Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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 A verdade das mentiras e as mentiras da verdade (real) Por Lenio Luiz Streck O filósofo Gerd Bornheim dizia, há muitos anos, tratando do pensamento filosófi co em bases existenciais, que "nenhum questionamento pode ser digno de ser chamado filosófico se não se faz acompanhar de uma reflexão sobre as próprias condições de responder adequadamente ao que está sendo questionado. Mas isto supõe uma indagação prévia acerca da essência mesma do ato de interrogar ou questionar. 'Ninguém pode indagar o que sabe nem o que não sabe, porque não pesquisaria o que não sabe, pois já o sabe, nem investigaria o que não sabe, porque não saberia sequer o que deve ser investigado' (Platão, Menón, XV, 81-82), dizia Platão. Portanto, continua Bornheim, toda pergunta implica necessariamente a possibilidade da resposta (ao contrario ela não teria sentido) e a possibilidade de acesso à coisa mesma a fim de interrogá-la em seu aparecer originário. Acesso constituído pelo ser do ente compreendido como fenômeno. Assim, a acessibilidade do ente em questão abre previamente o âmbito onde ele é encontrável a fim de ser, precisamente, interrogado. A filosofia é, pois, nutrida pelo desejo de saber acerca do que torna possível a abertura desse âmbito sempre já aberto, antes de toda busca e procura, que dirige e pré-orienta o olhar que investiga e conhece. Boa lição para o que se escreve sobre a verdade no Direito... Então, sigo. Vimos a parte I de “O Cego de Paris” , depois a parte II, “o retorno”, e, agora, a “parte final, a missão”. Sim, porque a aventura dos juristas em busca da verdade (real) é como caçar a arca perdida. Já vimos isso em Nucci; agora sigo com outros autores. Antes de tudo, quero grifar os caminhos filosóficos que devem ser trilhados e conhecidos para chegar ao local da arca (e descobrir, talvez, que ela nem exista, pelo menos como os antigos e modernos pensavam). O sujeito da modernidad e é descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas ou no nominalismo ainda não é “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da apreensão da coisa em si. O que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer. Talvez um dos grandes problemas tenha sido a incorporação desmesurada do antirracionalismo nietzschiano, raiz do pragmati(ci)smo que assola principalmente o Direito. Isto quer dizer que o jurista, longe de estar disposto ao real, dispõe ele para si, como que a repetir a sofista frase de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. No pragmati(ci)smo, a decisão particular passa a ser a medida de tudo... Daí o voluntarismo (vontade de poder) que tomou conta das correntes “críticas” do Direito. O que se diz sobre “a verdade” é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo) pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos. Por isso, diz-se por aí, impunemente, por exemplo, que o processo criminal norteia-se pela busca da verdade real, que retira o juiz da posição de espectador inerte da produção da prova (sic) para conferir- lhe o ônus de determinar diligências ex officio , como inquisidor, sempre que necessário para esclarecer ponto relevante do processo (há vários livros, na verdade, muitos livros de processo penal que repetem isso). E há decisões de Tribunais, do STJ e do STF, afastando dispositivo do CPP com base... no “princípio da verdade real”. Incrível (no sentido de não crível).

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 A verdade das mentiras e as mentiras da verdade(real)Por Lenio Luiz Streck

O filósofo Gerd Bornheim dizia, há muitos anos, tratando do pensamento filosófico em bases

existenciais, que "nenhum questionamento pode ser digno de ser chamado filosófico se não se faz

acompanhar de uma reflexão sobre as próprias condições de responder adequadamente ao que está

sendo questionado. Mas isto supõe uma indagação prévia acerca da essência mesma do ato de

interrogar ou questionar. 'Ninguém pode indagar o que sabe nem o que não sabe, porque não

pesquisaria o que não sabe, pois já o sabe, nem investigaria o que não sabe, porque não saberia

sequer o que deve ser investigado' (Platão, Menón, XV, 81-82), dizia Platão. Portanto, continua

Bornheim, toda pergunta implica necessariamente a possibilidade da resposta (ao contrario ela não

teria sentido) e a possibilidade de acesso à coisa mesma a fim de interrogá-la em seu aparecer

originário. Acesso constituído pelo ser do ente compreendido como fenômeno. Assim, a acessibilidade

do ente em questão abre previamente o âmbito onde ele é encontrável a fim de ser, precisamente,interrogado. A filosofia é, pois, nutrida pelo desejo de saber acerca do que torna possível a abertura

desse âmbito sempre já aberto, antes de toda busca e procura, que dirige e pré-orienta o olhar que

investiga e conhece. Boa lição para o que se escreve sobre a verdade no Direito...

Então, sigo. Vimos a parte I de “O Cego de Paris”, depois a parte II, “o retorno”, e, agora, a “parte final,

a missão”. Sim, porque a aventura dos juristas em busca da verdade (real) é como caçar a arca

perdida. Já vimos isso em Nucci; agora sigo com outros autores.

Antes de tudo, quero grifar os caminhos filosóficos que devem ser trilhados e conhecidos para chegar

ao local da arca (e descobrir, talvez, que ela nem exista, pelo menos como os antigos e modernospensavam). O sujeito da modernidade é descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas

ou no nominalismo ainda não é “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da

apreensão da coisa em si. O que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas

da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer.

Talvez um dos grandes problemas tenha sido a incorporação desmesurada do antirracionalismo

nietzschiano, raiz do pragmati(ci)smo que assola principalmente o Direito. Isto quer dizer que o jurista,

longe de estar disposto ao real, dispõe ele para si, como que a repetir a sofista frase de Protágoras de

que o homem é a medida de todas as coisas. No pragmati(ci)smo, a decisão particular passa a ser a

medida de tudo... Daí o voluntarismo (vontade de poder) que tomou conta das correntes “críticas” do

Direito. O que se diz sobre “a verdade” é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia

moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo)

pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos.

Por isso, diz-se por aí, impunemente, por exemplo, que o processo criminal norteia-se pela busca da

verdade real, que retira o juiz da posição de espectador inerte da produção da prova (sic) para conferir-

lhe o ônus de determinar diligências ex officio , como inquisidor, sempre que necessário para

esclarecer ponto relevante do processo (há vários livros, na verdade, muitos livros de processo penal

que repetem isso). E há decisões de Tribunais, do STJ e do STF, afastando dispositivo do CPP combase... no “princípio da verdade real”. Incrível (no sentido de não crível).

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Mas difícil mesmo é saber o que os autores e tribunais querem dizer com “a busca da verdade” ou até

mesmo com enunciados como “não há verdades” ou “a verdade é relativa”... E a discussão sempre

corre o risco de se tornar tautológica, bastando, para tanto, consultar a plêiade de manuais jurídicos à

disposição nas livrarias de terrae brasilis .

No entremeio dessas posições sincréticas, uma pesquisa em autores mais ligados à teoria processual

 — e mais sofisticados — deveria, a toda evidência, trazer luz ao problema. Neste ponto, nada melhor

do que nos focarmos na autoridade de Ada Pellegrini Grinover. O que ela diz? “O princípio da verdade

real, que foi o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização

dos poderes ilimitados na busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza

próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes

instrutórios do juiz e uma verdade ética, processual e constitucionalmente válida (...) e ainda agora

exclusivamente para o processo penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo

quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito material aos

fatos realmente ocorridos, para poder pacificar com justiça.”[1]

Já de pronto é possível perceber que a assertiva da acatada professora não consegue afastar a

mixagem paradigmática que assola o processo, no mínimo desde a década de 40 do século XX. Com

efeito, se, como diz Grinover, a verdade real foi (?) o mito de um processo penal voltado para a

liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na busca da prova, então se está a

tratar de uma “verdade” ligada a um juiz solipsista (subjetivista). De se notar que, ao contrário disso, a

ideia de “verdade real” remete para um conceito de verdade em correspondência com a realidade, com

a “coisa objeto do conhecimento”. Ilustrativa, nesse sentido, seria a imagem de um juiz que não

passava (na verdade, ainda hoje é assim) de um juiz que era um produto mixado por dois modelos

filosóficos (melhor dizendo, vulgatas de dois modelos): ao mesmo tempo em que “cava” a prova ao seu

talante (sendo, assim, um subjetivista), utiliza-se, ideologicamente, do “mito do dado” para dar “pureza”

ao “produto escavado”. Este me parece ser o busílis  da questão.

Complexo, não? Entretanto, se, na sequência, a festejada processualista diz que ainda hoje, para o

processo penal tradicional, o “princípio” (sic) da verdade real “indica uma verdade a ser pesquisada

mesmo quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito

material aos fatos realmente ocorridos ”, então, neste caso, o famoso “princípio” é também um

mecanismo de busca de “verdades ontológicas” (traduzidas pelo enunciado “fatos realmente

ocorridos”, utilizada por Grinover). Ou seja, também Grinover não consegue se livrar dessa mixagem

teórica. E da incerteza acerca do sentido do que seja “verdade real”.

Deixo, assim, assentada a minha perplexidade: se a verdade real é o contraponto da verdade formal,

isso quer dizer que a primeira não tem limites procedimentais (formais). Óbvio isso, pois não? Ela, a

verdade real, “vai além”... Por ela, o juiz “mergulha” diretamente em direção à “essência das coisas”

(esse talvez seja o juiz do qual fala a professora Ada — e com o qual, obviamente, ela não concorda

 —, quando se refere a “um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização

dos poderes ilimitados na busca da prova”). Só que isso é inconciliável no plano dos paradigmas

filosóficos que conformaram o mundo desde a aurora da civilização. Vejamos: não estou dizendo que a

professora assume uma postura equivocada em termos do que seja a verdade. O que estou criticando

é a descrição dos modelos feitos por ela, que não esclarecem o problema, mas, ao contrário,favorecem o sincretismo de modelos teóricos.

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Sendo mais didático: esse sincretismo de paradigmas inconciliáveis acaba sendo communis opinium

doctorum  na doutrina, o que demonstra que o processo penal traiu a filosofia. E as raízes são antigas.

Profundas. Afinal, essa problemática também aparece em trabalhos acadêmicos e de mais fôlego,

como é o caso de Marco Antonio de Barros,[2] quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade

“a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade”[3] (que é, digo eu, a tese do objetivismo

pré-moderno), sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque “moldada pelo juízo racional enão pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa”. Diz, ainda, que, no plano da avaliação

das provas, a “convicção do juiz é livre, submete-se à sua própria consciência; porém, a sua decisão

deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”.

Observe-se que a ressalva que Barros faz no sentido de que a decisão, embora “de livre convicção”,

deva “ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”, seria relevante, não fosse

exatamente a (sua) contradição entre “a livre convicção” (espécie de solipsismo judicial) e a

“fundamentação nas provas processuais”.[4] Quer dizer: segundo o autor, o juiz tem liberdade total

para escolher para, depois, buscar a fundamentação daquilo que já decidiu?

Volto. E o faço para chamar a atenção para outra relevante circunstância, qual seja, a de que o

conceito de Barros retrata, claramente, a junção (espécie de indevida fusão

 — unsachgemäßeVerschmelzung ) do paradigma metafísico-clássico (adaequatio intelectus et rei ) e o

da filosofia da consciência (adaequatio rei et intelectus ), com a ressalva que faço com relação ao que

seja “filosofia da consciência” na nota de rodapé número 4 (sugiro que o leitor pare aqui e leia a

referida nota). Interessante anotar que, ao fim e ao cabo — e Barros é enfático nisso —, sempre

prevalecerá a “livre convicção” ou “a vinculação à consciência do julgador” (daí, talvez, a ode ao “livre

convencimento”...!). Mas, pergunto: Como assim, professor? Quer dizer que, no final, sempre

prevalece a livre convicção... Mas, para que então serve a doutrina, a lei, o direito? Para que servem

os professores? No fundo, é uma mixagem parecida com a que é feita por Nucci. Aliás, isso tudo

explica os escopos processuais e o protagonismo judicial defendido pelo instrumentalismo processual.

Trata-se do “fator Oskar Bülow”, que expliquei alhures, em outra coluna.

Mas continuemos: o triunfo do voluntarismo/relativismo fica claro na seguinte assertiva de Barros:

“Cada uma tem a sua verdade, segundo a sua forma mentis , sob o influxo dos seus próprios interesses

e das suas paixões. E é só pela experiência e controle crítico dos seus constantes pontos de vista ‘que

se pode chegar àquela verdade do juiz’, que é depois aquela que vale para o ordenamento jurídico

(op.cit ., p.19). Veja-se, de novo, que Barros e Nucci andam muito próximos em suas análises. O que

os une é, pois, esse relativismo e a aposta em atitudes pragmati(ci)stas. Na verdade, uma boa dose deniilismo, pois não?

A se acreditar nessa afirmação de Barros — autor, aliás, e faço a ressalva com justiça, que ocupa

importante lugar na doutrina processual penal — estaríamos no reino do subjetivismo-voluntarismo

(ou, quiçá, do ceticismo). Estaríamos também — e isso reforça a mixagem teórica — no suprassumo

do relativismo. Partindo das palavras do autor, posso afirmar que, se-cada-um-tem-“a-sua-verdade”, se

cada juiz obedece a “seus próprios interesses e as suas paixões”, ao fim e ao cabo tudo dependerá

daquilo que esse “senhor dos sentidos” disser (quase um nominalista, pois não? — lembremos o

personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho , de Lewis Caroll). Ou um misto de

solipsismo e ceticismo. O problema é que, como já alertava Heidegger, lá no início de Sein und Zeit , ocético sempre chega tarde.

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O relativismo démodé  da e na dogmática jurídica

O fator talvez mais inusitado que se projeta a partir de todo esse quadro é que, em nenhum aspecto,

os argumentos da dogmática processual se aproximam das discussões contemporâneas sobre o

conceito de verdade. Continuamos a discutir as questões a partir do modo como eram levadas a cabo

no final do século XIX e início do século XX. Esse relativismo démodé , bem como essa profissão de fé

em um caráter unitário da verdade, não atinge o ponto de estofo da questão que, no contexto atual, se

situa no campo da linguagem. Como afirma Lorenz Puntel, um dos grandes filósofos contemporâneos,

verdade quer dizer a revelação da coisa mesma (Sache selbst ) que se articula na dimensão de uma

pretensão de validade justificável discursivamente.[5] Isto só para iniciar a discussão, é claro.

Para ser mais incisivo: a história da Filosofia e, do seu modo peculiar, a dogmática jurídica sempre

trabalharam a verdade como a relação entre um juízo ideal construído pelo sujeito sobre algo real,

posto no mundo. Assim, ao centralizar na subjetividade (que é também um subsistente, como os

objetos sobre os quais se fazem juízos, como bem expõe Heidegger nos volumes sobre Nietzsche),

acaba-se limitando as possibilidades da verdade. Partindo desse paradigma, estamos semprelimitados a falar a verdade (fazer juízo é um exemplo) sobre representações ou conteúdos da

consciência, ignorando a realidade na qual sempre estivemos inseridos.

Percebe-se, desse modo, a complexidade do problema e daquilo que se ensina cotidianamente nas

salas de aula e se reproduz nos fóruns e tribunais. Vejamos: Não é implicância de minha parte. Isso

não é assim por que eu quero que seja assim ou assado. Trata-se de uma questão paradigmática

(portanto, minhas críticas aos autores, Nucci, Barros e Grinover, são pontuais e acadêmicas, em nada

deslustrando a trajetória destes como juristas e sua contribuição na doutrina e nas práticas

tribunalícias cotidianas).

O mundo é como é porque existem e existiram paradigmas filosóficos. Queiramos ou não. Achemos

Kant ou Heidegger uns chatos ou herméticos. Digamos até bobagens como “para que serve essa coisa

complicada que é a Filosofia...”. Ou coisas como “até a aula anterior, vocês estudaram o sexo dos

anjos; agora vem o ‘degas’[6] aqui que vai ensinar Direito para vocês”, como faz, por exemplo, o

protótipo do professor que se orgulha em desdenhar a Filosofia... A propósito, veja-se o problema que

a ausência da Filosofia na discussão acerca do que é positivismo acarreta. Autores importantes

discutem “casos fáceis” e “casos difíceis” como se não existissem paradigmas filosóficos. Como se,

por exemplo, acreditar no positivismo exclusivo (ou excludente) não tivesse relação com a tese de que

só há normas gerais... e como se isso não tivesse relação com o paradigma metafísico-clássico.

Claro que nem tudo está perdido. É evidente que há vários autores no campo processual penal que

superam essa mixagem (refiro, nesse sentido, do campo processual penal, Miranda Coutinho, Lopes

Jr., R. Casara, G. Prado, Flaviane Barros, Grandinetti, Pacelli, Giacomolli (cada um sob perspectivas

diferentes das que eu trabalho); do campo processual civil, Nery Jr, G. Abboud, A. Hommerding e D.

Nunes; no campo da teoria do processo, A. Bahia, J.L. Saldanha, Cattoni e F. Motta; no campo da

teoria do direito, Tomaz de Oliveira, Marrafon, Morais da Rosa, Severo Rocha, M. Ramires, F.V. Luis,

A. K. Trindade, W. Carneiro, C. Tassinari, para citar apenas estes). Portanto, a crítica aqui posta se

refere a determinados setores do processo penal (que, em boa medida, pode ser estendido ao

processo civil e aos demais ramos, como, por exemplo, o direito civil, paraíso dos voluntarismos e dopamprincipiologismo). Despiciendo repetir que minha crítica, que está também em outros textos, é

absolutamente respeitosa.

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[5] Cf. Wahrheitstheorien in der neueren Philosophie . Eine kritisch-systematische Darstellung.

Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1978; Auflage 1993; Grundlagen einer Theorie der

Wahrheit. W. de Gruyter, Berlin/New York 1990.

[6] Segundo o dicionário Priberam, “Degas” (quem vem do pintor Dégas) quer dizer a maneira de

alguém se referir à própria pessoa: “o degas não vai a festa (eu não vou)”; Sujeito “importante”;

contador de vantagens.

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 A ecografia da decisão e o fim das surpresas noDireito

Por André Karam Trindade

“De barriga de mulher grávida, de urna eleitoral e de cabeça de juiz, ninguém sabe o que pode sair”.

Este é um antigo e conhecido ditado popular. Outro semelhante diz: “cada cabeça uma sentença”.

Procurei sua origem sem qualquer sucesso. Descobri, entretanto, que este ditado não encontra

correspondência em outros países, o que me leva a crer que se trata de um genuíno provérbio

brasileiro, provavelmente em razão de nossa pré-modernidade. Ocorre que, com o passar do tempo e

o surgimento de novas tecnologias, o referido ditado restou parcialmente derrogado. Isto porque, para

barriga de mulher grávida, faz duas décadas que existe o exame de ecografia e, para urna eleitoral,

temos as chamadas pesquisas de boca de urna, cada vez mais precisas, de maneira que, misteriosa

mesmo, permanece sendo apenas a cabeça dos juízes.

