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    Artigo

    Educao Por Escrito, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 118-133, jan.-jun. 2015

    EditorMaria Ins Crte Vitoria PUCRS, RS, Brasil

    Equipe EditorialPricila Kohls dos Santos PUCRS, RS, BrasilMarcelo Oliveira da Silva PUCRS, RS, BrasilCarla Spagnolo PUCRS, RS, BrasilRosa Maria Rigo PUCRS, RS, Brasil

    e-ISSN 2179-8435

    (In)Disciplina escolar: desafios e possibilidades aos professores do sculo XXI

    School (in)discipline: challenges and opportunities for teachers of the XXI century

    Gla Corra Machadoa Mari Margarete dos Santos Forsterb

    RESUMO: A investigao lida com tensionamentos conceituais, tais como, disciplina/indisciplina, autoridade/poder/autoritarismo, liberdade/licienciosidade, ordem/desordem, limite/exigncia, rigidez/rigor, problematizan- do-os, confrontando-os tica e epistemologicamente. O referencial terico tem como base Aquino, Bernstein, Brunner, Correia e Matos, Fischman e Torres, Freire, Foucault, Giorgio, Macedo, Piaget, Silva e Taille. Esse estudo apoiou-se no referencial da pesquisa-ao (Minayo e Thiollent) com professores da Educao Bsica do municpio de Montenegro/RS, que participaram do Projeto de Pesquisa (in)disciplinando a disciplina: processo de construo da prtica docente e do cotidiano escolar, parceria entre as Escolas Municipais, a Secretaria Municipal de Educao e a UNISINOS, sendo esta produo parte integrante de nossas consideraes sobre o trabalho desenvolvido durante um projeto que durou 03 anos. O estudo analisa as causas geradoras da indisciplina no ambiente escolar, a forma como cada professor procura lidar com a mesma em sua sala de aula e de que maneira os professores esto se preparando para enfrentar o desafio da indisciplina no contexto educacional.Palavras-chaves: Disciplina. Indisciplina. Prtica Pedaggica. Escola. Universidade.

    ABSTRACT: The research will deal with conceptual tensions, such as discipline/indiscipline, authority/power/authoritarianism, freedom/licentiousness, order/disorder, limit/requirement, rigidity/rigor, questioning them, confronting them ethically and epistemologically. The theoretical framework is based on Aquino, Bernstein, Brunner, Correia and Matos, Fischman and Torres, Freire, Foucault, Giorgio, Macedo, Piaget, Silva and Taille. This study relied on the action research referential (Minayo and Thiollent) with teachers of basic education in a city of Montenegro/RS, who participated in the Research Project (In)disciplining discipline: construction process of teaching practice and school routine, a partnership between Municipal Schools, the City Department of Education and UNISINOS and this production an integral part of our consideration of the work done during a project that lasted 03 years. The study analyzes the generating causes of indiscipline in the school environment, how each teacher seeks to deal with the same in your classroom and how teachers are preparing to face the challenge of indiscipline in educational context.Keywords: Discipline. Indiscipline. Pedagogical Practice. School. University.

    a Doutoranda em Educao pela PUCRS. Coordenadora Pedaggica da Secretaria Municipal de Educao e Cultura de Montenegro/RS. Professora dos cursos de Ps-Graduao em Educao do UNILASALLE e Faculdades Dom Alberto. .

    b Doutora em Educao, Professora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UNISINOS. .

    A matria publicada neste peridico licenciada sob forma de uma Licena Creative Commons - Atribuio 4.0 Internacional.http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

    http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/porescrito

    : http://dx.doi.org/10.15448/2179-8435.2015.1.18145

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    Consideraes iniciais

    O presente projeto de pesquisa, que tematizou a questo da (in)disciplina escolar, desenvolveu-se junto rede municipal de ensino de Montenegro, num trabalho com supervisores, orientadores e professores. Apresentou resultados que beneficiam no s a essa rede de ensino, mas tambm a de outras regies do Estado, e provocou discusses sobre a formao de professores na Universidade. Quando falamos de disciplina/indisciplina devemos ter em mente um fenmeno complexo, multifacetado e que no encontra sentido nico. Esta questo tem ocupado um espao cada vez maior no cotidiano escolar e vem se tornando um desafio para professores e gestores educacionais e foi estudada pelo grupo de pesquisa, centralmente, sob o enfoque pedaggico, procurando contextualiz-la e entendendo-a no cotidiano da escola, com todos seus rituais e condicionantes, inserida em um espao-tempo mais amplo: a sociedade brasileira do sculo XXI.

    Vivemos hoje no Brasil, e no mundo, situaes de violncia, de corrupo, de desmando, de impunidade que veem tomando conta de todos. A lgica econmico-mercadolgica reguladora das aes e das instituies, acrescida das transformaes das polticas pblicas e do papel do Estado, tm permeado o campo educativo, provocando importantes mudanas na estrutura curricular e na definio dos atores a quem se reconhece com legitimidade para intervir na definio da vida das escolas, na planificao e gesto dos sistemas educativos.

