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112 NGUA * Mestre e Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto I da Universidade Presbiteriana Macken- zie (UPM). UMA HISTÓRIA DOS ESTUDOS  SOBRE  A  LINGUAGEM NO BRASIL : GRAMÁTICAS COLONIAIS, DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E PROCESSOS HISTÓRICO-SOCIAIS Ronaldo de Oliveira Batista* Resumo: Este artigo procura analisar, seguindo princípios da historiografia linguística, a consti- tuição de um saber gramatical presente em obras escritas durante os séculos XVI e XVII, no período colonial brasileiro, no âmbito de uma tradição reconhecida como linguística missioná- ria. Colocam-se como objetos privilegiados de observação processos histórico-sociais relacio- nados aos propósitos da colonização e da evan- gelização de povos indígenas e escravos africa- nos e também métodos de descrição linguística, ancorados na tradição gramatical clássica. Palavras-chave: historiografia linguística; gramá- ticas brasileiras; linguística missionária. INTRODUÇÃO Fonte: Museu Nacional de Belas Artes – www.mnba.gov.br. Figura 1 – Primeira missa no Brasil , de Vitor Meirelles, 1861 – óleo sobre tela.

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    * Mestre e Doutor em Lingustica pela Universidade de So Paulo (USP). Professor adjunto I da Universidade Presbiteriana Macken-zie (UPM).

    uma hiStria doS eStudoS Sobre a

    Linguagem no braSiL:gramtiCaS CoLoniaiS,

    diverSidade LinguStiCa e proCeSSoS hiStriCo-SoCiaiS

    Ronaldo de Oliveira Batista*

    Resumo: este artigo procura analisar, seguindo princpios da historiografia lingustica, a consti-tuio de um saber gramatical presente em obras escritas durante os sculos xvi e xvii, no perodo colonial brasileiro, no mbito de uma tradio reconhecida como lingustica mission-ria. colocam-se como objetos privilegiados de observao processos histrico-sociais relacio-nados aos propsitos da colonizao e da evan-gelizao de povos indgenas e escravos africa-nos e tambm mtodos de descrio lingustica, ancorados na tradio gramatical clssica.

    Palavras-chave: historiografia lingustica; gram-ticas brasileiras; lingustica missionria.

    Introduo

    Fonte: Museu Nacional de Belas Artes www.mnba.gov.br.

    Figura 1 Primeira missa no Brasil, de Vitor Meirelles, 1861 leo sobre tela.

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    P rocessos histrico-sociais so revelados no imaginrio tanto dos seus agentes histricos como na viso de mundo daqueles que reexaminam o passado, diante de diferentes intenes, organizando, dessa forma, a construo de uma identidade, permeada de posicionamentos e direcionamen-tos ideolgicos.

    Sendo assim, a escolha do leo sobre tela de Vitor Meirelles (1832-1903) para introduzir este artigo no fortuita. em torno de trs sculos, depois dos mo-mentos iniciais da empresa colonial portuguesa no territrio brasileiro, o pintor representou um dos aspectos essenciais para a compreenso das relaes his-tricas e sociais que caracterizaram nosso perodo colonial, ao estabelecer como cone de sua pintura a primeira missa. esto na representao pictrica os pa-dres, o smbolo da igreja catlica e os ndios, habitantes naturais da terra que seria explorada e colonizada. no esto ausentes do quadro os colonizadores, vestidos de acordo com o ideal do heri europeu, que cumpriram sua misso de descobrir novos territrios para suprir a necessidade financeira e lucrativa das metrpoles europeias. colocou-se, assim, na viso do pintor do sculo xix, o quadro das relaes sociais desse perodo: os ndios, os desbravadores europeus e os missionrios catlicos. Ou em outro espao de interpretao: os colonizados (explorados e dizimados em grande quantidade de sua dimenso populacional), os colonizadores (exploradores das riquezas da terra) e os agentes de uma viso religiosa que estabeleceria um pacto com a esfera administrativa e poltica, ao legitimar processos de escravido, submisso, matana e converso religiosa.

    O imaginrio exposto no quadro no apresenta outro agente do processo de colonizao do territrio brasileiro: os escravos vindos de diferentes regies da frica, que foram elementos cruciais para o desenvolvimento das relaes so-ciais do perodo colonial. ausentes naquele momento da primeira missa, que inaugurava, por assim dizer, o espao da atuao colonizadora, os escravos fize-ram parte de uma srie de relaes estabelecidas com maior intensidade no s-culo xvii, aps a tentativa fracassada de dominao dos ndios. Porm, outro pintor do sculo xix configuraria no imaginrio brasileiro a participao dos escravos africanos no quadro social e poltico dos tempos coloniais e imperiais. do francs Jean-baptiste Debret (1768-1848) a pintura que nos coloca diante da diferena social entre brancos colonizadores e senhores e os africanos domi-nados e parte de um estrato social inferior.

    Fonte: www.atica.com.br.

    Figura 2 Jantar (famlia rica), gravura de Jean-Baptiste Debret publicada em 1834 no livro Viagem pitoresca e histrica ao Brasil.

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    como se pode perceber pelas imagens, o sculo xix construiu uma viso das relaes sociais resultantes de uma srie de processos sociais e histricos na esfera de convivncia, em meio a diferentes graus de hierarquia, entre ndios, negros, colonizadores e missionrios catlicos.

    se a relao social est representada em diferentes histrias de natureza tanto iconogrfica, pictrica como literria, no h, entretanto, a presena des-tacada de uma reflexo historiogrfica sobre as relaes lingusticas que se estabeleceram na nossa histria colonial. ainda h que percorrer um longo caminho para que a histria dos estudos sobre a linguagem alcance maior p-blico e seja mais bem conhecida, assim como so as histrias da pintura, da li-teratura e dos processos poltico-sociais. sendo assim, este texto pretende cola-borar para que a histria de nosso pas seja conhecida em uma outra chave de interpretao: aquela que toma como foco privilegiado de observao a forma como linguagem e lnguas foram percebidas e analisadas no brasil colonial. Pa-ra tanto, a partir de posicionamentos terico-metodolgicos da historiografia lingustica (subrea das cincias da linguagem que procura narrar a histria do conhecimento sobre linguagem e lnguas), este artigo analisa a produo grama-tical dos jesutas que escreveram descries de lnguas utilizadas no brasil co-lonial, tendo em vista o estabelecimento de caractersticas de uma escrita gra-matical da lingustica missionria do perodo. Procura-se, ento, ao lado do mapeamento das condies histricas de surgimento das gramticas, descrever e analisar alguns dos procedimentos e estratgias utilizados pelos jesutas na descrio do tupi antigo1, do quiriri2 e do quimbundo3, algumas das lnguas fa-ladas no brasil colonial (bATISTA, 2002, 2005).