Mas, afinal, importa saber como os juízes decidem os casos? Evidentemente que esta é uma perguntaretórica, como adverte Cárcova. Se a resposta fosse negativa, não haveria porque escrever esta

coluna e tampouco existiriam tantos juristas preocupados com ela, especialmente nos Estados Unidos,

onde se destacam as teorias de Ronald Dworkin, Richard Posner, Mark Tushnet, Laurence Tribe,

Frank Michelman etc.

Agora, se a resposta é positiva — e sobre isto parece não haver dúvidas —, então fica claro que não

basta acompanhar as sessões dos tribunais através da TV Justiça. É preciso aprofundar as

investigações sobre aquilo que se denomina teoria da decisão judicial .

Antes disso, entretanto, caberia indagar — e esta, sim, é a pergunta importante, ao menos paracolocar o problema — se a teoria da decisão é uma especificidade do direito norte-americano, uma vez

que, de há muito, o ativismo judicial deixou de ser uma prática exclusiva dos países da common law .

De fato, a teoria da decisão é o modo como a teoria jurídica de matriz anglo-saxã enfrenta os

problemas decorrentes da interpretação e da aplicação do Direito. Isto se justifica, de certo modo,

porque nela os precedentes constituem a principal fonte de Direito; e também explica porque não

existe, originalmente, uma cultura voltada ao estudo da teoria da decisão no interior da tradição

romano-germânica.

Todavia, considerando que, nos últimos anos, observa-se uma nítida tendência de aproximação entreas tradições da common law  e da civil law , tudo indica que é chegada a hora de se pensar na

possibilidade de uma teoria da decisão adequada ao sistema da civil law  — tal qual vem propondo

Lenio Streck, Rafael Tomaz de Oliveira e outros —, a fim de que se possa controlar, de algum modo,

os processos de interpretação e aplicação do Direito, estabelecendo critérios e limites para que o

protagonismo dos juízes não afete a democracia constitucional.

Em um ensaio intitulado ¿Qué significa juzgar? , publicado na revista Doxa  (número 32, 2009), Pérez

Luño se inspira em Heidegger e afirma que esta pergunta serve como o ponto de partida para se

pensar a atividade dos juízes.

Após resgatar a noção romana de iudicium  (concebida como de fonte de Direito, na medida em que

declarar o direito equivaleria ao próprio direito) e denunciar a simplificação resultante do modelo de juiz

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instaurado a partir da Revolução Francesa (cuja tarefa se restringia a aplicar mecanicamente um

direito pré-existente), Pérez Luño reformula a questão sob a perspectiva da teoria jurídica

contemporânea: os juízes criam direito? 

Tal indagação — além de essencial para se pensar toda e qualquer teoria da decisão judicial — recebe

as mais diversas respostas, que estão diretamente atreladas às diferentes concepções de direito.

Vejamos alguns exemplos: a) para o formalismo jurídico, os juízes não criam direito; b) para o realismo

 jurídico, somente os juízes criam direito; c) para a escola do direito livre, os juízes criam direito quando

o caso assim o exigir; d) para o positivismo normativista, os juízes estão autorizados a criar direito etc .

Na verdade, por trás da questão acerca da (im)possibilidade de os juízes criarem direito encontra-se a

chamada discricionariedade judicial , que já aparece nitidamente na célebre obra de Kelsen, mas se

difunde, sobretudo, a partir do advento da era dos princípios , na medida em que se verifica que o

silogismo lógico-dedutivo não se mostra capaz de resolver os chamados casos difíceis .

Como se sabe, a tese da discricionariedade judicial está presente tanto em Kelsen, como em Hart — e,

ainda, aprofundada por seus discípulos Raz e Carrió —, na medida em que a atividade interpretativa

do juiz não deve limitar-se a juízos mecânicos quando se depara com normas vagas e ambíguas ou

com situações para as quais não haja normas previstas.

Rompendo com a tradição paleopositivista, embora ainda reconheça que existam espaços de

discricionariedade judicial que são fisiológicos ao poder de cognição , Ferrajoli adverte para a

necessidade de combater a discricionariedade decorrente do poder de disposição  — que vem sendo

estimulado pela técnica alexyana da ponderação —, uma vez que o seu exercício implica uma invasão

de competência na esfera política.

Observa-se, assim, que até mesmo um positivista contemporâneo com Ferrajoli entende que a

discricionariedade judicial — seja ela concebida como aceitável, reduzível ou eliminável — deve ser

combatida, nas sociedades democráticas, através de mecanismos idôneos que evitem a produção de

 juízos decisionista ou arbitrários.

Isto porque, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, existe certa unanimidade no sentido de

que a atividade dos juízes, especialmente no que se refere à interpretação e aplicação das normas

 jurídicas, não admite a criação do direito, visto que todos se encontram limitados pela lei e vinculadas

à Constituição.

Em sua última coluna Senso Incomum (Como se mede a “régua” para aplicar a lei: quem a fixa? ), ao

abordar o problema da discricionariedade judicial, Lenio Streck insiste na diferença existente

entreescolher  e decidir . Na verdade, enquanto a primeira depende da subjetividade — isto é, das

preferências do sujeito —, a segunda se dá na intersubjetividade, uma vez que toda decisão é

antecipada por algo, que é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito.

A grande questão é que, se levados a sério todos os avanços resultantes do giro linguístico ao longo

do século XX, pensar uma teoria da decisão adequada  significa superar, de uma vez por todas, a ideia

de que o controle no processo decisório pode ocorrer através do emprego de um determinado método.

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Vejamos um exemplo. Em sua obra, Ricardo Lorenzetti — professor titular da Universidad de Buenos

Aires e atual Presidente da Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina — defende a

necessidade de reconstrução de uma matriz estratégica que ordene a interpretação , propondo o

seguinte esquema para o raciocínio judicial decisório: 1) empregar o método dedutivo, em que o juiz,

no estilo Sherlock Holmes, delimita os fatos, identifica a regra a ser aplicada e opera a dedução; 2)

controlar a consistência, a coerência e a consequência do resultado alcançado, verificando,respectivamente, se está de acordo com os precedentes, o olhar para trás, se está em conformidade

com o restante do ordenamento jurídico, o olhar para cima, e analisando as consequências jurídicas,

econômica e sociais que poderão advir da decisão, o olhar para a frente .

Todavia, quando se tratar de um caso difícil, em que o método dedutivo descrito mostra-se insuficiente,

Lorenzetti propõe que o juiz exerça sua discrição, mediante uma argumentação jurídica baseada em

princípios, que devem justificar a decisão em termos de correção. Nestas situações, Lorenzetti defende

o emprego da seguinte metodologia: 1) identificar o campo de tensão, constatando os princípios em

colisão; 2) optar pela alternativa mais econômica, considerando a hipótese de encontrar uma solução

que atenda um princípio sem afetar outro; 3) verificar se não se trata de um caso de inaplicabilidade daponderação, uma vez que há bens que gozam de proteção máxima e não se submetem a restrições;

4) aplicar o juízo da ponderação, através do sopesamento dos princípios colidentes e dos valores em

questão; 5) argumentar, racionalmente, a fim de justificar a decisão alcançada.

Lorenzetti sustenta, ainda, que as decisões são condicionadas por modelos decisórios, que dão

proeminência ao contexto sobre a norma. Tais modelos, que são adotados de antemão pelo intérprete,

pré-determinam a interpretação das normas, permitindo que regras e princípios sejam aplicados de

modo distinto por pessoas que aderirem a paradigmas diferentes.

A título ilustrativo, o autor elenca os seguintes paradigmas: 1) o paradigma de acesso aos bens

 jurídicos primários ; 2) paradigma protetivo ; 3) paradigma coletivo ; 4) paradigma consequencialista ; 5)

paradigma do Estado de Direito Constitucional ; e 6) paradigma ambiental . Isto porque, havendo

conflito entre as respostas produzidas a partir de paradigmas concorrentes, Lorenzetti sugere dois

critérios: 1) a explicação , que consiste na exposição do paradigma adotado e do objetivo a ser

alcançado; 2) a harmonização, que consiste na resolução do caso levando em conta o modelo da

democracia deliberativa.

Como fecho provisório desse debate que deve fazer parte do cardápio da Teoria do Direito

Contemporânea, lembro que essa tese de Lorenzetti — ainda refém das velhas teses subjetivistas — é

bem criticada por Fernando Vieira Luiz, no livro Teoria da Decisão Judicial: dos paradigmas de Ricardo

Lorenzetti à resposta adequada à Constituição de Lenio Streck  (editora Livraria do Advogado, 2012).

Aliás, no prefácio deste livro, Lenio lembra o que disse o autor na sua defesa de dissertação: “sou juiz,

minha mãe é juíza, meus amigos juízes e promotores, com os quais convivo, são todos honestos,

probos e justos. Interessante é que, quando nos reunimos para falar sobre os casos que decidimos,

chegamos à conclusão de que, embora a nossa honestidade, probidade e sentimento de justiça,

damos sentenças tão diferentes umas das outras, em casos, por vezes, muito, muito similares. Por

isso, cheguei à conclusão de que havia algo errado. Não basta ser honesto, probo e ter sentimento do

 justo. Todos, eu, minha mãe, meus amigos, decidimos conforme nossas consciências. Só que asdecisões são tão discrepantes... Por isso, fui estudar teoria da decisão ”.

7/21/2019 Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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Voltando à sabedoria popular. É preciso assumir que um pouco de mistério sempre cai bem. É bom

esperar para saber o sexo do bebê. Surpresas desse quilate por vezes não devem ser quebradas por

uma ecografia. Também é bom aguardar para saber o resultado das eleições. Por vezes, a boca de

urna e as pesquisas tiram a emoção da disputa no pleito. Mas, quando se trata da decisão judicial, não

acredito que alguém do povo possa gostar de ser surpreendido. Seria algo “correr sozinho e chegar

em segundo lugar”. Por isso, a necessidade de uma teoria da decisão. Apenas com criteriologias é quepoderemos diminuir as surpresas no Direito e, assim, aumentar sua integridade. Uma teoria da decisão

funciona, precisamente, como uma espécie de ecografia do Direito. O exame não permite sabermos

como serão exatamente os traços do bebê, mas, com certeza, define o sexo, além de outras coisas. E

nisso não deverá haver surpresas!

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Do cubismo de Kelsen ao Direito curvo de CalvoGonzález

Por André Karam Trindade

Calvo González é um jurista da mais alta erudição. Ele conhece quase tudo: Direito, política,

economia, filosofia, sociologia, artes, música e, sobretudo, literatura. Quando não conhece, já leu algo

a respeito. É impressionante sua capacidade de compartilhar seu conhecimento com sabedoria e

humildade.

Reconhecido internacionalmente como um dos principais expoentes do estudo do Direito e Literatura,

autor de dezenas de livros e centenas de ensaios e artigos científicos, professor catedrático de teoria e

filosofia do direito da Universidad de Málaga, juiz do Tribunal Superior de Andalucía, Calvo González

é, antes de tudo, um grande amigo.

Em seu conhecido blog, iurisdictio-lex malacitana , posta análises e observações, divulga os últimos

lançamentos, comenta livros, indica cursos e eventos, enfim, registra suas descobertas e sua visão do

mundo. O mesmo se aplica ao Facebook, onde nos conta suas andanças e compartilha as mais

diversas experiências, além de acompanhar passo-a-passo aqueles que integram sua rede.

Nos encontramos em diversas oportunidades: primeiro, em Braga, ao norte de Portugal, numa banca

de doutorado; depois, no Brasil, em Florianópolis — juntamente com Luís Carlos Cancellier de Olivo,

Alexandre Morais da Rosa e Lenio Streck —; e, em seguida, no sul da Itália, em Benevento, onde o

provoquei a respeito de uma metáfora que fizera certa vez: el  Derecho curvo . Naquela ocasião,

convidei-o para desenvolvê-la melhor em Passo Fundo, na conferência de abertura do I Colóquio

Internacional de Direito e Literatura, que seria realizado na IMED, ainda em 2012.

O desafio foi aceito. E devidamente cumprido. Mais uma vez, Calvo surpreendeu a todos os presentes.

O resultado não poderia ter sido melhor. A prova disso foi termos iniciado, imediatamente, a tradução

das duas conferências por ele proferidas no Brasil, que resultaram na edição de um belo livro —

intitulado Direito Curvo  (Ed. Livraria do Advogado) —, com o qual se inaugura a Coleção “Diante da

Lei”, por mim dirigida. O posfácio é assinado por Lenio Streck.

No primeiro ensaio, que dá nome ao volume, logo em sua epígrafe, o leitor se depara com uma citação

de Nietzsche, que relaciona a verdade à curva. Logo em seguida, a premissa adotada vem de um

conto de Machado de Assis, intitulado Sereníssima República , que retrata a política brasileira. Ofragmento refere-se às geometrias retilínea, curvilínea e reto-curvilínea, que caracterizam os partidos

políticos na República das Aranhas. E, a partir dele, Calvo conclui que as teorias jurídicas sobre os

direitos são tão frágeis quanto teias de aranhas.

Na verdade, após o dilema posto pelo princípio do tertium non datur , representado através das

distintas poesias de Le Corbusier e de Oscar Niemeyer — cujo único denominador comum é a ideia da

geometria aplicada à arquitetura moderna —, Calvo apresenta seu objetivo central: explicar no que

consiste o denominado direito curvo.

Para isto, o consagrado jurista espanhol desenvolve sua tese em quatro etapas, que são percorridasna agradável companhia de filósofos, escritores, pintores, artistas e juristas:

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a) as aspirações geométricas dos juristas, impulsionadas pelo racionalismo cartesiano e pelo império

da lógica dedutivista;

b) a relação entre a teoria pura do direito, de Hans Kelsen, e a ordem figurativa do cubismo;

c) as ondulações sofridas pelo direito a partir das concepções flexível, dúctil, frágil e solúvel, que

surgem nas últimas décadas;

d) e, finalmente, o reconhecimento do paradigma do “direito curvo”.

Com efeito, entre retas e curvas, impressiona o modo como Calvo traça seu próprio itinerário,

estabelecendo os mais inusitados pontos de contato entre Nietzsche, Machado de Assis, Niemeyer, Le

Corbusier, Hobbes, Wolff, Descartes, Spinoza, Leibniz, Ortega y Gasset, Kelsen, Merkl, Schmitt,

Picasso, Braque, Carbonnier, Zagrebelsky, Arnaud, Belley, Kandinsky, Mondrian, Reale e Borges.

Em suma: a construção deste novo paradigma jurídico — o Direito curvo — pressupõe um olhar que

certamente transcende os limites do universo jurídico. E este, como se sabe, continua a ser o maior

desafio dos juristas.

No segundo ensaio, intitulado Por uma teoria narrativista do direito , Calvo apresenta os pressupostos

do modelo teórico que vem construindo desde o início a década de 1990, em diversas obras.

Seu ponto de partida é, precisamente, o poema The Man with the Blue Guitar  (1957) — inspirado na

obra El viejo guitarrista ciego  (1903), de Picasso —, de autoria de Wallace Stevens, um renomado

escritor modernista norte-americano, com formação jurídica, que exerceu a advocacia no início do

século XX.

Muito embora não faça referência expressa a Gadamer, a teoria narrativista do Direito se estrutura

sobre uma premissa hermenêutica: “não existem as coisas exatas como elas são”. Trata-se, comefeito, de uma teoria de viés antiobjetivista, antinaturalista, antiessencialista e, portanto,

antimetodológico.

Como se sabe, desde os avanços trazidos pelo narrative turn  às mais diversas disciplinas das ciências

humanas e sociais — entre elas o Direito, onde surge a denominada narrative jurisprudence  —, a

aplicação da noção de “narrativa” à teoria jurídica assume duas linhas diversas, especialmente nas

décadas de 80 e 90, ambas relacionadas à produção dos discursos jurídicos na construção da

realidade processual.

Ocorre que, para Calvo, as aplicações narrativas operadas pelos juristas não devem ser confundidascom sua teoria narrativista do Direito. Isto porque, para ele, a coerência narrativa deve ser entendida

como um mecanismo de construção dos sentidos, que poderá atuar exclusivamente na condição de

critério de verossimilhança.

Assim, levando em conta que a “verdade dos fatos” é sempre o produto interpretativo da faticidade

resultante de uma atividade discursiva de estrutura narrativa inventiva, destinada a justificar a melhor

resposta, a teoria formulada por Calvo consiste no estudo das estruturas que, a partir do material fático

e normativo, constroem as narrações.

Seu caráter crítico fica bastante nítido na medida em que a teoria não desconsidera o fato de que,muitas vezes, a atribuição de sentido implica uma série de elementos que conformam o horizonte de

expectativas do intérprete. Neste contexto, um enunciado fático acaba por se tornar discursivamente

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coerente também a partir do influxo de subsistemas de sentido, como são a memória (individual) e o

imaginário (social).

Assim, a teoria narrativista do direito da qual nos fala Calvo ajuda a compreender que nossos sistemas

 jurídicos são instalações ficcionais e, por vezes, hiperficcionais. O direito, conclui, é uma forma

linguística ficcional de um mundo puramente textual. Ele habita nos discursos narrativos e, portanto,

não está imune aos efeitos da ficcionalidade.

No final deste mês, Calvo González estará em Brasília (28/10), na companhia de Arnaldo Godoy, onde

promoverá o lançamento do livro; e, depois, em Passo Fundo (30/10 a 1º/11), no II Colóquio

Internacional de Direito e Literatura da IMED. Trata-se, certamente, de mais uma oportunidade para a

comunidade jurídica brasileira dialogar com um dos juristas europeus mais importantes da atualidade.

Warat recomendaria.

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Jogo processual no Direito Penal tem efeitocativante

Por Alexandre Morais da Rosa

Tenho uma aluna intercambista,de Portugal, cursando a disciplina de Processo Penal na UFSC.

Interessada e estudiosa, após ler os dispositivos do CPP e da Constituição de 1988, decidiu comprar

livros de processo penal. Então, um tanto quanto assustada, perguntou-me: “professor, tenho a

impressão de que os autores não falam do mesmo texto normativo. E como funciona na prática? Quais

regras valem nos foros brasileiros?”

Ora pois. Expliquei da seguinte maneira: se você é jogador de xadrez sabe que poderá chegar em

qualquer lugar do mundo e compartilhar as regras. O cavalo anda em “L” de Moscou ao Rio de

Janeiro. Assim é que o jogo pode acontecer justamente porque se compartilham as regras.

No julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, discutiu-se, com apertada vitória, o

cabimento dos Embargos Infringentes, tendo-se como foco a recepção ou não do Regimento do STF.

Quando se trata de controle de constitucionalidade difuso, recepção do CPP em face da Constituição,

há confusão generalizada. Arrisquei dizer a ela que não temos um processo penal. Mas, sim, vários.

Em cada sala de aula, comarca, unidade, Tribunal e eventual composição dos órgãos julgadores, as

regras mudam.... É verdade que também mudam conforme o status social do acusado — falarei disso

em outra oportunidade. Conforme Lenio Streck, a compreensão inautêntica prevalece e caímos na

selvageria do realismo. Diante da multiplicidade de jogadores, julgadores, regras reconhecidas,

precisamos de novo instrumental para enfrentamento da questão das regras do jogo, de acordo com o

entendimento do jurista Aury Lopes. O ideal seria, por evidente, que houvesse a consolidação das

normas, para que assim, e somente assim, pudéssemos articular um jogo coletivo e democrático.

