Post on 11-Nov-2020
1
2
Organizadores
Gilmar Ferreira Mendes Paulo Gustavo Gonet Branco
GRANDES EVENTOS DO IDP: XIX CONGRESSO
INTERNACIONAL DE DIREITO
CONSTITUCIONAL (ANAIS 2016)
1ª edição
Autores:
Albie Sachs
Ana Frazão
Carlos Blanco de Morais
José Levi Mello do Amaral Júnior
José Luís da Cruz Vilaça
Juarez Quadros
Luca Belli
Luiz Alberto Gurgel de Faria
Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Rodolfo Tamanaha
Valerio de Oliveira Mazzuoli
IDP Brasília
2017
3
CONSELHO CIENTÍFICO – SÉRIE IDP/SARAIVA MEMBROS EFETIVOS: Presidente: Gilmar Ferreira Mendes Secretário Geral: Jairo Gilberto Schäfer Coordenador-Geral: Walter Costa Porto Coordenador Executivo da Série IDP: Sergio Antonio Ferreira Victor
1. Afonso Códolo Belice (discente)
2. Alberto Oehling de Los Reyes – Universitat de lês Illes
Balears/Espanha
3. Alexandre Zavaglia Pereira Coelho – IDP/SP
4. António Francisco de Sousa – Faculdade de Direito da
Universidade do Porto/Portugal
5. Arnoldo Wald
6. Atalá Correia – IDP/DF
7. Carlos Blanco de Morais – Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa /Portugal
8. Everardo Maciel – IDP/DF
9. Fabio Lima Quintas – IDP/DF
10. Felix Fischer
11. Fernando Rezende
12. Francisco Balaguer Callejón – Universidad de
Granada/Espanha
13. Francisco Fernández Segado – Universidad
Complutense Madrid/Espanha
14. Ingo Wolfgang Sarlet – Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul/RS
15. Jacob Fortes de Carvalho Filho (discente)
16. Jorge Miranda – Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa /Portugal
17. José Levi Mello do Amaral Júnior – Universidade de São
Paulo – USP
18. José Roberto Afonso – FGV
19. Janete Ricken Lopes de Barros – IDP/DF
20. Julia Maurmann Ximenes – IDP/DF
21. Katrin Möltgen – Faculdade de Políticas Públicas – FhöV
NRW/Alemanha
22. Lenio Luiz Streck – Universidade do Vale do Rio dos
Sinos/RS
23. Ludger Schrapper
24. Marcelo Neves – Universidade de Brasília – UNB
25. Maria Alicia Lima Peralta
26. Michael Bertrams
27. Miguel Carbonell Sánchez – Universidade Nacional
Autônoma do México – UNAM
28. Paulo Gustavo Gonet Branco – IDP/DF
29. Pier Domenico Logroscino – Università degli studi di
Bari Aldo Moro/Itália
30. Rainer Frey – Universität de Münster/Alemanha
31. Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch – IDP/DF
32. Rodrigo de Oliveira Kaufmann – Universidade de
Brasília – UNB
33. Rui Stoco
34. Ruy Rosado de Aguiar – IDP/DF
35. Sergio Bermudes
36. Sérgio Prado
4
____________________________________________________________________________________________________
Mendes, Gilmar Ferreira (Org.).
Grandes Eventos do IDP: XIX Congresso Internacional de Direito
Constitucional (2016). / Organizadores Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo
Gonet Branco. – Brasília: IDP, 2017.
114 p.
ISBN: 978-85-9534-023-7
1. Direito Constitucional. 2. Internet. 3. Economia Digital.
4. Comunicação. I. Título. II. Paulo Gustavo Gonet Branco.
CDDir 341.2
5
APRESENTAÇÃO
O Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) tem como uma de suas mais caras
missões institucionais a realização de cooperações científicas com consagradas
universidades estrangeiras e com centros de pesquisa mundialmente reconhecidos. Essas
parcerias têm rendidos valiosos frutos, como a publicação de importantes estudos em
matéria de Direito Comparado e a organização de grandes eventos que possibilitam à
Academia brasileira dialogar diretamente com a comunidade jurídica internacional.
O Congresso Internacional de Direito Constitucional representa um desses ricos
espaços de intercâmbio de experiências jurídicas. Já em sua décima nona edição, o evento
reuniu em Brasília, entre os dias 26, 27 e 28 de outubro de 2016, conceituados docentes
estrangeiros e nacionais, ilustres Ministros de Estado e importantes advogados, tendo
como temática principal: Constituição e Novas Tecnologias - interfaces para um novo
Direito Constitucional. A presente obra congrega os artigos acerca dos debates travados
no evento, possibilitando aos leitores a contínua revisitação dos temas ali explorados.
Contribuíram para a presente obra os seguintes autores: Albie Sachs, Ana Frazão,
Carlos Blanco de Morais, José Levi Mello do Amaral Júnior, José Luís da Cruz Vilaça, Juarez
Quadros, Luca Belli, Luiz Alberto Gurgel de Faria, Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
Rodolfo Tamanaha e Valerio de Oliveira Mazzuoli.
Todas essas discussões se tornam perenes com a publicação dos anais do evento.
Boa leitura a todos.
Gilmar Ferreira Mendes Paulo Gustavo Gonet Branco
6
SUMÁRIO
INTERNET, NOVOS NEGÓCIOS E ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO: Desafios para a regulação jurídica.............................................................................................................................................07 ANA FRAZÃO RESPEITO PELA DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE ...................................... 28 ALBIE SACHS DEMOCRACIA DIGITAL: OS SEUS BENEFÍCIOS E RISCOS PARA A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA ....................................................................................................................................... 37 CARLOS BLANCO DE MORAIS CONSTITUIÇÃO, PRIVACIDADE, PROTEÇÃO DE DADOS E NOVAS TECNOLOGIAS ............ 47 JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR O MECANISMO DE PROTEÇÃO JURISDICIONAL DE DADOS PESSOAIS NUM SISTEMA CONSTITUCIONAL MULTI-NÍVEL – O CASO DA UNIÃO EUROPEIA .......................................... 51 JOSÉ LUÍS DA CRUZ VILAÇA TRANSMISSÃO DE DADOS E DEMAIS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES .. 61 JUAREZ QUADROS A INTEROPERABILIDADE LEGISLATIVA E O POLICYMAKING COLABORATIVO................................................................................................................................................65 LUCA BELLI ECONOMIA DIGITAL .................................................................................................................................... 74 LUIZ ALBERTO GURGEL DE FARIA SEGURANÇA PÚBLICA VIGILÂNCIA E EXERCÍCIO DE LIBERDADES NO AMBIENTE DIGITAL ............................................................................................................................................................ 82 MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO DIREITOS INTELECTUAIS E ECONOMIA DIGITAL ........................................................................... 93 RODOLFO TAMANAHA DIREITOS COMUNICATIVOS COMO DIREITOS HUMANOS: ABRANGÊNCIA, LIMITES, ACESSO À INTERNET E DIREITO AO ESQUECIMENTO ................................................................. 99 VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI
7
INTERNET, NOVOS NEGÓCIOS E ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO
Desafios para a regulação jurídica
Ana Frazão
Sumário
I. Introdução II. Internet, novos negócios e economia do compartilhamento: entre a inovação e a disrupção III. Os desafios dos novos negócios e da economia do compartilhamento à regulação jurídica IV. A necessária prevalência da realidade sobre a forma: ajustes, cuidados e calibrações V. Conclusões
I. Introdução
Recente reportagem da The Economist, intitulada “Eroding exceptionalism:
Internet firms’ legal immunity is under threat”1, apresenta interessante diagnóstico sobre
as razões do sucesso dos novos negócios na internet:
GOOGLE, Facebook and other online giants like to see their rapid raise as the product of their founders' brilliance. Others argue that their success is more a result of lucky timing and network effects – the economic forces that tend to make bigger firms even bigger. Often forgotten is a third reason for their thriumph: in America and, to some extent, in Europe, online platforms have been inhabiting a parallel legal universe. Broadly speaking, they are not legally responsible, either for what their users do or for the harm that their services can cause in the real world.2
A reportagem chama a atenção para o fato de que o advento das tecnologias da
informação possibilitou não apenas uma grande revolução na comunicação, mas também
a criação de novos modelos de negócio baseados no refinamento de tais tecnologias e nas
1 THE ECONOMIST. Eroding exceptionalism: Internet firms’ legal immunity is under threat. The Economist.
Disponível em: < http://www.economist.com/news/business/21716661-platforms-have-benefited-greatly-special-
legal-and-regulatory-treatment-internet-firms> Acesso em: 6 mar. 2017. 2 Tradução livre: Google, Facebook e outros gigants virtuais gostam de ver seu rápido crescimento como produto
do brilhantismo de seus fundadores. Outros sustentam que seu sucesso resulta de sincronização oportuna e de
efeitos de rede – as forças econômias que tendem a fazer de empresas grandes ainda maiores. Uma terceira razão
para seu triunfo é comumente esquecida: nos Estados Unidos e, em alguma medida, na Europa, plataformas virtuais
têm habitado um universo jurídico paralelo. Grosso modo, as empresas não são legalmente responsáveis, seja pelo
que seus usuários fazem, seja pelos danos que seus serviços podem causar no mundo real.
8
possibilidades de interação entre usuários da rede, por meio de mecanismos ou
plataformas capazes de aproximar e intermediar relações entre indivíduos.
Como ensina Yochai Benkler3, a revolução da internet, longe de ser
ultrapassada, é fenômeno cada vez mais atual, na medida em que vem propiciando uma
mudança radical na forma de organização da produção de informação, que passa a
independer tanto do mercado como da propriedade. Daí se falar em nonmarket and
nonproprietary production, caracterizada pelo protagonismo dos indivíduos ou por
esforços cooperativos; e em economia da informação estruturada em rede (networked
information economy), marcada pela ação descentralizada, cooperativa e coordenada.
A partir daí, cria-se até mesmo novo paradigma de produção e consumo, que
se identifica não com a ideia absoluta de propriedade, mas com a noção de
aproveitamento de bens ociosos mediante seu emprego remunerado por usuários que
não podem ou não necessitam da aquisição de determinado bem. Emerge, assim, a figura
do “pro-sumidor”, isto é, do sujeito que, ao mesmo tempo em que participa de forma
intensa do mercado de consumo, fornece bens e serviços seus a outros consumidores.
Ocorre que, muito embora essas novas formas de interação em rede possam
trazer inúmeros benefícios aos indivíduos que delas se utilizam, seu alto grau de inovação
lhes coloca em posição incerta no que diz respeito à incidência de regulação, bem como
do tipo de regulação aplicável. A resposta a tais indagações obviamente dependerá de
algumas características fundamentais das networks, tais como a sua finalidade lucrativa
ou não, bem como os diferentes papéis que os indivíduos nelas podem assumir:
empresários, consumidores, trabalhadores autônomos ou trabalhadores assalariados.
Com isso, podem emergir não apenas problemas referentes à concorrência
com agentes atuantes em mercados regulados, os quais devem observar exigências
rigorosas, mas também questões ainda mais problemáticas sobre a incidência de normas
protetivas de vulneráveis, como o consumidor ou o trabalhador, além de outros
microssistemas destinados à proteção de interesses indisponíveis.
Não é sem razão que a reportagem da The Economist já citada4 aponta que a
era de excepcionalismo digital não pode durar para sempre e que alguns fatores impõem
uma reflexão acurada sobre a necessidade de regular tais serviços. Dentre eles,
3 BENKLER, Yochai. The Wealth of networks. How social production transforms markets and freedom. EUA:
Yale University Press, 2006. 4 THE ECONOMIST. Op. cit.
9
encontram-se o tamanho de muitas empresas que exploram tais plataformas, as diversas
externalidades negativas geradas e a dificuldade crescente de se entender tais
plataformas como meras networks de comunicação marcadas pela neutralidade.
É em razão dessas preocupações que o presente trabalho pretende explorar o
fenômeno descrito, acenando para perspectivas que precisam ser consideradas na
discussão sobre a sua regulação. Por fim, será dada especial atenção à ideia de primazia
da realidade sobre a forma no âmbito de searas de regulação “dura”, apresentando, tão
somente para fins de exemplo, as controvérsias envolvendo o aplicativo Uber nas searas
trabalhista e concorrencial.
II. Internet, novos negócios e economia do compartilhamento: entre a inovação e a
disrupção
O rápido avanço das tecnologias da informação tem possibilitado não somente
a intensificação da atividade econômica por meio da operacionalização das trocas
eletrônicas e da facilitação da comunicação rápida entre agentes extremamente distantes
entre si, mas também mediante a renovação da forma pela qual a atividade econômica é
desenvolvida.
Além dos negócios dos já conhecidos gigantes da Internet, como Facebook e
Google, a rede mundial vem possibilitando outros tipos de negócio que, embora sejam
também baseados em networks, requerem uma participação mais ativa dos seus usuários.
Se o modo de produção de bens e serviços tradicionais concentra-se na figura
da empresa e em sua aptidão para reduzir custos de transação, isto é, de facilitar a
operação do mercado em razão de sua estrutura organizacional, de modo a permitir que
os frutos de sua atividade alcancem seu público consumidor5, a tecnologia facilita o
empreendimento de atividades econômicas por indivíduos. Segundo Yochai Benkler6, as
plataformas virtuais reduzem em grande medida os custos de produção, de maneira a
fomentar trocas descentralizadas levadas a cabo por indivíduos que, em lugar de
operarem por meio de estruturas societárias hierárquicas, o fazem por intermédio de suas
relações sociais.
5 A respeito da noção de custos de transação, ver: WILLIAMSON, Oliver E. Transaction cost economics: an
introduction. Economics discussion papers. n. 3, mar. 2007. 6 BENKLER, Yochai. Sharing nicely: on shareable goods and the emergence of sharing as a modality of economic
production. The Yale Law Journal. v. 114, pp. 273-358, 2004. p. 278.
10
Diferentemente da atividade econômica tradicional, os serviços prestados por
indivíduos interligados por plataformas em rede caracterizam-se não pela organização e
pela produção em massa de bens e serviços, mas majoritariamente pelo
compartilhamento de bens pessoais, ociosos ou empregados de maneira a integrar
determinado serviço. Para Lawrence Lessig7, a introdução de formas de produção
baseadas não apenas na definição de preços – como na economia tradicional –, mas
também no compartilhamento de bens pessoais vem quebrar o paradigma de
propriedade, segundo o qual a melhor estratégia para a produção de riqueza é maximizar
o controle sobre os bens que se tem à disposição.
Nesse sentido, a chamada “economia colaborativa” ou “economia do
compartilhamento” consiste na combinação de elementos sociais e econômicos tornada
possível em razão de plataformas que interligam indivíduos. Por essa razão, tem-se que a
economia do compartilhamento constitui ruptura ao modo de produção tradicional,
transcendendo relações de consumo clássicas e substituindo-as pelo que se denomina
“capitalismo de multidões” (crowd-based capitalism). Dessa maneira, as plataformas peer-
to-peer, isto é, que têm o condão de interligar indivíduos, alteram a dinâmica da produção,
distribuição e consumo de bens e serviços, vindo a criar novas oportunidades de exercício
de atividade econômica8.
As “formas inovadoras de compartilhamento de bens subutilizados”9,
proporcionadas pela economia colaborativa, promovem o que se denomina por
“disrupção”, qualidade que distingue a inovação da mera mudança, consubstanciando
respostas proativas a problemas socioeconômicos. Nesse sentido, embora não se possa
afirmar que o compartilhamento de bens seja novidade, sua associação com a tecnologia
produz aperfeiçoamento técnico importante ao modo de produção capitalista, rompendo
com paradigmas antigos de fruição de bens e de produção10. A tecnologia disruptiva,
assim, tem o condão de desafiar a posição de mercado ocupada por produtos e serviços
7 LESSIG, Lawrence. Remix: making art and commerce thrive in the hybrid economy. Londres: Bloomsbury,
2008. p. 228. 8 SUNDARARAJAN, Arun. The sharing economy: the end of employment and the rise of crowd-based capitalism
[livro eletrônico]. Cambridge: The MIT Press, 2016. 9 RANCHORDÁS, Sofia. Does sharing mean caring? Regulating innovation in the sharing economy. Minnesota
Journal of Law, Science and Technology. v. 16, n.1, pp. 1-63, 2015. 10 RANCHORDÁS, Op. cit.
11
tradicionais, representando risco iminente à sua substituição ou mesmo à substituição do
mercado como um todo11.
A economia colaborativa digital, quando disruptiva, torna disponíveis recursos
que anteriormente eram privados e inacessíveis, permitindo o desenvolvimento de
modelos de negócio em contínua evolução e transformação12. Dessa forma, torna-se viável
a alteração das bases de mercados como o de transporte individual de passageiros, de
serviços de hotelaria e inclusive de serviços bancários13.
As plataformas virtuais, assim, permitem que determinado indivíduo que
sempre ocupou a posição de consumidor passe a ser fornecedor, ao deixar seus bens ou
serviços à disposição de outros usuários. Trata-se do fenômeno do “pro-sumo”
(prosumption), processo no qual a interconexão entre produção e consumo é tão forte que
tais esferas não podem ser diferenciadas de forma inequívoca14. A noção de “pro-sumidor”
representa, portanto, forma híbrida de “produtor” e “consumidor”, categorias
rigidamente separadas por estudiosos das relações econômicas do pós-Revolução
Industrial como Marx15 e Baudrillard16.
Entretanto, na atualidade, é perfeitamente possível que os indivíduos realizem
incursões na seara da produção de bens e serviços, de maneira a participar e moldar os
produtos que desejam consumir, movendo-se tanto pelos incentivos econômicos
decorrentes das atividades em que participam quanto por incentivos não-monetários,
como melhores experiências de usuário17.
O fenômeno do “pro-sumidor” pode ser visualizado, por exemplo, no caso das
plataformas de vídeos na Internet, que possibilitam que qualquer usuário, ao mesmo
tempo em que acompanha vídeos produzidos por outros, organize seu canal para a
11 Ver, sobre a tecnologia disruptiva: BOWER, Joseph L.; CHRISTENSEN, Clayton M. Disruptive technologies:
catching the wave. Harvard Business Review. pp. 43-53, jan./fev. 1995. 12 LOBEL, Ory. The law of the platform. Legal studies research paper series. n. 16-212, mar. 2016. 13 O caso das fintechs, empresas que têm inovado os serviços bancários e em grande medida substituído os próprios
bancos, é extremamente interessante pelo fato de desafiar e simplificar modelo de negócios geralmente associado
a grandes capitais e à concentração de mercado. As plataformas peer-to-peer têm a capacidade de revolucionar,
por exemplo, contratos de empréstimo e de investimento, substituindo o papel de intermediação anteriormente
exercido pelos bancos. Mesmo a infraestrutura aplicável ao setor bancário vem sendo desafiada por modelos de
negócios disruptivos, fornecendo estrutura descentralizada que, mesmo sem a participação de bancos, é protegida
por protocolos de segurança avançados para a proteção das transações entre usuários. Ver, nesse sentido:
DOMBRET, Andreas R. Beyond technology – adequate regulation and oversight in the age of fintechs. Financial
stability review. n. 20, abr. 2016. 14 RITZER, George. Prosumer capitalism. The sociological quarterly. n. 56, pp. 413-445, 2015. pp. 413-414. 15 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. 16 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1975. 17 RITZER, George; JURGENSON, Nathan. Production, Consumption, Prosumption, Journal of Consumer
Culture, v. 10, n. 1, pp. 13-36, 2010. p. 14.
12
veiculação de conteúdo próprio, podendo inclusive auferir lucros provenientes de
anúncios publicitários.
Adicione-se, ainda, que a indistinção entre as funções de produção e consumo
no conceito de “pro-sumidor” não é de modo algum absoluta ou estanque, tendo em vista
que é comum que um dos aspectos prevaleça sobre o outro. Nesse sentido, cada um dos
usuários de determinada plataforma pode, ao mesmo tempo que seja considerado “pro-
sumidor”, assumir com maior ênfase algum dos dois papéis18.
Certo é que as tecnologias da informação, a Internet e o surgimento dos
negócios eletrônicos modificaram a forma de organização empresarial, de maneira que a
prestação de serviços e a produção de bens dispensam grandes estruturas compostas por
muitos empregados. Ademais, a redução dos custos de transação verificada nos mercados
de tecnologia ou em mercados a eles conexos permite que empresários possam contratar
praticamente tudo o que precisam sem a necessidade de criar uma organização própria
com trabalhadores subordinados. Dessa forma, verifica-se a substituição do modelo das
grandes sociedades por estruturas simples interligadas por contratos nos quais se
esclarecem meticulosamente os direitos e responsabilidades das partes, de maneira que
as empresas possam expandir e adaptar seus negócios de forma extremamente ágil19.
As startups advindas dessa onda de novos negócios possibilitados pela
tecnologia, em lugar de separar a administração do capital acionário com baixa
participação nas decisões da empresa, estão fundadas em contratos cuidadosamente
elaborados, de modo a evitar os óbices regulatórios e políticos com os quais as grandes
corporações estão acostumadas a lidar. O sucesso dessas pequenas empresas inovadoras
é em grande medida alavancado pela atuação dos “investidores anjo”20, cujos aportes de
capital possibilitam a potencialização das ideias que motivaram a criação das startups21.
18 RITZER, Op. cit., p. 415. 19 THE ECONOMIST. Reinventing the Company. The Economist. Disponível em:
<http://www.economist.com/news/leaders/21676767-entrepreneurs-are-redesigning-basic-building-block-
capitalism-reinventing-company> 20 O ordenamento brasileiro reconhece a figura do investidor-anjo no âmbito da Lei Complementar nº 155/2016,
que permite que microempresas e empresas de pequeno porte recebam aportes de capital que não integrarão o
capital da empresa, advindos de investimentos de pessoas físicas ou jurídicas denominadas “investidor-anjo”. O
investidor-anjo, segundo a lei, não é considerado sócio e tampouco responde por qualquer dívida da empresa,
sendo remunerado com base na distribuição anual dos resultados e podendo resgatar o capital aportado em no
mínimo dois anos. 21 THE ECONOMIST. Reinventing the deal. The Economist. Disponível em: <
http://www.economist.com/news/briefing/21676760-americas-startups-are-changing-what-it-means-own-
company-reinventing-deal>.
13
As características mencionadas suscitam inúmeras controvérsias, até porque
nem todos os negócios da chamada economia do compartilhamento se encaixam na
descrição acima exposta, inclusive para efeitos de serem considerados disruptivos. Em
muitos casos, as networks se limitam a aproximar, por meio de plataformas, prestadores
de serviços dos consumidores, sem causar qualquer mudança estrutural nem na
funcionalidade dos bens – que já estavam afetados à exploração econômica – nem na
qualidade dos agentes prestadores dos serviços – que já agiam como tal mesmo antes das
plataformas, ainda que sem contar com as facilidades a elas inerentes.
Tal reflexão é de fundamental importância, pois é bem mais fácil sustentar a
inaplicabilidade da regulação jurídica existente para os serviços tradicionais da
“economia real” em relação aos casos de disrupção do que em relação aos casos de
inovação, em que a melhoria ou avanço na produção dos bens ou serviços não vem
acompanhada do componente revolucionário que caracteriza a disrupção. Ocorre que,
como as networks podem agregar indivíduos com diferentes papéis, históricos e
pretensões, a identificação do que pode ser considerado disrupção pode ser um problema
de difícil solução22.
Uma coisa é certa: especialmente nos casos de disrupção, há dúvidas sensíveis
que decorrem dos papéis multifuncionais que os indivíduos assumem nas networks, como
a relativa à configuração de exercício de atividade empresarial, nos termos do artigo 966
do Código Civil. Afinal, quando indivíduos passam a exercer atividade lucrativa por sua
própria conta, de forma habitual, em que medida se pode dizer que se trata de
profissionalismo? Em que medida indivíduos que atuam na economia colaborativa não
estariam exercendo atividade empresarial? Em que medida deveriam ou não ser
considerados empresários? Para que fins?
Tais questões são essenciais para o desenvolvimento saudável da economia
colaborativa, o que exige a estruturação de um regime de responsabilidade para os
diversos agentes envolvidos, tanto para aquele que que explora a logística do negócio, por
meio do desenvolvimento e disponibilização da plataforma que interligará os usuários
22 Vale notar que, apesar de a economia do compartilhamento ter por premissa a prestação de serviços por usuários
a outros usuários, é fenômeno conhecido a entrada de agentes empresariais organizados nessas plataformas. Dessa
maneira, serviços de hospedagem como o AirBnB e plataformas de pequenos serviços como o TaskRabbits
apresentam operações de grande monta, com usuários dispondo de vários imóveis a serem locados ao mesmo
tempo ou verdadeiras estruturas empresariair destinadas a prestar serviços. Situação semelhante ocorreu com a
plataforma de vendas eBay, na qual os usuários de maior destaque não são indivíduos, mas grandes agentes
econômicos (os chamados power sellers). Ver, nesse sentido: ALDEN, William. The business tycoons of Airbnb.
The New York Times Magazine. 25 nov. 2014.
14
(prestador de serviço e consumidor), quanto para aquele que presta efetivamente o
serviço.
Em casos assim, por mais que o grande organizador da atividade seja o criador
da logística ou do aplicativo, resta saber em que medida os cidadãos que aderem à
plataforma para prestar serviços ou ofertar bens – e, dessa maneira, assumem igualmente
uma parcela da organização – não deveriam ser também considerados empresários.
Certamente que a economia colaborativa possibilita inúmeras formas de
cooperação entre os indivíduos, havendo várias delas que, em razão de não cumprirem o
requisito do profissionalismo, não poderiam ser consideradas empresariais. Porém,
havendo a habitualidade e o aspecto organizacional que caracterizam a atividade
empresarial, uma primeira conclusão é a de que devem ser assim consideradas23. Não
sendo empresários, resta saber se são trabalhadores autônomos ou trabalhadores
assalariados, para efeitos da incidência da legislação trabalhista.
Como as relações que se estabelecem entre os indivíduos na economia do
compartilhamento são múltiplas, diversificadas e extremamente dinâmicas, nem sempre
será fácil verificar o caráter empresarial ou não de determinadas interações, o que mostra
a importância de uma maior reflexão sobre o tema. A economia do compartilhamento,
tendo em vista sua natureza fluida, dinâmica e potencialmente disruptiva, tende a não se
amoldar perfeitamente às formas jurídicas elaboradas para regular serviços tradicionais.
Semelhantes indagações se colocam igualmente diante dos demais tipos de
negócios da internet, em relação aos quais se questiona em que medida a tecnologia
empregada realmente os torna disruptivos ou é apenas um meio de aprimorar um serviço
já existente.
Como já se adiantou, todas essas questões são de fundamental importância
pois, quanto mais se entender que os novos negócios e a economia do compartilhamento
se afastam da economia real, mais é difícil sustentar a aplicação da regulação existente
sobre esta aos novos modelos de negócio. Os desafios impostos à regulação jurídica, nesse
sentido, serão abordados na seção a seguir.
III. Os desafios dos novos negócios e da economia do compartilhamento à regulação
jurídica
23 Segundo Benkler (Op. cit., 2004, pp. 330-345), o compartilhamento pode ser visto como verdadeiro modo de
produção.
15
A tendência mundial pela regulação de serviços online, como ocorreu no
âmbito da Comissão Europeia com vistas a normatizar serviços de comunicação como
Skype e Whatsapp no que diz respeito à proteção de dados pessoais, evidencia a especial
preocupação que tais atividades merecem da normatização jurídica24.
Por mais que esses novos negócios ou a economia do compartilhamento
tenham como marca a inovação, nem sempre há um descolamento total em relação aos
serviços tradicionais. Pelo contrário, muitas vezes os “novos negócios” são substitutos
diretos – ou pelo menos apresentam alto grau de substituibilidade – dos serviços já
existentes, concorrendo diretamente com estes. É o caso do Skype e do WhatsApp em
relação aos serviços de telefonia, do Uber em relação aos serviços de táxi25 e do AirBnB
em relação aos serviços tradicionais de hotelaria.
Não obstante, uma característica comum dos novos players é negar a
proximidade com os serviços tradicionais, insistindo no caráter absolutamente inovador
de suas atividades, com o objetivo claro de afastar qualquer possibilidade de incidência
da regulação prevista para os primeiros. No caso dos serviços da economia do
compartilhamento, a estratégia é insistir no papel exclusivo de intermediação, o que
permite ao Airbnb, por exemplo, apresentar-se como intermediário entre imóveis ociosos
e possíveis interessados em alugá-los por um curto período, assim como à Uber defender
que apenas conecta passageiros a motoristas particulares independentes.
Trata-se do que alguns doutrinadores denominam por “empreendedorismo
evasivo”26, característica dos negócios que se distanciam (ou pretendem se distanciar) do
arcabouço institucional ao qual os demais agentes estão submetidos. Embora
empreendedores evasivos desafiem a regulação formal, não operam necessariamente na
ilicitude, mas muitas vezes em zonas de penumbra das instituições.
Por mais que o empreendedorismo evasivo não necessariamente tenha
conotação negativa – pelo contrário, pode inclusive ser interessante para a elaboração de
políticas públicas e de regulação que produzam ambiente empresarial fértil, de maneira a
24 Ver a Diretiva 2002/58/EC do Parlamento Europeu e Conselho, de 12 de Julho de 2002 e, mais recentemente, a
Proposta de Regulamento sobre a proteção de dados pessoais, de 10 de Janeiro de 2017. 25 Apesar de os serviços oferecidos por táxis e pela Uber serem essencialmente os mesmos e, portanto, concorrerem
diretamente, estudo do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
demonstrou que, na entrada da Uber no mercado, não ocorreu propriamente usurpação dos clientes do serviço
tradicional, mas a Uber gerou nova demanda, isto é, o serviço digital conquistou novos clientes, que não utilizavam
serviços de táxi. Ver: ESTEVES, Luiz Alberto. Rivalidade após entrada: o impacto imediato do aplicativo Uber
sobre as corridas de táxi porta-a-porta. Documentos de trabalho – CADE. n. 03, 2015. 26 ELERT, Niklas; HENREKSON, Magnus. Evasive entrepreneurship. Small Business Economics. v. 47, n. 1,
pp. 95-113, jun. 2016.
16
reformar as instituições já existentes27 –, operar à margem da regulação pode ser
prejudicial a diversos sujeitos afetados pela atividade em questão, especialmente no que
toca a situações de vulnerabilidade, como as tuteladas pelo Direito do Trabalho e pelo
Direito do Consumidor.
Apesar da delicadeza da questão, no plano teórico, a compreensão da
regulação dos novos negócios e da economia do compartilhamento tem se colocado
normalmente a partir de uma perspectiva simplista e maniqueísta, em que as alternativas
são extremas: ou se entende que os novos negócios não se diferenciam, na essência, dos
serviços já existentes, motivo pelo qual devem estar amplamente submetidos à regulação
destes, ou se entende que os novos negócios são totalmente diferentes e únicos, motivo
pelo qual devem ser imunes à regulação já existente28.
Já do ponto de vista dos consumidores, estes tendem a ver os novos negócios
com muito otimismo, em razão da gratuidade ou dos benefícios que normalmente são
apresentados, como praticidade, maior qualidade ou menor preço29. Nem sempre os
usuários percebem que não existe propriamente gratuidade, já que “pagam” com seus
dados pessoais e a possibilidade de serem facilmente acessíveis para fins de publicidade
e outros propósitos comerciais30, assim como nem sempre se atenta para o fato de que os
menores preços ou a melhor qualidade dos novos negócios podem decorrer de questões
circunstanciais, já que os seus prestadores precisam desafiar os agentes econômicos
tradicionais, a fim de conquistar mercado. Nada assegura que, deixando de existir
rivalidade, os entrantes não irão abusar da posição dominante obtida, aumentando os
preços, por exemplo.
Todas as controvérsias relacionadas aos novos negócios são ainda travadas em
ambiente no qual o lobby tanto dos agentes já atuantes no mercado – a favor de uma
equiparação linear dos novos negócios aos serviços da economia tradicional – como dos
27 Nesse sentido: ELERT; HENREKSON, Op. cit. 28 Ver: KATZ, Vanessa. Regulating the sharing economy. Berkeley Technology Law Journal. v. 30, n. 385, pp.