    Com a perda da fora do Estado que, simbolicamente, pautava a sua interveno no campo educativo pela lgica do bem pblico, da preservao da identidade e da cultura nacional, as reformas educativas das dcadas de 80 e 90 permitiram a interveno de outros agentes sociais que interferiram no s nas transformaes curriculares, mas na prpria concepo de docncia. Hoje, com a reduo gradativa da interveno do Estado, os professores, mais do que nunca, tm sido responsabilizados pela crise da nao, dos sistemas educativos, pelo seu despreparo, pela indisciplina dos alunos.

    A profisso docente, que encontrava no Estado o princpio de referencializao, pressionada pelo mercado a se autojustificar permanentemente, gerando para alm de uma crise de autoridade, uma crise de poder. Mesmo sabendo-se que a crise de autoridade dos professores parece ter sido sempre uma das propriedades da profisso e que, como diz Arend (1979), a crise de autoridade consiste, tanto prtica como teoricamente, em no se saber o que a autoridade realmente , vive-se atualmente, e concomitantemente, uma crise dos mecanismos clssicos de delegao de poder nos professores.

    Essa discusso foi central nas nossas anlises, pois no s nos auxiliou na compreenso da natureza complexa do poder, presente nas relaes mais elementares, mais cotidianas, deixando suas marcas nas vidas das pessoas e da sociedade, mas nos possibilitou entend-lo em suas contradies, como possibilitador ao mesmo tempo de resistncias

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    e mudanas. Aqui se apresentou uma boa referncia para pensar relaes particulares na constituio do poder e na prpria crtica autoridade autoritria.

    Este enfoque terico foucaultiano (1993 e 1979), embora muitas vezes niilista-reprodutivo, pode instituir dilogos com Freire, que aposta no poder a servio da produo de relaes sociais mediadoras da materializao da humanidade nos humanos, rejeitando a ideia de poder atrelado ao bom argumento, a razo pura, que se impe sobre as demais dimenses humanas (FREIRE, 2000, p. 31). Este conjunto de compreenses sobre poder, incitou-nos a indagar: onde est o poder do professor? Correia e Matos (2001, p. 31) indicam que o poder do professor, diferente de sua autoridade, apoia-se em trs planos, que esto em crise: plano cognitivo, em que o professor fiel depositrio do saber cientfico; plano poltico e social, em que o professor depositrio de um poder cultural, pblico e laico, delegado pelo Estado-Nao ou por uma gerao social e, finalmente, o plano jurdico em que o poder do professor se apoia numa delegao de ordem jurdica que d legitimidade ao exerccio da avaliao que, de um modo geral, no suscetvel de recurso quanto ao seu contedo.

    Os planos agrupados, caracterizando a crise de autoridade do professor, constituem [...] uma manifestao da crise dos mecanismos de delegao de poder e dos pressupostos que asseguravam sua ocultao. A crise da delegao cognitiva tem sua origem na Cincia Moderna, na crise de sua neutralidade axiolgica, de sua objetividade, de sua fatualidade e de seu pretenso desinteresse (2001, p. 32). A crise de autoridade manifesta-se frente emergncia das incertezas e de imprevisibilidades que j no podem ser encaradas como dficits de cientificidade, mas [...] como dimenses constitutivas do conhecimento cientfico. Certezas cientficas perdem credibilidade. Assim, concluem os autores, (2001, p. 33) se a crise da delegao cognitiva do poder dos professores se confunde com a crise da prpria cincia, a crise da delegao poltica confunde-se com a crise do prprio Estado e de sua autoridade.

    Como j referido anteriormente, a crise de autoridade do professor pode estar diretamente relacionada crise do Estado, que vem se desresponsabilizando gradativamente de vrias atribuies, entre elas, da educao. Os educadores tentam manter seu estatuto original de formadores humanos, enquanto o Estado aponta para novas referncias educao. O docente, com atribuio da famlia e do Estado, tem legitimidade enquanto usa o poder delegado. Entretanto, frente a seus alunos esta delegao no suficiente, pois os coloca em compulsria relao: a escola local obrigatrio para aprender, onde h horrios, calendrios, trajetos e ritos de obedincia a serem cumpridos. O poder do professor, tambm, abalado quando o usa para separar os que sabem dos que no sabem, os que acertam e os que erram, potencializando conformismos, competitividade, obedincia, por um lado, e resistncia, inconformismos, apatias e desobedincias, por outro. Assim, a crise da escola moderna acentua-se quando se acentua a crise do paradigma da modernidade.

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    Com certeza, dadas s condies atuais, sem o respeito lei (sem disciplina?) nenhum indivduo integra-se socialmente. Como estimular o indivduo a obedincia, sem provocar sujeio s autoridades investidas de poder e mando? Como exercer autoridade para produzir liberdade e no o poder pelo poder? A autonomia e no o condicionamento? A responsabilidade e no a submisso? Como ser rigoroso, sem ser rgido? Por que necessrio, possvel e legtimo exercer a autoridade e a diretividade sem negar a liberdade de sujeitos envolvidos em processos educativos?

    Estas foram algumas das questes que orientaram este estudo e tiveram como marco terico orientador as reflexes de Paulo Freire. A autoridade freireana a materializao de relaes que se constituem pelo dilogo que os sujeitos envolvidos estabelecem. O poder para Freire aproxima-se do conceito de autoridade que desenvolve: corresponde capacidade que humanos tm, no dilogo, na aceitao da diferena, problematizar o mundo vivido e a experincia imediata do outro, desafiando superao do estgio em que se encontra e de sua capacidade de criao e reao.