Entretanto, essa pretensão é ilusória, além de a norma não segurar o sentido. Daí que permanecer na

noção contemplativa e idealizada de um possível processo penal, desconsidera o caos dos foros.

O jogo como categoria universal está presente no processo penal

Entender o processo penal como jogo não é novidade, aponta o jurista italiano Piero Calamandrei.

Embora o processo penal exija racionalidade dos jogadores, o exercício do jogo mostra que as

decisões são tomadas para além da racionalidade. Daí que a metáfora do Teoria dos Jogos pode ser

invocada para modelar, de alguma maneira, a matriz teórica de como as decisões podem ser tomadas,partindo-se do estudo dos comportamentos dos jogadores, julgadores, estratégias, táticas e

recompensas.

A noção de jogo é antiga e, com Johan Huzinga (em Homo Ludens ), pode-se dizer que “é no jogo e

pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”. Daí a pretensão de integrar o jogo no campo do

processo penal. O regozijo da vitória, um gol de mão aos 47 do segundo tempo, enfim, as sensações

de prazer e decepção estão inseridas no cenário dos jogos, queiramos ou não! A vitória em Embargos

Infringentes, pelo placar de 6 votos a 5, depois de toda a batalha processual, representa, aos

 jogadores, já na prorrogação, a sensação de vitória! E a partida continua.

O jogo fascina, excita, preenche o tédio do cotidiano. O vazio da disputa, está para além do que se

pode racionalizar. Qualquer um de nós ao jogar um jogo qualquer (futebol, vídeo game etc.) extravasa,

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em maior ou menor grau, a irracionalidade. Xinga-se, grita-se, briga-se, comemora-se! No processo

penal também! No jogo processual penal joga-se com a antecipação e a recompensa da vitória, por

meio da linguagem e suas sutilezas. O processo penal é o mito pelo qual, com a decisão, a ordem das

coisas, o acusado e a punição, devolveriam ao ambiente coletivo, mesmo que imaginariamente, a paz!

Daí que se pode falar no aparente e no manifesto, a saber, por detrás do jogo público, as motivações,

as recompensas, as pretensões, devem vasculhar outros lugares, para além da seriedade de fachada.Daí ser cômico — e temos que segurar o riso — as empoladas regras de tratamento e lições de moral

quer atravessam os procedimentos judiciais.

O feitiço cativante do jogo processual

No jogo do processo penal brasileiro, contudo, nem mesmo temos normas compartilhadas. Esse

problema torna o jogo dependente do “dono da bola”. Ou seja, em cada unidade jurisdicional, diante da

ausência de sentido compartilhado das normas processuais, o jogo apresenta variáveis. E isso é

antidemocrático, conforme demonstra Jacinto Coutinho.

O jogador de xadrez sabe que se chegar em qualquer lugar do mundo, mesmo sem falar o idioma,pode jogar com o adversário que se encontra sentado na frente de um tabuleiro. Basta sentar-se e

 jogar. As regras são compartilhadas. No processo penal o déficit normativo torna o jogo mais

complexo, dado que antes do jogo, para que se possa ter êxito, é preciso conhecer o julgador da

partida. Saber quais as regras irá aplicar/desconsiderar.

A Teoria dos Jogos pressupõe que a vitória depende da tomada de decisões em cadeia. No decorrer

do procedimento judicial, em cada sub-jogo, é necessário o cotejo da estratégia da adversário e do

“dono da bola”. Antecipar a melhor jogada possível, os ganhos e prejuízos, a cada momento, parece

ser o caminho adequado para tomada de decisões estratégias. Não se trata, necessariamente, de

matematizar o Direito — de acordo com o ensinamento de Calvo González —, mas de lançar mão deoutra caixa de ferramentas teórica, dada a manifesta insuficiência do Direito para tal. Até porque não

se trata de verdade verdadeira, ou seja, opera-se longe da possibilidade da reconstrução do caso

penal.

A obtenção da vitória no jogo processual depende de uma série de decisões em cadeia, cuja

subsequente vincula-se, necessariamente, ao êxito na anterior. Há uma interdependência das jogadas.

Exemplificativamente e do ponto de vista meramente formal: a condenação depende de uma denúncia

apta e de defesa existente. Cabe dizer que o êxito de um dos jogadores depende do contendente. Não

se trata de um jogo individual, em que o resultado decorre exclusivamente das jogadas individuais. As

 jogadas, articuladas legalmente, são sempre dialéticas, em contraditório. Daí a importância do

contraditório na compreensão do processo penal. Talvez não seja arriscado afirmar que no exercício

tedioso do Direito Processual Penal falte emoção. Entendido pela metáfora da teoria dos jogos, quem

sabe, possamos entender melhor seu funcionamento, até porque no plano das regras processuais não

dispomos de sentido compartilhado. O CPP é de 1941 e a Constituição não convivem

harmonicamente. A aluna intercambista perguntou, ao final: “então é um jogo em que a sorte impera?”.

“Talvez”, respondi. E isso é democrático? Absolutamente não!

A Criminologia Cultural aponta, desde outro lugar, que o tédio, diante das condições da modernidade,

nos diz Jeff Ferrel (e no Brasil Álvaro Oxley da Rocha e Salo de Carvalho), passou a compor a vidacotidiana, fazendo com que o sujeito encontre momentos ilícitos de excitação, ou seja, condutas

efêmeras cometidos contra o próprio tédio, dentre eles, arrisca-se, as jogadas processuais ilícitas, as

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formas de doping  processual. O processo penal acaba, pois, transformando-se num grande

mecanismo de superação do tédio, mediante a prática de jogadas ilícitas, “jeitinhos processuais”, com

as quais o leitor, se tiver paciência, poderá tomar conhecimento na próxima coluna. No momento,

basta dizer que as recompensas de descargas de adrenalina que o jogo processual enseja quebram,

não raro, o tédio do cotidiano, diante do inesperado. A questão é: isso torna real o absurdo kafkiano?

Doutrinadores agora tm a concorrncia de Paolla!liveira

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Por André Karam Trindade

Começava a escrever esta coluna a respeito do que alguns constitucionalistas disseram

ao ConJur sobre a legalidade da manutenção do mandato parlamentar do deputado federal Natan

Donadon, quando soube de uma decisão que está circulando pelas redes sociais desde quinta-feira

(29/8). Então, suspendi o projeto inicial e tomei outro caminho para tratar de um tema não menos

importante e, de certo modo, correlato: o dever de fundamentação das decisões e o papel da doutrina.

A “doutrina” de Paolla Oliveira...

Num dos foros regionais da comarca de Porto Alegre, no mês de março deste ano, F.C. foi condenado

pela prática do crime de tráfico de substância entorpecente à pena de sete anos de reclusão, a ser

cumprida em regime fechado, e à pena de 500 dias-multa fixados no valor mínimo legal.

Até aqui, nada de mais. Isto porque, como se sabe, centenas de réus são condenados diariamente em

todo Brasil por este e outros crimes a penas equivalentes ou até mesmo superiores. O que chamou

minha atenção, entretanto, foi a “fundamentação” utilizada pelo magistrado em sua sentença:

O Juiz é o Estado na busca da verdade-real, que efetivamente tem que se manifestar, é uma garantia

do cidadão brasileiro.

Meu pai, [...], Promotor de Justiça Jubilado, sempre me diz isso, em nossas conversas sobre Justiça e

Verdade, citando o Padre Antônio Vieira: Juiz sem liberdade é como a noite que não segue a aurora. É

a própria contradição!!!

Ou como disse a jovem atriz PAOLA OLIVEIRA, na Marie Claire de MAR 2011, PAG. 76: “Direitos

Humanos é para quem sabe o que isso significa. Não para quem comete atrocidades de forma

inconsequente, ao se pronunciar sobre a invasão do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro”.

E disse mais a jovem atriz: “O sistema é muito frouxo. Tem que haver mais rigidez na punição”.

Creio que estamos caminhando para o lado inverso, ao dar mais liberdades e direitos aos acusados e

criminosos, ao invés de garantir sim o devido processo legal, o contraditório e a mais ampla defesa,

mas não podemos sonegar do Estado-Juiz, buscar elementos para sua convicção de julgamento,

sendo essa mais uma garantia do cidadão-réu, porque ao julgar, seja para absolver ou condenar, o

Juiz deve fazê-lo de forma fundamentada na prova colhida nos autos e ao realizar perguntas a réus e

testemunhas, nada mais nada menos está fazendo o que lhe compete constitucionalmente.

[...]

Com efeito, há alguns anos passados, não muitos, cerca de 10 anos aproximadamente, a pequena

quantidade de entorpecentes determinava a tipificação de “portar para consumo próprio”,do art. 16, da

lei nº 6.368/76 (antiga lei de tóxicos), ou seja, qualificava o autor do delito como “usuário” de

entorpecentes.

Foi mais longe ainda não somente esse entendimento, mas que o usuário deveria ser considerado

como “doente”, em razão dos efeitos nefastos dos entorpecentes no psique do agente criminoso, que

não deveria ser “preso”, mas sim tratado!!!

Com isso, abriu-se as portas do inferno e passou-se à liberdade de consumo e, via de consequência,

do comércio de entorpecentes, porque dessa forma determinou ao traficante A DISTRIBUIÇÃO DE

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PEQUENAS QUANTIAS AOS SEUS VENDEDORES – representantes comerciais – QUE SE FOSSEM

FLAGRADOS COM A DROGA, SERIAM ENQUADRADOS COMO USUÁRIOS E DESSA FORMA

NÃO SERIAM PRESOS.

[...]

Além disso, a prestação de serviço do acusado vai mais além de apenas “comercializar o

entorpecente”, ele fornece o local para o consumo imediato!!! Como diz o ditado: barba, cabelo ebigode... serviço completo!!! Só faltava também fornecer sofá para curtir a “viagem” e o chocolate ou o

sanduíche com refrigerante para a hora da “larica”!!!!

[...]

Na maioria das vezes, os réus sustentam Síndrome de Dependência Compulsiva, havendo

necessidade de encaminhamentos do agente à especial tratamento curativo. Contudo, enquanto isso,

esses mesmos agentes que precisam de tratamento especial curativo, realizam Latrocínios,

Homicídios, Roubos a mão armada, com extrema violência e grave ameaça a pessoa.

Foi essa frouxidão, como disse a jovem atriz Paola Oliveira, que resulta hoje numa quase incontrolável

senda criminosa envolvendo todo o tipo de uso de entorpecentes!!!!

Sem adentrar no mérito, o teor da decisão evidencia que fracassamos. Não conheço o juiz que proferiu

a decisão e, desde logo, registro que não se trata de qualquer questão pessoal. Minha crítica é

bastante pontual: se para resolver casos jurídicos precisamos recorrer à filosofia de Paolla Oliveira —

sim, ela inseriu mais um “ele” por causa da numerologia —, isto significa que a doutrina perdeu mais

uma batalha. Marie Claire  não é fonte de Direito! Se fosse, certamente já haveria uma edição especial

de Caras, no Castelo da revista (certamente!), com os famosos e a aplicação do princípio da

proporcionalidade. Lendo os comentários a respeito da decisão, encontrei quem sustente que o acerto

no veredicto condenatório desonera o juiz de sua responsabilidade quanto à fundamentação. Outros

alegam que, no fundo, a opinião de Paolla Oliveira representa a sociedade e, portanto, deve ser

observada.

Por um instante, confesso que fiquei imaginando como seria um tribunal do júri composto de

celebridades globais: Paolla Oliveira, para quem os direitos humanos não devem ser aplicados a

todos; Carolina Ferraz, que defendeu publicamente o apartheid  dos elevadores sociais e de serviço;

Faustão, que pregou discursos moralistas contra a corrupção no embalo das manifestações de junho;

Glória Perez, conhecida por sua iniciativa na criação da Lei dos Crimes Hediondos; Pedro Bial, para

quem herói é aquele consegue sobrevier às dificuldades da casa mais vigiada do Brasil; Regina

Duarte, cujo medo virou propaganda eleitoral contra o candidato Lula; Ana Maria Braga, quefrequentemente também busca a verdade nos casos policiais que chocam o país, inquirindo

testemunhas e entrevistando autoridades. Em tempo: Luciano Huck estava na lista, porém foi

dispensado na última hora em face de suas amizades com o presidente do STF e o governador do Rio

de Janeiro. Todos sob a presidência do juiz Arnaldo Cesar Coelho, para quem “a regra é clara”. Já

pensou?!

Ora, não discutirei aqui “o direito segundo as celebridades” ou “a liberdade de expressão dos

famosos”. Também não pretendo aprofundar a “hediondez da sentença” ou o “livre convencimento do

 juiz”, mas apenas o que a decisão nos revela subliminarmente: a dificuldade que ainda temos em

compreender no que consiste o dever constitucional de fundamentar as decisões. Decidir não é omesmo que escolher e, por isto, não depende da vontade do juiz. Se a opinião do juiz é igual àquela

de uma atriz, por exemplo, isto é irrelevante para o julgamento do processo. Muito discutimos a

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respeitos do tamanho das sentenças e pouco nos preocupamos com seu conteúdo. Com isto,

substituímos o problema principal pelo problema secundário. Estabelecemos metas para julgar mais, e

não para julgar melhor. Um dos resultados disso é conhecido de todos: a absoluta inoperância da

doutrina para a formação de um discurso jurídico crítico e autêntico.

... e a lição de Julia Roberts

No filme O Dossiê Pelicano  (1993), dirigido por Alan J. Pakula e inspirado no romance homônimo de

John Grisham (1992), assistimos a uma cena em que o professor de Direito constitucional de uma

universidade norte-americana discute com seus alunos o famoso caso Bowers v. Hardwick ,

questionando-os acerca do referido precedente. Durante a discussão acerca do tratamento conferido

pela constituição americana ao Direito à privacidade, uma aluna — de nome Darby Shaw, interpretada

pela bela Julia Roberts, à época com 25 anos de idade — sustenta a inconstitucionalidade da

legislação do estado da Geórgia, que criminalizava a sodomia. O professor, todavia, encerra o debate,

dizendo que a Suprema Corte decidiu no sentido contrário: não é inconstitucional que os estados

classifiquem como criminosa a conduta da sodomia. Ao final, ele dirige à aluna a seguinte pergunta: “–

Por que isto?” Inconformada, ela responde: “porque eles erraram”.

Nos últimos anos, esta cena cinematográfica vem sendo utilizada inúmeras vezes — tanto por Lenio

Streck quanto por José Juan Moreso — para reforçar o papel crítico que deve ser desempenhado pela

doutrina do Direito, sobretudo porque a ela compete a fiscalização da atividade desenvolvida pelos

tribunais, através da observação e da análise das decisões judiciais.

Trata-se, em suma, do chamado “fator Julia Roberts”: muito embora sejam os tribunais que, ao final,

detenham a última palavra, isso não quer dizer que eles não se equivoquem e tampouco que suas

decisões não devam ser questionadas e, sempre que necessário, criticadas.

Em um belo artigo, intitulado German Constitutional Culture in Transition  (Cardozo Law Review , n. 14),

Bernhard Schlink afirma que, de fato, o funcionamento da legislação e da administração depende em

grande medida da supervisão por parte do poder judiciário à qual o legislativo e o executivo estão

sujeitos. A atividade do judiciário, enquanto intérprete da constituição, é por sua vez suscetível à

análise e crítica que devem ser realizadas pela ciência jurídica.

Adotando posição semelhante, em O Domínio da Vida , Ronald Dworkin adverte que, muito embora

exerçam uma atividade essencial à Justiça, os juízes não são as personagens mais importantes do

drama judiciário que se encontra, inevitavelmente, implicado em todo processo judicial. E conclui

afirmando que os juízes devem justificar suas sentenças por meio de argumentos de princípios e deintegridade, que possam ser criticados pelo meio jurídico e avalizados pela opinião pública, cuja

influência deveria ser sentida sempre que os presidentes nomeiam os juízes.

Na mesma linha, porém sob um viés analítico, Luigi Ferrajoli ensina que, no paradigma garantista, a

ciência jurídica também pode ser concebida como uma garantia, na medida em que tem a função de

denunciar — e, portanto, impedir — toda e qualquer violação dos direitos. Para ele, ao contrário do

positivismo kelseniano, a ciência do Direito deve assumir uma função pragmática: a crítica interna do

Direito .

Em suma: a tarefa da doutrina é precisamente exercer o constante “constrangimento epistemológico”

(Streck) ao qual deve estar submetida a atividade dos juízes e tribunais. Este é, afinal, o papel que o

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cientista do direito deve assumir, numa sociedade democrática, em defesa das garantias que

conformam o Estado constitucional.

"a#zes do garantismo e o pensamento de $uigi%erra&oliPor André Karam Trindade

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Muito embora a expressão garantismo  possa remeter o leitor ao século XVIII — e, mais

especificamente, ser associada à figura de Mario Pagano, para quem o garantismo seria, de fato, uma

doutrina voltada à limitação da discricionariedade potestativa do juiz — ou, ainda, aos neologismos do

século XIX, sua incorporação no universo jurídico é, com efeito, bem mais recente, conforme sinaliza

Luigi Ferrajoli em entrevista concedida a Gerardo Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad

Carlo III de Madrid: “A palavragarantismo  é nova no léxico jurídico. Ela foi introduzida na Itália, nosanos 70, no âmbito do direito penal. Todavia, acredito que possa ser estendida a todo o sistema de

garantias dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o garantismo é sinônimo de Estado Constitucional

de Direito”.

Na verdade, tal expressão vem publicada, em 1970, no Grande Dizionario della Lingua Italiana , de

Salvatore Battaglia, em que são apresentados os seguintes significados, que entre eles se relacionam:

1) Característica própria das mais evoluídas constituições democrático-liberais, consistente no fato de

elas estabelecerem dispositivos jurídicos cada vez mais seguros e eficientes a fim de garantir a

observância das normas e do ordenamento por parte do poder político;

2) Doutrina político-constitucional que propugna uma cada vez mais ampla elaboração e introdução de

tais dispositivos no ordenamento jurídico.

Tais definições apontam, de um lado, para uma dimensão que se aproxima do

chamadoconstitucionalismo rígido  e, de outro, para sua respectiva teoria normativa, não havendo

qualquer indicação relativa ao significado — comum e corrente — empregado nas linguagens política e

 jornalística que designa os parâmetros de legitimidade da administração da justiça penal.

Esta lacuna se explica a partir do dado histórico de que a compilação do Grande Dizionario  precede aassunção do termo garantismo  como denominação da teoria liberal do direito penal elaborada, com

base na herança jusfilosófica iluminista, nos ambientes progressistas da cultura jurídica italiana a partir

da segunda metade dos anos 70.