1067-1126; MILLER, Stephen. First principles for regulating the sharing economy. Harvard Journal on
Legislation. v. 53, pp. 147-202, 2016. 29 A respeito dos benefícios da economia compartilhada para o consumidor, ver: SUNDARARAJAN, Op. cit.;
LESSIG, Op. cit. No mesmo sentido, Benjaafar et al (Peer-to-peer product sharing: implications for
ownership, usage and social welfare in the sharing economy. Disponível em:
<https://papers.ssrn.com/sol3/papers2.cfm?abstract_id=2669823> Acesso em: 19 fev. 2017) pontuam que o
consumo colaborativo tem o potencial de aumentar o acesso ao passo que reduz investimentos em recursos e
infraestrutura, de sorte a aumentar o bem-estar dos consumidores – na medida em que podem passar a usar
determinado produto ou serviço que anteriormente não poderiam custear – e reduzir externalidades negativas. 30 Ver: FEDERAL TRADE COMMISSION. Big data: a tool for inclusion or exclusion? Understanding the issues.
Washington: FTC, 2016. p. 1.
17
entrantes – contra qualquer tipo de equiparação e, de certa forma, a favor da ausência de
regulação em relação aos novos negócios – tem um grande peso. Os novos agentes,
conforme pontuam Rauch e Schleicher31, procuram influenciar seus clientes leais e
interpelar políticos e reguladores, de modo a compensar seu baixo grau de organização
com investidas de marketing apoiadas na tecnologia, com vistas a seduzir e convencer o
poder público e a população sobre a qualidade dos novos negócios e a inadequação da
regulação sobre eles.
Observa-se, nesse contexto, a necessidade imperiosa de exame mais atento do
problema, que possa levar em consideração as semelhanças e diferenças entre os novos
negócios e os já existentes, bem como os impactos desta comparação para a questão da
regulação. Embora não haja respostas prontas para o problema, algumas preocupações
precisam ser salientadas desde já.
A primeira delas é que a correta compreensão dos novos negócios requer
provavelmente uma posição intermediária entre as alternativas extremas de que estes ou
são “mais do mesmo” ou são totalmente diferentes dos serviços tradicionais. Na verdade,
embora não se possa negar que os novos negócios têm suas diferenças e originalidades,
estes, mesmo quando disruptivos, muitas vezes se apresentam como substitutos dos
serviços tradicionais, exercendo relevante pressão competitiva sobre estes.
Analisando os novos negócios sob um ponto de vista funcional, fica difícil negar
que existem semelhanças e graus de substituibilidade suficientes entre os novos negócios
e os da “economia tradicional” para justificar a discussão sobre se a regulação prevista
para estes deveria alcançar também os primeiros. Por outro lado, existem também muitas
peculiaridades que podem justificar tratamentos diferenciados em determinadas searas.
Desse modo, a regulação dos novos negócios e das plataformas advindas da economia do
compartilhamento envolve ponderação importante sobre a necessidade de criação de
novas normas ou tão somente de revisitar normas já existentes32.
No caso específico da economia do compartilhamento, ainda há que se
considerar que, por mais que os novos mercados possam ser vistos como distintos, estão
muitas vezes conectados funcionalmente aos mercados do “mundo real”, motivo pelo qual
pode não fazer sentido, para efeitos regulatórios e concorrenciais, uma cisão absoluta
31 RAUCH, Daniel; SCHLEICHER, David. Like Uber, but for local government law: the future of local regulation
of the sharing economy. Ohio State Law Journal. v. 76, n. 4, pp. 2015. p. 928. 32 KATZ, Op. cit., p. 1087.
18
entre o serviço de intermediação e o serviço final da prestação de serviço, já que o
primeiro é totalmente dependente do segundo.
Dessa maneira, não obstante as especificidades, diferenças, eficiências e
inovações dos novos negócios e da economia do compartilhamento, tais aspectos não são
suficientes para justificar um total isolamento destes, do ponto de vista regulatório e
concorrencial, diante dos demais serviços regulados. Por mais que se trate de análise
necessariamente casuística, em alguns casos pode ser sustentável que, em face das
grandes semelhanças, a melhor solução possível seja uma regulação única para os novos
negócios e os serviços tradicionais33.
A segunda observação é que a regulação dos novos negócios e da economia do
compartilhamento precisa estar atenta às suas repercussões concorrenciais. Embora
possa ser defensável que os novos negócios não devam estar sujeitos à mesma regulação
dos serviços tradicionais, ainda mais quando esta é considerada inadequada e falha
mesmo em relação a estes, é inequívoco que tais deficiências regulatórias se
potencializam quando são aplicadas apenas aos serviços já existentes34.
Por essa razão, o argumento da inadequação da regulação dos serviços
tradicionais, como justificativa para manter os novos negócios imunes do ponto de vista
regulatório, pode gerar uma série de distorções concorrenciais, fazendo com que apenas
os agentes anteriormente estabelecidos estejam sujeitos aos custos e aos ônus da
regulação já existente, enquanto que os entrantes dos novos negócios estejam na situação
ideal de total liberdade e ausência de regulação35.
Tal aspecto mostra como a questão regulatória está intrinsecamente ligada à
questão concorrencial e que a discussão sobre a regulação dos novos negócios deve ser
pensada também à luz de novas alternativas para a regulação dos serviços tradicionais, a
33 Nesse sentido, ver: RANCHORDÁS, Op. cit., pp. 50-54. 34 O aplicativo Uber é o cerne da controvérsia contida em uma série procedimentos que tramitam perante o CADE,
podendo ser destacados o Inquérito Administrativo nº 08700.010960/2015-97, motivado por representação da
Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, segundo a qual o serviço traria desequilíbrio à
concorrência; o Procedimento Preparatório nº 08700.004530/2015-36, motivado por representação da Associação
Boa Vista de Táxi, em que se alega que a Uber, ao prescindir dos requisitos regulatórios impostos aos táxis, obtém
vantagem concorrencial indevida; e o Processo Administrativo nº 08700.006964/2015-71, ensejado por
representação dos Diretórios Centrais dos Estudantes da Universidade de Brasília e do Centro Universitário de
Brasília em face do Sindicato dos Permissionários de Táxi e Motoristas Auxiliares do Distrito Federal, alegando
que os taxistas teriam incorrido em abuso de direito de petição (sham litigation) em suas investidas para
obstaculizar o serviço Uber. 35 Ver: RAUCH; SCHLEICHER, Op. cit.
19
fim de que ambos os setores estejam sujeitos a regulação adequada e que não gere ônus
ou facilidades exageradas para nenhum dos segmentos.
Com efeito, a intervenção do Estado deve ser idônea para propiciar a
competição pelo mérito entre serviços com considerável grau de substituibilidade, não
parecendo adequada a opção apriorística de se manter a regulação dos serviços
tradicionais – muitas vezes antiquada e geradora de inúmeros custos e ineficiências – e
não se regular em absoluto os novos negócios. A regulação dos novos negócios requer,
portanto, harmonia e coerência com a regulação dos serviços tradicionais, podendo
inclusive exigir a reforma da regulação destes últimos.
A terceira observação é que a regulação deve estimular, na medida certa, a
inovação e os novos arranjos contratuais que se mostram como alternativas eficientes
para as novas demandas da realidade, reduzindo custos de transação e apresentando
diversos benefícios. Entretanto, alguns limites precisam ser observados36.
Tal questão está relacionada ao desafio de entender em que medida a
tecnologia muda a essência dos serviços ofertados ou, na verdade, simplesmente propicia
novos formatos e configurações do mesmo serviço, sem afetar substancialmente a
natureza ou a essência deste, muito menos para o fim de impossibilitar a aplicação da
regulação específica que sobre este se projeta. As preocupações sobre a necessidade de
regulação da economia do compartilhamento se agravam quando se trata de searas que
lidam com normas cogentes que visam assegurar interesses públicos indisponíveis e
tutelar vulneráveis, a exemplo do Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, Direito da
Concorrência, Direito Ambiental e Direito Tributário.
Em relação a tais áreas, não há dúvidas de que os novos negócios devem ser
regulados ou até mesmo sujeitos integralmente às regulações já existentes, até porque
estas normalmente se baseiam em conceitos econômicos de maior abrangência, a fim de
impor as responsabilidades respectivas ao efetivo titular do poder empresarial, qualquer
que seja a forma do exercício deste poder ou da atividade por ele desenvolvida. Trata-se,
na verdade, da implementação do princípio da prevalência da realidade sobre a forma, tão
caro a searas que lidam com interesses públicos indisponíveis, como se verá na seção
seguinte.
36 RANCHORDÁS, Op. cit; BENKLER, Op. cit., 2004; SUNDARARAJAN, Op. cit.
20
IV. A necessária prevalência da realidade sobre a forma: ajustes, cuidados e
calibrações
Como já se sinalizou, o limbo regulatório em que se situam os novos negócios,
aqui incluídos aqueles advindos da economia do compartilhamento, não pode servir de
pretexto para afastar a incidência de normas protetivas de interesses públicos
indisponíveis e destinadas à tutela de vulneráveis. Muito embora as plataformas digitais
apresentem inúmeras vantagens, seja do ponto de vista financeiro para prestadores de
serviços, seja pela implementação de mecanismos de feedback que empoderam
consumidores para que sua opinião de fato tenha consequências sobre a qualidade do
serviço prestado37, os players envolvidos nessas novas atividades econômicas não podem
se eximir de sua responsabilidade nessas searas sensíveis.
Se pode haver dúvida sobre a incidência de regulação setorial de transporte de
passageiros sobre serviços como o da plataforma Uber ou de normas sobre hotelaria sobre
o AirBnB, deve ser claro que a responsabilidade trabalhista, tributária, antitruste,
consumerista, entre outras searas de regulação dura, deverá incidir. O princípio da
primazia da realidade sobre a forma, regra nessas searas, permite que se configurem
relações jurídicas dessas modalidades ainda que a empresa negue sua existência, de
maneira a fixar sua responsabilidade se preenchidos os respectivos requisitos.
Um bom exemplo para tal análise é o serviço Uber. Por mais que a empresa
sustente que sua atividade se resume à intermediação entre consumidores e prestadores
autônomo de serviços de transporte de passageiros, já existem decisões judiciais que
reconheceram a existência de vínculo empregatício entre a empresa e seus motoristas.
Foi o que ocorreu no âmbito da Justiça do Trabalho do Reino Unido (Employment Tribunal
de Londres)38, que recentemente afirmou que os motoristas da Uber são empregados – e
não autônomos ou agentes empresariais – para efeitos das proteções legais
correspondentes. A ação foi proposta por motoristas da Uber contra a controladora
sediada na Holanda e também contra as duas controladas que operam na Inglaterra, a
Uber London Ltd e a Uber Brittania Ltd39.
37 Ver: KOOPMAN, Christopher et al. The sharing economy and consumer protection regulation: the case for
policy exchange. The Journal of Business, Entrepreneurship & the Law. v. 8, n. 2, pp. 529-545, 2015. 38 REINO UNIDO. Employment Tribunals. Aslam and Farrar v. Uber. Caso nº 2202550/2015. Data de julgamento:
28.10.2016. 39 Para chegar à conclusão pela existência do vínculo de trabalho (dependent work relationship), o Tribunal,
preliminarmente, analisou com cuidado o negócio da Uber, diante do seu argumento de que apenas presta serviços
de tecnologia. Já no início de sua fundamentação, o Tribunal adverte que qualquer organização (i) que gerencie
uma empresa em cujo núcleo estejacoração está a função de transportar pessoas em veículos motorizados, ; (ii)
21
Um ponto importante para desconstruir a tese de que a Uber seria mero
intermediador é que os motoristas não podem negociar com os passageiros, exceto para
reduzir a tarifa determinada pela Uber. Dessa maneira, o contrato entre o motorista e o
passageiro seria, na verdade, pura ficção40. Todos esses fatos foram considerados para
mostrar que, não havendo contrato entre o motorista e o passageiro, existe contrato entre
o motorista e a Uber, por meio do qual o primeiro, mediante compensação, torna-se
disponível para transportar passageiros da Uber. Dessa maneira, entendeu o Tribunal que,
na medida em que o contrato formal não correspondia à realidade, já que o verdadeiro
acordo entre as partes está localizado no campo das relações de trabalho dependente
(dependent work relationship), o ajuste firmado entre as partes poderia ser
desconsiderado.
Caso semelhante ocorreu na Justiça do Trabalho brasileira quando a 33ª Vara
do Trabalho de Belo Horizonte41 também reconheceu vínculo empregatício entre um
motorista e a empresa Uber. Segundo a decisão, a evolução tecnológica desempenha
importante papel na evolução das relações laborais, sendo necessário perceber que, ao
longo de todo esse processo de desenvolvimento tecnológico, manteve-se constante a
extração de valor da força de trabalho. Com isso, entendeu o Juízo que estavam presentes
os elementos configuradores da relação de emprego (pessoalidade, onerosidade, não
eventualidade e subordinação), na medida em que a empresa exercia diversas formas de
controle sobre a jornada do motorista, o qual não poderia ser considerado autônomo.
que opera opere em parte por meio de empresa que procura se desviar das responsabilidades reguladas de um
transportador privado - ou seja, o PHV -– (Private Hire Vehicle – operator); –- mas (iii) exige que motoristas e
passageiros concordem, contratualmente (“as a matter of contract”, ), que ela não provê presta o serviço de
transporte; e (iv) recorre, em seus documentos e cláusulas contratuais, a ficções, linguagem retorcida (twisted
language) e novas terminologias (brand new terminology) merece certo grau de ceticismo. 40 Dentre os inúmeros aspectos explorados pelo Tribunal para justificar a grande ingerência da Uber sobre os seus
motoristas e a consequente existência da relação de trabalho, encontram-se os seguintes: (i) o fato de a Uber
entrevistar e recrutar motoristas; (ii) o fato de a Uber controlar as informações essenciais (especialmente o
sobrenome do passageiro, informações de contato e destinação pretendida), excluindo o motorista destas
informações; (iii) o fato de a Uber exigir que motoristas aceitem viagens e/ou não cancelem viagens, assegurando
a eficácia desta exigência por meio da desconexão dos motoristas que violarem tais obrigações; (iv) o fato de a
Uber determinar a rota padrão; (v) o fato de a Uber fixar a tarifa e o motorista não poder negociar um valor maior
com o passageiro; (vi) o fato de a Uber impor inúmeras condições aos motoristas (como escolha limitada de
veículos aceitáveis), assim como instruir motoristas sobre como fazer o seu trabalho e, de diversas maneiras,
controlá-los na execução dos seus deveres; (vii) o fato de a Uber sujeitar motoristas, por meio do sistema de rating,
a determinados parâmetros que ensejarão procedimentos gerenciais ou disciplinares; (viii) o fato de a Uber
determinar questões sobre descontos, muitas vezes sem sequer envolver o motorista cuja remuneração será afetada;
(ix) o fato de a Uber aceitar o risco da perda; (x) o fato de a Uber deter as queixas dos motoristas e dos passageiros;
e (xi) o fato de a Uber se reservar ao poder de alterar os termos contratuais em relação aos motoristas
unilateralmente. 41 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Processo nº 0011359-34.2016.5.03.0112, Juiz Marcio Toledo
Gonçalves, Data de Julgamento: 13.02.2017.
22
A descrição dos pontos fundamentais da decisão do Reino Unido e da decisão
da Justiça do Trabalho de Belo Horizonte mostra a tentativa dos julgadores de, em lugar
de se renderem às formas contratuais e à linguagem dos instrumentos firmados pela
empresa e pelos motoristas, buscar a essência do negócio desenvolvido pela Uber e das
relações travadas com os prestadores de serviços. Por essa razão, os casos podem ser
vistos como exemplos de aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma,
tão caro para a regulação jurídica da economia42.
Não se está, com tal afirmação, negando a complexidade da atividade
desenvolvida pela Uber nem os inúmeros aspectos de inovação e eficiência que estão por
trás do referido modelo de negócios. Tampouco se procura afirmar a plena concordância
com todos os fundamentos expostos pelas decisões. As duas decisões foram aqui
mencionadas em razão da sua relevância para a compreensão da repercussão jurídica dos
serviços advindos da economia do compartilhamento43.
Por outro lado, não se pode negar que diversas outras preocupações decorrem
de tal modelo de negócios, como as concorrenciais. Afinal, se os motoristas não são
empregados da Uber, mas transportadores autônomos, tem-se que o serviço envolve a
coordenação de agentes econômicos independentes, o que pode, pelo menos em tese,
consistir em infração concorrencial.
Nesse sentido, é necessário novamente esclarecer que tal debate não se
direciona exclusivamente à Uber, mas também a diversos outros negócios que,
pertencendo ou não à chamada economia colaborativa, envolvem as denominadas
42 A situação da Uber é ainda agravada em razão da assimetria de informações entre a empresa e os motoristas. O
algoritmo que dá estrutura à plataforma é também fator fundamental da estrutura de poder que se ergue sobre os
empregados. Nesse sentido, a plataforma não serve para superar estruturas de poder, mas é em si mesma uma nova
forma de moldar essas relações. Nesse sentido, ver: ROSENBLAT, Alex; STARK, Luke. Algorithmic labor and
information asymmetries: a case study of Uber drivers. International Journal of Communication. v. 10, pp.
3758-3784, 2016. 43 Vale notar que o parâmetro da flexibilidade de horário é característica que desafia o conceito tradicional de
subordinação, na medida em que os trabalhadores gozam de certa autonomia com relação ao empregador, que, em
lugar de exercer controle direto sobre suas atividades, o fazem de outras maneira, como pelo controle de
produtividade ou de metas específicas (ROSENFIELD, Cinara; ALVES, Daniela Alves. Autonomia e trabalho
informacional: o teletrabalho. Dados. v. 54, n. 1, 2011). Da mesma maneira, a noção de subordinação estrutural
acolhida pelo julgado de Belo Horizonte é extremamente fluida e abrangente, motivo pelo qual deve ser vista com
certa cautela. É o que se verifica da definição fornecida por Mauricio Godinho Delgado (Direitos fundamentais na
relação de trabalho. Revista de Direitos e Garantais Fundamentais. n. 2, pp. 11-39, 2007. p. 37), para quem
“Estrutural é, pois, a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus
serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua
dinâmica de organização e funcionamento. A idéia de subordinação estrutural supera as dificuldades de
enquadramento de situações fáticas que o conceito clássico de subordinação tem demonstrado, dificuldades que se
exacerbaram em face, especialmente, do fenômeno contemporâneo da terceirização trabalhista. Nessa medida, ela
viabiliza não apenas alargar o campo de incidência do Direito do Trabalho, como também conferir resposta
normativa eficaz a alguns de seus mais recentes instrumentos desestabilizadores – em especial, a terceirização”.
23
plataformas de dois lados. Tais plataformas acabam possibilitando não apenas a
intermediação entre os dois lados do mercado, mas também, em alguns casos, a
coordenação em ambos os lados ou pelo menos em um deles44.
Tendo em vista que a empresa Uber não se limita a colocar em contato
motoristas e consumidores – os dois lados da plataforma, mas também determina as
condições da prestação de serviço e o preço, a plataforma neutraliza a concorrência entre
os motoristas, apesar de considerá-los transportadores autônomos. Por outro lado, é esta
uniformização do serviço e do preço que possibilita que a atividade seja vista pelo
consumidor como única, estabilizando o padrão de qualidade da plataforma e gerando as
eficiências que decorrem da referida coordenação45.
Veja-se, portanto, que a uniformização e a coordenação entre os motoristas da
Uber é pressuposto fundamental do seu modelo de negócios, embora nem sempre tal
aspecto seja examinado com a devida atenção. Afinal, do ponto de vista concorrencial,
todas as atenções têm normalmente se voltado para as repercussões da competição entre
o serviço Uber e os táxis, sem maior cuidado na análise das relações entre os diversos
transportadores autônomos que passam a estar sob o poder de coordenação – quando
não do poder hierárquico – da plataforma46.
Com efeito, por mais que tal coordenação possa ser geradora de eficiências, é
inequívoco que a neutralização das condições de rivalidade entre os diversos
transportadores autônomos que aderem à plataforma não pode ser vista como algo
desprovido de repercussões concorrenciais, ainda mais inexistindo uma regulação
específica sobre tais mercados47.
44 A respeito de plataformas de dois lados, ver: ROCHET, Jean-Charles; TIROLE, Jean. Platform competition in
two-sided markets. Journal of the European Economic Association. v. 4, n. 1, pp. 990-1029, jun. 2003. 45 Ver: NOWAG, Julian. The UBER-Cartel? UBER between labour and competition law. Lund Student Law
Review. v. 3, 2016. 46 Nesse sentido: LOBEL, Op. cit. Poder-se-ia questionar, é certo, que os motoristas não estariam concorrendo
entre si na inexistência da plataforma, pois não teriam como chegar ao mercado consumidor. Entretanto, isso não
dispensa a análise de legalidade desse tipo de arranjo, ainda mais porque a intermediação realizada pela plataforma
poderia ocorrer de outras maneiras, muitas delas menos restritivas da livre concorrência, na medida em que
poderiam assegurar maior autonomia aos motoristas, especialmente no que diz respeito à precificação. 47 Evidentemente que o problema não existiria se os transportadores da Uber fossem empregados, já que a
coordenação dentro da empresa, por meio do poder hierárquico que o empresário exerce sobre os seus empregados,
não apenas é considerada normal, como é o aspecto que caracteriza a própria empresa (COASE, Ronald. The
nature of the firm. Economica. v. 4, n. 16, pp. 386-405, nov. 1937.). Logo, a prevalecer o entendimento do Tribunal
do Reino Unido (REINO UNIDO. Employment Tribunals. Aslam and Farrar v. Uber. Caso nº 2202550/2015. Data
de julgamento: 28.10.2016), no sentido de que há relação de trabalho dependente entre os motoristas e a Uber, a
preocupação concorrencial ora exposta se desfaz. Da mesma maneira, se afastaria de plano a conduta
anticoncorrencial se se tratasse de integração entre empresários, ou seja, de um ato de concentração econômica.
Neste caso, a integração até poderia estar sujeita ao controle prévio de estruturas para o fim de se sopesar os seus
efeitos anticoncorrenciais, mas não haveria problemas na coordenação dos agentes em si, já que esta é
24
Tais considerações sobre o Direito do Trabalho e o Direito Concorrencial
servem para demonstrar, em primeiro lugar, que os novos negócios não podem ser
imunes a determinadas searas protetivas, ainda que possam procurar albergar-se na falta
de clareza sobre a regulação setorial aplicável.
Adicione-se, ainda, que a emissão de juízos apriorísticos sobre a repercussão
das relações travadas entre as plataformas e os sujeitos a ela conectados (seja para
consumo, seja para prestação de serviços) pode não ser adequada para o correto
endereçamento das controvérsias daí advindas, sendo necessária análise acurada dos
casos concretos.
Além disso, especialmente no que diz respeito à seara antitruste, importa
notar que as plataformas de dois lados e a economia do compartilhamento exigem uma
nova reflexão sobre as funções e utilidades da coordenação nos mercados, o que
certamente traz impactos importantes para o Direito da Concorrência, exigindo
adaptações de suas premissas e metodologias.
V. Conclusões
Os novos negócios e a economia do compartilhamento trouxeram benefícios
nunca antes vistos, congregando interesses econômicos e sociais de maneira a gerar
grandes mudanças sobre as formas de consumo e produção. Contudo, é fundamental
compreender a dinâmica de tais serviços para que se aplique ou elabore modelo de
regulação jurídica adequado às necessidades deles advindas.
Como se procurou demonstrar ao longo do estudo, especialmente nos casos de
inovação, deve ser feito um esforço para se aplicar a regulação já existente para a
economia real, diante do princípio da primazia da realidade sobre a forma. Mesmo nos
casos de disrupção, principalmente nas áreas de regulação “dura”, é imperativo que se
aplique, ainda que por meio de uma interpretação funcional, os comandos já existentes
para a proteção de vulneráveis e interesses difusos da maior importância.
Por outro lado, qualquer tentativa de aplicação ou adaptação da regulação
existente para os novos negócios e a economia do compartilhamento precisa ser
extremamente cuidadosa. Muito embora já existam decisões pelas quais plataformas
precisamente o que justifica a concentração (FRAZÃO, Ana. Dilema antitruste: o Uber forma um cartel de
motoristas? Por definir preço de corrida, aplicativo também influenciaria adoção de conduta uniforme?. Jota. 12
dez. 2016).
25
virtuais foram responsabilizadas por encargos trabalhistas, tais situações não podem ser
vistas como triviais. A inovação trazida por tais serviços, sem dúvida, não é capaz de
afastar a incidência de normas protetivas de vulneráveis ou de interesses indisponíveis,
mas, da mesma forma que as trocas econômicas têm sido ressignificadas em razão das
peculiaridades dos serviços oriundos da economia do compartilhamento, é essencial que
se verifique a adequação dos procedimentos e metodologias que esses ramos do direito
procuram aplicar a tais casos.
Por fim, impõe-se que a análise jurídica não se detenha exclusivamente a suas
categorias antigas – e talvez até antiquadas –, mas procure compreender esses novos
fenômenos sob uma perspectiva funcional, para garantir simultaneamente a eficiência
que deles decorre e a proteção de todos os interesses envolvidos, garantindo, ao final, que
a inovação e a disrupção possam sempre ocorrer em cenário no qual haja o equilíbrio
entre poder empresarial e responsabilidade, sempre em observância ao princípio da
primazia da realidade sobre a forma.
Referências
ALDEN, William. The business tycoons of Airbnb. The New York Times Magazine. 25 nov. 2014. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1975. BENJAAFAR, Saif et al. Peer-to-peer product sharing: implications for ownership, usage and social welfare in the sharing economy. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers2.cfm?abstract_id=2669823> Acesso em: 19 fev. 2017. BENKLER, Yochai. The Wealth of networks. How social production transforms markets and freedom. EUA: Yale University Press, 2006. _______. Sharing nicely: on shareable goods and the emergence of sharing as a modality of economic production. The Yale Law Journal. v. 114, pp. 273-358, 2004. p. 278. BOWER, Joseph L.; CHRISTENSEN, Clayton M. Disruptive technologies: catching the wave. Harvard Business Review. pp. 43-53, jan./fev. 1995. CAYSEELE, Patrick. Hub-and-spoke Collusion: Some Nagging Questions Raised by Economists. Journal of European Competition Law & Practice. v. 5, n. 3, 2014. COASE, Ronald. The nature of the firm. Economica. v. 4, n. 16, pp. 386-405, nov. 1937. DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista de Direitos e Garantais Fundamentais. n. 2, pp. 11-39, 2007. DOMBRET, Andreas R. Beyond technology – adequate regulation and oversight in the age of fintechs. Financial stability review. n. 20, abr. 2016. ELERT, Niklas; HENREKSON, Magnus. Evasive entrepreneurship. Small Business Economics. v. 47, n. 1, pp. 95-113, jun. 2016. ESTEVES, Luiz Alberto. Rivalidade após entrada: o impacto imediato do aplicativo Uber sobre as corridas de táxi porta-a-porta. Documentos de trabalho – CADE. n. 03, 2015.
26
FEDERAL TRADE COMMISSION. Big data: a tool for inclusion or exclusion? Understanding the issues. Washington: FTC, 2016. FRAZÃO, Ana. Dilema antitruste: o Uber forma um cartel de motoristas? Por definir preço de corrida, aplicativo também influenciaria adoção de conduta uniforme?. Jota. 12 dez. 2016. KATZ, Vanessa. Regulating the sharing economy. Berkeley Technology Law Journal. v. 30, n. 385, pp. 1067-1126. KOOPMAN, Christopher et al. The sharing economy and consumer protection regulation: the case for policy exchange. The Journal of Business, Entrepreneurship & the Law. v. 8, n. 2, pp. 529-545, 2015. LESSIG, Lawrence. Remix: making art and commerce thrive in the hybrid economy. Londres: Bloomsbury, 2008. p. 228. LOBEL, Ory. The law of the platform. Legal studies research paper series. n. 16-212, mar. 2016. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. MILLER, Stephen. First principles for regulating the sharing economy. Harvard Journal on Legislation. v. 53, pp. 147-202, 2016. NOWAG, Julian. The UBER-Cartel? UBER between labour and competition law. Lund Student Law Review. v. 3, 2016. RANCHORDÁS, Sofia. Does sharing mean caring? Regulating innovation in the sharing economy. Minnesota Journal of Law, Science and Technology. v. 16, n.1, pp. 1-63, 2015. RAUCH, Daniel; SCHLEICHER, David. Like Uber, but for local government law: the future of local regulation of the sharing economy. Ohio State Law Journal. v. 76, n. 4, pp. 2015. p. 928. RITZER, George. Prosumer capitalism. The sociological quarterly. n. 56, pp. 413-445, 2015. pp. 413-414. RITZER, George; JURGENSON, Nathan. Production, Consumption, Prosumption, Journal of Consumer Culture, v. 10, n. 1, pp. 13-36, 2010. p. 14. ROCHET, Jean-Charles; TIROLE, Jean. Platform competition in two-sided markets. Journal of the European Economic Association. v. 4, n. 1, pp. 990-1029, jun. 2003. ROGERS, Brishen. The social costs of Uber. The University of Chicago Law Review Dialogue. v. 82, pp. 85-102, 2015. ROSENBLAT, Alex; STARK, Luke. Algorithmic labor and information asymmetries: a case study of Uber drivers. International Journal of Communication. v. 10, pp. 3758-3784, 2016. ROSENFIELD, Cinara; ALVES, Daniela Alves. Autonomia e trabalho informacional: o teletrabalho. Dados. v. 54, n. 1, 2011. SUNDARARAJAN, Arun. The sharing economy: the end of employment and the rise of crowd-based capitalism [livro eletrônico]. Cambridge: The MIT Press, 2016. THE ECONOMIST. Eroding exceptionalism: Internet firms’ legal immunity is under threat. The Economist. Disponível em: < http://www.economist.com/news/business/21716661-platforms-have-benefited-greatly-special-legal-and-regulatory-treatment-internet-firms> Acesso em: 6 mar. 2017. THE ECONOMIST. Reinventing the Company. The Economist. Disponível em: <http://www.economist.com/news/leaders/21676767-entrepreneurs-are-redesigning-basic-building-block-capitalism-reinventing-company>. Acesso em: 2 mar. 2017.
27
THE ECONOMIST. Reinventing the deal. The Economist. Disponível em: < http://www.economist.com/news/briefing/21676760-americas-startups-are-changing-what-it-means-own-company-reinventing-deal>. Acesso em: 2 mar. 2017. WILLIAMSON, Oliver E. Transaction cost economics: an introduction. Economics discussion papers. n. 3, mar. 2007.
Sobre a autora
Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-
Conselheira do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-
Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em
Direito pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Econômico e
Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito e Estado pela
Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Líder do GECEM – Grupo de Estudos
Constituição, Empresa e Mercado.
28
RESPEITO PELA DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE
Albie Sachs
Eu preparei uma intervenção sobre a internet, com muita dificuldade, eu não estou
realmente bem integrado neste assunto. Mas na última hora me foi oferecido uma
oportunidade de falar sobre um tema que está mais perto da minha condição e eu vou
começar com isso em inglês. Dia 08 de abril de 1988 foi dia da mulher moçambicana, um
feriado público, eu estava exilado, eu estava indo, de repente para a praia, de repente veio
“Bum”, simplesmente uma escuridão. Eu não sei o que está acontecendo, mas eu sei que é
algo terrível e depois de algum tempo eu ouvi uma voz me dizendo em português: Albie,
você está no hospital central de Maputo, teu braço foi amputado, ele está em condições
lamentáveis, você tem que enfrentar o futuro com coragem e eu respondi: o que
aconteceu? E uma outra voz, a voz de uma mulher disse: foi um carro-bomba. Isso me fez
desmaiar, mas desmaiar de alegria, porque eu sabia que eu estava seguro. Eu não tinha
sido sequestrado, não me levaram para o outro lado da fronteira para ser preso na África
do Sul, e naquele momento, aquele era o momento que todo prisioneiro luta, esse
momento de nós sermos bravos, de sermos, perdão corajosos, eles tentaram me matar e
eles falharam, então o pior momento da minha vida foi o melhor momento da minha vida.
