Streck. Hermenêutica Filosófica e Retórica (pontos de contato).

download Streck. Hermenêutica Filosófica e Retórica (pontos de contato).

of 38

Transcript of Streck. Hermenêutica Filosófica e Retórica (pontos de contato).

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    1/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICASDO DIREITO: ENSAIO SOBRE A CEGUEIRAPOSITIVISTA

    Lenio Luiz Streck*

    Se puderes olhar, v. Se podes ver, repara.

    Ensaio sobre a cegueira, de Jos Saramago.

    1. Das origens de Hermes s subtilitatae intelligendi, expli-candi e applicandi

    A palavra hermenutica deriva do grego hermeneuein, ad-quirindo vrios significados no curso da histria. Por ela, busca-setraduzir para uma linguagem acessvel aquilo que no compreen-svel. Da a idia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite e, portanto, esclarece o contedo da mensagem dos deusesaos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-sepoderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram;

    s se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram.Trata-se, pois, de uma (inter)mediao. Desse modo, a menos quese acredite na possibilidade de acesso direto s coisas (enfim, es-sncia das coisas), na metfora de Hermes que se localiza todaa complexidade do problema hermenutico. Trata-se de traduzirlinguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido.

    * Professor do Programa de Ps-Graduao em Direito Mestrado e Doutorado da UNI-SINOS e UNESA; Doutor pela UFSC; Ps-Doutor em Direito pela Universidade de

    Lisboa-PT.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    2/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS34

    Na histria moderna, tanto na hermenutica teolgica comona hermenutica jurdica, a expresso tem sido entendida comoarte ou tcnica (mtodo), com efeito diretivo sobre a lei divina ea lei humana. O ponto comum entre a hermenutica jurdica e ahermenutica teolgica reside no fato de que, em ambas, semprehouve uma tenso entre o texto proposto e o sentido que alcanaa sua aplicao na situao concreta, seja em um processo judicialou em uma pregao religiosa. Essa tenso entre o texto e o sentido

    a ser atribudo ao texto coloca a hermenutica diante de vrioscaminhos, todos ligados, no entanto, s condies de acesso dohomem ao conhecimento acerca das coisas. Assim, ou se demon-stra que possvel colocar regras que possam guiar o hermeneutano ato interpretativo, mediante a criao, v.g., de uma teoria geralda interpretao; ou se reconhece que a pretensa ciso entre o atodo conhecimento do sentido de um texto e a sua aplicao a umdeterminado caso concreto no so de fato atos separados; ou se

    reconhece, finalmente, que as tentativas de colocar o problemahermenutico a partir do predomnio da subjetividade do intrpreteou da objetividade do texto no passa(ra)m de falsas contraposiesfundadas no metafsico esquema sujeito-objeto.

    A crise que atravessa a hermenutica jurdica possui umarelao direta com a discusso acerca da crise do conhecimentoe do problema da fundamentao, prpria do incio do sculo XX.Veja-se que as vrias tentativas de estabelecer regras ou cnones

    para o processo interpretativo a partir do predomnio da objetivi-dade ou da subjetividade ou, at mesmo, de conjugar a subjetividadedo intrprete com a objetividade do texto, no resistiram s tesesda viragem lingstico-ontolgica (Heidegger-Gadamer), supera-doras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do carterontolgico prvio do conceito de sujeito e da desobjetificao pro-vocada pelo circulo hermenutico e pela diferena ontolgica.

    A viragem hermenutico-ontolgica, provocada pela publica-

    o de Sein und Zeit por Martin Heidegger, em 1927, e a publicao,

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    3/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 35

    anos depois, de Wahrheit und Methode, por Hans-Georg Gadamer, em1960, foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenu-tica jurdica. A partir dessa ontologische Wendung(giro ontolgico),inicia-se o processo de superao dos paradigmas metafsicos obje-tivista aristotlico-tomista e subjetivista (filosofia da conscincia),os quais, de um modo ou de outro, at hoje tm sustentado as tesesexegtico-dedutivistas-subsuntivas dominantes naquilo que vemsendo denominado de hermenutica jurdica.

    Com efeito, um exame da doutrina e da jurisprudncia dodireito aponta para a continuidade do domnio da idia da indis-pensabilidade do mtodo ou do procedimento para alcanar a von-tade da norma, o esprito de legislador, a melhor resposta, etc.No mais das vezes, continua-se a acreditar que o ato interpretativo um ato cognitivo (da a prevalncia do sujeito solipsista) e queinterpretar a lei retirar da norma tudo o que nela contm (sic),circunstncia que bem denuncia a problemtica metafsica nesse

    campo de conhecimento. Na verdade, possvel perceber umacerta imbricao consciente ou inconsciente dos paradigmasmetafsicos clssico e moderno no interior da doutrina brasileira (eestrangeira). Trata-se, pois, de um problema paradigmtico. Algunsautores colocam na conscincia do sujeito-juiz o locus da atribuiode sentido (solipsista). Nesse contexto, filosofia da conscinciae discricionariedade judicial so faces da mesma moeda. Handa juristas filiados s antigas teses formalistas, propalando que

    a interpretao deve buscar a vontade da lei, desconsiderando dequem a fez sic e que a lei terminada independe de seu passado,importando apenas o que est contido em seus preceitos. De todomodo, mesmo hoje, em plena era do to festejado linguistic turn,de um modo ou de outro, continua-se a reproduzir o velho debateformalismo-realismo. Mais ainda, e na medida em que o direitotrata de relaes de poder, tem-se, na verdade, em muitos casos,umamixagem entre posturas formalistas e realistas, isto , por

    vezes, a vontade da lei e a essncia da lei devem ser buscadas

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    4/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS36

    com todo o vigor; em outras, h uma ferrenha procura pela solipsistavontade do legislador; finalmente, quando nenhuma das duasorientaes suficiente,pe-se no topo a vontade do intrprete,colocando-se em segundo plano os limites semnticos do texto,fazendo soobrar at mesmo a Constituio. O resultado disso que aquilo que comea com (um)a subjetividade criadora desentidos (afinal, quem pode controlar a vontade do intrprete?,perguntariam os juristas), acaba em decisionismos e arbitrariedades

    interpretativas, isto , em um mundo jurdico em que cada uminterpreta como (melhor) lhe convm...! Enfim, o triunfo do sujeitosolipsista, o Selbschtiger.

    A hermenutica jurdica praticada no plano da cotidianidadedo direito deita razes na discusso que levou Gadamer a fazer acrtica ao processo interpretativo clssico, que entendia a interpre-tao como sendo produto de uma operao realizada em partes(subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto ,

    primeiro compreendo, depois interpreto, para s ento aplicar).

    A impossibilidade dessa ciso to bem denunciada por Gad-amer implica a impossibilidade de o intrprete retirar do textoalgo que o texto possui-em-si-mesmo, numa espcie de Ausle-

    gung, como se fosse possvel reproduzir sentidos; ao contrrio, paraGadamer, fundado na hermenutica filosfica, o intrprete sempreatribui sentido (Sinngebung). Mais ainda, essa impossibilidade daciso que no passa de um dualismo metafsico afasta qualquerpossibilidade de fazer ponderaes em etapas, circunstncia, al-is, que coloca a(s) teoria(s) argumentativa(s) como refm(ns) doparadigma do qual tanto tentam fugir: a filosofia da conscincia.O acontecer da interpretao ocorre a partir de uma fuso de hori-zontes (Horizontenverschmelzung), porque compreender sempre oprocesso de fuso dos supostos horizontes para si mesmos.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    5/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 37

    2 Filosofia hermenutica e hermenutica filosfica: a rev-oluo copernicana na interpretao do direito

    Algumas posturas crticas sobre a hermenutica jurdica emespecial a hermenutica filosfica de Hans-Georg Gadamer rece-beram uma ntida influncia da ontologia fundamental de matrizheideggeriana, a partir de seus dois principais teoremas: o crculohermenutico e a diferena ontolgica. Como tenho registrado

    em outros textos (Hermenutica Jurdica em Crise e Verdade eConsenso), o conjunto da obra de Heidegger constitui-se em basefundante de um novo olhar sobre a hermenutica jurdica, embora registre-se o filsofo no tenha dedicado espao para o direito.A importncia de Heidegger facilmente perceptvel pela viragemontolgica (ontologische Wendung) no campo da hermenuticajurdica proporcionada por seu discpulo Hans-Georg Gadamer,cujas idias deitam profundas razes nos teoremas fundamentaiselaboradas pelo filsofo da Floresta Negra.

