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    Outubro 2003

    Leituras do Hip Hop Sobre a Cidade

    LEITURAS DO HIP HOP SOBRE A CIDADE1

    Tereza Correia da Nbrega Queiroz

    Introduo

    Este trabalho resultado de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo deEstudos e Pesquisas sobre Juventude GRUPEJ, que vem estudando gruposde jovens na cidade de Joo Pessoa com o objetivo de analisar a sociabilidadejuvenil contempornea em articulao com a experincia vivenciada no espaourbano. Alguns grupos vm sendo alvo de ateno, a exemplo de skatistas,turmas de bairro, anarco-punks e o movimento hip hop. Nossa intervenoneste momento focalizar o movimento hip hop em Joo Pessoa, que vemtendo certa presena e atuao nos bairros perifricos da cidade, articulandojovens de diferentes localidades e produzindo uma leitura sobre a condiojuvenil e sobre o espao social em que se localizam.

    A pesquisa identificou grupos que participam deste movimento na cidadede Joo Pessoa, entrevistou alguns de seus integrantes, alm de coletar letrasde msicas e discos gravados por alguns deles, presenciou shows e fotografougrafitis elaborados por seus integrantes.

    com base neste material que ser feita uma reflexo sobre os significadosque os grupos de hip hop atribuem sua experincia juvenil e sua vivnciaurbana que se traduzem nas marcas que imprimem ao espao urbano em quecirculam.

    Iniciamos com uma reflexo sobre o conceito de juventude e sobre asexperincias que constroem e significam esta etapa da vida na modernidade,para situar o movimento hip hop enquanto uma forma de expresso de jovensque se localizam nas periferias da cidade e da sociedade, e que encontraramneste lugar marginal uma forma de recriar de forma incisiva suas origenstnicas e culturais, herana a partir da qual assumem uma atitude afirmativa eguerreira. As prticas desenvolvidas por estes grupos, as msicas atravs dasquais se expressam, constituem um campo de investigao promissor para acompreenso dos movimentos subterrneos que agitam a cidade contempornea,mais alm do que sua superfcie aparentemente visvel demonstra.

    Em seguida, mostramos as origens do movimento hip hop na Amrica,situando-o no contexto de degradao urbana no qual ele emergiu e ao qualresponde de forma afirmativa. Completamos este resgate histrico com umabreve anlise do movimento hip hop no Brasil, principalmente em So Paulo,que constitui um dos principais marcos de referncia para o movimento emJoo Pessoa.

    Ao final analisamos a produo musical de alguns grupos de hip hopem Joo Pessoa, focalizando o significado que atribuem juventude e experincia urbana que vivenciam.1 Este estudo contou com a colaborao dos alunos Estevam Dedalus, Yuriallis F. Bastos, RivoneideF. de Lima do Curso de Graduao em Cincias Sociais que participam no Grupo dos Estudos ePesquisa Sobre Juventude.

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    1. Juventude, experincia urbana e pobreza

    Existe toda uma linha de estudos no cruzamento da sociologia com aantropologia que rejeita a noo essencialista de juventude que atribui umacorrespondncia imediata entre determinado momento do curso da vida ejuventude entendida como uma moratria, como um momento separado daexistncia voltado para a preparao para a vida adulta. Eisenstad discutiu adiferena entre as juventudes das sociedades tradicionais e a das sociedadesmodernas, mostrando que prprio destas ltimas certa descontinuidade entreinfncia, juventude e o mundo adulto, o que tende a transformar a juventudenuma idade problemtica (Eisenstadt, 1976).

    Aris (1981) desenvolve a tese de que a juventude uma invenomoderna, que emerge juntamente com a polarizao entre vida pblica e privada,e a disseminao de formas de classificao e hierarquizao, em substituio sociabilidade densa que vigorava na sociedade antiga e que misturava diferentesclasses e grupos etrios. A juventude isolada num espao especfico desocializao a escola que substitui a forma anterior de aprendizagem onde asocializao ocorria no contato direto com o mundo e as atividades dos maisvelhos, ao mesmo tempo em que ocorre uma ascenso do sentimento de famlia,sua crescente privatizao e distanciamento em relao ao espao pblico. Estase redefine, bem como os papis de seus membros e a mulher passa a seresponsabilizar pela educao e formao das crianas.