Na mesma direção, ainda, ao definir o verbete constitucionalismo , no clássico Dizionario di Politica ,

Nicola Matteucci afirma que o garantismo, cujo principal teórico é Benjamin Constant, acentua o

máximo (em polêmica com Rousseau e com a interpretação jacobina da vontade geral), a exigência de

tutelar, sob o plano constitucional, os direitos fundamentais do indivíduo. Isto é: a liberdade pessoal, a

liberdade de expressão, a liberdade religiosa e, por fim, a inviolabilidade da propriedade privada.

Observa-se, neste contexto, que a consolidação do termo garantismo  é decorrência direta das

atividades e pesquisas científicas desenvolvidas por Luigi Ferrajoli — à época juiz vinculado à

Magistratura Democrática e professor da faculdade de Direito da Universidade de Camerino —, em

especial a partir da publicação, em 1989, de Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale .

Nesta obra, mais precisamente em seu prefácio, Norberto Bobbio observa que a pretensão do autor é

a elaboração daquilo que denomina teoria geral do garantismo  — cuja premissa fundamental é a

antítese que atravessa a história da civilização entre liberdade e poder —, ou melhor, a construção dos

alicerces do Estado de Direito, cujo fundamento e finalidade são a tutela das liberdades do cidadão

frente às várias formas de exercício arbitrário do poder.

7/21/2019 Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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Então, é por isto que Bobbio irá insistir em afirmar que, talvez, o melhor seja falar em diversos graus

de garantismo — e isto fica ainda mais nítido se examinada a realidade do ordenamento jurídico

brasileiro —, visto que, ao fim e ao cabo, trata-se de “um modelo ideal de cuja realidade se pode mais

ou menos aproximar”.

Como se sabe, logo após sua publicação, Diritto e Ragione  ingressou rapidamente na lista das obras

 jurídicas mais importantes do direito contemporâneo, convertendo-se em um verdadeiro clássico do

século XX, de tal maneira que sua leitura certamente se tornou obrigatória para todos os juristas.

Tanto é assim que, com a tradução desta obra — primeiro, em 1995, para o espanhol ( Derecho y

Razón ); e, mais tarde, em 2002, para o português (Direito e Razão ) —, o modelo garantista não só

passou a pertencer, definitivamente, ao léxico jurídico como, também, tornou-se cada vez mais

presente entre os juristas, sobretudo na América Latina.

No Brasil, da mesma maneira como ocorreu na Argentina, na Colômbia e no México, o garantismo foi

importado precisamente durante o período de redemocratização, marcado pela promulgação dasnovas cartas constitucionais e pela imposição de respeito aos direitos e garantias fundamentais dos

indivíduos, sobretudo aqueles de liberdade, contra as arbitrariedades do Estado.

Entretanto, passados mais de 20 anos, a maior parte dos juristas brasileiros ainda insiste em associar

o nome e o pensamento de Ferrajoli, exclusivamente, ao campo do Direito Penal, o que também

resultou na sua depreciação e rotulação por parte dos setores mais conservadores da comunidade

 jurídica. Isto se deve, como se sabe, ao fato de sua primeira grande obra, Diritto e Ragione , tratar da

(in)efetividade das liberdades e garantias dos cidadãos e, ao fazê-lo, utilizar o sistema penal como

exemplo privilegiado para ilustração de suas teses.

Como se sabe, nos últimos anos, dezenas de faculdades e centros de pesquisa assumiram o

garantismo como referencial teórico de seus cursos de graduação e pós-graduação. Centenas de

dissertações de mestrado e teses de doutorado foram defendidas, além da publicação de incontáveis

livros e artigos sobre o tema.

Ocorre que, ao contrário da leitura reducionista que predomina em terrae brasilis , Ferrajoli introduz o

garantismo, apresentando seus três sentidos — (1) como modelo normativo, (2) como teoria do Direito

e (3) como filosofia política —, e em seus livros subsequentes afirma, categoricamente, que seu

trabalho não se limita à esfera do Direito (Processual) Penal, mas se aplica às demais áreas do

conhecimento jurídico igualmente marcadas por uma crise estrutural das garantias que caracterizam oestado de direito.

Tanto é assim que o modelo garantista proposto inicialmente em Diritto e Ragione  alcança sua

formulação máxima, quase 20 anos depois, com a publicação de principal obra: Principia Iuris: Teoria

del Diritto e Della Democracia  — já traduzido para o espanhol —, cuja leitura mostra-se imprescindível

para uma devida compreensão das atuais democracias constitucionais.

Tudo indica, entretanto, que isto ainda não foi devidamente compreendido por grande parte da doutrina

brasileira, que continua a considerá-lo um penalista, desconhecendo a relevância que o garantismo

assume — sobretudo no atual debate jurídico internacional — em relação ao modelo do estadoconstitucional, à concretização dos direitos fundamentais e à própria consolidação dos regimes

democráticos.

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No mês de outubro, Ferrajoli estará novamente no Brasil, desta vez no Rio de Janeiro, onde receberá

o título de Doutor Honoris Causa , na Universidade Gama Filho e promoverá o lançamento de seus

últimos livros, traduzidos para língua portuguesa. Trata-se, sem dúvida, de mais uma oportunidade

para os juristas brasileiros desmi(s)tificarem o garantismo e compreenderem a relevância ao direito

contemporâneo desta teoria formulada por um dos juristas mais importantes da atualidade

! papel do 'enado no controle deconstitucionalidade

Por Rafael Tomaz de Oliveira

Na sessão plenária do dia 16 de maio, o Supremo Tribunal Federal voltou a discutir a questão ligadaao papel desempenhado pelo Senado no âmbito do nosso controle difuso de constitucionalidade. A

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matéria começou a ser discutida ainda em 2007 quando o relator da Reclamação 4.335/AC, o ministro

Gilmar Mendes, exarou o entendimento de que, em face de um número significativo de modificações

(constitucionais, legislativas e doutrinário-jurisprudenciais) impingidas ao nosso sistema de controle de

constitucionalidade, a competência deferida ao Senado pelo artigo 52, inciso X, da Constituição

Federal teria sido submetida a um processo de mutação, trazendo ao tema uma nova conformação

 jurídica que, ao fim e ao cabo, daria às decisões da Corte tomadas em sede de controle difuso deconstitucionalidade, efeitos gerais similares àqueles que são atribuídos às decisões do controle

concentrado de constitucionalidade (artigo 102, parágrafo 2o da CF).

Ainda em 2007, outros três ministros votaram no referido processo. O ministro Eros Grau, já

aposentado, perfilou o entendimento firmado no voto do ministro Gilmar ressaltando que, no caso em

tela, ter-se-ia por manifestada uma mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da CF. Para ele, o

referido dispositivo teria se transmutado pela ação do tempo de modo que onde se lê “compete

privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada

inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, dever-se-ia entender: “Compete

privativamente ao Senado Federal: dar publicidade à decisão definitiva do Supremo Tribunal Federalque declara, no todo ou em parte, inconstitucionalidade de lei”.

Já os ministros Sepúlveda Pertence, também já aposentado, e Joaquim Barbosa divergiram do relator

firmando o entendimento de que a competência constitucional do Senado deveria ser preservada.

Nesses termos, a decisão do Supremo Tribunal tomada em sede de controle difuso de

constitucionalidade deveria continuar a produzir efeitos apenas entre as partes envolvidas no

processo.

Naquela ocasião, o ministro Ricardo Lewandowisk pediu vista do processo, suspendendo o

 julgamento. Na sessão do dia 16 de maio de 2013, o ministro apresentou o seu voto no sentido do quefoi defendido nos votos dos ministros Pertence e Barbosa. Sem embargo dos debates que tiveram

lugar na referida sessão, o julgamento da reclamação 4.335 foi suspenso novamente após novo

pedido de vista, agora do ministro Teori Zavascki.

O tema é complexo e extremamente relevante, uma vez que a decisão a ser tomada pela Corte na

referida reclamação pode alterar radicalmente a conformação do nosso sistema de controle de

constitucionalidade.

Entre 2009 e 2010, coordenei – juntamente com a professora Tayara Talita Lemos – uma pesquisa

realizada a partir de um convênio firmado entre a Faculdade de Direito de Franca e a AcademiaBrasileira de Direito Constitucional (ABDConst) que versava exatamente sobre o dilema enfrentado

pela Reclamação 4.335. Na ocasião, cuidamos de analisar os argumentos esgrimidos num e noutro

sentido. A conclusão de nosso trabalho espelhou, embora com diferentes argumentos, o resultado

apresentado nos votos divergentes.

Naquele momento, existiam dois trabalhos – ricos em pesquisa e densos do ponto de vista teórico –

publicados sobre o tema: o primeiro deles é o texto de Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Martônio

Barreto Lima (para ler, clique aqui). Nesse artigo, os autores apontaram – logo no alvorecer das

discussões – que a tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da CF não poderia prosperar.[1]Isso por um motivo muito claro: quando se fala em alteração informal do texto da constituição (ou

mutação constitucional) está-se a falar em um processo de modificação nos indicativos de sentido que

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se projetam como horizonte a partir do texto. Nos termos defendidos pelos autores, fala-se da alteração

da norma de um texto  e não da alteração do próprio texto . A tese expressada nos votos dos ministros

Gilmar e Eros ultrapassaria, portanto, os limites da jurisdição e avançaria em direção a uma verdadeira

alteração formal do texto da Constituição. O outro texto, igualmente importante, é assinado por Nelson

Nery Jr. e joga luz, depois de acalentada discussão em torno da literatura alemã produzida sobre o

tema da mutação constitucional, nesse mesmo ponto: de que a tese da mutação implicava, naverdade, alteração formal do texto da Constituição, colocando em xeque as bases de um Estado

Constitucional.[2]

É interessante perceber como, em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski, embora chegue a

resultado similar àquele defendido pelos autores dos textos citados, não coloca em claras linhas esse

elemento específico da questão: de que o dilema verificado aqui aparece no momento em que a Corte

se apresenta com a possibilidade de realizar uma alteração formal no texto da Constituição e não uma

simples mutação constitucional. O voto permite induzir tal sentido; dá pistas de que o seu autor

censura uma atividade da jurisdição constitucional que acarrete exercício de competência constituinte.

Todavia, prefere afirmar essas questões a partir de argumentos ligados aos limites interpretativos quea Corte deve obedecer no exercício da mutação constitucional que, certamente, estão implicados no

problema, mas, na forma como colocados pelo ministro, têm o condão de retirar o caráter

absolutamente político que revestiria uma decisão da Corte tomada no sentido de asseverar que o

artigo 52, X, sofreu uma mutação constitucional nos termos defendidos pelos ministros Eros Grau e

Gilmar Mendes.

O argumento do ministro Gilmar é ainda mais denso. Procura ele mostrar como, através de sucessivas

modificações legislativas – tanto no âmbito da reforma da Constituição quanto no âmbito das reformas

na legislação ordinária – agiu o legislador de modo a acompanhar um certo entendimento sedimentado

na jurisprudência da corte no sentido de conferir efeitos ampliados às decisões proferidas pelo

Supremo Tribunal até mesmo em sede de controle difuso de constitucionalidade.[3]

Nesse sentido, afirma que a Lei 8.038/1990, por exemplo, já havia concedido ao relator a faculdade de

negar seguimento a recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado ou

contrário à súmula do STF ou do Superior Tribunal de Justiça (o caso das chamadas súmulas

impeditivas de recurso). Já o Código de Processo Civil, reformado pela Lei 9.756/1998, incorporou

disposição que amplia os efeitos das decisões na medida em que autoriza o relator a dar provimento

ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência

dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de tribunal superior (artigo 557,parágrafo 1o-A do CPC).

Poder-se-ia acrescer, nesse mesmo sentido, a introdução, pela mesma lei, de um parágrafo único ao

artigo 481 do CPC que autoriza aos órgãos fracionários dos tribunais a dispensar a remessa ao

plenário, com a instauração do respectivo incidente de inconstitucionalidade, nos casos de

pronunciamento anterior do próprio tribunal ou do plenário do STF sobre a questão.

Todas essas situações legislativas, entre outros aspectos citados pelo ministro, levariam à necessária

conclusão de que o legislador ordinário se encaminha no sentido de interpretar a Constituição num

sentido que leva à transformação do papel desempenhado pelo senado no controle deconstitucionalidade difuso. Cada vez mais os efeitos das decisões do Supremo Tribunal seriam

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ampliados de modo a transcender os casos nos quais elas são prolatadas (chama-se isso de efeitos

transcendentes das decisões do STF).

Outro ponto lembrado pelo ministro diz respeito à introdução, através da Emenda Constitucional

45/2004, do instituto da Súmula Vinculante, previsto no artigo 103-A da CF. Nesse caso, segundo

Gilmar, a súmula acabará por dotar a declaração de inconstitucionalidade – proferida incidentalmente,

no âmbito do controle difuso – de efeito vinculante. Para a formação das súmulas vinculantes exige-se

reiteradas decisões da corte tomadas em processos subjetivos, no interior dos quais a

inconstitucionalidade é questionada de forma incidental e concreta, bem distinto, portanto, da lógica

que preside o processo objetivo que caracteriza o controle concentrado. Logo, esse fator implicaria,

novamente, transformação do sentido assumido pelo controle difuso de constitucionalidade no direito

brasileiro, levando a uma alteração no significado da competência atribuída pela Constituição ao

Senado Federal.

Sem embargo, continuo entendendo que é insustentável a tese da mutação constitucional do artigo 52,

X, da CF. São igualmente inadequadas à Constituição as teses que seguem o mesmo sentido,colocando outros nomes para a mesma coisa (v.g. objetificação do controle difuso ou abstratalização

do controle difuso).

No caso dos argumentos do ministro penso que é possível colocar, ainda, mais duas objeções:

Em primeiro lugar, existe uma clara tentativa de proceder àquilo que Canotilho chama, a partir Leisner,

de interpretação da Constituição conforme as Leis . Nos termos propostos pelo mestre português: com

essa técnica “insinua-se que o problema da concretização da constituição poderia ser auxiliado pelo

recurso a leis ordinárias. Nestas encontraríamos, algumas vezes, sugestões para a interpretação de

fórmulas condensadas e indeterminadas, utilizadas nos textos constitucionais”.[4]

No caso aqui discutido, a tentativa de levar a cabo uma interpretação da Constituição conforme as leis

me parece evidente. Por isso, faço aqui apenas a reprodução das advertências lançadas pelo mestre

português a tal tentativa de concretização da Constituição: “A interpretação da Constituição conforme

às leis tem merecido sérias reticências à doutrina. Começa a partir da ideia de uma constituição

entendida não só como espaço normativo aberto mas também como campo neutro em que o legislador

iria introduzindo subtilmente alterações. Em segundo lugar, não é a mesma coisa considerar como

parâmetro as normas hierarquicamente superiores da constituição ou as leis infraconstitucionais. Em

terceiro lugar, não deve afastar-se o perigo de a interpretação da constituição de acordo com as leis

ser uma interpretação inconstitucional, quer porque o sentido das leis passadas ganhou um significadocompletamente diferente na constituição, quer porque as leis novas podem elas próprias ter

introduzido alterações de sentido inconstitucionais. Teríamos, assim, a legalidade da constituição a

sobrepor-se à constitucionalidade da lei”.[5]

O caso das Súmulas Vinculantes é um capítulo à parte. De todo modo, o argumento corre contra a

tese e não a favor. Encarando de um modo mais crítico o instituto – e não o ter como um dado

dogmático e indiscutível apenas – a questão que se apresenta é outra: o caráter absolutamente

estranho à nossa tradição ou família jurídica. A súmula não serve para apoiar a interpretação que

defende a mutação do artigo 52, X, da CF porque, a rigor, ela mesma seria inconstitucional.

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Os institutos jurídicos têm história. No caso do controle difuso, seu nascimento está indissociavelmente

ligado ao direito estadunidense e à construção da judicial review . Como bem assinala Georges

Abboud, por lá a decisão da Suprema Corte não tem o condão de revogar um ato do Congresso.

[6] “Apenas Lei revoga Lei”, diz ele. No controle concentrado, de origem europeia/kelseniana, temos o

inverso: a decisão do tribunal funciona como contra-lei . Tanto que Kelsen referia-se ao Tribunal

Constitucional como um legislador negativo.

Os contornos teóricos e estruturais que conformam a Suprema Corte e os Tribunais Constitucionais

europeus estão separados pelo Oceano Atlântico. A impressão que se tem, às vezes, é de que parte

de nossa doutrina constitucional quer suprimir essa distância, criando um sistema que promoveria uma

espécie de síntese dos dois modelos. As consequências disso não são apenas jurídicas, mas, acima

de tudo, políticas. Nos próximos episódios de votação da Reclamação 4.335, o plenário do Supremo

Tribunal terá que dizer qual é o papel do Senado no âmbito de nosso controle difuso de

constitucionalidade. Terá que dizer se ele desempenha um efetivo papel como ator político ou se, ao

contrário, a competência que lhe é reservada pela Constituição representa uma simples “folha de

papel”. Aguardemos!

[1] Sobre o tema, Cf. também STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso . 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011,

em especial a introdução.

[2] Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Anotações sobre mutação constitucional – Alteração da Constituição sem

modificação do texto, decisionismo e Verfassungsstaat ”.In: Direitos Fundamentais e Estado Constitucional .

Ingo Wolfgang Sarlet e George Salomão Leite (org.) São Pao: Revista dos Tribunais, 2009, p.94.

[3] Tais argumentos aparecem expostos, também, na obra escrita em co-autoria com Paulo Gonet

BrancoCurso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, em especial pp. 1201 e segs.

[4] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7 ed. Coimbra: Almedina, p.

1234.

[5] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7 ed. Coimbra: Almedina, p.

1234.

[6] Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais . São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2011, passim 

! realismo ou uando tudo pode serinconstitucional*

7/21/2019 Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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Por Lenio Luiz Streck

Nos Estados Unidos... e não aqui, é claro

Esse primeiro subtítulo da coluna é para completar o título acima e tranquilizar os leitores, no sentido

de que o que tratarei é de outro sistema jurídico e de outra realidade. Nada a ver com o Brasil,

portanto.

Aprenda se divertindo

Meu amigo Dierle Nunes, professor da UFMG, mandou um vídeo que os alunos legendaram. Todos

conhecem o desenho animado Pinky e Cérebro. O vídeo escolhido pelos alunos é um episódio em

alemão. Claro que a legenda não corresponde à fala. Mas ficou muito engraçado e mostra a corrente

 jusfilosófica chamada “realismo jurídico”. Portanto, aprenda se divertindo. Não leia o resto da coluna

sem ver o vídeo.

Então, o que é esse “realismo jurídico”?

Visto o vídeo, vamos à lição. Primeiro, o realismo jurídico não tem nada a ver com o realismo filosófico,

que é a concepção objetivista do mundo (sobre isso, por falta de espaço na coluna, ver

meu Hermenêutica Jurídica em Crise ).

