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    Didaticamente, podemos dizer que o processoteraputico ocupacional se constitui pelas seguintesetapas: recepo, entrevista, avaliao, intervenoe alta. Porm, na realidade, Hagedorn (1999) j nosprecavia que as intervenes clnicas do processo

    teraputico no possuem uma sequncia rgida deprocedimentos, embora estejam atreladas ao uso

    1 Introduo

    De acordo com Caniglia (2005), em TerapiaOcupacional, chamamos de Processo Teraputicoopercurso de condutas e procedimentos clnicos a partirdo vnculo que se estabelece entre o terapeuta e opaciente, do primeiro contato at o desvinculamento.

    Para a autora, esse percurso pressupe um processode mudana, baseado em um referencial de sade.

    Autor para correspondncia: Sabrina Ferigato, Rua Tesslia Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitria Zeferino Vaz, CEP 13083887,

    Campinas, SP, Brasil, e-mail: [email protected]

    Recebido em 10/2/2010; 1 Reviso em 15/7/2010; 2 Reviso em 26/7/2010; Aceito em 28/7/2010.

    ISSN 0104-4931

    Cad. Ter .Ocup. UFSCar,So Carlos, v. 19, n. 3, p. 361-368, 2011

    DOI: 10.4322/cto.2011.009

    Abstract:The Therapeutic Process and its specicities in Occupational Therapy is the object of the present study,

    with emphasis on the dilemmas that therapists and patients experienceat the end of the treatment. Reecting

    on what, in fact, denes the discharge and the criteria used by the profession to do so, is something of extreme

    importance to the strengthening of our professional singularity and to the improvementof our clinical practice.

    We support the idea that the discharge process can not be free from the ethical-philosophical and technical

    characterizationof the profession in different areas of health. From clinical experience and reections on

    therapeutics, we propose new ways of thinking about the discharge in Occupational Therapy, grounded mainly

    on the theoretical references of the Philosophy of Difference and Occupational Therapy Dynamics. Therefore,

    initially, we intend to conduct a brief conceptualization of the occupational therapy process, and later, we dwell

    more specically on the discharge process and its developments.Keywords:Health, Occupational Therapy, Patient Discharge.

    Resumo: O Processo Teraputico e suas especicidades em Terapia Ocupacional o objeto de estudo deste

    trabalho, com nfase nos impasses que terapeutas e pacientes vivenciam no trmino do tratamento. Reetir sobre

    o que, de fato, dene a alta e os critrios utilizados pela prosso para esse m algo de extrema importncia

    para o fortalecimento de nossa singularidade prossional e para o aprimoramento de nossas prticas clnicas.

    Defendemos a ideia de que o processo de alta no pode estar desvinculado dos princpios tico-loscos e

    tcnicos que caracterizam a prosso, nas diferentes reas da sade. A partir da vivncia clnica e de reexessobre a teraputica, buscamos novas formas de pensar a alta em Terapia Ocupacional, com base, principalmente,

    nos referencias tericos da Filosoa da Diferena. Para tanto, inicialmente nos propomos a realizar uma

    breve conceituao a respeito do processo teraputico ocupacional, para posteriormente nos determos mais

    especicamente no processo de alta e seus desdobramentos.

    Palavras-chave:Sade, Terapia Ocupacional, Alta do Paciente.

    A alta em erapia Ocupacional: reflexes sobre o fim

    do processo teraputico e o salto para a vidaSabrina Ferigato, Maria Luisa Gazabim Simes Ballarin

    Te discharge in Occupational Terapy: reflections on the end of thetherapeutic process and the return to life

    En

    saio

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    do raciocnio clnico especfico de um TerapeutaOcupacional.

    Sabemos que a avaliao, por exemplo, devese dar em todas as etapas do processo, desde arecepo at a prpria avaliao das condiesde se trabalhar um processo de alta. Da mesmamaneira, a recepo se d em todas as chegadasdo sujeito, semanalmente ou diariamente, pois, seapostamos na criao e recriao permanente de si,ao realizarmos a recepo do mesmo paciente emdiferentes sesses, recepcionaremos uma pessoadiferente a cada atendimento.