    A fenomenologia hermenutica permite superar o esquemasujeito-objeto que tem tornado, historicamente, o pensamentojurdico refm dos paradigmas objetivista aristotlico-tomistae da subjetividade. O crculo hermenutico atravessa a relaosujeito-objeto, a partir da antecipao de sentido, impedindo oobjetivismo e o subjetivismo, prprios do pensamento metafsico.A compreenso (Verstehen) ocorre no interior desse virtuoso crculo

    hermenutico. Qualquer interpretao que contribua para a com-preenso deve j haver compreendido o que se deve interpretar,dir Heidegger. No se pode esquecer que o j-sempre-ter-estado ea historicidade do Dasein so as caractersticas de nossa faticidade.Essa pr-estrutura projeta nosso compreender e antecipa os sentidosque temos do mundo. Isto no significa, entretanto, que sejamosprisioneiros dessa pr-estrutura. Compreender no um modo deconhecer, mas um modo de ser.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    6/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS38

    Por isto e essa circunstncia ficar bem explicitada na her-menutica gadameriana desenvolvida em Wahrheit und Methode compreender, e, portanto, interpretar (que explicitar o que secompreendeu) no depende de um mtodo, saltando-se, assim, daepistemologia da interpretao para a ontologia da compreenso.Quando Heidegger identifica um duplo nvel na fenomenologia (onvel hermenutico, de profundidade, que estrutura a compreenso,e o nvel apofntico, de carter lgico, meramente explicitativo,

    ornamental), abre as possibilidades para a desmi(s)tificao dasteorias argumentativas de cariz procedimental. Na verdade, colocaem xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento,questo que se torna absolutamente relevante para aquilo quetem dominado o pensamento dos juristas: o problema do mtodo,considerado como supremo momento da subjetividade e garantiada correo dos processos interpretativos.

    Uma hermenutica jurdica que se pretenda crtica, hoje,

    no pode prescindir dos dois teoremas fundamentais formuladospor Heidegger: o crculo hermenutico, de onde possvel extraira concluso de que o mtodo (ou o procedimento que pretendecontrolar o processo interpretativo) sempre chega tarde, porque oDasein j se pronunciou de h muito, e a diferena ontolgica, pelaqual o ser sempre o ser de um ente, rompendo-se a possibilidadede subsunes e dedues, uma vez que, para Heidegger, o sentido um existencial do Dasein, e no uma propriedade colada sobre o

    ente, colocado atrs deste ou que paira no se sabe onde, em umaespcie de reino intermedirio. Enfim, a diferena ontolgicaheideggeriana funciona como contraponto aos dualismos metafsi-cos que ainda povoam o imaginrio dos juristas, como essncia eaparncia, teoria e prtica, questo de fato e questo de direito,texto e norma, casos fceis e casos difceis, regra e princpio, paracitar apenas algumas que assumem uma relevncia incomensurvelna aplicao do direito (porque interpretar aplicar), mediante

    as quais doutrina e jurisprudncia passam a idia de que o texto

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    7/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 39

    carrega o seu prprio sentido, assim como se na vigncia do textojurdico j estivesse contida a sua validade.

    Nesse sentido, cabe aqui uma advertncia: a matriz heidegge-riana-gadameriana no deve ser entendida como uma adaptaode teorias filosficas ao direito, como se a filosofia fosse uma capade sentido de um conhecimento jurdico desprovido de capacidadecrtica. Do mesmo modo, no se trata de heideggerizar o direito,

    a partir de um ingnuo acoplamento de uma sofisticada teoria deum sofisticado autor. A utilizao da filosofia hermenutica e dahermenutica filosfica d-se na exata medida da ruptura paradig-mtica introduzida principalmente por Heidegger (e tambm porWittgenstein) nos anos 20-30 do sculo XX, a partir da introduodo mundo prtico na filosofia. Mais do que um linguistic turn, o queocorreu foi um giro lingustico-ontolgico. Essa alterao radical naestrutura do pensamento proporcionou a ruptura com os paradigmasobjetivista e subjetivista. Essa autntica revoluo copernicana

    no foi apenas relevante para o direito, mas para a totalidade daestrutura do pensamento da humanidade. A partir da, j no sefala em fundamentum inconcussum, e sim no compreender e nassuas condies de possibilidade; enfim, salta-se da epistemologiapara a ontologia (ontologia fundamental). A pergunta que se fazaos crticos da utilizao de Heidegger e Gadamer no direito que vm principalmente do campo filosfico : por que o direitoestaria blindado s influncias dessa revoluo paradigmtica?

    Alis, talvez por assim se pensar que o direito continua athoje refm, de um lado, do objetivismo (metafsica clssica) e, deoutro, do solipsismo prprio da filosofia da conscincia (metafsicamoderna). Penso, assim, que os crticos (refiro-me especialmentequeles advindos da filosofia e da sociologia) que olham de soslaio ocrescimento do uso da ontologia fundamental no direito deveriamobservar melhor esse fenmeno e, quem sabe, implementar pesqui-sas na rea do direito, assim como cada vez mais os juristas fazempesquisas na rea da filosofia (no para transformar a filosofia em

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    8/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS40

    um discurso otimizador do direito, mas como condio de possibili-dade; por isso, a expresso que cunhei filosofiano direito e no dodireito). Afinal, o direito um fenmeno bem mais complexo doque se pensa; o direito no uma mera racionalidade instrumental.Isso implica reconhecer que fazer filosofia no direito no apenaspensar em levar para esse campo a analtica da linguagem ou queos grandes problemas do direito estejam na mera interpretao dostextos jurdicos.

    Em sntese, vale sempre a advertncia: na medida em quefilosofia no lgica, a hermenutica de cariz filosfico, con-struda a partir da ontologia fundamental (e dos demais aportesda fenomenologia hermenutica), no pode ser entendida comoum discurso ornamental-acoplativo do e/ou para o direito. Arevoluo copernicana provocada pelo giro lingstico-ontolgicode Heidegger e Gadamer deve ser entendida como uma rupturacom a(s) epistemologia(s). A hermenutica jurdica foi atingida

    inapelavelmente por esse giro lingstico-ontolgico que no foiconstruda no ou (especialmente) para o direito, mas, sim, essegiro copernicano transforma toda a estrutura do pensamento filos-fico. Por isso, a hermenutica filosfica e a filosofia hermenu-tica. Por ser filosfica, a hermenutica deixa de ser mtodo e passaa ser modo de ser no mundo. A introduo do mundo prtico nafilosofia feita por Heidegger e reafirmada mais tarde por Gadamer que possibilita esse olhar ruptural em direo aos agora ultrapas-

    sados paradigmas metafsico clssico e moderno.Assim, no plano de uma hermenutica superadora do esque-

    ma sujeito-objeto, necessrio ter presente que, para interpretar,necessitamos compreender. E para compreender, temos que teruma pr-compreenso, constituda de estrutura prvia do sentido que se funda essencialmente em uma posio prvia (Vorhabe),viso prvia (Vorsicht) e concepo prvia (Vorgriff) que j unetodas as partes do sistema.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    9/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 41

    Temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que a interpretao. Por isso, podemos dizer que estamos condenados ainterpretar. O horizonte do sentido nos dado pela compreensoque temos de algo. Compreender um existencial, que uma cat-egoria pela qual o homem se constitui.A faticidade, a possibilidadee a compreenso so alguns desses existenciais. no nosso mododa compreenso enquanto ser no mundo que exsurgir a norma(sentido do texto) produto da sntese hermenutica, que se d a

    partir da faticidade e historicidade do intrprete.A superao da hermenutica clssica ou daquilo que tem

    sido denominado de hermenutica jurdica como tcnica no seio dadoutrina e da jurisprudncia praticadas cotidianamente ,implicaadmitir que h uma diferena entre o texto jurdico e o sentidodesse texto, isto , que o texto no carrega, de forma reificada,o seu sentido (a sua norma). Trata-se de entender que entre textoe norma no h uma equivalncia e tampouco uma total autono-

    mizao (ciso). Na verdade, no interior da dogmtica jurdicaocorre uma bricolagem de vrias teorias e posturas, juntandoteses absolutamente inconciliveis, formando um sincretismohermenutico, vulgata de uma construo terica que nada maisfaz do que reforar a discricionariedade positivista.

    Entre texto e norma h, sim, uma diferena, que ontolgica(ontologische Differenz), isto porque e aqui a importncia dos doisteoremas fundamentais da hermenutica jurdica de cariz filosfico

    o ser sempre o ser de um ente e o ente s no seu ser. O ser existepara dar sentido aos entes. Por isso h uma diferena ontolgica (noontolgico-essencialista, bvio) entre ser e ente, tese que ingressa noplano da hermenutica jurdica para superar, tanto o problema daequiparao/imanncia entre vigncia e validade, como o da totalciso entre texto e norma, resqucios de um positivismo jurdico queconvive com uma total discricionariedade no ato interpretativo,que descamba, inexoravelmente, em arbitrariedades, grau de zero

    de sentido, etc. Positivismo, assim, entendido, nos limites destas

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    10/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS42

    reflexes, a partir de sua principal caracterstica: a discricionarie-dade, que ocorre a partir da delegao em favor dos juzes para aresoluo dos casos difceis (no abarcados pela regra). A holdingda discusso est no debate Ronald Dworkin-Herbert Hart.