    Vivemos hoje a perda do espao da escola; os professores, por sua vez, sentem-se, cada vez mais incompetentes para dar conta de todas as solicitaes, intensificando seu trabalho e regendo-se por uma lgica de consumo dos saberes escolares e de diversificao de pblicos que habitam as escolas. Frente a tudo isto e assistindo a violncia explcita como moeda de troca nas relaes sociais ante a violncia como novo cdigo da sociabilidade, fundamental repensar a funo da escola e do educador (OLIVEIRA, 1998, p. 230).

    dentro deste contexto que se fez necessrio discutir, tambm, acerca de questes como autoridade/disciplina/liberdade. Que autoridade/disciplina/liberdade deve ser desempenhada para auxiliar as pessoas na decifrao do mundo? Ser a que tem por base a fora/ ou a que tem por fundamento a tica, a competncia, o dilogo? Como entender e desvelar causas estruturais que provocam marginalizao e excluso? Como perceber a realidade cercada por contradies scio-histricas, condicionadoras de concepes e prticas de vida? Como construir referenciais que auxiliem na percepo e anlise de processos autoritrios? Como falar em liberdade hoje, nas condies em que os homens se encontram? Todos estes questionamentos acompanharam a investigao, que partindo dos conceitos e representaes de (in)disciplina/autoridade/poder/liberdade dos supervisores, orientadores e professores, sujeitos deste estudo, avanou no sentido de sua problematizao, seu tensionamento, sua confrontao tica e epistemo- lgica.

    O projeto de pesquisa nos remeteu a reflexes tericas, tendo como perspectiva um olhar docente sobre a indisciplina no contexto scio-educacional, o objetivo foi refletir sobre a importncia e a contribuio dos vrios agentes educacionais (alunos, famlias e a escola) e do papel que exercem nas relaes que permeiam o cotidiano escolar. O nosso ponto de partida contempla o movimento dos professores refletindo sobre as causas geradoras das

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    situaes de indisciplina no ambiente escolar, questionaremos tambm as formas de lidar com essas situaes dentro e fora do contexto educacional, elencamos ainda alternativas e sugestes bem sucedidas para enfrentar o desafio da indisciplina, no intuito de qualificar o trabalho docente.

    Caminhos metodolgicos

    Conforme Minayo (1994), o objeto das Cincias Sociais histrico, isto , as sociedades humanas existem num determinado espao, cuja formao social e configurao so especficas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro, num embate constante entre o que est dado e o que est sendo construdo. Portanto, a provisoriedade, o dinamismo e a especificidade so caractersticas fundamentais de qualquer questo social. Nas Cincias Sociais existe uma identidade entre sujeito e objeto, pois a pesquisa lida com seres humanos que, por variadas razes, tm um substrato comum de identidade com o investigador. considerada intrnseca e extrinsecamente ideolgica, pois toda cincia comprometida. Ela veicula interesses e vises de mundo historicamente construdas, embora suas contribuies e seus efeitos tericos e tcnicos ultrapassem as intenes de seu desenvolvimento. Finalmente, o objeto das Cincias Sociais essencialmente qualitativo.

    As orientaes metodolgicas que adotamos nesse trabalho foram baseadas na perspectiva da pesquisa-ao, ou seja: o pesquisador, no s compartilha do ambiente investigado, mas possibilita que o investigado participe do processo de realizao da pesquisa e que os resultados se revertam em benefcio do prprio grupo pesquisado. A pesquisa teve um enfoque qualitativo, embasada substancialmente no dilogo freireano. A sustentao terica considerou estudos sobre a temtica (in)disciplina/autoridade/poder/autoritarismo, liberdade/licenciosidade, ordem/desordem, limites/exigncia/ rigidez/rigor/, principalmente nas obras de Paulo Freire (2000, 1997, 1996, 1994, 1985, 1982 e 1978)

    A pesquisa-ao, na definio de Michel Thiollent (2003, p. 14), um tipo de pesquisa social com base emprica que concebida e realizada em estreita associao com uma ao ou com a resoluo de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situao ou do problema esto envolvidos de modo cooperativo e participativo.

    O objetivo central deste projeto, no dilogo com supervisores, orientadores e professores da rede municipal de Montenegro, foi promover discusses que (re)signifiquem o papel do professor como autoridade pedaggica tica e competente e, ao mesmo tempo, o papel da escola, enquanto espao formativo. Acredito que, para alm de atender a esta rede de ensino, que buscou a parceria espontaneamente para estas discusses, os resultados deste trabalho, juntamente com outras pesquisas j realizadas, podero se estender no s a outras redes, como s

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    Universidades que se ocupam com a formao de professores. Penso que o olhar pedaggico contextualizado pode avanar na compreenso da temtica, que tem assumido uma complexidade maior frente aos desafios de nosso tempo.