    Schindler (1996) questiona em parte as idias de Aris demonstrandoque na sociedade antiga havia j uma concepo de juventude, o que pode seratestado pela vitalidade da cultura juvenil da poca, explicitada em rituais efolguedos prprios desta etapa da vida. Nesta sociedade, porm, a juventudetem outro sentido e funo e a interao e as trocas entre os mundos adulto ejuvenil se faziam com mais freqncia, tornando mais rico o contato inter-geracional. Demonstra assim que a existncia de culturas juvenis no privilgio de sociedades onde prevalece certa ruptura entre as diferentes idadesda vida.

    Autores mais recentes como Abramo (1994) e Groppo (2000) atualizamo debate sobre a juventude contempornea sinalizando as mudanas que vmse processando nas formas de construo desta etapa da vida.

    Para Groppo, a juventude entendida como uma representaosocial que tem repercusso sobre as prticas e comportamentos dossujeitos. Trata-se de uma construo social que se refaz continuamente eque envolve uma diversidade de atores e instituies sociais, entre os quaisse incluem os prprios jovens. Na elaborao da moderna noo dejuventude tiveram papel destacado os pedagogos, a escola, a famlia e acincia, em particular a psicologia. Outro aspecto destacado pelo autordiz respeito desconfiana da modernidade em relao aos jovens, vistosem geral como instveis e perigosos, a exigirem portanto uma vigilnciapermanente para no resvalarem por caminhos equivocados. Poucasvezes se perguntou pelo mal-estar juvenil e sobre as razes de sua atraopelos caminhos avessos.

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    Atualmente difcil falar de juventude, dada a diversidade demanifestaes e de caras com que ela se apresenta. Temos ainda um setorprivilegiado que vem tendo um papel importante na configurao dasjuventudes contemporneas: a mdia que, na percepo de alguns, estariadesconstruindo a noo moderna de juventude com a quebra das barreirasque segregavam crianas e jovens em mundos separados.

    A juventude contempornea tem tambm um papel significativo naconstruo de sua prpria identidade e sobre esta participao que nosdebruaremos no momento, tomando o exemplo do movimento hip hop dacidade de Joo Pessoa.

    Alguns processos sociais importantes vm gerando mudanas naconfigurao da juventude contempornea. Jesus Martin Barbero (http://campus-oei.org/pensariberoamerica/ric00a03.htm) afirma que atualmenteela vem vivenciando a radicalizao da experincia do desencaixe2 , o quedesorganiza mapas mentais e prticas locais, e se expressa na maiorfamiliaridade com a cultura tecnolgica e a gestao de uma novasensibilidade estranha s tradies culturais; na desterritorializao, queenvolve processos urbanos de privatizao e de construo de no lugares,dificultando a identificao com o espao e levando a novas formas deconstruo identitria; na adoo de novas sociabilidades que articulam olocal e o global, e na construo de comunidades hermenuticas cuja ligaono provm nem de um territrio fixo, nem de um consenso racional eduradouro, mas da idade e do gnero, dos repertrios estticos e gostossexuais, dos estilos de vida e das excluses sociais. As culturas juvenisexpressariam assim a reconfigurao das sociabilidades e o mal estar dasociedade contempornea.

    O movimento hip hop pode ser considerado como produtor de umacultura juvenil que exemplifica a anlise do autor acima citado. Trata-se deum movimento recente que marca a presena de jovens que se agregam pelosentimento de excluso, e que elaboram um estilo de vida e uma forma deexpresso artstica que constri um ponto de vista particular e bastante crticosobre a sociedade contempornea. E que encontraram j um canal deexpresso atravs da mdia, influenciando jovens de todas as categoriassociais. O que contraria e remete reviso de enfoques sociolgicos quetradicionalmente encaravam as manifestaes pblicas de jovens pobresapenas no registro do desvio, da marginalidade ou da delinquncia.

    Este movimento juvenil exprime-se, sobretudo, atravs demanifestaes artsticas e de aes sociais, e representa uma afirmao daparcela mais desfavorecida da sociedade, aquela que habita as periferias dacidade e que tem as marcas das discriminaes associadas negritude e excluso social.

    Como emergiu este movimento, como conseguiu se expandir, quaisas razes das identificaes de jovens de diferentes cidades e regies? O queas juventudes de diferentes lugares tm de comum e de diferente?