    Assim, consideramos que o processo teraputicose desenrola naturalmente a partir das necessidades,limitaes e possibilidades apresentadas pelo sujeitoem atendimento e de acordo com as tcnicas e

    intervenes teraputicas oferecidas pelo TerapeutaOcupacional. Este um processo que se estabelecea partir de um encontro de dois corposatravessadospelo fazer. No apenas os corpos anatmicos, mastambm com sua potncia, que vai alm das condiesdadas do nosso conhecimento; como diz Spinoza(2008), corpos nas possibilidades do conhecido edo desconhecido do corpo.

    O conceito de encontro ao qual nos referimos seapoia na ideia deleuzeana de inspirao spinozista, que

    diferencia os maus dos bons encontros; sinteticamente,sendo o primeiro investido de vontade de poder, depaixes tristes, que nos afasta da vida, e o segundoinvestido de vontade de potncia, do aumento desua fora de existir e das paixes alegres. Ou seja,os bons encontros so aqueles que aumentam nossapotncia de vida e os maus encontros aqueles que adiminuem (DELEUZE, 2002).

    De acordo com Orlandi (2008, comunicaopessoal), o pensamento desses filsofos tende a

    promover uma proliferao intensiva de bonsencontroscompostos por afetaes mtuas e relaes intensivasque aumentem nossa potncia ao mesmo tempoem que assumem o ponto de vista de sadas paraa vida, assim como deve se constituir o processoteraputico, na superao ou enfrentamento doslimites apresentados pelo o paciente, com vistas asadas para uma nova vida.

    Nesse caso, as crises e as limitaes devem serencaradas em seu potencial de transformao e nocomo algo a ser eliminado de qualquer maneira,afinal,[...] no h obra que no indique uma sadapara a vida, que no trace um caminho entre aspedras [...] (DELEUZE, 1992, p. 196).

    Em Terapia Ocupacional, esse encontro que sevislumbra entre o terapeuta e o usurio, tem aindaum terceiro elemento a atividade. Esse processo

    teraputico se construir a partir da complexidadeda clnica, das potncias e dos limites oferecidospela atividade ou pela vida ocupacional do sujeito,a partir do devir1 terapeuta de quem trata e dodevir ocupacional de quem tratado. Devir compreendido como um processo de passagemque atravessa o vivido, como incessante tornar-se,sempre inacabado.

    Ao discutir o Processo Teraputico, Caniglia(2005) prope a existncia de procedimentos geraise especficos. Consideram-se como procedimentosgerais aqueles que so comuns aos vrios profissionaisda rea da sade, cujas concepes so amplamenteentendidas e tm uma linguagem mais universal, comoa entrevista, as visitas domiciliares, etc. Procedimentosespecficos seriam aqueles procedimentos que so

    utilizados por um ncleo profissional especfico.No caso da Terapia Ocupacional, que tem comoobjeto de interveno a ocupao humana, podemosexemplificar como especificidade do nosso processoteraputico: o trabalho com as AVDs (Atividadesda Vida Diria), as AVPs (Atividades da VidaPrtica), a criao de projetos prxicos, a avaliao, areorganizao, a ressignificao, a instrumentalizaoe o fortalecimento da vida ocupacional do sujeito nassuas dimenses de trabalho, lazer, automanuteno,etc.

    Acreditamos que esse processo teraputicofuncione como catalisador para os processos demudana da vida ocupacional do sujeito desde suachegada at o momento de sua alta.

    Caniglia (2005) defende a hiptese de que o queestabelece o fim desse processo ou seja, o que definea possibilidade de alta do usurio o alcance deum estado de sade plena. Tal afirmao suscitaalguns questionamentos. Nesse sentido, indagamos:

    Seria possvel atingir o estado de sade plenaquando entendemos a sade como o estadode completo bem-estar biopsicossocial?.