    Dito de outro modo, na medida em que o ser sempre o ser deum ente, isto , o ser no flutua no ar (no pode ser visto), portanto,s ocorre nas coisas (entes), este no pode ser entificado. Portanto,no esqueamos que sentido aquilo dentro do qual o significadopode se dar, isto , o significado o contedo predicado de umenunciado. Na fenomenologia hermenutica, opera-se com os con-ceitos de abertura (Erschlossenheit) e encobrimento (Verborgenheit),em que o sentido possibilitado pela abertura e desaparece peloencobrimento, mas sempre num horizonte de sentido que dependedo modo de ser do Dasein. O sentido depende do horizonte noqual ele se pode dar, graas a abertura ou o encobrimento prprioda existncia. A fenomenologia hermenutica ser justamente o

    modo de descrever as coisas como elas acontecem.Por isso, a afirmao de que o intrprete sempre atribui

    sentido (Sinngebung) ao texto, nem de longe pode significar apossibilidade deste estar autorizado a atribuir sentidos de formaarbitrria aos textos, como se texto e sentido do texto estivessemseparados (e, portanto, tivessem existncia autnoma). Comobem diz Gadamer, quando o juiz pretende adequar a lei s necessida-des do presente, tem claramente a inteno de resolver uma tarefa

    prtica (veja-se, aqui, a importncia que Gadamer d ao programaaristotlico de umapraktische Wissenschaft). Isto no quer dizer, demodo algum, diz o mestre de Tbingen, que sua interpretao dalei seja uma traduo arbitrria.

    Portanto, ficam afastadas todas as formas de decisionismoe discricionariedade. O fato de no existir um mtodo que possadar garantia correo do processo interpretativo dennciapresente, alis, j no oitavo captulo da Teoria Pura do Direito de

    Hans Kelsen no autoriza o intrprete a escolher o sentido que

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    11/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 43

    mais lhe convm, o que seria dar azo discricionariedade tpicado convencionalismo exegtico-positivista (na verdade, isso oque acontece na dogmtica jurdica dominante). Sem textos, noh normas. A vontade e o conhecimento do intrprete nopermitem a atribuio arbitrria de sentidos, e tampouco umaatribuio de sentidos arbitrria. Afinal, e a lio est expressa emWahrheit und Methode, se queres dizer algo sobre um texto, deixaque o texto te diga algo (Wer einen Text verstehen will, ist vielmeher

    bereit, sich von im etwas zu sagen lassen.).A hermenutica jamais permitiu qualquer forma de deci-

    sionismo ou de realismo (subjetivismos de cariz pragmatista).Gadamer rejeita peremptoriamente qualquer acusao de relativis-mo hermenutica jurdica. Isso porque, paradoxalmente, falar derelativismo admitir verdades absolutas, problemtica, alis, jamaisdemonstrada. Essa questo tambm fica clara em um dos melhoresintrpretes de Gadamer, Jean Grondin. A hermenutica afasta o

    fantasma do relativismo, porque este nega a finitude e seqestra atemporalidade.

    Por isso possvel dizer que uma hermenutica jurdica quese pretenda crtica, hoje, fundamentada nesse giro lingstico-ontolgico, deve procurar corrigir o equvoco das diversas teorias dainterpretao, que, embora reconheam que o direito se caracterizapor um processo de aplicao a casos particulares (concretude),permanecem refns da metafsica, ao elaborarem um processo de

    subsuno a partir de conceitualizaes (veja-se o paradigmticocaso das smulas vinculantes no Brasil), que se transformam emsignificantes-primordiais-fundantes ou universais jurdicos, acoplveis a um determinado caso jurdico. Isso ocorre devrios modos no interior da doutrina e da jurisprudncia domi-nantes, como o estabelecimento de topoi ou de meta-critriospara a resoluo de conflitos entre princpios, alm das frmulaspara regrar a interpretao, propostas pelas diversas teorias daargumentao jurdica.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    12/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS44

    No basta dizer que o direito concretude, e que cada caso um caso, como comum na linguagem dos juristas. Afinal, mais do que evidente que o direito concretude e que feito pararesolver casos particulares. Qual a novidade disso? Qualquerestudante de direito parece entender minimamente essa questo.O que no evidente que o processo interpretativo applicatio,entendidano sentido da busca da coisa mesma (Sache selbst), isto, do no esquecimento da diferena ontolgica. Igualmente no

    evidente que o direito seja parte integrante do prprio caso eque uma questo de fato sempre uma questo de direito e vice-versa. Tambm no evidente que a hermenutica no filologia,e que impossvel cindir a compreenso da aplicao. Uma coisa deduzir de um topos ou de uma lei o caso concreto; j outra bemdiferente entender o direito como aplicao: na primeira hiptese,estar-se- entificando o ser; na segunda, estar-se- realizando aaplicao de ndole hermenutica, a partir da idia de que o ser sempre ser-em (in Sein).

    Assim, embora os juristas - nas suas diferentes filiaestericas insistam em dizer que a interpretao deve se dar sempreem cada caso, tais afirmaes no encontram comprovao nacotidianidade das prticas jurdicas. Na verdade, ao construrempautas gerais, conceitos lexicogrficos, verbetes doutrinrios ejurisprudenciais,1 ou smulas aptas a resolver casos futuros, os

    1 A indstria que mais cresce a dos manuais, recheados de conceitos sem coisas.

    O problema alcanou nveis alarmantes no mercado jurdico com o surgimento dosestudos esquemticos e quadros sinpticos dos Cdigos e (at) da Constituio. Apergunta que deve ser feita : qual a importncia acadmico-cientfica de publicaesque meramente reproduzem expresses do senso comum terico (ou que expressamcontundentes obviedades), como, por exemplo, que a interpretao doutrinria aquela realizada por estudiosos do direito, os quais emitem suas opinies pessoais(sic) sobre a lei e que interpretao judicial aquela realizada pelos aplicadores dodireito, ou seja, pelos juzes (sic)? Pergunta-se: hermenutica jurdica seria algo tosingelo (ou simplista) quanto proferir uma opinio pessoal? Algum duvida quea interpretao judicial feita pelos juzes e tribunais? Mais: qual a importnciareflexiva contida na assertiva, constante em um importante manual de direito penal,

    de que o desenvolvimento mental incompleto aquele que ainda no se concluiu e

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    13/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 45

    juristas sacrificam a singularidade do caso concreto em favor dessasespcies de pautas gerais, fenmeno, entretanto, que no perce-bido no imaginrio jurdico. Da a indagao de Gadamer: existiruma realidade que permita buscar com segurana o conhecimentodo universal, da lei, da regra, e que encontre ai a sua realizao?No a prpria realidade o resultado de sua interpretao?

    A rejeio de qualquer possibilidade de subsunes ou

    dedues aponta para o prprio cerne de uma hermenutica jurdicainserida nos quadros do pensamento ps-metafsico. Trata-se, an-tes de tudo, de superar a problemtica dos mtodos, consideradospelo pensamento exegtico-positivista como portos seguros paraa atribuio dos sentidos. Compreender no produto de umprocedimento(mtodo) e no um modo de conhecer. Compreender

    o desenvolvimento retardado o que no pode chegar maturidade psquica? E oque o autor quereria dizer com o enunciado o motivo torpe aquele que, por sua

    manifesta repugnncia, ofende os princpios da moralidade social? Ou com a seguinteproposio: a torpeza uma qualidade (sic) que ofende a nobreza do espritohumano? Veja-se a definitividade do conceito de grave ameaa, caracterizada emum importante manual como o prenncio de um acontecimento desagradvel... Porque algum compra um livro jurdico para lhe dizer, por exemplo, que coisa alheiano crime de furto aquela que no pertence pessoa e que coisa mvel aquelaque se desloca de um lugar para outro? Ou que enuncia: chave falsa um instru-mento para abrir fechaduras.... E o que dizer do enunciado paralizao de atividadeeconmica a cessao, temporria ou definitiva, de uma atividade lucrativa? Porque algum adquire um livro para dizer que adquirir significa obter ou comprar?Ou que a agresso atual, na caracterizao da legtima defesa, aquela que est

    acontecendo e a iminente a que est por acontecer? Ou que noite a ausnciade luz? Ou, ademais, que quadrilha necessita de quatro pessoas? Ou, ainda, queaquele que escreveu a carta no pode ser sujeito ativo do crime de violao decorrespondncia? A lista interminvel... So as obras mais vendidas no mercadoeditorial do direito brasileiro. o triunfo do senso comum terico dos juristas, queWarat j denunciava h mais de trinta anos. Mas, sempre resta a pergunta (cuja res-posta j temos de antemo): afinal, por que algum adquire um livro no qual o autorapenas apresenta uma compilao deprt--porters, em que incapaz de delinear, porsua conta, noes mnimas de teoria do direito e da Constituio? Em muitos casos,o autor alinhava citaes sobre citaes, do tipo, sobre o assunto leciona fulano...;acerca da matria assim de manifesta beltrano; o ilustre professor fulano assim se

    posiciona; e no podem faltar citaes como o eminente ministro esgotou a matria,

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    14/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS46

    , sim, um modo de ser, porque a epistemologia substituda pelaontologia da compreenso (aqui deve ser referida a importncia doestudo da ruptura que Heidegger e Wittgenstein provocaram nafilosofia nos anos 20-30 do sculo XX). Isto significa romper comas diversas concepes que se formaram sombra da hermenuticatradicional, de cunho objetivista-reprodutivo, cuja preocupao de carter epistemolgico-metodolgico-procedimental, cindindoconhecimento e ao, buscando garantir uma objetividade dos

    resultados da interpretao. A mesma crtica pode ser feita tpicaretrica, cuja dinmica no escapa das armadilhas da subsunometafsica. Alis, o fato de ligar-se ao problema no retira datpica sua dependncia da deduo e da metodologia tradicional,o que decorre fundamentalmente de seu carter no filosfico.