    A discusso sobre o mtodo na pesquisa qualificativa e, especialmente, na pesquisa-ao, muito rica e sem fim previsvel. Trata-se de um grande embate entre correntes distintas de pensamento, como a positivista, a fenomenolgica e a dialtica, no qual no h vencedores, nem vencidos. H controvrsias. Cada um tem suas razes e convices. Um e outro no tm predisposio alguma de ceder em suas posies, j que se fundamentam em paradigmas cientficos, ou em concepes e teorias de cincia, que so antagnicos entre si. A discusso toca na questo da cientificidade dos resultados, ou seja, na discusso sobre em que situao investigativa os resultados so confiveis e vlidos, do ponto de vista cientfico. As questes de fundo so a da objetividade cientfica, defendida por uns, e na pseudo neutralidade da cincia, apontada por outros. Paulo Freire j disse em 1978 que toda neutralidade proclamada sempre uma escolha escondida, na medida em que os temas, sendo histricos, envolvem orientaes valorativas dos homens na sua experincia existencial (1978, p. 89).

    A pesquisa-ao, assim como outras modalidades de estudos qualitativos, se concretizam na coleta e anlise de dados primrios empricos. Ela se ancora na integrao entre o pesquisador e o grupo estudado e dessa relao que depende a captao adequada dos dados. Se eles forem escamoteados, sonegados ou mal compreendidos, toda a pesquisa pode ficar comprometida. Por no se valer de instrumentos mensurveis, ela implica em menos controle por parte do pesquisador. Na verdade vai depender basicamente da capacidade do investigador em captar, compreender, interpretar e analisar o fenmeno. Esse tipo de pesquisa no acredita na neutralidade da cincia enquanto pressuposto epistemolgico, mas se declara favorvel ao distanciamento investigativo de modo a no se confundir o que realmente ocorre com conceitos prvios ou intenes valorativas do pesquisador.

    A devoluo dos resultados do estudo cientfico queles que foram pesquisados algo esperado e s vezes at exigido pelos grupos, como no caso desta produo, que nos provoca reflexes a partir dos dados coletados junto ao grupo de pesquisa. Afinal uma forma de perceberem que os resultados da pesquisa estaro ao seu dispor e podero subsidiar o autoconhecimento do grupo e s aes em prol da melhoria de processos organizativos e de comunicao interna e externa. No raro alguns grupos, tais como comunidades, grupos tnicos, organizaes etc., se sentem como servindo apenas de laboratrio para pesquisas acadmicas ou mercadolgicas. Respondem a entrevistas, se deixam ser observados, fotografados, filmados, mas no tem acesso aos resultados. No novidade para ningum que, em geral o conhecimento gerado atravs de pesquisas retorne exclusivamente comunidade cientfica, aos institutos de pesquisa ou s instituies que contrataram as pesquisas. Desse modo, tambm neste quesito a pesquisa-ao procura romper com os padres vigentes.

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    A parte emprica envolveu dilogos e discusses sobre concepes e prticas docentes (vises de educao, ensino, aprendizagem, (in)disciplina), leituras de livros, textos e relatrios de pesquisa que tratam da temtica e/ou da abordagem metodolgica da pesquisa-ao, entrevistas semiestruturadas, individuais e coletivas, anlise de registros e documentos, observaes e dirio de campo, ao longo de 03 anos de trabalho.

    Foram interlocutores desta investigao: orientadores e supervisores pedaggicos que atuam junto s escolas do municpio de Montenegro e professores que ministram aulas em quinta srie do ensino fundamental; sero envolvidas 05 escolas do municpio, que tm quintas sries.

    Plano de execuo da pesquisa: a) Trabalho com os orientadores e supervisores para discusso e estudos sobre a temtica e a metodologia de

    pesquisa (reunies quinzenais na Secretaria Municipal de Educao); organizao e participao em palestra sobre a temtica; primeiros contatos dos orientadores e supervisores com os docentes das quintas sries que aderiram proposta; caracterizao diagnstica do contexto das escolas envolvidas; anlise de registros e documentos das escolas e/ou utilizados pelos professores;

    b) Reunies com orientadores e supervisores, com dinmicas diferenciadas para apropriao do referencial terico-metodolgico (reunies mensais na Universidade), para preparao das intervenes junto aos professores e para anlise dos achados; desenvolvimento das sesses de trabalho com os professores das quintas-sries; observao do trabalho realizado pelos supervisores e orientadores junto aos professores, com registro em dirio de campo (no mnimo duas por escola); entrevistas individuais e ou grupais com orientadores e supervisores, sempre que necessrio; participao em eventos regionais, nacionais e nacionais para socializao da experincia;

    c) Elaborao de textos registrando a experincia; interlocuo com instituies de ensino superior (especialmente com os cursos de formao de professores) e escolas da rede, envolvidas ou no na experincia, para socializar achados; participao em eventos cientficos.

    Resultados das anlises

    Esta temtica, com mltiplas causas e efeitos, tem sido estudada algumas vezes sob enfoque psicolgico, outras sob enfoque sociolgico, mas nesse estudo pretendemos refletir sobre os aspectos pedaggicos, mesmo considerando os limites e restries desse olhar. Pretendeu-se, para, alm disso, entender melhor a temtica, e conforme Santos buscar alternativas de sociabilidade, alternativas democrticas que apontassem para

