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    Campinas-SP, (30.2): pp. 359-365, Jul./Dez. 2010

    RESENHA

    Luis Fernando Prado [email protected]

    PEIXOTO,Jos Lus. Cemitrio de pianos. Rio de Janeiro: Record, 2008

    Apesar de poder ser lido em chave metaliterria, as refernciasde Cemitrio de Pianos no so explcitas, e isso um ponto a favordo romance. possvel perceber algumas. No seria demasiado dizer,por exemplo, que se ouvem ecos de um William Faulkner, ou mesmoas vozes deste cultivadas por Antnio Lobo Antunes. Na esteira do quezeram o autor de O Som e a Friae o deAuto dos Danadosna maioria desuas obras, em Cemitrio de Pianos, Jos Lus Peixoto tambm constri

    uma narrativa fragmentria sobre a histria de geraes de uma mesmafamlia, histria esta que se vai compondo, ao melhor estilo faulkneriano,a partir de vozes, tempos e perspectivas variadas. Somam-se a essasinuncias as referncias bblicas que, de certo modo, emolduram anarrativa de Cemitrio de Pianos e que j foram bastante exploradaspelo escritor em seu Nenhum Olhar (2000). O trocadilho pode soaroportunista, mas inevitvel: o romance pode ser lido tambm comoum cemitrio edipiano. So as vozes de pais e de lhos que compemo mosaico narrativo de Jos Lus Peixoto. Nele, o momento da vida, donascimento do lho, coincide, vrias vezes, com o momento da morte,da aniquilao, do desaparecimento do pai; ao mesmo tempo, essa morteno signica interrupo, mas continuidade.

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    O ponto de partida das variadas narrativas encontra-se estabelecidona gura chave de Francisco Lzaro, personagem criada a partir dahistria real de um atleta portugus que faleceu de insolao depois de

    completar trinta quilmetros da prova de maratona dos Jogos Olmpicosde Estocolmo, em 1912, conforme esclarece o autor em nota nal. Paracriar sua co, Peixoto regride ao passado desta personagem, dandovoz ao seu pai; bem como projeta um seu futuro dando voz ao seu lho.No rara , contudo, a sensao de que as vozes destas trs personagensesto amalgamadas, como se fossem apenas diferentes tons de umamesma nota musical. Assim, apesar de serem apresentadas de modofragmentrio ao longo do romance, no deixam de sugerir uma certa

    unidade, a comear pelos nomes das personagens que so os mesmos. Atnica do romance, a dicotomia vida e morte, expressa j em sua pginade abertura, em que se l o termo latino resurrecturis, o qual funcionacomo uma espcie de seu subttulo e nos oferece a primeira das vriasreferncias bblicas: o episdio da ressurreio de Lzaro, em que asirms Marta e Maria (os mesmos nomes das personagens de Peixoto)enviam um mensageiro (um corredor) para pedir a Jesus que curasse oirmo. Jesus diz ao mensageiro que a doena de Lzaro no o levaria morte. Jesus no cura Lzaro, como haviam pedido as irms; mas faz

    um milagre ainda maior ressuscitando-o e, assim, cumpre o que disseraanteriormente ao mensageiro. Desse modo, Jesus surpreende as irmsde Lzaro, que chegaram a duvidar de seu poder, operando um milagreainda maior do que o de simplesmente cur-lo.

    Alm dessa palavra chave que abre o romance, h a citao, emepgrafe, de um trecho do captulo dezessete do evangelho de So Joo.Se lidas conjuntamente, as duas citaes oferecem algumas pistas dosrelatos: os trs narradores, av, lho e neto so, de certo modo, rfos depai; contudo, os pais mortos ainda vivem nas vidas dos respectivos lhos.Os lhos so, de certa maneira, a ressurreio dos pais, o que sugerido,inclusive, por aquela sensao de que as vozes dos diferentes relatosformam uma espcie de unidade, ou de uma voz nica em diferentes tons.Depois de lido o romance, as palavras do evangelho de Joo parecem fazermais sentido, na medida em que podem ser lidas tambm como sendoa expresso dessa voz coletiva que roga para que todos sejam um s;como Tu, Pai, ests em Mim e Eu em Ti, que tambm eles estejam emNs, para que o mundo creia que Tu Me enviaste. (p. 9) Estas palavras

    do evangelho de Joo reverberam ao logo do romance de Peixoto noapenas no que se refere sugesto de interligao entre as vrias vozesque o compem, mas principalmente no que tange construo daimagem da personagem de Francisco Lzaro enquanto heri, um heri