    sempre, , claro, dando nfase s decises tribunalcias, colocando a doutrina a

    reboque da jurisprudncia (muitas vezes, com citao de decises isoladas, transfor-mando raciocnios de varejo em enunciados por atacado). Vale a pena igualmenteconferir as citaes que Bolzan de Morais to bem denomina de prenhes de vazio,como, v.g.: a) a Constituio autoritria de 1969, no dizer de fulano... (se o escritorno sabe que a Constituio de 1969 era autoritria, por que, ento, deseja ensinaraos outros?); b) para falar do Estado Democrtico de Direito, faz-se uma nota derodap citando autor que apenas reproduz o artigo 1 da Constituio (se o escritor seesforasse, encontraria isso na prpria Constituio, pois no?),; c) ou, ainda, livros,teses e dissertaes, contendo prolas como as prises so depsitos de pessoas, nodizer do eminente jurista sicrano... ou novos conceitos como sentena vem desentire... (o que, alm de tudo, demonstrao de adeso ao paradigma a que todos

    os crticos querem tanto combater: a filosofia da conscincia), fazendo-se aluso avrios juristas, via de regra a partir de citaes de segunda ou terceira mos...! Talveza mais genial das citaes seja a de que prova para condenar tem de ser robusta,como bem diz o festejado Malatesta (sic), encontrada em peties, sentenas eacrdos em todo o territrio nacional... (veja-se o alto teor de convencimento doenunciado). Por tais razes que parcela expressiva desses manuais (refiro-me aoscompndios e similares que apenas reproduzem standards jurdicos servio dos cur-sinhos de preparao para concursos e outros que, com pretenses crticas, acabamreproduzindo aquilo que pretendem combater) deveria trazer, na quarta capa, umaadvertncia ao consumidor, dando conta dos propsitos do autor...! Ou, se se preferiruma soluo mais radical, colocar uma advertncia como a que se v nos maos decigarro: o uso constante deste manual acarretar srios prejuzos ao usurio.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    15/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 47

    3. A(s) resistncia(s) domodus interpretativo dominantena doutrina e na jurisprudncia: o entrechoque entreo novo e o velho

    Apesar da revoluo copernicana produzida pela viravoltalingstico-hermenutica, possvel detectar nitidamente a suano recepo pela hermenutica jurdica praticada nas escolas dedireito e nos tribunais, onde ainda predomina o mtodo, mesmo

    que geneticamente modificado pelas teorias discursivas. Tantosmtodos e procedimentos interpretativos postos disposio dosjuristas faz com que ocorra a objetificao da interpretao, porquepossibilitam ao intrprete sentir-se desonerado de maiores respons-abilidades na atribuio de sentido, colocando no fetichismo da leie no legislador a responsabilidade das anomalias do direito.

    Por isso razovel afirmar que, em face da inexistnciade um mtodo fundamental, meta-mtodo ou meta-critrio

    que sirva como fundamento ltimo (espcie de repristinaodo fundamentum inconcussum absolutum veritatis) de todo o pro-cesso hermenutico-interpretativo, o uso dos mtodos semprearbitrrio, propiciando interpretaes ad-hoc, discricionrias. Aimpossibilidade de um Grundmethode constitui, assim, o calcanharde Aquiles da hermenutica jurdica exegtico-positivista.

    Neste ponto, alis, reside o forte vnculo entre a hermenu-tica metodolgica e o positivismo jurdico, que assim se colocarefratrio ao paradigma estabelecido pelo (neo)constitucionalismo.Resistente ao giro hermenutico-ontolgico, a hermenuticajurdica vem possibilitando a sobrevivncia das velhas teses posi-tivistas-normativistas acerca da interpretao, como a subsuno,o silogismo, a individualizao do direito na norma geral a partirde critrios puramente cognitivos e lgicos, a liberdade de con-formao do legislador, a discricionariedade do poder executivo,assim como o papel da Constituio como estatuto meramente

    regulamentador do exerccio do poder.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    16/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS48

    Por tais razes, assume absoluta relevncia o rompimentoparadigmtico proporcionado pela hermenutica filosfica, exata-mente pela circunstncia de que a hermenutica jurdica deixa deser uma questo de mtodo e passa a ser filosofia. Conseqente-mente, na medida em que a filosofia no lgica, a hermenuticajurdica no pode ser apenas uma ferramenta para a organizaodo pensamento. A hermenutica possui uma temtica especfica,dir Gadamer. Apesar de sua generalidade, no pode ser integrada

    legitimamente na lgica. Em certo sentido, partilha com a lgicaa universalidade. Entretanto, em outro, supera-a. Portanto, nahermenutica filosfica, a ferramenta no decisiva, isto porque nalinguagem existe algo muito alm do enunciado, isto , o enunciadono carrega em-si-mesmo o sentido, que viria a ser desacopladopelo intrprete. Na interpretao sempre fica algo de fora, o nodito, o inacessvel. assim que ser que pode ser compreendido linguagem, dir Gadamer.

    Tambm no se pode confundir a hermenutica jurdicacom as teorias da argumentao jurdica ou qualquer teoria lgico-analtica, que possuem ntido carter procedimental, tratando,pois, de outra racionalidade, que apenas discursiva. A teoria daargumentao jurdica embora procure se colocar em oposio aopositivismo-normativista - no superou o esquema representacionalsujeito-objeto, porque continua na busca de regras prvias (pro-cedimentos) que possam conformar , de forma dedutiva, as decises

    judiciais. E nisto no difere da metodologia positivista. Mais do queisso, na Teoria da Argumentao Jurdica mais conhecida, como ade Robert Alexy, possvel perceber fortes traos discricionaristas,como o caso da ponderao de interesses. Sendo mais explcito:no h evidncia na Teoria da Argumentao de que o intrpreteponderador tenha superado o solipsismo que caracteriza o sujeitoda filosofia da conscincia.

    Portanto, o compreender no depende da instituio de uma

    superviso epistemolgica a ser realizada pelas teorias do (e sobre

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    17/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 49

    o) discurso jurdico de cariz procedimental (nos seus diversos mat-izes). Na verdade, tais teorias se colocam como guardies de umapretensa racionalidade instrumental, com o que se torna razovelafirmar que uma teoria da argumentao jurdica pode ser vlidasomente naquilo que ela pode servir de auxlio na justificao/explicitao do nvel da racionalidade compreensiva (estruturantedo sentido, o como hermenutico) que desde sempre j operouno processo interpretativo.

    Enquanto a hermenutica filosfica trabalha no nvel de umcomo hermenutico-estruturante da compreenso, que antecipa osentido a partir do crculo hermenutico, as teorias discursivas nassuas variadas formas permanecem no nvel de um como apofn-tico, axiomtico-dedutivo, de carter lgico. Afinal, compreensoe aplicao no acontecem em etapas. Elas simplesmente coin-cidem. Aqui se insere a importncia dos argumentos baseados emjuzos de coerncia e integridade (Dworkin), que so condio de

    possibilidade para qualquer interpretao. Alis, Gadamer taxa-tivo ao reconhecer o fato de que esse o terreno que a hermenuticajurdica partilha com a retrica: o terreno dos argumentos persua-sivos, e no dos argumentos logicamente concludentes.

    Nesta quadra do tempo, na era das Constituies compromis-srias e sociais, enfim, em pleno ps-positivismo, uma hermenuticajurdica capaz de intermediar a tenso inexorvel entre o texto eo sentido do texto no pode continuar a ser entendida como umateoria ornamental do direito, que sirva to somente para colocarcapas de sentido aos textos jurdicos.

    No interior da virtuosidade do crculo hermenutico, o com-preender no ocorre por deduo. Conseqentemente, o mtodo(o procedimento discursivo) sempre chega tarde, porque pressupesaberes tericos separados da realidade. Antes de argumentar, ointrprete j compreendeu.A compreenso antecede, pois, qualquer

    argumentao. Ela condio de possibilidade.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    18/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS50

    Portanto, equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz,primeiro decide, para s depois fundamentar; na verdade, ele s de-cide porque j encontrou, na antecipao de sentido, o fundamento(a justificao). E somente possvel compreender isto a partir daadmisso da tese de que a linguagem no um mero instrumentoou terceira coisa que se interpe entre um sujeito (cognoscente)e um objeto (cognoscvel). O abismo gnosiolgico que separa ohomem das coisas e da compreenso acerca de como elas so, no

    depende no plano da hermenutica jus-filosfica de pontes quevenham ser construdas paradoxalmente depois que a travessia(antecipao de sentido) j tenha sido feita.