Eu me senti muito feliz e estar aqui me lembra que a língua de comunicação, a língua do
pensamento naquela época foi o português e eu tenho uma convicção de que eu melhorei
e se eu melhorei o meu país, a África do Sul, também iria melhorar, e foi isso que
aconteceu. A história que eu vou contar para vocês hoje começa no meu escritório, na
Corte de Constitucional, o telefone tocou e a pessoa falou: Oi. Tinha um homem, que quer
te ver, o nome dele é Henry, ele tem um horário com você, posso manda-lo entrar? Eu
falei: sim, eu vou encontra-lo no portão de segurança e o meu coração começou a bater
muito forte, eu estava andando em direção à segurança e eu lembro do Henry, ele era
oficial na Inteligência Militar da África do Sul que tinha organizado a bomba a ser colocada
no meu carro e agora ele estava participando da Comissão de Reconciliação na África do
Sul e me perguntaram se eu queria vê-lo, e eu falei que sim. Eu abri a porta e lá estava ele,
alto e magro como eu, mas ele era mais baixo, mais novo e eu vi em seus olhos a mensagem
de que ele sabia que eu era o homem, que ele tentou me matar, que ele tentou matar, e eu
29
vi também, ele viu nos meus olhos que eu sabia que ele tentou me matar, nós nunca
tínhamos nos encontrado anteriormente, mas ele estava daquele lado e eu estava do lado
de cá. Ele andou até o meu escritório marchando como um soldado e eu utilizei a minha
melhor forma de andar para tentar ficar calmo. Nós nos sentamos, nós falamos, falamos,
falamos, falamos por muito tempo e ele me falou com orgulho que ele era um bom aluno
e também com orgulho o quanto ele tinha avançado dentro do exército e ele explicou
sobre a bomba e por que ele colocou a bomba e eu falei para ele: bom agora eu tenho que
continuar o meu trabalho, eu me levantei, normalmente, geralmente, quando eu falo
“Tchau” para alguém, normalmente, eu aperto a mão da pessoa, mas nesse caso eu não
posso apertar a sua mão, mas depois que você passar por esta comissão talvez isso
aconteça. E eu lembro que quando eu estava andando de volta ele não estava marchando
mais como um soldado, ele estava apenas andando, de forma devagar, um pouco
desorientado e eu falei adeus. E o que era essa Comissão da Verdade da qual ele iria
participar? Suas origens não são muito bem conhecidas, mas eu acredito que são muito
interessantes. É uma reunião dos executivos nacionais do Congresso Nacional Africano,
em novembro de 2003 apenas alguns meses antes da nossa primeira, das primeiras
eleições democráticas, uma reunião muito apaixonada e a questão que nós estávamos
discutindo era o que fazer em relação aos relatórios de uma comissão que nós tínhamos
estabelecido que afirmou que durante os esforços de liberdade as nossas pessoas tinham
utilizado tortura contra agentes inimigos que haviam sido capturados. As recomendações
foram de que nós deveríamos tomar atitudes contra os membros da INC, e agora nós
estávamos discutindo o que fazer e alguns de nós nos levantamos e falamos: o relatório
está aí agora nós temos que tomar atitudes. Outros não, falaram não, isso é um mal
entendido. Nós temos que ver que as circunstâncias são diferentes, as pessoas da
segurança e os alunos que vem aqui lutar por liberdade eles não sabem nada sobre
métodos de interrogação. Um dos meus colegas se levantou e falou: eu ouvi algo muito
interessante hoje é algo chamado a tortura do Apartheid e uma coisa chamada a tortura
da INC, aparentemente a INC pode fazer isso, mas o regime não pode fazer isso. É um
debate muito intenso e uma das questões que vocês tem que pensar é uma questão moral:
quem é você? Quais são as suas principais crenças? O que você defende? E então Alguém
disse: tem alguma coisa muito estranha na nossa discussão, nós somos muito corretos
quando estamos debatendo as nossas falhas, mas em relação à violência extrema que o
Estado colocou sobre nós envolvendo milhares de pessoas, cadê os limites nesse
30
momento? E aí meu colega levantou e falou: o que nós precisamos é uma Comissão da
Verdade que vai olhar todas as violações dos direitos humanos que foram cometidas
durante essa luta pela Liberdade, então paradoxalmente nossa Comissão Verdade veio de
uma necessidade da ANC chegar a democracia com o coração aberto e com mãos limpas.
Não com uma visão para expor os crimes do regime, mas para lidar com as nossas próprias
falhas, mas ao mesmo tempo com as terríveis falhas do regime antigo. Depois de algum
tempo eu estava em Londres, estava falando com o Instituto internacional católico e de
relacionamentos e que nos apoiou muito durante a nossa Constituição. Eles me colocaram
em um hotel bem pequeno em uma área bastante pobre e aquele lugar me lembrava das
minhas raízes a medida que nós estávamos tendo melhores negociações as minhas
acomodações também começaram a ficar melhores. Naquela época nós não tínhamos uma
máquina de fax no hotel e eu ia dormir, de repente alguém bateu na porta e falou desculpa
incomodá-lo, mas nós recebemos um fax muito urgente da África do Sul. Vocês lembram
do fax? Daqueles telex que a gente recebia antigamente? A gente tinha que ler de uma
forma e era muito difícil e nesse fax dizia que tinha uma crise, os generais de segurança
estavam dizendo que o presidente tinha oferecido anistia a eles, mas não tinha nada no
texto constitucional que iria concedê-los essa anistia. Eles diziam que ia proteger o
processo democrático e que nós sabíamos de tentativas que haviam sido feitas para
bombardear as primeiras eleições causando grandes números de mortos, nós vamos
arriscar as nossas vidas para que isso não aconteça, mas isso está nos pedindo, está
demandando muito de nós para que nós consigamos implementar a democracia e os
nossos chefes políticos não vão para a cadeia, nós não estamos ameaçando fazer um golpe,
nós estamos simplesmente dizendo que vamos renunciar ir para outro lugar e vocês vão
precisar encontrar outras pessoas para lidar com a questão de segurança. Tinha uma
página no fax que parecia ser bastante interessante parecia falar sobre empatia e eu falei,
quando eu vi esse papel eu percebi que nós não podemos dar uma anistia geral depois de
todas as violações, das torturas, dos desaparecimentos, uma anistia simples e ampla seria
algo muito cruel, mas nós podemos usar uma Comissão para fazer com que os indivíduos
possam reconhecer o que eles fizeram e se eles falarem a verdade e reconhecerem o que
fizeram eles podem sim conseguir essa anistia. E isso então foi escrito na nossa
Constituição e a nossa Comissão da Verdade é a única que combinou anistia com
declarações individuais na Comissão da Verdade. Tem uma qualidade muito importante,
nós na verdade tínhamos três agrupamentos na Comissão da Verdade. Um era apenas
31
para deixar as pessoas normais falarem, falarem sobre suas dores, esse é o oposto do
direito, o esquecimento, esse aqui é o direito de ser lembrados e nós tínhamos um oficial
que estava liderando essa área da Comissão. Ele não estava indo para lindos lugares. Não,
ele estava indo para dentro da comunidade e começando com essas histórias das pessoas
muitas delas começaram a chorar quando contavam suas histórias e elas simplesmente
eram abraçadas. Elas podiam falar em suas próprias línguas e os intérpretes eram muito
importantes nesse momento, milhares de pessoas deram seu testemunho em todo o País.
Milhares de outras pessoas também escreveram suas histórias que foram registradas. O
segundo grupo tinha a função de conceder a anistia. Tinham dois juízes e duas pessoas
ordinárias, basicamente se você falasse a verdade sobre o que tinha acontecido, se você
estabelecesse, falasse o que você fez foi durante o conflito político e houvesse uma
proporcionalidade entre os seus feitos e o que aconteceu você poderia sim receber anistia.
Muitas pessoas solicitaram essa anistia, muitos, a maioria eram ladrões que diziam que
estavam roubando porque eram pobres, porque eles eram negros e falaram dos diferentes
contextos nos quais eles estavam. Em dois casos muito importantes a anistia foi recusada
porque as pessoas envolvidas não falaram a verdade de uma forma completa e ficou muito
claro, mas em muitos outros casos a anistia foi concedida e ela foi concedida ao Henry.
Esse foi o segundo grupo. O terceiro grupo tinha a ver com as reparações e foi o grupo
menos bem sucedido. Essa reparação envolvia pagamentos, mas nós sabemos que a
reparação real tem que vir do coração, tem que ser algo significativo. Nós temos que ter
esse testamento bastante significativo eu acredito que nós poderíamos ter feito muito
melhor nesse grupo. Já faz 20 anos desde essa TLC, dessa Comissão, muitos livros estão
sendo escritos em relação a isso, existem também peças e também músicas sendo escritas
falando sobre isso e muitos dos testemunhos que estão sendo utilizados. Também existem
músicas revolucionárias que estão falando sobre isso, mas isso é ainda algo muito
polêmico no nosso País. Como eu me sinto com isso? O que fez a nossa Comissão da
Verdade tão poderosa é que ela foi baseada no princípio a qual eu tinha me oposto. Eu
acreditava que se as pessoas tinham feito coisas terríveis e se elas fossem obrigadas a
testemunhar em público elas nunca fariam isso, mas depois da experiência que nós
tivemos que foi bastante valiosa eu sugeri que nós tivéssemos entrevistas privadas. A
sociedade civil não gostava dessa ideia de anistia, elas pediam que fosse algo em público,
mas felizmente para o nosso processo as pessoas não me ouviram elas ouviram a
sociedade civil porque o que aconteceu foi que todo mundo lembra desses testemunhos.
32
Ninguém lê os documentos, ninguém lê esses documentos, mas todo mundo lembra das
vozes, das lágrimas, das lamentações, das linguagens, das polícias falando do que eles
tinham feito, isso foi que as nossas pessoas estavam dizendo, nós vimos o que nosso povo
fez com o nosso povo e isso chegou, alcançou as diferentes casas. Nós ouvimos isso na
televisão, no rádio, nós não estávamos apenas capturando uma parte da nossa história,
isso aí era uma parte da história, a Comissão da Verdade era uma parte da história e
também isso me fez pensar por que tanta verdade apareceu nessa Comissão da Verdade?
Quando poucas verdades parecem, aparecem nos nossos tribunais. Isso foi algo bastante
interessante. Muitos sul-americanos acreditam que a justiça não foi feita da melhor forma.
Algumas pessoas acreditavam, por exemplo, naquela história do Oscar Pistorius achando
que era verdade, outros achavam que não era verdade, mas nós sabemos que isso muitas
vezes acontece, nós temos um processo de justiça que ele não termina com a justiça final,
a justiça que nós acreditamos que é a devida. Eu inventei quatro categorias de verdades
para me ajudar a entender isso. O que eu chamo de observação microscópica da verdade,
você define um terreno, você olha as variáveis, você mede essas variáveis, elas mudam
com o tempo você vai marca-las e você vai chegar à conclusões a partir disso. Pode ser
ciência, pode ser um caso judicial onde os documentos definem quais são as questões,
quais são os desafios e depois decisões são tomadas. Depois também você tem a verdade
lógica, isso não depende da observação isso depende da lógica. Por alguma razão, o
exemplo que me vem à mente é quando o meu livro, o manuscrito do meu livro, falando
sobre a minha luta, eu escrevi ele em Nova Iorque, e eu dei para os meus agentes, os meus
colegas agentes em Nova Iorque e quando eu fui vê-la com este livro, eu sabia toda a vida
dela. Dentro de 5 minutos ela começou a me contar a vida dela e no final ela disse: bom,
vamos entender que os seres humanos realmente são uma espécie cheia de defeitos e a
senhora tem razão. Sim, eu sou uma pessoa que tem defeitos, assim como todos os outros.
Isso está seguindo a lógica do que ela falou e todos nós temos defeitos e o trabalho legal
forense lida com a verdade observacional que é testada e a verdade lógica, mas também
existe a verdade baseada na experiência. Essa é uma ideia que eu tirei do Gandhi, em seu
livro que ele escreveu sobre os seus experimentos com a verdade nós fizemos
experimentos na escola, lembra que a gente utilizava aparelhos químicos para fazer
experimentos, esses experimentos são coisas que acontecem na nossa vida e na época
também no livro do Gandhi ele fala sobre diferentes experimentos de vida. E para mim
um exemplo muito importante foi quando ele estava com os auxiliares médicos das forças
33
coloniais que mataram alguns rebeldes e submeteram alguns capitães a tortura também,
eles chicotearam essas pessoas e eles lavavam essas feridas dessas pessoas e as tropas
estavam observando e ele percebeu que o corpo humano era uma fonte de muita dor para
muitas pessoas e que seria errado tirar, ter prazer, com nosso corpo e foi por isso que ele
resolveu desistir de ter relações sexuais, mas ele não começou dizendo: eu tenho que
desistir de ter relação sexuais, e portanto, isso, isso, aquilo. Não, ele começou como
experiência e dessa forma ele chegou a um principio e para a maioria de nós essa verdade
baseada em experiência é o que nos guia. Nós não andamos por aí com microscópios, nós
nos interrogamos através das nossas experiências e essa era a força da Comissão da
Verdade. As pessoas estavam falando utilizando suas próprias vozes, estavam contando
as suas próprias histórias para serem acreditadas, para serem ouvidas e finalmente existe
o que eu chamo de verdade dialógica. Nós temos experiência, observação e de diferentes
aspectos, a Comissão da Verdade tinha diferentes membros e eles conversavam entre si.
O diálogo era feito em frente ao público e também existia um diálogo feito por trás e a
força da Comissão da Verdade estava baseada nas suas verdades experimentais e
dialógicas. Em relação à reconciliação, nós ainda não estamos reconciliados na África do
Sul no sentido de aceitação por toda a população de que todos nós somos iguais e que a
vida é igual para todos nós. Que a raiva baseada na violação, nas violações do passado e
as justiças já passaram, já fazem parte do passado, mas se nós não tivéssemos tido a
Comissão da Verdade, nós ainda teríamos essa sensação de amargura. Coisas terríveis
aconteceram e elas foram simplesmente negadas e nós não conseguiríamos mover em
direção a uma sociedade igual se nós tivéssemos duas histórias de um mesmo País. Dentro
desse País duas memórias diferentes. Você não vai estar vivendo no mesmo País. Nós
podemos apenas começar a viver no mesmo País se houver uma concordância de que
essas coisas horríveis aconteceram e nós chegamos a essa concordância porque as
pessoas responsáveis, elas reconheceram as suas, os seus problemas, o que elas fizeram.
Então, nós não podemos negar que isso aconteceu na África do Sul e o quão cruel isso foi.
O conhecimento é fato e informação. Nós sabemos que essas coisas acontecem. O
reconhecimento é trazer a informação para dentro do seu ponto de vista, seu
conhecimento emocional das coisas. Como que eu seria comportado? O que que nós
poderíamos fazer? Como eu posso fazer que isso se evite no futuro? Então, precisamos
aprofundar esse conhecimento. Então, pelo menos nós abrimos o caminho e eu acho que
eu gosto de sentir que o Tribunal Constitucional teve um papel fundamental, não somente
34
porque o caso muito importante foi trazido a nós por pessoas que tinham perdido os seus
entes queridos para assassinatos e tortura, dizendo como a Comissão da Verdade pode
garantir anistia e acessar direitos a esses indivíduos e não dar a satisfação de manda-los
à prisão e nós examinamos todas essas questões e foi um dos mais difíceis que fizemos e
um julgamento foi escrito belamente pelo meu colega e é um dos casos que você não pode
definir a embasamentos técnicos é uma questão muito profunda. É um jogo do País, é o
motivo pelo um dos quais nós temos uma Constituição. A necessidade de, a verdade que
aconteceu era tão profunda que o Parlamento, nós demos incentivo aos assassinos e isso
nos permitiu descobrir novos corpos para que as pessoas descobrissem como seus
parentes tinham sido mortos, para que eles conseguissem fazer seus funerais. Isso
aconteceu conosco, como País e nós concordamos que essa lei passou dos padrões
constitucionais do Tribunal Constitucional. Deveria ser localizado, nós escolhemos a
prisão em Joanesburgo e as pessoas perguntaram: como vocês podem ter um Tribunal
dentro dessa prisão onde o Mandela estava preso? Então, as pessoas particularmente
foram submetidas a humilhações em particular terríveis e aí nós dissemos: não, a prisão
é parte da nossa história e essas coisas aconteceram, não neguem a dor do passado, mas
não se prendam a dor do passado. Peguem essa terrível energia negativa e a transformem
positividade. É uma frase na Bíblia em inglês: transforme as espadas em paz! Em
português como se fala essa frase, essa passagem? Não temos aqui acadêmicos da Bíblia.
Você pode pegar uma espada, você pode jogar ela fora, pode quebrar essa espada é bem
útil isso. E se essa mesma espada se tornar um instrumento para cavar é algo muito mais
poderoso. É por isso que nós escolhemos esse lugar. Nós escolhemos pegar a dor e
transformá-la e se tornou um símbolo de positividade do que pode ser feito, então
qualquer pessoa que chega na prisão sabe que não parou ali e também pode saber que
qualquer pessoa que saiba, que chega até o tribunal saiba da dor que já aconteceu ali. No
fim do ano, muito quente, eu fui para uma festa com os meus amigos, tinha música alta e
eu ouvi uma voz: Albie, essa voz disse! E aí eu olhei e era o Henry. Ele estava muito feliz,
ele é um diretor e estava fazendo um filme sobre os soldados que foram para a Comissão
da Verdade e ele estava sorrindo e nós chegamos em um canto e eu perguntei: Henry, o
que que aconteceu e ele disse: eu fui para a comissão da verdade e eu encontrei o Bob,
usando os primeiros nomes com todo mundo. Ele também me chamava de Albie, e aí eu
falei: Henry, eu tenho você para me dizer o que é que está acontecendo e a verdade e ele
saiu dessa conversa quase flutuando e eu quase desmaiei. E ele disse depois, ele de
35
repente, ele disse depois que ele saiu da festa e que chorou por duas semanas. Eu não sei
se é verdade, mas eu prefiro acreditar que seja verdade isso, mais isso significa muito mais
para mim do que mandar ele para a cadeia porque nós moramos no mesmo País e as
pessoas estavam tentando matar umas às outras e nós moramos no mesmo País. E em
Colômbia recentemente eu fui para, tem alguns juízes que simplesmente não mandam as
pessoas para cadeia ou então executam. Elas têm essa justiça restaurativa que transforma
as pessoas, não é perdão. Eu não perdoei o Henry, eu não tenho o poder de perdoa-lo, ele
precisa entender isso. Ele tem que entender o que que é o quê, mas ele transcendeu essa
situação é um tipo de generosidade que está no espírito de Mandela, o espírito da nossa
nação, o espírito da nossa Constituição e a generosidade é muito poderosa, é muito
poderosa. E as pessoas precisam descobrir a humanidade dentro delas mesmas. Temos
que ver o que vai acontecer eventualmente na Colômbia, mas o que foi interessante falar
dos dois lados é que, é o que eu chamo de vingança suave, isso é transcender a raiva, a
amargura e ver as coisas de um ponto de vista mais suave. E eu me pergunto se aqui no
Brasil, eu nem sei. Nós encontramos muitos brasileiros no exílio quando eu estava em
Moçambique, muitos torturados, muito já haviam sofrido muito e no Brasil para mim é
um País de felicidade, de alegria, de exuberância, de criatividade, dos cariocas, de futebol
e ainda assim é um país assassinatos e eu não sei se o Brasil já se resolveu com o isso. Eu
não sei se teve algo tipo a nossa Comissão da Verdade. E isso importa? Eu acho que isso
importa em qualquer País. Eu não sei se, o formato não precisa ser o mesmo, não precisa,
se você está olhando para a reparação o importante é que você está olhando para a
verdade. Vocês precisam entender que parte das pessoas que sofreram tanto, elas, essas
pessoas vão ser reconhecidas e o mais importante é assegurar que essas coisas não vão
acontecer de novo, então é um prazer enorme para mim falar com vocês e compartilhar
essas experiências. Eu fui para o paraíso por não falar sobre a internet, mas é muito mais
valoroso para mim falar sobre isso. Transmitir para vocês como nós falamos em
Moçambique: Obrigadíssimo. É muito maravilhoso, uma cópia de um DVD chamado:
Suave Vingança, que só tem cerca de 15 minutos falando sobre a minha vida em
Moçambique e também captura o momento, tem até o momento de quando eu fui
explodido. Eu não falei com as pessoas da publicidade. Eu não arrumei com as pessoas da
publicidade para que eu estivesse na câmera, mas vai mostrar o que que aconteceu de
verdade e principalmente o processo de transformação todo que aconteceu na África. E
também vou deixar uma cópia desse livro que fala sobre a bomba e também todo processo
36
de recuperação.
37
DEMOCRACIA DIGITAL: OS SEUS BENEFÍCIOS E RISCOS PARA A
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Carlos Blanco de Morais*
*Mestre e Doutor pela universidade de Lisboa e Professor
catedrático da faculdade de direito de Lisboa.
1. A erosão da democracia representativa
Se pegarmos em fatores tão diversos como a Câmara dos deputados na crise
do impeachment no Brasil, a impotência do Parlamento britânico perante o Brexit e o
afundamento dos partidos do centro na Europa em face da ascensão da direita e esquerda
radicais e populistas , eles confirmam um velho postulado de Cocozza no final dos anos
80, de que a democracia representativa estaria deficitária na sua legitimidade e que
careceria ela própria de ser democratizada.
Diversas ideias difusas confluem na crítica às insuficiências do paradigma
clássico da democracia-representativa de Shumpeter; Dahl e Sartori que tenderam a
valorizar a componente eletiva de representantes a ideia força de que se trata de um
processo em que o povo decide livremente, por maioria, quem serão os decisores. A apatia
derivada da insatisfação da cidadania com os seus representantes geraria atos eleitorais
cada vez menos participados e transformaria os partidos em máquinas de publicidade
organizada, financiadas de modo opaco e destinadas a, com base em ideias simplificadas
e manifestações de propaganda lúdica, fazer eleger candidatos, no sentido de Gaetano
Mosca, de que a democracia instilaria nos eleitores a ideia elegeriam os candidatos,
quando seriam estes a fazer-se eleger.
São os seguintes os sintomas da crise da representação:
i) Reducionismo eleitoral: o Modelo representativo seria insuficiente para
exprimir todos os ângulos da vontade popular no governo da “Polis” pois, entre atos
eleitorais, o povo não teria capacidade de influir na tomada de decisões (problema
assinalado há muito por Rousseau quando, na crítica à democracia representativa
britânica terá aduzido que o povo britânico, sem se aperceber, seria escravo entre duas
eleições);
38
ii) Clausura no processo de decisão: existiria na democracia representativa uma
“Cidade Proibida”, um circuito de decisão sobre grandes problemas nacionais fechado à
discussão em espaço público, que importaria romper através de acesso à informação e da
intervenção de um número alargado de cidadãos no debate desses problemas (
Habermas);
iii) Captura do poder político pelos grandes centros de poder económicos e
financeiros ( Habermas) internos e externos, graças ao modelo de globalização e
concentração de riqueza, à colonização dos media por grupos económicos, e à forte
dependência das campanhas dos partidos relativamente a interesses particulares
forçando “trade offs” ilícitos entre o público e o privado;
iv) Sobre-representação nos media de minorias poderosas: os mandatários
eleitos tomariam decisões sob pressão de influentes minorias sobre-representadas e
enquistadas nos media e universidades que liderariam a opinião pública e a agenda desses
mandatários sobre questões relativas à vida individual e familiar, à liberdade de
expressão e consciência e ao tema da soberania,;
v) Engessamento da representação : alguns institutos do processo eleitoral
diminuem a liberdade, igualdade e competitividade do processo eleitoral (Munck),
destacando-se: cláusulas-barreiras muito elevadas; “cordões sanitários” dos partidos do
“mainstream” contra partidos ideologicamente estigmatizados com alta votação em
sistemas eleitorais maioritários, a manipulação dos círculos eleitorais intentando
favorecer e instrumentalização dos midia para demonizar certos partidos anti-sistema
(§).
vi) Partidocracia e representação: A relação fiduciária eleitor/representante,
seria “curto-circuitada” por partidos de eleitores com programas difusos, “cartelizados”
entre si ( Rudolf Koole), fechados aos eleitores, dotados de direções profissionalizadas
que monopolizam as candidaturas e tutelam os representantes eleitos os quais, declarada
a sua independência em relação a quem os elegeu, passariam a vincular-se
exclusivamente ao aparelho partidário ou à própria liderança governativa);
vii) Afastamento das elites e eleitores do processo representativo: Graças a
fatores como a degradação da imagem pública dos dirigentes afetados pela corrupção , do
aparelhismo partidário, a militância declinou, altos quadros técnicos fugiram da politica,
e os eleitores não se identificam com os partidos.
39
viii) A “federação” dos partidos nacionais em cartéis supranacionais de“partidos
europeus” na U.E que co-decidem a nível das instâncias de governo da União, levam a que
se relativize a importância das escolhas eleitorais, e se questione a utilidade da
democracia
2. Contributos catalíticos da representação: democracia semidireta, participativa e
deliberativa
Várias conceptualizações de democracia têm sido avançadas como formas de
“revitalização ” qualitativa da representação política.
A democracia semi-direta, com o uso do referendo tem estado em expansão na
Europa como complemento à democracia representativa que todavia teme os resultados
da vontade popular como sucedeu no Brexit. Setores conservadores apostam na via
referendária para curto-circuitar a clausura da elite do poder. Sem os referendos que
mataram o tratado constitucional europeu a U.E. seria hoje uma federação.
A democracia participativa, incentiva os cidadãos e as suas estruturas
associativas a intervir na tomada de decisões pelos poderes públicos, fazendo-o, em regra,
a título consultivo sempre que estejas em causa os seus direitos ou interesses protegidos.
Tratou-se de uma construção que, no plano teórico originário, teve raízes em alguns
pensadores marxistas, como Poulantzas, ou da nova esquerda, como Pateman. Um salto
qualitativo experimentado pela “democracia participativa” , já dessacralizada da sua
componente ideológica, consistiu no fenómeno da concertação social. Esta, com forte peso
na Alemanha, implica a necessidade de se institucionalizarem estruturas de
representação pública das corporações empresariais e sindicais erigidas a “parceiros
sociais” do Estado, para permitir que a sociedade civil transmita à sociedade política,
através de procedimentos e regulados, o seu entendimento sobre políticas públicas no
domínio económico e social.
Finalmente emerge a democracia deliberativa que bebe, no pensamento de
Habermas,. Este esboça uma construção com um fundamento epistemológico de matriz
ético republicana de integração inclusiva dos cidadãos na definição das políticas públicas.
Para esta corrente o processo de decisão compreenderia a existência de
mecanismos formais e informais destinados a permitir vias de comunicação inclusiva,
alargada e participada no espaço público sobre matérias submetidas a decisão das
40
autoridades representativas. O objetivo seria potenciar uma cidadania crítica,
responsável e vigilante que possa informar, discutir e “deliberar” no espaço público sobre
as questões relevantes, de modo que a decisão final do poder político seja instruída e
condicionada pelo produto do debate. A integração de minorias marginalizadas seria uma
preocupação desta construção que considera que apenas “mais democracia
representativa” não resolveria certos problemas como a de um universo eleitoral onde a
classe média seja claramente maioritária e classes mais baixas e desprotegidas, uma
minoria: o modelo competitivo daria ao primeiro estrato social mais representantes e o
poder de negar direitos e proteção ao segundo estrato como defende no Brasil Alvaro de
Vito.
A política deliberativa operaria através de duas vias: a via institucional (onde
seria possível integrar num processo juridico a intervenção cidadã) e a via extra-
institucional, integrada pelo debaten livre no espaço público, encontrando-se as duas vias
interligadas. A democracia deliberativa não se confundiria, com a democracia
participativa, sem prejuízo de estimular uma participação alargada e informada dos
cidadãos. Contudo há quem entenda como Álvaro de Vito que, na medida em que não se
posicione como alternativa à democracia representativa, a democracia deliberativa
poderia não ser mais do que a e atualização das velhas teorias da participação.
3. A dimensão extra-institucional e tecnológica da democracia deliberativa
As discussões mais intensas em torno da configuração e projeção da dimensão
extra-institucional da democracia participativa foram catalisadas durante as “primaveras
árabes”, no pico dos movimentos europeus de contestação à austeridade durante a crise
das dívidas soberanas, ao Wikileaks, ao “Brexit” e aos movimentos pró e anti-imigração na
Europa .
O ativismo político informalizou-se através das redes sociais, mormente do
Facebook, dos blogs e do twitter ultrapassando a rigidez da comunicação social clássica,
as fronteiras nacionais, as hierarquias tradicionais de feitura da opinião pública, e as
barreiras entre o público e o privado.
O novo espaço publico de debate alargou-se à blogoesfera e ao ciberespaço
onde todos podem comunicar e ser lidos, onde desde o Papa aos dirigentes políticos usam
o tweet para passar mensagens curtas que são respondidas por muitos cidadãos, que têm
41
a ilusão de comunicar diretamente com o decisor, apoiando-o, aconselhando-o,
criticando-o ou insultando-o.
Por exemplo, através dos meios informais de comunicação eletrónica: foram
convocados manifestantes para a praça Tharir fazendo cair o regime de Mubarak no Egito;
soçobraram eleitoralmente partidos que galopavam nas sondagens (caso do PP espanhol
em 2004 depois dos atentados de Madrid, confrontado com manifestações à boca das unas
convocadas por sms onde se alertava para as mentiras do Governo sobre a origem dos
mesmos atentados); foram convocadas manifestações colossais de jovens indignados em
Portugal e Espanha atingidos pela austeridade, das quais resultou o fortalecimento de
partidos de extrema-esquerda; mobilizaram-se manifestações encarniçadas e semanais
contra a imigração pelo PEGIDA em Dresden; passaram-se mensagens ferozes na
campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia oxidou-se a campanha
presidencial norte-americana com a divulgação de e-mails problemáticos; e até se
derrotou, via Facetime, um golpe militar na Turquia em julho de 2016.
Esta vertente comunicativa de massas da chamada democracia deliberativa,
que alguns designam por “democracia digital”, geraria um espaço de opinião influente
pautado pelo dinamismo, fluidez, novos atores, liberdade difusa, ativismo, imediatismo,
conteúdo sintético e horizontalidade (parificando a posição de governantes e governados
e fazendo-os interagir como refere Saskia Sassen.).
4. Forças e riscos da democracia deliberativa “digital”
a) Democracia ou revolução na comunicação e acesso ao espaço público?
Em termos teóricos, a “democracia deliberativa” constitui uma narrativa
filosófica que, no fundo, se propõe democratizar, não só a representação mas a própria
“democracia participativa”,. A bem da verdade, trata-se de um “aggiornamento” do
discurso teórico da democracia participativa com correção das suas insuficiências
reclamando que as vias e meios de intervenção cidadã impliquem um tratamento igual
entre participantes, o que exclui a redução da participação ao circuito gasto das grandes
corporações envolvidas no “jogo” da concertação social; à opinião pública tecida ex
cathedra a partir dos media detidos pelos grandes interesses económicos.
Só que a mesma construção doutrinária, no plano institucional, pouco ou nada
adianta em relação à oferta tradicional da democracia participativa, pois não dá,
42
nomeadamente, respostas, sobre o modo: como se poderá potenciar a intervenção
esclarecida das minorias culturalmente menos educadas); como poderão ser erigidos
canais de comunicação do individuo no espaço público e junto do poder fora as vias de
petição e discussão pública; e, como seria possível que os que intervêm no espaço público
pudessem ser tratados como iguais.
Já a componente extra-institucional da democracia deliberativa resulta ser mais
caótica mas mais instigante, sobretudo na sua dimensão digital. É um facto que a discussão
no espaço público se alargou tremendamente na chamada “blogosfera”, com o acesso
individualizado e grupal das massas ao ciberespaço, mediante a utilização de tweets,
blogs, jornais eletrónicos informais e páginas eletrónicas com uma componente em vídeo,
mitigando-se, em parte, o império crescentemente concentrado do áudio visual e da
imprensa escrita em papel. Por outro lado, a imprensa escrita digital interagiu com a
blogosfera, passando muitos artigos de imprensa a alimentar-se das opiniões e
informações postadas no ciberespaço e criando, simultaneamente, espaços para que
artigos de opinião publicados “online” sejam sujeitos a comentários dos leitores,
potenciando-se uma interação com as redes sociais.
A sobredita “democracia digital” na sua componente difusa e libertária,
refletiria uma sociedade crescentemente informada, emancipada e ativa, que confrontaria
o poder político e disputaria o espaço público com os opinion makers. E é um facto que a
expansão transfronteiriça da blogosfera abala governos e hierarquias políticas dentro das
fronteiras de cada Estado, já que o domínio da esfera privada dos governantes passa a ser
ferozmente escrutinado, são eliminadas barreiras à circulação de informação relevante
que flui com uma velocidade inédita e emergem novos atores políticos transnacionais que
possuem um domínio efetivo sobre o conteúdo, dessa informação, tal como reconhece
Miriam Bascunan.. A dimensão mais oculta do poder fica por vezes a descoberto e a
autoridade dessacraliza-se, sendo obrigada a sair a terreiro para justificar condutas
embaraçosas ou controversas.
