45982-55073-1-PB (1)

14
Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, n o 17, 70-83 70 Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA; fundadora do Serviço de Atendimento à Criança e ao Adolescente Françoise Dolto, da Secretaria de Saúde de Novo Hamburgo. Dossiê PARA SER UM GURI: ESPAÇO E REPRESENTAÇÃO DA MASCULINIDADE NA ESCOLA 1 I eda P rates da S ilva Naexperiênciacomclínicapsi- canalíticadecriançasnumser- viço público de saúde mental aolongodosúltimosanos,te- mos nos deparado com uma desproporção entre o número de meninos e meninas enca- minhadosparatratamentopsi- coterapêuticocomsintomases- colares,sendosignificativamen- te maior o número de guris. O que faz dos meninos, na atua- lidade,tãoavessosàescola?Ou seráaescolaavessaaalgoda masculinidadequeestáemcau- saali?Oqueproduzestecon- flito,elevadoàmáximapotên- cia em muitos casos que são encaminhados para a clínica, naesperadeque“domestique- mos”estascrianças?Estaráha- vendoumatentativadeapaga- mento da diferença, o que faz comqueelaressurjanoespaço escolarcomoviolênciaetrans- gressão? Como constroem os meninos modelos de identifi- cação, se não podem diferen- ciar-se num universo maciça- mente feminino? Clínicapsicanalítica;escola; funçõesparentais;agressivi- dade;identificação;diferen- çasexual IN ORDER TO BE A BOY: SPACE AND REPRESENTATION OF MASCULINITY AT SCHOOL Ourexperiencewithpsychoanaly- ticclinicofchildreninapublic mentalhealthserviceduringthe lateyearshasshownusalarge differencebetweenthenumberof boysandgirlsassignedtopsycho- therapyduetoschoolproblems. Thenumberofboysisconsidera- blyhigher.Whatmakesboysso averseschooltoday?Orwould schoolbeaversesomethingofmas- culinitythatisconveyedhere? Whatcausesthisconflictthatis speciallyhardinsomeindividu- alswhoareassignedtopsychothe- rapyasawaytobetamed?Would itbeduetoanattempttoerasethe difference,sothatitreturnsas violenceandtransgressionatscho- ol?Howdoboysbuildmodelsof identificationiftheycannotbe differentamongastronglyfemi- nineuniverse? Psychoanalyticclinic;school; parentalfunctions;aggressive- ness;identification;sexualdi- fference E m primeiro lugar, gostaria de fazer refe- rência ao título, que me veio da lembrança do tra- balhodeumaestagiáriadepsicologiadenossoser- viço – agora já psicóloga – sobre um caso clínico atendido por ela, que eu pude acompanhar em supervisão,ecujoatravessamentodotrabalhoana- líticoproduziuumaoperaçãosubjetivaqueelain- titulou “para ser um guri”. Esta expressão pare- ceu-me muito pertinente para a questão que de- senvolvonesteartigo,etomei-aemprestadadare- feridacolega 2 . Na experiência com clínica psicanalítica de crianças num serviço público de saúde mental ao longo dos últimos anos, temos nos deparado com uma realidade que para mim levanta questões ins- tigantes e que o tema do Congresso da APPOA, A Masculinidade, me oportunizou trabalhar: o nú- mero de meninos, principalmente na faixa dos 8 aos 12 anos, encaminhados para tratamento psi- coterapêuticocomsintomasescolares(agressivida-

description

Psicologia Clínica

Transcript of 45982-55073-1-PB (1)

Page 1: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8370

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto

Alegre – APPOA; fundadora do Serviço de Atendimento à

Criança e ao Adolescente Françoise Dolto, da Secretaria de

Saúde de Novo Hamburgo.

Dossiê

PARA SER UM GURI:ESPAÇO E

REPRESENTAÇÃO DAMASCULINIDADE NA

ESCOLA1

Ieda Prates da Silva

Na experiência com clínica psi-canalítica de crianças num ser-viço público de saúde mentalao longo dos últimos anos, te-mos nos deparado com umadesproporção entre o númerode meninos e meninas enca-minhados para tratamento psi-coterapêutico com sintomas es-colares, sendo significativamen-te maior o número de guris. Oque faz dos meninos, na atua-lidade, tão avessos à escola? Ouserá a escola avessa a algo damasculinidade que está em cau-sa ali? O que produz este con-flito, elevado à máxima potên-cia em muitos casos que sãoencaminhados para a clínica,na espera de que “domestique-mos” estas crianças? Estará ha-vendo uma tentativa de apaga-mento da diferença, o que fazcom que ela ressurja no espaçoescolar como violência e trans-gressão? Como constroem osmeninos modelos de identifi-cação, se não podem diferen-ciar-se num universo maciça-mente feminino?Clínica psicanalítica; escola;funções parentais; agressivi-dade; identificação; diferen-ça sexual