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    falhado, que sucumbe realizao de seu feito e que no pode voltar aosseus para contar a sua vitria. O seu herosmo advm no do seu sucesso,mas de sua derrota, de sua queda.

    possvel encontrar sete grandes divises (sete notas?) em Cemitriode Pianos. Na primeira parte, mais curta, l-se o relato pstumo do pai deFrancisco Lzaro. O av, portanto, narra justamente o dia de sua morte,em que sua esposa e os lhos Maria e Francisco recebem o telefonemada notcia de sua morte no mesmo momento em que recebem tambma notcia do nascimento de mais um de seus netos, o Hermes, lho deMarta (a irm mais velha de Francisco e de Maria), o qual viria a fazercompanhia s outras netas que so apresentadas ao longo dos demais

    relatos: a Ana, a Elisa e a Iris. Depois desse intrito, h uma segunda partemais extensa. Nesta, Francisco Lzaro av continua a narrar, mas agoraa sua narrativa utua sobre tempos distintos: ora narra acontecimentosposteriores sua morte, como se observasse a vida de sua famlia quecontinuava sem ele, a vida da esposa morando precariamente na casada lha Maria, cuidando dos netos; ora narra episdios mais antigos, desua vida de casado, ou de sua juventude, anteriores ao seu casamento eao nascimento dos lhos. Essa segunda parte subdividida pelo que sepoderia chamar de troos narrativos, que so separados apenas por um

    espaamento maior entre um e outro. No h qualquer indicao maisexplcita que oriente a leitura para a mudana temporal dos relatos, oleitor precisa estar atento s referncias internas, compar-las e voltar

    vrias vezes a leitura. Alm da mudana temporal, nesta segunda parte, possvel se vericar uma mudana da prpria voz narrativa, que, s vezes,passa a ser a do neto, lho de Francisco Lzaro, o corredor. O problema que, por serem coincidentes em vrios aspectos, s vezes ca a dvida dese saber se a voz a do neto ou a do av, que narraria a sua juventude. Aambigidade positiva, se considerarmos que uma das portas de entradado romance a de que os mortos ressurgem nos vivos. De certa maneira, como se o neto continuasse a viver a vida do av, ou que esta vida fossenovamente repetida, como que retomando um ciclo.

    Na terceira parte, a voz narrativa a do heri falhado, o tempopresente da narrativa o da maratona de que participa Francisco Lzaro.Contudo, o seu relato tambm utua ao longo do tempo, ora atendo-se narrativa de seu percurso na maratona, ora contando fragmentosde sua vida pregressa. O relato cadenciado pela progresso de sua

    corrida, sendo seccionado abruptamente pelos quilmetros que se vocompletando, inevitavelmente, conforme vai acontecendo o relato. Amaratona interrompida no dcimo quinto quilmetro, a metade dopercurso a ser completado por Francisco Lzaro; a termina a terceira

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    parte. Na quarta, volta-se ao relato do av, novamente utuante notempo e entrecortado pelo relato do neto, que nascera no mesmo dia emque o pai morrera na maratona e sobre o qual nunca ningum lhe falara;

    at o dia em que descobre uma caixa de sapatos cheia de medalhas evem a saber que seu pai tinha sido um grande maratonista. Nessa mesmaparte, o lho de Francisco Lzaro, o corredor, vem a ser apresentado simagens de seu pai e de sua tia Maria, pelas fotograas que so mostradaspela sua tia Marta. Estas fotograas, cujas imagens so reproduzidasno livro (pp. 176-177), voltam a aparecer na quinta parte (pp. 243-244).Nesta quinta parte, volta-se narrativa de Francisco Lzaro, a partir doquilmetro dezesseis e completa-se no quilmetro trinta, no momento

    de sua morte. Na sexta parte, volta-se narrativa do av, que apresenta,ao nal, a famlia acompanhando a corrida de Francisco Lzaro pelordio. Na stima parte, narra-se o recebimento da notcia da sua mortepor exausto durante a maratona e, simultaneamente, a notcia donascimento do seu lho, o neto responsvel pelas narrativas constantesda segunda e quarta partes. O nal desta ltima parte do romance se ddo mesmo modo como ocorre o nal da primeira, com o anncio quaseque simultneo da morte e da vida.