Ao acederem eles próprios ao twitter e ao permitirem-se dialogar com
qualquer cidadão no espaço público os decisores são confrontados com interlocutores
incómodos que divulgam informação comprometedora que os obriga a responder e a
descer ao patamar dos cidadãos. Por outro lado, respostas desadequadas e impulsivas
com mau acolhimento na opinião pública obrigam o decisor a retratar-se e até a demitir-
se ( João Soares), expondo-se a uma erosão de imagem e a um debate multipolar cujo
43
desfecho não domina. Finalmente, a denúncia de comportamentos irregulares ou ilícitos
de governantes nas redes sociais, sempre que divulgados ou ampliados pelos media
clássicos, é um fator de retroalimentação de potenciais inquéritos ou investigações
Em síntese, a blogosfera passou a segregar um sincrético e indefinível limite adicional ao
poder político,gerando-se uma via extra-orgânica e difusa de controlo do poder político
sem precedentes
b) Escrutínio difuso ou via de descredibilização e enfraquecimento dos governantes ?
Reconhecendo alguns impactos positivos da “democracia digital” no acesso à
informação e à faculdade do povo interagir com o poder, existem dúvidas sobre a sua
capacidade de aumentar o nível de desempenho da democracia,. Cumpre tecer quatro
considerações
1º. Sendo certo que o ciberespaço permite um melhor conhecimento dos
cidadãos sobre problemas de ordem económica, política e social o facto é que muitos dos
dados disponibilizados são oriundos de fontes fidedignas, são frequentemente distorcidos
e simplificados, pois são concebidos para a ação política numa lógica instantânea de ação
e reação. Muitas de ordem política fazem-no com um propósito de combate destinado a
atingir alvos cirúrgicos adversos e, muito frequentemente, quer o cidadão médio quer o
jornalista ( campanha eleitoral americana), tomam a “nuvem por Juno” assumindo e
difundindo como verídicos, simples boatos, contra-informações, ou noticias parcialmente
verdadeiras. Para Fernando Vallespin trata-se de um “mundo órfão de verdade onde a
textura do real se abre a uma gama ilimitada de interpretações”. A inexistência de filtros
efetivos ou de instrumentos de controlabilidade da informação e o despontar de uma
cascata acrítica de fontes que emergem como matrioskas a partir de outras fontes difusas
e cria “terras de ninguém” onde não se torna racionalmente possível desmontar ficções,
boatos fantasistas ou mensagens difamatórias. Isto, porque uma boa parte dos debates
políticos nas redes sociais tendem a ser maniqueístas não propendendo os cibernautas
para o escrutínio do que lhes é fornecido: ou se está “in”, ao lado da informação
controversa e se procede à sua partilha com comentários simples e favoráveis ou se está
“out” combatendo-a de uma forma elementar e verbalmente violenta.
Em suma, a difusão da informação nas redes sociais, não envolve,
necessariamente, conhecimentos mais exatos. Para Vallespin realidade e a ficção no
conúbio entre a política, os media e as redes sociais terão gerado uma rede parasitária de
44
fluxos recíprocos, em que em muitos casos, os cidadãos e os agentes políticos têm a
perceção daquilo que é falso, mas não deixam de se acomodar a essa mesma falsidade.
2º. O uso das redes sociais, e do tweeter em particular, revelar-se-iam mais
instrumentos de ação, contestação e mobilização do que de reflexão”. É igualmente um
campo, onde ações ilícitas e de desobediência civil de pequenos grupos extremistas se
mobilizam em rede e “deliberam” ocupações de propriedade (caso do movimento
“Occupy”). Como se esse tipo de ação direta de minorias sem rosto, que se representam a
si próprias, pudessem assumir-se como expressões da vontade maioritária, de discussão
informada no espaço público ou de integração pluralista na fase prévia à tomada de
decisões .
Uma comunicação em que as pessoas pensariam em 140 caracteres significaria
para alguns , que as mesmas pessoas não pensariam genuinamente. Cidadãos clausurados
em “nuvens” de radicalização e flutuando em torno “trending topics” difundiriam uma
comunicação que ganharia, por arrastamento, uma força misteriosa e passando a partir
da sua difusão pelos media a fazer parte da opinião pública.
A democracia deliberativa idealizada por Habermas, ligada ao confronto de
opiniões diversas no espaço público e da demanda do melhor argumento, pouco tem a ver
com a democracia digital da blogoesfera, pautada pelo imediatismo, a mobilização, o
“soundbite”, o “pronto a pensar” e a humilhação verbal do adversário. A ideia de que a
discussão da política teria atingido um estádio superior através da democracia blogueira
foi reduzida por diversos autores uma manifestação de “ciberutopia” ou
“internautocentrismo”. Isto porque, a ideia de liberdade que emerge da blogosfera tem o
seu reverso da medalha quando a mesma é vigiada e manipulada por relevantes forças
políticas e económicas bem como por grupos subversivos e serviços de informação dos
Estados, dotados de poderosos meios técnicos e de comunicação que permitem desfigurar
o debate e alimentar através do produto das distorções por si criadas junto das redes
sociais, os media.
3º. Igualmente ilusório é o entendimento de Habermas que a sobredita
democracia digital em rede potenciará irreversivelmente um cidadão mais culto, mas
esclarecido. Na verdade, uma simples visitação aos principais jornais digitais, no sítio
referente aos comentários de leitores a artigos de opinião permite aferir um esmagador
número de comentários injuriosos, grosseiros, tendenciosos, reveladores de uma atroz
iliteracia e em que os debates se assemelham a cenas de pugilato. Por outro lado, ,
45
sobretudo em período eleitoral, as mensagens nos tweets e facebooks dos políticos destes
são objeto de ataques pré-ordenados e sincronizados de tribos de internautas que os
inundam de de posts difamatórios ou de ameaças ( conhecidas por “shitstorm”) que
rapidamente defluem para as capas dos jornais digitais.
Ainda assim, uma comunicação digital de elevado nível transcorre na retaguarda, em
plataformas académicas, em blogues semi-fechados e em grupos especializados de
reflexão, ou seja, num hemisfério elitista que pouco tem a ver com o espaço público
alargado às minorias despossuídas como pretendiam os teóricos da democracia
deliberativa.
4º. Finalmente, não é incontroverso que a democracia digital tenha, elevado a
qualidade e a credibilidade da democracia representativa.
Esta última procura criar a ideia de que os dirigentes políticos e, em especial,
os governantes, devem ser vistos pelos cidadãos como paradigmas de verdade e
integridade, merecendo, por conseguinte, serem eleitos. Contudo, nas últimas décadas, a
colocação à luz do dia de ilícitos eleitorais e a investigação de atos de corrupção e abuso
de poder converteram o escândalo em componente central do debate cívico e político. Por
um lado, o escrutínio judicial dos políticos (permitiu uma ablação da parte contaminada
da política mas potenciou, por outro, um ambiente envenenado e persistente de
desconfiança e descredibilização da elite governante.
Assentando o “ethos” da democracia representativa na integridade ou
credibilidade dos representantes, quando a mesma credibilidade é posta em causa, todo
o regime é afetado. Nessa descredibilização destacou-se a blogoesfera, em rede com a
imprensa digital e com os fornecedores de informação relevante, oriundos do mundo
económico, judiciário e político. Do mesmo modo não é concebível um Estado de direito
com direitos nominalizados: a blogoesfera, em nome da “transparência” e da
comunicação, os cidadãos e os políticos despossuídos de direitos de personalidade como
o direito à honra, à imagem, ao bom nome, à reserva de intimidade da vida privada e
familiar, à segurança e à liberdade de expressão para lá do politicamente correto.
A “rebelião das massas” e a democracia digital , podem não ter, como muitos
acreditavam, oferecido uma via alternativa à democracia representativa, feito triunfar as
primaveras árabes e derrubado as autocracias chinesa e iraniana, mas lograram, pelo
menos, nas democracias representativas, dessacralizar o poder, esmaecer a auctoritas e a
gravitas dos governantes e fragilizar direitos civis..Em sistemas corrompidos a
46
democracia deliberativa digital poderá ter contribuído para a refundação republicana de
sistemas democráticos e estimulado novas formas de comunicação entre governantes e
governados. O facto é que se teme que a sua faceta menos positiva se contente, por hábito,
a desdignificar o poder, num exercício nihilista, sem que comporte consigo uma proposta
alternativa construtiva. Repensar o papel político da comunicação política digital e
repensar os seus filtros contra abusos, manipulações e capturas pela criminalidade
organizada constitui uma requesta para o tempo presente.
47
CONSTITUIÇÃO, PRIVACIDADE, PROTEÇÃO DE DADOS E NOVAS
TECNOLOGIAS
José Levi Mello do Amaral Júnior
Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo e do Centro Universitário de
Brasília. Procurador da Fazenda Nacional.
RESUMO: o artigo reproduz, com adequações pontuais, exposição realizada em Painel de
título “Privacidade, Proteção de Dados e Proposições Legislativas” por ocasião do XIX
Congresso Internacional de Direito Constitucional, exposição essa que foi realizada em
Brasília, no Instituto Brasiliense de Direito Público, no dia 27 de outubro de 2016.
Discorre sobre os impactos decorrentes das novas tecnologias, sobretudo no que se refere
às novas formas de comunicação. Avalia proposição legislativa em tramitação no
Congresso Nacional acerca do tema.
Boa tarde!
Agradeço ao Instituto Brasiliense de Direito Público a gentileza do convite para
participar dessa mesa de debates.
Cumprimento a todos de uma maneira especial nas pessoas do Senhor Procurador-
Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Professor Leonardo Roscoe Bessa e do
Deputado Orlando Silva, que aqui também tomam parte dos debates, e em nome deles,
cumprimento a todos os presentes, não só os meus demais colegas de Painel, mas a todos
os que aqui acorrem.
Desde logo peço perdão porque tive a ousadia de pedir para falar primeiro. Isso
porque um compromisso de última hora impossibilita-me permanecer até o final do
Painel. Porém, as minhas anotações são bastante breves e, pretensiosamente, talvez
tenham um caráter introdutório para os debates que se seguirão, claro, certamente, com
muito mais propriedade do que eu poderia fazê-lo.
Quando se discute o tema proposto, a primeira lembrança que me ocorre, inclusive
porque me marcou muito, é uma obra ainda dos anos 1990 do professor italiano Giovanni
Sartori: Homo Videns. Parte da ideia de que o ser humano passou a crescer na frente de
uma televisão. Fala do “vídeo bambino” e como o crescer na frente da televisão acaba por
empobrecê-lo naquilo que é a maior característica humana: a capacidade de abstração. O
ser humano é um ser simbólico e essa capacidade humana, tão humana, especificamente
humana (que escapa ao animal e que dele nos difere), na verdade, independe dos próprios
sentidos. Qualquer ser humano tem a sua capacidade de abstração e a capacidade de
48
abstração acaba severamente empobrecida quando o ser humano cresce na frente de
imagens prontas e acabadas, quando não manipuladas, fornecidas pela televisão. Em uma
apertada síntese, essa é a tese de Sartori e que ele projeta para o próprio regime
democrático. O regime democrático é empobrecido pelo homo videns que desde
pequenino nasce e cresce massificado diante da televisão, nasce e cresce empobrecido na
sua capacidade de abstração, na sua capacidade simbólica, na sua capacidade de criticar,
de pensar, enfim, de avaliar.
Fiz essa introdução porque a nossa cultura é uma cultura digital. Vivemos hoje
conectados, de modo que existe para nós um novo espaço, um novo âmbito público, que é
o universo digital e a evolução das tecnologias que movem esse novo âmbito público, esse
novo espaço público, conhece evolução muito rápida, cada vez mais rápida. Em verdade,
a evolução dos meios digitais se dá em velocidade com crescimento geométrico. É
assustador como se dá, como é vertiginosa a velocidade da evolução dos meios digitais.
Dou exemplo banal. Durante quantas décadas usamos cartas? Não a nossa geração, mas
quantas gerações, quantas décadas viram o uso das cartas? Durante quantos anos usou-
se telegrama? Surgiu o e-mail e a mensagem eletrônica, vieram os torpedos e as coisas
sucedem-se, talvez, não em anos, mas em meses. Esses novos meios migraram dos
computadores pessoais para os smartphones. As tecnologias convergiram e surgiram
alternativas aos torpedos “tradicionais”, basta citar o WhatsApp. Consequência: o e-mail
e as mensagens eletrônicas, em poucos anos, sofreram tombo semelhante no respectivo
volume de uso que as cartas conheceram.
Esses novos espaços de convívio geram blogs, micro blogs, redes sociais. Falando
em micro blogs, até que o Twitter está sobrevivendo... As próprias redes sociais sucedem-
se. A minha geração conheceu o Orkut, que nem existe mais. Foi desbancado pelo
Facebook que luta para se reinventar, para seguir sobrevivendo.
Nesses novos espaços públicos é curioso e dramático ver como as pessoas revelam-
se, para o bem e para o mal. Nesses novos espaços públicos, protegidas, ou pretensamente
protegidas pela tela de um computador, pelo teclado do computador ou pela tela e pelo
teclado virtual de um smartphone, muitas pessoas perdem os freios morais mais
elementares, talvez revelando os respectivos verdadeiros “eu”.
Essa realidade impacta não só o indivíduo, mas também a grande mídia. A TV
aberta cedeu espaço para a TV por assinatura, que perde espaço para os serviços por
streaming, que perdem espaço para o Youtube e assim por diante.
Veja-se o caso telefone. O telefone já foi um investimento, tão escasso era. Perdeu
espaço para o celular. Ora, hoje, trocamos de celular pelo menos uma vez por ano, mas o
celular, enquanto telefonia, perdeu espaço para o Skype, que perdeu espaço para o Viber.
Ambos perderam espaço para o FaceTime. As operadoras de celular hoje são provedoras
de acesso à Internet.
Como lidar com isso? Quais são as implicações disso? Por exemplo, como aplicar
leis eleitorais a esses novos espaços públicos? Em todos esses espaços virtuais, em todos
esses meios de trânsito e trocas digitais, deixamos nossos dados, deixamos nossas
49
informações, deixamos rastros. Nossos dados são automaticamente coletados por
“robozinhos” que, na verdade, são algoritmos cada vez mais sofisticados, inteligentes,
seletivos, globais.
Falei há pouco em TV, em TV por assinatura e em serviço por streaming. Veja-se o
caso Netflix. Com efeito, Netflix decifra os nossos gostos e tenta antecipar as nossas
escolhas, forma um banco de dados pelo convívio que trava com cada um dos seus
assinantes, com cada um de nós. Trata-se de um banco de dados que tem valor estratégico
e econômico imensurável. E está ali: dentro da nossa casa, diuturnamente aprendendo
com os nossos usos, com os nossos costumes, com os nossos gostos. Como esses dados
são utilizados pela empresa? Netflix utiliza apenas para prover os seus próprios serviços
ou compartilha, fornece, vende esses dados – nossos dados – para terceiros?
Ora, a legislação que venha a disciplinar os bancos de dados decorrentes dessas
novas realidades devem colher quaisquer bancos de dados acessíveis no território
nacional, não importando onde estejam eles hospedados.
Para prosseguir, tomo em consideração o Projeto de Lei, hoje no Senado Federal
sob a relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira Filho, Projeto que sabidamente teve
participação muito importante do Instituto Brasiliense de Direito Público, em especial da
Professora Laura Schertel Mendes. O Projeto é explicito: não importa onde estejam
hospedados os bancos de dados, a lei brasileira haverá de ser aplicada. E não tem como
ser diferente: do contrário seria muito fácil escapar ao nosso Direito, escapar à disciplina
do Direito brasileiro aplicável ao caso. As legislações que hoje tateiam nesse novo
universo dispõem neste exato sentido.
O Projeto a que me referi exclui da sua incidência o que se denomina “dados
anonimizados” (até esse tipo de palavra surge pelas novas necessidades...). Muito bem, o
“dado anonimizado” é aquele que não tem gravado em si, rotulado em si, o titular do dado.
Parece-me natural que a lei não se aplique a esse tipo de dado, pois não traduz uma pessoa
a ser protegida.
Porém, como assegurar que os dados realmente estão dissociados das pessoas de
que se originam? Não é uma questão simples. O Projeto cria uma obrigação para a União
no particular. A União precisará aprender a lidar com isso.
O Projeto menciona dados pessoais sensíveis, por exemplo, aqueles que revelam
orientação religiosa, política e sexual. São disponíveis? Parece-me que sim, o Projeto
considera que sim, desde que a disposição seja feita pelo titular de maneira direta, clara,
expressa e consciente. Ora, é necessária muita responsabilidade nisso, de lado a lado,
daquele que cede e daquele que toma. O Projeto pressupõe uma governança responsável
acerca desse conjunto de dados. O Projeto impõe uma governança responsável aos bancos
de dados e isso é da maior importância e de muito grande sabedoria.
Tomei como fio condutor da parte conclusiva da minha exposição o Projeto de Lei
hoje em tramitação no Senado Federal. Os expositores seguintes certamente poderão
esmiuçá-lo muito melhor do que eu. Ainda assim, sintetizo: o Projeto hoje sob a relatoria
do Senador Aloysio Nunes Ferreira Filho revela-se bastante lúcido, bastante abrangente
50
e, inclusive, capaz de dispor sobre meios atuais e futuros. Essa é uma arte, um desafio a
que é chamado todo projeto da espécie. Isso porque, afinal, os meios sucedem-se de
maneira muito rápida, como mencionado no início da exposição. Por isso mesmo, o
Projeto toma medidas, opções, caminhos que me parecem amigos dos Direitos
Fundamentais, sem prejuízo da evolução dos meios tecnológicos, das mídias digitais.
Enfim, pretendi fazer apenas uma introdução, uma introdução que talvez tenha
sido pontuada menos por colocações e mais por perguntas, o que é próprio de um
universo que estamos ainda desvendando. Tenho certeza de que o debate que se seguirá
será muito mais rico do que eu poderia proporcionar nessas minhas palavras breves,
introdutórias. O Professor Leonardo Roscoe Bessa conhece muito desse assunto na ótica
do direito do consumidor. Para além disso, o Deputado Orlando Silva já lidou com vários
outros projetos sobre a matéria e também tem muito a contribuir.
Agradeço aos organizadores do Evento, uma vez mais, a oportunidade de estar com
vocês. Peço perdão ao Coordenador do Painel, pois me excedi no tempo, mas, sobretudo,
expresso a minha alegria – uma muito grande alegria – de poder tomar parte do debate
com todos vocês.
Muito obrigado!
51
O MECANISMO DE PROTEÇÃO JURISDICIONAL DE DADOS PESSOAIS
NUM SISTEMA CONSTITUCIONAL MULTI-NÍVEL – O CASO DA UNIÃO
EUROPEIA
José Luís da Cruz Vilaça
Síntese:
O sistema judicial da União Europeia (adiante também designada por “União”) é um
sistema descentralizado, de tipo não federal, mas baseado num mecanismo de cooperação
judiciária entre, de um lado, os tribunais dos Estados-membros e, do outro, o Tribunal de
Justiça da União Europeia (“Tribunal de Justiça”). A característica fundamental desta
ordem jurídica consiste no mecanismo do reenvio prejudicial, em interpretação e em
apreciação de validade do direito da União, consagrado actualmente no artigo 267.º do
Tratado sobre o funcionamento da União Europeia. A acção deste sistema no seu conjunto
resulta na garantia de uma protecção judicial efectiva dos direitos dos particulares.
O Tribunal de Justiça tem sido solicitado principalmente pela via do reenvio prejudicial a
pronunciar-se sobre o nível de protecção dos direitos fundamentais dos particulares na
ordem jurídica da União, e em especial sobre o direito à protecção dos dados de carácter
pessoal que lhes digam respeito. No entanto, estas questões poderão chegar ao Tribunal
de Justiça por outras vias processuais, em particular através de pedidos de Parecer sobre
projectos de acordos internacionais (veja-se, Parecer n.º 1/15 sobre a transferência e o
tratamento de dados dos passageiros de transportes aéreos entre a União e o Canadá).
No que respeita ao quadro geral da protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica
da União, importa referir que durante muitos anos a (na altura designada) Comunidade
Europeia não dispôs de um catálogo escrito de direitos fundamentais, devido
fundamentalmente ao próprio esquema inicial de integração baseado em meras
liberdades de carácter económico. O Tribunal de Justiça, inspirando-se nas tradições
constitucionais comuns aos Estados-Membros e nas orientações fornecidas por tratados
internacionais, foi definindo paulatinamente na sua jurisprudência um catálogo não
formal de direitos fundamentais. Esta evolução culminou, em dezembro de 2000, com a
Professor da Universidade Católica Portuguesa - Global School of Law, Lisboa; Juiz-Presidente da V Secção do
Tribunal de Justiça da União Europeia; ex-Advogado-Geral no Tribunal de Justiça e ex-Presidente do Tribunal de
Primeira Instância (atual Tribunal Geral) das Comunidades Europeias. O autor exprime-se a título estritamente
pessoal.
52
proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“Carta”), a qual com
alguns ajustamentos foi adaptada em dezembro de 2007 e à qual foi conferida, na altura
do Tratado de Lisboa, o mesmo valor jurídico que os Tratados.
O Tratado de Lisboa trouxe também outra novidade importante em matéria de direitos
fundamentais, a saber, a previsão da adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem (“Convenção Europeia”), tendo sido preparado um projecto de acordo
em abril de 2013, relativamente ao qual a Comissão solicitou ao Tribunal de Justiça que
se pronunciasse, a título prévio, sobre a sua compatibilidade com os Tratados. O Tribunal
de Justiça concluiu, no seu Parecer n.º 2/2013, que o projecto, tal como redigido, não era
compatível com o n.º 2 do artigo 6.º do TUE nem com o protocolo n.º 8 anexo ao Tratado.
No entanto, o Tribunal de Justiça indicou no seu Parecer orientações claras para uma
futura revisão do projecto.
A dificuldade nesta matéria surge em organizar todas as dimensões de um sistema
polimórfico no qual pelo menos três ordens jurídicas distintas, mas mutuamente
permeáveis de protecção dos direitos fundamentais coexistem, a saber, (i) a União e a sua
Carta, (ii) a Convenção Europeia e (iii) os Estados-Membros da União com os respectivos
catálogos constitucionais de direitos fundamentais.
1. Considero uma honra pessoal e um privilégio institucional intervir neste
importante Congresso organizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público
(IDP) e pelo seu Centro de Direito, Internet e Sociedade (CEDIS). Cumprimento
todos os participantes e assistentes a esta sessão, bem como os ilustres Membros
e Presidente do presente Painel.
A minha intervenção é complementar da do Presidente Koen Lenaerts e pretende
fornecer o respectivo enquadramento. O meu objectivo consistirá, assim, em
esclarecer o contexto jurídico-constitucional da jurisprudência do Tribunal de
Justiça da União Europeia (adiante “TJUE”) sobre protecção de dados pessoais.
2. Duas palavras, antes de mais, sobre a natureza e a estrutura do Sistema Judicial
da União Europeia (adiante “UE”).
Trata-se de um sistema descentralizado, de tipo não federal, mas baseado num
mecanismo de cooperação judiciária entre, de um lado, os tribunais dos Estados-
membros e, do outro, o TJUE. Estes – tribunais nacionais e TJUE, sediado no
53
Luxemburgo – constituem os dois pilares sobre os quais se apoia aquele sistema
judicial.
Como dois pilares isolados não chegam para sustentar um sistema, torna-se
necessária uma ponte, ou um arco, entre eles, que constitua o fecho da abóbada
do edifício judicial da União. Esse fecho é representado pelo mecanismo do
reenvio prejudicial, em interpretação e em apreciação de validade do direito
da UE, consagrado atualmente no artigo 267º TFUE (Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia).
O funcionamento deste sistema assenta em dois bem conhecidos princípios
fundamentais da ordem jurídica da UE, os princípios do efeito direto e do
primado do direito da União sobre os direitos dos Estados-membros48. Na
decorrência de tais princípios, os particulares podem invocar directamente,
perante os tribunais nacionais competentes49, as regras de direito da União que
disponham de efeito direto, devendo o juiz afastar a aplicação das normas
nacionais que contrariem o direito da União (princípio do primado).
O mecanismo do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça visa, neste contexto,
assegurar um duplo objectivo, a saber: a aplicação efectiva e uniforme, em todo
o espaço da União, do direito da UE, com a interpretação que lhe dá o TJUE, único
órgão judicial competente, para o efeito instituído pelos tratados.
Da existência e do funcionamento de um tal sistema descentralizado, assim
instituído pelos tratados, resultam dois corolários: (i) um limitado acesso direto
48 Os referidos princípios, verdadeiros alicerces do direito da UE, foram formulados e definidos nos acórdãos
fundadores da ordem jurídica comunitária: acórdãos de 5.2.1963, Van Gend & Loos/Administração fiscal
holandesa, 26/62, Colect. p. 3, de 15.7.1964, Flaminio Costa/ENEL, 61/64, Colect. p. 1141, e de 9.3.1978,
Administração das Finanças do Estado/Simmenthal, 106/77, Colect. p. 629. Sobre estes princípios, ver K. Lenaerts
e P. Van Nuffel, European Union Law, Sweet & Maxwel, Londres, 3ª ed., 2011; J. L. da Cruz Vilaça, A propósito
dos efeitos das directivas na ordem jurídica dos Estados-membros, in Cadernos de Justiça Administrativa, Lisboa
, vol. 30, 2001, p. 3; J. L. da Cruz Vilaça, Le principe de l’effet utile du droit de l’Union dans la jurisprudence de
la Cour, in The Court of Justice and the Construction of Europe: Analyses and Perspectives on Sixty Years of
Case-law/La Cour de Justice et la Construction de l’Europe: Analyses et Perspectives de Soixante Ans de
Jurisprudence, Asser Press /Springer/Tribunal de Justiça, Luxemburgo/Haia, 2013, p. 279. 49 As regras de competência e de processo a aplicar são as de cada Estado-membro, no respeito da respectiva
“autonomia processual”, consagrada na jurisprudência do TJUE (acórdãos de 16.2.1976, Rewe, 3/76, Colect. p.
1989, nº 5, de 7.7.1981, Rewe, 158/80, Colect. p. 1805, nº 44, de 19.11.1991, Francovich, C-6/90 e 9/90, Colect.
I-5357, nº 42, de 13.7.2006, Manfredi, C-295/04 a C-298/04, Colect. I-6619, nºs 62, 71 e 77), salvo quando essas
regras possam conflituar com os princípios da equivalência e da efetividade, tal como definidos pela jurisprudência
do TJUE (ver, respectivamente, acórdãos de 1.12.1998, Levez, C-326/96, Colect. I-7835, nºs 41-43, e de 16.5.2000,
Preston e.a., C-78/98, Colect. I-3201, nºs 55-57; e acórdãos Francovich, cit., de 9.11.1983. San Giorgio, 199/82,
Colect. p. 3595, e de 5.3.1996, Brasserie du pêcheur et Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colect. I-1029, nº 67).
54
dos particulares aos tribunais da União50; (ii) os tribunais nacionais dos Estados-
membros são, verdadeiramente, os tribunais comuns de aplicação do direito da UE
em todo o território desta, funcionando os “tribunais do Luxemburgo” como
órgãos especializados de aplicação daquele direito, encarregados de velar pela sua
aplicação uniforme, e o Tribunal de Justiça como o verdadeiro “tribunal
constitucional” da ordem jurídica da União.
É da ação deste sistema no seu conjunto, envolvendo os tribunais nacionais e os
tribunais da União, que há-de resultar a garantia de uma proteção judicial
efectiva dos direitos dos particulares, tal como determinam o artigo 19º, nº 1, TUE
(Tratado da União Europeia) e o artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia.
3. É essencialmente pela via do reenvio prejudicial que o TJ tem sido solicitado, pelos
tribunais nacionais, a pronunciar-se sobre o nível de protecção dos direitos
fundamentais dos particulares na ordem jurídica da União, e em especial sobre o
direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito.
O Presidente Lenaerts falar-vos-á especificamente de um certo número de
acórdãos do TJ em que, no contexto das graves ameaças que enfrentam
actualmente as nossas sociedades abertas e democráticas e que põem em causa os
valores essenciais sobre os quais estas se baseiam, foi necessário estabelecer o
justo equilíbrio entre diferentes direitos fundamentais: por um lado, as exigências
primordiais de segurança de pessoas e bens, incluindo o próprio direito à vida e à
dignidade humana, e, por outro lado, o respeito pela vida privada e o direito à
protecção dos dados pessoais.
Todos estes acórdãos resultaram de reenvios prejudiciais de tribunais de
diferentes Estados-membros, tribunais com distintas posições na respectiva
hierarquia judicial. Ouvireis assim falar de Digital Rights51 (pedidos de decisão
prejudicial da High Court irlandesa e do Tribunal Constitucional austríaco), de
50 O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é actualmente constituído pelo Tribunal de Justiça (adiante
“TJ”, único competente para responder a questões prejudiciais dos tribunais nacionais) e pelo Tribunal Geral
(competente para conhecer, em primeira instância, de certos recursos interpostos pelos Estados-membros ou as
instituições da EU, bem como, nas condições definidas no artigo 263º, 4º parágrafo, TFUE, de recursos dos
particulares – ver, igualmente, artigo 256º FFUE). 51 Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland e Seitlinger, C‑293/12 e C‑594/12, ECLI:EU:C:2014:238.
55
Schrems52 (reenvio da High Court da Irlanda), de Google Spain53 (questões
prejudiciais da Audiencia Nacional espanhola), de Volker and Markus Schecke54
(reenvio do Tribunal Administrativo de Wiesbaden, na Alemanha).
Nos processos perante os tribunais nacionais foi discutida a interpretação e posta
em causa a validade de normas de directivas da União Europeia, relativas, em
particular, ao tratamento e à conservação de dados e à protecção da privacidade e
da confidencialidade das comunicações, bem como a validade de decisões das
instituições europeias para aplicação dessas directivas, ou mesmo de
regulamentos em matéria de política agrícola.
Ora, por um lado, como vimos, é ao TJ que compete interpretar, com força
vinculativa geral, qualquer norma de direito da União Europeia sobre a qual exista
uma dúvida razoável, assim se assegurando a uniformidade da sua aplicação pelos
tribunais nacionais.
Por outro lado, de acordo com uma jurisprudência constante desde 1987 (acórdão
Foto-Frost55), só o Tribunal de Justiça pode declarar a invalidade, à luz do Tratado,
de uma qualquer norma de direito da UE. Os particulares podem, contudo (nos
termos do artigo 277º TFUE), arguir, perante um tribunal nacional, por via de
excepção, a inaplicabilidade de uma norma de direito da UE que reputem contrária
ao Tratado, mesmo quando não têm legitimidade para impugnar directamente a
sua validade perante os tribunais da UE (Tribunal Geral e TJ). Para esse efeito, os
tribunais nacionais competentes estão obrigados a remeter ao TJ uma questão
prejudicial em apreciação de validade, sendo eles próprios incompetentes para
concluir pela invalidade de qualquer norma de direito da UE.
Em especial quando se trate de diretivas (ver artigo 288°, 3° parágrafo, TFUE),
compete aos Estados-membros assegurar a necessária transposição em direito
interno, de maneira a permitir alcançar os resultados pretendidos pelo legislador
da União.
Não admira, por isso, que uma segunda geração de casos tenha sido levada –
também pela via prejudicial – à consideração do TJ, a fim de que este ajuíze,
designadamente, da conformidade com normas ou princípios gerais de direito da
52 Acórdão de 6 de outubro 2015, Schrems, C‑362/14, EU:C:2015:650. 53 Acórdão de 13 de maio de 2014, Google Spain, C‑131/12, EU:C:2014:317. 54 Acórdão de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Schecke, C‑92/09 e C‑93/09, EU:C:2010:662. 55 Acórdão de 22 de outubro de 1987. Foto-Frost, 14/85, Colect. p. 4199.
56
UE (por exemplo, o princípio da proporcionalidade), bem como com o próprio
acórdão Digital Rights, das regras adoptadas no plano nacional para transposição
das directivas entretanto anuladas por aquele acórdão.
É esse o caso de questões prejudiciais provenientes do Reino Unido e da Suécia
(Tele2 Sverige e Tom Watson e.o.), que se encontravam em processo de deliberação
na altura em que teve lugar o presente Congresso56.
Não é de excluir, no entanto, que estas questões possam chegar ao TJ por outras
vias processuais, em especial através de pedidos de Parecer do TJ sobre projectos
de acordos internacionais, nos termos do artigo 218º, nº 11, TFUE. Estes
pareceres podem ser solicitados ao TJ por qualquer Estado-membro ou por
qualquer uma das três principais instituições políticas da UE (Parlamento Europeu
- PE, Conselho, Comissão). Se o Parecer do TJ concluir pela eventual
incompatibilidade do projecto de acordo com os tratados, o acordo projectado não
pode entrar em vigor, salvo se for alterado ou se se proceder a uma revisão dos
tratados.