IN ORDER TO BE A BOY: SPACEAND REPRESENTATION OFMASCULINITY AT SCHOOLOur experience with psychoanaly-tic clinic of children in a publicmental health service during thelate years has shown us a largedifference between the number ofboys and girls assigned to psycho-therapy due to school problems.The number of boys is considera-bly higher. What makes boys soaverse school today? Or wouldschool be averse something of mas-culinity that is conveyed here?What causes this conflict that isspecially hard in some individu-als who are assigned to psychothe-rapy as a way to be tamed? Wouldit be due to an attempt to erase thedifference, so that it returns asviolence and transgression at scho-ol? How do boys build models ofidentification if they cannot bedifferent among a strongly femi-nine universe?Psychoanalytic clinic; school;parental functions; aggressive-ness; identification; sexual di-fference

Em primeiro lugar, gostaria de fazer refe-rência ao título, que me veio da lembrança do tra-balho de uma estagiária de psicologia de nosso ser-viço – agora já psicóloga – sobre um caso clínicoatendido por ela, que eu pude acompanhar emsupervisão, e cujo atravessamento do trabalho ana-lítico produziu uma operação subjetiva que ela in-titulou “para ser um guri”. Esta expressão pare-ceu-me muito pertinente para a questão que de-senvolvo neste artigo, e tomei-a emprestada da re-ferida colega2.

Na experiência com clínica psicanalítica decrianças num serviço público de saúde mental aolongo dos últimos anos, temos nos deparado comuma realidade que para mim levanta questões ins-tigantes e que o tema do Congresso da APPOA, AMasculinidade, me oportunizou trabalhar: o nú-mero de meninos, principalmente na faixa dos 8aos 12 anos, encaminhados para tratamento psi-coterapêutico com sintomas escolares (agressivida-

Page 2: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

71

de, distúrbios no comportamento, hiper-agitação, dificuldadesde concentração e de aprendizagem), é significativamente maiordo que o de meninas (70% de crianças do sexo masculino e 30%do sexo feminino). A grande maioria dessas crianças é encami-nhada pelas próprias escolas; os demais vêm encaminhados peloPosto de Saúde, mas geralmente a pedido da escola. Se conside-rarmos que não há praticamente diferença na proporção de me-ninas e meninos matriculados na rede municipal de ensino dacidade de Novo Hamburgo (52% são meninos e 48%, meninas),esse dado chama a atenção. Constatamos, por um lado, o sofri-mento psíquico desses meninos para se ambientar e interagir numespaço que parece fechado para eles e, por outro, o desespero deprofessoras, que se sentem acuadas, agredidas, desrespeitadas eimpotentes para lidarem com essas situações.

De que forma, ou de que posição, a escola pode operar efei-tos que não sejam sintomáticos, mas geradores de aprendizageme crescimento? E que resposta a clínica psicanalítica pode dar aí,que não seja simplesmente atender essa demanda cada vez maiorde tratar “estes guris medonhos”.

Focarei mais especificamente os sintomas da agressividade eda agitação, pois, além de serem as queixas mais freqüentes, sãoos que provocam reações mais graves e descontroladas por parteda família e da escola. São meninos que, geralmente, lotam osserviços de neurologia antes de chegarem para tratamento psico-terapêutico.

As professoras geralmente se identificam com a criança agre-dida, principalmente se for uma menina. A leitura que fazemdas reações e atos desses meninos com comportamento agressi-vo, é sempre a mesma e carregada de indignação, de raiva e deuma visão moral, que mal encobre um discurso de vitimizaçãoda mulher submetida à força física do homem. Afirmo isso por-que é freqüente, nos relatos de algumas professoras ou diretorasde escolas, que a descrição desses meninos e de seu comporta-mento os situa numa posição de homens, de adultos, que colo-cariam em risco as outras crianças e até mesmo as professoras,justificando atos descontrolados ou repressão severa por partedestas, quando não, acionando instâncias da lei, como o Conse-lho Tutelar ou a Guarda Municipal para coibir atos agressivosque lhes parecem impossíveis de serem contidos, mesmo que setrate de uma criança pequena, de 7, 8 ou 9 anos, por exemplo.Quero deixar claro que não se trata de uma posição acusatóriaem relação às professoras. Antes, parece-me haver aí um reflexodo discurso familiar e social que localiza o masculino do lado daviolência, da força bruta, do desadaptado... As professoras, quetêm uma turma com cerca de trinta crianças para educarem,

Page 3: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8372

vêem-se pressionadas e despreparadas para intermediarem con-flitos e situações que, na maioria das vezes, são plenamente sus-cetíveis à interferência da palavra – uma palavra sustentada emtransferência – e poderiam se resolver no âmbito escolar, geral-mente dentro da própria sala de aula.