    Desde a segunda parte acima referida, a gura de Francisco Lzaro

    como heri falhado j esboada pela voz de seu pai, que narra a partir daoniscincia atemporal que a condio de morto lhe confere: Demos-lhe omeu nome para que o tornasse seu. Esse nome que foi meu e que agora lhepertence completamente. O nome e todas as pessoas que o pronunciam:Francisco Lzaro. (p. 20) Mais a frente, na narrativa da terceira parte,Francisco Lzaro lho, no momento da partida da maratona, parece daruma resposta s palavras do pai, quase que no sentido de reclamar odireito de possuir o seu nome, no sentido de conquistar algo que j lhehavia sido dado: no quero apenas ter este nome, quero ser dono dele(p. 89). Esta fala, que abre a narrativa de Francisco Lzaro lho e queserve para iniciar a maratona no romance, de certo modo, rearma anecessidade do lho de matar simbolicamente o pai (que, por sinal,

    j estava morto), cumprindo um feito que o tornaria diferente, que otornaria nico e que possibilitaria voltar sua famlia e sua ptriacomo heri, como mesmo diz: quarenta quilmetros separam-me deestar aqui a ser outra pessoa. E quarenta quilmetros podero ser todaa minha vida. (p. 94) Bastante signicativo desta simbologia, inclusive,

    o modo como se mostra organizada formalmente a narrativa nestaterceira parte. A sobreposio de planos entre o tempo da maratona e alembrana da morte do pai reete-se formalmente no entrecruzamentode frases pertencentes aos dois planos, formando, assim, quase que a

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    estrutura de um poema. No trecho a seguir, possvel se enxergar aquesto edipiana acima aludida pela sobreposio de planos narrativos,o plano do momento em que Francisco Lzaro v o corpo do corredor

    que est a sua frente e que ser ultrapassado e o plano do momento emque v o corpo do pai morto, que tambm precisa ser ultrapassado:

    vejo o corpo do corredor minha frenteas pontas dos meus dedos levantaram o leno que cobria o rosto do meu pailano-me e comeo a ultrapassar o corredorinclinei-me sobre o meu paiultrapasso agora o corredoros meus lbios tocaram a pele gelada da face do meu paitempo pra. (...) (p.99-100)

    O uso dessa tcnica de entrecruzamento de planos narrativosoperado no nvel da frase contribui para a economia do relato no sentidoda criao de imagens condensadas que tm a capacidade de dizeremmais do que efetivamente narram. Este recurso lembra em muito o modode narrar de Lobo Antunes, principalmente em suas obras mais recentes.Outro aspecto que lembra a narrativa antuniana a utilizao de sonscomo smbolos. Quanto a isso, h que se destacar a importncia simblicado som do telefone, que aparece vrias vezes ao longo do romance, nas

    vozes dos vrios narradores. O som do telefone funciona duplamentecomo o anunciador do que est feito, de um passado sedimentado, damorte; e tambm como anunciador de novas vidas e, portanto, do futuro.Por isso, o som do telefone associado a uma msica contnua de piano:a msica de piano continua contnua a partir da telefonia (p. 20); amsica de piano continua a nascer da telefonia e empurrada pelo ventoque entra atravs da janela aberta. (p. 30) Os sons de pianos pairamsoltos ao longo do tempo e das geraes, os mesmos sons de pianos

    produzidos pelo Francisco Lzaro lho, sons estes que so recuperados,posteriormente, por seu lho, o neto, quando descobre, ajudado por seutio, a existncia de uma porta secreta na ocina de carpintaria que davaacesso a um aposento misterioso em que se via pianos verticais unssobre os outros; na ordem com que o meu pai, ou o seu pai antes dele, ostinha equilibrado. (p. 32).

    A descoberta do cemitrio de pianos se faz por uma necessidade,quando o neto e seu tio (infere-se que seja Simo, irmo de FranciscoLzaro) so convocados a repararem um piano avariado. Assim, o jovem

    aprendiz de carpinteiro levado a conhecer o velho e empoeiradocemitrio de pianos, a lanar mo de peas antigas a m de tornar novoum piano antigo. Simultaneamente, o jovem vai tomando conhecimento,tambm, da histria de seus antepassados.

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    O cemitrio de pianos surge no romance no apenas como espaosimblico da memria, mas como lugar dos segredos essenciais que unemas geraes da famlia de Francisco Lzaro. o espao onde se abrigam

    no apenas os sons, mas as frias da famlia. Nele, acontecem encontrosamorosos que se repetem ao longo do tempo, o lugar da beleza, do amor,mas tambm o lugar da traio, da tragdia e da escurido. As narrativasque utuam ao longo dos tempos, em Cemitrio de Pianos, trazem-nosno apenas os sons das frias, mas a cor negra da culpa das personagens,o peso de vidas ressentidas. no sentido da expiao da culpa que se podeentender, por exemplo, a fala pstuma do av quando declara: O castigoque escolhi para mim prprio saber aquilo que aconteceu a seguir. (p.