    Todos os pacientes inseridos no processoteraputico ocupacional devem ter alta um dia?

    A interveno nica da Terapia Ocupacional,ou mesmo em parceria com equipesinterdisciplinares, conseguir garantir o alcancedesse patamar de sade para seus usurios para,em seguida, conceder sua alta?

    Quais so os critrios de alta para a TerapiaOcupacional?

    A construo de pistas para problematizar essasquestes foi o que motivou a construo desteestudo, que se deu com o intuito principal de pensarquando e como se trabalha o processo de alta na

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    Considerando-se os aspectos descritos, propomosa ampliao do que compreendemos como processode alta, valorizando seus aspectos intensivos einditos. Entendemos que a finalizao do processoteraputico ocupacional no est vinculada apenas inexistncia de [...] alteraes que indiquemnecessidade de continuidade das prticas teraputicas[...] (CONSELHO..., 2010), mas tambm partimosdo pressuposto de que a presena dessas alteraespode ser um meio para a recuperao de umapotncia perdida ou, em alguns casos, como naSade Mental, por exemplo, na qual a presenado sintoma pode cumprir uma funo psquicasignificativa para o sujeito.

    Buscamos a passagem de um lugar historicamentedado para outro lugar, a ser construdo, que desvie

    o sujeito de uma possvel situao de tristeza.No sentido spinozista do termo, isso significa queestamos submetidos a uma situao que nos afastade uma potncia na qual nos achvamos.

    Por isso, se defendemos a ideia de que o objeto deinterveno da Terapia Ocupacional a ocupaohumana e a vida ocupacional dos sujeitos, devemosconsiderar que escutar a vida muito mais do quepensar a prpria sade (DELEUZE, 1989). Ou seja,a interveno ocupacional conceitualmente vai alm

    da interveno pela busca do processo de cura de umadoena ou da anulao de uma alterao prxica.

    Dessa maneira, precisamos entender a necessidadede tratamento, de acordo com as singularidadesde cada sujeito, inclusive no momento de seuencerramento. A construo da possibilidade de altadeve sempre estar presente nos objetivos teraputicos,uma vez que a teraputica ocupacional deve criarpossibilidade de fortalecimento do sujeito e de suaautonomia, e no de uma dependncia permanentede outro para a aquisio de novas possibilidadesde vida.

    Autonomia entendida aqui como um conceitorelativo, no como a ausncia de qualquer tipode dependncia, mas como uma ampliaoda capacidade do usurio de lidar com suaprpria rede ou sistema de dependncias. Aidade, a condio debilitante e, at mesmo, aprpria subjetividade e a relao de afetos decada pessoa inevitavelmente estar envolvida.

    A ampliao do grau de autonomia pode ser

    avaliada pelo aumento da capacidade dosusurios compreenderem e atuarem sobre simesmos e sobre o mundo da vida. O graude autonomia se mede pela capacidade deautocuidado, de compreenso sobre o processosade/enfermidade, pela capacidade de usar opoder e de estabelecer compromisso e contrato

    nossa profisso, a partir do referencial da Filosofiada Diferena.

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    Ocupacional: ampliando

    conceitos

    De acordo com a Lei 6.316/75, com o Decreto-Lei938/69, e com as Resolues COFFITO 81 e 139,Art. 1, considera-se que:

    [...] competncia do Terapeuta Ocupacionalelaborar o diagnstico Teraputico Ocupacional,compreendido como avaliao ocupacional,sendo esta um processo pelo qual, atravsde metodologia e tcnicas teraputicas

    ocupacionais, so analisadas e estudadasas alteraes psico-fsico-ocupacionais, emtodas as suas expresses e potencialidade,objetivando uma interveno teraputicaespecfica; prescrever baseado no constatadona avaliao ocupacional, as condutas prpriasda terapia ocupacional, qualificando-as equantificando-as; ordenar todo processoteraputico, fazer sua induo no pacientea nvel individual ou de grupo, dar alta nosservios de terapia ocupacional, utilizando o

    critrio de reavaliaes sucessivas que demonstremno haver alteraes que indiquem necessidadede continuidade destas prticas teraputicas[...](CONSELHO..., 2010, grifo nosso).