    processos hIstrIco-socIaIs e a dIversIdade lIngustIca colonIal

    em meio constituio histrica das grandes navegaes europeias, missio-nrios de diversas ordens religiosas foram enviados para territrios que passa-riam a ser colonizados (HOVDHAUGEN, 1996; ZIMMERMANN, 1997). Inseridos nesse processo histrico-social, em 1549 chegaram ao brasil missionrios da companhia de Jesus. a relao entre a igreja catlica e a empresa de coloniza-o portuguesa caracterizou a explorao e o povoamento do territrio colonial, tendo como pano de fundo a expanso do catolicismo em meio a habitantes na-tivos das regies descobertas e daquelas envolvidas no trfico negreiro. a repre-sentao da primeira missa no quadro de Meirelles nos permite verificar o papel conciliador entre igreja catlica e poltica administrativa colonial. Um processo social que se iniciava ao lado do comprometimento com uma f religiosa que deveria ser imposta aos habitantes do territrio a ser explorado.

    nesse cenrio, jesutas dedicaram-se converso de indgenas e escravos, estabelecendo uma etapa na histria dos estudos sobre a linguagem na qual se

    1 O tupi antigo pertence ao tronco tupi, famlia tupi-guarani. Era a lngua mais utilizada ao longo da costa no Brasil colonial (com diferenas dialetais), sendo conhecida no s por missionrios e nativos, mas tambm pelos portugueses. Tal difuso da lngua levaria formao de base de uma lngua geral no sculo XVIII, pelo intenso uso e importncia no territrio brasileiro.

    2 O quiriri pertence ao tronco Macro-J, famlia Kariri. difcil precisar a rea habitada pelos ndios kiriris no nordeste brasileiro, mas possvel indicar uma concentrao nas regies reconhecidas atualmente como Bahia, Pernambuco, Piau, Cear e Sergipe. Os kiriris foram aldeados em misses jesuticas no sculo XVII, perodo da escrita da gramtica de Mamiani. Atualmente a lngua no mais falada e a maioria dos grupos foi extinta.

    3 O quimbundo faz parte da famlia Niger-Congo, grupo Benue-Congo e subgrupo Bantu. Utilizado, principalmente, pelos escra-vos que vinham das regies angolanas. A lngua ainda utilizada nas regies africanas, Angola e proximidades.

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    intensificou, em meio a uma grande diversidade lingustica, o contato entre ln-guas e se deu a produo de instrumentos lingusticos (gramticas, dicionrios, listas de palavras, glossrios), que visavam, sobretudo, possibilitar formas mais produtivas de contato, por meio de um processo de ensino-aprendizagem de lnguas denominadas, pelo olhar europeu, de exticas (AUROUX, 1992). Siste-matizar lnguas, e o extico, em nome do contato social no deixava de fazer eco ao movimento de dominao das diferenas. nesse sentido, observe-se a euro-peizao dos escravos que conviviam no interior das casas dos senhores, repre-sentada na gravura de debret.

    aps primeiros contatos com nativos e escravos, naes colonizadoras pas-saram a enfrentar impasses nas trocas sociais, diante do desconhecimento, dos diferentes lados (colonizador, colonizados, escravizados), das lnguas utilizadas. Quando os primeiros portugueses, e mesmo outros europeus que chegaram s terras brasileiras, entraram em contato com os nativos, puderam perceber a grande diversidade lingustica da nova terra. essa diversidade se caracterizava no s pelas lnguas indgenas, mas tambm pelas lnguas dos europeus coloni-zadores e invasores e pelas lnguas africanas dos negros, os quais seriam de grande nmero principalmente a partir do sculo xvii.

    diante desse contexto, pode-se afirmar que as estratgias de contato privile-giaram a utilizao de algumas lnguas que atuavam com mais proveito no es-pao social. dessa forma que se apontam apagamentos numa histria lingus-tica, no sentido de que, ao escolher algumas lnguas e instrumentos que as codificavam (e garantiam o acesso a elas), a pluralidade lingustica do territrio colonial foi se apagando ao longo da construo de nossa histria e identidade (RODRIGUES, 1993).

    H, nessa conjuntura histrica, ideolgica por sua constituio num tempo e espao definidos em meio a sujeitos agentes e participantes, um apagamento da diversidade, em nome de uma homogeneizao do saber e do conhecimento (bORGES, 2001). No foram todas as lnguas indgenas e africanas, utilizadas nos territrios brasileiros coloniais, que passaram pelo processo de sistematiza-o. escolheram-se as lnguas mais empregadas e de maior aceitao por parte dos agentes dessa codificao, os europeus. se a diversidade se apagou em no-me de escolhas estabelecidas, a definio das formas e dos modos de gramatiza-o tambm imps outro apagamento: o das especificidades lingusticas, consi-derando que uma das caractersticas da lingustica missionria dos sculos xvi e xvii, dando forma a um conjunto de procedimentos descritivos, foi o uso do conhecimento da gramtica e do tratamento do latim para as abordagens das lnguas exticas.