Conforme explico em meu Verdade e Consenso, realismo e pragmati(ci)smo são irmãos siameses. As

primeiras manifestações pragmaticistas no Direito podem ser encontradas no realismo escandinavo

(Alf Ross, Olivecrona) e norte-americano (Wendell, Pound e Cardozo), daí a “semelhança” entre as

duas posturas sobre o direito (realismo jurídico e pragmatismo). Para os adeptos do pragmatismo, não

se deve conferir “autoridade última a uma teoria, já que o objetivo crítico de raciocinar teoricamente

não é chegar a abstrações praticáveis, mas, sim, explicitar pressuposições tácitas quando elas estão

causando problemas práticos. Para o pragmatismo jurídico, teorias éticas ou morais operam sobre aformulação do Direito, mas, na maior parte das vezes (ou, ao menos, frequentemente), a porção mais

importante de uma legislação é a previsão ‘exceto em caso em que fatores preponderantes

prescrevam o contrário’”[1]. Contemporaneamente, o pragmatismo pode ser identificado sob vários

matizes, como a análise econômica do direito, de Richard Posner, nos Critical legal studies e nas

diversas posturas que colocam na subjetividade do juiz o locus de tensão da legitimidade do direito

(protagonismo judicial). O pragmatismo pode ser considerado uma teoria ou postura que aposta em

um constante “estado de exceção hermenêutico” para o direito; o juiz é o protagonista, que “resolverá”

os casos a partir de raciocínios e argumentos finalísticos. Trata-se, pois, de uma tese

anti-hermenêutica e que coloca em segundo plano a produção democrática do direito. No Brasil, o

direito alternativo tinha raízes realistas. Nas práticas judiciárias, não é difícil encontrar uma série de

manifestações realistas.

O jusfilósofo espanhol Garcia Figueroa é contundente, ao dizer que “na atualidade, parece haver uma

espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o

realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo

psicológico. E isso acontece porque os juristas — em especial os juízes — descreem da capacidade

 justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante das normas, pois a considera “puro papel

até que se demonstre o contrário”. Assim, a vida do direito é “experiência”. Por isso, direito passa ser

aquilo que os juízes dizem que é”.[2]

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Desse modo, quando você ouve alguém dizer que “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais- dizem-que-é”,

bingo! Está diante de uma postura realista (ou de uma Pantoffel theses  do realismo). Compreendeu?

Por isso, a estorinha do Pinky e do Cérebro retrata um pouco dessa velha corrente que — mesmo em

tempos de intersubjetividade — ainda aposta no ceticismo em relação às normas e em raciocínios

decorrentes de processos psicológicos.

No fundo, as posturas realistas e suas congêneres — lembremos que Posner é uma pragmati(ci)sta,

que mata a sede no realismo — desconfiam da malta que vota. Desconfia das Instituições, a não ser a

mais imaculada: o Judiciário. Por isso, o realismo (e seus genéricos) é também chamado de

positivismo fático. Para quem gosta de estudar os mistérios do positivismo, saiba logo — e tenho

insistido muito nisso — que positivista não é apenas o do velho formalismo (exegético-legalista). É

muito mais do que isso. Enfim...

Direito é aquilo que os tribunais dizem que é?

Claro que, quando penso nos Estados Unidos — e é só lá que isso pode(ria) acontecer, pois não? —

lembro logo do caso Dred Scott v. Stanford e nas decisões da US Supreme Court  dos anos 20 (claroque há outros julgamentos “do bem”... por assim dizer).

Paro por aqui. De fato, realismo jurídico e essas coisas do tipo “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais-

dizem-que-é” são coisas dos outros. Como dizia Sartre, o inferno são os outros. Dos americanos. E

quiçá das Antilhas Holandesas ou Guiné Bissau... Por aqui, nos trópicos, não se fazem dessas

coisas... Longe disso. Se bem que, há poucos dias, o ministro Roberto Barroso, do Supremo Federal

em entrevista à Folha de S.Paulo , a propósito do julgamento da ADI 4.650-DF, que trata das doações

em campanhas eleitorais, que “(...) a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo

gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. (...) Está ruim, não está funcionando, nós temos

que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar”.

Se não estou enganado, a expressão “a gente” significa “o Poder Judiciário”, estou certo? Estaríamos,

então, dando razão à dupla Pinky e Cérebro, do desenho animado? Pode o Judiciário empurrar a

história? O dr. Cérebro, do desenho, acha que sim. Mas, permito-me insistir na pergunta: Pode

empurrar a história mesmo quando a Constituição-não-diz-o-que-o-Judiciário-diz-o-que-ela-diz?

Como sou desconfiado — afinal, penso que essas coisas só acontecem nos outros países — vou atrás

das notícias. Encontrei o Informativo 732 do STF, no qual o relator (ministro Luiz Fux) da citada ADI

4.650-DF “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por

pessoas naturais baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre osparticipantes nesse processo político”.

Vejam: o relator disse ser inconstitucional o modelo de campanhas eleitorais. Na sequencia,

acrescentou que “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem

oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate e que a excessiva participação

do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política

entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo”.

Ainda, por fim, “recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de

financiamento de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes

parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por

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pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de

oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a atividade

legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos; e c) em caso de não

elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a

competência para regular, em bases excepcionais, a matéria”.

Pronto. Faltou apenas acrescentar: tudo sob pena de chicoteamento... Fico pensando com meus

botões já desgastados de tanto com eles pensar: Será que entendi bem? Ora, não preciso ser a favor

ou contra o financiamento feito por empresas para entender o que está acontecendo. Por via das

dúvidas, deixo claro que sou contra a doação por parte das empresas.

Mas, por favor, como lido com a Constituição e sou obrigado a defendê-la, tenho de me perguntar: a

Constituição estabelece um (outro) modelo de financiamento de campanhas eleitorais? É assim tão

fácil apontar onde está a parametricidade constitucional que sustenta as afirmações dos votos dos

quatro ministros (relator e mais três) que votaram por essa inconstitucionalidade?[3] Há um porção de

coisas das quais não gosto, mas daí a serem inconstitucionais no sentido daquilo que se entende porparametricidade, vai um zilhão de quilômetros de distância.

E desde quando o STF declara inconstitucionais “modelos” de alguma coisa? De forma moralista, ele

faz a escolha pelo povo e em lugar do povo? O Parlamento serve para o quê? Alguém dirá: mas neste

caso o STF está acertando... então por que você está criticando? Respondo: as questões

(in)constitucionais não estão a disposição do STF. E um relógio parado também acerta a hora duas

vezes por dia, pois não?

E desde quando o STF manda o Congresso fazer uma lei estipulando as condições e requisitos, se a

própria Constituição, parâmetro maior para qualquer julgamento, nada fala a respeito? Além doproblema da difusa e discutível parametricidade, o estabelecimento de prazo somente teria sentido se

o STF dissesse — de forma fundamentada — estar em face de uma Appellentscheidung. Vou tentar

explicar isso melhor: uma coisa é fazer uma Appellentscheidung  (apelo ao legislador), que ocorre

quando a Constituição determina algo, o Congresso não faz e a Corte Constitucional exorta a que o

Parlamento faça a regulamentação em um prazo razoável para que aquela situação não se converta

em uma inconstitucionalidade. Para ser mais claro: o apelo ao legislador (Appellentscheidung) só

ocorre quando a Corte reconhece que a lei ou a situação jurídica não se tornou ainda inconstitucional.

Então, faz a exortação. Em outras situações, o Tribunal restringe-se a constatar a

inconstitucionalidade, sem, no entanto, declará-la. No caso da ADI essa, nem de longe se está em face

da possibilidade de uma Appellentscheidung. Em verdade, parece-me que o STF simplesmente está

não só legislando como também dizendo como o Congresso deverá fazer no futuro. Mas, ínsito: onde

está a concreta situação que propicia(ria) o/um apelo ao legislador?

Não preciso pesquisar muito sobre a tal falta de parametricidade. Para tanto, valho-me dos exatos

termos da declaração de um dos quatro ministros do STF que já votaram na ADI 4.650, o ministro

Roberto Barroso: "Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação [a

campanhas eleitorais] por empresa".

Não, os leitores não leram errado. Ele disse isso mesmo. Mas, então, perguntaria o Pinky da estorinha,ele votou contra a ADI 4.650-DF? Não, meu caro Pinky. Não, meus caros leitores. Ele votou a favor.

Então, digo eu, com o meu bilhete aéreo de ida na mão para ir aos Isteites  conhecer o tal “realismo

7/21/2019 Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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 jurídico”: se ela — a inconstitucionalidade — não existe... então... ela não existe. Questão de sintaxe e

de semântica. Podem as doações ser ruins, inadequadas, aéticas, imorais, etc, etc (e mais um etc!). E

o são. Mas, a pergunta que a Suprema Corte de terrae brasilis  (e não a dosIsteites ) deve responder é

tão-somente essa: são elas, as doações, inconstitucionais? Podem ser ruins, mas...inconstitucionais?

Aliás, as palavras não são minhas, são do próprio ministro Barroso, que-não-considera-

inconstitucional-em-toda-e-qualquer-hipótese a doação a campanhas eleitorais por empresa. Vejam:em-toda-e-qualquer-hipótese.

Observação: por certo, alguém dirá que o Supremo invocou princípios e que, afinal, o direito é um

sistema de regras e princípios. Correto. Mas, é possível extrair do princípio republicano um modelo de

financiamento de campanha? E essa “extração de sentido” se faz agora, depois de tantas eleições?

Nas anteriores o modelo valeu? Eu poderia discutir a questão se o princípio invocado fosse o da

igualdade. Afinal, a igualdade de participação no processo eleitoral não está a disposição das maiorias

políticas, porque essa questão está no núcleo do regime democrático. Mas não foi nessa linha que os

quatro votos trilharam. Mas esse seria apenas o começo da discussão... Dizendo de outro modo: uma

coisa é declarar inconstitucional determino dispositivo por ferir, na especificidade, a igualdade (ou outroprincípio); outra coisa é dizer que todo o modelo conformado por tais dispositivos é inconstitucional; e

outra coisa ainda é o STF se transformar em legislador positivo.

Mas, enfim, peço desculpas, porque desviei da rota. Estava falando das mazelas do realismo jurídico

dos Estados Unidos e do ativismo de lá.[4] Mania que eu tenho de misturar os assuntos. Deve ser o

final do ano. Cansado, dá tilt  no meu sistema...

Ainda bem que o Brasil...

...está imune ao realismo jurídico, aos ativismos, decisionismos e coisas desse gênero. Todos

sabemos disso. Por aqui tudo vai bem. Todos os julgamentos são feitos com base em critérios. Não hárisco de uso abusivo de princípios (pamprincipiologismo). Em terrae brasilis  não

hápanconstitucionalismo , variante perigosa do pamprincipilogismo.[5] Por aqui não se faz uso de

argumentos metajurídicos. Vou me mudar para os Isteites . Só para ver como funciona esse tal de

realismo, já que, como no livro de Alan Riding (Paris, a Festa Continuou), por aqui Tout va très bien

dans le monde juridique  (“tudo vai bem no mundo jurídico”, que adaptei da frase original “Tudo vai

bem, Madame La Marquise”). Como vou para os Isteites  ver o realismo — que aqui não tem — desejo

a todos um Happy New Year  (já estou treinando)!

PS 1: na bagagem, dois barões: O de Itararé e o de Charles-Louis de

Secondat, barão  deMontesquieu. Foi ele que teve a infeliz ideia de fazer divisão de funções nos e dos

Poderes.

PS 2: diz-se por aí, à meia-boca, que a OAB, animada com o resultado parcial da ADI 4.650, vai

ingressar com nova ação,[6] desta vez contra o sistema de partidos e o modelo de presidencialismo de

coalizão. Afinal, por ele — o presidencialismo — ser de “coalizão”, pode estar violando vários

princípios da Constituição. Logo, é inconstitucional (afinal, está abolida a exigência de parametricidade,

porque, por certo, a Constituição é uma ordem concreta de valores[7]  — veja-se, aí, o parentesco do

realismo com a Wertungsjurisprudenz — a tal jurisprudência dos valores). Consequentemente, o

próprio mandato da presidenta pode ser nulo. E também todos os seus atos. De todo modo, caberámodulação de efeitos...[8]

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PS 3: para quem não entendeu o que escrevi, vai um resumo para Twitter em 123 caracteres: Na

democracia, o Judiciário, inclusive o STF, não pode tudo. Tem limites. Caso contrário, esta(re)mos em

uma juristocracia.

Ainda numa palavra,

... e falando muito sério, penso que é dever do STF, no exercício da jurisdição constitucional, garantir a

igualdade de chances no processo eleitoral. E que, para isso, deve levar em consideração a

desigualdade em termos de poder econômico (e também político-administrativo!). Entretanto, não

concordo que o STF deva fazer isso em termos paternalísticos. Para mim, o STF deve dizer que

condições de financiamento na atual legislação não  garantem a igualdade de participação, ao invés de

querer impor um sistema específico de financiamento ao legislativo, apenas para que esse o

regulamente, sob pena de que, se não o fizer em 24 meses, a Justiça Eleitoral deverá fazê-lo. Esse é o

ponto que fragiliza a decisão do STF até aqui. O STF não pode estabelecer "o" sistema de

financiamento de campanha, optando por um modelo específico de financiamento, em substituição ao

Congresso. Mas penso que o STF pode e deve declarar inconstitucionais pontos específicos da

legislação vigente em matéria de financiamento de campanha, caso esses pontos não sejamcompatíveis com a igualdade de participação política. Mas, haja, aqui, fundamentação. E

fundamentação da fundamentação.

Todavia, em que perspectiva? Isto para mim é chave: o STF não pode dizer qual é "único" sistema que

garanta a igualdade (se público, privado ou misto), mas quais pontos do sistema já vigente, seja ele

público, privado ou misto, não garante a igualdade política. O problema é como o STF se vê, por um

lado, como "legislador positivo" (concorrente ou subsidiário), já definindo qual sistema de

financiamento garante a igualdade (o público, por exemplo) ou, mais especificamente para o caso da

ADI 4.650, como o STF compreende o tal instituto do "apelo ao legislador" (predefinindo não apenas

os prazos — 24 meses — para o legislativo legislar, mas predefinindo parâmetros dentro dos quais o

legislador deve legislar), enfim, o modo com que o STF aplica a discutível Lei 9.868/1999. O

interessante é que o tal “apelo” nem foi discutido até o momento.

Numa palavra: em uma democracia constitucional, são os próprios cidadãos, mediante seus

representantes políticos ou diretamente, quem tem o direito de definir o que consideram relevante do

ponto de vista da igualdade e da desigualdade, sobre o pano de fundo de uma história política de

aprendizado constitucional vivido com a experiência da violação da igualdade, que não deve admitir

retrocessos, embora eles possam acontecer.

Se o sistema deve ser só público ou não, e mesmo assim qual deve ser esse sistema público, penso

que isso deve ser decidido "politicamente", obviamente dentro de parâmetros constitucionais que

levem coerentemente os direitos políticos a sério, pelo Poder Legislativo, mediante debate público

mais amplo.

Se permitirmos que o STF “regulamente” isso, estaremos dando uma carta branca a um Poder que

não foi eleito para isso. Não confundamos demo-cracia com juristo-cracia.

[1] Cf. Eisenberg, José. Pragmatismo jurídico. In: Barretto, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de

filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, pp. 656-657.[2][2] Cf. García Figueroa, Alfonso. A motivação. Conceitos fundamentais. In: Moreira, Eduardo Ribeiro

(Org). Argumentação e Estado Constitucional . São Paulo: Ícone, 2012, pp. 433 e segs.

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[3] Essa crítica é muito bem feita por José Levi do Amaral, aqui na Conjur (leia aqui) e por Rafael

Tomaz de Oliveira (leia aqui).

[4] Advertência: há sempre um estagiário comigo, com uma placa que é erguida quando falo

determinada coisa. Neste caso, a placa levantada é “sarcasmo”.

[5] Como já havia inventado a expressão “pamprincipiologismo”, estou cunhando, agora, a expressão

“pamconstitucionalismo”, que significa... “pamconstitucionalismo”.[6] Nunca se esqueça, em nenhum minuto, do estagiário que me acompanha... Qual a placa os leitores

acham que ele levantou, neste momento?

[7] Outra placa dizendo “ironia”.

[8] Outra placa!

+, facadas e morreu envenenada- ! .atal e a

prova da !A/Por Lenio Luiz Streck

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Natal é época em que se reúnem parentes chatos e não chatos, advogados e não advogados, juízes e

não juízes, promotores e não promotores, estudantes de qualquer coisa e o sobrinho que está fazendo

a “escola” (que deve ser a dos juízes, do MP, da OAB ou algo assim, mas ele diz, com a boca cheia de

panetone: “a escola”).

É tempo de discussões. O parente juiz conta como mandou o advogado se calar na audiência do dia

anterior. Já o juiz dos juizados especiais relata como o juiz leigo coloca a malta em um corredor

polonês. E acha engraçado. Todos riem. Menos um tio, que, lá do fundo, pragueja, dizendo que teve

que ir no “foro” só para ouvir a Companhia Telefônica, que lhe passou a perna, dizer que não fazia

acordo. Antes disso, teve que ouvir o meirinho gritar: “Quem quer fazer acordo, fique à minha direita;

quem não quer, à minha esquerda”. Aliás, desconfio de que a cultura da conciliação termina sendo,

para as concessionárias de serviços públicos e as grandes corporações, a obliteração da prévia

efetivação de direitos coletivos. Paradoxalmente, os maiores violadores são, também, os maiores

conciliadores... Bingo! Eis o paradoxo!

O parente promotor de justiça conta que, quando não vai à audiência, o juiz “faz tudo por ele”. Hácasos em que “nem pedi a condenação e o juiz assim mesmo tascou uma pena dura no meliante”.

Quieto em meu canto, pergunto-me: Será que um juiz que age assim faz tudo pela Constituição? Ou

melhor dizendo, o que ele faz da Constituição? A velha tia diz: “ meu filho, esse juiz é dos bons, não?

Tem de dar duro nessa gente”. E o velho tio, já na terceira dose, pergunta: “mas você concorda com

isso? Quem é o promotor? Você ou o juiz?”. E o sobrinho promotor responde: “meu tio, tem uma coisa

que você não conhece, chamada verdade real... Com ela, tudo se resolve”. E assim a conversa vai

fluindo, na véspera da comemoração da chegada do Papai Noel. Deixei de acreditar em Papai Noel

aos sete anos. Mas tem muito adulto por aí ainda acreditando na “verdade real”. Mas se a fantástica

história de Papai Noel culmina em inocentes presentes, a única verdade da “verdade real” está nos

abusos que causa ao Estado Democrático de Direito.

Outro advogado da família fala das agruras do processo eletrônico. Não se sabe se o processo foi

enviado “via sistema”. Em tempos de Natal, imagino a virtualização como o rebento que nasceu para

ser uma espécie de Messias da prática forense —o salvador de um Judiciário que não dá conta da

demanda — mas que nunca chega. Pelo contrário, o “sistema” não avisa. Tem de pegar o carro e ir ao

tribunal para verificar. Assim, o sistema é virtual, mas as dificuldades continuam bem reais...