    Este o ponto de vista extensivo, normativo,regulador. No caso de pacientes institucionalizados,o artigo 15.1, dessa mesma lei, define que:

    [...] a alta da instituio indicada nas discussesde equipe, reunies clnicas ou similares, nasquais se planeja e efetua a a lta do usurio dainstituio, onde o mesmo estiver inserido [...].(CONSELHO..., 2010)

    Devemos acrescentar que tambm indicadaa participao ativa dos familiares e do usuriojuntamente equipe na construo de sua alta,processo que no deve ficar restrito s paredesinstitucionais ou s reunies de equipe.

    De acordo com a norma reguladora da profisso,j podemos perceber que a alta de um processo

    teraputico possui dimenses e caractersticas muitodiferentes. Ao tratarmos da vida ocupacional desujeitos adoecidos, tratamos de doentes e de doenas,mas principalmente de seus efeitos no cotidiano, nahistria, na vida de pessoas e familiares que, pordiversas razes, a partir de algum tipo de ruptura,tiveram que procurar um Terapeuta Ocupacional.

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    em O Anti-dipo, Mil Plats e O que a filosofia? Oconceito de territrio aqui entendido num sentidomuito amplo, envolvendo aspectos biolgicos,geogrficos, subjetivos e sociolgicos, entre outros.

    Os seres existentes se organizam segundo

    territrios que os delimitam e os articulam aosoutros existentes. O territrio pode ser relativotanto a um espao vivido, quanto a um sistemapercebido no seio da qual um sujeito se sente emcasa. O territrio sinnimo de apropriao,de subjetivao fechada sobre si mesma. Ele oconjunto de projetos e representaes nos quaisvai desembocar, pragmaticamente, toda umasrie de comportamentos, de investimentos,nos tempos e nos espaos sociais, culturais,estticos, cognitivos. (GUATTARI; ROLNIK,

    1986, p. 323)

    Haesbaert e Bruce (2002) entendem que, paratrabalhar o conceito de territrio, Deleuze e Guattaripartem da noo de desejo como um construtivismo,renunciando ao par sujeito-objeto (aquele quedeseja e aquilo que desejado). O desejo seriaprodutivo, construtivo, sempre articulado ao processodo pensamento. Nessa concepo, o desejo criaterritrios, pois ele faz uma srie de agenciamentos.

    Para Deleuze e Guattari (1997b), todoagenciamento essencialmente territorial e podeser de dois tipos: o primeiro deles, esses mesmosautores denominam agenciamentos maqunicos dedesejo, que a relao que se constri entre os corpos:

    Um regime alimentar e um regime sexualregulam, antes de tudo, misturas de corposobrigatrias, necessrias ou permitidas. Atmesmo a tecnologia erra ao considerar asferramentas nelas mesmas: estas s existem

    em relao s misturas que tornam possveisou que as tornam possveis. (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 31).

    O segundo tipo, chamados agenciamentos coletivosde enunciao, se refere aos enunciados, ao regimede signos compartilhados; ultrapassam o sujeitoe dizem respeito a uma produo que s pode seefetivar no socius um estado de mistura e relaesentre os corpos em uma sociedade como o caso dalinguagem e da produo de smbolos (DELEUZE;

    GUATTARI, 1995).O movimento concomitante desses agenciamentos

    constitui um territrio. Um atendimento teraputiconesse sentido se constitui como um territrio, j quepara constru-lo necessrio um agenciamento decorpos e um agenciamento coletivo de enunciao.

    com outros [...]. (CAMPOS; AMARAL,2007, p. 852).