    Os primeiros missionrios jesutas, nos momentos iniciais da colonizao, tornaram possvel o estabelecimento do controle portugus sobre parte do terri-trio brasileiro e, ao mesmo tempo, criaram um sistema educacional e realiza-ram as primeiras descries das lnguas faladas no brasil colonial, sendo os nicos responsveis por essas atividades durante quase trs sculos (VAINFAS, 2000, p. 326-328).

    como consequncia dessas escolhas em meio a um espao de diferena e de necessidade de controle dessa diferena (no se pode esquecer das formas tpi-cas de dominao num processo de colonizao), deu-se a publicao das gra-mticas da lngua mais falada ao longo da costa (numa extenso que cobria desde o litoral paulista at as regies do litoral nordestino): o tupinamb, ou

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    tupi antigo, ou, ainda, tupi quinhentista (e mesmo lngua braslica, na metalin-guagem de jesutas da poca), nos sculos XVI, pelo padre Jos de Anchieta (1595), e XVII, pelo padre Lus Figueira (provavelmente em 1621).

    de anchieta temos a Arte de grammatica da Lingoa mais uada na cota do Brail (1a. edio de 1595, com 58 folhas numeradas), que tem o seguinte plano estrutural: uma parte inicial dedicada descrio das unidades sonoras da ln-gua, seguida de uma extensa parte que trata de classes de palavras e de fen-menos de morfossintaxe.

    O segundo gramtico do tupi antigo Figueira. numa breve comparao, pode-se verificar que a descrio de Figueira mais didtica, no sentido da or-denao, clareza nas explicaes, economia quanto a abordagens de excees e aspectos que o uso poderia indicar. essas caractersticas tornam-se mais rele-vantes quando se constata que a gramtica de Figueira fez mais sucesso que a obra pioneira de Anchieta (RODRIGUES, 1998). Cabe ainda destacar uma dife-rena entre os dois registros: os jesutas teriam descrito diferentes dialetos do tupi antigo. O de anchieta seria o tupi falado mais ao sul, o tupi paulista, que se tornaria no sculo xvii a lngua geral paulista. J Figueira teria descrito o tupi do norte, que daria origem lngua geral do norte.

    Em 1699, o padre Lus Vincencio Mamiani publicou a arte de gramtica da lngua quiriri, falada pela nao indgena situada na regio nordeste brasileira. a gramatizao do quiriri pode ter ocorrido porque seria do interesse dos jesu-tas tambm efetuar a catequizao de forma efetiva com esse grupo de indge-nas. Mamiani (1877, p. IV), na introduo da sua gramtica, destaca a necessi-dade de colocar em regras (metalinguagem da poca para a sistematizao gramatical) a lngua:

    Conhecendo pois a necessidade que tem a Nao dos Kiriris nesta Provincia do Brasil de sogeitos que tenho noticia da sua lingua para trattar de suas almas, no julguey tempo perdido, nem occupao escusada, antes muito necessaria, formar ha Arte com suas regras, & preceitos para se aprender mais facilmente.

    a descrio gramatical do jesuta tenta dar conta da lngua tal como falada no sculo xvii nas regies correspondentes aos atuais estados da bahia, do Piau e sergipe, principalmente. a Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da Naam Kiriri est dividida em duas partes, uma com o tratamento da parte so-nora da lngua e da palavra (classes e estrutura) e outra com o tratamento da syntaxe da lngua. a obra segue a tradio do perodo, sendo parte privilegiada a que trata das classes de palavras, ressaltando a caracterstica das gramticas da poca de apresentar extensivamente o que chamamos de morfologia e mor-fossintaxe, em detrimento de abordagens sonoras e sintticas.

    Em 1697, outra lngua falada no brasil colonial teve seu registro, escrito por Pedro dias, em forma de arte de gramtica: o quimbundo, lngua dos escravos negros, de origem angolana, trazidos para o trabalho nas terras brasileiras.

    a Arte da Lingva de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, My, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Dias da Companhia de Jesu (Lisboa, na Offi-cina de Miguel deslandes, impressor de sua Magestade. com todas as licenas necessarias. Anno 1697, 48 pp.) foi escrita na bahia, destinada ao ensino da lngua para os jesutas que trabalhavam na catequizao dos africanos, origin-rios de angola e regies prximas, e tambm aos missionrios que estavam incumbidos de receber os navios negreiros (ROSA, 1997). Deve-se apontar a

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    importncia da descrio de dias, uma vez que ela a primeira gramtica siste-matizada do quimbundo, caracterstica comum tambm s gramticas de an-chieta e Mamiani. a gramtica, em sua primeira edio, um pequeno livro de 48 pginas com funo eminentemente prtica, como as outras gramticas je-suticas. H a descrio das unidades sonoras da lngua, das classes de pala-vras e de aspectos morfossintticos.

    formas da gramtIca: o que se descreveu e como se descreveu

    as gramticas missionrias foram escritas a partir do que era conhecido co-mo os mtodos de descrio utilizados nas gramticas clssicas da tradio greco-latina e na recente produo gramatical sobre os vernculos europeus; assim, pode-se afirmar que a utilizao da gramtica tradicional como apoio algo que define a produo das gramticas jesuticas escritas para uso no brasil colonial4: h a manuteno (ou a tentativa) de 1. categorias gramaticais (como a explorao dos processos flexionais e suas denominaes), 2. partes da orao (expresso atribuda pela tradio gramatical latina clssica s classes de pala-vras) divididas de acordo com o latim, e 3. metalinguagem descritiva. Esse pro-cedimento foi responsvel pela formao de uma tradio gramatical, permitin-do que muitas lnguas pudessem ser aprendidas pelo modelo de descrio gramatical do latim5.

    no brasil, essa produo gramatical missionria ocorreu, como j apontado, pelas mos de Jos de Anchieta (1534-1597), Lus Figueira (1573-1643), Pedro Dias (1621-1700) e Lus Vincencio Mamiani (1652-1730). Todos escreveram ar-tes de gramtica, denominao corrente no perodo para uma descrio de cunho prtico (escrita por missionrios para, preferencialmente, outros missio-nrios) com motivao pedaggica, que deveria ser breve, mas eficaz para a transmisso de aspectos bsicos das lnguas. as gramticas apresentavam uma estrutura geral comum: a) tratamento da parte sonora, ortografia e acento (pro-nunciao, entonao); b) descrio das classes e da estrutura das palavras (processos flexionais, compostos, derivados); c) tratamento da parte sinttica, subordinada a fenmenos morfossintticos6.

    encontra-se, na produo gramatical jesutica brasileira, um mtodo compa-rativo (no no sentido de uma lingustica comparativa tpica do sculo XIX) que procurava buscar equivalncias entre as lnguas descritas e lnguas de maior conhecimento por parte dos missionrios, como o portugus e o latim. essa busca de equivalncias uma transferncia funcional da metalinguagem defini-dora de classes de palavras e categorias gramaticais latinas (tambm gregas, se fosse o caso) que pudessem apresentar semelhanas (estabelecidas em relao s funes gramaticais desempenhadas) com supostas classes e categorias das lnguas em descrio.