Realíssimas. O CNJ legisla. Para além do CPC. Para além da CLT. Para além da Constituição. Pelo

desespero, parece ser o único sujeito sensato da festa.

E a conversa muda de rumo. Acabara de chegar a sobrinha gordinha, que chumbou em concurso para

defensoria pública em Estado vizinho. Ficou por uma questão, que indagava se se transformar, por

intermédio de operação plástica, em lagarto, com dinheiro do SUS, era um direito fundamental...

Coitada. Respondeu que não. Perdeu! Cansada, traz uma sacola cheia de livros. Chega a estar com

um ombro mais baixo que o outro. Mesmo na noite de Natal, diz que continuará a estudar, porque está

inscrita para o concurso da AGU, MPU, TCU, CGU... Ela até já fez o cursinho de um professor (fácil de

achar no Youtube) que ensina como se deve estudar direito para concursos. Começa confessando que

chumbou em 20 concursos. E só depois passou. Hum, hum. Na verdade, com tantos concursos

chumbados, deve ter passado por usucapião... Mas, enfim, lá vem a gordinha. Coloca em uma

mesinha o seu material de batalha: manuais, manuaizinhos, resumos, resumões, resumosplastificados, direitos facilitados, simplificados e a grande inovação: direito em rimas... Ela acabou de

comprar. Sim, direito ri-ma-dôo! Direito penal é lê-e-gal. Penso, rimando: afinal, qual é

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obusílis  de terrae brasilis ? Tem chance de dar certo? Muita flambagem. Como o personagem

estudante de chinês do livro Reprodução , de Bernardo Carvalho, ela, a sobrinha, fala sobre o direito

por intermédio de drops , siglas, palavras-chaves. Não há espaço para a reflexão. Só flexão. Ajoelhar-

se diante dos pretensos doutrina-dores, que não fazem mais do repetir lugares comuns e chavões,

tudo com a profundidade dos calcares de uma formiga anã. Ela parece um ser de outro mundo.

Incrível: os concurseiros criaram uma novilíngua. Como em 1984, do G. Orwell. Ela lê o mundo porintermédio desse material. Some-se a isso os blogs, como o do concurseiro solitário (sic), com dicas

“valiosas”, como a de não ler grandes doutrinas e se dedicar às apostilas, além de material do “ponto

de concursos” (que deve ser sei-lá-o-que-de-concursos). Tem também os blogs com música de

concurseiro, para decorar o Direito. E, para não esquecer, repito: tem também agora o direito rimado.

Penso comigo: o mundo vai acabar. Sem chance. Meu bunker está pronto. Só falta cavar o fosso e

colocar os jacarés. E vou estocar comida.

Um pouco atrasado, chega outro convidado, um magistrado de tribunal de segunda instância. Diz-se

um pragmático. Não gosta de ler. Diz que “Direito é bom senso” (o dele, é claro). Só faltou dizer o

clássico chavão do solipsista: o de que “sentença vem de sentire ”. E eu, o que sinto? Sinto muito,Constituição... Para ele, qualquer coisa que ultrapasse cinco linhas é filigrana e firula. É idealizador do

projeto sentença 60 linhas ou algo desse quilate (incluindo a assinatura, é claro). Seu sonho é dar

sentenças via Twitter, intimando da mesma forma ou pelo Facebook. Idolatra Richard Posner, o rei dos

pragmatistas. Posner é um Deus, ele diz, mascando três nozes ao mesmo tempo e golejando um

espumante (já) com pouca perlaje. Claro, não conhece o Posner envergonhado do The crisis of

capitalist democracy — no qual reconheceu (depois do fiasco de 2008) suas falhas em imaginar um

mercado autorregulável — e nem o abandono da maximização da riqueza como fundamento eficiente

do Direito.

Junto com ele veio outro, da área cível. Julga causas de dano moral. Conta que julga as causas de

acordo com a cara do “freguês”. Diz que apurou com o tempo o seu “sentirômetro” (sentença não vem

de “sentire”?). O pragmático lhe dá um tapa nas costas, do tipo “esse é o cara”. “Ele bota o olho e já

sabe...”. Fico pensando, cá com minhas pestanas: foi para isso que fizemos a Constituição? E, para

homenagear (de novo) o direito rimado: qual será o busílis  de terrae brasilis ?

Também foi convidado um professor que dá aula em mestrado e doutorado. Publica dezenas de

coletâneas de livros por ano. Tudo eletrônico, porque é a pós-modernidade. Custa R$ 10 a página. Os

alunos é que pagam. Ele é o “cara das publicações”. Ninguém lê esses “livros”. Nem se sabe se o

professor leu o que os alunos escreveram e ele colocou seu nome junto. Mas ele tem muitaspublicações. Dezenas. Portanto, ele fala “de cadeira”. Desde logo, alia-se na discussão entabulada

pelo magistrado pragmatista sobre a efetividade da justiça. “A culpa da morosidade da Justiça é da

falta de gestão. Falta pós-graduação em gestão”. Para ele, o juiz não é mais do que o gerente de uma

sucursal judiciária. E já se juntam em um canto, para propor uma especialização em gestão. Eles

adoram isso. Penso com meus botões: Esse papo está me dando é indigestão... Onde está meu vidro

de Olina, aquele composto de ervas bem gaúcho? Enquanto isso, olho para o tio, aquele: já está

roncando baixinho num canto da sala.

Há também o mais novo namorado da mais velha filha do dono da casa. O tipo é metido a filósofo. Na

verdade, apresenta-se como sendo “o filósofo da família”. De fato, cursou dois ou três semestres dafaculdade de Filosofia, mas, vá lá. Começa a falar em um bolinho de gente. Ele fala cuspindo restos de

panetone. Em pouco tempo, fica-se sabendo que a filosofia de Heidegger é “nazista”, que Gadamer

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“não escreveu nada de útil sobre o Direito” e que Habermas “não é um filósofo”. Também, que, “na

Alemanha, ninguém lê essa gente”. O sujeito tem uma unha enorme: “Não há como levar Dworkin a

sério”, diz, também, misturando gravidade e um ar blasé em doses equilibradas. Hum, hum. Sei. Quem

presta, então? Ah, ninguém que eu conheça, claro! Sua dica? “Que os juristas estudem... Direito.” E

que deixemos a filosofia para quem manja do riscado, como... ele. Chega o garçom e salva a festa. Eu

estava pronto para pegar-lhe pelo pescoço. Mais uma dose? Claro, claro...

Outro professor na festa. Escreveu até hoje um fonograma e um texto em um site jurídico. Não

conhece os conceitos da filosofia no Direito e se mete “de pato a ganso”. Não consegue escrever duas

frases sem citar um autor... americano. Para ele, o Brasil é ruim. Aqui nada se produz. Sofre da

síndrome de caramuru. E do complexo de vira-lata. Junto com ele veio para a festa outro jurista...

Também não gosta do Brasil. Quando alguém escreve algo, diz: “não é por aí...”. Mesmo que muitos

nativos já tenham escrito sobre determinado assunto, ele faz um texto “grau zero”. De todo modo, eles

não se enturmam na festa. Ficam sozinhos, se auto louvando. Traço comum dos dois e tantos desse

 jaez: sempre estudando e viajando às custas da Viúva.

Ah, também veio um estagiário, que trabalha em uma Câmara de Tribunal. Diz, de boca cheia: “na

nossa Câmara, decidimos desse modo... e blá, blá, blá”. “Faço dez acórdãos por semana”, acrescenta,

orgulhoso. “Somos uma Câmara dura em Direito Penal... Não adianta o advogado vir com muita

churumela. Advogado que argumenta muito, enchendo linguiça com princípios, teorias etc., não tem

argumento. Ou ele cita os clássicos ou nem lemos...” (os clássicos que ele cita vocês já imaginam). E o

tio, que acabara de acordar, pergunta: “nossa Câmara? Nós quem cara pálida?” Ouço aquilo e ligo

para o meu fornecedor de jacarés: vou dobrar o número de  Melanosuchus niger do fosso do meu

bunker. Melhor me prevenir. Com um bom estoque de comida. E discos do Frank Sinatra.

Quem está faltando na festa? O professor de universidade pública, presidente de banca de concursono qual os membros externos se negaram a assinar a ata. Já na chegada, um sobrinho, estudante de

Direito, dá-lhe de presente um livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder . Começa um bate-boca.

Os contendores são retirados para a biblioteca da casa,de mala e cuia. Ô noite de Natal agitada.

Logo depois chegou o primo em segundo grau do tio do dono da casa. Ele é professor de Direito (mais

um; afinal, quem não é?). Ele é daquelas figuras que aparecem nos programas de TV com gel no

cabelo e sapatos grandes, bicudos, com iPad na mão, ensinando “coisas geniais” como agressão atual

é a que está a-com-te-cen-do. Também dá aula sobre a complexa matéria chamada “direito de

vizinhança”. Mas também já falou em Direito Marítimo. Esse não era ele? Sei lá. Todos são tão

parecidos... Sabe(m) tudo, ele(s). Professor Totalflex. É amigão do pragmatista. Odeia que se fale em

teoria, porque, para ele, na prática a teoria é outra. Gênio(s) da raça. É autor e coautor de literatura

fofinha, flambada, dúctil, simplificatio-facilitatio . Nem tem tempo para começar a falar, porque o peru já

está sendo servido. Alvíssaras. Finalmente o peru.

Ainda no meio da ceia chegou um professor que fez parte da banca que elaborou a última prova da

OAB. Logo foi indagado por um recém bacharel acerca da questão 11, que perquiria sobre o

utilitarismo. Eu, escutando, fico meditando, entre um gole e outro de John[1] Daniels... Quem teria sido

o gênio que fez essa pergunta? Antifundacionalismo? Que coisa mais “brega”, filosoficamente falando.

O utilitarismo era antifundacionalista? Sim? E daí? Para a prova da OAB? Hum, hum. E a perguntasobre o estupro (59)? Bráulio (que nome mais cri-a-ti-vo, não? Vejam no Google os “bons tempos do

Bráulio” — ver aqui ) encontra moça em show de rock. Pratica sexo com ela, de forma consentida.

7/21/2019 Lenio Luiz Streck - A Verdade Das Mentiras e as Mentiras Da Verdade

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Depois se descobre que ela tinha 13 anos... Ai, ai, ai. Céus. Onde estão meus jacarés? Pego meu

celular. “Alô? Mande-me mais seis, agora da espécie Crocodylus niloticus  e mais seis da

'marca' Crocodylus acutus .” Melhor ainda foi a questão 63: Paula desfere 16 facadas no peito de

Maria... Esta morre duas horas depois. E se descobre que foi por envenenamento, porque tinha

tendências suicidas. Parem as máquinas! Rufem os tambores! Pausa para que eu me role de rir.

Farfalhar. Tomo dois goles de Olina. Agora, ligo para o meu fornecedor de óleo quente. Sim, além dos jacarés e crocodilos, colocarei tinas de óleo fervente para me proteger contra a barbárie. Paro por aqui.

É Natal, batem os sinos... E o réu não se ajuda.

Os presentes que Papai Noel trouxe

Ho! Ho! Ho! Chega Papai Noel, finalmente, com um saco de livros (reais e imaginários) para distribuir.

Para o sobrinho juiz, dois livros: o Círculo de Giz Caucasiano , de Brecht e o recém lançado, em

alemão: Warum sollte Ich nicht autoritärsein (a versão em espanhol parece que é Las razones por las

que no debo ser un déspota ) do professor Fritz Selbstsüchtiger, da Universidade de Hinterden Hügeln).

Para o promotor, dois livros: Como cumprir seu dever , de L. L. Sohannson e um sobre a verdade: As

mentiras da verdade , de Llosa. Para o sobrinho que está fazendo a “Escola”, Machado de Assis (oscontos A Teoria do Medalhão , no qual o pai Janjão ensina ao filho como se tornar um medalhão,

exatamente porque o filho sofre de inópia mental e o conto Ideias de Canário ).

Para o professor (o do concurso e da ata), dois livros: a Nau dos Insensatos  e o recém

lançado Whyshould not behave this way more , do professor Puller Ears, da University of Redneck,

campus Behindthe Hills (lembremos que alguém já lhe dera o do Faoro). Para o professor de pós, os

livrosComo se Faz uma Tese  (do Eco) e Publish or Perish , do professor holandês radicado nos EUA,

Heeft Weinig, da University of Larceny, publicado pela PublisherBehindBackyard.

Para o advogado irritado com o processo eletrônico, vai minha solidariedade. Do Papai Noel elerecebeu o livro O Otimista , de Voltaire. Já para a sobrinha gordinha, além de Reprodução  (B.

Carvalho), o lançamento em alemão Warum sollte „Recht für Dummies“ nicht lesen  (em português, a

versão é Porque não devo ler “direito para ingênuos ou bobos” , publicada pela Editora Fondo di Casa).

Para o magistrado de segundo grau (o do “bom senso” e pragmatista), o livro do Dworkin (A Justiça de

Toga) em que ele assim qualifica Posner: " Um juiz preguiçoso, que escreve um livro antes do café-da-

manhã, decide vários casos antes do meio-dia, passa a tarde dando aulas na Faculdade de Direito de

Chicago e faz cirurgia do cérebro depois do jantar". Para o colega dele, aquele do “dano moral no

olhômetro”, Santa Claus dá o livro O Idiota , de Dostoyevsky, com comentários do professor Nicht

Nutzlos, da Faculdade de Scheizwald. E também um exemplar do livro O que é Isto – DecidoConforme Minha Consciência .

Para o sobrinho neo-proto-filósofo, Papai Noel dá o livro El Curioso Impertinente , de Cervantes. E

outro, recém lançado, chamado Wie Philosophen kann langweilig sein , da Faculdade

deRammenschnitzel (a versão em espanhol é Cómo filósofos puedem ser aburridos, da Editora Fondo

de la Casa, subsidiária da Editora Fondo di Casa). Também leva o livro Como Falar dos Livros que

Não Lemos , de Pierre Bayard. Para a dupla que ficou em um canto (os que sofrem da síndrome de

caramuru), Pai Natal dá dois livros: What is this - the academic silipsismo  do professor Kleinnefuss

Großen Nagel, radicado nos EUA (a versão em português é O que é isto – o solipsismo acadêmico , da

Editora Fondo Di Casa (é italiana, recém instalada em Pindorama); e um em alemão: Wenn Sieaus

dem Ausland kommen, ist es am besten  (a versão espanhola parece que é assim: Se vem do

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estrangeiro, é melhor , da editora Burgo-Iuspostulandum, de Burgos, conveniada com a Editora Fondo

de la Casa).

Para o professor dos cursinhos-que-dão-aulas-pela-TV-e-que-usam-sapatos-bicudos, o presente é a

coleção completa das Seleções do Reader’s Digest , para aprimorar as piadinhas nas aulas e contar os

“flagrantes da vida real”, uma seção especial dessa sofisticada revista. De lambuja, a coleção do

Almanaque Biotonico Fontoura (se não sabe o que é, veja no Google — be a bá, be e bé, be e bi...o-

to-ni-co Fontoura)! Eu adorava tomar o tal biotônico; mas minha tia Ana,[2] que pesava 120 kg, não

deixava; ela dizia: nein, nein, mein Kleine, es sieht aus wie Pferdepisse; du must Emulsão Scott trinken

 — não, não, meu pequeno, isso parece urina de cavalo; tu deves tomar Emulsão Scott — que,

registre-se, não tinha um gosto bom; o Biotônico é que era gostoso).

Aos demais que não estudaram o ano todo, que não sabem o que é (in)diferença ontológica e

acreditam em ponderação (e a pregam) etc., por não terem se comportado, levarão um vale-presente

do meu novo livro Os Alquimistas da Hermenêutica , no prelo (inspirado no mago Paul Rabbit). Não se

comporte e Papai Noel, no próximo Natal, dar-lhe-á, além desta mesóclise, um kit (o livro mais umavara de marmelo). Ah: o professor da prova da OAB recebe dois livros: Porque é feio fazer perguntas

utilizando exemplos bizarros : uma releitura neoconstitucional(ista) e Porque Não Devo Fazer

Perguntas Com Base em Resumos Plastificados , ambos escritos pelo catedrático Exnunco Abovo, da

Editora Fondo Di Casa (que publica qualquer coisa a dez “real” a “foia”).

Pronto. Parece que Papai Noel fez uma boa distribuições de livros. Boas leituras. E Boas Festas para

os meus leitores. Esta coluna já passou do 100. A propósito: Que livro você gostaria de ganhar?

Comente aqui na ConJur e/ou no Facebook (Lenio Streck oficial ). Está aberta a votação. Feliz Natal e

Venturosíssimo Ano Novo a todos os leitores.

[1] Como no filme Perfume de Mulher , John é em face de minha amizade íntima com a família Jack

Daniels, dos EUA profundos.

[2] Registro natalino: minha tia Ana é a mesma que tentava matar meu porquinho Bolão, cuja história já

contei dia desses em uma coluna falando dos direitos dos animais. Ela era sogra de minha tia-

madrinha Norma. Ou seja, a “norma” é algo que trago comigo de infância. Por isso é que “norma” só

tem vontade quando diz “farei bolinhos de chuva para você, meu afilhado”. Lembram quando eu falo

que “norma só tem vontade quando...”? E os juristas ainda falam em vontade da norma e do

legislador...

'anta Joana dos 0atadouros1 rogai por n2s3Por Lenio Luiz Streck

Os cotidianos casos e os casos cotidianos... e Paris vale uma Missa

Há mais de 20 anos nessa luta, faz algum tempo que parei de usar casos bizarros para explicar o

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Direito. Usava muito em palestras no velho ID, lá no Hotel Glória, na belle époque  dos congressos.

Não havia internet e os celulares estavam na aurora. Na verdade, como sou Procurador de Justiça que

atua junto a uma Câmara Criminal do TJ-RS, poderia escrever uma coluna semanal relatando

bizarrices que mostram a miséria do Direito e o Direito da e na miséria. Há poucos dias deparei-me

com dois casos que merecem ser discutidos em público. E sabem por quê? Por causa do prefeito e do

governador de São Paulo, que, em plena crise das manifestações em SP, cantavam “Trem das Onze”em um evento comemorativo em... Paris. Sempre Paris. Sim, Paris merece uma missa. E muita

música. Lá, Cavendish (da Delta) e o governador Cabral cantaram juntos, com guardanapos na cabeça

(poderia ser a música “Bastidores”, pois não?).[1] Para Paris iriam os estilistas com dinheiro da Viúva

(Lei Rouanet), para mostrar “moda” nos Campos Elíseos. E esta coluna também vai escrita pelo valor

simbólico que representa o dado estatístico de 61,8% dos negros vítimas de violência que não dão

queixa  na polícia de Pindorama. Eles não confiam nos agentes. E também em certos governantes. Por

que será? Pois nos casos abaixo descritos, os condenados são do andar de baixo. Negros e brancos.

E abandonados. Que não vão a Paris às custas da Viúva. Que Santa Joana (n)os  proteja! E nos livre

dos helicópteros que transportam droga abastecidos com dinheiro público...

