lado,

Sílvia Skorge, ao estudar aprofundadamente, a partir de exemplos literários, os efeitos

do uso dos sufixos –inho e –ito, apresenta as diversas funções dos diminutivos, entre as

quais realça a indicação de pequenez, o meio de atenuação, a expressão de ironia e,

entre outros, a função interactiva de comunicação com o interlocutor que é de extrema

funcionalidade nas interacções verbais: “O emprego dos sufixos diminutivos indica ao

leitor ou ao interlocutor que aquele que fala ou escreve põe a linguagem afectiva no

primeiro plano”. (SKORGE, 1958, p. 52).

As suas ideias são posteriormente corroboradas e desenvolvidas por Maria Helena

Aráujo Carreira que, ao analisar as formas linguísticas da delicadeza em português,

concluíu que «ses suffixes diminutifs, dont le portugais fait grand usage, sont

caractéristiques du langage affectif». (ARAÚJO CARREIRA, 1997, p. 144).

O uso de diminutivos, nesta situação de interacção epistolar amorosa, exprime

delicadeza ao mostrar a partilha de um espaço afectivo comum, marcando desta forma o

tratamento como positivamente delicado. O diminutivo, cremos poder afirmá-lo, é um

marcador de delicadeza e o seu uso extensivo e repetido evidencia o envolvimento

psicológico e emocional estreito entre os correspondentes.

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É eloquente a carta de 17.4.71, pois é tão somente um exaustivo sucedâneo de formas de

tratamento, apresentadas sem qualquer vírgula.

Através da forma possessiva, ALA designa a sua amada com tudo o que lhe ocorre e

que tem para ele manifestamente uma conotação de lembrança positiva, desde os ídolos

aos locais paradisíacos, até às mais ousadas expressões metafóricas, denunciando os

seus ímpetos sexuais.

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela

minha amante minha princesa (…) minha chinezinha (…) minha história de fadas (…)

minha ternura meu gosto de luar meu Paris meu fogo meu anjo de Boticelli meu

domingo de ramos meu Setembro de vindimas meu vaso etrusco minha Ofélia meu lírio

meu perfume da terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha lâmpada de Aladino

minha mulher. (17.4.71)

Até ousar epítetos mais sensuais e íntimos:

Minha linda boca macia dupla meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso

minhas pernas nervosas minha excitação minha doce forquilha de coxas minha eterna

adolescente

b) mimesis da linguagem infantil

Algumas fórmulas de tratamento caracterizam-se por uma tonalidade fortemente

infantil, sentindo-se uma atmosfera de obsessiva puerilidade.

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ALA mimetiza a linguagem e a encenação infantis, remetendo para um tempo de pureza

e inocência, para uma zona a-temporal e a-espacial, em que a construção da relação

amorosa parece encaixar na perfeição. Esta mimetização da linguagem infantil,

sincopada, pode apreciar-se nas seguintes passagens:

Eu gosto tudo de ti mas só te digo porquê depois de tu me dizeres. Muitos beijos do teu

António que te adora

A tua Zanzan que te morde

Havemos de ir dançar todas as noites! (12.4.71)

Ou na pequena quadra que inventa para a sua amada:

Os olhos do meu amor

São duas aventoinhas

Fechados são dois botões

Abertos duas rosinhas (2.7.71)

O segredo epistolar

«Une lettre est faite pour contenir, a priori, des confidences, des secrets, elle porte donc en elle un haut niveau de compromission.» (GRASSI, 1998, p. 7).

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Os nomes falsos, os diminutivos, os pseudónimos amorosos, as iniciais conferem aos

escritos íntimos o segredo necessário ou o mistério procurado pelos amantes.

O segredo supremo, fundador da intimidade, está na partilha da língua e é interessante

notar como ALA procura frequentemente ensinar quimbundo à sua mulher para criar

essa cumplicidade indecifrável por terceiros.