Neste contexto, está actualmente pendente o pedido de Parecer 1/15, apresentado
pelo PE, sobre a transferência e o tratamento de dados dos passageiros de
transportes aéreos entre a UE e o Canadá (PNR).
Este procedimento (espécie de apreciação prévia da constitucionalidade de uma
norma) é particularmente importante, tendo em vista a conveniência de prevenir,
antes da entrada em vigor de um acordo internacional em que a União seja parte,
a ocorrência de contestações à sua legalidade já na fase de aplicação do acordo e
início de execução, com as consequentes perturbações no normal
desenvolvimento das relações internacionais.
4. As considerações que precedem levam-me a esclarecer um outro ponto, que tem
que ver com a questão mais geral da protecção dos direitos fundamentais na
ordem jurídica da União, anteriormente designada ordem jurídica comunitária.
Pode dizer-se que esta questão começou por não ser tema de apreciação
jurisdicional. A Comunidade Europeia não dispôs, durante muitos anos, de um
56 Posteriormente ao Congresso, foi proferido o acórdão de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Tom Watson,
C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:970.
57
catálogo escrito de direitos fundamentais, o que não é surpreendente, uma vez que,
na sua primeira fase de construção e desenvolvimento, se tratava essencialmente
de um esquema de integração baseado em “meras” liberdades de carácter
económico e comercial. Por isso, só após alguns anos a jurisprudência foi
confrontada com a questão dos direitos fundamentais na ordem jurídica
comunitária.
Invocada, no final dos anos 1950 e na primeira metade dos anos 1960, perante um
alto tribunal alemão e um alto tribunal italiano, a incompatibilidade de certas
normas do chamado “direito derivado” da Comunidade com princípios e direitos
fundamentais consagrados nas constituições desses países, o TJ começou por não
se considerar competente para se pronunciar sobre tal questão.
Foram, curiosamente, a insistência e a pressão dos tribunais constitucionais
alemão e italiano – recorde-se a famosa jurisprudência “Solange”, do
Bundesverfassungsgericht – que levaram o TJ a inflectir o rumo e a abrir o caminho
para uma jurisprudência de grande alcance e extremamente avançada para a
protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica da UE.
Para o efeito, apoiando-se na consideração de que os direitos humanos
fundamentais faziam parte integrante dos princípios gerais do direito comunitário,
que a ele competia proteger, o TJ inspirou-se nas tradições constitucionais comuns
aos Estados-membros e nas orientações fornecidas pelos tratados internacionais
de protecção dos direitos humanos, que os Estados-membros assinaram ou em
cuja elaboração colaboraram, em especial a Convenção Europeia para a Protecção
dos Direitos Humanos e da Liberdades Fundamentais (CEDH), para ir definindo,
paulatinamente, um catálogo não formal de direitos fundamentais que foi impondo
na sua jurisprudência57.
A evolução neste sentido culminou com a proclamação, pelas três instituições
políticas (Parlamento Europeu - PE, Conselho, Comissão), por ocasião do Conselho
Europeu de Nice, de dezembro de 2000, de uma Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia, a qual foi retomada (com alguns ajustamentos), em dezembro
57 Sobre a evolução jurisprudencial que conduziu ao reconhecimento dos direitos humanos fundamentais na ordem
jurídica comunitária, ver J. L. da Cruz Vilaça, “A proteção dos direitos fundamentais na ordem jurídica
comunitária”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Studia Iuridica 61, Boletim da
Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, p. 415.
58
de 2007 e à qual foi conferido, na altura do Tratado de Lisboa, pelo artigo 6º TUE,
“o mesmo valor jurídico que os Tratados”.
É, em síntese, o respeito por direitos hoje em dia consagrados na Carta que está em
causa, direta ou indiretamente, na jurisprudência à qual se referirá o Presidente
Lenaerts.
Lembrem-se, em particular, os direitos consagrados nos artigos 1º (Dignidade do
ser humano), 2º (Direito à vida), 3º (Direito à integridade do ser humano), 4º
(Proibição da tortura e dos tratamentos desumanos ou degradantes), 6º (Direito à
liberdade e à segurança), 7º (Respeito pela vida privada e familiar) e 8º (Protecção
de dados pessoais), todos da Carta Europeia.
Convém ainda sublinhar, neste contexto, a importância dos preceitos finais da
Carta que regem a interpretação e a aplicação desta.
Assim, o artigo 51º, nº 1, esclarece que as disposições da Carta têm por
destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, bem como os Estados-
membros, mas estes apenas quando apliquem o direito da União. Na mesma linha,
o nº 2 do mesmo artigo 51º sublinha que a Carta não alarga o direito da União para
além das competências desta e também não cria para esta, nem modifica,
quaisquer atribuições ou competências.
Quer isto dizer que, em se tratando de atos dos Estados-membros, as disposições
da Carta e os direitos nela consagrados só são aplicáveis quando a situação
controvertida seja abrangida pelo âmbito de aplicação de outras disposições
materiais do direito da UE.
Se assim é, questões prejudiciais como as que foram já remetidas ao TJ por
tribunais britânicos e suecos sobre a compatibilidade de normas internas com a
Carta (às quais já me referi) caem, em princípio, na competência interpretativa do
TJ.
5. Para terminar, gostaria de insistir num ponto: a “jurisprudência direitos
fundamentais” do TJ constituiu, para além de uma antecipação da Carta Europeia,
uma etapa decisiva no processo de “constitucionalização” dos tratados,
promovido, passo a passo, pelo TJ, na ausência de uma Constituição em sentido
formal e na falta, até à data, da expressão de um poder constituinte autónomo, no
59
plano europeu, gorada que foi, em 2005, a tentativa de adoção do “Tratado que
instituía uma Constituição para a Europa”.
O Tratado de Lisboa trouxe também uma outra novidade importante quanto à
tutela jurídica dos direitos fundamentais na UE, ao prever, no artigo 6º, nº 2, TUE,
que a União adere à CEDH. Por essa via, a CEDH passaria a fazer parte integrante
do direito da UE e se instituiria um controlo externo do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos - TEDH, de Estrasburgo, sobre as instituições da União quanto à
aplicação da Convenção.
Abertas em 2010 as negociações para celebração de um acordo de adesão entre a
UE e o Conselho da Europa, estas culminaram, em abril de 2013, num projeto de
acordo de adesão. A fim de garantir a segurança jurídica numa matéria tão
delicada, a Comissão solicitou ao TJ, ao abrigo do artigo 218º TFUE, que se
pronunciasse sobre a questão de saber se o referido projeto era compatível com os
Tratados.
Pelo Parecer 2/13, o TJ concluiu que, tendo em conta os vários problemas que
identificou, o projeto, tal como estava redigido, não era compatível com o artigo 6º,
nº 2, TUE nem com o Protocolo nº 8, anexo ao Tratado e relativo às condições a
respeitar nesta adesão.
Foi, basicamente, em nome da necessidade de preservar a especificidade e a
autonomia da ordem jurídica da União e do sistema jurisdicional instituído pelos
Tratados que o TJ assim se pronunciou. E não é para admirar, dada a dificuldade
da operação: a Convenção Europeia foi concebida como um instrumento de direito
internacional destinado a vincular Partes Contratantes que eram, na sua
totalidade, Estados internacionalmente soberanos.
Ora o projeto de acordo de adesão foi estruturado sem ter suficientemente em
conta a realidade de que a União não é um Estado, antes constituindo um tertium
genus, caraterizado por uma complexidade institucional que a distingue dos
Estados que a compõem e das organizações internacionais de que possa vir a fazer
parte (no caso, a CEDH, adotada no quadro do Conselho da Europa), juntamente
com os seus Estados-membros.
O TJ não fechou, porém, ao contrário do que alguns pensavam, definitivamente a
porta a uma adesão. Pelo contrário, deixou, no seu Parecer, orientações claras para
revisão futura do projeto.
60
Em todo o caso, não é por isso que, neste ínterim, o nível de proteção dos direitos
fundamentais na UE é minimamente afectado. Por um lado, o artigo 52º, nº 3, da
Carta estipula que, na medida em que esta contenha direitos correspondentes aos
que são garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos
conferidos por essa Convenção, sem que isso impeça o direito da União de conferir
uma protecção mais ampla. Por outro lado, artigo 53º (sob a epígrafe “Nível de
proteção”) estabelece que a Carta deve ser interpretada no sentido de que
nenhuma das suas disposições pode restringir ou lesar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo
direito da UE, o direito internacional e as Convenções de que são partes a União ou
todos os seus Estados-membros, nomeadamente a CEDH, bem como pelas
constituições dos Estados-membros.
No fundo, o que está em causa é a dificuldade de organizar, em todas as suas
dimensões, um sistema polimórfico, multilevel, em que convergem, ao menos, três
ordens distintas mas mutuamente permeáveis de protecção dos direitos
fundamentais: a União Europeia, com a sua Carta; o Conselho da Europa, com a
CEDH; e os Estados-membros da UE, com os respectivos catálogos constitucionais
de direitos fundamentais.
Mais delicado o exercício se torna perante o imperativo de respeitar, em qualquer
caso, a identidade constitucional fundamental de cada parte constitutiva deste
conjunto complexo.
Mas essa é a tarefa do TJ, enquanto Tribunal Constitucional da União Europeia,
como bem o ilustrará, no domínio da protecção dos dados pessoais, a exposição do
Presidente Koen Lenaerts.
61
TRANSMISSÃO DE DADOS E DEMAIS SERVIÇOS PÚBLICOS DE
TELECOMUNICAÇÕES
Juarez Quadros
Se olharmos a Constituição Federal de 1988, nota-se que o Artigo 21 dizia, do que
competia a União, no Inciso XI: “explorar diretamente ou mediante concessão a empresa
sob controle estatal.....”, para explorar os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão
de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de
serviços de informações por entidade de direito privado via a rede pública de
telecomunicações explorada pela União.
Em 1995, por meio da Emenda Constitucional de número 8, esse artigo foi
modificado no seu Inciso XI, para: “explorar diretamente ou mediante autorização,
concessão, ou permissão, os serviços de telecomunicações nos termos da lei, que disporá
sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos
institucionais”. Então, surge a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) e a Anatel.
A LGT Artigo 60 parágrafo 1º define o que é serviço de telecomunicações quando
diz: “telecomunicações é a transmissão, emissão, ou recepção por fio, radio eletricidade,
meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético de símbolos, caracteres, sinais,
imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. Em seguida, a Lei dispõe sobre o
que é serviço de valor adicionado justamente no Artigo 61: “serviço de valor adicionado é
a atividade que acrescenta a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o
qual não se confunde novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento,
apresentação, movimentação ou recuperação de informações”.
Ainda no parágrafo 1º, também é disposto que o serviço de valor adicionado não
constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do
serviço que lhe dá suporte com os direitos e deveres inerentes a essa condição. No
parágrafo 2º é assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de
telecomunicações para a prestação de serviço de valor adicionado, cabendo à Agência
62
assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como, o relacionamento entre
as prestadoras de serviços de telecomunicações.
A lei de 1997 foi uma boa solução para as questões presentes até a década passada,
quanto à ordem institucional, econômica e tecnológica, ocasião em que não havia nenhum
acesso banda larga.
Em 1997 havia 17 milhões de telefonia fixa e quase 5 milhões de acessos de
telefonia celular, como já dito. A Lei foi uma boa solução para as questões presentes até
aquela década passada, mas o crescimento da internet em um ritmo cada vez mais
acelerado, gerou, gera e vai gerar ainda mais o que está em destaque no mundo todo, que
é essa desrupção econômica, via, justamente, a transformação tecnológica que impacta
toda a estrutura tanto legal, quanto a regulatória. Tanto que, em agosto de 2016, o que se
tem no Brasil: 42 milhões de acessos de telefonia fixa (serviço que está diminuindo ano a
ano). No celular em 1997 tínhamos 4,6 milhões de acessos, agora, em agosto de 2016
estamos com 252 milhões e a banda larga com 222 milhões, considerando-se acessos com
a rede fixa, e os acessos com telefonia celular. E lá vem facebook, yahoo, twitter e tudo
mais, tudo suportado justamente por esses acessos. É importante notarem que a inovação
tecnológica causa forte impacto em todas as estruturas legais e regulatórias, não só no
Brasil.
É notado no mundo inteiro que a inovação regulatória está a reboque da inovação
tecnológica. O FCC nos Estados Unidos (agência reguladora desde 1942), enfrenta o
mesmo problema. A Comunidade Europeia junta seus órgãos reguladores para tratar
dessas questões. Então, chegamos a um ecossistema digital, com uma convergência
tecnológica total. Esse ecossistema digital ou mundo digital, chega à condição de uso dos
aplicativos via internet. Então, usando a teoria dos conjuntos da matemática, temos o
conjunto das telcos e o conjunto das OTT’s (over-the-top). A OTT, no caso mencionado
está dentro da região de intercessão dos dois conjuntos, seja, tanto de telcos, quanto de
OTT’s. Enquanto isso, os governos não arrecadam tributos, porque esse serviço não é
regulado. Os provedores de conteúdo não estão sendo remunerados no uso dos conteúdos
que acabam sendo utilizados. Os detentores de rede também não são remunerados pelo
uso das redes e o judiciário não está sendo obedecido nas suas solicitações. Mas há um
63
destaque, o usuário está muito satisfeito, porque ele pode usar essa facilidade, reduzindo
a sua despesa com o uso de serviços de telecomunicações ou até mesmo de internet.
Como regular OTT não é fácil, todos os países onde o fato está acontecendo,
ninguém está conseguindo. Estão todos analisando para ver o que realmente precisaria
ser feito. Estamos diante de novas fronteiras, não é uma só fronteira, são muitas
fronteiras para tratar de como regular esse ambiente de ampla competição. O que
reclamam os setores dentro do conceito do “level playing field”? Eles entendem que o jogo
está em uma plataforma inclinada e eles pedem que fique pelo menos na horizontal para
todos, ante as assimetrias ou simetrias que são necessárias nos ambientes de regulação.
Há uma série de variáveis a serem consideradas, os efeitos estáticos e dinâmicos
sobre a competição decorrente da aplicação de obrigações. Como redefinir essa fronteira
regulatória? No contexto atual, como regular o limite quanto a interface ou a relação entre
os atores e provedores de infraestrutura de redes e telecomunicações e os agentes OTT’s?.
O entendimento segundo o Artigo 61 no seu parágrafo 2º da LGT é que não tem como
regular, permitir ou facilitar que a rede seja usada por esses detentores de aplicativos.
Então, como desenhar de forma inovadora a assimetria regulatória? Como aumentar a
regulamentação dos serviços emergentes ou diminuir a regulamentação dos serviços
tradicionais? Não há resposta no momento. Ainda falando da regulação, da modulação da
atividade regulatória, há que ser garantida toda uma sequência de quanto ter ou não ter
heterogeneidade da infraestrutura, de grau de competição no Brasil, principalmente por
ser um país continental.
Como fazer tudo isso sem observar as particularidades geográficas que requerem
uma abordagem regulatória diferenciada? Como no Brasil tratar a questão da
previsibilidade?. Como considerar que essas inovações devam ocorrer em todas as
camadas?. E para resumir, o que se vê é que as aplicações sobre a rede são muitas, de toda
a ordem e serão muito mais.
Como essa receita não é sentida pelos detentores de redes, pelos provedores de
conteúdos, e pelos Estados, há necessidade de investimento em infraestrutura do setor de
Telecom, que são os detentores de rede, para poder dispor de rede compatível para o
64
tráfego, porque está diminuindo o tráfego de voz na telefonia fixa quanto na celular, mas
existe a necessidade de rede em função do tráfego demandado pelo uso desses aplicativos.
Essa demanda cresce e com riscos, inclusive, de não atender o tráfego gerado. Então, há
necessidade de investimentos, seja em fibras ótica, seja em satélites e toda a
infraestrutura que permita dar vasão a esse tráfego. Em função de ter que investir e não
ter receita, há uma queda na taxa de retorno do investimento e todos reclamam.
Entendo que há necessidade de ver tudo o que está acontecendo. Não é algo só
nosso, é um momento mundial em função da tecnologia que passa por muita inovação a
toda hora, não é nem a todo dia, ou a todo mês, ou a todo ano.
Obrigado!
65
A INTEROPERABILIDADE LEGISLATIVA E O POLICYMAKING
COLABORATIVO
Luca Belli*
*Doutor e pesquisador sênior do CTS da FGV no Rio.
Resumo
Essa fala analisa brevemente o policymaking colaborativo, no âmbito da internet, a fim de
ilustrar a utilidade desta tipologia de processo para promover a interoperabilidade no
ecossistema digital. Depois de uma breve análise do princípio da interoperabilidade de
um ponto de vista técnico e do ponto de vista legislativo, oferecerei um exemplo concreto
de como a interoperabilidade legislativa pode ser estimulada por meio de um processo
bottom-up, aberto e participativo. Nomeadamente, analisarei a experiência do Marco
regulatório padrão sobre neutralidade da rede, cuja elaboração tive a honra de coordenar,
no âmbito do Fórum de governança da internet das Nações Unidas, e cujos elementos
foram incorporados em várias normas, como a Recomendação do Conselho da Europa
sobre neutralidade da rede.
Queria, em primeiro lugar, parabenizar o IDP pela realização desse evento
excelente e também agradecer a Sérgio Alves e a Laura Mendes, que me convidaram. O
objetivo da minha fala é estimular uma discussão sobre o policymaking colaborativo a fim
de ilustrar o interesse na aplicação desse tipo de processo para promover a
interoperabilidade no ecossistema digital. Particularmente, queria analisar o princípio da
interoperabilidade de um ponto de vista técnico, mas, também, de um ponto de vista
legislativo. Então, o caráter da minha análise será duplo: a fala terá uma finalidade
substancial, ou seja, debater o conteúdo e a relevância da interoperabilidade, mas terá
também uma finalidade processual, ou seja, debater como pode ser implementada, na
pratica, a participação do maior número de partes interessadas – geralmente definidos
como “stakeholders” – na elaboração das normas técnicas, bem como das policies que
regulam a internet. Tal participação multissetorial é um elemento fundamental do que eu
66
chamo de “direito consuetudinário da internet”58, ou seja, o conjunto de normas
consuetudinárias que regram o desenvolvimento de padrões técnicos e policies que
permitem o funcionamento de vários aspectos da internet.
Voltando à interoperabilidade, como vocês sabem, com certeza depois de 2 dias de
congresso debatendo a internet, a internet é uma rede de redes interoperáveis. Mas o que
isso significa, concretamente? Principalmente, que a interoperabilidade das redes que
compõem a internet é baseada na utilização de padrões técnicos comuns, que são
utilizados por todas as operadoras, por todos os provedores de serviços na internet. Esses
padrões são adotados voluntariamente pelas operadoras e pelos provedores por causa da
eficiência dos padrões técnicos ou, às vezes, a adoção dessas normas técnicas é imposta
pelos reguladores das telecomunicações. Por exemplo, no caso da transição do IPv4 (ou
seja, a 4ª versão do protocolo IP) até o IPv6, os reguladores nacionais, como a ANATEL,
têm desempenhado um papel fundamental na estimulação da transição. Nesse sentido,
quando os atores do mercado têm demostrado reticências na adoção do IPv6, apesar da
eficiência do padrão, os reguladores desempenham uma função essencial na promoção
das normas técnicas, impondo a adoção de tais normas.
Por que a interoperabilidade desempenha um papel essencial no interesse
público? Porque permite que qualquer usuário possa ter acesso a uma rede
interconectada, compartilhar informações e utilizar serviços, independentemente da
localização geográfica do usuário ou da operadora que está usando. Esse elemento é
essencial porque, no âmbito da internet, a interoperabilidade se torna uma base do direito
fundamental à liberdade de expressão. Assim, a liberdade de expressão é a liberdade de
procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, sem
interferência, e independentemente de fronteiras. A interoperabilidade facilita o pleno
gozo dessa liberdade fundamental, permitindo a livre circulação das informações e de
inovação. Na verdade, cabe considerar que, no ecossistema digital, a liberdade de
compartilhar e receber livremente ideias significa ter a liberdade de acessar e
compartilhar livremente inovações, como novos aplicativos e serviços inovadores que,
num ambiente interoperável, podem ser desenvolvidos – e compartilhados – por cada
58 Veja Luca Belli. De la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp. 168-170.
67
usuário. Enfim, de um ponto de vista econômico, a interoperabilidade é muito positiva
porque reduz os custos transitivos dos provedores de aplicativos. Quando um provedor
pode difundir serviços em qualquer rede porque todas as redes são interoperáveis, o
provedor elimina o custo de adaptar o seu serviço a diferentes sistemas técnicos. Então
uma rede de redes interoperáveis torna os serviços escaláveis, porque é muito mais fácil
e mais econômico expandir o sistema.
À luz dessas considerações, a pergunta que gostaria de analisar é a seguinte: os
sistemas legislativos podem ser considerados sob a perspectiva de interoperabilidade?
Como vocês sabem muito bem, sendo constitucionalistas, qualquer sistema legislativo,
qualquer sistema jurídico, é baseado em normas domésticas que geralmente são
diferentes de um Estado para outro. A partir da Paz de Westfalia, de 1648, o princípio de
“Cuius regio eius religio” foi estabelecido como fundamento do sistema internacional. Este
princípio afirma que qualquer soberano define as regras no seu próprio território.
Subsequentemente à Paz de Westfalia, cada soberano adquiriu o direito de estabelecer a
religião dos seus sujeitos, definindo as regras que os seus cidadãos devem respeitar.
Voltando para a era da internet, o que significa ter uma discrepância, uma divergência
entre sistemas legislativos nos quais cada soberano define regras diferentes? Significa
uma falta de interoperabilidade legislativa entre sistemas. Significa que usuários
brasileiros podem ter níveis de proteção dos próprios direitos diferentes dos usuários
europeus, dos usuários americanos, e significa também que os atores do mercado têm
obrigações diferentes, por causa de regulações diferentes nos vários sistemas legislativos.
Então, a primeira pergunta que eu queria colocar hoje é: os sistemas jurídicos
podem ser interoperáveis? Claro que sim, e temos vários exemplos neste sentido. Ao nível
global, por exemplo, o Regulamento internacional das telecomunicações – sobretudo, a
versão de 1988 –foi essencial para a difusão da internet, estabelecendo regras comuns
sobre infraestrutura de telecomunicações, que harmonizaram todos os sistemas jurídicos
dos membros da União Internacional de Telecomunicações. Um outro exemplo é a atual
proposição de acordo sobre comércio eletrônico entre México e Brasil. Tal proposição de
acordo é uma tentativa bilateral de construir uma interoperabilidade legislativa entre
dois países. Finalmente, existem exemplos mais complexos de interoperabilidade
legislativa, como a União Europeia, que é uma organização supranacional cujo objetivo
68
precípuo é a definição de regras comuns – de diretivas e regulamentos – para harmonizar
os sistemas legislativos dos 28 Estados membros, ou seja, para promover a
interoperabilidade legislativa na área geográfica europeia.
Todavia, todos esses exemplos que mencionei são exemplos de origem
governamental, definidos de maneira top-down, ou seja, de cima para baixo. Então, a
segunda pergunta que eu queria colocar é: um esforço bottom-up, aberto e colaborativo,
que não seja iniciado pelo governo, pode estimular a interoperabilidade legislativa? Ou
seja, a interoperabilidade legislativa pode somente ser favorecida para iniciativas
governamentais ou tal processo poderia também ser iniciado por qualquer indivíduo, por
qualquer usuário da internet, como acontece, por exemplo, com a elaboração dos padrões
técnicos da internet no âmbito da IETF59 (a Internet Engineering Task Force) onde
qualquer pessoa pode – pelo menos teoricamente60 – propor a elaboração de uma nova
norma? Então, a pergunta é: é possível um esforço aberto e participativo para elaborar
padrões regulatórios abertos que permitam a interoperabilidade legislativa? Ou seja, é
possível replicar o processo participativo das organizações de padronização como a IETF,
para organizar um processo bottom-up e participativo a fim de elaborar princípios e
normas jurídicas que poderiam ser adotados voluntariamente para governos e
reguladores nacionais, ou para organizações internacionais? A compatibilidade dos
vários sistemas legislativos pode ser estimulada por um esforço bottom-up e
multissetorial ao invés de top-down e governamental? Existe um fórum ou um processo
que possa permitir esse tipo de esforço aberto, de baixo para cima e colaborativo? Claro
que sim, existe o Fórum de governança da internet das Nações Unidas (o IGF) que é um
dos principais resultados da Cúpula mundial sobre a sociedade da informação de 2003 a
2005, cujo mandato é definido pela Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação.61
Neste sentido, o Art. 72 da Agenda estabelece não somente que o Fórum deve facilitar a
troca de ideias, de informações, de boas práticas e deve fazer uma plena utilização da
consciência das comunidades acadêmicas, científicas e técnicas, mas especifica também,
nos incisos k e g, que o IGF deve “ajudar a encontrar soluções para as questões decorrentes
59 Veja Paul Hoffman. O Tao do IETF: Guia destinado aos novos participantes do Internet Engineering Task
Force. 2013. http://www.ietf.org/tao-translated-br.html 60 Para uma abordagem crítica aos filtros que limitam a participação nos trabalhos da IETF, veja: Luca Belli. De
la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp. 166-167. 61 A versão porguguesa da Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação pode ser acessada aqui
https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf
69
do uso e do mal-uso da Internet” e deve identificar as questões emergentes, “quando
necessário, fazendo recomendações.” Esse último ponto é um elemento que 99.9% dos
participantes do IGF não conhecem ou, simplesmente, ignoram. Ou seja, o IGF é
geralmente considerado como fórum de discussão, mas o mandato desse órgão inclui
explicitamente a elaboração de recomendações, caso seja necessário.
Então, seria possível implementar no IGF um processo participativo, aberto,
cooperativo para elaborar padrões jurídicos, da mesma maneira como acontece no IETF
no que diz respeito à elaboração de padrões técnicos? Claro que sim. Na verdade, o modus
operandi participativo dos grupos de trabalho da IETF pode ser replicado facilmente
porque, além de elaborar os padrões técnicos que definem como a arquitetura da internet
deve ser estruturada, o IETF já codificou o seu modus operandi nas RFC 2016 e RFC 2418.62
O processo de padronização da IETF começa com um rascunho de norma técnica que é
difundido em uma lista de difusão do grupo de trabalho que cuidará do assunto específico
e do qual qualquer pessoa63 pode participar. O rascunho é reelaborado e aprimorado
utilizando os comentários dos participantes, até o momento em que se atinge o rough
consensus, ou seja, o consenso aproximado sobre o texto. Quando tal consenso é atingido
no âmbito do grupo de trabalho, o rascunho aprimorado é enviado para o Internet
Engineering Steering Group que é o grupo onde se reúnem os diretores das áreas temáticas
da IETF que abrirão um processo dito de “Last Call”, a última chamada em que toda a
comunidade da IETF pode fazer uma última roda de comentários. Tais comentários são
subsequentemente consolidados no padrão técnico, nesta altura, o padrão será testado
para ver se pode funcionar concretamente, ou seja, se pode ser considerado “running
code”, código informático que funciona de maneira interoperável.
Na verdade, os constitucionalistas especialistas em direito americano devem ter
percebido que esse processo não é uma novidade da IETF porque relembra muitíssimo a
postura do mecanismo do “Notice and Comment” descrito na seção 553 do Administrative
62 Veja Scott Bradner. The Internet Standards Process - Revision 3. Request for Comments: 2026. 1996.
https://tools.ietf.org/html/rfc2026 ; Scott Bradner. IETF Working Group Guidelines and Procedures. Request for
Comments: 2418. 1998. https://tools.ietf.org/html/rfc2418 63 Como destaquei em presidência, “embora o IETF seja “aberto” a todos, cabe ressaltar que apenas os
indicviduos com habilidades técnicas elevadoas, um domínio da lingua inglêsa, o tempo necessário para
acompanhar o trabalho e os recursos económicos necessarios para as viagens internacionais e as taxas de
inscrição das reuniões do IETF podem participar de facto das atividades desse organismo.” Veja Luca Belli. De
la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, p. 167.
70
Procedure Act ou seja, o Código de Processo Civil Americano.64 Todavia, a diferença entre
o processo da IETF e o processo do Notice and Comment é que este último é um processo
consultivo totalmente gerenciado por agências governamentais. Ao contrário, o processo
da IETF é tipicamente bottom-up, ou seja, ascendente, e pode ser iniciado por qualquer
pessoa sem necessitar de intervenção governamental. Então, quando eu estava estudando
esses elementos há alguns anos, quando estava escrevendo a minha tese doutoral, eu me
perguntei: e se o modous operandi do IETF pudesse ser replicado para construir padrões
jurídicos? E naquele mesmo momento, por coincidência, estava trabalhando como
consultor jurídico pelo Conselho da Europa, com a tarefa de elaborar uma série de
relatórios sobre a relação entre neutralidade da rede e direitos humanos.65 Então, a minha
ideia, um pouco não convencional, foi de criar um grupo de trabalho no IGF (tais grupos
de trabalho do IGF se chamam coalisões dinâmicas) sobre a neutralidade da rede para
elaborar um padrão regulatório aberto, de maneira participativa. Assim, qualquer pessoa
interessada na elaboração de um modelo padrão sobre neutralidade da rede teria a
possibilidade de participar da elaboração do modelo de marco regulatório que o Conselho
da Europa me pediu para sugerir e que foi anexado ao relatório final, submetido ao Comitê
sobre a mídia e sociedade da informação do Conselho da Europa, em 2013.66
É importante destacar que o marco regulatório padrão sobre neutralidade da rede,
dito “Model Framework”, era uma resposta para um problema muito relevante que estava
sendo verificado em vários países, ou seja, o problema do tratamento discriminatório de
conteúdo, aplicativos e serviços pelos provedores de acesso. Particularmente, os cidadãos
europeus tinham evidências empíricas que bloqueios ilegais e degradação abusiva de
aplicativos e conteúdo eram um fenômeno muito difundido naquele período. Em 2012,
uma investigação da Comissão Europeia e do BEREC (o Organismo de Reguladores
Europeus das Comunicações Eletrônicas) acabava de confirmar que 36% dos usuários de
64 Uma explicação de como os mecanismos do processo administrativo americano tem influenciado os
mecanismo participativos típicos do direito consuetudinário internautico pode ser encontrada em Luca Belli. De
la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp 239-242. 65 Vejam-se Luca Belli. Network Neutrality and Human Rights. Background Paper. Council of Europe. 2013;
Luca Belli. Council of Europe Multi-Stakeholder Dialogue on Network Neutrality and Human Rights. Outcome
Paper. Council of Europe, CDMSI(2013)misc 18E. May 2013; Luca Belli and Matthijs van Bergen. Protecting
Human Rights through Network Neutrality: Furthering Internet Users’ Interest, Modernising Human Rights and
Safeguarding the Open Internet. Council of Europe. CDMSI(2013)misc 19E. December 2013 66 Veja Luca Belli and Matthijs van Bergen. Protecting Human Rights through Network Neutrality: Furthering
Internet Users’ Interest, Modernising Human Rights and Safeguarding the Open Internet. Council of Europe.
CDMSI(2013)misc 19E. December 2013.
71
internet móvel e 25% de todos os usuários na Europa eram interessados por esse tipo de
restrições ilícitas.67 Então, uma solução devia ser encontrada para resolver um problema
tão difundido. Cabe destacar que o Conselho da Europa já em 2010 tinha apoiado o
princípio da neutralidade da rede, ou seja, o tratamento não discriminatório do trânsito
da internet, aprovando a Declaração do Comitê dos Ministros sobre Neutralidade da Rede,
cujo parágrafo 9º sugeria a elaboração de um “marco regulatório padrão” para fornecer
indicações sobre qual tipo de técnica de gestão do trânsito da internet poderia ser
considerada razoável e compatível com os direitos fundamentais dos usuários.
Cabe ressaltar, também, que o princípio de tratamento não discriminatório do
trânsito da internet está em total conformidade com a jurisprudência do Tribunal europeu
dos direitos humanos que, a partir dos anos 90, com o caso Autronic contra a Suíça68, até
o celebre caso Yildirim contra Turquia69 de 2012, estabeleceu explicitamente que a
liberdade de expressão não se aplica simplesmente ao conteúdo das informações, mas
também às medidas de transmissão das informações, como, por exemplo, a gestão do
trânsito da internet. Então qualquer restrição nessas medidas implica uma restrição à
liberdade de acesso e de compartilhamento das informações e, portanto, é admissível
somente quando for necessária e proporcional para atingir um fim estabelecido pela lei.