    4 A expresso gramtica tradicional refere-se ao conjunto de proposies descritivas e metalingusticas de origem greco-latina, em seu perodo conhecido como Antiguidade clssica ocidental. Assim, quando se apontar a utilizao de um modelo latino, a referncia estar sendo feita a formas de descrio utilizadas em gramticas da tradio greco-latina ocidental e tambm em algumas gramticas do Renascimento que se caracterizaram por dar continuidade ao modelo clssico.

    5 "O quadro latino [...] um poderoso fator de unificao. O plano relativamente fixo das gramticas define o quadro para se preencher por uma descrio de lngua e tambm os termos tericos necessrios para uma primeira apreenso dos fenmenos" (AUROUX, 1992, p. 78). Vale lembrar que, em alguns casos de descries de lnguas, no se observou uma mera transposio do modelo latino. Em gramticas de lnguas amerndias, por exemplo, a percepo de que o modelo latino no seria suficiente gerou alteraes no uso do instrumental, por causa de aspectos particulares das lnguas dos nativos.

    6 A anlise aqui empreendida utiliza termos da descrio lingustica moderna. A metalinguagem adotada pelos gramticos apa-rece com destaque em itlico.

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    essa estratgia associava-se ao ideal de transmisso pedaggica: apontando semelhanas e diferenas, o processo de ensino/aprendizagem poderia efetivar-se de forma menos rdua, uma vez que diferentes realidades lingusticas passa-vam a ser percebidas como semelhanas e diferenas, bem de acordo com o es-prito da poca, que buscava na similitude a compreenso do mundo. como ressalta Lopes (2000, p. 15), o momento histrico, em consequncia da desco-berta (explorao) de novas terras, reconhecia e interpretava o diferente pelo olhar comparativo. Foi esse olhar que, da mesma forma, possibilitou e instaurou o contato entre colonizador e colonizado, pois essa atitude diante do mundo se transferiu para o campo lingustico, no qual lnguas at ento desconhecidas passaram a ser encaradas a partir do ponto de vista comparativo. comentrios dos viajantes e colonizadores ressaltavam a falta ou as diferenas em relao aos costumes de nativos das terras americanas, africanas e asiticas em con-traste com os europeus, assim como os gramticos ressaltavam a falta de sons e as diferenas entre as lnguas do colonizador e do colonizado.

    H tambm nessas gramticas o uso de um procedimento que descrevia a combinao de unidades, as transformaes morfofonolgicas, a associao de palavras nas oraes, tudo descrito por uma espcie de explicao passo a pas-so (que pode ser apontada como ndice do carter instrumental das obras) do que ocorria com a lngua quando em uso, como no exemplo de Anchieta (1990, p. 33) a seguir.

    Tambe algus verbos e ho de decreuer com dous, ij, hum conoante, outro vogal depois do artigo & no com, gi, vt ajqu, ajbo. Porque tendo o accuatiuo expreo, ou, o reciproco, & outras partes, (vt infra latius) perdem o primeiro, i. vt pir ibmo, peixe frechando: & e e ecreuera c, gi ouuera de dizer, piragibmo.

    em termos de escolhas do que se descreve, o estudo da palavra que ocupa o maior nmero de pginas. ela entendida como unidade fundamental, forma-da por letras e organizada em ajuntamentos, com outras palavras, resultando em oraes. Os gramticos mantiveram como base de suas descries a tradio clssica ocidental: a descrio concentra-se em torno das classes de palavras nome, pronome, verbo, particpio, advrbio, preposio, conjuno, interjeio, mesmo recorte da tradio gramatical latina. Como afirma Swiggers (1997, p. 9), a gramtica clssica ocidental e, em consequncia da adoo das prticas des-critivas, as gramticas missionrias so organizadas em torno de categorias e no de processos que afetam formantes dessas categorias, distanciando-se, as-sim, de uma concepo morfolgica para o tratamento descritivo.

    a partir da determinao de alguns procedimentos e estratgias de descrio, os gramticos se valeram de alguns critrios (bATISTA, 2002, 2005):

    a) No plano sonoro, foi utilizado com mais produtividade o critrio auditivo (ou perceptivo), ancorado em comparaes com outras lnguas como portugus e latim. em geral, o missionrio descrevia e registrava as unidades sonoras con-forme as ouvia, sem fornecer muitos detalhes do processo de produo dos sons, com abordagens articulatrias, tornando clara a herana de uma gramtica de feio clssica. as unidades de cada sistema so descritas a partir de compara-es com o latim, o portugus e o castelhano, e esse procedimento ressalta as unidades que no faziam parte das lnguas que estavam sendo descritas, mas que figuravam como sons, unidades distintivas, em lnguas europeias.

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    Nesta lingoa do Brail no h f. l. s. z. rr. dobrado nem muta com liquida. vt cra, pra, &c. Em lugar do s. in principio, ou mdio dictionis erue, . com zeura, vt A, at (ANCHIETA, 1990, p. 23).

    As letras de que e va neta lngua, o as eguintes . A, B, C, D, E, G, H, I, Y, K, M, N, O, P, Q, R, T, V, X, til. Fico excludas, F, L, S, Z. Tambem e no va rr do-brado ou apero (FIGUEIRA, 1621, fl. 1).

    Entre as letras usadas nesta lngua so as seguintes: A, , B, C, D, E, G, H, I, Y, K, M, N, O, P, R, S, T, V, W, Z, til (MAMIANI, 1877, p. 1).