MAS, ENTÃO, O QUE FRACASSA AÍ?

Esses meninos com problemas de agressividade, agitaçãomotora, dificuldade de concentração e de aprendizagem, na gran-de maioria são diagnosticados apressadamente com uma sigla:TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiper-atividade).Hoje o alastramento desse diagnóstico vem sendo discutido, in-clusive em alguns meios médicos (conforme reportagem da Re-vista Cartacapital, de 11/08/04), nos quais se questiona a rapi-dez do diagnóstico e a generalização da medicação das crianças. Arevista aponta o óbvio, mas facilmente esquecido: o mundo “hi-per-ativo” em que vivemos, dotado de excessos, velocidade, su-perficialidade, agitação, cultura do descartável, fragmentação, au-sência de sentido etc. A reportagem chega a declarar que “... ahiper-atividade revela-se mais do que uma novidade: ela é, talvez,a mais contemporânea das doenças” (p. 11). Nessa mesma maté-ria, o médico Carlos Alberto da Costa e Silva, especialista emsaúde mental e ex-diretor da Organização Mundial de Saúde(OMS), alerta para a superficialidade e rapidez com que se diag-nostica atualmente essa “doença”, afirmando que aproximadamente65% dos diagnósticos de TDAH são incorretos. Surpreende-nos,por se tratar de uma autoridade do próprio meio médico a dizertal coisa. Ele elenca uma série de outras hipóteses e situações paraexplicar tais sintomas apresentados pelas crianças – em grandeparte meninos – de ordem fisiológica, familiar, social ou cultural,sem no entanto considerar as causas psíquicas. Porém, com bom-senso, recomenda tempo e prudência na elaboração do diagnósti-co e na intervenção medicamentosa, aconselhando: “O mais im-portante é a análise minuciosa da história clínica do paciente,um exame clínico cuidadoso, a interação com a família e paciên-cia para ouvir.” (Revista Cartacapital, 11/08/04, p.14 – grifo meu)

A disseminação dos manuais para identificação dos possíveiscasos de TDAH criou o estereótipo do hiper-ativo, carapaça queserve em qualquer menino mais agitado, ou que não correspondaao padrão de comportamento esperado pela escola. A criança éencaminhada para o médico já portando esse estigma e, chegan-do lá, quase sempre ouve a confirmação desse diagnóstico e ga-

Page 4: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

73

nha um remedinho (“remendinho”)para tomar. Nos casos em que a crian-ça não é medicada, há reclamação dasmães e das professoras, geralmente,que depositam no medicamento aesperança de que o filho ou o aluno“defeituoso” seja consertado. O quese espera é uma mudança radical eimediata no comportamento, semque nada em torno da criança mudeou precise ser interrogada.

A escola, nos dias de hoje, re-presenta um universo maciçamentefeminino, formado por professoras,diretoras, supervisoras e merendei-ras. É um lugar onde as mulherespredominam, decidem, comandam.Como será para esse universo emi-nentemente feminino lidar com omasculino? Por que os meninos,muito mais do que as meninas, res-pondem com tais sintomas?

É preciso lembrar que a agres-sividade é constitutiva do sujeito. Elasurge fundamentalmente na experiên-cia fraterna na tenra infância, em queum igual é tomado como inimigo,na lógica do eu ou ele. Esse outro,visto como rival frente à mãe, é sem-pre ameaçador, ao mesmo tempo emque funciona como duplo. Isso se vêclaramente, por exemplo, na expe-riência do transitivismo, na qual acriança é a que bate e, ao mesmotempo, a que foi agredida. Lacan(1938) já apontava isso a que eledesignou inicialmente de “Comple-xo de Intrusão”, num de seus pri-meiros textos, A Família. Num arti-go posterior, Agressividade em Psica-nálise (Lacan, 1948), segue traba-lhando esse tema do complexo deintrusão ou complexo fraterno. Re-toma a questão do ciúme – referin-do o relato de Santo Agostinho da