O marco regulatório padrão foi desenvolvido no curso do ano 2013 e foi
apresentado no IGF em 2013 e se encontra disponível em acesso aberto no site do grupo
de trabalho do IGF.70 Exatamente como os padrões técnicos da IETF, ele deve ser
considerado como uma norma aberta, acessível e utilizável para qualquer pessoa ou
entidade interessada. Neste sentido, uma coalisão de entidades da sociedade civil está
usando esse modelo de marco regulatório para fazer atividade de lobbying ao nível global,
pedindo leis que protegiam os direitos humanos no âmbito da neutralidade da rede.71
Como mencionei em precedência, o Model Framework foi incluído também no relatório
final que apresentei, com Matthijs van Bergen, no Comitê sobre a mídia e sociedade da
67 Veja BEREC. (26 November 2012). Differentiation practices and related competition issues in the scope of
net neutrality. Final report BoR (12) 132 68 Veja European Court of Human Rights. Autronic AG v. Switzerland, 22 May 1990. Application no. 12726/87.
http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57630 69 Veja European Court of Human Rights). 2012. Case of Ahmet Yıldırım v. Turkey. Application no. 3111/10.
http://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-115705 70 Veja https://networkneutrality.info/sources 71 Veja https://www.thisisnetneutrality.org/
72
informação do Conselho da Europa, em dezembro de 2013. A estrutura do marco
regulatório é muito parecida com a estrutura de um padrão técnico: inclui uma serie de
definições, dentre as quais a definição de neutralidade da rede como princípio de não
discriminação; estabelece exceções ao princípio de neutralidade que, claramente, não é
um princípio absoluto; prevê a aplicação do princípio a redes fixas, bem como às redes
móveis; prevê um direito a ter um endereço IP público, a fim de permitir a difusão do IPv6
e limitar o uso do Network Address Translation que é uma técnica de gestão pouco
transparente que pode gerar vários problemas; estabelece a necessidade de proteção da
privacidade dos usuários, a fim de evitar problemas gerados para técnicas de
monitoramento e gestão do tráfico, como a Deep Packet Inspection que têm um profundo
impacto na privacidade dos usuários; prevê a necessidade de obrigações de transparência
no que diz respeito às técnica de gestão de tráfego exploradas pelos provedores de acesso;
e, por fim, estabelece a necessidade de implementação das normas sobre neutralidade da
rede pelos reguladores nacionais que desempenham um papel fundamental no que diz
respeito à fiscalização.
Cabe destacar que, tendo sido utilizado para várias organizações como modelo
para fazer lobbying em favor da neutralidade da rede, muitos elementos do Model
Framework são particularmente visíveis no Regulamento (UE) 2015/2120 que estabelece
medidas relativas ao acesso à Internet aberta e, claramente, são muito visíveis na
Recomendação do Conselho da Europa sobre neutralidade da rede72, que se inspira
diretamente desse modelo. Cabe destacar que o objetivo do marco regulatório padrão não
é simplesmente oferecer sugestões sobre como proteger a neutralidade da rede de
maneira eficiente mas, também, favorecer a interoperabilidade legislativa em matéria de
neutralidade da rede, a fim de que usuários de países diferentes tenham níveis de
proteção homogêneos e provedores de aplicativos e conteúdo possam operar em países
diferentes sem ser bloqueados ou degradados indebitamente.
Para fazer, então, uma conclusão otimista, parece que o exemplo do Model
Framework confirma que é possível afirmar que a interoperabilidade jurídica pode ser
72 Veja Council of Europe. Recommendation CM/Rec (2016) 1 of the Committee of Ministers to member States
on protecting and promoting the right to freedom of expression and the right to private life with regard to
network neutrality.
73
estimulada por meio de processos bottom-up, abertos e colaborativos. Além disso, cabe
ressaltar que a interoperabilidade jurídica é extremamente desejável, para permitir que
os usuários de vários países tenham níveis de proteção dos direitos homogêneos e
também para reduzir os custos de transação enfrentados pelos atores do mercado digital.
Enfim, parece que o IGF é uma plataforma ideal para desenvolver proposições de policy,
que pode estimular a interoperabilidade legislativa, mesmo se os esforços nesse sentido
são muito raros. Como demostra o exemplo do Model Framework sobre neutralidade da
rede, os resultados desse tipo de exercício participativo podem ser utilizados
voluntariamente pelos vários policymakers a fim de inspirar os processos de regulação
nacionais ou internacionais. Assim, o IGF, bem como outros processos de governança da
internet, podem ser explorados para alcançar resultados concretos e permitir aos
diferentes stakeholders não somente debater problemas comuns, mas também sugerir
soluções concretas, estimulando um esforço voltado à interoperabilidade legislativa de
maneira bottom-up.
74
ECONOMIA DIGITAL
Luiz Alberto Gurgel de Faria73
Bem, eu gostaria de, nas minhas palavras iniciais, agradecer o convite que me foi
feito pelo Ministro Gilmar para participar deste evento e falar de um tema tão relevante,
que é o pertinente à economia digital. Mas eu não poderia, também, deixar de registrar a
satisfação de estar participando de uma banca com pessoas tão seletas e tão
especializadas na área sobre a qual nós vamos falar. O nosso Professor Everardo Maciel,
que revolucionou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, a Dra. Caroline, da OCDE, que
é um organismo que estuda por demais a questão da economia digital e os seus reflexos
em todos os países, o Dr. Jorge Rachid, que volta a emprestar a sua inteligência para a
Receita Federal, dirigindo tão bem esse órgão que é importantíssimo para a nossa nação,
e o Dr. Gustavo, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil, que está presidindo esta
Mesa. Eu gostaria de pedir licença a todos os integrantes da mesa para lembrar uma
rápida fala de um mestre para todos nós, brasileiros, e especialmente para nós,
nordestinos, Professor Everardo Maciel, que é o Ariano Suassuna. Esta fala do Ariano
Suassuna talvez muitos aqui já conheçam, mas eu gosto de lembrar que, diante da
composição desta Mesa, ela me veio à mente, obviamente no sentido reverso que depois
eu irei revelar, mas ela me veio à mente. O Professor Ariano, em uma das suas aulas
espetáculo, chegou e disse: “Olha, existe uma história de que, quando você vai falar mal de
uma pessoa, você tem que falar pela frente, para que aquela pessoa saiba. Isso é uma falta
de educação: você falar mal de uma pessoa na frente dela. Você não pode falar mal da
73
Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foi Juiz do Trabalho no Rio Grande do Norte (1993), Juiz Federal (1993/2000),
Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (2000/2014), no qual foi seu Diretor da Escola de Magistratura (biênio
2003/2005), Corregedor (biênio 2005/2007) e Presidente (biênio 2009/2011), além de ter sido Desembargador do Tribunal Regional Eleitoral
de Pernambuco (biênio 2011/2013). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre e Doutor em
Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Tributário na UFRN, atualmente em colaboração
técnica com a Universidade de Brasília (UnB). Foi Professor Visitante dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UFPE, como também
nos cursos de especialização em Direito Tributário e Direito Administrativo daquela instituição de ensino. Foi professor da Escola da
Magistratura do Rio Grande do Norte — ESMARN. Autor de vários artigos e livros jurídicos, havendo proferido diversas palestras em
seminários e congressos. É membro da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte (ALEJURN) e do Instituto Potiguar de Direito
Tributário (IPDT).
75
pessoa na frente dela; você tem que falar, na verdade, por trás. Então, não fale mal dessa
pessoa na frente, fale, efetivamente, por trás; mas, quando é um elogio, a gente tem que
fazer pela frente.”. Como eu já tive oportunidade de, no caso, fazer aqui a todos os
integrantes da mesa, queria pedir licença a todos para fazer um especial ao Professor
Everardo Maciel. Professor Everardo Maciel é de Pesqueira, no Estado de Pernambuco,
que é o meu Estado de nascimento, embora eu seja potiguar de coração e pelas raízes. E o
Professor Everardo, muito jovem, foi Secretário da Fazenda. Imaginem um desafio desse!
Depois passou por vários órgãos aqui em Brasília, inclusive pela Secretaria de Fazenda do
Distrito Federal e também pela Secretaria da Receita Federal. Hoje, empresta o seu saber
não só ao Instituto de Direito Público e atua como consultor de Direito Tributário. E, antes
de começar – sei que o tempo é curto, mas eu não poderia deixar de falar outra coisa que
me veio à memória, Professor Everardo. Era uma inauguração no interior do meu Estado
do Rio Grande do Norte e o Senador Dinarte Mariz, que é meu tio-avô, estava presente.
Era em Jucurutu, no sertão do meu Estado. Dinarte foi um grande agropecuarista,
comerciante, empresário, e era daquele tempo em que, primeiro, a pessoa enriquecia,
para, depois, ir para a política, e assim aconteceu com ele. Então, ele depois foi Governador
e, após, Senador. Nessa inauguração, o promotor estava fazendo um discurso e disse:
“Olha Dinarte ... elogiou, trouxe o currículo dele, que, efetivamente, para um homem do
campo, era um currículo belíssimo, mas só tinha o curso secundário, e, ao final, ele chegou
e disse: imagine se esse homem tivesse o curso de Direito? O que ele seria?” Dinarte
atalhou o discurso e disse: “Seria Promotor de Justiça em Jucurutu.” Quer dizer, sem
querer diminuir o Ministério Público, mas ele deu toda uma magnitude. Já com relação ao
Professor Everardo Maciel, o que a gente diria? Senhor Professor, se ele tivesse o curso de
Direito, ele seria o professor de todos nós, do Direito Tributário, seria o consultor de
Direito Tributário que é tão famoso e que nos empresta tanto saber. Mas, bem, vamos ao
tema da economia digital. Eu gostaria de dizer aos senhores que esse tema é muito
relacionado à questão do Direito Tributário Internacional. Então, por óbvio, nós vamos
tratar dessa questão, mas eu gostaria de falar um pouco da economia digital do nosso dia
a dia, a economia digital um pouco no âmbito, digamos assim, do nosso Direito Tributário
Doméstico, para, só então, falar da parte da tributação internacional. E eu começo
destacando que a nossa palestra, a nossa exposição será a respeito da economia digital, só
que nós não estamos tão só no âmbito de uma economia digital, nós estamos, na verdade,
no mundo digital. Hoje a gente não consegue mais viver sem estar ligado nos nossos
76
Smartphones, nos nossos Ipads, nos nossos computadores. Em qualquer lugar a que nós
chegamos e que não tem internet, a gente já fica ali, na verdade, com um verdadeiro pavor,
com uma verdadeira preocupação, porque isso passou a ser quase como a necessidade de
água, de energia elétrica. Então, há uma efetiva necessidade de nós termos esse contato
com o mundo digital. Apenas para exemplificar o que é isso, eu gosto de trazer uma foto
que retrata que daqui a pouco os bebês, no ventre, já vão estar, de alguma forma, tendo
um contato com o mundo digital; porque essa foto simboliza bem qual é a realidade que
nós estamos vivendo. Todos, a partir da infância, mesmo ali, ainda bebês, começam a ter
contato seja com telefones celulares, seja com Ipad, seja com computadores. Então, essa é
uma realidade que, às vezes, como educadores, como pais, como professores, preocupa-
nos, mas está aí, e nós não podemos fugir dela. Então, no que diz respeito ao mundo
tributário, ao sistema tributário, nós não podemos também fugir disso. Então, os países
têm que se preparar para ser tal realidade, o mundo tem que se preparar para ser essa
realidade, porque, com a globalização e com a força que a internet trouxe para essa
realidade digital, nós não temos como fugir dela. E eu entro, como eu gostaria de
mencionar, para a relevância da economia digital no ambiente doméstico, sem ainda falar
da parte especificamente do Direito Tributário Internacional. Vejam os senhores como o
comércio eletrônico vem ganhando força a cada ano. A gente teve, no ano de 2011, 18,7
bilhões de vendas através do chamado comércio eletrônico e, no ano passado, 41,3
bilhões, com a projeção de ter, neste ano, em face das dificuldades que todos nós sabemos,
um aumento relativamente pequeno de 8%, mas passando a ter 44,6 bilhões de reais em
transações através do comércio eletrônico. É, efetivamente, um mundo digital se
transpondo para o mundo real. Nós temos, então, as pessoas fazendo cada vez mais
aquisições sem que precisem sair das suas casas, fazendo essas compras de forma direta
através dos seus Smartphones, dos seus computadores, dos seus tablets; fazendo compras
dos mais diversos bens – livros, passagens aéreas, televisões, eletrodomésticos, de uma
maneira geral – sem sair de casa, e com um detalhe: muitas vezes, com preços bem
melhores do que se nós formos comprar no mundo real, numa loja. Inclusive, abrindo uma
janela, quem quiser fazer alguma compra em uma loja (em termos físicos), primeiro faça
uma pesquisa na internet, veja qual o preço daquele produto (na internet), imprima e leve
para uma loja. É uma dica que eu dou, porque, na realidade, isso eu já fiz várias vezes e
sempre consigo um desconto, porque na internet, geralmente, está mais barato. Chega ao
ponto de, por exemplo, livro, na Saraiva – não estou fazendo propaganda aqui de nenhuma
77
loja Saraiva, Cultura, enfim, qualquer uma que seja – a gente vai e procura, e geralmente
está mais barato do que se a gente for diretamente às livrarias; só que livraria tem,
digamos assim, aquele prazer de você ir lá, de tocar o livro, de estar vivenciando aquele
mundo. Então, eu não consigo fazer a compra através da internet, e continuo indo, mas,
quanto a vários outros produtos, efetivamente é muito mais fácil você comprar no mundo
digital (através da internet). Em razão disso, qual foi o reflexo para o Direito Tributário, o
que aconteceu? Todos nós sabemos que, na Constituição, pela redação originária, os
Estados de destino só receberiam uma parcela do ICMS se quem estivesse comprando
fosse também contribuinte. Para deixar mais claro, vamos imaginar uma determinada loja
no Rio Grande do Norte que fosse vender uma camisa da Lacoste – não estou fazendo
propaganda nenhuma, mas apenas me lembrando de uma marca, como Brooksfield,
Richard, qualquer marca dessas. Então, a loja, na hora em que ela comprava da sede –
vamos imaginar que fosse em São Paulo e, sendo ela contribuinte do ICMS, quando ela
fosse vender, o Rio Grande do Norte ficaria com uma parcela do ICMS. Por quê? Porque
quem estava comprando para revender era contribuinte desse tributo. Então, a operação
dava direito a uma parcela do tributo também para o Estado destinatário, o Estado onde
aquele produto ia ser consumido; afinal de contas, a gênese, a ideia do ICMS é ser um
imposto sobre o consumo, motivo pelo qual o Estado onde ele seria consumido iria
também ele receber uma parcela. Só que o comércio eletrônico mudou essa realidade.
Quem estava comprando não era contribuinte do ICMS, mas pessoas físicas. Então, como
elas não eram contribuintes, o Estado destinatário não estava recebendo nada de
tributação, e isso estava gerando uma insatisfação muito grande, porque o comércio
eletrônico estava aumentando –como eu já comentei aqui com vocês – e os Estados
destinatários não recebiam nada. O que é que os Estados fizeram? Fizeram um protocolo,
no ano de 2011, subscrito por todos os Estados do Nordeste, prevendo que, mesmo que o
consumidor não fosse contribuinte do ICMS, o Estado destinatário teria direito a uma
parcela da tributação. Vejam só! Isso violando totalmente a nossa Constituição! Quer
dizer, os Estados pensaram que poderiam resolver o problema fazendo um convênio, um
simples protocolo e tangenciado uma regra clara, precisa da nossa Constituição. Qual foi
o resultado? No ano de 2014, uma vez provocado, o Supremo Tribunal Federal não
poderia fazer outra coisa que não dizer que, na realidade, essa disposição, esse protocolo
que foi assinado é inconstitucional. Não se pode mudar a Constituição através de qualquer
outro ato normativo, muito menos um protocolo subscrito pelos secretários da Fazenda,
78
por mais respeitabilidade que eles tenham, por óbvio. Então, houve a declaração de
inconstitucionalidade, no ano de 2014, após o que os Estados fizeram o correto. Todos nós
conhecemos a Emenda Constitucional 87, que trouxe a previsão de que, quando a
mercadoria fosse vendida também para não contribuinte, os Estados de destino da
mercadoria ficariam com uma parcela da tributação, e até para que, digamos assim, os
Estados de origem pudessem ir se organizando quanto as suas receitas. A regra é essa,
mas foi previsto que isso fosse escalonado até o ano de 2019. Então, os Estados de destino
ficarão com a diferença entre a alíquota interestadual e a alíquota interna – 100% apenas
no ano de 2019, mas eles já começaram a receber uma parcela, de forma progressiva. Isso,
na minha visão, Dr. Rachid e Professor Everardo, que lidam mais com o dia a dia dessa
situação, está correto, já que se trata, no caso, de um imposto de consumo. Então, o Estado
de destino precisava ter uma parcela a respeito disso. E essa modificação na Constituição
foi necessária em face do mundo digital, da economia digital. O direito tributário precisa
se readequar a essa realidade, e foi preciso uma norma constitucional ser alterada, via
emenda, para que o mundo tributário se adequasse ao mundo digital, à nova realidade
que estava surgindo. Vamos a um segundo exemplo muito simples e que começa
exatamente na internet, que deu origem a toda essa discussão acerca da economia digital.
Vejam que uma decisão do Superior Tribunal de Justiça do ano de 2005 disse que os
provedores de acesso à internet exercem atividade que não está sujeita ao ICMS, porque
os Estados queriam cobrar o ICMS. E eu disse não, porque aqui, na verdade, não se
constitui serviço de telecomunicação, mas um serviço agregado, que, como tal, não está
dentro das hipóteses de incidência do ICMS. Pode ser ISS, mas ainda não está previsto na
lei dos serviços, não está incluído no anexo da lista de serviços. Então, diante desse fato,
não se cobra ICMS nem ISS. Vejam: uma decisão em 2005 e, 10 anos depois, em 2015,
ainda não havia cobrança do ISS no que diz respeito aos provedores de acesso à internet,
porque não havia lei. Por que eu estou chamando atenção para isso? – já estou recebendo
advertência do Dr. Gustavo, que, de forma bem discreta, levantou os dois dedos, como se
tivesse dando paz para mim, mas eu já sei que é tempo. Ele está se vingando muito bem,
mas vamos lá! – Porque o sistema tributário precisa ser mais célere, para se adequar a
essa realidade da economia digital, do mundo digital (eu vou falar um pouco depois sobre
isso). É bem verdade que há uma previsão de passar a haver tal tributação, mas o tema
está de volta ao Senado. Mas vejam que em 2005 houve uma decisão do STJ, e 11 anos
depois ainda não existiu essa realidade, de forma que os provedores de acesso à internet
79
ainda não pagam nem o ICMS, que, na verdade, não caberia, nem o ISS. E o que eu trago de
novidade no que diz respeito à economia digital, à parte da tributação que interessa para
todos nós? A quantidade de startups e de aplicativos que estão surgindo e tendo sucesso,
de modo que, no tocante à tributação, é preciso haver uma adequação. Vejamos o exemplo
do Uber. São Paulo criou uma determinada cobrança de uma outorga no que diz respeito
ao número de quilômetros rodados. Está certo? Mas quanto ao Uber não há, no caso, ainda,
uma cobrança no que diz respeito a imposto sobre serviço, especificamente no âmbito do
município. Há uma discussão quanto a isso, mas é uma realidade. Temos também o Airbnb.
Agora o Brasil está preocupado com essa situação; os hotéis estão reclamando. É uma
novidade – vejam só, essas novidades são sempre boas para nós consumidores, e eu não
estou querendo desmerecê-las, de maneira alguma, pois são importantes e que, cada vez
mais, nós tenhamos gente no mercado que venha a oferecer bons serviços –, mas o sistema
tributário precisa ir se adequando a essa realidade. Então, tudo bem que não está lá na lei
dos serviços a parte de locação de imóveis, mas, na hora em que há um agenciamento e
aquele imóvel é colocado para hospedar pessoas, qual é a realidade dessa situação? Como
é que o Direito Tributário vai enfrentar essa questão? Já há discussão no Brasil,
envolvendo inclusive os países do Mercosul, no tocante a uma eventual tributação no que
diz respeito ao Airbnb. Spotify, que eu tenho e adoro. No caso, você tem, no seu celular,
Ipad, computador, um serviço de músicas, e o que o Spotify está pagando em termos de
tributação? – e eu já vou mostrar a minha conta, uma conta que tenho a respeito disso
(pelo tempo) . Eu também tenho Netflix e pago um valor, e quanto é que ele está pagando
de tributação? Há ensejo para o ISS? Já respondo que, quanto ao Spotify e ao Netflix, por
enquanto, não, mas na nova lei que está modificando os serviços, sim, vai haver uma
tributação. O iCloud é um serviço da Apple, que todos nós conhecemos, para que a gente
possa colocar determinados dados nossos nas nuvens, sejam fotos, contatos e muitos
outros dados. Quando a gente paga a Apple, qual é a tributação que está havendo sobre
isso? Sem falar em outras novidades que certamente virão. Eu trago aqui o exemplo de
uma conta da Net, que é a TV por assinatura, e vejam que aqui é uma conta agora de
outubro. Um valor altíssimo (realmente, a conta de TV é cara), e ali há COFINS, 3%, mas
qual é o valor? ICMS 28%, e qual é o valor? PIS, 0,65%, qual o valor? E eu vou trazer aqui
uma conta do cartão de crédito – não coloquei meus dados do cartão, em respeito ao sigilo
deles, mas são valores reais. Está certo? Olha a minha conta do Spotify. O que aparece?
Brasil, 22,35 reais. Não sei o que está sendo pago em termos de tributo, quanto é que está
80
sendo pago, mas pelo menos o Spotify abriu alguma coisa no Brasil. E quanto à Apple,
quando eu pago o que eu compro na Apple Store? Aqui, por exemplo, é a minha conta
mesmo, e eu só coloquei um dado. Conta mensal, baratinha, relativo ao iCloud é 1 dólar só,
0,99 centavos de dólar. Muito barato, mas onde é que isso está sendo tributado? Apareceu
CA como país, e eu imagino que seja o Canadá, mas fiquei na dúvida se não seria uma sigla
do Estado da Califórnia, que é a sede da Apple. Você diz: mas é 1 dólar! Mas imagine
quantas pessoas não pagam para ter o iCloud! Será que o país está recebendo alguma coisa
da Apple no que diz respeito a isso? Confesso, Dr. Rachid, talvez o senhor possa me
responder, mas acredito que não. Bem, temos também o Netflix e o Uber. Fui a São Paulo
– aliás, não precisamos ir a São Paulo, já que, no dia em que a gente quer tomar um bom
vinho, a gente não quer dirigir, e a melhor alternativa é realmente usar o Uber. Então por
duas corridas que eu fiz em São Paulo paguei determinados valores. Qual é a tributação
que está acontecendo? Uma coisa positiva, no que diz respeito a essas empresas, é que,
efetivamente, pelo que eu vi da fatura, elas têm alguma sede aqui no Brasil, mas, com
relação à Apple, que eu sei que tem também, tudo o que eu faço de compra aqui no Brasil
(com relação aos Apps) sempre vem como compra no exterior. Será que está havendo
alguma tributação para cá? Bem, a resposta fica de sugestão de tema para debate. E para
a gente poder – veja que o magistrado tem uma vantagem, porque o advogado já teria tido
a palavra cortada, mas, bem, vamos aqui correr, pois só faltam 3 rápidos slides – apenas
para dar a notícia que, com relação à lei da reforma do ISS, que, a qualquer momento, vai
passar no Senado, porque foi aprovada lá, foi para a Câmara e agora já voltou para o
Senado –, no que diz respeito ao Netflix e ao Spotify, passará a haver o pagamento do ISS,
porque são especificamente conteúdos de áudio e de vídeo. Outro tema que eu não quis
explorar – porque sabia que só teria 20 minutos e teria um presidente muito exigente para
controlar o tempo –, mas eu entro no tópico até para, digamos assim, “levantar a bola”
para os outros ilustres palestrantes que me seguirão, é o alusivo a uma preocupação da
OCDE – a Dra. Caroline certamente irá abordar isso. A economia digital traz uma
preocupação, qual seja, onde é que aquele valor, efetivamente, vem a ser agregado para
ser tributado? Qual é a jurisdição sobre a qual aquele valor vai ser tributado? Dentro
desses tópicos eu procurei centrar muito a questão sob o aspecto doméstico, mas eu
coloco para vocês, por exemplo, o iCloud ou qualquer outra coisa que eu compre no âmbito
da Apple, através da Apple Store. Eu me recordo, só para dar um rápido exemplo, que
cheguei a ser assinante do Spotify, comprando na Apple Store, e a minha assinatura era, na
81
época, quando eu fazia pela Apple, 36 reais, porque era para 4 pessoas; e a mesma
assinatura, quando eu fiz direto com o Spotify, era 22 reais; quer dizer, um decréscimo
muito grande. Imaginem o lucro que a Apple estava tendo em face disso! E o detalhe:
quando era pela Apple, vinha desse jeito, como se fosse CA, que eu não sei de onde era, em
dólar, 5,99 dólares. Então, na verdade, vinha sempre lá o valor como se eu tivesse feito a
compra no exterior, quando eu estava aqui, tinha feito o contrato por aqui. Então, valores
efetivamente bem mais caros, e não é à toa que, a respeito desse tema, nós tivemos uma
decisão recente da Comissão Europeia dizendo que vantagens que haviam sido
concedidas à Apple, na Irlanda, tinham sido concedidas de forma ilegal, violando normas
da União Europeia, de maneira que a Apple teria que devolver para a Irlanda benefícios
em torno de 13 bilhões de euros. Vejam só! Não é de reais! 13 bi de euros! Então, valores
efetivamente altos, o que demonstra essa importância de a gente estar aqui em seminários
como esse debatendo a questão da economia digital, erosão da base tributária e como os
países vão se relacionar e cuidar desse tema tão relevante. Então, agradecendo a paciência
de todos, inclusive, do nosso presidente, eu concluo!
82
SEGURANÇA PÚBLICA VIGILÂNCIA E EXERCÍCIO DE LIBERDADES NO
AMBIENTE DIGITAL
Manoel Gonçalves Ferreira Filho*
*Professor emérito de direito Constitucional da faculdade de
direito da universidade de São Paulo Doutor honoris causa da
universidade de Lisboa-Portugal e Doutor em direito pela
universidade paris um Sorbonne.
Introdução
1. O mundo contemporâneo vive no "ambiente digital". O impacto da
novíssima tecnologia é profundo e se reflete nas mais diversas esferas da vida humana.
Com efeito, tudo o que depende de comunicação entre indivíduos e/ou grupos tende a
passar ou se fazer, hoje, por ela. Entretanto, sendo recentíssima, ainda não foi essa
"revolução na comunicação" causada pela internet devidamente assimilada, nem clara,
expressa e completamente regulada pelo direito positivo. Isto também no Brasil.
Ora, do ângulo da expressão ou da comunicação do pensamento, a internet é
um novo meio, como já o foi a palavra imprensa - o livro, depois o jornal, desde
Guttenberg; já na primeira metade do século passado a radiodifusão; na segunda, a
televisão; agora neste século, ela, a internet. A propósito dos velhos meios, o constituinte,
o legislador, os juristas já definiram princípios gerais, que se desdobram em preceitos de
justiça e sabedoria. Não é impróprio consequentemente recordar essas normas como
substrato de um disciplinamento específico do novo meio.
Este trabalho, por essa razão, parte da disciplina da expressão ou comunicação
do pensamento tal qual estabelece a Constituição brasileira, visando extrair daí princípios
que informem o tratamento do meio digital. Igualmente aborda sumariamente a
regulação já existente quanto a essa matéria.
Preocupa-se, como lhe determina o tema, com a problemática da segurança
pública em face do mundo digital, inclusive com a presente e constante ameaça que é o
terrorismo.
83
Não tem a pretensão de abordar senão de modo superficial um tema de
atualidade, que - ouso dizer - não é ainda examinado a fundo pelo mundo jurídico. Visa,
sobretudo, a chamar atenção para essa questão.
I. A expressão do pensamento no quadro dos direitos fundamentais.
2. É pacífico ser a liberdade a principal fonte dos direitos fundamentais. É para
reconhecê-la que as Declarações de Direitos se fizeram e se fazem, pois a igualdade é a
igualdade da liberdade e os direitos sociais são condições da liberdade pessoal. A
liberdade tem inúmeras projeções, reconhecidas pela filosofia, pela história, que se
especificam em direitos de liberdade, como os relativos à comunicação entre os
indivíduos. Pode-se dizer, por isso, que as Declarações consagram "famílias" de direitos
fundamentais, famílias que crescem à medida em que as situações históricas as põem à
vista e levam à sua consagração especial.
Na verdade, esta ideia já se entremostra no direito positivo, como é o caso do
art. 5º, caput da Constituição brasileira. Neste, arrolam-se cinco direitos - vida, liberdade,
igualdade, segurança, propriedade - cujas projeções são especificadas nos incisos desse
artigo e noutras disposições da Carta Magna. Cada um deles tem assim os seus
desdobramentos, a sua "família".
A) A família dos direitos de liberdade do pensamento.
3. A mais profunda raiz desta “família” é a liberdade da razão humana. Esta, no
foro íntimo, é inapagável, mas assim mesmo tem sofrido na história graves agressões.
a) A liberdade de consciência ou crença.
4. O repúdio a estas agressões se manifesta na consagração da liberdade de
consciência, e, decorrência incindível desta, a liberdade de crença,
Com efeito, a expressão do pensamento tem como fundamento a liberdade de
consciência. Esta é o foro íntimo em que o homem livremente determina o que faz e o que
não faz - o livre arbítrio - bem como o que crê ou não crê, o que é a essência de seu pensar.
Recusá-lo é recusar toda a filosofia que está na base do constitucionalismo, portanto, seria
84
perder tempo discuti-lo neste trabalho, pois a afirmação desse livre pensamento, dessa
crença livre, é condição sine qua non do estudo e da temática em discussão.
Reitere-se que esta liberdade de consciência e crença é insuprimível, pois, no
foro de sua consciência, o ser humano sempre há de determinar o que aceita e o que nega.
Entretanto, cabe lembrar que em todos os tempos houve como há escolas de pensamento
que pretendem determinar a crença de cada indivíduo. É o caso da condenação dos não-
crentes em determinadas religiões, ou concepções da vida e do mundo, dos apóstatas a
uma determinada crença, o que é comprovado pela experiência da inquisição, ou pelo
direito islâmico que condena à morte o apóstata. Claro está que isto pressupõe uma
manifestação exterior, real ou suposta, o que raramente podem evitar os crentes
religiosos, em razão dos ritos ou prescrições que têm de seguir.
É em razão disto que a liberdade de crença está na Constituição - art. 5º, VI -
acompanhada da liberdade de culto.
b) O direito à expressão do pensamento.
5. A expressão do pensamento é, porém, uma forma de sociabilidade natural
do ser humano. O homo rationalis é também homo loquens. Ele se comunica com os outros,
exprimindo seu pensamento (e por este viés as suas crenças), a fim de partilhar com estes
novas descobertas, novas verdades descobertas, etc.
Na Constituição vem ela, no art. 5º, IV: "É livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato".
Note-se que o reconhecimento desta projeção se complementa pela exigência
de que quem expressa um pensamento é responsável pelas consequências do que diz.
Para que o seja, tem de ser identificado. Estão aqui bem claros princípios impostos ao
regime da liberdade de expressão do pensamento: o princípio da identificação e o
princípio da responsabilidade, aquele instrumental em relação a este.
c) A liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação.
6. Ainda no art. 5º, a Constituição explicita a liberdade de expressão intelectual,
artística, científica e de comunicação, precisando não caber no seu campo nem censura
nem licença prévia.
85
Trata-se evidentemente de um desdobramento o que registra o inciso IV, na
sua primeira parte, sem mencionar a proibição do anonimato, certamente por supô-lo
inviável no seu campo de abrangência.
d) O direito da comunicação social.
7. A Constituição de 1988, mais adiante, inova, ao consagrar um direito à
comunicação social. Este pertence ao rol dos direitos fundamentais de terceira geração.
Na verdade, a inovação é relativa, porque de há muito o constitucionalismo se
preocupa em dar um tratamento específico a meios de comunicação de massa, como
fazem fé as referências à liberdade de imprensa, ou a jornais, em textos constitucionais
bem anteriores (no Brasil, expressamente desde o de 1934, art. 113, nº 9).