GTS - esta é uma das siglas recorrentes no fecho das missivas

GTS

GTS

GTS Nunca te esqueças de mim (16.2.71)

Milhões de beijos do teu marido Alves

E beijinhos ao cafeco gasosos do olho pendurado (12.8.71)

Quando voltar para aí ensino-te a falar bundo para ninguém perceber o que a gente diz. (27.2.71)

DJAKUZANGA MANÈNE

(gosto muito de ti)

UATCHIKA MUNAKAZI

(mulher bonita)

DJIGUZANGA KOKAMA ?

(queres vir para a cama comigo?)

(…)

Quando voltar para aí ensino-te a falar bundo para ninguém perceber o que a gente diz. (27.2.71)

Ao texto volátil que, de uma forma fácil e fugaz, pode não chegar ou escapar às mãos da

destinatária, acresce a importância da singularidade da mensagem de amor e a sua

justificada e extrema confidencialidade, manifestando também os correspondentes os

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seus receios quando aos atrasos do serviço postal, sobretudo numa situação de guerra,

como era o caso.

Este desejo de conservar o segredo conjuga-se com a vontade de edificar, através da

interacção, uma relação dual que interdita em absoluto a presença de terceiros, mesmo

que se trate de familiares muito próximos.

«Toute lettre, on le sait, est «une figure de compromis»4 «où est soigneusement dosé ce

qu’on cache et ce qu’on montre, ce qu’on dit et ce qu’on cèle».5

Atentemos nestes exemplos:

Desculpa este longo discurso. Tenho a impressão de que fui maçador de mais com este

longo estendal do meu ego… Mas só a ti conto estas coisas, porque és a coisa mais

preciosa que tenho no mundo. Guarda segredo.

Amo-te

António (17. 6.71)

A declaração de amor

4 Esta imagem da correspondência como figura de compromisso corresponde ao título

da comunicação de Mireille Bossis, apresentada ao colóquio internacional: Écrire, publier, lire les correspondances, problématique et économie d’un genre littéraire», publicação da Universidade de Nantes, 1983.

5 Michelle Perrot, «Le Secret de la correspondance au XIXe siècle», L’Épistolarité à

travers les siècles, Geste de communication et/ou d’écriture, Mireille Bossis et Charles A. Potter (dir.), Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1990, p. 187

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Há ao longo deste epistolário um rol de formas que denunciam esse estado apaixonado,

enunciadas sob a forma de declaração de amor, expressa pela forma singular e

idiossincrática “Gosto tudo de ti”: um amor total, presente no “quantificador” tudo que

engloba naturalmente o amor pelas suas qualidades e pelos seus defeitos, pelas seus

amuos e pelas suas paixões.

A repetição à exaustão é própria do código amoroso e, por isso, surgem amiúde as

seguintes formas:

Eu gosto tudo de ti sempre (17.1.71)

Eu gosto tudo de ti, meu amor, e fazes-me uma pavorosa falta (14.4.71)

Meu amor eu gosto tudo de ti, sempre, e mais não sei senão repetir estas

palavras: gosto tudo de ti, gosto tudo de ti, gosto tudo de ti, gosto tudo de ti.

(4.2.71)

P.S. Antes que me esqueça: gosto tudo de ti até ao fim do mundo (17.1.71)

GTS GTS GTS Nunca te esqueças de mim (16.2.71)

Há igualmente uma aproximação do código amoroso ao código religioso, como

comprovam os seguintes exemplos:

Hoje, sábado, 22 de Maio de 1971, renovo as minhas promessas do crisma:

amo-te. António (22.5.71)

Falo pouco, e tudo o que digo é num tom seco e melancólico, que não era o

meu. E tenho sempre uma ruga na testa e uma dobra amarga na boca. As tuas

cartas chegam cheias de amor. Leio-as como quem reza. (…) Eu gosto tudo de

ti. (17.7.71)

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Meu amor eu penso em ti a todos os momentos como se pensa em Nossa

Senhora (5.12.71)

O tempo que passe depressa, é a minha oração diária. (26.5.71)

Em contraste com este código religioso, ALA utiliza frequentemente léxico do domínio

táctil que denuncia todo o desejo carnal:

Mas que bonita que tu estás! Eu vou-te devorar viva! Vou-te comer toda . Meu

amor meu amor meu amor. Apetece-me tanto que me dói o corpo todo de desejo.