Caso 1: crime de abandono (de quem?)

Um casal, ela com 39 anos e ele com 48, foram processados com base no artigo 244 do Código Penal,

porque em datas de 2007 e 2008, deixaram de proporcionar os recursos necessários para a

sobrevivência dos dois filhos menores, que ficaram sem alimentos. Os pais foram condenados a um

ano de detenção, substituídas por serviços à comunidade. Em grau de recurso, sustentei a absolvição

de ambos, com base no artigo 386, III, do CPP.

Aqui já de pronto merece destaque o voto do relator, desembargador Francesco Conti, cuja posição é

a de que o parecer do Ministério Público de segundo grau esvazia a controvérsia, no caso de se

posicionar pela absolvição do(s) apelante(s). Eis a ementa do acórdão:

APELAÇÃO CRIME. ABANDONO MATERIAL. ABSOLVIÇÃO. PEDIDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O

recurso exclusivo da defesa aliado ao pedido expresso do agente ministerial (atuante nesta instância),

no sentido de que os réus sejam absolvidos, esvazia a controvérsia posta nos autos. De ressaltar que

o Procurador de Justiça é quem detém atribuição para atuar junto aos Tribunais perante as Câmaras,

nos termos do artigo 29, I, “a” e artigo 31, respectivamente, da Lei Orgânica Estadual e Nacional do

Ministério Público, de sorte que o pedido por ele deduzido é o que deve ser considerado nos

 julgamentos dos recursos. A Carta Magna de 1988 filiou-nos ao Sistema Acusatório, e, a um só tempo,

incumbiu exclusivamente ao Ministério Público a titularidade da ação penal e impediu o juiz de tomarqualquer iniciativa. Com isso, distinguiu o persecutor do julgador, sendo, sem dúvida, a inércia do juiz a

garantia da sua imparcialidade. APELO DEFENSIVO PROVIDO (AP Nº 70053245734). Ele foi

acompanhado pelo Des. Ivan Bruxel, com divergência da Des. Genaceia Alberton, no tocante à tese da

posição do MP de 2º. Grau.

No mérito, o acórdão transcreve meu parecer, nos seguintes termos:

“O parecer encaminha-se no sentido do provimento da apelação, uma vez que o presente caso

constitui hipótese de absolvição, diante da ausência de comprovação do dolo dos agentes. Na

verdade, trata-se de um processo delicado, que nos apresenta, de um lado, a miséria do Direito e, deoutro, o Direito da miséria. Em tese, poder-se-ia dizer que, se há um caso em que se caracteriza o

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abandono material, este é um deles. Afinal, os dados objetivos são tão dramáticos que transcrevê-los,

aqui, já constitui um mergulho na crueldade humana.

Entretanto, em Direito Penal é comezinho exigir-se o dolo em uma conduta. Dogmaticamente, sempre

se diz que o dolo está no tipo. Todavia, não vislumbro no caso concreto a existência doquerer que as

crianças fossem submetidas a este tratamento degradante. Esse é o busílis.

A literatura, por vezes, nos ajuda a compreender as insuficiências da Lei, quando contraposta ao

Direito e suas mazelas. Nada melhor do que a peça Santa Joana dos Matadouros ’, de Bertolt Brecht,

para compreender o fenômeno ora em discussão. Joana, uma voluntária da Cruz Vermelha, vai até o

dono dos frigoríficos de Chicago para interceder a favor dos trabalhadores em greve que estavam

sendo mortos à míngua por um lockout  da indústria da carne. O dono, conhecido como Bocarra, leva

Joana ao submundo onde convivem os operários. Sua pretensão é a de mostrar que não só os ricos

eram maus, mas que os pobres também o eram.

De fato, Joana se depara com a extrema maldade de alguns dos operários pobres, que, por um pratode comida, delatavam seus colegas. Mas Brecht quer mostrar na peça que os operários não eram

maus, não tinham o dolo de serem maus. Eram as condições sub-humanas que transformavam os

homens em lobos e ratos. Isto é, eram as condições econômicas que determinavam até a psique dos

homens.

Guardadas as devidas proporções do tempo, da história e do mecanicismo marxista de Brecht, eis um

bom modo de a literatura nos ajudar a explicar a situação da ‘maldade’ (ou do ‘dolo’) dos réus neste

caso.

Isto porque, em que pese a situação absolutamente precária e dramática em que criadas as crianças,tenho não ser possível determinar até que ponto os réus possuíam capacidade de prover condições de

subsistência distintas — isto é, até que ponto a condição de sujeira, abandono, miséria e

desconsideração revelada não faz parte de sua própria conformação como indivíduo.

Claro que se pode(ria) reclamar conduta diversa aos réus. De qualquer modo, muito embora estas

questões possam tornar reprovável sua conduta, entendo que não sirvam à caracterização do presente

tipo penal, eis que este exige a configuração de dolo específico e pressupõe a capacidade do agente

em conferir sustento a seus dependentes e a vontade deliberada em não o fazer — o que, no caso em

tela, não vem demonstrado.

Assim, considerando que na esfera penal revela-se imprescindível a demonstração clara e segura do

dolo dos agentes para configuração do delito previsto no artigo 244, CP, e que, in casu , isto não

ocorre, entendo que outro caminho não resta senão o absolutório.”

Fim do acórdão. Fecham-se as cortinas! PS: como dizia o poeta, faz escuro mas eu canto! Vale a pena

demi(s)tificar o senso comum. E o locus  para isso é o Senso Incomum !

Caso 2: crime de dano? Assim? Em terrae brasilis ?

Em uma pequena cidade do interior do RS, um patuleu foi condenado a 1 ano e 8 meses de prisão,

mais multa, por ter cometido crime de dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, inciso III, do CP).Qual foi o crime? Escrever seu nome a lápis (ou giz) na parede da cela da Delegacia em que estava

detido provisoriamente (observe-se: a única coisa que não se discutiu nos autos foi a legalidade da tal

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prisão!). Diz-se que o prejuízo foi de menos de R$ 100. Foram realizados laudos (?), arroladas

testemunhas, enfim, um volumoso processo. Até a delegada prestou depoimento, para comprovar que

a parede havia sido pintada antes de ser “assinada” pelo choldréu.

Exarei parecer pela absolvição, que ainda está pendente de julgamento no TJ-RS. O caso dos autos

encontra-se incluído em uma lógica pampenalista de ver o Direito Penal — que, provavelmente, teve

seu ápice na década de 90, nos EUA, com a política do “tolerância zero”, resultado da chamada

“broken windows theory ”, mas que continuam presentes no imaginário de muitos juristas, até os dias

de hoje —, na qual mínimas infrações ou, ainda, condutas sem qualquer resultado significativo,

incapazes, portanto, de lesionar bem jurídico, são objeto de ação do Direito Penal.

Ora, despiciendo afirmar que condutas como a dos autos não ensejam a intervenção do Direito Penal:

“O apelante danificou patrimônio público do Município, ao escrever seu nome na parede da cela”. Isso

é crime? Então as pichações também o são, pois não? A reação do Estado, nestes casos, mostra-se

descabida em relação ao fato que a ensejou, acarretando em uma contrapartida desproporcional à

conduta que se pretende sancionar, referindo-se a um imaginário punitivista. É acaciano referir que, nopresente caso, a condenação penal do acusado — e a consequente estigmatização — revelam-se

incompatíveis com a própria conduta que é descrita no fato da inicial.

Neste sentido, entendo que, muito embora tenha vindo demonstrado o “dano” causado à parede da

cela, torna-se adequado questionar se, in casu , realmente houve crime, uma vez que, como se sabe, o

Direito Penal contemporâneo deve ser invocado somente quando os demais meios — sejam

administrativos, sejam civis — tornarem-se inapropriados e/ou insuficientes para a resolução do

problema.

Diante disso, portanto, cabe analisar se o caso dos autos, com suas devidas circunstâncias epeculiaridades, deve realmente ser sanado pela esfera penal, que já se encontra repleta de assuntos

com importância incomensuravelmente maior  para serem tratados e resolvidos. A lógica da “tolerância

zero”, afinal, enquanto fundamentalmente repressiva, revelou-se falaciosa e inoperante. Aliás, onde

está a tolerância zero em relação ao não cumprimento da LEP, quando os detentos são armazenados

como o eram nos navios negreiros?

Não creio que a intervenção do Direito Penal deva ir tão longe. Em suma, o Direito Penal sequer se

legitima — enquanto ultima ratio  sistêmica — para tal finalidade. Ele deve intervir tão-somente, uma

vez que é composto do elemento restrição da liberdade dos indivíduos, em questões que não possam

ser solvidas pelos demais ramos jurídicos. Aliás, no Estado Democrático de Direito, é de duvidosaconstitucionalidade criminalizar “danos”, exatamente em face de um princípio extremamente relevante:

o da subsidiariedade! De todo modo, considerando o valor irrisório da res danificada no presente caso,

tenho que inexiste qualquer motivo capaz de justificar a utilização da persecução penal — regida pelo

princípio da subsidiariedade — para punir um dano material ínfimo.

E não se diga que o caráter transindividual do delito — eis que a vítima, in casu , é o Estado —

impossibilita a aplicação do aludido princípio, afinal são os próprios Tribunais Superiores —

notadamente o Superior Tribunal de Justiça, corroborando entendimento firmado no Supremo Tribunal

Federal — que afirmam ser insignificante o valor que não ultrapassar R$ 10 mil nos delitos desonegação de impostos (agora, com a portaria 75 do Ministério da Fazenda, o valor foi para R$ 20 mil

 — pronto: país rico é pais sem miséria!). Nada como uma “boa” teoria das fontes... Uma portaria vale

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mais do que uma lei... Em terrae brasilis , pode. Falando em delitos “transindividuais”, o que dizer do

uso da cota de gasolina (do Congresso) em helicópteros e jatinhos? Por Santa Joana, o parecer vai

pela absolvição do réu!

Das “janelas quebradas” e paredes pintadas à miséria de Santa Joana

Impressiona, nestes casos, o modo como os juízes e membros do Ministério Público olham estes fatos.

Veja-se: em ambos os casos, houve condenações. Qual o país que eles habitam? Esta é a pergunta.

Basta olhar ao redor.

Pensando no crime da parede pintada pelo nosso Picasso dos pampas, que tipo de crime comete o

funcionário público quando usa o telefone da “repartição” (ou do fórum) para assuntos pessoais? Mas,

é claro, quem comete dano é sempre o “outro”. Lembro de um caso contado por um deputado federal

de Mato Grosso, processado por improbidade por ter usado folhas timbradas quando prefeito, para

uma defesa judicial. Prejuízo: alguns reais. No dia do interrogatório no TJ-MT, o desembargador ou a

desembargadora, antes de iniciar, pediu licença para ligar para sua casa, porque um filho ou neto

estaria com problemas de saúde e teria que falar com a empregada. Terminou a ligação (telefone dotribunal) e disse ao prefeito (mais ou menos assim): - “Então, o que temos aqui? O senhor pode nos

dar sua versão?” E o prefeito teria respondido: “Pois é, Excelência, estou aqui por motivo de menos

importância do que agora o(a) senhor(a) acabou de cometer”. “Como assim?” “Pois o meu crime é

menor do que o seu. Aposto que a ligação feita agora custou mais ao erário do que as folhas que

usei”. Bingo. E terminou a ação de improbidade. Pronto. Preciso dizer mais alguma coisa? Afinal, o

que é “prejuízo ao erário”? Hein?

Vejam: no caso acima peguei no varejo. Agora, vem o atacado. O que é Direito Penal? Para que(m)

serve? Maluf vem sendo processado há anos e a máquina não consegue pegar o nosso Jason . A

operação Satia-não-agarra-ninguém-e-eu-me-rolo-de-rir  foi um fiasco. A operação Castelo-entrou- 

areia  foi levada pela primeira marola que passou. Havia prova ilícita, discussão de princípios etc. E no

caso do (crime de) abandono feito por um casal de miseráveis? Onde estão os tais princípios

constitucionais, tão decantados por aí? Hein? Qual foi a prova “carreada” aos autos? Qual o dolo?

Quais as circunstâncias que levaram os pais a abandonarem os filhos? Não cabia, no caso, a máxima

de Ortega y Gasset, de que yo soy yo y mis circunstancias ? O que a prefeitura disse? Ah, não foi

ouvida? E o Estado? Não tem nada a ver com isso? Ah, bom.

Penso no personagem Bocarra — dono dos frigoríficos de Chicago — tentando mostrar para Joana

que os “pobres são tão maus como os ricos”. Pois é. Não sou mecanicista. Longe disso. Trouxe a

Santa Joana dos Matadouros de Brecht para mostrar a degradação humana. A total miséria. Mas

trouxe também para mostrar que, no Brasil – e mil desculpas por repetir a frase que uso desde 1985

 — la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos . Enquanto isso, a indústria que mais cresce é

a dos compêndios (facilitadores) de Direito Penal, para os quais só existe a ficção: Caio e Tício, que

brincam de mocinho e bandido com Mévio... E novamente Caio, que põe fantasia de cervo e vai

brincar no mato, para levar um tiro de Tício, só para possibilitar o exemplo do que seja erro de tipo. E

eles são lidos exatamente pelos membros da magistratura e do ministério público que se mostram

insensíveis a isso tudo. Por isso, vendem tanto. Claro. Apenas reproduzem o senso comum.

Por certo, nos casos em tela, foi “alcançada a verdade real” (e-eu-me-rolo-de-rir do “princípio”!). Viva!Buscou-se a essência dos fatos.... Ah, os fatos! Esses fatos! PS: dia destes, vi na TV um professor

cantando uma música para explicar a diferença entre prescrição e decadência... (aliás, coisa

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complexa, não? Muiiito!). Fiquei pensando: o que seria mesmo de-ca-dên-cia ? Não seria a própria

figura dos professores de Direito em Pindorama querendo dizer coisas pífias e óbvias, como se o-

mundo-pudesse-ser-chamado-de-Raimundo, como no poema de Drummond? Ainda há chance?

Estaríamos mesmo condenados à mediocridade?

Sem dó nem piedade. Rezemos para Santa Joana. Quer saber? Brecht era “o cara”! Sugiro que

larguem os compêndios facilitado(re)s e o Direito plastificado... (pelo menos por algumas horas) e

leiam Brecht. E também Machado, Eça, Victor Hugo... Parafraseando o velho Barão, diga-me o que

estás lendo e eu te direi se sabes alguma coisa e se posso gastar dois dedos de prosa com você.

PS 1: não vou discutir, nos limites do espaço da coluna, as causas da criminalidade etc, etc. Apenas

trouxe exemplos do que estamos “construindo” em terrae brasilis . Enquanto um laranja arrecada um

bilhão para meter em campanhas e se discute se empresa “possui cidadania” e se mais uma vez o

STF vai legislar para “fazer história” (sic ), todos os dias casos como esses se escancaram diante de

nossos olhos. Emocionamo-nos vendo Os Miseráveis , de Victor Hugo. Mas temos milhares de

Valjeans por aqui. Com os quais não nos importamos. Nem um pouco.

PS 2: Em Tristes Trópicos , Levy Strauss descreve a vida nos seringais: “o fato de aquela gente se

acostumar à miséria é algo tão presente, que a vida nem é percebida como sofrimento”. Isso serve,

metaforicamente, também para dizer: o fato de nossos juristas se acostumarem com esse modo-de-

estudar-e-aplicar-Direito é algo tão presente, que as injustiças e as idiossincrasias do e no cotidiano

sem mais são percebidas. Talvez por isso, sejamos (tão) duros com pintores de paredes de cadeias e

com pais que, atolados na miséria (des)humana, abandonam os filhos e, ao mesmo tempo, sejamos

tão tolerantes com a sonegação de tributos... Acostumamo-nos com essas “misérias jurídicas”. Talvez

por isso assistamos a pequena Portuguesa de Desportos ser depenada pelo STJD da CBF, em um

caso que o porteiro de qualquer tribunal resolveria. Até o Conselheiro Acácio tiraria de letra... Alguémse deu a pachorra de ler a legislação da CBF, da FIFA e o Estatuto do Torcedor? E depois dizem nas

salas de aula que o Direito é um sistema de regras... e princípios. Faltou avisar ao tal tribunal da CBF.

Claro: esqueci que esse tal tribunal não lida com o Direito. Apenas com os direitos dos outros... Ah,

Santa Joana, rogai por nós, habitantes dos tristes trópicos.

[1] Sabem o que aconteceu? São Paulo foi desclassificada na primeira rodada. Deve ter sido a

desafinação da dupla ou trio de cantores... Pobre Adoniran!

4ma lista de pedidos de um &urista para o Papai.oel

Por Lenio Luiz Streck

Pendurando a meia na árvore

Nesta época ficamos mais sensíveis. Fazem-se festas com “amigo oculto”, mandam-se cartões e

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também são elaboradas listas de pedidos ao Papai Noel. Quando menino, tinha de me ajoelhar diante

do Weihnachtsmann  e fazer uma pequena oração, para que, depois, pudesse fazer meus pedidos.

Assim era a oração: “Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein”  (“sou

pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser Jesus”). Sem pieguice, mas,

repetindo isso agora, uma pequena lágrima desceu pelas rugas que já tenho. Embarguei. Mesmo.

Lembrei também que, um mês antes do Natal, rezava todas as noites, como num pensamento mágico.Mesmo pobre de marré, achava que, rezando, Papai Noel viria. Mas, vamos lá. Como deveria ser a

lista de um jurista para o Papai Noel? Como em um pensamento mágico “daqueles tempos”... Vai que

dá certo... afinal, sou pequeno, meu coração é puro... Então:

1. Que voltemos a ter “casos jurídicos” e não meramente “teses” discutidas abstratamente, através de

enunciados feitos em reuniões realizadas em finos hotéis litorâneos ou produtos de ementas

fabricadas por estagiários. E que os doutrinadores não caiam na armadilha de saírem por aí

comentando os tais enunciados... que, como se sabe, Papai Noel, não são lei.

2. Que as provas sejam examinadas pelos juízes e tribunais, e que os casos subjacentes aosprocessos sejam vistos sob uma ótica normativo-constitucional e não meramente econômico-

quantitativa. De que por trás dos processos há pessoas (e na frente deles haja também).

3. Que as partes, querido Papai Noel, não sejam mais tratadas como requerente, requerido ou, para

nossa vergonha, suplicante e suplicado, mas como cidadãos que merecem igual respeito e

consideração, seja qual for a posição que ocupem nos polos das relações jurídicas. Que às partes se

reconheça igual dignidade, independentemente do status ou posição financeira e social que ocupem.

Que a igualdade seja a virtude soberana e que essa igualdade transborde do discurso para as práticas

 judiciais.

4. Que, quando uma lei for aprovada pelo Parlamento e esta não for inconstitucional (e não se

enquadrar nas seis hipóteses de que falo no Verdade e Consenso ), o Judiciário simplesmente... a

aplique. Sim: um faz a lei, o outro... a aplica.