    2 Giddens, A. 1991.

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    2. O canto indignado dos guetos de Nova York

    O hip hop um movimento juvenil que surgiu e expandiu-se nasdcadas de 70 e 80 nos Estados Unidos. Tem razes na tradio cultural afro-americana e desenvolveu trs expresses principais: o rap, o grafitti e a breakdance (Arce, 1999).

    Para Rose (1997), ele surge em Nova York, no contexto da cidade ps-industrial, que vivenciava um vertiginoso desenvolvimento tecnolgico queteve consequncias sociais perversas decorrentes da desindustrializao, daampliao do setor de servios e do informal, que degradou as condies eperspectivas de vida dos que vivem do trabalho. A crise econmica e aredefinio do papel do Estado, que diminua sua atuao no sentido de repararinjustias sociais e promover maior igualdade, levou tambm a radicalizaode discriminaes raciais e de gnero. As perspectivas de ascenso social sereduziram drasticamente. Alm disso, o corte de verbas para investimentosurbanos e polticas habitacionais acarretou a deteriorao de bairros depopulao mais pobre, a exemplo do South Bronx, e tiveram um impactodevastador sobre os jovens de origem negra ou hispnica.

    O South Bronx , segundo a autora citada, o bero da cultura hip hop,e l tomam forma, de maneira drstica, os efeitos da sociedade ps-industrial.

    Foi neste contexto de degradao urbana e discriminao que os jovensnegros e latinos inventaram formas criativas de expresso e resistncia: o hiphop. A cultura hip hop emergiu como fonte de formao de uma identidadealternativa e de status social para os jovens numa comunidade, cujas antigasinstituies sociais de apoio foram destrudas, bem como outros setoresimportantes. As identidades alternativas locais foram forjadas a partir demodas e linguagens, de nomes e ruas e, mais importante: do estabelecimentode grupos e turbas de bairros (Idem, 1977).

    Herschman tambm situa a origem do hip hop nos guetos de NovaYork quando DJs como o jamaicano Kool-Herc e seu discpulo Grand MasterFlash comearam a dar festas no gueto do Bronx (NY), utilizando-se de tcnicasque posteriormente se tornaram fundamentais para este tipo de msicaeletrnica. Dentre estas tcnicas destacam-se os sounds systems, mixadores,scratch e os repentes eletrnicos que passaram a ser conhecidos como raps(Herschman, 2000, p. 19). a tambm que vo surgindo outros elementosassociados msica: o break, as grafitagens de muros e trens do metr, e umestilo de vestir despojado: calas de moleton, camisetas, bons, tnis, gorros,das principais marcas esportivas.

    Herschman identifica uma origem americana comum entre o funk e ohip hop, porm no Brasil, as especificidades da dinmica cultural e a os modosde apropriaes locais destas influncias culturais transformaram o funk e ohip hop em vertentes musicais e culturais distintas. O funk difundiu-seprincipalmente na cultura urbana carioca na dcada de 80, enquanto o hiphop expandiu-se principalmente em So Paulo, onde mobilizou a juventudenegra e trabalhadora da cidade, organizando-se em grupos, associaes, posses,e pequenas gravadoras. O hip hop tornou-se uma verso mais politizada da

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    msica negra. So Paulo tornou-se o principal centro irradiador do hip hopno Brasil, onde grupos como Racionais MCs, Sistema Negro, MDM, CmbioNegro MRN, Pavilho 9, tm expressiva presena na indstria fonogrfica.

    Para ilustrar o estilo musical desenvolvido pelos rappers tomamos comoexemplo a letra de um dos raps nacionais mais conhecidos e divulgados, deautoria dos Racionais Mcs.

    O tema central do rap o contraste entre o fim de semana do rico e odo pobre, a viso que este ltimo tem do modo de vida dos ricos:

    A toda comunidade pobre da Zona Sul,Chegou fim de semana, todos querem diverso.S alegria, ns estamos no vero.Ms de janeiro, So Paulo, Zona Sul.Todo mundo vontade, calor, cu azul,Eu quero aproveitar o sol.Encontrar os camaradas prum basquetebol.No pega nada.Estou a uma hora da minha quebrada.Logo mais, quero ver todos em paz.Um, dois, trs carros na calada.Feliz e agitada!Toda a playboyzada, as garagens abertas,Eles lavam o carro, desperdiam a gua.Eles fazem a festa.Vrios estilos, vagabundas, motocicletas.Coroa rico, boca aberta, isca prediletaDe verde florescente, queimada, sorridente,A mesma vaca loura circulando como sempre.Roda a banca dos playbois do Guaruj.Muitos manos se esquece mas na minha no se cresceSou assim, estou legal, at me leve a mal.Malicioso e realista sou eu, mano Brown.Me d quatro bons motivos pra no ser.Olha meu povo nas favelas e vai perceber.