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    horizontes de emancipao, que neutralizassem o risco de eroso do contrato social (2000, p. 3). A partir das anlises do grupo, deixou-nos, esta investigao, algumas certezas:

    a) A escola , de fato, um espao rico de contradies; b) Os sujeitos que a habitam tm potencialidades, produzem saberes, que precisam ser reconhecidos em sua

    notoriedade; c) A forma como o sistema escolar e/ou escola funciona pode ser facilitador ou dificultador de aprendizagem e

    desenvolvimento profissional; d) Espaos e situaes de reflexo e problematizao compartilhados/coletivos facilitam o processo de

    desenvolvimento profissional, so formativos, mas podem ou no resultar em aprendizagem para a profisso; e) O trabalho pedaggico continuado e a identificao dos benefcios do mesmo sobre as aulas e os alunos

    favorecem a aprendizagem e o desenvolvimento profissional; f) A acolhida positiva e propositiva da equipe diretiva ao trabalho do professor, ouvindo-o e valorizando-o

    favorece o desenvolvimento a aprendizagens profissionais; g) Nem sempre mudanas de representaes e discursos dos professores so acompanhadas por mudanas nas

    prticas docentes; h) As aes humanas, sistematizadas em torno de processos institudos, como o caso da educao escolarizada,

    sendo tributrias da concepo de Estado, so portadoras tanto de foras regulatrias como emancipatrias. Este projeto inseriu-se na Linha de Pesquisa Prtica Pedaggica e Formao do Educador e deu

    continuidade s investigaes dos pesquisadores e do grupo de pesquisa na interlocuo escola/universidade, a partir do olhar dos profissionais que atuam na Escola, ressignificando-a como espao formativo privilegiado, por um lado, e qualificando a formao inicial, na Universidade, por outro. Sob esse ponto de vista, o estudo contextualiza as relaes famlia e escola ao longo dos tempos, o conceito e a origem da disciplina/indisciplina na sociedade, alternativas de manejo e o olhar necessrio sobre a indisciplina.

    Questes da indisciplina no contexto scio-educacional

    No panorama mundial no que diz respeito educao ocorreram trs grandes revolues que alteraram na raiz a forma de conceber e produzir a educao e o ensino. Segundo Brunner (2000), na primeira o ensino deixa de ser familiar e difuso para ser institucional e sistmico, surgindo ento escola como espao destinado ao ensino sistematizado. A segunda revoluo surge com a criao dos sistemas escolares pblicos, marcada pelo surgimento da ao do Estado no processo de transmisso do conhecimento e da cultura, passa-se do modelo religioso de administrar

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    a escola para o modelo burocrtico homogeneizante de controle administrativo. Simultaneamente ao surgimento da imprensa, esse perodo organiza a estrutura escolar em disciplinas e em nveis, e marca o surgimento do Cdigo de Disciplina Escolar. A terceira revoluo est ainda em desenvolvimento no Brasil e ter conseqncias vitais para a sociedade. Trata-se da revoluo da educao massificada.

    A educao no Brasil contempla a maioria das crianas e adolescentes no Ensino Fundamental, porm j no podemos afirmar o mesmo quanto ao Ensino Mdio e Superior, que apesar dos esforos da legislao vigente na ampliao do Ensino Fundamental de oito para nove anos, com ingresso de alunos com idade de seis anos, favorecendo com isso a ampliao do atendimento na Educao Infantil, no Brasil estamos apenas comeando a viver esse fenmeno da massificao da educao. O ser humano ao longo da vida passa por diferentes experincias, internalizando regras que so ditadas pelas diversas instituies pela qual transita. No entanto, nem todas as instituies transmitem de forma eficaz os regramentos, deixando lacunas a serem preenchidas, transferindo tal responsabilidade a outro grupo.

    A famlia o primeiro grupo que se organiza em volta do ser humano, disposto a impor as normas, as atitudes e orientaes dos pais que servem de exemplo e estmulo a conduta dos filhos. Assim sendo, a famlia age como um fator de equilbrio para um comportamento futuro das crianas e dos adolescentes. Os regramentos familiares colaboram aos ajustes futuros do comportamento social. A ausncia de vnculos fortes e de regras definidas poder dificultar a soluo de problemas, criando outros para fora da famlia.

    A escola passou a intervir de forma intensa na vida da famlia, tentando solucionar os conflitos gerados no ambiente familiar, refletidos nos comportamentos dos alunos na vida escolar. Tal situao trouxe um acrscimo de atribuies aos educadores para as quais no estavam preparados. A escola envolveu-se com a famlia, mas a famlia nem sempre se envolve com a escola, repassando quase por completo a obrigao da educao.

    De acordo com Fischman e Torres (1996), uma famlia no unicamente um sistema de apoio que proporciona ajuda; ela tambm pode ter importante funo de resolver problemas. Entretanto, uma resoluo de problemas efetiva freqentemente envolve distinguir as coisas que melhor fazer dentro da famlia e as coisas que melhor fazer fora dela. Os pais, professores, profissionais de sade e a igreja j no possuem mais receitas para educar crianas corretas, obedientes e responsveis. A Pedagogia Tradicional que pretendia lapidar e para isso utilizava at mesmo o castigo, no consegue mais convencer as crianas. Concomitante com os modelos pedaggicos h todo um sistema poltico que foi sendo implantado e que necessita de uma educao que o legitime.

    Identificamos certa tenso existente entre instituies: a famlia e a escola. A famlia que se encontra com outra configurao, atribui escola a responsabilidade de educar bem seu filho e dar limites. A escola recebendo alunos muitas vezes indisciplinados, atribui a culpa aos pais. Essas instituies consideradas seguras encontram-se em crise, instituies que se concebiam como nicas responsveis pela formao humana, esto angustiadas pela falta de referenciais.