    Isso no invalida a possibilidade de que algunspacientes possam precisar de um acompanhamentoem sade por toda a vida. Tal acompanhamento

    no precisa significar a dependncia vitalcia de ummesmo terapeuta ou de um nico e exclusivo servioat o final de seus dias, embora saibamos que, emcasos extremos, isso acontea, como, por exemplo,no caso de pessoas idosas debilitadas clinicamentesem referncia familiar ou rede social de apoio, oupessoas acamadas em situaes graves, dependentesde uma instituio at seus ltimos dias.

    importante ressaltar que os aspectos ticos,subjetivos e afetivos do Terapeuta Ocupacional,inerentes relao transferencial que se estabelecenos processos teraputicos, precisam ser consideradose trabalhados para que ocorra efetivamente adesvinculao entre terapeuta e paciente; porm,esse no ser o enfoque deste trabalho.

    Constatamos na prtica clnica a existncia desituaes em que o paciente entende que est prontopara alta, em discordncia com o terapeuta, ouvice-versa. Nesses casos, quando entendemos que arelao teraputica construda por ambos, sempreque possvel, a alta tambm precisar ser trabalhada

    por todos os envolvidos, incluindo os familiares.Esses aspectos precisam ser considerados at o limiteda tica profissional e da corresponsabilizao peloprocesso de tratamento.

    Em outros casos, o paciente v no ambienteteraputico uma possibilidade rara de ser escutado,de obter afeto, de conseguir construir projetos e laossociais. Nessas ocasies, a alta pode soar como algoameaador e como a efetiva perda de todos essesganhos. Por situaes como esta, o processo deve

    ocorrer a partir da construo de agenciamentos,queofeream ao sujeito novas formas de produo desubjetividade e novos papis ocupacionais.

    De acordo com Silva (2004), agenciamentosremetem criao de territrios existenciais e amovimentos de desterritorializao. Em Deleuze(1969), essa noo implica na ideia de que no hterritrio sem um vetor de sada e no h sadado territrio, ou seja, desterritorializaosem, aomesmo tempo, um esforo para se reterritorializarem outra parte.

    Para compreendermos melhor o que estamospropondo, necessrio um melhor entendimentodesses conceitos filosficos em destaque. Asconcepes de territrio, de agenciamento,territorializao e desterritorializao foramtrabalhadas exaustivamente por Deleuze e Guatarri

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    Em situaes de alta, sabemos como a prpriaconduo das atividades pode se dar no sentido deajudar o usurio a dar passagem s suas potncias devida, construo de novos agenciamentos, podendoser utilizada para fornecer o contorno necessrio paraa independncia em relao ao terapeuta.

    D. Maria, usuria de um CAPS (Centro deAteno Psicossocial) teve seu primeiro encontrocom a Terapia Ocupacional a partir da indicaode atendimentos individuais. O interesse da usuriapor atividades com miangas suscitou na terapeutao projeto de, gradualmente, inseri-la em um grupode bijuterias dentro da instituio.

    Aps alguns meses nesse grupo, D. Mariatinha apresentado sensvel melhora dos sintomasdepressivos, comunicava-se muito bem, estava

    bem articulada com os usurios e com a TerapeutaOcupacional, realizava suas atividades com autonomiae criatividade. No entanto, sentia-se incapaz deencontrar um espao de vida to potente quanto oespao desse grupo em que ela construa bijuterias.Ali, ela adquiriu novas habilidades, fofocava comas amigas, modificava sua aparncia, era elogiada econstrua um canal de contato com outras pessoasfora do grupo, as quais ela presenteava. A ideia da altaparecia uma afronta para D. Maria e algo distantea ser atingido tranquilamente para a terapeuta.Num primeiro momento, foi necessrio fazer dessemomento um movimento de passagem, produzirnovos agenciamentos.

    Algumas semanas depois, alm do grupode bijuterias, D. Maria iniciou o processo de

    Acompanhamento Teraputico (AT) e outrosaspectos ocupacionais puderam ser trabalhados.Gradativamente, foram construdas novas redessociais de apoio, desenvolveram-se sua capacidadecriativa e seu poder contratual. A confeco e a venda

    das bijuterias oriundas de seu processo de criaopassaram a ser um canal para o processo da alta epara a construo de novos territrios existenciais.Tratou-se de uma aposta necessria. Essa apostaculminou com sua alta da Terapia Ocupacionalno CAPS, que foi construda concomitantementecom sua insero em uma oficina de gerao derenda na comunidade e com o agenciamento deseu trabalho autnomo.