    O rap inicia-se com a perspectiva do fim de semana, da alegria, dafesta, perspectiva que contrariada pela percepo do contraste entre o espaodo rico e o do pobre, entre as imensas possibilidades dos ricos e a dos pobrescujas aspiraes mais simples so impossveis de realizao, entre o Guaruj lugar da elite e minha quebrada lugar das dificuldades.

    O estilo de vida dos ricos apresentado de forma irnica: o tempo delazer dedicado lavagem dos carros, cone maior de consumo e status social,o gasto de gua visto como desperdcio para quem vive todas as carncias; asgarotas que circulam ao redor de coroas ricos so vistas de forma depreciativa vacas louras, e os playboys como otrios que se deixam seduzir pelas vacaslouras, interessadas no dinheiro.

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    H um convite insistente para os irmos atentarem para as diferenas,para o no esquecimento, para a atitude maliciosa e realista do mano Brown.

    No parque, lugar pblico, as diferenas so sinalizadas de modo gritante:as famlias chegam em carangos do ano, pais ao lado dos filhos, brinquedoseletrnicos. No parque tem bicicletas, pai fazendo cooper. Tambm tem o clube,a quadra de esporte, cinema, pipoca e sorvete, piscina quente, corrida de kart.

    E tambm tem o pretinho vendo tudo do lado de fora, que apenassonha atravs do muro, afirmaes que demarcam significativamente o lugardo jovem pobre e negro na cidade, sua excluso de espaos privatizados, deespaos pblicos que no mais se oferecem ao usufruto de todos.

    Enquanto na quebrada, a molecada brinca do jeito que d, correndopra l e pr c, jogando bola descalos nas ruas de terra, gritam palavro,no tem vdeo game, s vezes nem televiso. A ironia comparece forte tambmao relembrar o mito do Papai Noel que entretece o sonho de consumo decrianas ricas:

    No ltimo Natal Papai Noel escondeu um brinquedo.Prateado. Brilhava no meio do mato.Um menininho de dez anos achou o presente.Era de ferro com doze balas no pente.E o fim do ano foi melhor pra muita gente

    Ao invs da fantasia, do brinquedo sonhado e almejado, a durarealidade do contato precoce com o mundo da criminalidade, com o caminhodo crime que tornou o fim de ano melhor pra muita gente.

    A quebrada, a favela por um lado valorizada como lugar depertencimento, territrio de identificao:

    Ruas de terra, esse o morro, a minha rea minha espera!Gritaria na feira, vamos chegando!Pode crer, eu gosto disso, mais calor humano,Na periferia a alegria igual l que moram meus irmos, meus amigos.E a maioria por aqui se parece comigo.

    H, portanto, uma revalorizao da periferia, como lugar depertencimento, onde moram os irmos, onde impera a alegria. Mas tem tambmo lado da violncia, da pobreza, da excluso, que precisa ser denunciado:

    A nmero, nmero um em baixa renda da cidadeComunidade sul dignidade!Tem um corpo no escado, a tiazinha desce o morroPolcia, a morte, polcia, socorro!Aqui no vejo nenhum clube poliesportivoPra molecada frequentar. Nenhum incentivo.O investimento no lazer muito escasso.

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    O centro comunitrio um fracasso!Mas, a, se quiser se destruir est no lugar certo.Tem bebida e cocana sempre por perto.A cada esquina, cem, duzentos metros,Nem sempre bom ser esperto.Schmith, Taurus, Rossi, Dreyer ou CampariPronncia agradvel, estrago inevitvelNomes estrangeiros que esto no nosso meioPara matarMerda

    As carncias da periferia so assim nomeadas, principalmente as quedizem respeito mais diretamente aos jovens, como a ausncia de equipamentosde lazer, alm da violncia que cotidianamente sofrem dos aparatosrepressivos, e as alternativas destrutivas que a eles se oferecem, cenrio diantedo qual o compositor se enfurece merda.