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    Em certas circunstncias, o ato indisciplinado seria a manifestao de uma agressividade latente dirigida contra as figuras de autoridade, agressividade essa gerada pela desestruturao do ambiente familiar (a desagregao dos casais, a falta de tempo para cuidar dos filhos, a precria superviso das tarefas escolares, etc). De modo genrico, supe-se que as condutas dos alunos envolvidos em situaes disciplinares sejam resultado de prejuzos psquicos difusos, ligados primeira infncia e ao modo permissivo como tais crianas e adolescentes foram criados por suas famlias ou convivem em suas escolas.

    Segundo La Taille (1998), disciplina remete a regras. Com efeito, a pessoa disciplinada segue determinadas regras de conduta. Logo, disciplina corresponde ao que chamamos de moral: o respeito por certas leis consideradas obrigatrias. Portanto, a pessoa indisciplinada transgride as leis que deveria seguir. A indisciplina pode, s vezes, vir em decorrncia de bons motivos ticos. Se as regras no fazem sentido (e h muitas nas escolas) e se derivam de valores suspeitos (como subservincia cega autoridade), a indisciplina pode se justificar eticamente. H indisciplina eticamente vlida e desobedincia legtima, graas s quais, alis, a sociedade acaba por evoluir. Mas pensemos agora nas formas de indisciplina que ferem as leis morais, estas definidas como garantia de respeito a direitos legtimos. Transgresses deste tipo tambm podem acontecer nas salas de aula, como por exemplo, as agresses verbais e fsicas, ignorar a autoridade do professor em sala de aula, fingindo que no lhe ouve, no lhe v ou que ele no existe. Para o autor, a distino entre moral e tica a seguinte: a moral refere-se s leis que normatizam as condutas humanas, e a tica corresponde aos ideais que do sentido vida, a moral visa responder a pergunta Como devo agir? e a tica, responder a pergunta Como viver?

    Conforme Bernstein (1996), as escolas no podem ser consideradas como instituies neutras, que tm como propsito somente o ensino de habilidades e contedos tericos aos novos membros de uma sociedade. Elas carregam mensagens ideolgicas que produzem e reproduzem a conscincia e a identidade das pessoas e traduzem, em discursos pedaggicos, as relaes de poder existentes na sociedade como um todo. Entretanto, as escolas tambm podem contribuir para a transformao social na medida em que se proponham a questionar e subverter o texto pedaggico oficial. A influncia da cultura institucional sobre o comportamento das pessoas que nela esto inseridas interfere na organizao da disciplina de uma escola, uma vez que independente das caractersticas de cada pessoa, essa instituio influencia de forma importante a maneira como cada uma delas se comportam, a partir de seu ingresso.

    Gnesis da indisciplina: perspectiva docente

    Considerando a escola como um espao pedaggico, comprometido com a educao de todos, nos deparamos muitas vezes, com encargos sociais ilimitados, no entanto, nos responsabilizamos e enfrentamos os constantes

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    desafios. Repensar a indisciplina, num contexto scio-poltico-educacional, nos faz rever preconceitos e conceitos em relao reorganizao das famlias, da sociedade e do sistema de educao.

    Num mbito escolar so muitas as faces geradoras de indisciplina, a partir da percepo docente podemos elencar alguns motivos preponderantes, como a crise que mudou os padres familiares, trazendo os trabalhadores do campo para a cidade, inserindo a mulher no mercado de trabalho, ocasionando a transferncia das responsabilidades necessrias formao das crianas, que pertenciam famlia para a escola, terceirizando as suas funes, refletindo assim em carncias de todos os tipos: afeto, ateno, econmica...

    Outra questo relevante a insuficincia das polticas pblicas diante das necessidades bsicas da classe trabalhadora, que desvalorizam a funo social da famlia e da escola. A mdia outro fator significativo, o papel que exerce na sociedade atual, como uma das formadoras de opinio, ditando normas, atitudes, conceitos, modismos, etc., que influenciam na formao de novos valores, que refletem no comportamento de adultos, jovens e crianas.

    Observando os alunos podemos destacar a necessidade de estabelecer limites que estimulem a maturidade, a motivao e a autoestima (por parte dos pais e professores). necessrio tambm, exercitar o dilogo como forma de escuta e esclarecimento das dificuldades, no sentido de estabelecer regras claras e firmes, incentivando a participao dos envolvidos no processo educativo (professores, pais e alunos), transformando as atitudes agressivas atravs do dilogo.

    Em relao prtica docente podemos mencionar o despreparo das escolas de formao, que mantm currculos impregnados de prticas autoritrias, repressoras e rgidas que formam lideranas pouco preparadas e descomprometidas com a realidade atual. Essa fragilidade do currculo reflete no sentimento de solido que o professor vivencia na sala de aula, que acarreta em insegurana, baixa estima, falta de motivao, atividades pouco integradoras e sem sentido, ao planejamento inadequado, na ausncia de metas...

    Soma-se a isso, a falta de apoio e a ausncia de uma linha de ao do Sistema Educacional, busca de solues milagrosas e paliativas, falta de respeito e tica para com a classe e entre os docentes. Por ltimo, temos a interpretao equivocada das Legislaes vigentes (Constituio, LDB, ECA, Conselhos Tutelares...).