    Na perspectiva de Deleuze (1989), trata-se de criar

    estatutos sociais para a criao de uma nova forma desubjetivao. Em entrevista a ditions Montparnasse,fazendo um paralelo,ele retoma o perodo histricodo processo de libertao dos escravos, quando,inicialmente, sem lugar na sociedade da poca,os negros perderam seu estatuto social, pois noexerciam nenhum papel especfico no contexto da

    Alm dessas duas formas de agenciamentos oterritrio se constitui por mais dois componentes: adesterritorializao e a reterritorializao (DELEUZE;GUATARRI, 1995).

    Podemos afirmar sinteticamente que:

    [...] a desterritorializao o movimento peloqual se abandona o territrio, a operaoda linha de fuga, e a reterritorializao omovimento de construo do territrio [...](DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 224).

    No primeiro movimento, os agenciamentosse desterritorializam e, no segundo, eles sereterritorializam como novos agenciamentosmaqunicos de corpos e coletivos de enunciaoem processos indissociveis. Dessa maneira, para

    Haesbaert e Bruce (2002), se pensarmos em umadesterritorializao absoluta, para se criar algo novo, necessrio romper com o territrio existente.

    Quando discutimos a desterritorializao paraalm do debate filosfico, estamos, direta ouindiretamente, balizados por problemas e questesconcretas: a teraputica e seus desafios.

    Se o processo teraputico pode ser entendidocomo um processo construtor de agenciamentos, emparte estes iro operar com elementos constitutivos

    de territrios e tambm produzir movimentosde desterritorializao. No processo de alta, porexemplo, para se romper os agenciamentos criadospelo tratamento, a criao de novos agenciamentos necessria. Novos encontros, novas funes, novosarranjos e novos fluxos de intensidade.

    Assim, pensamos a possibil idade de altarelacionada com criao de novos agenciamentospara a vida do sujeito em tratamento, o que pedeum reposicionamento subjetivo por parte do usurio

    e do terapeuta.Nesse sentido, o desejo de alta no um conceitoabstrato, ele remete tambm a coisas simples econcretas. Segundo Deleuze (1989), nunca se desejaalgo, desejamos sempre em conjunto. Uma mulherno deseja um vestido, mas deseja o vestido em seucontexto de vida, para uma ocasio especial, gerandoefeitos. Assim, no h desejo que no corra para umagenciamento. Um pintor no busca apenas umacor, mas a cor em uma tela, com seus efeitos de luz,de sombra, produzindo diferentes percepes emquem v seu resultado.

    Similarmente, quando um processo teraputico oua insero em uma instituio constri determinadosvnculos, no se deseja a alta em si, se deseja umcontexto ocupacional e uma paisagem de vida pelaqual o fim do tratamento tenha um sentido.

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    no implica na destruio da potncia; ao contrrio,a potncia se transfere para outra paisagem, sendouma potncia mais ativa a partir de outros encontrosdo usurio com a vida, no mais com o terapeuta.Apostar na cronificao do tratamento pode serum investimento nas impotncias desse encontro.

    Partindo do princpio Deleuziano de que a Cinciano cuida de universais, mas de singularidadese multiplicidades (conjuntos de singularidades),comea a ficar mais claro o exerccio de reflexoacerca dos critrios de alta da Terapia Ocupacional.

    Podemos propor que esses critrios devem estarvinculados aos objetivos teraputicos definidos entreusurio-terapeuta-familiares. Atingir os objetivosteraputicos pode ser considerado um critrio dealta; porm, se estamos contanto com a marca daimprevisibilidade, com o devir singular do usurio ecom as linhas de foras que atravessam o atendimento,os objetivos teraputicos iro se construindo e setransformando tambm no prprio processo.