    O Pronunciar, & ecrever he como na lngua Latina, com advertncia que no tem R dobrado, nem no principio do nome, nem no meyo, v.g. Rierino, hoje: Rimi, lngua (DIAS, 1697, p. 1).

    Altman (2000, p. 8) aponta, com base no exame de gramticas de lnguas gerais sul-americanas do perodo, que a descrio das unidades sonoras basea-da nas letras ausentes nas lnguas era procedimento comum, e esse trao tam-bm pode ser visto, explicitamente proposto, no primeiro gramtico da lngua castelhana, Antonio de Nebrija (1946, p.18): aquel que quiere reduzir en artifcio algun lenguage, primero es menester que sepa de si de aquellas letras que estn en uso sobran algunas e si, por el contrario, faltan otras.

    a descrio fontico-fonolgica na lingustica missionria est relacionada escrita, aspecto presente inclusive na metalinguagem adotada. O alfabeto criado para o tupi antigo, o quimbundo e o quiriri de base latina, com poucas altera-es de acordo com particularidades das lnguas essas alteraes apresentam-se como uso de diacrticos ou de grafemas de pouco uso, como o , no alfabe-to portugus. durante muito tempo, viu-se difundida a ideia de confuso entre oral e escrito, em obras como as que se analisam aqui e tambm nas gramticas da antiguidade clssica. se a metalinguagem nos oferece, de fato, uma impreci-so, preciso notar que os gramticos demonstravam ter conscincia de quando se referiam ao plano oral e quando se referiam ao plano da escrita. Mamiani (1877), por exemplo, parece ter clara uma distino entre os planos sonoro e escrito da lngua, ao afirmar que o uso do accento circumflexo nos segmentos do tipo Gh representa uma pronunciao branda e aspirada na garganta. en-tretanto, preciso considerar que a anlise de aspectos sonoros est relaciona-da ao processo de escrita de lnguas grafas. Sobre esse aspecto, Swiggers (1997, p. 156) afirma que a sistematizao, a partir do modelo de anlise derivado da gramtica latina, como a de Manuel lvares, herdeira de descries como as de varro, Prisciano, donato e tambm Quintiliano, caracterizava-se pela segmen-tao das unidades fnicas reduzidas aos sinais (grafemas) do alfabeto latino, ou seja, no h como separar plano oral do registro escrito, e no s pelo uso da metalinguagem, mas principalmente pelo fato de se estar diante de recentes propostas de escrita. Robins (1979, p. 18), ao tratar da tradio grega clssica (origem da tradio latina, que, por sua vez, o modelo do fazer gramatical mis-sionrio), lembra que a base de descrio fontica do grego foi o prprio alfabeto. sendo assim, o estudo do som uma explicao sobre a pronncia das letras. descrio da realidade oral imbricada com o registro escrito.

    assim, o missionrio descrevia as unidades sonoras de acordo com a percep-o auditiva que ele tinha a partir da realidade observada/percebida: E ainda que pareo pronunciar, apbne, &c. he pella delicadeza com que toco o i. & ainda no memo preente o exprimem as vezes, vt Apbi (ANCHIETA, 1990, p. 24).

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    Figueira (1621, fl. 1, grifo nosso) utilizou a busca de equivalncias entre as lnguas conhecidas: O i, jota, erue como no latim, hora de vogal, hora de conoante. E o trecho de Mamiani, que segue, apresenta mesmo procedimento: o uso do grafema serviria, num alargamento das possibilidades descritivas do uso do alfabeto latino, para indicar a pronunciao ora como a fechado, [a], ora como e largo, prximo produo de um fone longo, fechado, como [e].

    Entre as letras usadas nesta lingua so as seguintes: A, B, C, D, E, G, H, I, Y, K, M, N, O, P, R, S, T, V, W, Z, til. As vogaes entre si no formam diphtongos, mas se pronuncia cada hua por si como syllaba diversa.Entre as vogaes se conta aqui o , ainda que se escreva como diphtongo Latino, para significar hua vogal entremeya entre o A, & o E; & se pronuncia com h som diverso das outras vogaes, ou como A fechado que participa do E, ou como E largo que participa do A. v. g.: Inhur. Filho (MAMIANI, 1877, p. 1).

    Pedro Dias (1697, p. 1) descreveu unidades sonoras do quimbundo como se estivesse diante de um processo quando tratava de unidades que no eram co-muns no portugus e/ou latim: As letras eguintes, b. D. G. V. Z. e lhe pem antes a letra n v.g. nburi, carneiro, ndungue, traas. ngombe, boy, nvula, aruva. nzambi, deos.

    Os acentos (termo relativo a aspectos de entonao) no quimbundo foram abordados levando-se em considerao processos tpicos de uma lngua tonal, em que alteraes na altura ou na melodia de determinadas unidades podem apresentar diferentes significados. ressalta-se, nesses registros, a percepo da funcionalidade dos tons na lngua. Dias (1697, p. 2) oferecia ao leitor, para indi-car a importncia da alterao de tons no quimbundo, o que a lingustica estru-tural chamar, sculos depois, de par mnimo: Tambem vay muito nos aentos, com que e ecreve, ou e pronuncia; porque muda a utancia, & ignificaa dos nomes v.g. Mcua, certa fruta. Mucu, morador, ou habitador.

    b) nos planos lexical, morfolgico e sinttico, quanto s delimitaes das pala-vras e suas classificaes e combinao em unidades maiores, os gramticos se valeram, principalmente, de critrios morfolgicos (a palavra e sua estrutura), morfossintticos (como os itens se relacionavam com outras unidades) e semn-ticos (com uma relao entre elementos lingusticos e no lingusticos em meio a representaes do mundo).

    Para a descrio de aspectos relacionados palavra, observa-se a utilizao de procedimentos como a busca de equivalncias entre lnguas e a explicao dos processos de combinao e formao. elementos menores constituintes das palavras eram chamados de partculas ou artigos. O termo artigo est relaciona-do, por exemplo, a unidades que afixadas em verbos forneciam informaes so-bre a pessoa gramatical e em nomes indicavam posse. Partculas, em muitas passagens, correspondem a afixos.

    a palavra era descrita, estruturalmente, em termos da existncia, ou no, de alteraes nas formas e tambm pelo acrscimo, ou no, de segmentos:

    Os verbos simplices desta lingua so todos os monosyllabos: & se houvesse quem podesse perfeitamente alcanar a fora de todos os vocabulos, tenho para mim que acharia que toda a lingua consiste em vocabulos monosyllabos, que servem de raizes para formar os compostos [...] (MAMIANI, 1877, p. 68).