    Da a importncia da pr-compreenso, que passa condiode condio de possibilidade nesse novo modo de olhar a her-menutica jurdica. Nossos pr-juzos que conformam a nossapr-compreenso no so jamais arbitrrios. Pr-juzos no soinventados; eles nos orientam no emaranhado da tradio, que pode

    ser autntica ou inautntica. Mas isto no depende da discriciona-riedade (ou, se se quiser, um ato de vontade) do intrprete e tam-pouco de um controle metodolgico. O intrprete no dominaa tradio. Os sentidos que atribuir ao texto no dependem de suavontade, por mais que assim queiram os adeptos do (metafsico)esquema representacional sujeito-objeto. O processo unitrio dacompreenso, pelo qual interpretar aplicar (applicatio), desmiti-fica a tese de que primeiro conheo, depois interpreto e s depois

    eu aplico, problemtica nitidamente perceptvel na ponderaoem etapas defendida por vrios juristas em terrae brasilis. De todomodo, interessante notar os adeptos da teoria da argumentaoque sustentao a ponderao em etapas no abrem mo do cr-culo hermenutico, ao referirem que as (trs) etapas propostas noseriam estanques ou incomunicveis. O crculo hermenutico e isso tambm visvel em Klaus Gnther transformado emlibi terico para superar as inexorveis armadilhas da metafsica.Com efeito, no difcil perceber a maneira pela qual as teorias que

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    19/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 51

    colocam na ponderao (nos seus diversos modelos) o modus deresolver as incertezas lingsticas (enfim, os casos difceis), tm, aolongo do tempo, sustentado que o resultado do processo interpretativoaparece em uma circularidade hermenutica, utilizando-se desseteorema hermenutico (a expresso de Ernildo Stein) para superaro dualismo interpretar-aplicar ou entre questo ftica-questonormativa . Penso que isso necessita ser melhor esclarecido, ouseja, preciso compreender que o crculo hermenutico carac-

    teriza uma determinada concepo hermenutica, que tem origemem Heidegger (alis, esse autor acaba sendo no mais das vezes- esquecido ao se fazer referncia ao hermeneutische Zirkel, comose o crculo fosse uma criao de Gadamer). Assumir o crculohermenutico implica um caminho que vai da filosofia hermenu-tica hermenutica filosfica, portanto, para alm de qualquerpostura epistemo-analtica. Isto porque Heidegger, corifeo da tesehemenutico-filosfica de Gadamer, deve ter sua teoria analisada

    no contexto de uma ruptura paradigmtica e no apenas como umadorno para justificar posturas que, com ele, so completamenteincompatveis. Observe-se: Heidegger constri uma teoria fundadana ontologia fundamental que no se compatibiliza com teses/posturas epistemo-dualsticas (alis, no mais das vezes, quando feita referncia a Heidegger, olvidada a devida - referncia ontologia fundamental). Na medida em que se constri sobre ainterpretao e a hermenutica, a diferena ontolgica s pos-svel dentro do contexto do crculo hermenutico (hermeneutischeZirkel), no qual eu me compreendo em meu ser e cuido de mim eme preocupo, e nesse preocupar-me eu tenho o conceito de ser,e, assim, compreendo a mim mesmo. Portanto, diferentemente doque se tem visto no campo das diversas tentativas de recepcionaras teses de Heidegger e Gadamer no direito, a diferena ontolgicae o crculo hermenutico articulam-se em um mesmo movimento, quese tornaro a chave do pensamento filosfico de Heidegger e detodos os que o seguiram, mormente para compreender a viragem

    hermenutica produzida por Gadamer no campo da hermenutica

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    20/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS52

    jurdica. Portanto, inapropriado colocar uma nfase no crculohermenutico sem vincul-lo diferena ontolgica. Ora, issosignifica tambm que compreender em Heidegger e em Gadamer um existencial. Logo, no um mtodo. No pode ser um mtodoe no pode ser dividido em partes. Compreender no um modode conhecer, mas um modo de ser.

    4. Da possibilidade necessidade de encontrar respostas

    corretas: uma resposta crise hermenutica do direito.Nesta quadra do tempo em que o direito assume um carter

    cada vez mais hermenutico, em face do vis transformadorque lhe destinado pelo constitucionalismo exsurgido a partirdo segundo ps-guerra e em face do deslocamento da esfera detenso dos poderes legislativo e do executivo em direo da ju-risdio constitucional, o dilema da teoria jurdica nestes temposde resgate de direitos passa a estar centrada na seguinte questo

    metodolgica: como se interpreta, como se aplica e de como possvel superar o decisionismo positivista que permite mltiplas evariadas respostas, conforme tenho deixado explicitado, mormenteem meu Verdade e Consenso. Para tanto, necessrio dar um saltoem direo s perspectivas hermenuticas que tm na linguagemno (apenas) um instrumento ou uma terceira coisa que se colocaentre um sujeito e um objeto, mas, sim, a sua prpria condio depossibilidade.

    , pois, a incindibilidade entre interpretar e aplicar que irrepresentar a ruptura com o(s) paradigma(s) sustentados na relaosujeito-objeto. E o crculo hermenutico que vai se constituir emcondio de ruptura do esquema (metafsico) sujeito-objeto,neleintroduzindo o mundo prtico (faticidade), que serve para cimentaressa travessia, at ento ficcionada na e pela epistemologia. Noh como isolar a pr-compreenso.

    Negar a possibilidade de que possa existir (sempre) para

    cada caso uma resposta conformada Constituio portanto,

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    21/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 53

    uma resposta correta sob o ponto de vista hermenutico (porque impossvel cindir o ato interpretativo do ato aplicativo) , podesignificar a admisso de discricionariedades interpretativas, o quese mostra antittico ao carter no-relativista da hermenuticafilosfica e ao prprio paradigma do novo constitucionalismoprincipiolgico introduzido pelo Estado Democrtico de Direito,incompatvel com a existncia de mltiplas respostas.

    possvel dizer, sim, que uma interpretao correta e a outra incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porque podemosfazer afirmaes dessa ordem. E disso nem nos damos conta. Ouseja, na compreenso os conceitos interpretativos no resultamtemticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrrio,determinam-se pelo fato de que desaparecem atrs daquilo queeles fizeram falar/aparecer na e pela interpretao. Aquilo que asteorias da argumentao ou qualquer outra concepo teortico-filosfica (ainda) chamam de raciocnio subsuntivo ou raciocnio

    dedutivo, nada mais do que esse paradoxo hermenutico, quese d exatamente porque a compreenso um existencial (ou seja,por ele eu no me pergunto porque compreendi, pela simples razode que j compreendi, o que faz com que minha pergunta semprechegue tarde).

    Uma interpretao correta quando desaparece, ou seja,quando fica objetivada atravs do que venho denominando deexistenciais positivos, em que no mais nos perguntamos sobre

    como compreendemos algo ou por que interpretamos dessa maneirae no de outra: simplesmente, o sentido se deu (manifestou-se),do mesmo modo como nos movemos no mundo atravs de nossosacertos cotidianos, conformados pelo nosso modo-prtico-de-ser-no-mundo. Fica sem sentido, destarte, separar/cindir a interpreta-o em easy cases e hard cases. Na medida em que o nosso desafio levar os fenmenos representao (pela linguagem), casos simples(easy cases) e casos complexos (hard cases) esto diferenciados pelo

    nvel de possibilidade de objetivao, tarefa mxima de qualquer ser

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    22/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS54

    humano. Da que, paradoxalmente, o caso difcil, quando com-preendido corretamente, torna-se um caso fcil. aqui que, porser correta (sequer nos perguntaremos sobre ela), a interpretaodesaparece. Ou seja, reiterado a partir da existencialidade com-preensiva, o caso (que no simples e nem complexo, mas, sim,um caso) passar ao nvel da objetivao e sobre o qual no haverperquirio acerca dos motivos da compreenso. Por tais razes,torna-se invivel como querem, v.g., os tericos da teoria da argu-

    mentao sustentar raciocnios dedutivos (causais-explicativos)para os casos fceis.

    A distino entre casos fceis e casos difceis conseqn-cia da ciso entre regra e princpio. Por isso, torna-se necessriodesmi(s)tificar esse sentido comum que se formou em torno dessadistino estrutural (entre regra e princpio) e que repetida deforma to acrtica que j se tornou banal. Com efeito, pensar queo embate entre regras e princpios se resolve (sic) na base do

    tudo ou nada (no no sentido de que fala Dworkin, mas no sen-tido da apropriao equivocada desse conceito feito por Alexy) entender que o carter ntico da regra (texto normativo) seguraa interpretao, confinando-a nos marcos causais-explicativosdesse como apofntico. O esgotamento do sentido nos limitesnticos da regra (ou, se se quiser, dos conceitos lexicogrficos quedominam cada vez mais a doutrina e a jurisprudncia brasileiras,com especial espao, nesse campo, para as smulas) somente

    possvel se se pensar que o sentido de um texto que, repita-se,s existe na sua faticidade, porque sempre um evento (, pois,fato) pode se dar sem transcendncia (no sentido hermenuticoda palavra).

    desse modo que os princpios constitucionais, que (re)introduzem o mundo prtico no direito (no esqueamos, aqui,a co-originariedade entre direito e moral, to bem apanhada porHabermas), preenchem esse vazio hermenutico de sentido,

    provocado pela plenipotenciaridade ntica da regra. Essa regra

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    23/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 55

    necessita ser transcendida pela antecipao de sentido nsita a todoprocesso de aplicao (no esqueamos que interpretar j aplicar!)A pr-compreenso antecipadora est eivada desse mundo prtico,fazendo com que qualquer pretenso de atribuio de sentido tendopor base a plenitude ntica da regra (por isso, alguns juristas sus-tentam, equivocadamente, que a regra pode valer mais do que umprincpio), em si e por si, apenas confirma que impossvel que umtexto carregue um sentido previamente (de)limitado, como se uma

    regra jurdica pudesse conter previamente todas as hipteses (fu-turas) de aplicao. preciso entender que as diferentes hiptesesde aplicao se do na applicatio, tornada possvel quando se tran-scende o como apofntico. Mas a applicatio redundar em apenasuma resposta e no em vrias. Conseqentemente, em nenhumahiptese uma regra (cor)responder s demandas de sentido,que inexoravelmente estaro carregadas de faticidade decorrentedo mundo prtico em que (desde sempre) habita o intrprete. Se

    uma regra (no sentido pensado pelas teorias de cariz analtico-procedural, como o caso da teoria da argumentao jurdica)estabelece que proibido o trfego de veculos no parque, pareceevidente que o seu carter apofntico no esgota as possibilidadesde sentido. E mesmo que se diga que se est diante de um casofcil quando se tratar da proibio de um automvel e que assim seaplica a regra por subsuno (sic), isso somente possvel porqueo sentido ontolgico permitiu uma resposta que no demandouqualquer estranhamento do intrprete. No esqueamos que umainterpretao ser correta quando desaparece. quando no nos

    perguntamos acerca da compreenso que acabamos de fazer. Ou seja,neste momento, estaremos em face dessa desapario hermenutica(da qual, alis, nem nos damos conta).