    Alternativas de manejo no cotidiano escolar

    Sendo a indisciplina um fator presente no cotidiano escolar, devemos buscar alternativas para o enfrentamento e preveno de atitudes dessa natureza. Muitas so as possibilidades utilizadas pelos professores, no entanto, no eliminamos os referidos atos indisciplinares por parte dos alunos, porm com o uso de determinadas atitudes, posturas, exemplos e trabalhos pedaggicos, podemos minimiz-los.

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    Entre as atitudes docentes que promovem efeitos positivos, podemos citar: delimitao de responsabilidades no processo de ensino e aprendizagem (famlia e escola); dilogo e trocas atravs de exemplos do cotidiano; busca de apoio junto a Equipe Diretiva; exerccio do respeito mtuo; demonstraes de carinho e ateno aos alunos; criao de vnculos de amizade com os alunos ditos indisciplinados, com o objetivo de conquist-los, resgatando o seu interesse pelas aulas; observao individual e coletiva dos alunos; demonstrao de tranquilidade e pacincia, principalmente nos momentos de indisciplina, desviando a ateno da turma para outro assunto.

    E quanto postura dos educadores no intuito de prevenir situaes indisciplinares, temos ainda o conhecimento da realidade e histria do aluno, assim como a procura de suas qualidades; promoo do debate sobre a temtica e o conhecimento do ponto de vista dos educandos e seus motivos; cumprimentos das combinaes entre educador e educandos; diferenciao entre indisciplina e comportamento normal de uma criana (conversar, brincar, caminhar, etc.).

    No que se refere ao trabalho pedaggico, podemos nos utilizar dos encontros com as famlias, atravs de reunies, festas, gincanas, clubes de mes, campeonatos esportivos entre pais, oportunizando atividades diversificadas dentro e fora da sala de aula; trabalhando valores, hbitos de cortesia, direitos e deveres e refletindo sobre as atividades desenvolvidas.

    O desafio da indisciplina: um novo olhar

    O enfrentamento da indisciplina no ambiente escolar deve ser encarado como um desafio para todos os envolvidos no processo educacional, contrariando a postura contempornea e remanescente da nossa histria scio-poltico-cultural. A partir do pensar sobre suas causas e como os professores lidam no seu cotidiano com a indisciplina lanamos alternativas e possibilidades a serem trabalhadas no universo escolar, a fim de encarar o desafio da indisciplina, como por exemplo, investir na atualizao profissional dos professores atravs de cursos, palestras, estudos bibliogrficos sobre o tema, pesquisa e troca de experincias no ambiente escolar e acadmico. Atravs da busca de apoio, resgatando os papis sociais da famlia, da escola e da sociedade, trocando o estigma da culpa pela responsabilidade.

    Dentro do espao escolar devemos disponibilizar a escuta e a discusso sobre o tema (indisciplina) com colegas, alunos e familiares, proporcionando atividades que desenvolvam a autoestima e o bom relacionamento entre todos, analisar e refletir sobre situaes de indisciplina, a partir de exemplos atuais junto aos alunos, propondo tcnicas e experincias que deram certo. importante compreender a indisciplina como um desafio e no uma afronta pessoal, no entanto, necessrio conhecer os alunos e sua realidade, trabalhando com as diferenas (familiar, social, cultural

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    e tnica), desenvolvendo o respeito mtuo, educando atravs do exemplo, investigando o significado das situaes de indisciplina.

    O trabalho docente que se esconde atrs de prticas solitrias e individualistas, deve buscar o apoio e a parceria dos seus pares, da equipe diretiva e outros setores da escola, deve investir no lazer, na cultura, no entretenimento, buscando um equilbrio psicolgico e espiritual, na tentativa de acompanhar as mudanas dos novos tempos. essencial que o professor seja um otimista, dotado de pacincia e comprometimento, pois para o exerccio de sua profisso, imprescindvel a crena nos valores humanos como nica forma de transformao comprometida com uma educao para a cidadania.

    Hoje, comportadas ou no, todas as crianas tem direito a estudar. Antigamente as escolas selecionavam os alunos comportados e ficavam de fora aqueles que no se ajustavam ao comportamento desejado. Nesse caso disciplina era trazida de casa, era inclusive um pr-requisito para o ingresso na escola. Disciplina um trabalho de todos na sala de aula, cada cultura escolar e cada atividade em sala de aula tem uma disciplina adequada ao seu desenvolvimento, dependendo da situao a melhor pode ser o silncio, as crianas perguntando ou conversando entre si.

    As crianas de hoje possuem dificuldades em respeitar os limites, mas ns adultos tambm. Entendemos os motivos da nossa indisciplina, porque sabemos que para muitas pessoas a regularidade se tornou impossvel. Mas, se ns no somos disciplinados, por que esperamos um comportamento regular das crianas, como se fosse uma coisa natural, espontnea, quase herdada. A disciplina deve ser vista ao mesmo tempo como fim e como meio, um fim porque podemos desenvolver atitudes como concentrao, responsabilidade, interesse, transformando em ferramentas pessoais e de trabalho. E tambm um meio, instrumento sem o qual as coisas no acontecem ou acontecem fora do prazo.