observação de uma cena de ama-mentação – não apenas como riva-lidade vital, mas como expressão deuma identificação. “Aqui realiza-seeste paradoxo: que cada parceiroconfunde a parte do outro com asua própria e identifica-se com ele....O mesmo é dizer que a identifi-cação, específica das condutas so-ciais, neste estádio, se funda sobreum sentimento do outro, que nãose pode senão desconhecer sem umaconcepção corrente do seu valorcompletamente imaginário (Lacan,1938, p. 39). Enfatiza também aquestão da necessidade de uma se-melhança entre os sujeitos: “Pareceque a imago do outro é ligada à es-trutura do corpo próprio e maisespecialmente das suas funções derelação, por uma certa semelhançaobjetiva” (1938, p. 40). Ou seja,há uma ambigüidade originária narelação com o outro, o semelhante,em que há uma operação de iden-tificação por trás da rivalidade, mastambém um processo de diferencia-ção em relação ao outro. Essa agres-sividade especular é fundante do eu.É correlativa da tensão narcísica noadvento do sujeito e não pode, naspalavras de Lacan, “... ser concebida,se não tiver sido preparada por umaidentificação primária que estrutureo sujeito como rivalizante consigomesmo” (Lacan, 1948, p. 33). E é oque Freud (1919) já havia postuladono texto O estranho, quando fala doduplo como constituinte da identi-dade do eu.

É no atravessamento do Édipo,pela operação de identificação secun-dária a partir da introjeção da ima-go parental, que se abrem as portaspara a sublimação, a qual libera o

Page 5: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8374

sujeito das amarras da rivalidadeacentuada em direção ao interessepelo que está a sua volta. “Assim, aidentificação edipiana é aquela pelaqual o sujeito transcende a agressi-vidade constitutiva da primeira in-dividuação subjetiva” (Lacan,1948, p. 34). As teorias sexuais in-fantis têm aí o seu ápice e, a partirde então, o semelhante pode ser to-mado numa relação fraterna quenão seja dominada pela agressivi-dade, mas intermediada pelo pra-zer lúdico e da convivência, pela cu-riosidade, pela fantasia, pelo inte-resse nos objetos e instrumentos darealidade.

Se a agressividade é constituti-va da subjetividade, por outro ladoela pode ser produzida ou exacerba-da a partir do meio e da rede dis-cursiva que sustenta a criança.

Vivemos numa cultura que ten-ta banir a agressividade, o conflito,num ideal de harmonia fadado aofracasso. Vemos isso freqüentemen-te na relação de pais e filhos, em queaqueles tentam economizar o con-flito, a tensão inevitável na relaçãointergeracional, cedendo incondicio-nalmente ao apelo das crianças (ain-da que seja da criança introjetadaneles próprios). É uma cultura quefaz a apologia da igualdade, na quala diferença sexual, a dessimetria en-tre adultos e crianças, a diferencia-ção nas funções do pai e da mãe ten-dem a ser apagadas em formaçõesimaginárias que obliteram a dimen-são da falta.

Vou me deter um pouco a exa-minar essas funções do pai e da mãe.Leclaire (2001) nos ajuda a pensar,a partir de suas colocações sobre olugar que no imaginário social é con-

ferido à mulher, numa superposiçãodo significante mulher-mãe, no qualo mito da mãe fálica nos seduz ehorroriza ao mesmo tempo. Pode-mos ficar tentados a contrapor quena atualidade, na cultura ocidental,a mulher não está mais identificadanesse único lugar: o de mãe. Asmulheres contemporâneas teriam selibertado desse modelo – liberdaderesultante do movimento feminista,dos métodos contraceptivos e daentrada ofensiva no mercado de tra-balho. No entanto, parece que o sen-timento de culpa que manifestamem relação a um ideal feminino quedaria conta de tudo irrepreensivel-mente (casa, filhos, marido, carrei-ra, ideais estéticos e intelectuais)denuncia uma dívida ao mito dasuper-mulher-mãe.

Maria Rita Kehl (2001) corro-bora essa visão, ao trazer-nos umquestionamento sobre a definição defamília desestruturada, quando sefala nas mudanças e novas configu-rações pelas quais o modelo tradicio-nal de família conjugal vem passan-do ultimamente. Coloca que a idéiade família desestruturada – e nasinstituições sociais, de saúde ou deeducação se ouve isto a toda a hora– é tributária da culpa neurótica emrelação ao ideal de família nucleartradicional: pai, mãe e filhos bioló-gicos convivendo juntos, em que afigura da mãe ocupava o lugar cen-tral.