    O importante que o critrio de alta no setorne um objetivo a ser alcanado por si s, semconsiderar a singularidadee o tempopeculiar de cadasujeito, o que mais importante do que o campoespecfico de atuao ou a teoria que respalda a aoprofissional. Isso no exige que o terapeuta tenha um

    conhecimento absoluto de todas as reas da TerapiaOcupacional, mas o fora a pensar, por exemplo,que, s vezes, o desligamento pode se dar comouma alta por transferncia para outro profissionalque atue em outra rea com maior capacitao e,portanto, mais adequada ao contexto do sujeitoalvo da interveno.

    3 Consideraes fnais

    Em termos gerais, podemos dizer que o critrioprincipal de alta em Terapia Ocupacional estrelacionado conquista de uma boa qualidade devida ocupacional, a partir de seus desejos, dentrodas possibilidades e limitaes do sujeito e de seuambiente. Para essa construo, necessria a criaode agenciamentos que fortaleam o usurio para oconhecimento de si, no como um fim, mas comoum meio para agir no mundo.

    Desta maneira, ao discorrermos sobre o critrio

    mais geral de alta em Terapia Ocupacional,podemos falar em alta (com L) e auta (com U), poisentendemos o processo de alta, como o processode liberao ortodoxo e hegemnico do pacienteem relao teraputica, normalmente centradona reduo dos sintomas (na melhora da doena) ena deciso por parte do profissional. E o processo

    poca. Dessa forma, ainda quando escravos, tinhamum estatuto, tinham funes sociais; eram cerceadosda liberdade, mas com um papel definido. Por isso,muitos escravos, inicialmente, retornaram aos seussenhores e novamente submeteram-se situao detrabalho no remunerado, at que, coletivamente,

    novos estatutos sociais e papis ocupacionais foramcriados pelos e para os negros.

    Embora o processo teraputico no deva seconstituir como uma relao de dominao,podemos utilizar esse exemplo como instrumentode reflexo. Muitos dos usurios que chegam TerapiaOcupacional possuem o estatuto social de ser doente,com seus malefcios e benefcios. A possibilidade detransformao deste papel para um novo estatutosocial demanda a construo de novos agenciamentos

    ocupacionais; caso contrrio, a probabilidade deretorno ao posicionamento patolgico grande,pois toda nossa vida ocupacional

    [...] se constitui em funo contra ou afavor de nossos modos de vida, dos tipos desubjetividade nos quais nos configuramos,enfim, de nossa existncia [...]. (EIRADO;PASSOS, 2004, p. 77).

    Outra ferramenta importante para refletirmossobre a alta em Terapia Ocupacional o settingteraputico ocupacional. Segundo Benetton (1994),para que o ambiente teraputico atinja seu propsito, necessrio que o mesmo permita o aprendizado enovas aquisies que buscam o sustento das emoese a viabilizao de processos de criao, alm dosequipamentos e materiais. Ao mesmo tempo emque este deve ser um lugar para criar e construir,precisa tambm comportar o destruir. Nesse sentido,no nos referimos apenas destruio de materiaisou do ambiente teraputico, mas, principalmente,

    que o ambiente teraputico deve ser um espao quepermita a partida do paciente. Ou seja, salvo asexcees mencionadas anteriormente, importanteque este seja um espao de passagem e no um espaoautossuficiente, um espao de onde ele poder levarmuitas experincias, mas no dever cronificar-seali. preciso uma abertura para que seus ganhosneste ambiente sejam transportados para sua vidade forma rizomtica.

    Orlandi (2008, comunicao pessoal) nos

    lembra que na ticade Espinosa, quando umcorpo encontra outro corpo e uma ideia encontraoutra ideia, acontece que as duas relaes ora secompem para formar um todo mais potente, orauma decompe a outra e destri a coeso de suaspartes. Transportando essa ideia para o processoteraputico ocupacional, a destruio dessa coeso

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    Cad. Ter. Ocup. UFSCar,So Carlos, v. 19, n. 3, p. 361-368, 2011

    n. 4, p. 849-59, 2007. PMid:17680144. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232007000400007.