Tal (novo) direito vem no art. 220, inserido num capítulo V do Título VIII da
Lei Magna, título este designado "Da Ordem Social". Diz o caput deste artigo: "A
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição".
À primeira vista, ele repete aquilo que decorre do art. 5º, IV e IX da
Constituição acima referidos. A novidade, porém, está na referência à prestação de
informação.
Entretanto, o exame dos §§ desse artigo 220 torna claro que seu objetivo é
assegurar a liberdade de informar. O § 1º proíbe que a lei edite dispositivo "que possa
constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social", respeitado, porém, o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Este último dispõe: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado
o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional."
Para uns, sobretudo, os profissionais da comunicação social, esta norma os
exime de indicar qual a fonte de que proveio a informação, de modo absoluto. Esta tese
enseja conflito com outros direitos fundamentais, de modo que há de ser tratada pelos
princípios próprios à colisão de direitos, de que se tratará mais adiante.
e) A internet como instrumento de expressão do pensamento.
86
8. Por ser ainda recente o fenômeno da manifestação do pensamento pelo
instrumento que é a internet, cumpre dedicar-lhe atenção especial.
No quadro do direito constitucional positivo, a transmissão de ideias e
informações via internet, não tem por que não se sujeitar aos princípios expostos acima.
Ela se inclui incontestavelmente entre os meios de expressão do pensamento e assim deve
obedecer aos princípios gerais que regem a expressão do pensamento, afora normas
específicas dadas as suas peculiaridades.
A ela se aplicam a proibição do anonimato, a preservação da intimidade, da
vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Não pode ela incidir nos ilícitos penais,
nem pôr em risco a segurança privada ou pública. Na verdade, isto é apontado pela
própria lei específica que rege a internet no Brasil (Lei nº 12.965/2014). São expressos a
este respeito o disposto nos arts. 3º, I e II, e, sobretudo, no art. 7º, I, II e III, afora o que
consta do art. 8º.
Assinale-se que a lei tem normas especiais de proteção da privacidade dos
usuários, proibindo a divulgação de dados pessoais destes, inclusive registros de conexão
e registro de acesso a aplicações da internet (art. 7º, VII).
Quanto à proibição do anonimato, que na Lei Magna é expresso no art. 5º, IV
onde genericamente se afirma a liberdade de manifestação do pensamento, a referida Lei
não o nega. Ela - é certo - institui a "inviolabilidade e o sigilo do fluxo de ... comunicações
pela internet" (art. 7º, II), bem como a "inviolabilidade e o sigilo das comunicações
privadas armazenadas" (art. 7º, III), mas é expressa nesses mesmos dispositivos ao
admitir a quebra desse sigilo por "ordem judicial".
Assim, é inaceitável que provedoras desse meio de comunicação pretendam
pôr fora do alcance da lei as ideias e informações que portam de um, ou alguns, para
muitos.
O § 2º repete a proibição de censura, especificando "de natureza política,
ideológica e artística" (o que, a contrario sensu, abriria campo para censura em matéria de
moral e bons consumes...).
f) A liberdade de expressão do pensamento e a colisão com outros direitos
fundamentais.
87
9. A reiterada proibição da censura que está na Constituição vigente é, por um
lado, a reação contra normas do direito a ela anterior. Neste, o art. 150, § 8º da redação
primitiva da Constituição consagrava a liberdade de manifestação do pensamento "sem
sujeição a censura", mas aduzia: "Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de
subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe". A Emenda nº 1, de 1969,
art. 153, § 8º, acrescentou outra proibição – a de “exteriorizações contrárias à moral e aos
bons costumes”, (com o que as revistas pornográficas eram equiparadas ao Manual de
Guerrilha Urbana). Para viabilizar essa intolerabilidade instituiu-se mesmo uma
"verificação prévia", ou seja, uma censura com outro nome.
Por outro, inegavelmente ela valoriza a liberdade de manifestação do
pensamento, reconhecendo-a como essencial a uma sociedade livre, gerida por um Estado
democrático.
É certo, porém, que esta ênfase não exclui sejam punidos os responsáveis por
manifestações de pensamento de caráter criminoso, definidas na legislação competente,
mas a posteriori, por meio do processo adequado. Sem dúvida, tal repressão não raro é
tardia e não apaga o mal produzido, mas reflete uma importante opção de valor da parte
do Constituinte: Antes o risco do que a "rolha".
10. Cabe, todavia, examinar o caso de a manifestação do pensamento - direito
fundamental - entrar em choque com outros direitos fundamentais.
Com efeito, a Constituição consagra no art. 5º, X o direito fundamental à
privacidade: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas", que se completa pela previsão de indenização por dano moral ou material.
Ora, não é meramente teórica a hipótese de a livre manifestação do
pensamento entrar em choque com a inviolabilidade da intimidade, vida privada e
imagem das pessoas.
11. Mais. A Lei Magna consagra um direito à segurança pública, claramente
reconhecido pela doutrina, com base no art. 5º, caput, combinado com o art. 144 da
Constituição.
Ora, o respeito a este direito reclama frequentemente o sigilo de investigações
ou apurações, a fim de impedir grave perturbação da ordem, ato terrorista, ou a
divulgação de segredos militares. Não é difícil imaginar o conflito entre tal necessidade e
88
a livre expressão do pensamento, mormente na forma particular que é a liberdade de
comunicação social.
Na verdade, o sigilo quanto a informações de tal espécie tem em seu favor o
disposto no art. 5º, XXXIII da Constituição, que expressamente preserva o "sigilo
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado".
Claro está que, num caso como este, a mera punição do informante é
insuficiente.
12. Pode-se lembrar que, em casos de colisão entre direitos fundamentais, se a
solução é sempre delicada e controversa, a doutrina já avançou princípios que podem
guiá-la. Um seria o princípio da ponderação, medindo-se no caso concreto qual direito há
de prevalecer, na impossibilidade de todos serem ao mesmo tempo intocados. Outro seria
o da pertinência, levando-se em conta a vinculação do caso in concreto preferentemente
ao campo de incidência de um direito e não de outro. Igualmente, cabe recordar o
multissecular princípio de que o interesse público prima o interesse individual.
III. A segurança pública em face da liberdade de manifestação do
pensamento.
13. Claro está que o regime da manifestação do pensamento acima exposto é o
constitucionalmente previsto para situações de "normalidade", não para situações de
emergência ou grave crise. Em face destas, há um regime especial, que se examinará mais
adiante.
14. É inerente ao Estado, enquanto organização política, a tarefa essencial da
preservação da segurança. Ou seja, a garantia de todo o seu povo no tocante à sua pessoa
e a seus direitos, o que tem como pressuposto indispensável a garantia de sua própria
preservação, seja em face de ameaças internas, seja em face de agressão estrangeira.
a) A potencialidade "incendiária" da expressão do pensamento.
89
15. Ora, é fato inegável que a manifestação do pensamento pode ter, e a história
o comprova incontáveis vezes, um caráter ameaçador para a segurança, podendo servir
para a destruição da ordem pública e para a destruição do próprio Estado.
De fato, a manifestação do pensamento, seja por meras palavras, seja por
expressões artísticas, pode ter consequências "incendiárias" a provocar conflitos,
rebeliões, insurreições, chegando até à subversão da ordem política estabelecida. Este
fenômeno foi potencializado pelos meios de comunicação de massa, desde a imprensa,
depois pelo rádio, pelo cinema, pela televisão, e na atualidade pela internet, cujas facetas
ainda não são bem sopesadas. E - não se olvide - pode ela servir à própria atuação de
grupos e Estados estrangeiros, como uma arma de guerra, particularmente, hoje, como
instrumento para o terrorismo.
Assim sendo, é natural - e imprescindível - que o Estado exerça uma vigilância,
para prevenir a sua destruição e para proteger a vida e os direitos do seu povo.
b) A defesa da segurança pública na "normalidade".
16. Todo Estado, digno do nome, se propõe a fazê-lo, mesmo em períodos de
"normalidade". Entenda-se em períodos em que a ordem definida constitucionalmente é,
de modo global respeitada. Isto não colide com as liberdades do pensamento, desde que
exercida segundo os parâmetros da Constituição e da lei.
No Estado constitucional, esta vigilância visa a prevenir violações da referida
ordem constitucional definida. Num Estado de Direito, sempre com o controle do
Judiciário.
Não há Estado que não tenha o seu "serviço secreto".
c) Em situações de grave crise.
17. É óbvio que tal vigilância tem de ser incrementada em situações de
anormalidade.
Na verdade, nos Estados constitucionais, como o Brasil, a atuação do Estado
para prevenir e debelar a subversão institucional, ou enfrentar guerra externa, enseja a
implantação de regime excepcional para o exercício de direitos fundamentais.
Na Constituição vigente, são dois os regimes - um o do "estado de defesa" (art.
136), outro o do "estado de sítio" (art. 137 e s.). Aquele, menos drástico, previsto "para
90
preservar ou prontamente restabelecer, em locais estritos e determinados, a ordem
pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou
atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136, caput). O
segundo, para o caso de ineficácia das medidas tomadas no estado de defesa, ou "comoção
grave de repercussão nacional" (art. 137, I), como para o de guerra declarada ou "agressão
armada estrangeira" (art. 137, II).
Na hipótese do estado de defesa, a Constituição, no que tange às liberdades de
manifestação do pensamento, apenas se refere a restrições ao "sigilo de correspondência"
(art. 136, § 1º, I, "b") e ao "sigilo de comunicação telegráfica e telefônica" ("c"). No estado
de sítio, são admitidas "restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo
das comunicações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão", isto "na forma da
lei" (art. 139, II). Todavia, exclui dessas restrições "a difusão de pronunciamentos de
parlamentares efetuados em suas Casas legislativas, desde que liberada pela respectiva
Mesa" (art. 139, parágrafo único).
18. Não se refere a Constituição às manifestações do pensamento por
intermédio da internet, cujas peculiaridades não eram apercebidas ao tempo de sua
promulgação.
Entretanto, os princípios implícitos nas disposições apontadas são aplicáveis
à manifestação via internet. Ou seja, no estado de defesa, a possibilidade de restrição ao
sigilo das comunicações e da correspondência.
No estado de sítio, as restrições previstas para a inviolabilidade da
correspondência, o sigilo das comunicações e à liberdade de manifestação e informação
dos meios de comunicação de massa, imprensa, radiodifusão e televisão.
e) O caso peculiar do terrorismo.
19. Estes primeiros anos do século XXI tem sido marcados pela proliferação de
atos de terrorismo promovidos em diferentes países por grupos ou entes estrangeiros -
o chamado terrorismo "internacional". Ora, este terrorismo é favorecido pelos meios
eletrônicos, mormente pela internet, beneficiando-se da escala mundial da rede, do sigilo
que propicia e da quebra do sigilo de informações secretas em computadores violados
91
pelos hackers ou pela espionagem de órgãos governamentais. Os fatos não precisam ser
mencionados, porque são de conhecimento público.
Em razão disto, normas restritivas quanto à comunicação por esses meios
eletrônicos têm sido editadas pelo mundo afora. Evidentemente tais normas suscitam
delicados problemas ao tocarem nas liberdades do pensamento.
20. A legislação mais abrangente a este respeito é a editada pelos Estados
Unidos, a partir do atentado às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. Essencialmente
estão elas contidas no Patriot Act de 26 de outubro de 2001, que outras leis modificaram
ou reconduziram, quando temporárias.
Em síntese, tal lei habilita órgãos governamentais a obter dados pela quebra
do sigilo de comunicações eletrônicas ou de dados de arquivos eletrônicos. Isto enseja
monitoramentos que alcançam pessoas indiscriminadas, sem o cumprimento de
exigências que garantam a sua privacidade (por exemplo, a obtenção de informações
confidenciais que constam de bancos de dados de serviços de saúde, atingindo todos os
que foram por este atendidos).
Igualmente, ela flexibiliza o controle judicial dessas medidas, por exemplo
autorizando os roving wiretaps (que propiciam que uma ordem de quebra de sigilo possa
ser cumprida fora da competência territorial do juiz que a deferiu) e os sneak and peek
warrants (que permitem o retardamento da comunicação de investigações a dano dos
investigados.
Estas e outras medidas permitidas pela referida lei suscitaram e suscitam
controvérsia entre os juristas, mas de modo geral têm sido aceitas como constitucionais
pelos tribunais competentes.
21. No Brasil, foi editada há meses a Lei nº 13.260 (de 16 de março de 2016),
cuja ementa (talvez inconscientemente) declara ser feita "disciplinando o terrorismo"
(sic) e tratando de "disposições investigatórias e processuais" a seu respeito.
Tal lei, no art. 2º, caput, restringe os atos de terrorismo àqueles promovidos
"por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor , etnia e religião".
Assim, ao pé da letra, não seria ato de terrorismo o que fosse praticado por razões
políticas...
92
Ela, sem dúvida, enuncia um elenco de atos de terrorismo (art. 2º, § 1º) tipifica
delitos ligados a ação terrorista (art. 3º, 5º), como fornecer recursos para este (art. 6º),
etc. e no art. 12 contém disposições processuais a serem observadas no processo e
julgamento dos acusados de ato terrorista.
Nela, portanto, não há uma palavra sobre a vigilância e a prevenção de atos
terroristas (o que é compreensível levando-se em conta o passado da "presidenta" que a
sancionou).
Como também a enxundiosa Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014,
pomposamente batizada de Marco Civil da Internet, nada dispõe sobre tal assunto, fica
certo que a vigilância indispensável à prevenção dos atos de terrorismo há de ser feita
segundo o regime jurídico ordinário que acima se apontou.
Observações finais.
22. A disciplina vigente da manifestação do pensamento é no Brasil
extremamente liberal. Ela valoriza a liberdade, mesmo quando ela pode pôr em risco
outros valores, como a segurança nacional. Cria também potenciais conflitos com outros
direitos fundamentais, como a privacidade. Resguarda a comunicação social de restrições
não apenas quanto à informação, mas também quanto à moral e os (bons) costumes,
embora se preocupe com os malefícios da propaganda. Reage, globalmente falando,
contra as restrições do período militar e atende bem à moda do "politicamente correto".
Não havendo, ao tempo de sua elaboração, consciência das peculiaridades e do
impacto da internet, não se pode culpá-la por omissão a respeito de sua disciplina.
Surpreendente é, porém, que, cerca de cem vezes emendada, nenhuma de suas mudanças
se tenha preocupado de atualizá-la a esse respeito. Existe uma cegueira nesse ponto,
conforme comprova a recente legislação sobre o terrorismo e sobre a própria internet.
Assim, o direito constitucional brasileiro está em nítido atraso em relação ao estrangeiro,
o que é grave, porque propicia séria ameaça à segurança nacional, à segurança pública e
à segurança individual.
93
DIREITOS INTELECTUAIS E ECONOMIA DIGITAL
Rodolfo Tamanaha*
Doutor em Direito Tributário (USP). Mestre em Direito Público (UNB). Presidente da
Comissão Especial de Inovação da OAB/DF. Advogado e Professor. Atualmente, ocupa o
cargo de Diretor de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura.
Até como último palestrante um painel antes do almoço, com o horário estourado,
então, a melhor qualidade do palestrante nesse momento, nessa posição é a brevidade.
Então, eu primeiro lugar, agradeço aqui na figura do Dr. Gustavo, cumprimento, na
verdade, o Gustavo e os demais colegas. Agradeço ao IDP na figura do Sérgio, que não está
aqui no momento, pelo convite e eu digo de forma muito rápida, foi até interessante ter
me colocado no último painel porque de uma maneira a minha exposição, na verdade, são
algumas reflexões, elas, de alguma maneira, trabalham com vários temas que foram
tocados pelos painelistas anteriores. Então, eu não vou ser muito inovador nas minhas
colocações, mas minha ideia realmente é tentar unificar alguns pontos de vista, alguns
temas que foram colocados. O primeiro ponto só que eu gostaria de chamar atenção é
realmente o fato do IDP ter no seu tradicional congresso de Direito Constitucional ter
estabelecido uma pauta sobre internet, mostra exatamente como o tema, ele tem um
protagonismo hoje seja no Brasil, seja fora do Brasil, muito grande e mostra exatamente
o potencial, a relevância acadêmica, a relevância social, a relevância econômica que os
novos modelos de negócio propiciados principalmente pela internet tem sobre a nossa
realidade cotidiana, seja desde um aplicativo de mobilidade como o Uber, seja os
aplicativos aqui que a gente for mencionados, de redes sociais ou de acesso (ininteligível)
conteúdo audiovisual ou musical. Então, a gente percebe, realmente a internet tem essa
presença muito forte na nossa vida e para nós, como operadores do direito, seja no órgão
público, seja na iniciativa privada, seja na academia, parece que todos, realmente, de
alguma maneira se encontram ainda em uma fase muito de entender como os novos
modelos de negócio se processam, porque nesse ponto, realmente, fica muito claro como
a economia, como o mercado de alguma maneira ele está uma velocidade muito rápida,
muito mais rápida talvez do que em outros setores e exatamente o direito ali
94
acompanhando para tentar entender como é que tem que se estabelecer uma arquitetura
regulatória, onde que a riqueza é produzida naquele modelo de negócio para fins de seja
de tributação, como é que o consumidor ele pode ser protegido sem você também
enrijecer a legislação de forma a muitas vezes ser uma desincentivadora da inovação.
Então, a gente percebe, realmente, que em vários campos do direito você ainda está muito
nessa fase de mapear, de compreender, de como a internet e todas as suas estruturas
baseadas, com base tecnológica, elas se processam para você poder trabalhar exatamente
uma regulação ou uma política pública que tente ao máximo proteger direitos, mas
também ser um instrumento de indução, isso é uma perspectiva que me é muito cara e eu
acredito realmente que o desafio está exatamente você equilibrar esses pontos de vista.
Até recuperando um pouco o que foi colocado pelos colegas, quando a gente fala,
realmente de propriedade intelectual em ambiente digital e aquilo for uma propriedade
intelectual realmente no sentido amplo, abarcando não só o direito autoral, mas também
a propriedade industrial foi mencionada questão da contrafação que é exatamente a
falsificação de marcas. Então, quando você fala em propriedade intelectual em meio
digital, realmente, o tema da observância do direito é um tema que se coloca, às vezes,
muitas pessoas na verdade acabam tomando contato com esse tema quando se deparam
com o conceito, a referência ao tema da pirataria. Então, esse tema realmente ele, seja a
pirataria stricto sensu, seja a contrafação, é um desafio no ambiente digital porque o
ambiente digital, ele permite, realmente, um acesso, seja a esses conteúdos de direito
autoral, seja aos produtos frutos da falsificação de uma forma muito mais fácil do que
ocorria antes e você tem, realmente, nessa ceara um desafio muito grande porque
tradicionalmente se pensou e se pensa o enfrentamento dessas violações, uma
perspectiva realmente mais repressiva, isso é natural, você pensava realmente, quando
você pensa em uma feira do Paraguai aqui em Brasília ou, às vezes, na 100 em São Paulo,
você associa imediatamente aquelas violações a uma atividade policial. Já quando você
está pensando em direito autoral, quando a gente está falando realmente de direitos mais
intangíveis, vamos dizer assim, em meio digital, parece que o desafio se coloca na verdade
mais em uma arquitetura regulatória, ou seja, está se entendendo, está se compreendendo
como é que funcionam esses novos usos na internet para tentar exatamente adequá-lo as
categorias que já existem ou eventualmente criar categorias novas. Então, a discussão ela
coloca já, me parece que se coloca já em um outro plano, um plano realmente de você
pensar nessa arquitetura regulatória que passa exatamente por você conhecer, por
95
exemplo, como a internet se processa, como é que ela se estrutura, que foi exatamente a
nossa última palestrante, ela pontuou diversas características que tem que ser mais em
consideração nessa arquitetura regulatória e um outro tema que me parece também que
está relacionado com esses dois eixos, é exatamente o eixo da inovação, ou seja, na medida
em que você também tem, pensa realmente como um formulador de políticas públicas, ou
um órgão público, ele tem que, de alguma maneira, intervir naquele setor, entre outras
finalidades que aquela intervenção tem que buscar, me parece também que é necessário
se pensar se aquela intervenção ela vai, de alguma maneira contribuir para inovação
tecnológica, a inovação em geral, ou seja, ela não vai ser realmente uma mão pesada
demais, uma intervenção regulatória estatal que vai acabar, muitas vezes, intervindo em
um setor que, inicialmente, não era regulado ou no máximo era um auto regulação, às
vezes, privada e como é que vai se dar realmente essa atuação do Estado. Isso me parece
realmente que ele está linkado, está conectado com uma linha de pesquisa, vamos dizer,
uma preocupação muito grande hoje no campo do direito que é a pesquisa empírica,
principalmente no campo das políticas públicas, a gente percebe, realmente que falta
mesmo para o formulador da política pública muitas vezes dados empíricos para você
poder discutir, você faz uma audiência pública, faz uma consulta pública, é importante,
você ouve os atores, mas assim também como isso é importante, ou seja, você ter dados
empíricos, econômicos, de impacto social, etc. também são muitas vezes são informações
que o próprio formulador da política pública não tem acesso, ou seja, ele mesmo não está
promovendo que (ininteligível) um dever também, ou seja, tem que promover de alguma
maneira, incentivar que esse tipo de pesquisa ocorra, inclusive para poder subsidiar a
política pública, mas exatamente para que se possa também, de alguma maneira, até para
permitir muitas vezes, isso parece que a gente sabe que falar teoricamente é muito fácil,
na prática, às vezes, não é muito fácil, você estabelece uma política pública, você
estabelece um marco regulatório, depois de um tempo você percebe que muitas vezes, ele
está gerando algum tipo de disfunção naquele mercado para você retornar, voltar atrás e
ajustar aquele marco regulatório, a gente sabe que não é muito fácil, mas talvez algo que
deveria, em um campo tão dinâmico como é o campo da propriedade intelectual, talvez
seja algo que não deveria ser tão difícil de ser realizado, exatamente porque, muitas vezes,
você vai estar trabalhando com uma intervenção regulatória que ela vai ser muito por
tentativa e erro, ou seja, você vai se aproximar, você vai buscar uma finalidade, se acredita
a partir daquela colheita de informações, ouvindo os stakeholders, analisando as
96
pesquisas empíricas, mas muitas vezes você vai perceber que, por algum motivo,
exatamente porque a internet, pensando realmente em internet, ela é um instrumento que
está em evolução constante, ela mostrou realmente que na prática a sociedade reagiu de
uma outra forma. Então, isso me parece também uma preocupação que tem que estar
presente, seja no âmbito de pesquisa, seja, realmente, em uma atuação em termos de
políticas públicas. E um tema que eu gostaria de chamar atenção aqui na minha fala, até
porque, inclusive, ontem eu tive ciência, fui informado de que um caso importante que foi
pautado no STJ, um caso que quem acompanha essa discussão com relação, no caso a
gente está falando do streaming, ou seja, então, entre vários modelos de negócio em
ambiente digital, o streaming é um modelo que ele tem gerado muita discussão de você
entender exatamente como ele funciona, entender exatamente que medida você teria
algum tipo de transferência de propriedade ou não, em que medida você teria alguma
interatividade do usuário com relação aquele conteúdo para exatamente você poder
enquadrar o streaming e os usos que ele propicia dentro das categorias já existentes hoje
no campo do, especificamente, no campo do direito autoral e a notícia que eu tive foi que
existe uma ação. Então, a gente tem um recuso especial no STJ de uma ação que foi
proposta, salvo engano, pelo ECAD contra a OI e FM exatamente discutindo se o
webcasting e o simulcasting seriam, não vou dizer que são, tecnicamente não vou dizer
que são exatamente espécies de streaming, mas estão exatamente nesse contexto desse
modelo de negócio, se de alguma maneira elas corresponderiam ao que a legislação
estabelece como execução pública. Execução pública que é o que vai exatamente permitir
que o ECAD como o Escritório Central de Arrecadação, ele possa cobrar dessas
plataformas digitais por essa disponibilização desse conteúdo. Não é um tema simples, é
um tema que do ponto de vista do Ministério da Cultura foi realizado um trabalho muito
importante, inclusive, o Guilherme participou também dessa discussão, se ouviram
muitos stakeholders, se refletiu muito sobre isso, se (ininteligível) de que talvez boa parte
dos usos relacionados ao streaming realmente corresponderiam a uma execução pública,
o que a gente percebe até em termos de benchmarking internacional é uma discussão que
ela não é classificada, existe ainda muito debate, agora, é interessante porque são
circunstancias também, por mais que a gente também tenha uma visão, estabeleça uma
política pública, o tema ele foi judicializado, ele foi colocado sobre a apreciação do
Judiciário. Então, a gente talvez tenha uma decisão que ou confirma esse entendimento ou
na verdade se trilhe um caminho diferente. Então, reputo, realmente como muito
97
relevante a gente acompanhar esse julgamento, exatamente porque ele vai de alguma
maneira, ele vai estabelecer alguns parâmetros para as políticas públicas relacionadas ao
direito autoral em ambiente digital e para realmente, finalizar, acredito que até para
eventual possibilidade de perguntas por parte da plateia, é colocar realmente que a gente,
do ponto de vista, agora hoje em uma função realmente de propor políticas públicas, há
todo o interesse de se ouvir os principais, os participantes desse mercado e a internet tem
essa beleza, porque a gente está falando, na verdade, ou seja, quando a gente fala dos
steakholders, a gente está falando não só dos órgãos estatais, não só da indústria, mas
também dos usuários, ou seja, agente da sociedade civil que representam as mais
diferente categorias de usuários, vamos dizer assim, da internet em geral, são realmente
entidades que tem que ser ouvidas, tem muito a contribuir e exatamente pelo fato de você
ainda ter diversas discussões relacionadas ao direito autoral em ambiente digital que
ainda carecem de uma sinalização do poder público de como deve ser encaminhado esses
assuntos, encaminhado de que maneira? Ou seja, tanto na perspectiva que proteja,
principalmente o criador daquela propriedade intelectual, principalmente, se por
possível, ainda mais brasileiro na medida em que você, exatamente estimular essa
produção cultural nacional, mas também a gente tem que levar em consideração que é
uma cadeia complexa, ou seja, ela tem vários elementos. Então, se eu penso em um dado
momento que eu tenho hoje poucos players que fazem, por exemplo, os streamings aqui
no Brasil, porque também não pensar nessa política pública mecanismos que possam
incentivar que eu tenha, por exemplo, os players nacionais, os players brasileiros, ou que
possam de alguma forma se consorciar com parceiros estrangeiros, mas que também
possam oferecer modelos de negócio nessa linha, ou que possam criar variações, ou seja,
por mais que a internet, ela tenha essa característica de que talvez aquela ideia de que
winner takes it all, ou seja, então, há essa, uma certa tendência de que a primeira empresa,
o primeiro player que ingressa em um dado mercado que, às vezes, não existia, ele acaba
se tornando, realmente, um monopolizador, não porque ele está adotando práticas anti
concorrenciais, ou seja o que for, mas na verdade porque ele, praticamente criou um
mercado, o mercado ele não existia, ele criou. Então, isso é natural, é algo talvez estrutural
dos próximos modelos de negócios nessa economia digital, mas então, do ponto de vista
da política pública a gente tem que levar isso em consideração, ou seja, o Estado ele não
só, ele tem que ser um, muitas vezes ali um órgão de supervisão e de repressão, de
observância dos direitos, mas também porque não ser um órgão de indução, exatamente,
98
ou seja, as empresas pequenas, médias empresas brasileiras, por exemplo, porque elas
não podem ter um tipo de estruturação a partir de uma indução do Estado, para
exatamente que elas possam competir, exatamente em um ambiente que ele até permite
uma competição muito, talvez um pouco mais equitativa do que, às vezes, em outros
setores econômicos, em que, às vezes, você precisa ter um capital inicial, você precisa ter
uma série de estruturas para poder ingressar, caso contrário, você não tem como
competir. A internet de alguma maneira, ela possibilita rapidamente um startup, que surja
em uma garagem no Piauí, para a gente não fazer o uso só da Apple e etc., mas, ou seja,
que ela pode, de alguma maneira competir, às vezes, com o player global. Logicamente
que não é só uma indução do Estado que vai promover isso, são diversos outros fatores,
de investimento, de uma série de (...), assunção de riscos, etc., mas a gente acredita
realmente que essa temática, de alguma maneira ela tem que estar ligado com o
estabelecimento dessas políticas públicas porque, exatamente para que a mão do Estado,
ela não seja uma mão que acabe a pretexto de, às vezes, proteger direitos e estimular o
surgimento de (...), seja o surgimento de novos modelos de negócio, seja o fortalecimento
de modelos de negócio que já existem e que podem florescer caso Estado ou não atrapalhe
ou ele seja, realmente, uma figura, uma instituição que contribua para essa indução em
prol da inovação. Então, com essas considerações, eu agradeço os senhores que
permaneceram aqui até 30 minutos depois do esperado e me coloco a disposição para
qualquer dúvida.
Obrigado.
99
DIREITOS COMUNICATIVOS COMO DIREITOS HUMANOS:
ABRANGÊNCIA, LIMITES, ACESSO À INTERNET E DIREITO AO
ESQUECIMENTO
Valerio de Oliveira Mazzuoli*
* Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Professor do Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna – UIT. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD).
RESUMO: O estudo busca compreender a concepção contemporânea dos chamados
“direitos comunicativos” a partir da perspectiva dos direitos humanos e de sua proteção,
quer no plano internacional como no plano interno. O ensaio investiga a abrangência e os
limites dos direitos comunicativos, a questão do acesso livre à Internet, o problema das
“mídias sociais”, bem assim os desafios jurídicos à efetivação do “direito ao
esquecimento”.
1. INTRODUÇÃO
Este ensaio tem por finalidade investigar os assim chamados “direitos
comunicativos”, que compõem hoje o núcleo-chave dos direitos humanos
contemporâneos. Seu estudo é de fundamental importância para que se compreenda todo
esse mosaico protetivo que tanto o direito internacional quanto o direito interno garante
aos cidadãos.
Mais do que conhecer, porém, quais são esses direitos, deve-se ter em conta que há
limites ao seu exercício arbitrário, especialmente em casos de violação a direitos
humanos. Na era atual da Internet e da pluralidade das mídias sociais é premente que se
compreendam os desafios que doravante se colocam relativamente à efetividade desses
direitos. Um desses desafios está na compatibilização dos direitos comunicativos com o
100
cada vez mais em voga “direito ao esquecimento”, como também se analisará neste
estudo.
Em suma, como quaisquer direitos os direitos comunicativos garantem pretensões
e impõem limites tanto para os poderes públicos quanto para os cidadãos, devendo ser
bem compreendidos e analisados à luz das normas internacionais e internas em vigor no
Estado.
2. CONCEITO DE DIREITOS COMUNICATIVOS
Entende-se por “direitos comunicativos” o conjunto dos direitos relativos a
quaisquer formas de expressão ou de recebimento de informações. Mais precisamente,
trata-se da liberdade que todos os cidadãos têm de expressar ideias e opiniões, pontos
de vista em matéria científica, artística ou religiosa, em quaisquer meios de
comunicação, em assembleias ou associações, conotando ainda o direito relativo aos que
sofreram o impacto de tais ideias, opiniões, conceitos ou pontos de vista.74 São, como se
percebe, direitos bifrontes, que permitem a expressão das ideias e opiniões ao tempo
que também resguardam os direitos dos que foram impactados pela veiculação da
informação.
Não se trata apenas de assegurar a liberdade de expressão, de opinião ou de
imprensa, mas de garantir, sobretudo, que o meio para se chegar à expressão do
conhecimento (que é, em última análise, a comunicação) seja exercido livremente e
sem embaraços, quer no que tange às liberdades artísticas e literárias, à liberdade de
proceder a uma investigação científica ou à liberdade de ensinar e ser ensinado etc.75
Pode-se dizer que, na era da comunicação (especialmente da comunicação digital)
pela qual passa o mundo,76 os direitos comunicativos integram o eixo fundamental da
concepção contemporânea dos direitos humanos.77 Daí se falar na existência de “direitos
comunicativos fundamentais” (Kommunikationsgrundrechte) dos cidadãos, que se
expressam de maneira multifuncional, deles decorrendo, v.g., a liberdade de expressão
stricto sensu, de informação, de investigação acadêmica, de criação artística, de edição, de
74 V. HALMAI, Gabor. Freedom of expression and information. In: DE SHUTTER, Olivier (Ed.). Commentary of
the Charter of Fundamental Rights of the European Union. [s.l.]: EU Network of Independent Experts on
Fundamental Rights, 2006, p. 116.
75 Idem, p. 121.
76 Cf. VIGANÒ, Dario Edoardo. I sentieri della comunicazione: storia e teorie. Soveria Manelli: Rubbettino, 2003,
p. 71 e ss.