“Enfim: a família estruturadaproduziu a histeria e a neurose ob-sessiva como sintomas emergentesdo mal-estar no final do século XIX.A histeria como sintoma do desajustedas mulheres em relação ao lugarque lhes era destinado e também em

Page 6: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

75

relação a um ideal de feminilidade impossível de se habitar. Aneurose obsessiva como sintoma da impossibilidade de um ho-mem afirmar sua virilidade e ao mesmo tempo submeter-se à au-toridade do chefe da família patriarcal, tal como ela estava consti-tuída. Além disso, a família estruturada produziu a fixação edipi-ana dos filhos à mãe, que não é a mesma coisa que o atravessa-mento do Complexo de Édipo. Não é obrigatório que a passagempelo Édipo produza fixação dos filhos à mãe. Mas para sustentaro lugar da mãe de família burguesa como rainha do lar, que erauma necessidade da sociedade capitalista emergente, produziu-seuma enorme quantidade de saberes – filosóficos, médicos, literá-rios, desde Rousseau, no século XVIII – que insistiam sobre a‘natureza’ feminina como estreitamente definida pelas funçõesreprodutivas das mulheres” (Kehl, 2001, p. 32).

Se esse ideal de família permanece no imaginário social, ine-vitavelmente as novas configurações familiares, a saída da mu-lher de casa para o campo profissional, intelectual ou político,serão sentidas como deficitárias ou falhas em relação ao modeloanterior.

Aqui retomamos uma contribuição de Leclaire, para quem“... nossa grande preocupação é fazer o mesmo, e que esse mes-mo é sempre feito a partir de um único modelo, que é aqueleimaginário, da mãe. Inconscientemente, fantasisticamente, ooutro é sempre reduzido ao mesmo, ou pelo menos é o quepredomina. Vivemos num mundo homo” (2001, p. 32). E, logoa seguir, complementa, explicando que “o que ela [uma mulher]teria a produzir realmente é diferença, é sexo, e não apenas fi-lhos; algo de diferente daquilo ao qual ela é culturalmente sub-metida” (p. 33).

Com a instigante pergunta “Como pensar o sexo sem a alte-ridade?”, esse autor questiona em nossa cultura a diferença en-tre a função da mãe e a função do pai, em que há uma imagina-rização e generalização do espaço materno. “A mãe é uma boaimagem de um paraíso ou de um inferno. Para manter esse so-nho, tudo, o mundo inteiro se torna então representação dessepedacinho do céu, desse outro mundo que é o corpo materno. Arepresentação da mãe se torna o grande ídolo, e a atividade dohomem consiste em fabricar ídolos, seja um metrô ou um arra-nha-céu, um sistema filosófico bem fechado ou uma teoria pes-soal. Sua grande atividade é construir espaços fechados” (p. 36).E acrescenta não ser fácil para a mulher escapar da universalida-de da fantasia masculina, representada na polaridade entre amãe e a puta.

Essa fantasia prende homens e mulheres, acentuando umarivalidade sexual, ao mesmo tempo em que propõe o apagamen-

Page 7: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8376

to das diferenças. “Somos todosiguais: somos todos mães disfarça-das de homens-mulheres”, provocaLeclaire (2001, p. 39). No extre-mo, a disputa seria para ver quemé melhor mãe!

Nesse quadro, o pai encontramuita dificuldade para se posicio-nar num discurso outro que não omaterno, seja pela idealização damãe, seja pela não autorização a rom-per com esse discurso. São homensque, nas entrevistas clínicas, venci-da uma certa inibição inicial paracontestar a figura da “Mãe”, têm umposicionamento diferente em rela-ção aos filhos, a sua educação ou asituações de conflito familiar. Massua palavra sempre lhes parece fracaou inoperante ante o saber mater-no, que se coloca com maior valorde legitimidade frente ao filho, pelofato de que foi ela quem o gerou,deu à luz, amamentou. A facilidadecom que as mulheres dispensam ohomem do exercício da paternida-de, de seus direitos, obrigações ecuidados com a prole – sem falar nasnovas formas de fertilização que pres-cindem completamente da figura dopai –, reiteram a prevalência da fun-ção da mãe, alicerçada na proximi-dade corporal. É como se a paterni-dade, que se afirma por outros prin-cípios que não o biológico, estivesseà deriva, sem o garante simbólico queoutorgasse ao pai um lugar diferen-te na criação do filho, mas de igualimportância que o lugar materno –este sempre incontestável.

Geneviève de Parseval (1986),no seu livro A parte do pai, conside-ra que há uma negação da paterni-dade na cultura ocidental contem-porânea. Trabalha os rituais de res-

Page 8: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

77

guardo paterno após o parto, presente em algumas culturas,como reconhecimento social da participação do pai na concep-ção e no nascimento. E sustenta que na nossa cultura os sinto-mas psicossomáticos do futuro pai durante a gravidez e/ou nas-cimento do filho, substituem o ritual simbólico inexistente. Fazum estudo pormenorizado das diferentes teorias sobre o partoque ditam a conduta parental frente ao nascimento do filho,disparando: “É essencial ver que o conhecimento – aqui conhe-cimento biológico e médico – é sempre ‘utilizado’ por uma cultu-ra em função dos seus objetivos ideológicos (a um só tempo incons-cientes e conscientes). Assim é que nossa sociedade se serviu deseus conhecimentos científicos em matéria de fisiologia parafazer da ‘fabricação’ de uma criança um assunto exclusivamentematerno e feminino, excluindo o pai de uma ponta à outra doprocesso” (p. 32).