    CANGLIA, M.Terapia Ocupacional - Um enfoque disciplinar.Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2005.

    CONSELHO FEDERAL DE FISIOTERAPIA ETERAPIA OCUPACIONAL - COFFITO.Legislao/

    Resolues.Disponvel em: .

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    de auta, no sentido de autocriao e autopoiese,como a possibilidade do sujeito de desprender-se dateraputica pelo ganho suficiente de autonomia paralidar com sua doena e suas relaes de vida (como ambiente, com as pessoas, com objetos, com simesma e com o mundo), uma construo realizadaconjuntamente, entre os atores interessados noprocesso (profissionais, usurios e familiares). Umaproposta para o sujeito de criao de si do vivo naao do vivo (EIRADO; PASSOS, 2004).

    Essa proposio vislumbra uma forma de pensaro processo teraputico que nos ajuda a escapar dosistema de racionalidade das Cincias Modernas,focada no indivduo e no no sujeito, que faz com queos espaos pblicos se tornem espaos desprovidos desentido enquanto espao de implicao dos usuriosna promoo de sua sade. Ajuda-nos, ainda, aencontrar uma linha de fuga da armadilha de produzircorpos dceis e teis para uma sociedade disciplinar(FOUCAULT, 2004) ou de formatar indivduosrefns da subjetivao capitalstica, prprios dassociedades de controle (DELEUZE, 1990).

    Essa nos parece ser uma reflexo necessria,pois se caracteriza qual uma encomenda que chegacotidianamente Terapia Ocupacional: transformardoentes improdutivos ou marginais em produtores

    de capital, aptos para realizar prticas de consumo,adaptados, e no includos, no mercado de trabalhocapitalista formal. Entendemos isso mais como umaencomenda social do que uma demanda especficapara a Terapia Ocupacional.

    Em outro sentido, acreditamos que todo processoteraputico em Terapia Ocupacional, em suadimenso potica ou cientfica, deve contribuirpara o maior de todos os processos o processo davida. Ou seja, vislumbramos uma teraputica que

    tem como objetivo investir na potncia do viver aoencontro com estilsticas singulares de existncia,que se desdobram na multiplicidade que a vida.Entendemos que somente prticas teraputicas crticase reflexivas, preocupadas com todos os aspectosenvolvidos no processo teraputico, transformamnosso ato clnico tambm em um ato tico-poltico.

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  • 8/13/2019 A Alta Em Terapia Ocupacional

    8/8

    Cad. Ter. Ocup. UFSCar,So Carlos, v. 19, n. 3, p. 361-368, 2011

    368 A alta em terapia ocupacional: reexes sobre o m do...

    Autores

    Sabrina Ferigato

    Graduada em Terapia Ocupacional pela PUC-Campinas, com Aprimoramento em Sade Mental(UNICAMP), Mestre em Filosofia Social pela PUC-Campinas e Doutoranda em Sade Coletiva(UNICAMP); Terapeuta Ocupacional do Caps-Integrao, Campinas, SP, Brasil

    Maria Luisa Gazabim Simes Ballarin

    Graduada em Terapia Ocupacional pela UFSCar, Mestre em Cincias Mdicas pela Universidade Estadualde Campinas e Doutora em Cincias Mdicas pela Universidade Estadual de Campinas, Professora titularda Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Campinas, SP, Brasil

    Contribuio dos Autores

    Sabrina Ferigato trabalhou na pesquisa bibliogrfica, na concepo e redao do manuscrito e Maria LuisaG. S. Ballarin trabalhou na reviso e redao do manuscrito.

    Notas1 [...] Devir , a partir das formas que se tem, do sujeito que se , dos rgos que se possui ou das funes que se preenche,

    extrair partcula s, entre as quais instauramos relaes de movimento e repouso, de velocidade e lentido, as mais prximasdaquilo que estamos em vias de nos tornarmos e atravs das quais no tornamos [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1997a,p. 64).