    Em outras palavras, no a subsuno que permitiu (esgotou)a resposta ao problema, mas, sim, foram as possibilidades advindasda pr-compreenso antecipadora que proporcionaram esse tipo

    de resposta. Ou seja, o caso concreto no fcil em si, mas, sim,

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    24/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS56

    manifestou se como (esse como o als hermenutico) peladimenso da pr-compreenso. Isto , no a facilidade ou adificuldade do caso que decorre da transcendncia, mas a di-menso da pr-compreenso antecipadora que permite alcanar aresposta correta, porque o sentido da regra em questo tem comocondio de possibilidade o conjunto principiolgico que conformaa Constituio. Por tudo isso que a ciso regra-princpio pressupe,para as teorias analtico-procedurais, a subsuno para casos fceis;

    por isso um caso fcil decorre de uma regra no transcendida. Ora,um caso ser difcil quando se tem a dimenso das possibilidadesde transcendncia, problemtica que se define a partir do horizontede compreenso do intrprete. Subsuno significa a admisso daexistncia de suficincias nticas do texto jurdico (seja ele regraou princpio). neste ponto que o giro linguistico-ontolgico secoloca como fiador de um novo olhar sobre o direito, superando-se o positivismo a partir da (re)introduo do modo prtico de ser

    no mundo no direito.Veja-se que a resposta correta est umbilicalmente ligada

    noo de applicatio. A contrario sensu, a possibilidade (positivista)de mltiplas respostas est relacionada com o conceitualismo daregra, que tem a pretenso de abarcar (todas) as possveis situa-es de aplicao de forma antecipada, independente do mundoprtico. Trata-se da construo de um repertrio prvio de conceitofundamentadores das hipteses de aplicao da norma (embora

    isso venha a ser negado, mormente pelas teorias da argumentaojurdica). Entretanto, nesse territrio ntico que se instrumen-taliza a possibilidade das vrias acepes semntico-enunciativas,que so produzidas a partir da ciso fato-norma, interpretao-aplicao, para falar apenas nesses dualismos. Forja-se, assim,um modo solipsista de negar a antecipao de sentido, e, assim,manter o controle (discricionrio) dos diversos sentidos (emabstrato) da lei. Nesse mundo, o que conta o enunciado, isto

    , todas as outras formas de linguagem e todos os outros modos de

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    25/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 57

    dizer do objeto de anlise se resumem ao enunciado.

    Para melhor explicar esse fenmeno, possvel dizer fun-dado em Gadamer , que a possibilidade de mltiplas respostas estcalcada no logos apofntico, cuja funo significar o discurso, isto, a proposio cujo nico sentido a de realizar o apofainesthai, omostrar-se do que foi dito. uma proposio terica no sentido de queela abstrai de tudo que no diz expressamente. O que constitui o objetoda anlise e o fundamento da concluso lgica apenas o que elaprpria revela pelo seu dizer. Ora, na medida em que sempre h umdficit de previses, as posturas positivistas delegam ao juiz umaexcessiva discricionariedade (excesso de liberdade na atribuiodos sentidos), alm de dar azo tese de que o direito (apenas)um conjunto de normas (regras). Em conseqncia, transforma-sea interpretao jurdica em filologia, forma refinada de negaoda diferena ontolgica. E tambm no se pode, a pretexto desuperar o problema da arbitrariedade (subjetivista-axiologista) do

    juiz, desoner-lo da tarefa de elaborao de discursos de fun-damentao, que, na teoria do discurso de Habermas e Gnther,do-seprima facie.

    De tudo o que foi dito, tem-se que a resposta correta luzda hermenutica (filosfica) ser a resposta hermeneuticamentecorreta para aquele caso, que exsurge na sntese hermenutica daapplicatio. Desde logo, uma advertncia se impe: a resposta corretaque venho propondo principalmente em Verdade e Consenso, a

    partir de uma simbiose entre a teoria interpretativista de Dworkin ea fenomenologia hermenutica (que abarca a hermenutica filos-fica) deve ser entendida como uma metfora. Afinal, metforasservem para explicar coisas. Hobbes criou a metfora do contratosocial para explicar a necessidade de superar a barbrie representadapela fragmentao do medievo. Mas, mais do que isso, f-lo parademonstrar que o Estado produto da razo humana. Para tanto,Hobbes contraps a soberania do um para superar a soberania

    fragmentada/dilacerada de todos. Contra a barbrie representada

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    26/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS58

    pelo Estado de Natureza, contraps a civilizao. E isso somenteseria possvel atravs de um contrato. No um contrato strictosensu, mas um contrato metafrico. De algum modo, penso que necessrio enfrentarmos o estado de natureza hermenutico noqual est inserido o sistema jurdico. A liberdade na interpretaoproporcionada pelo imprio da conscincia de si do pensamentopensante (filosofia da conscincia) gera a guerra de todos contratodos. Cada intrprete parte de um grau zero de sentido. Cada

    intrprete reina nos seus domnios de sentido. Os sentidos lhepertencem. E nessa guerra entre os intrpretes reside a mortedo prprio sistema jurdico. Por tais razes que a tese da respostacorreta em um sistema no avanado no uma possibilidade, e,sim, uma necessidade. Isso implica a superao do esquema sujeito-objeto, a partir dos dois teoremas fundamentais da hermenutica: ocirculo hermenutico e a diferena ontolgica, superando qualquerpossibilidade da existncia de grau zero de sentido (ideologia

    do caso concreto), resgatando a tradio autntica (sentido daConstituio compreendido como o resgate das promessas damodernidade) e reconstruindo, a partir dessas premissas, em cadacaso, a integridade a coerncia interpretativa do direito. A respostacorreta uma metfora, como o juiz Hrcules de Dworkin tambmo . Para tanto, a ruptura com o estado de natureza no se daratravs de uma delegao em favor de uma instncia ltima, isto, um abrir mo do poder de atribuir sentidos em favor de umaespcie de Leviat hermenutico, como parece ser o caso da insti-tucionalizao das smulas vinculantes ou de outros mecanismosvinculatrios (v.g., Leis 8.038, 9.756 e 11.276, para falar apenasdestas). Dito de outro modo, se a resposta para a fragmentao doestado de natureza medieval foi a delegao de todos os direitos emfavor do Leviat representado pela soberania absoluta do Estado (oEstado Moderno absolutista superou, desse modo, a forma estatalmedieval), na hermenutica jurdica de cariz positivista a respostapara o imprio dos subjetivismos, axiologismos, realismos ou o nome

    que se d a tais posturas que colocam no intrprete (juiz, tribu-

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    27/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 59

    nal)) o poder discricionrio de atribuir sentidos no pode ser, sobhiptese alguma, a instaurao de uma supra-hermeneuticidade oua delegao dessa funo para uma super-norma que possa prevertodas as hipteses de aplicao, que,mutatis mutandis, a pretensoltima das smulas vinculantes. Assim, contra o caos representadopelos decisionismos e arbitrariedades, o establishment prope umneo-absolutismo hermenutico. Forma-se, desse modo, um cr-culo vicioso: primeiro admite-se discricionarismos e arbitrariedades

    em nome da ideologia do caso concreto, circunstncia que, pelamultiplicidade de respostas, acarreta um sistema desgovernado;em seguida, para controlar esse caos, busca-se construir conceitosabstratos com pretenses de universaliao, como se fosse possveluma norma jurdica abarcar todas as hipteses (futuras) de aplica-o. Isso permite afirmar que, na verdade, o combate ao estado denatureza hermenutico originrio da discricionariedade/arbitrarie-dade positivista no um combate ao positivismo. Ao contrrio,

    destitudo de uma adequada compreenso hermenutica, a partirdos dois teoremas fundamentais, qualquer forma de vinculaosumular, por mais paradoxal que possa parecer, reforar o posi-tivismo, com a continuidade do caos decisionista. Ou seja, comosmulas so textos e como o positivismo interpreta textos semcoisas, qualquer tentativa de vinculao jurisprudencial/conceitualreceber uma adaptao darwiniana do senso comum terico dosjuristas. E tudo comea de novo...!