    59). A mesma expiao de culpa pode ser depreendida do lho, quandodiz corro o mais depressa que consigo, como se fugisse daquilo que maisme assusta, como se fosse possvel fugir daquilo que levo no interior daminha pele e vai comigo para todos os lugares... (p. 114). Impossvelno associar tal fala desta personagem s chagas do personagem bblicoLzaro. Na histria real, sabe-se que o maratonista portugus besuntousua pele com sebo antes de iniciar a corrida e muito provavelmente istotenha sido um dos motivos de sua morte por insolao. A idia de levaras marcas da culpa em sua pele remonta, pois, no apenas ao personagem

    histrico, real, mas simbologia bblica da doena de Lzaro: a lepra.Soma-se a essa idia de expiao de culpa pelo sofrimento incrustadona pele aquela do sofrimento sugerido pelo prprio caminho percorridopor Francisco Lzaro na maratona, que lembra, em muitos aspectos,o percurso de cristo at o calvrio (lembremos que a personagem doromance tambm lho de carpinteiro, como Jesus), inclusive com asquedas que sofre pelo caminho antes de vir a perecer. Ao nal de sua viacrucis, no quilmetro trinta de sua maratona, Francisco Lzaro desfalece epronuncia a frase ambgua: tenho de ir ao encontro do meu pai. (p. 252)Essa frase pode ser lida a partir do sentido bblico de cristo conversandocom deus, mas tambm se refere ao encontro entre Francisco Lzaro eo seu pai, o narrador pstumo do livro. Alis, a resposta a essa frase dolho dada ao nal da sexta parte, antes de sua morte na maratona ser,de fato, narrada. Esta parte encerra-se com a fala do pai, como que sedespedindo do leitor para ir ao encontro do lho, que acabava de morrer:Tenho de ir ao encontro do meu lho. (p. 298).

    Antes que concluses erradas possam ser tiradas, preciso adiantar

    que, apesar de haver essa constante da culpa e da expiao, o romanceest longe de ser a representao de um maniquesmo simplista. Aspersonagens so ambguas, ambivalentes, contraditrias. Conforme dizo prprio Francisco Lzaro sobre a sua famlia, no quilmetro catorze

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    de sua maratona: havia um peso fundo dentro de ns a puxar-nos parao nosso interior mais negro. (p. 143) Assim, mesmo as personagens quese aparentam enquanto vtimas, em algum momento da narrativa sero

    desveladas em suas vilanias. Cada personagem contm um segredo quevai sendo aos poucos revelado. J de incio, o leitor quer saber qual omotivo do castigo que o narrador pstumo diz ter escolhido para si: saberaquilo que aconteceu a seguir. (p. 59) O leitor pergunta-se: qual o motivodo castigo e o que aconteceu a seguir? Desta pergunta, passa para outra,que aumenta o mistrio, quando Francisco Lzaro lho diz que desdea noite em que aconteceu o que no podemos esquecer jamais o Simoe o meu pai nunca mais se encontraram (p.98-99). Fica-se sabendo que

    o pai expulsara o irmo Simo de casa, mas o motivo ca em suspenso.Motivo este que justica o fato de o narrador moribundo ter dito j nasprimeiras pginas do livro que Simo no teria ido visit-lo em seu leitode morte. Esses mistrios no so revelados facilmente, mas aos poucos oleitor vai conseguindo juntar as peas que se soltam das diferentes vozesnarrativas. assim que se descobre a culpa que est por trs daquiloque aconteceu e que no se pode esquecer jamais: a relao entre Simoe seu pai; a relao entre a cegueira de Simo e o narrador-corredorFrancisco Lzaro; a relao entre a me viva e o cigano; a relao entre

    a obesidade mrbida de Marta e o bovarysmode sua irm Maria. Todasessas relaes intrincadas vo sendo aos poucos deslindadas pelo leitor,que vai descobrindo as frias antigas das personagens, o interior maisnegro de cada uma.

    Cemitrio de Pianos tem a qualidade que deve ser cobrada dosromances contemporneos, exige uma leitura sosticada proveniente deuma diculdade que no deve ser confundida com pirotecnias literriasou articialidade gratuita, mas que revela o labor literrio capaz no desujeitar o leitor, mas de faz-lo sujeito de seu ato de leitura, convertendoeste ato em performance literria tambm.

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