Do ponto de vista da psicanálise, a função do pai se desdobraem múltiplas representações: falamos de pai real, pai simbólico,pai imaginário; metáfora paterna, significante nome-do-pai, paiencarnado etc. É como se precisássemos de muitas palavras paratentar definir o pai e ele sempre nos escapasse. Enquanto que damãe, uma palavra universal basta (“Mãe só tem uma!” – expres-são popular que atesta a garantia da maternidade). É como se amãe estivesse do lado do real e o pai do lado da representação.

Mas o que sustenta esse lugar de representação do pai juntoao filho? Lacan vai dizer que seu lugar está sustentado na medidaem que ele, o pai, é o alvo do desejo da mãe de seu filho e, maisprecisamente, que é no valor que a sua palavra ocupa para ela quese sustenta a função do pai. De novo, todo o poder às mães! Etoda a responsabilidade!

Para Lacan (1956-57), não se trata do pai na família, masdo pai no Édipo, ou seja, na estrutura. Ele não fala da presen-ça ou da ausência do pai, mas da operacionalidade ou não desua função. Erik Porge, em Os nomes do pai em Jacques Lacan,afirma textualmente: “O pai é uma metáfora” (1998, p. 40).E define logo a seguir: “O Nome-do-pai é a capacidade nor-mativizante do pai, enquanto ele não se conforma a uma mé-dia, mas ‘faz rachar’ as normas maternas para instituir novas.Sua perversão é a versão da mudança de norma que ele instituipor relação ao desejo da mãe” (p. 41). É no Édipo que essafunção normativizante do Nome-do-pai opera como metáforapaterna e alarga as possibilidades simbólicas para a criança. Oproblema é que às vezes falamos como se essa função pudesseser exercida sem sujeito; metaforizamos o pai a tal ponto quenão sabemos mais a que, ou a quem estamos nos referindo.Certo uso que fazemos da teoria lacaniana pode reforçar o mito

Page 9: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8378

contemporâneo da descartabilida-de do pai. O que fica aí de fora,mais do que a figura do pai, é asua eficácia como portador da di-ferença (e se trata sempre da dife-rença sexual). Pois é justamente oregistro da diferença que pode fa-zer frente ao incesto.

Leclaire (2001) é categórico aoafirmar: “O que é proibido na nossasociedade não é o incesto. Na ver-dade, o que é proibido é sair do in-cesto. Então, só resta a violência” (p.57). Afirmação muito forte, que po-derá soar descabida. Mas se nos re-portarmos à experiência clínica, noconsultório ou nas instituições, écada vez maior o número de casosde crianças, que chegam para trata-mento, submetidas as suas mães,presas ao discurso materno. O pai,quando não totalmente inexistente,vê-se impedido em sua função decorte desse gozo, como se o enoda-mento dos três registros de sua fun-ção se desamarrasse e ele não encon-trasse um lugar de onde operar. Nolugar da diferença, se erige a passi-vidade, a desautorização, a omissãoou a ausência. Como reação a esselugar de dejeto, em que sua virili-dade se vê atacada, comumente sur-ge a violência como resposta imedia-ta ou tardia: a força física, últimoreduto do macho viril!

Parece-me que a violência nãosurge como resposta apenas do ladodo pai, mas do lado do filho. Nãosó por um recurso de identificaçãomasculina. O menino que se vê en-golfado num mundo feminino, do-minado pela mãe, sem um mínimode garantias de interdição ao corpomaterno, ao mesmo tempo em queele goza nessa proximidade incestuo-

Page 10: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

79

sa com a mãe, se asfixia nesse gozomortífero, e as reações corporais exa-cerbadas de agitação e agressividadesão expressões de um eu corporaltentando rebelar-se a esse domínionão interditado pela palavra. Mar-co eu-corporal, não só no sentido delembrar que o Eu é antes de tudocorpo (imagem) na sua representa-ção psíquica, mas de enfatizar quena fragilidade simbólica em que es-sas crianças se encontram, o corpo étudo que lhes resta de uma afirma-ção de identidade ameaçada frenteà angústia de castração. Porém nãose trata, neste caso, da castração sim-bólica, e sim da forma mais bruta emortífera da castração: o temor deser engolido pela mãe.