O que eu queria era estar contigo, tenho tanta fome de ti. Apetece-me comer-te,

e não falo em sentido figurado. (1.5.71)

Que vontade eu tenho (…) de te devorar largamente em grandes dentadas

sôfregas, ferozes. (12.5.71)

Preciso absolutamente de! Vou contando os dias, guloso como o João Ratão

(11.6.71)

Ou através de expressões onomatopaicas que expressam o desejo e a satisfação:

Fiquei cheio de água na boca, louco de vontades secretas!

Miam, miam! Que louco Outubro se aproxima (19.5.71)

Estas formas de expressão do desejo encerram o desejo antecipado do reencontro e

denunciam a sensualidade e o erotismo que configuram muitas das declarações

amorosas.

São, assim, longos parágrafos dominados por expressões obscenas e grosseiras, embora

por vezes se respeite o código da época e se utilize a linguagem codificada.

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Que loucura vai ser em Outubro! A minha vontade é não sair da cama todo esse

mês! De manhã à noite! (…) Apetece-me tanto sentir as tuas pernas

monogramando-se nas minhas! (4.4.71)

Não posso morrer sem voltar a fazer amor contigo um dia inteiro e uma noite

inteira e explodir vinte vezes nesse espaço de tempo. (29.4.71)

Hoje tenho andado com uma terrível vontade sexual. Prepara-te para coitos

homéricos. (13.7.71)

Coloco o meu pénis na forquilha do teu corpo. (20.1.71)

A carta mais eloquente, explosiva neste sentido físico e erótico, é indubitavelmente a de

25.5.71, constante da página 174.

A importância do topos do tempo na carta de amor

Este topos do tempo está naturalmente relacionado com um dos topoi mais frequentes

no discurso epistolar: o da ausência. A correspondência apresenta-se como uma

compensação, uma consolação do sofrimento provocado pela distância espácio-

temporal.

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Através da correspondência, o tempo torna-se frequentemente um elo de ligação ao

outro, na delonga do tempo unificador, na rememoração, na nostalgia e na lembrança de

momentos in praesentia.

A contagem dos dias é recorrente em todas as cartas. ALA designa-a por “aritmética da

saudade”:

Cá vou penando. (…) 92 dias separam-nos. Todas as manhãs desconto um. Vivo

desta aritmética da saudade (o quê? outra vez’) a contar pelos dedos. (28.6.71)

O meu amor aumenta todos os dias várias eternidades, e começo já a contar os

meses que me separam de ti. (1.3.71)

Todos os dias conto os que faltam para estar contigo, e que são menos de 150 já.

Dia 15 de Maio fazemos 4 meses de comissão, 150 dias para te ver e 20 meses para

me ir embora. (29.4.71)

E o tempo a rodar como uma mó na minha cabeça. Dolorosamente. (5.7.71)

Faltam 91 dias para estar contigo. Continuo a contá-los, a riscar todos os dias num

papelinho. (…)

91 dias

91 dias para te poder tocar e dar beijos até me doer a boca. (29.6.71)

Meu Deus, África – je déteste ça… Há 6 meses – faço 6 meses depois de amanhã –

que só vejo mata e chana, capim, arbustos, abatizes, soldados e tédio (4.7.71)

O tempo continua a arrastar-se. As noites, então, ignóbeis de lentidão. (15.7.71)

O tempo que passa é a minha oração diária. Que passe depressa e com ele o

pesadelo desta sinistra separação, que me obriga a viver tão longe de ti – e por

consequência tão mal. (26.5.71)

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Já passou um quarto disto. Faltam 18 meses menos 2 dias. Força! (8.7.71)

Meu querido amor, Setembro, Setembro, Setembro.

Espero furiosamente que o tempo passe e que amanheça depressa 73. (16.1.71)

Chegou finalmente Junho. Dois meses ainda por aqui nesta prisão de arame, agora

em sobressalto… Lembro-me de ti, dolorosamente, não há outra palavra. (1.6.71)

Vou contando os dias que me separam de ti, desesperadamente. Desesperadamente.