77 Cf. ZARET, David. Tradition, human rights and the English Revolution. In: WASSERSTROM, Jeffrey N. [et. all.]
(Ed). Human rights and revolutions. Maryland: Rowman & Littlefield, 2007, p. 58.
101
jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de programação, de comunicação individual, de
telecomunicações e de comunicação em rede.78 Nesse sentido, o acesso livre à Internet
para todos os cidadãos torna-se um dos direitos humanos mais importantes do mosaico
de direitos comunicativos da pós-modernidade.
Tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19) como o Pacto sobre
Direitos Civis e Políticos (art. 19, § 2.º) garantem a liberdade de opinião e expressão,
reafirmando que esse direito inclui “a liberdade de procurar, receber e difundir
informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de
fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro
meio de sua escolha”.79 Na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tal direito vem
expresso no art. 13, § 1.º, com redação praticamente idêntica àquela que se acaba de
citar.80 Por sua vez, no âmbito da União Europeia os direitos comunicativos vêm
garantidos pelos arts. 10 a 13 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
(2000).81
Trata-se de assunto mais bem compreendido a partir das obras Mudança estrutural
na esfera pública (1962) e Direito e democracia: entre facticidade e validade (1992),
ambas de Jürgen Habermas, sobre a legitimidade das ordens constitucionais e
democráticas, a efetividade e a validade (ou a positividade e a normatividade) do
Direito.82
A questão dos direitos comunicativos tem ligação com o conceito de “espaço público”
na visão de Habermas, enquanto locus institucionalizado das relações comunicativas
entre os cidadãos e necessário ao desenvolvimento das ações políticas. Esse espaço
78 V. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social. Lisboa:
Wolters Kluwer, 2013, p. 18.
79 Cf. DE LA VEGA, Connie; WEISSBRODT, David. International human rights law: an introduction. Philadelphia:
University of Pensylvania Press, 2007, p. 102-106.
80 Para detalhes, v. GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013,
p. 175-180.
81 Sobre o tema na Europa, cf. GROTE, Rainer. Free speech in German and European constitutional jurisprudence.
In: BOGDANDY, Armin von, PIOVESAN, Flávia & ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Estudos avançados
de direitos humanos: democracia e integração jurídica – emergência de um novo direito público. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2013, p. 521-532.
82 V. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1988; e Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, 2 v. V. também HABERMAS, Jürgen. Três
modelos normativos de democracia. Lua Nova: Revista de Cultura Política, n. 36 (1995), p. 49. Para um
estudo aprofundado desse pensamento habermasiano, v. BLOTTA, Vitor S. L. O direito da comunicação: uma
nova teoria crítica do direito a partir da esfera pública política. São Paulo: Fiuza, 2013.
102
permitiria, na visão de Habermas, a todos os potencialmente envolvidos o poder de opinar
e interagir previamente à adoção de uma dada decisão.83 Nessa visão, o direito da
comunicação atuaria sobre a esfera pública política a fim de fomentar o processo de
deliberação democrática.84 Tal garantiria, também, e por consequência, a livre
concorrência de ideias, o desenvolvimento normativo, a libertação das tensões sociais, a
proteção da diversidade de opiniões e a transformação pacífica da sociedade.85
Como se nota, os direitos comunicativos mantêm estreita relação com o direito à
liberdade de reunião, uma vez que, como explicam Sarlet e Weingartner Neto, “é por meio
de reuniões que o exercício coletivo da liberdade de expressão e manifestação do
pensamento pode servir como instrumento eficiente para a luta política e assegurar a
possibilidade de influenciar o processo político, de tal sorte que a liberdade de reunião
representa um elemento de democracia direta”, fortalecendo também “o direito de
expressão das minorias e o exercício da oposição no embate político-democrático”.86 No
mesmo sentido, Waldir Alves observa que a liberdade de manifestação do pensamento
“está umbilicalmente ligada à liberdade de reunião, pois o âmbito coletivo da reunião, seja
ela privada ou pública, é o momento e o espaço de externar o que a pessoa pensa de forma
mais ampla e democrática possível, quer nos aspectos pessoal como social, quer no âmbito
das reflexões individuais, coletivas ou políticas”. E conclui: “As liberdades de reunião e de
manifestação do pensamento são direitos que também possuem uma dimensão
democrática em nossa ordem constitucional, especialmente no âmbito da liberdade de
participação no Estado Democrático de Direito (art. 1.º, caput, da Constituição) e da
formação democrática da vontade política, para a constituição e outorga do poder que
emana do povo (art. 1.º, parágrafo único, da Constituição). Essa participação política, por
sua vez, não se dá somente em momentos de disputa eleitoral, mas de forma permanente
por intermédio do exercício da soberania popular (art. 14 da Constituição), em contínuo
processo de participação democrática na formação da vontade política, principalmente
das minorias, que podem não dispor das mesmas acessibilidades das maiorias”.87
83 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública, cit., p. 39.
84 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia…, cit., p. 446.
85 Cf. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social, cit.,
p. 17.
86 SARLET, Ingo Wolfgang & WEINGARTNER NETO, Jayme. Democracia desmascarada? Liberdade de reunião
e manifestação: uma resposta constitucional contra-hegemônica. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE,
Alexandre (Coord.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 480.
87 ALVES, Waldir. As manifestações públicas e as liberdades de expressão e de reunião. Revista dos Tribunais,
103
Por fim, interessante notar que Erik Jayme insere a comunicação dentre os traços
característicos da cultura pós-moderna, especialmente em razão da cada vez mais nítida
“vontade de comunicar que surge como uma força irresistível”, bem como do “interesse
mútuo da troca de ideias interculturais”.88 Para Jayme, assim, a comunicação é parte de
uma sociedade global sem fronteiras.89 Nesse sentido, não há dúvidas de que o direito à
comunicação digital (Internet) livre para todos torna-se um dos direitos humanos mais
importantes dentre todo o plexo dos direitos comunicativos contemporâneos (v. item 6.3,
infra).
3. LIMITES AOS DIREITOS COMUNICATIVOS
No âmbito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos o exercício do direito
de liberdade de pensamento e de expressão não pode sujeitar-se à censura prévia, mas
apenas a responsabilidades ulteriores (expressamente previstas em lei) que se façam
necessárias para assegurar (a) o respeito dos direitos ou da reputação das demais
pessoas, ou (b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da
moral públicas (art. 13, § 2.º).
Não obstante seja difícil conceituar alguns termos referidos pela Convenção, como
“ordem pública” e “moral pública”, o certo é que nos termos da própria Convenção (art.
29, a) nenhum desses conceitos pode ser usado para justificar a supressão ou a limitação
de um direito garantido pela Convenção ou para desfigurá-lo do seu real conteúdo.90
Ainda segundo a Convenção Americana “não se pode restringir o direito de expressão
por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel
de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na
difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a
comunicação e a circulação de ideias e opiniões” (art. 13, § 3.º).
Não obstante a previsão do art. 13, § 2.º, da Convenção Americana – que impede a
censura prévia como condição ao exercício do direito à liberdade de pensamento e de
São Paulo, v. 104, n. 953, p. 142, mar. 2015.
88 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, v.
251, 1995, p. 257.
89 Idem, ibidem. Destaque-se, por oportuno, que a ideia do “diálogo das fontes” de Erik Jayme nasceu
estreitamente conectada ao direito à comunicação no seu Curso da Haia de 1995. De fato, no tópico “A
comunicação” (p. 257) o “diálogo das fontes” é o quarto e derradeiro item (p. 259), precedido dos seguintes:
“A integração” (p. 257); “A colaboração dos juízes de diferentes países” (p. 257-258); e “O direito à
informação” (p. 258-259).
90 Corte IDH. A Associação Obrigatória de Jornalistas (artigos 13 e 29 da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos). Opinião Consultiva OC-5/85 de 13 de novembro de 1985, Série A, n. 5, parágrafo 67.
104
expressão –, autoriza-se, contudo, a censura prévia dos espetáculos públicos (jamais dos
espetáculos e apresentações realizados em esferas puramente privadas), com o objetivo
exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência.
Nesse caso, parece justificável a censura prévia dos espetáculos públicos, quando visa
proteger as crianças e adolescentes de cenas que, possivelmente, possam comprometer
sua formação moral.91
No que tange ao direito brasileiro, o art. 220 da Constituição estabelece que “a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição”, vedando-se também “toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística” (§ 2.º).
4. ESPÉCIES DE DIREITOS COMUNICATIVOS
Os direitos comunicativos compõem um mosaico de direitos nem sempre fáceis de
identificar a priori. Pode-se dizer, porém, que todos os direitos que permitem alguma
forma de expressão comunicativa integram o núcleo contemporâneo dos direitos
comunicativos.
Basicamente, pode-se dizer que são espécies de direitos comunicativos: (a) a
liberdade de expressão stricto sensu; (b) a liberdade de opinião; (c) a liberdade de
informação; (d) a liberdade de religião; (e) a liberdade de investigação científica; (f) a
liberdade de criação artística; (g) a liberdade de edição; (h) a liberdade de jornalismo; (i)
a liberdade de imprensa; (j) a liberdade de radiodifusão; (k) a liberdade de programação;
(l) a liberdade de telecomunicações; e (m) a liberdade de navegação em meios digitais.92
Todos esses direitos somados, é dizer, quando vistos em conjunto, formam o que se
pode chamar de “mosaico comunicativo”, nova categoria de direitos formada a partir dos
direitos comunicativos individualmente considerados, com a finalidade de fortalecer e
91 Cf. GOMES, Luiz Flávio & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos…, cit., p. 179. Nesse exato sentido, referindo-se à Constituição brasileira de 1988, v. SILVA,
José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 69-70, para quem a
liberdade de expressão cultural se sujeita “apenas às limitações expressamente previstas na Constituição,
especialmente em favor da criança e do adolescente. (…) Mas tais medidas são exclusivamente as que a própria
Constituição expressamente estabelece nos termos do art. 220, § 3.º – regular as diversões e espetáculos
públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se
recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. (…) A preservação da criança
e do adolescente em tais situações não significa condenação ao modo de ser da representação artística, mas a
ideia de que a possível imaturidade do jovem interprete o fenômeno com visão diversa da consideração
estética”.
92 Cf. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social, cit.,
p. 18.
105
garantir globalmente o acesso de todas as pessoas aos meios de comunicação e de
expressão (individuais ou coletivos) atualmente existentes.
5. FORMAS DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS COMUNICATIVOS
O Estado viola os direitos comunicativos não somente quando censura a expressão
de ideias e opiniões, senão também quando impede o acesso dos cidadãos aos meios de
comunicação (v.g., rádio, televisão, Internet etc.). Daí ter estabelecido a Convenção
Americana, como já se falou, que “não se pode restringir o direito de expressão por vias e
meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de
imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na
difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a
comunicação e a circulação de ideias e opiniões” (art. 13, § 3.º).
Na atualidade, passa a ser violação (por omissão) dos direitos comunicativos a falta
de regulamentação estatal do acesso à Internet, em que se devem incluir os direitos e
deveres dos usuários da rede e as formas e mecanismos de atuação do Estado.
6. MARCO CIVIL DA INTERNET NO BRASIL
Cabe destacar que por meio da Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014,93 regulou-se
no Brasil o chamado “Marco Civil da Internet”, pelo qual se estabelecem os princípios,
garantias, direitos e deveres dos usuários da Internet no País, bem como as diretrizes
necessárias para a atuação do Estado.
6.1. Direitos humanos como fundamento do Marco Civil da Internet
A promulgação da lei que regula o “Marco Civil da Internet” no Brasil atende à
obrigação do Estado em disciplinar o direito comunicativo na era digital, em especial na
rede mundial de computadores, sem o que haveria violação de direitos humanos (por
omissão) por parte do poder público. Não é por outro motivo que os direitos humanos e
o exercício da cidadania encontram-se entre os fundamentos da Lei n.º 12.965/2014 (art.
2.º, II). De fato, dizer que os direitos humanos e o exercício da cidadania são
“fundamentos” de uma norma jurídica significa que tal norma tem por base essas
premissas, e que a matéria por ela regulada é um “braço” ou “parte” desses fundamentos.
Tal quer dizer que o direito comunicativo à Internet livre faz parte do núcleo dos direitos
humanos e fundamentais que a ordem jurídica brasileira deve consagrar a todos os
cidadãos.
93 Em vigor a partir de 23.06.2014, nos termos do seu art. 32.
106
6.2. Acesso à Internet como essencial ao exercício da cidadania
A Lei n.º 12.965/2014 diz serem princípios da disciplina do uso da Internet no Brasil
a garantia da liberdade de expressão, a comunicação e a manifestação do pensamento (art.
3.º, I), complementando que tais princípios “não excluem outros previstos no
ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 3.º, parágrafo único). Isso leva a crer
que o acesso à Internet no País, a partir do Marco Civil da Internet, passa a ser essencial
ao exercício da cidadania, como diz expressamente, aliás, o art. 7.º, caput, da Lei n.º
12.965/2014.
Como se percebe, o Marco Civil da Internet fomenta no Brasil os direitos
comunicativos à medida que considera a Internet como ferramenta essencial para a
liberdade da expressão e o exercício da cidadania, bem como para a promoção da cultura
e o desenvolvimento tecnológico. Tal demonstra que o acesso à Internet tem ligação
direta com o tema dos direitos humanos, eis que auxilia na concretização do direito à
liberdade de expressão e no exercício da cidadania.
Compreendeu-se, finalmente, que a expansão da comunicação mundial via rede
mundial de computadores, somada aos baixos custos da transmissão comunicativa,
necessitava de um gerenciamento estatal adequado a essa nova realidade em expansão,
garantindo aos cidadãos os direitos inerentes à cidadania na era digital e o consequente
aproveitamento dos recursos tecnológicos postos hoje à disposição.
6.3. Direito humano ao acesso livre à Internet
À medida que a Internet representa uma ferramenta da liberdade de expressão e do
exercício da cidadania, tem-se que o seu acesso há de ser completamente livre a todos os
cidadãos (independentemente de permissão ou autorização do Estado). Essa liberdade de
acesso à rede pertence, hoje, ao núcleo essencial dos direitos humanos, pelo que se
condena qualquer ato arbitrário do Estado capaz de limitar ou impedir o seu pleno
exercício.
As próprias Nações Unidas já declararam ser o acesso à Internet um direito humano
contemporâneo, sugerindo que os Estados deixem de praticar quaisquer atos capazes, v.g.,
de bloquear ou filtrar o seu tráfego ou, ainda, impedir globalmente o seu acesso, mesmo
durante períodos de conturbação interna. O relatório da ONU – subscrito pelo Relator
Especial para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Sr.
Frank La Rue – sugeriu a todos os Estados que garantam aos seus cidadãos o acesso livre
107
à Internet, independentemente de passar ou não por períodos de agitação política, como
eleições etc.94
7. A QUESTÃO DAS “MÍDIAS SOCIAIS”
A criação da Internet possibilitou a intercomunicação mundial por meio das
chamadas “mídias sociais”, plataforma utilizada por milhares de pessoas como forma de
acesso à informação e à comunicação em todo o mundo. Seu maior impacto foi a
possibilidade de compartilhamento de informações online ao descontrole do Estado e dos
poderes constituídos.
As redes sociais como Facebook, Twitter, Orkut, Flickr e Instagram permitiram que
pessoas de todo o mundo se comunicassem entre si e intercambiassem todo tipo de
informação possível (inclusive imagens, vídeos etc.). Com isso, os meios tradicionais de
comunicação (especialmente o rádio e a televisão) passaram a perder espaço para essa
nova modalidade intercomunicativa, operacionalizada não mais por proprietários de
veículos de comunicação, mas por cidadãos comuns de forma quase que inteiramente
dátila (com a ponta dos dedos).
No plano do Direito as mídias sociais têm revolucionado a questão da proteção do
consumidor em face do mercado de consumo, levando as corporações empresariais a se
preocupar cada vez mais com a qualidade daquilo que oferecem, tendo em vista que o
feedback sobre um produto ou serviço ofertado é hoje imediato e além fronteiras. De fato,
os cidadãos da sociedade digital dão mais crédito uns para os outros que para o marketing
oficial de empresas e instituições (públicas e privadas).95
As mídias sociais também têm gerado preocupação do poder público de vários
Estados, que se veem ameaçados com o acesso imediato à comunicação pelos seus
cidadãos. Por exemplo, em 2014 o Irã proibiu que homens e mulheres que não se
conhecem conversem por chat, tendo sido bloqueados e impedidos de ser utilizados o
Facebook, o Twitter e o aplicativo WhatsApp.96 Este último, v.g., permite o envio de
mensagens instantâneas (com textos, imagens e vídeos) por smartphones.
À medida que um Estado impede ou bloqueia o uso de funcionalidades comunicativas
em seu território, como o Facebook, o Twitter e o WhatsApp, está violando os direitos
94 ONU, AG-Doc. A/HRC/17/27, “Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression, Frank La Rue”, 16 May 2011, p. 4-22.
95 Cf. CHARLESWORTH, Alan. Revolução digital. São Paulo: Publifolha, 2010.
96 V. Jornal O Globo, de 08.01.2014.
108
comunicativos assegurados pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos. Ou seja, está violando o direito humano à comunicação livre e desembaraçada,
essencial ao exercício da cidadania, merecendo, portanto, a reprimenda do direito
internacional.
Toda liberdade de ação, porém, traz consigo a contrapartida da responsabilidade,
inclusive criminal. A liberdade comunicativa da pós-modernidade há de ser livre, porém
regulamentada, a fim de que não se tolerem abusos ou violações a direitos de outrem.
Nesse sentido, o Marco Civil da Internet no Brasil (v. item 6, supra) inicia bem a discussão
desses direitos e deveres na era digital. Falta ainda, entretanto, norma internacional a
regular amplamente o tema.
Por fim, um tema também muito discutido atualmente, sobretudo na Europa, diz
respeito à proteção do direito à privacidade nas redes sociais, eis que os conteúdos
alimentados em tais redes podem ser utilizados indevidamente por outrem, também por
meio de hackers ou de vírus, ou ainda utilizados por empresas para fins de propaganda
comercial (eis que, por meio da violação da intimidade do cidadão, passam a conhecer o
perfil comportamental do indivíduo, como, v.g., o que gosta de frequentar, consumir etc.).
Esse fato levou o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia a editar a Diretiva
95/46/CE sobre a proteção de dados pessoais e a livre circulação desses dados.97
8. DIREITOS COMUNICATIVOS E “DIREITO AO ESQUECIMENTO”
Já se falou (v. item 2, supra) que os direitos comunicativos permitem a todos os
cidadãos expressar ideias e opiniões, pontos de vista em matéria científica, artística ou
religiosa, em quaisquer meios de comunicação, em assembleias ou associações,
garantindo também o direito relativo aos que sofreram o impacto de tais ideias, opiniões,
conceitos e pontos de vista.
Esta última referência – relativa ao direito dos que sofreram o impacto das ideias,
opiniões, conceitos e pontos de vista externados nos meios de comunicação – merece ser
devidamente compreendida. De fato, o direito de expressar ideias, opiniões, conceitos e
pontos de vista nos vários meios de comunicação existentes (v.g., rádio, televisão, jornal,
Internet etc.) guarda a contrapartida de também se assegurar proteção jurídica às pessoas
que sofreram eventuais impactos negativos de tais ideias, opiniões, conceitos e pontos de
97 Para detalhes, v. HIRATA, Alessandro. Direito à privacidade e as redes sociais: o Facebook. In: SIQUEIRA,
Dirceu Pereira & AMARAL, Sérgio Tibiriçá (Org.). Sistema constitucional de garantias e seus mecanismos de
proteção. Birigui: Boreal, 2013, p. 1-14.
109
vista, capazes de violar direitos humanos reconhecidos e garantidos por normas
internacionais.
A discussão ganhou fôlego a partir de 13 de maio de 2014, quando o Tribunal de
Justiça da União Europeia (TJUE) defendeu, pela primeira vez, o “direito ao esquecimento”
na Internet como um direito fundamental no âmbito da União Europeia. O acórdão do
TJUE originou-se de um litígio que opôs a empresas Google Spain SL e Google Inc. à Agência
Espanhola de Proteção de Dados – AEPD e ao Sr. Mário Costeja González, a propósito de
uma decisão desta Agência que deferiu a reclamação apresentada por Mário González
contra aquelas duas empresas e ordenou à Google Inc. a adoção das medidas necessárias
para retirar os dados pessoais relativos ao reclamante dos seus links de busca na Internet
(os quais vinculavam seu nome a fatos passados que o incomodavam98) e impossibilitar o
acesso futuro e esses mesmos dados.99
O TJUE especificou que os interessados em retirar suas informações pessoais dos
links de busca na Internet devem apresentar seus pedidos “diretamente” ao
administrador do site de busca, que deve então examinar se tais pedidos têm razão de ser
e, se for caso, pôr termo ao tratamento dos dados em questão. Porém, se o administrador
do site de busca não der seguimento aos pedidos de retirada, o cidadão em causa, ainda
segundo o TJUE, “pode submeter o assunto à autoridade de controle ou aos tribunais, para
que estes efetuem as verificações necessárias e ordenem a esse responsável a tomada de
medidas precisas em conformidade”.100
O Tribunal fez questão de frisar no acórdão que o manejo de dados pessoais realizado
pelo operador de um motor de busca pode “afetar significativamente os direitos
fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais, quando a
pesquisa através desse motor seja efetuada a partir do nome de uma pessoa singular, uma
vez que o referido tratamento permite a qualquer internauta obter, com a lista de
98 O fato concreto consistiu no seguinte: em 19 de janeiro de 1998, o jornal espanhol La Vanguardia publicou
um anúncio do Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais sobre um leilão de imóveis para o pagamento
de dívidas à Seguridade Social, em que um dos devedores era o Sr. Mário Costeja González, cujo apartamento
foi levado a hasta pública. Apesar de o caso ter sido encerrado há anos, o nome de Mário González continuou
para sempre associado a uma dívida que já não mais existia, quando o jornal La Vanguardia decidiu digitalizar
o seu acervo, em 2008. De fato, até os dias hoje a página do jornal espanhol se encontra na Internet com o
nome de Mário Gonzáles, no seguinte link: <http://hemeroteca.lavanguardia.com/preview/1998/01/19/pagina-
23/33842001/pdf.html>. Ali se informa que o apartamento de Mário Costeja González, localizado na Rua
Montseny, em Barcelona, tem 90m2 e está à venda por 8,5 milhões de pesetas.
99 TJUE, Grande Seção, Processo C-131/12, “Google Spain SL e Google Inc. Vs. Agência Espanhola de Proteção
de Dados (AEPD) e Mario Costeja González”, j. 13.05.2014, parágrafo 2.
100 Idem, parágrafo 77.
110
resultados, uma visão global estruturada das informações sobre essa pessoa, que se
podem encontrar na Internet, respeitantes, potencialmente, a numerosos aspetos da sua
vida privada e que, sem o referido motor de busca, não poderiam ou só muito dificilmente
poderiam ter sido relacionadas, e, deste modo, estabelecer um perfil mais ou menos
detalhado da pessoa em causa”.101
Em conclusão, o TJUE estabeleceu que “o operador de um motor de busca é obrigado
a suprimir da lista de resultados, exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir
do nome de uma pessoa, as ligações a outras páginas web publicadas por terceiros e que
contenham informações sobre essa pessoa, também na hipótese de esse nome ou de essas
informações não serem prévia ou simultaneamente apagadas dessas páginas web, isto, se
for caso disso, mesmo quando a sua publicação nas referidas páginas seja, em si mesma,
lícita”.102
Em suma, a emblemática decisão do TJUE, de 13 de maio de 2014, veio
definitivamente consagrar o “direito ao esquecimento” como um direito fundamental de
todos os cidadãos na União Europeia, limitando, em nome do princípio da dignidade
humana, os direitos comunicativos e de busca na Internet em determinados casos
concretos.
A questão, contudo, é ainda controversa, vez que contrasta com o direito também
fundamental relativo à liberdade de opinião e de expressão, igualmente assegurados por
normas internacionais. Sopesados, porém, os direitos em jogo, integrantes do grande
mosaico de direitos comunicativos atualmente reconhecidos, é possível sobrepor o direito
ao esquecimento ao direito de liberdade à profusão de ideias e de opiniões quando há
verdadeiro prejuízo à dignidade da pessoa, especialmente na era atual, em que a
multiplicação de informações na rede mundial de computadores faz-se instantaneamente
por meio de sites de busca e de redes sociais. Tal demonstra que os motores de busca da
Internet não são imunes a qualquer controle, bem assim às responsabilidades por danos
ocasionados às pessoas, o que tem determinado a elaboração de diretrizes supranacionais
sobre o tema (especialmente no âmbito da União Europeia) e de normas internas dos
respectivos Estados-partes.103
101 Idem, parágrafo 80.
102 Idem, parágrafo 100, item 3.
103 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados.
Consultor Jurídico, de 05.06.2015, p. 5.
111
A multiplicação de uma informação ou conteúdo indesejado tem sido nominada de
Streisand Effect (“Efeito Streisand”), remontando à tentativa da atriz e cantora norte-
americana Barbara Streisand, em 2003, de retirar da Internet uma foto aérea de sua
mansão feita pelo fotógrafo Kenneth Adelman e inserida na coleção de 12.000 fotos da
costa da Califórnia, publicada em um site da Internet, cuja repercussão teve como
resultado o efeito totalmente contrário ao por ela esperado, tendo a referida foto sido
vista por milhares de pessoas a partir daquele momento e como decorrência específica
daquele fato.
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu expressamente o “direito ao
esquecimento” no julgamento do Recurso Especial n.º 1.334.097/RJ, no caso relativo a um
cidadão que, não obstante absolvido da acusação de ter participado da Chacina da
Candelária, foi objeto de programa televisivo (Linha Direta – Justiça) veiculado pela TV
Globo, que o apontava como envolvido no crime, mas que fora absolvido. O STJ entendeu,
naquela oportunidade, que “a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas
nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade
do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana,
simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o
reconhecimento do ‘direito ao esquecimento’ pode significar um corretivo – tardio, mas
possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais
pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia”.104 O Tribunal ainda aduziu
que “o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram
integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além
de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento
jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança
– que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa
ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade,
como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional
de regenerabilidade da pessoa humana”.105 Por fim, concluiu o STJ que devem ser
ressalvados do direito ao esquecimento apenas “os fatos genuinamente históricos –
historicidade essa que deve ser analisada em concreto –, cujo interesse público e social
deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos
104 STJ, REsp. 1.334.097/RJ, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013, DJe 10.09.2013.
105 Idem, ibidem.
112
se fizer impraticável”.106
Na Alemanha, desde o julgamento do Caso Lebach pelo Tribunal Constitucional
Federal, na década de 1970, tem-se entendido que, embora a regra seja a de que o direito
à informação deva ser respeitado, a ponderação estaria a exigir, em razão do transcurso
de tempo entre o fato e a sua lembrança, devesse o interesse público da notícia ceder face
o direito à ressocialização de indivíduo criminalmente condenado (no caso, um dos
partícipes de um assassinato de quatro soldados havia sido condenado a seis anos de
reclusão, estando prestes a obter o livramento condicional quando da veiculação de
matéria televisiva sobre o ocorrido). Entendeu, então, o Tribunal Constitucional alemão,
que, se num primeiro momento, o direito à informação deveria prevalecer em razão do
interesse público da persecução penal, em momento posterior, já tendo sido a opinião
pública informada, haveria de ceder face os direitos de personalidade dos indivíduos, pois,
caso contrário, a lembrança do passado implicaria nova e intolerável reprovação social ao
autor do fato.107
Crê-se que a sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia (de 13.05.2014)
deverá reforçar, doravante, a jurisprudência dos Estados sobre o tema, permitindo cada
vez mais um profícuo “diálogo inter-cortes”, capaz de coordenar os vários interesses em
jogo, sopesá-los e, finalmente, garantir o “direito ao esquecimento” nas situações que
justificarem a sua implementação.
Não há dúvidas que os direitos comunicativos devem garantir que os meios para se
chegar à expressão do conhecimento sejam livremente acessados, quer no que tange às
liberdades artísticas e literárias, à liberdade de proceder a uma investigação científica ou
à liberdade de ensinar e ser ensinado. Tal, contudo, não pode justificar abusos e violações
a outros direitos humanos, tal como o direito de ser definitivamente esquecido dos meios
de comunicação em geral ou de não serem lembrados contra a vontade do interessado os
atos violadores de sua dignidade, ressalvados os fatos genuinamente históricos, desde que
a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.
Destaque-se, por fim, que o Enunciado n.º 531, editado na VI Jornada de Direito Civil,
promovida pelo Conselho da Justiça Federal em março de 2013, expressamente
estabeleceu que: “A tutela da dignidade humana na sociedade de informação inclui o
106 Idem, ibidem.
107 Cf. BVerfGE 35, Sentença de 05.06.1973, p. 202 e 233 e ss; e SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao
caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados, cit., p. 1-2.
113
direito ao esquecimento”. A justificativa do Enunciado, por sua vez, ficou assim ementada:
“Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos
dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das
condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à
ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria
história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos
pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.108
Atualmente, no Brasil, diversos tribunais estaduais, na sequência do que foi decidido
pelo STJ, têm determinado a provedores de Internet, com fundamento no art. 5.º, V e X, da
Constituição Federal,109 e no art. 12 do Código Civil,110 que retirem dos seus sites de busca
conteúdos ofensivos aos cidadãos, impedindo sejam acessados e reproduzidos por
terceiros a qualquer momento.
Em conclusão, pode-se dizer que o “direito ao esquecimento”, antes de
definitivamente consagrado na União Europeia, já era reconhecido pela jurisprudência
brasileira, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, a qual se impregnou nas
decisões dos demais Tribunais de Justiça pátrios desde então.
9. CONCLUSÃO
Ao cabo desta exposição foi possível perceber que a proteção dos direitos
comunicativos abrange, além da liberdade de expressão, de opinião ou de imprensa,
também a garantia de que o meio para se chegar à expressão do conhecimento seja
livremente exercido, quer no que toca, v.g., às liberdades artísticas e literárias, à
liberdade de proceder a uma investigação científica ou mesmo à liberdade de ensinar
e ser ensinado.
Na era atual da comunicação os direitos comunicativos compõem o eixo
fundamental dos direitos humanos, pelo que é possível falar em “direitos
comunicativos fundamentais”, que se expressam de maneira multifuncional. Deles
decorrem a liberdade de expressão stricto sensu, de informação, de investigação
acadêmica, de criação artística, de edição, de jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de
108 CJF, VI Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-
cej/vijornada.pdf>. Acesso em: 18 agosto 2015.
109 Verbis: “V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem”; “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
110 Verbis: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas
e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
114
programação, de comunicação individual, de telecomunicações e de comunicação em
rede.
Nesse sentido, o acesso livre à Internet torna-se um dos direitos humanos mais
importantes do mosaico de direitos comunicativos da pós-modernidade, sobretudo, no
Brasil, com a entrada em vigor do Marco Civil da Internet, que elevou a rede mundial de
computadores à condição de meio essencial ao exercício da cidadania. Assim, à medida
que a Internet representa uma ferramenta da liberdade de expressão e do exercício da
cidadania, tem-se que o seu acesso há de ser completamente livre a todos os cidadãos
(independentemente de permissão ou autorização do Estado). Essa liberdade de acesso à
rede, atualmente, pertence ao núcleo essencial dos direitos humanos, pelo que se condena
qualquer ato arbitrário do Estado capaz de limitar ou impedir o seu pleno exercício.
No que tange ao “direito ao esquecimento”, entende-se que a questão deve ser
resolvida em favor de sua sobreposição à liberdade de profusão de ideias e de opiniões
quando há verdadeiro prejuízo à dignidade da pessoa humana, não se podendo deixar fora
de qualquer controle e isentos de quaisquer responsabilidades os motores de busca da
Internet, fato que tem levado à crescente regulamentação supranacional e jurisprudencial
do tema.
Não há dúvidas que os direitos comunicativos devem garantir que os meios para se
chegar à expressão do conhecimento sejam livremente acessados, quer no que tange às
liberdades artísticas e literárias, à liberdade de proceder a uma investigação científica ou
à liberdade de ensinar e ser ensinado. Tal, contudo, não pode justificar abusos e violações
a outros direitos humanos, tal como o direito de ser definitivamente esquecido dos meios
de comunicação em geral ou de não serem lembrados contra a vontade do interessado os
atos violadores de sua dignidade, ressalvados os fatos genuinamente históricos, desde que
a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.