    Essa resposta propiciada pela hermenutica que ser aresposta hermeneuticamente adequada Constituio dever,a toda evidncia, estar justificada (a fundamentao exigida pelaConstituio implica a obrigao de justificar) no plano de umaargumentao racional, o que demonstra que, se a hermenuticano pode ser confundida com teoria da argumentao,no prescinde,entretanto, de uma argumentao adequada (vetor de racionalidadede segundo nvel, que funciona no plano lgico-apofntico) Afinal, se

    interpretar explicitar o compreendido (Gadamer), a tarefa de

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    28/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS60

    explicitar o que foi compreendido reservado s teorias discursivase, em especial, teoria da argumentao jurdica. Mas esta nopode substituir ou se sobrepor quela, pela simples razo de que metdico-epistemolgica.

    Nesse sentido, a tese da resposta constitucionalmente ad-equada (ou a resposta correta para o caso concreto) pressupe umafortssima sustentao argumentativa e no um duelo retrico-per-

    suasivo. A diferena entre hermenutica e a teoria argumentativa que aquela trabalha com uma justificao do mundo prtico, aocontrrio desta, que se contenta com uma legitimidade meramenteprocedimental. Isto , na teoria do discurso, a pragmtica con-vertida no procedimento.

    Quando explicito o (j) compreendido, esse processo se dno nvel lgico-argumentativo, e no filosfico. E, insista-se: filo-sofia no lgica. Esse proceder epistemolgico antecipado;

    no se confunde com o prprio conhecimento. Pela hermenutica,fazemos uma fenomenologia do conhecimento. No uma coisaconcreta. , sim, a descrio da autocompreenso que opera nacompreenso concreta. Na explicitao que haver o espao deuma teoria do conhecimento.

    A explicitao da resposta de cada caso dever estar sus-tentada em consistente justificao, contendo a reconstruo dodireito, doutrinaria e jurisprudencialmente, confrontando tradies,

    enfim, colocando lume a fundamentao jurdica que, ao fime ao cabo, legitimar a deciso no plano do que se entende porresponsabilidade poltica do intrprete no paradigma do EstadoDemocrtico de Direito.

    Mutatis mutandis, trata-se de justificar a deciso (deciso nosentido de que todo ato aplicativo e sempre aplicamos umade-ciso). Para esse desiderato, compreendendo o problema a partirda antecipao de sentido (Vorhabe, Vorgriff, Vorsicht), no interior

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    29/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 61

    da virtuosidade do circulo hermenutico, que vai do todo para aparte e da parte para o todo, sem que um e outro sejam mundosestanques/separados, fundem-se os horizontes do intrprete dotexto (insista-se, texto evento, texto fato, texto no um meroenunciado lingstico). Toda a interpretao comea com um texto,at porque, e aqui reitero os dizeres de Gadamer, se queres dizeralgo sobre um texto, deixa primeiro que o texto te diga algo. Osentido exsurgir de acordo com as possibilidades (horizonte de

    sentido) do intrprete em diz-lo, donde pr-juzos falsos acar-retaro graves prejuzos hermenuticos.

    Atravs do circulo hermenutico, faz-se a distino entrepr-juizos verdadeiros e falsos, a partir de um retorno contnuo aoprojeto prvio de compreenso, que tem na pr-compreenso a suacondio de possibilidade. O intrprete deve colocar em discussoos seus pr-juizos, isto , os juzos prvios que ele tinha sobre acoisa antes de com ela se confrontar. Os pr-juizos no percebidos

    enquanto tais nos tornam surdos para a coisa de que nos fala atradio. No perceber os pr-juizos como pr-juizos alienam ointrprete, fazendo-o refm da tradio ilegtima. A compreensotem nsita a permanente tenso entre coisa e intrprete. Por con-seguinte, compreender no um ato reprodutivo (Auslegung), e,sim, um ato produtivo, de dar sentido coisa (Sinngebung). Inter-pretar ser, assim, explicitar uma possibilidade verdadeira do textocompreendido. Interpretar iluminar as condies sobre as quais se

    compreende, para usar as precisas palavras de Gadamer.Na verdade, essa explicitao o espao epistemolgico

    da hermenutica. Explicita-se as condies pelas quais se com-preendeu. Mais do que fundamentar uma deciso, necessriojustificar (explicitar) o que foi fundamentado. Fundamentar afundamentao: essa a questo fundamental, at porque umdireito fundamental.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    30/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS62

    5. Aportes finais acerca da complexidade da questohermenutica

    Uma reflexo crtica sobre a aplicao do direito no pode,pois, prescindir dos pressupostos hermenuticos que apontam para asuperao do esquema sujeito-objeto, assim como dos diversos du-alismos prprios dos paradigmas metafsicos objetificantes (clssicoe da filosofia da conscincia). preciso insistir nisso. Conscincia e

    mundo, linguagem e objeto, sentido e percepo, teoria e prtica,texto e norma, vigncia e validade, regra e princpio, casos simplese casos difceis, discursos de justificao e discursos de aplicao:esses dualismos se instalaram no nosso imaginrio sustentados peloesquema sujeito-objeto.

    No se quer dizer, entretanto, que as diversas teorias do direitono estejam preocupadas em buscar respostas ao problema da criseparadigmtica que atravessa o direito. Mas, nessa busca de solues

    para os problemas da metodologia do direito, o que no se pode fazer mixar teorias, principalmente entre posturas procedimentais-argumentativas e perspectivas conteudsticas-ontolgicas, paracitar apenas estas. Permito-me, nesse sentido, lanar dez pontos quedeixam ntida essa impossibilidade de mixagens metodolgicas:

    Primeiro, no se pode confundir hermenutica com teoriada argumentao jurdica, isto , hermenutica (filosfica) no similar a nenhuma teoria da argumentao (portanto, no

    possvel com ela fundir por mais sofisticadas e importantes quesejam as teses de Alexy, Atienza, Gnther, para falar apenasdestes);

    segundo, quando se diz que a Constituio e as leis soconstitudas de plurivocidades sgnicas (textos abertos, pa-lavras vagas e ambguas, etc), tal afirmativa no pode dar azoa que se diga que sempre h vrias interpretaes e, portanto,que o direito permite mltiplas respostas, circunstncia que,

    paradoxalmente, apenas denuncia e aqui chamo colao as

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    31/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 63

    crticas de Dworkin Hart as posturas positivistas que estopor trs de tais afirmativas;

    terceiro, quando, por exemplo, com o seu Wahrheit und Meth-ode, Gadamer confronta o mtodo, no significa, sob qualquerhiptese, que a hermenutica seja relativista e permita interpre-taes discricionrias/arbitrrias;

    quarto, quando se fala na invaso da filosofia pela linguagem,mais do que a morte do esquema sujeito-objeto, isso quer dizerque no h mais um sujeito que assujeita o objeto (subjetivismos/axiologismos que ainda vicejam no campo jurdico) e tampoucoobjetivismos; em outras palavras, o giro lingstico-ontolgicodecretou a morte do sujeito solipsista;

    quinto, quando se popularizou a mxima de que interpretar aplicar e que interpretar confrontar o texto com a realidade,no significa poder afirmar que texto e realidade sejam coisasque subsistam por si s ou que sejam apreensveis isoladamente

    (ou por etapas ou fases), sendo equivocado pensar, portanto, queinterpretar algo similar a fazer acoplamentos entre um textojurdico e os fatos ou, como numa metfora que circula nassalas de aula, entre um parafuso e uma porca (sic), em que oparafuso seria o texto e, a porca, a realidade, sendo a aplicao,ipso facto, o resultado dessa juno;

    sexto, de igual maneira, quando se popularizou a assertiva deque texto no igual a norma e que a norma o produto da

    interpretao do texto questo para a qual at mesmo algunssetores da dogmtica jurdica tradicional j se atentaram - , nemde longe isso pode significar que o texto no vale nada ou quenorma e texto sejam coisas disposio do intrprete, ou,ainda, que depende do intrprete a fixao da norma;

    stimo, se texto e norma no so a mesma coisa, tal circun-stncia no implica sob pena do absurdo a afirmao de queestejam separados (cindidos) ou que o texto contenha a prpria

    norma, mas, sim, que apenas h uma diferena (ontolgica) entre

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    32/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS64

    os mesmos; preciso compreender que a norma o texto em formade enunciados, em que o contedo veritativo no nada mais doque a dimenso predicativa, isto , aquilo que se diz sobre ele;

    oitavo, um equvoco pregar que o texto jurdico apenasa ponta do iceberg, e que a tarefa do intrprete a de revelar oque est submerso, porque pensar assim dar azo discricio-nariedade e ao decisionismo, caractersticas do positivismo;

    nono, a fundamentao de decises (pareceres, acrdos, etc)a partir de ementas jurisprudenciais (ou smulas) sem contextoe verbetes protolexicogrficos apenas reafirma o carter posi-tivista da interpretao jurdica, pois escondem a singularidadedos casos concretos;

    dcimo, preciso ter em mente que a reproduo de emen-tas e verbetes sem contexto apenas reatroalimenta e refora acultura manualesca e estandardizada do direito, enfraquecendoa reflexo crtica.

    Em outras palavras, no possvel servir a vrios senhores dacincia ao mesmo tempo. Trata-se de uma opo paradigmtica,o que acarreta uma impossibilidade de misturar, por exemplo,posturas ainda assentadas no esquema sujeito-objeto (em menorou maior grau) e posturas antiepistemolgicas. Definitivamente,hermenutica no teoria da argumentao, do mesmo modo queverdade no consenso. No possvel lanar mo to-somentedas partes nobres de cada teoria (ou paradigma), descartando asinsuficincias.