    Os Racionais falam da cidade dual, da cidade sem nuances, cidade demuros, de lugares demarcados. Da cidade a que os mais pobres no tm maisacesso e que precisa ser tomada de assalto seja este real ou simblico.

    O canto dos racionais tambm um convite luta, ao no esquecimento, unio dos que esto de fora. Os manos so convocados:

    Vamos investir em ns mesmosMantendo distncia das drogas e do lcoolA rapaziada ....

    3. O hip hop em Joo Pessoa

    Em Joo Pessoa o movimento se expande principalmente a partir dadcada de 80 e chega inicialmente atravs da televiso. Alguns jovens ficaramimpressionados com o modo de danar apresentado por alguns grupos de hiphop e decidem ento se reunir para tentar reproduzir os passos da dana. Olocal de encontro era o Espao Cultural, rgo do governo do Estado onde sedesenvolvem atividades artsticas, cursos de arte, shows, etc. Do convvio alipraticado surge um grupo que se identificava com o hip hop o Justa Causa e que constituiu o ncleo inicial do movimento na cidade. Posteriormente estegrupo subdividiu-se em dois novos grupos: tribo Ethnos e Auto-Controle.

    Outro participante do movimento, o Mappa, divide sua histria emdois momentos, a primeira gerao representada pelos grupos citados acimae a atual que envolve um nmero maior de grupos. Para este entrevistado, seucontato com o hip hop se deu atravs de um carro de som que circulava emtorno do mercado de Mangabeira, bairro situado na periferia da cidade e ondemora o rapper entrevistado. Seu interesse pela msica iniciou-se com o funk eno incio da adolescncia costumava frequentar os bailes da cidade.Posteriormente conheceu um rapper da primeira gerao e a partir da comeoua freqentar o pessoal, escutar raps e a partir da foi se formando no rap.

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    At hoje se observa que os grupos juvenis, de modo geral, se formam e tambmse dissolvem com muita facilidade, se recompem ou migram para outrosgneros musicais.

    Aconteceram algumas tentativas de trabalho conjunto, articulandodiversos grupos do movimento, a chamada Caravana do Hip hop, que tentoudifundir o movimento nos bairros da periferia, mas a iniciativa no teve duraomuito longa.

    Atualmente foram identificados 10 grupos de hip hop na cidade Aliadosde Mangabeira, (Mangabeira), Realidade Crua (Torre, Funcionrios), Reaoda Periferia (Mangabeira), Primatas do Mutiro (Nova Repblica), Criados naRua (Funcionrios), O Predador (Mangabeira), Revolucionrios do Rap(Funcionrios), Atitude Urbana (Geisel, Funcionrios e Mangabeira), Segure oB. O. (Mangabeira), Afronordestinas (Funcionrios, Torre). A maioria se situamem bairros da regio sudoeste que se expandiu aps a dcada de 70 emconseqncia de intervenes do BNH, com a construo de grandes conjuntoshabitacionais direcionados populao de renda mdia e baixa da cidade.

    O movimento no se apresenta uniforme e algumas tendncias puderamser identificadas no seu interior: a Tribo Ethnos, que iniciou o movimento nacidade, dedica-se atualmente a uma fase mais experimentalista, pesquisandoinstrumentos e ritmos musicais diferentes, mesclando msicas de fontesculturais diversas. Os grupos Reao da Periferia e Primatas do Mutiro fazemum som mais politizado, com letras que retratam o cotidiano da periferia. Este tambm o caso do grupo Realidade Crua, que alm de um discurso politizadoprocura tambm mesclar o rap com ritmos e instrumentos musicais nordestinos.

    Qual a leitura que os rappers paraibanos fazem da cidade e dos seusjovens?