    De acordo com Piaget (1977), em seu livro O Julgamento Moral na Criana, as crianas, mesmo as bem pequenas j tem valores como o gosto pelas regras, pela disciplina, pelo fazer bem feito e por se entregar a uma tarefa coletiva. Esse autor provou que possvel ver isso atravs das brincadeiras, e que o respeito entre os iguais promove o desenvolvimento da criana.

    Para alunos da Educao Infantil, entre 02 e 05 anos, a brincadeira, a fantasia, as histrias so timas estratgias. A argumentao cientfica no funciona com os pequenos. O recurso ldico soa sincero para a criana, porque uma espcie de dramatizao do assunto, uma elaborao simblica da questo. Nessa idade, outro recurso possvel simplesmente, com habilidade, dar uma ordem e pedir que ela seja cumprida, nesse caso, preciso deixar claro para a criana que h uma diferena entre ela e o adulto.

    J na idade entre 06 e 11 anos interessante trabalhar disciplina como uma boa regra ou uma regra sem a qual, certas coisas no se desenvolvem bem. O convencimento se d de forma emprica, com exemplos, discusso, no mais

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    com o faz de conta. Uma coisa o imaginrio, outra a prpria negociao da regra. O problema do convencimento no seu sentido adulto que ele supe um pensamento hipottico dedutivo, mas crianas com menos de 12 anos no entendem esse pensamento. preciso trabalhar com elas a prpria construo das regras mais adequadas para uma determinada tarefa que se espera que realizem.

    Regra, por fim, algo que se constri por consentimento. Deve-se combinar previamente que a no observao das regras implicar punies ou perdas, pois um dos motivos que nos levam a aderir disciplina so as consequncias de no nos entregarmos a ela. Convencer diferente de impor.

    Segundo Macedo (2004), a disciplina na escola no questo de boa conduta, nem de formao trazida de casa. Disciplina se aprende e do interesse de todo mundo, porque facilita a relao das pessoas com as coisas. Disciplina uma questo de competncia e no de valor. O pressuposto fundamental da exigncia da disciplina escolar o de que a conquista do saber uma tarefa difcil, rdua e complexa. Para alcan-lo, preciso que haja conscincia da importncia desse saber para a vida e para a construo da sociedade.

    Consideraes finais

    A disciplina no surge assim, das medidas disciplinadoras, mas como exigncia da organizao de toda a vida escolar, do desenvolvimento do projeto educativo da escola e da organizao do trabalho escolar em um processo de formao do ser social responsvel pela construo da sociedade. A disciplina no exerccio de construo de um projeto pedaggico nos permite viver, como afirma Di Giorgio (1986), a aventura estranhssima do homem em no se conformar com o mundo que est a e querer criar um mundo diferente, que a cultura, ato pelo qual ele vai do homo sapiens ao ser humano.

    Formar o ser humano, portanto, um processo que no pode ser garantido com a indisciplina dos educadores expressa na disperso de esforos, na fragmentao do trabalho escolar, na perda de tempo com as pequenas brigas por questes pessoais ou caprichos nas relaes entre professores e especialistas, entre os prprios professores e entre professores e alunos. Ao contrrio, a construo de um projeto pedaggico que tenha como horizonte a formao do aluno, como sujeito de aspiraes, pressupe um redirecionar do fazer pedaggico, o que implica disciplina, conforme Silva (1997).

    Contrariando o que muitos pensam, as causas da indisciplina no esto apenas no estudante e na educao que ele traz de casa. Ao achar que as solues para o problema esto fora de seu alcance, a escola nega a responsabilidade que lhe cabe. Disciplina tem tanto a ver com a famlia quanto com a escola. Para os professores interessados em ensinar disciplina necessrio trabalhar com dedicao, assim o aluno que no tem disciplina pode perfeitamente

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    aprender a ter. Aprender a resolver problemas por meio do dilogo, no entanto, no se d de uma hora para outra, a criana aprende gradualmente, como resultado da reflexo contnua, da troca de pontos de vista e da coerncia nos procedimentos empregados.

    De acordo com Aquino (2002), uma espcie de pacto de confiana, primeiro diga-me o que espera que faa e seja, para que eu possa esperar algo de voc. Assim comeamos a cultivar expectativas acerca do outro e de ns mesmos e passamos a contar com parmetros de julgamento de nossas aes e das alheias. A polmica sobre a disciplina e os limites na educao nos leva a repensar busca de solues nicas para manter alunos disciplinados, oriundos e imersos em universos to diferentes. A pluralidade exige muito mais do professor. Ele deve recriar de acordo com os contextos, formas inteligentes de produzir consensos com as suas diversas turmas, sendo cada uma delas j o espao das mltiplas diferenas.

    Devemos enquanto educadores conscientizar-nos do desafio que temos pela frente, tendo bem claro que no existe um modo correto, mas sim o modo que encontramos de conseguir estabelecer alguns consensos mnimos e necessrios com nossos alunos, deixando de lado os atritos entre famlia e escola, onde ambos procuram culpados, ao invs de buscarem os responsveis. Acima de tudo, esta uma luta e um desafio dos educadores, sejam eles professores, pais, enfim, pessoas comprometidas com as mudanas que nossa sociedade espera, e que urgentemente se fazem necessrias.

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    Endereo para correspondncia:Gla Corra MachadoRua Menino Deus, 143 Bairro Ferrovirio95780-000 Montenegro, RS, Brasil

    Recebido em: julho/2014Aceito em: dezembro/2014