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    Os significados da palavra tambm eram critrios de descrio: [sobre a posposio oc] Esta significa, lugar, & exceo, vt, Itoc, lapidem uper, vel pluquam lapis [...] (ANCHIETA, 1990, p. 108).

    assim como as relaes estabelecidas nas estruturas sintagmticas e sint-ticas:

    Os Adverbios desta lingua se dividem em quatro classes. A primeira he dos Adverbios, que se costumo pr no principio da orao. A segunda he dos Ad-verbios, que se usam no fim dos Nomes, & verbos, com os quaes fazem compo-sio. A terceira he dos Adverbios, que se costumo pr depois de alguma pala-vra da orao. A quarta he dos Adverbios indifferentes (MAMIANI, 1877, p. 87).

    Os gramticos reconheceram que as lnguas no apresentavam declinaes de caso, tal como no latim e no grego. no entanto, a nomenclatura dos casos extensivamente utilizada para explicao da funo que partes da orao exer-ciam. a partir dos casos latinos, seriam abordadas, num procedimento que pri-vilegiava a transmisso didtica, as funes das categorias gramaticais prprias das lnguas em descrio. O tratamento das chamadas preposies era funda-mental nessa perspectiva, uma vez que seriam elas, segundo os gramticos, as unidades responsveis, em algumas construes, pelo estabelecimento de equi-valncias com os casos latinos.

    Os nomes nesta lingua, cmummente, no tem distina de numeros, singular, & plurar; nem tambem de casos; mas a mesma voz serue de ambos os numeros, & em todos os casos. v.g. Oca, casa, ou casas: Apyaba, home , ou homes. E os casos se conhecem por alguas preposioes, ou modos de collocar os nomes entre si; ou tambem com os verbos (FIGUEIRA, 1621, fl. 2-v).

    Mamiani (1877, p. 6) tambm descreveu casos no quiriri, apontando que eles poderiam ser reconhecidos pela ordem de colocao de unidades (nominativo e genitivo) ou pelo uso de preposies (os outros casos): porque nesta lingua no ha caso algum sem preposio fra do nominativo, & genitivo [...]. ele percebeu que no era possvel falar em declinaes para os casos, como no latim, mas os reconheceu pelo sentido e pela funo estabelecidos pelas unidades na constru-o sinttica.

    se morfologicamente no havia uma aproximao possvel com a formao dos casos em latim, semntica e funcionalmente seria possvel a transferncia. Mamiani (1877, p. 10) ainda apontou a presena de casos nos nomes, mas disse que essa classe de palavras no sofria mudanas nas terminaes, porque os nomes servem com a mesma voz [realizao sonora] a todos os casos. no entan-to, o missionrio props, baseado no sistema pronominal, que o quiriri apresen-tava unidades indicadoras de pessoa prefixadas a determinados verbos, uma diviso dos nomes em declinaes.

    A diversidade destes artigos [prefixos] he o fundamento de dividirmos os no-mes, & verbos em diversas Declinaes: & porque os mesmos artigos servem assim aos nomes, como aos verbos, a mesma diviso serve de regra commu a huns, & a outros. Chamo Declinaes, no porque sejam declinaes dos casos nos nomes, ou de tempos, & modos nos verbos, mas porque so quasi declinaes dos pronomes, ou possessivos, ou substantivos, compostos com os mesmos nomes, & verbos

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    pelas tres pessoas em ambos os numeros, singular, & plural: & pela mesma razo, & por ser regra geral que abraa tbem os verbos, se poem juntas as declinaes dos nomes com as dos verbos (MAMIANI, 1877, p. 10).

    O exame da gramtica de Dias (1697) permite que se observe o tratamento de uma srie de nomes, com o apontamento de suas letras e syllabas iniciais, para indicar as correspondentes mudanas de prefixo, apontando alteraes morfo-fonolgicas. O gramtico do quimbundo foi o primeiro a reconhecer um sistema que determinava, a partir da presena dessas partculas, s vezes tambm cha-madas de preposies, uma diviso dos nomes em classes, o que a lingustica descritiva denominou muito tempo depois como classes nominais: exceia da letra F, fazer no plurar em Ma; os adjectivos comea no ingular em I, no plurar em a. v.g. Fuma, noticia, Mafuma, noticias (DIAS, 1697, p. 6).

    J a abordagem da sintaxe nas gramticas jesuticas algo peculiar sua poca, uma vez que est extremamente relacionada ao estudo da palavra e no ocupa nmero extenso de pginas, sendo, inclusive, ausente como parte aut-noma da gramtica de anchieta.

    em primeiro lugar, importante lembrar que a tradio gramatical da anti-guidade clssica e as gramticas modelares do Renascimento (obras de Manuel lvares e Nebrija, para a tradio jesutica) tambm se caracterizaram por no apresentarem ampla descrio de fenmenos sintticos. H uma sintaxe organi-zada em torno da palavra, das relaes estabelecidas pelo nome (substantivo) e pelo verbo, com ateno para os fenmenos de concordncia e regncia. esse tipo de estudo sinttico, ao lado da descrio da construo das oraes (ordem dos elementos), que retomado nas artes jesuticas, no havendo destaque para uma descrio extensa a respeito das funes (sintticas ou semnticas) que as palavras exerciam na orao.

    Figueira (1621, fl. 81-v) iniciou sua sintaxa ou construio das partes da orao com a constatao de que a estrutura sinttica (concebida como a forma de combinao entre nomes e verbos) do tupi antigo, por no ter casos nem de-clinaes, seria simples: Como nesta lingua no ha variedade de caos, nem de generos, mais que o que e tem vito, fica facil a combinao dos verbos com os nomes, como e ver.

    anchieta no props uma parte autnoma para o estudo da sintaxe, mas possvel verificar o tratamento conjunto de aspectos relativos palavra e sin-taxe em sua gramtica, caracterizando um amplo tratamento morfossinttico do tupi antigo. a abordagem de fenmenos a partir da funo das unidades como agente, complemento, est presente em anchieta. alm deste gramtico, apenas Mamiani aborda a sintaxe a partir de aspectos ou funes de actncia.