    As letras do rapper Cassiano Pedra condenam as drogas e indicampara os manos o caminho da escola como sada para a precariedade decondies atuais. Apresentam tambm referncias vida na periferia, violncia e aos estigmas de que so alvos:

    Joo Pessoa, cidade verde, Zona Sul,O hip hop na batalha pra salvar mais umDo meu irmo eu tenho o maior orgulho, menor, mas crescer sem fazer barulho,Eu t sabendo, ele tambm tem seus figuras,A nova gerao que vem das ruas,Muito mais postura,Ento chega, matar no sada no,Fique ligado no rap, Primatas do Mutiro,Tenho pouca idade mas cenas, pessoas ento,Neguinho de ferro na cinta, dando porrada na cara do outro irmo,Fiquei triste mas no pude fazer nada,Vendo mais um morrendo aquina nossa quebrada,A barra pesada, na mente vrias sequelas,Esqueo e vou pra escola,

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    Pois sei que l o futuro me espera,T pensando que no penso, a minha mente a arma,O rap a bala, a lngua o gatilho,E a verdade que mando no falha,No sou gentalha, sou mais um filho da luta,Lutando pra sobreviver, aqui no Nova Repblica.

    Trata-se de um rap que discorre sobre as dificuldades da vida naperiferia, a violncia precoce, assassinatos entre irmos, porrada na cara dooutro e tambm da sada oferecida pelo hip hop: o hip hop na batalha prasalvar mais um. O tema da luta, da batalha uma constante, o cenrio urbano o da guerra e as armas da batalha so o rap e a lngua. Nas letras desterapper h uma preocupao muito forte com o acenar de caminhos, a buscapela educao, a distncia em relao ao mundo das drogas.

    Outro compositor, o Mapa, tambm faz raps sobre a cidade, um dosquais se intitula Na rea de cada um, onde afirma:

    A sua rea, s voc conhece,L s voc sabe mesmo o que aconteceSe um tiroteio, assassinatos, fatos sangrentos,Cotidiano sempre assim, sempre violento.Um dia j foi vtima, se no foi um dia vai,Mas a consequncia onde difcil a paz,Joo Pessoa de qualquer outra cidade no diferente.Dia aps dia a violncia crescente.

    Rap que fala sobre o conhecimento do lugar, da violncia que l impera,e da rua como lugar do medo: em casa eu t em paz, na rua muita treta.Em outro momento aparece a conscincia da diferena: ao tematizar sobre ascarncias de seu bairro, afirma: nada disso ou daquilo que os playboy possui, s pobreza e violncia que nos influi.

    O mpeto guerreiro, a dimenso da cidade como espao de luta, a faltade perspectiva enfrentada pelos jovens da periferia, so temas constantes nosraps deste compositor:

    T aqui ... de mangas arregaadasJunto com os manos Dj Dal e MetralhaDifcil batalha, condies precriasMas periferia assim mesmoEncaro de frente, de lutar no tenho medoPara os poderosos isso no apeloMuito menos pelos maluco tiroteioFalo do que, do que nos revoltaInjustia, droga, polcia, desigualdade e violnciaTudo influencia quando na adolescnciaPois no existe perspectiva de vida para o futuro

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    Mas a fora da palavra enfatizada e associada com imagens fortes.As palavras podem se infiltrar nos sujeitos, perturb-los, provocarquestionamentos identitrios:

    Engatinho o cano, conto at trs e atiroP, t na minha, t cabreiro, t tranquiloA bala penetrou na sua menteFoi at l se alojou no subconscienteFico dentro de ti um questionamentoBandido ou mocinho, quem sou eu no momentoRha... Rha... voc poder me responderSim ou no, otrio, quem vocO mundo grande a gente se perdeA vida por linhas tortas que se escreveEnto se liga, siga um caminho que reto um sEstreito pequeno difcil esse mundo fudido sabemos de cor

    H tenso entre o mundo sempre visto como algo perturbador e o hiphop aponta o caminho a ser seguido para evitar se perder.

    Os raps analisados apresentam em comum a indignao dos jovenscom o lugar que ocupam na sociedade. Seus locais de origem so nomeados,h certo orgulho nesta inscrio, e ao mesmo tempo, muito forte o sentimentode estigma, a oposio que expressa entre os manos o habitante da periferiae os playboys que habitam bairros mais nobres da cidade.

    Trata-se, portanto, de um modelo de construo da juventude quedestaca seu aspecto fragmentado, no h juventude, mas juventudes, e a daperiferia est indignada com o descaso a que est relegada, no se sente parteda mesma juventude que desfruta de melhores condies de vida. Fala paraseus pares na tentativa de conscientiz-los, caminho que consideram vivelpara um revoluo, nomeada, mas pouco explicitada, que conta apenas coma unio, com a fora dos iguais e a da palavra. Ao lado desta dimenso maispoltica os rappers tambm vem no movimento um caminho deprofissionalizao.