Aqui abro para um fragmentoda clínica: um menino a quem cha-marei de Márcio, 10 anos, chegapara tratamento com queixas porparte da escola e da mãe: é desaten-to, com dificuldades de aprendiza-gem, hiper-ativo. Duplamente re-provado na escola: não passou deano e não consegue se relacionar comos colegas. Desafia as professoras otempo todo, não brinca no recreionem participa das aulas de educa-ção física. Episódios de agressivida-de são recorrentes. A mãe (pois o painão comparece num primeiro mo-mento) tem um discurso melancó-lico, que beira ao delírio, em que nãoreconhece neste filho uma continui-dade em relação àquele que carrega-va em seu ventre. Narra o períodode gravidez como sendo muito fe-liz, no qual imaginava um bebê lin-do, sorridente e que não lhe dessetrabalho. Os problemas começaramno final da gestação, quando Már-cio começou a movimentar-se mais

Page 11: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8380

ativamente no útero. Ela diz: “Eleme chutava, como um monstro.”Esse filho – que por sinal nasceuloirinho, com cara de anjo – (elatrouxe algumas fotos dele quandonenê), não se coaduna com a ima-gem congelada de um bebê que amãe carrega. Toda a atividade e vi-talidade dessa criança foi tomadacomo agressiva pela mãe, sendo for-temente repreendida. Ela conseguiuocupar-se dos cuidados corporais dofilho, mas deixou claro o quanto lhefoi penoso; “foi tudo diferente do queeu imaginava”, nos diz. O diferen-te, neste caso, é terrorífico.

O pai mostra-se mais amorosoe tolerante em relação ao filho, achaque as maiores dificuldades de Már-cio estão na relação com a mãe, sem-pre a exigir dele outra coisa, mas sesente completamente impotentepara interferir nesse laço. Queixa-sede que a mulher está sempre doentee nervosa e que não dá espaço paraque o filho possa ser criança. Masnão consegue intervir efetivamente,ficando num papel de espectador.

Márcio aceita participar de umgrupo terapêutico de meninos emeninas mais ou menos da sua ida-de, na condição de que possa esco-lher: “Vou experimentar vir uma vezpara ver como é.” Fica no grupodurante um ano, com dificuldade deinserir-se nas atividades, brincadei-ras ou conversa grupal, mas muitoatento e ligado, principalmente nasgurias, com quem rivalizava e im-plicava o tempo todo. Ao longo des-se ano de tratamento, sua condutana escola mudou e ele começou a seintegrar e a aprendizagem a deslan-char. Agora a queixa da mãe é queele está se tornando rebelde, queren-

Page 12: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

81

do sair para a rua com os amigos, andar de skate, enfim, aproxi-mando-se de uma posição adolescente. Ao final do atendimentoem grupo, ele foi encaminhado para um tratamento individual,com um analista homem. Novamente reluta, diz que não quer,mas acaba vindo. Depois de alguns meses continua em tratamen-to e estabelece com o terapeuta uma relação de parceria e compe-titividade através dos jogos, o que lhe permite transitar pelo uni-verso masculino sem o peso que esses traços carregam para a mãe.Observo, na sala de espera, nas sessões ao ar livre, que ele vemassumindo uma nova postura corporal: mais apropriado de seucorpo, movendo-se com mais destreza e coordenação; deixou cres-cer os cabelos, apesar dos protestos maternos.

Mas, e a escola? Qual a sua posição frente a essa problemáti-ca? O que temos visto, na maioria das vezes, é a escola identifica-da na posição da mãe, queixosa e exasperada com esses meninosagressivos e “hiper-ativos”. A escola, ao colar-se ao discurso ma-terno de domesticação da criança, toma como sintomático e into-lerável qualquer produção corporal fora do esperado, não conse-guindo atribuir-lhe nenhum outro sentido que o da violência. Odiscurso da agressividade por parte dos meninos, justifica todauma série de atos violentos, repressores ou desrespeitosos em rela-ção ao aluno. Em alguns casos, acontece de a professora, na tenta-tiva de incutir-lhe um modelo de bom comportamento, compa-rar um desses meninos com a aluna mais bem comportada, inte-ligente, dócil e querida, enfatizando a distância entre eles doiscomo um déficit por parte do aluno em questão. Ou seja, o mo-delo que ele deveria seguir é o modelo feminino. Feminino tam-bém é o universo escolar, em que a presença de professores dosexo masculino é incipiente.

Então, onde encontrarão referências masculinas, os nossosguris? A escola, muitas vezes, reproduz um modelo de educaçãocerceadora, dirigida a determinados padrões em moda, como omodelo do homem sensível, bem arrumado, enfeitado, gentil,enfim, “uma moça”.