    Tambe pode ter significao pasiua, alte na quelles cuja aco eno pode fa-zer pella peoa agente vt a. eu como Aye, eu me como (ANCHIETA, 1990, p. 91, grifo nosso).

    Se o relativo fr agente assim do verbo Neutro como do Passivo, se faz participio activo em Ri assim de hum como de outro verbo. v.g. Deos, que me ama a mim: Tup ducari hidioh. Pedro, que matou ao seu inimigo: Per dupari dumar.Se o Relativo fr nominativo paciente do verbo passivo, se faz Participio em Ri, ou em Te. v.g. Pedro, a quem matey: Per dipacriri hinh ou Sipacrit hinh. (MAMIANI, 1877, p. 55, grifos nossos).

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    Quando h referncias s funes das palavras numa orao porque estas condicionam alteraes nas formas, indicadas a partir da descrio das partcu-las que alteravam unidades e/ou segmentos. O estudo da sintaxe como descri-o de funes como sujeito/predicado era parte dos estudos da lgica, assim como essa metalinguagem, e, portanto, no merecia extensa abordagem, ainda mais em obras como as artes de gramtica, que prezavam pela brevidade da exposio. Mamiani (1877, p. 65, grifo nosso) indica, no trecho que segue, a utilizao dos termos sujeito/predicado nos estudos da lgica.

    Tres so os significados do Verbo Sum, a saber: Ser, Estar, Ter. Para o primeiro significado de Ser, serve o mesmo nome ou Adjectivo ou Substantivo, que costu-ma ser o segundo Nominativo do Verbo Ser, & dos Logicos se chama Predica-do, & este se poem em primeiro lugar antes do primeiro nominativo, a que os Logicos chamo Sogeito.

    a diversidade, em relao ao portugus, da ordem dos elementos na orao tambm foi registrada por Figueira (1621) e Mamiani (1877). Era possvel no tupi antigo e no quiriri a ordem verbo-sujeito (chamado de nominativo, numa extenso das possibilidades descritivas da metalinguagem clssica):

    Primeiramente o nome, ou pronome em repeito do verbo podem etar antes ou depois. vt Oo Pedro; Pedro oo. Yxe aico: Aico yxe (FIGUEIRA, 1621, fl. 60b).

    Da Syntaxe de todas as Partes da Orao entre si.De ordinario nesta lingua precede o verbo ao Nominativo(MAMIANI, 1877, p. 98).

    Dias (1697) considerava, bem de acordo com a tradio aqui em anlise, que os missionrios que viessem a utilizar sua gramtica conheciam bem a gram-tica latina, o que facilitaria a compreenso de suas descries, assim, as divi-ses do estudo sobre a sintaxe empregaram mesma metalinguagem da gramti-ca latina, com termos como verbum personale, verbum infinitum, voces copulativa, nomina adjectiva, entre outros.

    SyntaxeNota I.

    Tratamos mente das regras geraes, que pertencem a todas as linguas, & que e podem accmodar dos Ambundus, deixando as epeciaes da lingua Latina. Porem porei a primeira palavra da regra Latina, & o exemplo da lingua Angolo-na, declarando o exemplo da mesma lingua, para que se saiba a palavra, que pertence regra, de que se trata (DIAS, 1697, p. 33).

    modos de escrIta gramatIcal: a constItuIo de uma tradIo

    O que houve de comum nas formas de apreenso das lnguas foi tambm o que uma das gramaticografias da poca renascentista utilizou com mais exten-so, como o mtodo que privilegiava a busca de equivalncias entre a lngua que estava sendo descrita com lnguas de maior tradio de registro gramatical. ao lado dessa caracterstica, h a utilizao e manuteno de uma metalinguagem que acabaria por caracterizar grande parte da produo gramatical do Ocidente.

    Jos de anchieta, e sua Arte da lingoa mais uada na Cota do Brail, foi o autor que props algumas solues descritivas que podem ser apontadas como

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    originais, em relao a termos utilizados e a propostas de descrio de aspectos particulares do tupi antigo. de fato, o que se pode apontar de comum em relao a anchieta e aos outros jesutas deve ser relacionado ao fato de que o primeiro gramtico de uma lngua brasileira foi, tambm, a matriz de uma tradio de descrio. Muito do exposto por anchieta foi repetido pelos outros gramticos: a metalinguagem o termo spero (de origem grega) para descrio do som; as propostas de grafia para a vogal alta e central; e, talvez com mais destaque, a denominao de artigo para morfemas prefixados ao verbo ou ao nome. Um pon-to de divergncia entre anchieta e os outros gramticos quanto estrutura das artes. a descrio anchietana no apresenta um aspecto considerado como di-dtico, no sentido, por exemplo, de clareza na diviso de partes da gramtica. Mais um aspecto de divergncia o amplo tratamento, por anchieta, de ques-tes de morfofonologia, promovendo uma cuidadosa descrio de aspectos sono-ros e estruturais da palavra, distanciado-se, assim, do ideal de brevidade e con-teno expositiva.

    tambm Pedro dias , algumas vezes, apontado como um autor distante do modelo de fazer gramtica na tradio aqui em exame, mas tal afirmao deve ser atenuada, pois todos os jesutas pautaram-se pelo modelo latino de descri-o gramatical, uma vez que era o mais acessvel para essa tradio. O que se pode apontar so diferenas na utilizao desse instrumental de descrio. O que se destaca em Pedro dias o fato de que sua descrio gramatical recorreu de maneira sensata a comparaes, apenas quando necessrias, j que muito mais a utilizao da metalinguagem que orienta o processo descritivo.