    Bibliografia

    ABRAMO, Helena Wendel. 1994. Cenas Juvenis: Punks e Darks no espetculourbano. So Paulo: Escrita/ANPOCS.

    ARCE. Jos M. V. 1999. Vida de Barro Duro: Cultura Popular Juvenil e Grafite.Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

    ARIS, Philippe. 1981. Histria Social da Criana e da Famlia. EditoraGuanabara: Rio de Janeiro.

    BARBERO. http://campus-oei.org/pensariberoamerica/ric00a03.htmEISENSTADT, S. N. 1976. De Gerao a gerao. So Paulo: Editora Perspectiva.FAUSTO NETO, Ana Maria Q. e Quiroga, C. 2000. Juventude urbana pobre:

    manifestaes pblicas e leituras sociais. C. M. Pereira, E. Rondelli, K. E.

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    Schollammer e M. Herschmann. (Orgs.) Linguagens da Violncia. Rio deJaneiro: Editora Rocco.

    GIDDENS, Anthony. 1991. As consequncias da Modernidade. So Paulo, Editorada Universidade Estadual Paulista.

    GROPPO, Lus Antonio. 2000. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e Histria dasJuventudes Modernas. Rio de Janeiro: Difel.

    HERSCHMANN, Michael. (org.) Abalando os anos 90. Funk e Hip hop.Globalizao, violncia e estilo cultural.

    HERSCHMANN. Michael. 2000. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio deJaneiro: Editora da UFRJ.

    SCHINDLER, Norbert. 1996. Os tutores da desordem: rituais da cultura juvenilnos primrdios da era moderna in G. Levi e Schmitt (orgs.). Histria dosJovens, vol. I., So Paulo: Companhia das Letras.

    RESUMOLeituras Do Hip Hop Sobre A Cidade

    O objetivo deste trabalho desvendar as representaes que grupos juvenisurbanos fazem sobre a cidade. A escolha do movimento hip hop deve-se aosignificado que este grupo vem assumindo enquanto porta-voz de expressivoscontingentes de jovens que habitam as periferias das cidades brasileiras eque escolheram a msica, ao lado de outras expresses artsticas, comoinstrumento privilegiado para relatar a excluso vivenciada no seu cotidianoe a precariedade de suas condies de vida e trabalho. O estudo feito combase na produo musical de grupos de rappers que habitam a periferia dacidade de Joo Pessoa, na Paraba.Nas letras analisadas observou-se que os principais temas abordados so aviolncia urbana contra jovens pobres da periferia, as desigualdades sociaise simblicas vivenciadas na cidade e o estigma que recai sobre jovens pobrese pretos. A cidade representada como espao polarizado, arena de luta naqual os que se sentem estigmatizados batalham para despertar conscinciase construir uma cidade igualitria. Trata-se de uma msica militante queacredita no valor da palavra e da arte como instrumento de transformaosocial, interpelando os ouvintes para se conscientizarem e se unirem aosmanos que apontam para a possibilidade de outra cidade oposta aquelaonde vivem.

    Palavras chave: juventude, cultura, movimento hip hop.

    ABSTRACTHip Hop Readings of the City

    The objective of this work is to understand the representations which urbanyouth groups make about the city. Hip hop is chosen because of the meaningthat this group has assumed as spokesperson for youths who live in theperiphery of Brazilian cities and who choose music, along with other artisticexpressions, as a priveliged instrument to speak of their experience ofexclusion and of the precariousness of their work and living conditions. The

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    study is based on the musical production of rapper groups who live in theperiphery of the city of Joo Pessoa, Paraba.An analysis of the lyrics reveals that their principal themes are urban violenceagainst poor youth of the periphery, social and symbolic inequalitiesexperienced in the city and the stigma which attaches to poor youths andblacks. The city is represented as a polarized space, an arena of conflictwhere those who feel stigmatized struggle to awaken consciousness andconstruct a more igalitarian city. Its a question of militant music whichbelieves in the value of the word and of art as an instrument of socialtransformation, interpelating hearers to conscientize themselves and joinhands, pointing to the possibility of an alternative city, the opposite of that inwhich they live.

    Keywords: youth, culture, hip hop movement.