Corneau (1997), num livro que traz idéias interessantes,apesar do título um tanto apelativo, Pai ausente, filho carente: oque aconteceu com os homens?, também enfatiza a importância dopai como interditor do poder materno em relação ao filho, fun-ção que lhe parece estar extremamente difícil para os homensexercerem.

“Na verdade o pai, ao provocar o fim da união total entrea mãe e seu filho, rompe a identificação entre o desejo e oobjeto do desejo. Isso significa que a criança poderá tomar cons-ciência do desejo como sendo um fato psíquico que possui umaexperiência em si, uma existência independente do fato de esse

Page 13: 45982-55073-1-PB (1)

Estilos da Clínica, 2004, Vol. IX, no 17, 70-8382

desejo encontrar ou não satisfaçãona realidade exterior. (...)Esta frus-tração do incesto permite tambéma separação entre natureza e cultu-ra. Um homem que vive fundido aoseu interior, vive também fundidoao mundo exterior. Ele torna-se acultura e fica identificado com osestereótipos em voga. Se, para serum homem, é preciso ter ar demacho, ele terá ar de macho. Se épreciso ser meigo, ele será meigo.Ou seja, um homem que perma-nece principalmente identificado àmãe não tem acesso a sua própriaindividualidade; ele permanece ojoguete de seu inconsciente e dasmodas sociais” (p. 41).

Se a escola estiver, ela também,escrava das “modas sociais” repro-duzirá esses modelos, e tudo o quese afastar das normas de comporta-mento esperado será consideradopsicopatológico ou desajustado.Agora, se a escola tiver frestas dearejamento, instâncias de furo nodiscurso dominante – e no caso dasinstituições escolares o discursodominante é o feminino –, pode vira se configurar como um oásis nes-te mundo tão sem referências paranossas crianças, principalmentepara os guris. Aliás, guri é um sig-nificante quase em extinção, não seusa mais!

Penso que a escola, na medidaem que pode ser representativa dasleis simbólicas, do fomento à sin-gularidade na coletividade, da so-lidariedade entre semelhantes, daintermediação da palavra em situa-ções de atrito, dos espaços alterna-tivos de circulação e convivência,dos contínuos desafios intelectuaise experiências compartilhadas, re-

Page 14: 45982-55073-1-PB (1)

Dossiê

83

NOTAS

1 Trabalho apresentado no Congresso daAPPOA “A Masculinidade”, realizado emPorto Alegre, de 22 a 24 de outubro de 2004.

2 Refiro-me à psicóloga Cláudia Muller.

presenta um caldo cultural e afeti-vo decisivo para a estruturação demuitas crianças, se estiver regidapela ética da diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Athayde, P. e Lobo, F. Este mundo é hiper-ativo. Reportagem da Revista Cartacapital,de 11 de agosto de 2004.

Corneau, G. (1997). Pai ausente, filho carente:o que aconteceu com os homens? (L. Jahn,trad.) São Paulo: Brasiliense.

Freud, S. (1919). Lo Siniestro. In Obras Com-pletas de Sigmund Freud (L.L-Ballesteros yde Torres, trad.) (Tomo III, p. 2483-2505),3ª ed. Madrid: Biblioteca Nueva, s/d.

Kehl, M. R. (2001). Lugares do feminino edo masculino na família. In: Comparato,M.C.M. e Monteiro, D. S. F. (Org.). Acriança na contemporaneidade e a psicaná-lise – Família e Sociedade: Diálogos Inter-disciplinares. Vol. I. São Paulo: Casa doPsicólogo.

Lacan, J. (1938). A Família. Lisboa: Assírio eAlvim, 1981.

_______ (1948). A Agressividade em Psi-canálise. In: Cadernos Lacan – 1ª Parte.Publicação interna da Associação Psi-canalítica de Porto Alegre. (M.R Perei-ra e F. Roche, trad.). Porto Alegre:APPOA, s/d.

_______ (1956-57). O Seminário, livro 4: Arelação de objeto. (D. D. Estrada, trad.)Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

Leclaire, S. (2001). Escritos Clínicos. (L. Ma-galhães, trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Parseval, G. D. (1986). A parte do pai. (L. A.Watanabe e T. C. Stummer, trad.) PortoAlegre: L&PM.

Porge, E. (1998) Os nomes do pai em JacquesLacan: pontuações e problemáticas. (C. P. deAlmeida, trad.) Rio de Janeiro: Compa-nhia de Freud. Aceito em novembro/2004.

Recebido em outubro/2004.