Faltam só dois meses completos, Julho e Agosto. A Junho já lhe comi uma fatia.

(9.6.71)

Este topos do tempo que se arrasta de forma interminável é reiterado nos persistentes

desejos das antecipações do reencontro. Dessa forma, ALA não se furta a exprimir a

ansiedade desse reencontro físico e carnal com a sua mulher, como atestam as seguintes

passagens:

Em Outubro havemos de vingar-nos desta tão longa ausência… E fazer amor dez

vezes por dia, sim? (6.2.71)

Até ao fim do mundo. Arranja uma grande cama para nela morrermos juntos,

colados um ao outro, sem que saibamos qual dos nossos dois corpos somos. (3.6.71)

Prepara-te para 35 dias de ! 35 dias a fazer aquilo que nos apetece, isto é.

Afrodisiacamente teu. Violar-te com a fúria de um ocupante alemão. (25.6.71)

Meu amor eu gosto tudo de ti. Em breve estaremos juntos, é uma esperança e uma

consolação. O que nós vamos fazer, de porta fechada, meu Deus! (8.4.71)

Recebi, depois de 15 dias sem notícias, 3 retratos que mostram que continuas

lindíssima! Mais até se possível! Fiquei cheio de água na boca, louco de vontades

secretas! Miam! Miam! Que louco Outubro se aproxima! (19.5.71)

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O dia 27 de Setembro desejo-o com uma tal intensidade que me dói o corpo todo só

de pensar nele. (…) Espero com o corpo em brasa esse momento que mais chega que

nunca mais chega. (25.5.71)

Considerações finais

O epistolar amoroso de ALA revela o espaço de intimidade onde se jogam todos os

movimentos pulsionais, por vezes, transgressores.

O íntimo revela-se na evocação constante do corpo feminino como lugar ideal de

reencontro, onde se actualiza constantemente esse desejo que quase raia a alucinação.

A veneração do corpo da mulher amada não tem limites e ALA ousa transgredir os

códigos púdicos, comuns na época.

Como leitores, sentimo-nos naturalmente intrusos dessa intimidade do casal, cujos

exemplos acabámos de citar.

A carta de amor é o relicário dos sigilos dos amantes.

Escrita para ser comungada, religiosamente guardada em lugares íntimos,

escrupulosamente preservada, evitando pudor de olhares indiscretos, lida e relida no

recolhimento de um templo, esse templo do intimismo, do silêncio, da solidão,

dominada pelo ânsia e por uma imensa fidelidade a esse objecto de desejo, a carta de

amor invoca e personifica o relicário das confidências, das cumplicidades e, no caso de

ALA, de algumas obscenidades.

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Tentámos, todavia, mostrar que as cartas de guerra e de amor de ALA, para muitos,

indefectivelmente consideradas como textos proscritos e inadequadamente revelados em

vida do autor, constituem, de forma inegável, um contributo para o seu mais cabal

conhecimento. E estas «anti-ficções», estes textos, «documentos de evidente e maciça

autenticidade» desvendam, sem dúvida, muito da sua vida, quer íntima, quer,

inclusivamente, literária.

Foi este o nosso pequeno contributo: o de tentar mostrar a importância da

correspondência amorosa de ALA, desvendada e despida do seu invólucro selado.

A carta de amor, sacralizada. E esta sacralização, à semelhança do conteúdo valioso de

um qualquer relicário, é dupla. A sacralização da carta propriamente dita, como objecto

fetiche, com identidade corpórea, a carta como escrita incarnada que pode ser lida,

relida, devorada, contemplada, beijada, conservada, amarfanhada e até imolada pelo

fogo e, concomitantemente, a carta como «o outro sacralizado» (Brengues 1982), o

outro divinizado, elevado à categoria apoteótica de único, o que existe apenas e só

porque é o eleito do amor.

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CORPUS

LOBO ANTUNES, António (2005) D’este viver aqui neste papel descripto. Cartas de

Guerra, organização de Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, Lisboa, D.

Quixote.

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