    Mas, ateno: a hermenutica no afasta a epistemologia.Entretanto, o que no possvel fazer confundir os nveis nos quaisnos movemos.A separao entre o epistemolgico e o nvel concreto

    no o mesmo que dividir o transcendental e o emprico. Em muitosmomentos, a hermenutica introduz o elemento epistemolgico,se assim se quiser dizer. A posio hermenutica no pretende

    eliminar procedimentos. Ela j sempre compreende essa circun-

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    33/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 65

    stncia, porque capaz de analisar filosoficamente os elementosda pr-compreenso.

    Ou seja, quando explicito o (j) compreendido, esse processose d no nvel lgico-argumentativo, e no filosfico. E, insista-se:filosofia no lgica. Esse proceder epistemolgico antecipado;

    no se confunde com o prprio conhecimento. Pela hermenutica,fazemos uma fenomenologia do conhecimento. No uma coisa

    concreta. , sim, a descrio da autocompreenso que opera nacompreenso concreta. Na explicitao que haver o espao deuma teoria do conhecimento.

    Na era das Constituies compromissrias e sociais (e di-rigentes), enfim, em pleno ps-positivismo, uma hermenuticajurdica capaz de intermediar a tenso inexorvel entre o texto eo sentido do texto no pode continuar a ser entendida como umateoria ornamental do direito, que sirva to-somente para colocar

    capas de sentido aos textos jurdicos. No interior da virtuosidadedo crculo hermenutico, o compreender no ocorre por deduo.Conseqentemente, o mtodo (o procedimento discursivo) semprechega tarde, porque pressupe saberes tericos separados da reali-dade. Antes de argumentar, o intrprete j compreendeu.

    Entretanto, nada do que foi dito implica afirmar que asanlises feitas por diversos jusfilsofos (Alexy, Aaulis Arnio, Mac-Cormick, para falar apenas destes) estejam desvinculadas das

    pretenses hermenuticas de realizao dos direitos fundamentais-sociais na Sociedade Contempornea. Ao contrrio: a realizao daspromessas incumpridas da modernidade as diversas teorias crticas(teoria do discurso habermasiana, as diversas teorias da argumenta-o, a hermenutica filosfica, a metdica estruturante, etc), todasperfeitamente inseridas no paradigma do Estado Democrtico deDireito, tm, inequivocamente, um objetivo comum: a superaodo positivismo jurdico e do dogmatismo que se enraizou na doutrina

    e na jurisprudncia, responsveis em grande medida pela inefetividade

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    34/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS66

    da Constituio (circunstncia que assume foros de dramaticidadeem pases de modernidade tardia como o Brasil). Cada uma dascorrentes filosficas ou teorias, a seu modo, apontam as possveissadas para a superao da crise do direito brasileiro, cada vez maisrefm do positivismo. Nessa intensa procura, h algo que inaces-svel e isto parece incontornvel. Ou algo que incontornvel eque, por isto, inacessvel. Conteudstica ou procedimentalmente, essa incerteza que parece mover os juristas rumo a essa longa

    travessia.Mas no se pode desconsiderar embora todos os avanos

    j mencionados que o problema filosfico-paradigmtico quesustenta o protagonismo judicial continua presente nos diversos ra-mos do direito, mormente na problemtica relacionada jurisdioe o papel destinado ao juiz no decorrer dos ltimos dois sculos.Desde Oskar von Bllow questo que tambm pode ser vista em

    Anton Menger e Franz Klein, a relao publicstica est lastreada

    na figura do juiz, porta-voz avanado do sentimento jurdico dopovo, com poderes para criar direito mesmo contra legem, tese queviabiliza, mais tarde, a Escola do Direito Livre. Essa aposta solip-sista est lastreada no paradigma representacional, atravessandodois sculos, podendo facilmente ser percebida em Chiovenda,para quem a vontade concreta da lei aquilo que o juiz afirmaser a vontade concreta da lei; em Carnellutti, onde a jurisdio prover, fazer o que seja necessrio; tambm em Couture, que,

    a partir de sua viso intuitiva e subjetivista, chega a dizer que oproblema da escolha do juiz , em definitivo, o problema da justia;em Liebman, para quem o juiz, no exerccio da jurisdio, livre devnculos enquanto intrprete qualificado da lei; j no Brasil, aforaa doutrina que atravessou o sculo XX (v.g., de Carlos Maximiliano Paulo Dourado de Gusmo), tais questes esto presentes nasteses relacionadas ao enfoque instrumentalista do processo, cujosdefensores admitem a existncia de escopos meta-jurdicos, pelos

    quais permitido ao juiz realizar determinaes jurdicas, mesmo

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    35/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 67

    que no contidas no direito legislado, com o que o aperfeioa-mento do sistema jurdico depender da boa escolha dos juzes e,consequentemente, de seu (sadio) protagonismo. Sob uma outraperspectiva, esse fenmeno se repete no direito civil, pela defesa,por parte de setores da doutrina, do poder interpretativo dosjuzes nas clusulas gerais, que devem ser preenchidas com amplosubjetivismo e ideologicamente; no processo penal, no passadespercebida a continuidade da fora do princpio da verdade

    real e do livre convencimento; tambm no direito constitucionalest presente essa perspectiva, pela utilizao descriteriosa dosprincpios, como se estes fossem libis persuasivos, mormente emface da ciso entre o emprego da subsuno para a aplicao dasregras (casos simples) e da ponderao nas hipteses de conflitoou coliso de princpios (casos difceis). Tal reincidncia paradig-mtica acarreta o perigo de que, em pleno Estado Democrtico deDireito, venhamos a deixar de lado a produo democrtica do

    direito e apostar em discursos adjudicadores, corretivos do direito,fragilizando aquilo que a grande conquista do direito nos ltimostempos: a sua autonomia.

    Em sntese, de tudo o que foi dito e, fundamentalmentepara evitar mal-entendidos a hermenutica aqui sustentada noexclui a subjetividade inerente qualquer atividade compreensiva.Repita-se: a superao do esquema sujeito-objeto significou, sim, aderrocada da filosofia da conscincia, mas no do sujeito da relao

    (afinal, ela agora se torna sujeito-sujeito). Ao contrrio do queocorre com outras teorias lingsticas, na hermenutica o sujeitodo esquema sujeito-objeto no foi substitudo por uma estrutura,uma rede de comunicao ou um sistema. Mas admitir que cadasujeito possua preferncias pessoais, intuies, valores, etc o que inerente ao modo prprio de ser-no-mundo de cada pessoa - noquer dizer que no possa haver condies de verificao sobre acorreo ou veracidade acerca de cada deciso que tomar, isto ,

    nada disso quer significar que dependemos apenas dos aspectos

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    36/38

    REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLTICOS68

    lingsticos ou limites semnticos dos textos jurdicos para essedesiderato. Com feito, h sempre um significado do texto (e texto sempre um evento) que no advm to-somente do prpriotexto, mas, sim, de uma anlise de decises anteriores, da aplica-o coerente de tais decises e da compatibilidade do texto com aConstituio. O grau de exigncia de fundamentao/justificaoda interpretao alcanada aumentar na medida em que essasignificao atribuda ao texto se afasta dos aspectos lingsticos.

    Trata-se de convencimento e de estabelecer amplas possibilidadesde controle da deciso (observe-se que no h mecanismos decontrole das decises ltimas do Supremo Tribunal Federal, razopela qual aumenta a responsabilidade da doutrina e da comunidadejurdica em termos de controle poltico-democrtico, exatamentepela ausncia de possibilidades institucionais)

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    37/38

    HERMENUTICA E POSSIBILIDADES CRTICAS DO DIREITO ... 69

    BIBLIOGRAFIA

    DWORKIN, Ronald. Laws Empire. Londres, Fontana Press, 1986.

    GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, Ergnzungen Register.Tbingen, J.C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1993 (Verdade e Mtodo I. 6.Ed. Petrpolis, Vozes, 2004)

    _________. Wahrheit und Methode. Grundzge einer philosophischenHermeneutik. Tbingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1990 (Verdade eMtodo II. Petrpilis, Vozes, 2002).

    GRONDIN, Jean. Einfhrung zu Gadamer. Tbingen, J,C.B. Mohr (PaulSiebeck), 2000.

    GNTHER, Klaus. Teoria da Argumentao no Direito e na Moral:justificao e aplicao. So Paulo, Landy, 2004.

    HABERMAS, Jrgen. Faktizitt und Geltung. Beitrge zur Diskurstheoriedes Rechts und des demokratischen Rechsstaats. Frankfurt am Main, Suhr-

    kamp, 1992.

    HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Siebzehnte Auflage. Tbingen,Max Niemayer, Verlag Tbingen, 1993 (Ser e Tempo. Vol. I e II. 5a. ed.Petrpolis, Vozes, 1995).

    STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro, Lumen Juris,2007.

    ________. Hermenutica Jurdica E(m) Crise. 7 ed. Porto Alegre, Livraria

    do Advogado, 2007.

  • 7/28/2019 Streck. Hermenutica Filosfica e Retrica (pontos de contato).

    38/38