    Lus Mamiani tambm se destaca por um aspecto particular de sua gramti-ca. se Mamiani segue mais de perto o instrumental de descrio exposto em gramticas latinas, com a utilizao de metalinguagem e a transferncia de ca-tegorias, ele apresenta uma caracterstica que o distingue: o nico a fazer co-mentrios a respeito dos procedimentos e estratgias de descrio que utilizou, alm de apontar o que considerava como caminho ideal de aprendizagem.

    J Lus Figueira funciona como uma sntese do que era gramtica na tradi-o jesutica do perodo. ele seguiu o modo de descrio proposto pela compa-nhia de Jesus (via gramtica de Manuel lvares), inclusive com a utilizao e traduo de conceitos para as partes da orao expressos na gramtica alvari-na. se no h originalidades a apontar, Figueira foi, sem dvida, um exemplar de sua poca, no sentido de que um modelo exato do que a companhia de Jesus concebia como a gramaticografia de uma lngua extica. as sucessivas edies de sua gramtica no evidenciam outra coisa a no ser seu sucesso.

    no entanto, se h diferenas, h tambm muitas semelhanas, e so estas que possibilitam mapear um recorte na historiografia da lingustica brasileira aqui denominado de lingustica missionria.

    essa tradio de descrio e prtica de tratamento lingustico, em seus mo-mentos iniciais (sculos XVI e XVII), seguindo Zimmermann (2004, p. 12-13), situou-se no mbito da misso evangelizadora, que estabelecia como metas o ensino de lnguas aos missionrios, a redao de gramticas e dicionrios que pudessem alicerar a produo escrita de catecismos (material fundamental do processo evangelizador) e a traduo de textos religiosos. Os agentes dessa tra-dio foram missionrios que, alm de ajudarem a concretizar o processo de explorao e colonizao, foram elementos centrais de divulgao de doutrinas e ideologias que procuravam expandir a viso crist dos reis que garantiam a

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    execuo das navegaes ao longo do mundo. diferentes manifestaes dessa tradio (observadas nas publicaes possibilitadas pelos avanos renascentis-tas na arte da impresso) nos permitem visualizar o resultado de um trabalho de campo empreendido por missionrios que entraram em contato com lnguas sem escrita e tradio literria, tal como eles conheciam em seu universo inte-lectual. Um trabalho que levou ao contato com povos de diferentes horizontes sociais, culturais e religiosos, estabelecendo os primeiros alicerces para futuras tradies de pesquisa lingustica, que colocariam em pauta a classificao e a tipologia lingusticas, ncleo dos estudos sobre a linguagem nos dois sculos seguintes.

    dessa forma, possvel dizer que o fator impulsionador da formao de uma lingustica missionria tenha sido o ensino das lnguas para outros missionrios, um propsito eminentemente didtico de transferncia de saberes lingusticos para, essencialmente, outros missionrios que deveriam conhecer as lnguas pa-ra que a converso e os rituais religiosos se estabelecessem a contento. Uma produo voltada para a escrita e divulgao de uma srie de materiais escritos para servir de subsdio para o ideal de converso dos nativos e escravos para a f crist (cf. ZWARTJES; HOVDHAUGEN, 2004; ZWARTJES; ALTMAN, 2005).

    possvel destacar, ainda, que as gramticas missionrias legaram para a histria descries de lnguas at ento desconhecidas, abrindo caminho para uma percepo da diversidade lingustica. Os registros das lnguas do brasil colonial (assim como todos os de lnguas exticas) colaboraram para a percep-o de sistemas lingusticos diferentes, lanando bases para a comparao en-tre lnguas, em tradies posteriores (ALTMAN, 2009; AUROUX, 1992). Ainda que o impacto das gramticas missionrias tenha sido praticamente nulo na poca de sua escrita, at mesmo pela funo particular que representavam, fo-ram elas que, quando redescobertas no final do sculo xviii e no sculo xix, contriburam (pelo corpus que ofereciam) no s para a formao da noo de relatividade cultural, mas tambm para o desenvolvimento de estudos de car-ter comparativo e de classificao de lnguas, como diferentes historigrafos da lingustica apontam.

    concluso

    este artigo procurou apresentar aspectos da constituio de um saber gra-matical que se ancora numa tradio de tratamento de lnguas reconhecida co-mo lingustica missionria. alm de apontar elementos dessa tradio e de sua atuao em meio aos processos histrico-sociais caracterizadores do perodo colonial brasileiro, o texto procurou apontar para a necessidade de conhecimen-to da nossa histria em outro aspecto de sua complexidade: aquele que se mos-tra por meio das diferentes formas de tratamento das lnguas e da linguagem. sendo assim, a reflexo historiogrfica ganharia outra dimenso ao colocar, ao lado de outros discursos constituintes da reconstruo da histria, a descrio e anlise de elementos que foram responsveis por definir recortes e posiciona-mentos de identidade e ideologia na nossa formao como nao.

    se no incio, em busca de dilogos entre diferentes formas de reconstruir nossa histria, houve Meirelles e debret, configurando nosso imaginrio sobre o quadro de relaes sociais no perodo colonial, h em Henrique bernardelli

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    (1858-1936), outro pintor do sculo XIX, a representao do contato entre mis-sionrios e indgenas, reafirmando o intenso convvio entre jesutas e povos sub-jugados no complexo processo de colonizao. convvio registrado historica-mente no s nas cores e na plasticidade de uma reconstruo visual, mas tambm nas descries lingusticas que nos legaram os jesutas, testemunhas e agentes de um captulo da histria dos estudos sobre a linguagem no brasil.

    Fonte: www.portalsaofrancisco.com.br.

    Figura 3 Missionrios ensinando pequenos ndios a cantar, leo de Henrique Bernardelli (1858-1936).

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    Abstract: This article attempts to analyze, according linguistic historiography principles, the grammatical knowledge present in works written in the sixteenth and seventeenth centuries in Brazilian Colonial territories, under a tradition known as missionary linguistics. Privileged objects of observation are stated, such as the social-historical processes related to the colonizing and evangelization of indigenous peoples and African slaves, besides the methods of linguistic description, anchored on the tradition of classical grammar.

    Keywords: linguistic historiography; Brazilian Grammars; missionary linguistics.