5. Que seja proibido o uso de princípios flambadores no Direito, como o da “confiança no juiz da

causa”, da “rotatividade”, do “fato consumado”, da “amorosidade” e similares. Querido Santa Claus:

não dá mais para aguentar isso.

6. Que, por favor, não mais se use a frase “na colisão de regras, age-se no tudo ou nada” e colisão de

princípios “usa-se a ponderação” e que não mais se escreva ou diga que “princípios são valores”.

7. Que seja proibido dizer que Kelsen era um positivista exegético ou legalista (Papai Noel, não traga

presentes para quem disser isso).

8. Que os “ponderadores” não usem mais o exemplo do caso Lüth (e ainda dizendo Lut), sem saber do

que se trata.

9. Que os professores parem de querer fazer espetáculo nas salas de aula, cantando, gritando e

fazendo charadinhas para decorar “fórmulas” jurídicas; violão e músicas da Xuxa, nem pensar, Papai

Noel.

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10. Querido Santa Claus: Que os professores que se apresentam na TV falando de prescrição e

decadência, função social da propriedade (bem novo isso, não?), erro de tipo, direito do consumidor ou

do direito dos portos (ou algo assim) usando exemplos infames e colando de seus tablets  sejam

submetidos às provas dos concursos públicos para os quais eles mesmos dizem estar “dando dicas”;

se não passarem, devem prometer não mais ir à TV.

11. Que os advogados de todo o Brasil não mais sejam humilhados nas audiências, principalmente na

 justiça do trabalho e que quando o advogado tiver uma pergunta indeferida e pedir para consignar na

ata, que o juiz não diga que o advogado o está desrespeitando (Papai Noel, seja duro nisso, tá?).

12. Que os servidores de balcão do Judiciário não tratem a “repartição” como se fosse sua ou se

estivessem fazendo favor ao jovem causídico; às vezes, é a sua primeira causa (Papai Noel, zele

pelos jovens causídicos; não deixe que os serventuários, porteiros ou juízes os maltratem).

13. Que os desembargadores e ministros, durante a sustentação oral das partes, não fiquem olhando

os seus tablets ; prestem atenção no esfalfelamento do causídico (ou finjam que estão prestandoatenção).

14. Papai Noel – eis um pedido sarcástico: Que os Tribunais de todo o Brasil façam licitações

(qualitativas) para comprar obras jurídicas (aquelas que ficam sobre as bancadas e são filmadas). A

Lei das Licitações veda “simplificações”, “facilitações”, “resumões” e outros textinhos fofinhos.

15. Queridíssimo Santa (veja a minha intimidade com Santa Claus): Que os embargos declaratórios

não sejam “despachados” com decisões padronizadas do tipo “nada há a esclarecer” e que o causídico

não necessite fazer uma preliminar ao STJ, em sede de RESP, invocando a negativa de vigência do

dispositivo que dá direito ao uso dos embargos declaratórios.

16. E que, quando os tais embargos forem feitos sobre outros embargos (aqueles que tiveram a

decisão dizendo “nada há a...”) não sejam “vítimas” de pesadas multas.

17. Grande Santa Claus: incentive a que os doutrinadores façam críticas aos Tribunais quando estes,

por exemplo, editam súmulas contra-legem ; e, já que estamos falando no assunto, a doutrina poderia

voltar a doutrinar e parar de ficar se arrastando para a jurisprudência? Dê de presente um pacote de

“lego”, para montagem do significado da palavra dou-tri-na !

18. Que não mais se fundamentem prisões com chavões como “flagrante prende por si só” ou “a

gravidade do crime prende por si” (sei, Papai Noel, que a violência está grande, mas o STF de há

muito já se pronunciou sobre isso...).

19. Lieber  Weihnachtsmann  (Papai Noel em alemão), atenda esta prece: Que o juiz ou tribunal não

decida conforme sua consciência, e, sim, a partir do direito. Aproveito para deixar aqui nesta preclara

meia – pendurada nesta humilde árvore - o conceito de direito, caso o senhor necessite usar para

atender este meu pedido: Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas

instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas

nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA

constitucional, e não na vontade individual do aplicador (mesmo que seja o STF).

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20. Que o Supremo Tribunal e os demais órgãos do Judiciário (e também o Ministério Público, Santa

Claus) não mais usem, em 2014, argumentos metajurídicos. Isso, caro Pai Natal (assim se diz em

Portugal), pode ser problemático, porque cada juiz tem os seus argumentos metajurídicos (portanto,

morais e moralizantes), que, por acaso, podem não ser os das partes ou da maioria da sociedade ou,

ainda, daquele que faz as leis, o legislador.

21. Que o governo de terrae brasilis , Papai Noel, faça indicações para o STF e depois não fique

falando contra as (indicações) que “ele-mesmo-fez”, como se estas — as indicações — fossem fruto

da cegonha, do coelhinho da páscoa ou até suas, Grande Santa Claus, que nem sei se entende desse

riscado.

22. Que em 2014 sejamos poupados do uso de ponderações pelo Brasil afora. Papai Noel: como

presente, quero que pergunte às renas ou a quem mais saiba e me responda (a mim e ao restante dos

patuleus que colocam suas meias nas árvores natalinas): um importante jurista (bem importante), dia

desses, usou o seguinte exemplo para explicar o que é a tal da ponderação. Eis o que ele disse, Santa

Claus (está gravado): “um velho Opala desce uma ladeira e o motorista vê um velório passando lá naparte debaixo e se percebe sem freio... então o motorista pensa ‘vou mirar no caixão’”. Isso é

ponderar, escolher o menos pior... E digo eu, então: Caro Santa, onde estaria, aí, a regra adstrita de

Direito Fundamental? Onde estão os passos da formula? Afinal, quem pondera é quem decide ou

quem dirige o automóvel? O motorista é um “ponderador”?

23. Que no próximo ano, querido Santa, a comunidade jurídica não tenha que ler, em livro de Direito

Constitucional, que o controle concentrado (sic ) poderá ocorrer pela via incidental (sic ) nos casos do

artigo 102, I, alínea “d”, o qual estabelece a competência originária do STF para julgar HC, MS e HD

de determinadas pessoas. É sempre bom lembrar, generoso Papai Noel, que o controle concentrado

possui condições estruturais específicas, tais quais o processo objetivo e a “abstração” do pedido,objeto da ação. Não se trata, simplesmente, de ser concentrado porque “concentrado” em um único

tribunal...

24. Que todos tribunais tenham uma plataforma de i-process  que seja comunicável; se passamos pelo

estado moderno — que era um poder unitário — não podemos agora regredir ao medievo, com

pequenos reinos, ducados, principados, cada Estado ou Tribunal com suas regras próprias... Ah: se

minha defesa tiver mais que 30 mb, seja-me permitido explicar meu direito, que, por vezes, não cabe

em um leito de procusto, querido Santa.

25. Que os administradores não se safem de seus malfeitos sob o argumento (do século XIX) de que“ato foi imoral...mas foi legal”. Dear Santa , quem está ensinando Direito Administrativo para o corpo

 jurídico que protege a Viúva?

26. Que o governo pare de incentivar que o povo compre automóveis em 60 meses. Isso vai dar

subprime. Cuidado com suas renas, Papai Noel. Como não mais haverá lugar para andar de

automóvel, serão requisitados seus trenós e suas renas. Algo como: Ministro usa as renas da FAB

para visitar sua família... no Natal (compreende a ironia, Lieber  Weihnachtsmann ?)

27. Pai Natal, agora um pedido relacionado à academia jurídica: que não mais sejam feitas

dissertações e teses — mormente se for com dinheiro da combalida Viúva (se for em Universidade

privada e sem bolsa, por mim o nativo pode estudar o que quiser) — sobre embargos, agravos, tipo

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penal, poder do árbitro, a origem do cheque, Constituição como ordem de valores, afetividade no

Brasil, ponderação, etc. Invistamos esse dinheiro em soro e leitos hospitalares. Ah: e que não sejam

concedidas bolsas para fazer tese sobre temas como “o papel dos trabalhadores rurais brasileiros”... a

serem estudados em algum país europeu ou latino-americano; ou uniões homoafetivas ou ECA em

Burgos, Espanha (nem existe ECA na Espanha); ou violência contra a mulher no Brasil em... Sevilha.

Peço isso, Pai Natal, porque se os temas são estritamente daqui, qual é a razão para desprezarmosmais de 30 programas de doutorado em direito de terrae brasilis ? Sei que é chique estudar lá fora.

Muito. Mas tese sobre Lei Maria da Penha... na Inglaterra? Também quero! Ajude-nos a nos livrar da

síndrome de caramuru, papalis noelis brasiliensis. E do complexo de vira-lata.

28. Que Dworkin (que não é Dworking, por favor), em aulas, palestras e livros não seja mais epitetado

de jusnaturalista. Respeitemos a sua alma. Ajuda nisso, Santa? Ah: e dê zero para quem misturar

Alexy com Habermas.

29. Que não mais necessitamos nos deparar com a invocação do “princípio” da verdade real. Na

verdade, Papai Noel, se quem invoca isso soubesse um pouco de filosofia, dar-se-ia (boa mesóclise,não? — quero presente em dobro... afinal, Ich bin Klein...) conta de que está na pré-modernidade.

30. Que as companhias de telefonia móvel parem de nos enganar e que retransfiram os seus call

centers  do Judiciário de volta para as suas próprias sedes...

31. Que as companhias aéreas respeitem os direitos humanos-fundamentais dos utentes e parem com

a picaretagem (pilantragem, vigarice, proxenetismo) de encolher os espaços entre as poltronas; não dá

nem para ler um livro. Querido Santa: o senhor pode dar umas varadas de marmelo nos caras da

Anac?

32. Que os concursos públicos e os exames de ordem não mais sejam quiz shows. Questões como as

da “ladra Jane” serão punidas com palmadas... (desculpe, Papai Noel, mas sou politicamente

incorreto). E que os néscios que manipulam essas questões (ou o modelo de questões) sejam

colocados em uma roda e sejam submetidos aos concursandos, que lhes fariam perguntas do mesmo

estilo que eles fazem ou defendem. E, claro, se for necessário, vara de marmelo neles, Santa.

33. Que não receba presente quem faça afirmações como “o Direito é aquilo que os tribunais dizem

que é” ou “o texto é apenas a ponta do iceberg ”, ou, ainda, “além do texto existem os valores que são

‘condição de possibilidade do texto’”.

34. Que nas audiências criminais o juiz não assuma a posição de inquisidor nos interrogatórios, nem

conduza os depoimentos orais, a despeito da previsão do artigo 212 do CPP, nem inicie a redação da

sentença condenatória antes mesmo do fim das alegações finais orais da defesa (embora que, muitas

vezes, ela nem perceba isso). Podes ajudar nisso, bom velhinho?

35. Que o Judiciário não fundamente suas decisões com base em ementas de precedentes, sem a

averiguação da pertinência entre a ementa e o caso concreto que lhe deu origem (a facticidade ou o

senhor fato), bem como não haja mais julgamento por adesão a uma das teses, sem abordagem da

antítese, para julgar mais rápido (referencial bias ). Ah, queria pedir também que o legislador aprove o

novo CPC com as emendas que tentam fazer com que as decisões tenham coerência e integridade,para que cada um pare de decidir como quer.

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36. Que os tribunais não implantem ou, se já o fizeram, ponham fim aos chamados “Gabinetes

Criminais de Crise”, instituídos por meio de uma Portaria, um vício de inconstitucionalidade de origem,

sem falar, claro do ferimento do princípio do Juiz Natural.

37. Que os juristas, principalmente os jovens ainda sem curriculum , quando escreverem seus artigos,

antes se inteirem bem sobre o que estão falando (por exemplo, o que quer dizer cada conceito), para

evitar algaravias conceituais. E interceda para que os neófitos, mormente eles, façam críticas honestas

e não escamoteiem fatos e circunstâncias (com gracinhas “tipo” Kant-Descartes, Aristóteles-Leibniz,

com o uso de hifens a la  171 do Código Penal, como se se tratasse da mesma coisa...). E, na crítica,

não ataquem o autor, mas as ideias. Com isso, Papai Noel, o senhor estará ajudando a academia

de terrae brasilis .

Numa palavra

Pois é, Papai Noel. O senhor me deve um monte. Quantas vezes tive que repetir o Ich bin Klein... e o

senhor... nada. Comigo o senhor está como o Eike Batista: devendo os tubos. Pois é chegada a hora

de se recuperar. Atenda aos pedidos acima. Afinal, eu acredito em Papai Noel... (se me entende aironia, querido Santa!).

Parafraseando a oração que fazia quando menino na esperança de ganhar presentes, diria, hoje, que

sou um jurista que continua estudando todos os dias, que meu coração ainda é puro depois de 26

anos de MP, e que nele não deve morar ninguém, a não ser o amor, a esperança... e, é claro, a

indignação contra o autoritarismo, enfim, os solipsistas![1] Feliz Natal a todos!

[1] Mesmo que alguns neófitos não entendam o sentido da palavra “solipsismo”. Mas, enfim, o que

fazer?

Por ue tanto se descumpre a lei e ningu5m faznada-

Por Lenio Luiz Streck

Os atalhos hermenêuticos 

Há muito tenho insistido na tese de que uma lei votada pelo Parlamento só pode deixar de ser aplicada

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em seis hipóteses: a) se for inconstitucional, b) se for possível uma interpretação conforme a

Constituição, c) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto, d) no caso de uma

inconstitucionalidade parcial com redução de texto, e) se se estiver em face de resolução de

antinomias e f) no caso do confronto entre regra e princípio (com as ressalvas hermenêuticas no que

tange ao pamprincipiologismo). Fora disso, estar-se-á em face de ativismos, decisionismos ou coisa do

gênero. Portanto, o judiciário possui amplo espaço. Nada mais, nada menos do que seis maneiras.Mas parece que, na cotidianidade, o judiciário prefere um atalho. Sim, um atalho silipsístico.

Um dos dispositivos que simboliza isso é o artigo 212 do Código de Processo Penal. Ali claramente

está escrito que o juiz só pode fazer perguntas complementares quando da oitiva das testemunhas. Ali

está inscrito o sistema acusatório. Juiz não faz prova. As partes é que fazem. Não é porque eu quero

que seja assim. Simplesmente “está na lei”. O legislador, ao votar a nova redação do CPP, disse: não

haverá mais inquisitivismo. Simples, pois.

O resultado, entretanto, é que o Judiciário, em sua maior parte, respaldado por equivocadas leituras do

STJ e do próprio STF e por uma literatura jurídica conservadora e distante da Constituição, rasgou otexto legal. E onde está escrito “apenas perguntas complementares”, passou-se a ler, “continuemos a

fazer audiências como era antes”. E a lei? Bem, a lei...

Um caso emblemático

Recentemente, o TJ-RS, examinou o seguinte caso: em uma cidade do interior, o Promotor de Justiça

não pôde comparecer à audiência e o juiz fez toda a prova, inquirindo testemunhas e tudo o mais. E

depois, condenou o réu com base na prova que ele mesmo, juiz, produziu. O advogado fez uma

preliminar alegando nulidade. O juiz rechaçou, do mesmo modo que o TJ fez na sequencia.

Na apelação, o desembargador relator votou pela nulidade, em preliminar. Com esse voto, a defesainterpôs embargos infringentes, que foram improvidos. Decidiu-se, assim, que o fato de o juiz ter de

assumir a exclusividade da inquirição das testemunhas devido à ausência do promotor na audiência

não-anula-o-processo-criminal. Afinal, segundo o Tribunal, os artigos 201 e 203 do CPP obrigam o

 julgador a ouvir vítimas e testemunhas para formar a sua convicção. Já de pronto podemos jogar com

a hermenêutica: de fato os artigos 201 e 203 dizem isso... só que, logo depois, explicando como isso

se dará, há um dispositivo, novinho em folha, o 212, que estabelece que o juiz não poderá inquirir as

testemunhas, com exceção de perguntas complementares. Ah: “complementares”, ao que sei,

complementam e, portanto, vem depois de alguma coisa, correto?

Mas o mais inusitado é que o juiz e o tribunal sustentaram que “a defesa não apontou o efetivo danocausado pelo fato de o juiz ter iniciado as perguntas.” Confesso que não entendi. Como assim? O

sujeito foi condenado a sete anos e meio de reclusão, com prova feita exclusivamente pelo juiz e ainda

assim necessita provar que houve prejuízo?

Outro ponto interessante é que a relatora dos embargos, no grupo, sustentou que a nulidade prevista

no artigo 564, inciso III, alínea ‘d’, do CPP, é relativa e foi considerada sanada. E isto porque a

irregularidade (sic ) não foi arguida em tempo oportuno, como prevê o artigo 572 do mesmo diploma

legal. Mas o que diz o artigo 564, III, “d”, do CPP? “A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III — por

falta das fórmulas ou dos termos seguintes: d) a intervenção do Ministério Público em todos os termosda ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação

pública.”

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Pronto. Isso não quer dizer nada? Se o MP não está na audiência, não faz a prova, tal circunstância

não se enquadra na hipótese desse dispositivo? Mais: somando a clareza meridiana do artigo 212 com

a do artigo 564, III, d, a pergunta é: poderia a audiência ser realizada? E, se sim, como ultrapassar a

nulidade decorrente da prova feita pelo juiz?

Ainda: onde está escrito que essa nulidade é relativa? E onde está escrito que o advogado deve

“protestar” em tempo hábil? Não seriam as regras que estabelecem o sistema acusatório “regras

procedimentais de direitos fundamentais” e, por isso, a simples violação já não acarretaria nulidade

insanável? Aliás: diz-se, hoje, que todas as nulidades são relativas. Pois é. E digo eu: se tudo é, nada

é. Logo, todas não  são relativas. Questão de lógica.

Convenhamos: o juiz fez a prova. Fez as perguntas às testemunhas. De que modo? Ora, o inquisidor

só faz perguntas que venham a sustentar a decisão que ele já tomou. Esse é o cerne do inquisitivismo.

O resultado já está dado. Busca, então, a argumentação. Por isso, o prejuízo é evidente. E é por isso

que as provas devem ser feitas pela defesa e pelo MP.

Tentarei ser mais claro: o juiz que conduz a produção da prova, por mais bem intencionado que seja,

termina se contaminando pelo objeto da busca, saindo do seu lugar de isenção. Vincula-se

psicologicamente ao que procura. E como diz o adágio, “quem procura, acha”. E por que procura?

Diante do princípio constitucional da presunção de inocência — que impõe à acusação o ônus de

buscar provas — qual a motivação de um juiz que se substitui ao acusador? Será que alguém

desinteressado, imparcial, procuraria? Indo mais a fundo, o que motiva alguém que deve estar em um

lugar imparcial a produzir provas? Essa separação de funções no processo, em todos os seus atos e

em todas as fases, é uma garantia não só para o acusado, mas para a sociedade.

A justificativa mais comum para essa anomalia na atuação do juiz se dá com base no falaciosoprincípio da “verdade real”. Vai-se no guarda-roupas do voluntarismo, despe-se da toga e veste a beca

da acusação. E por que a da acusação? Porque o ônus de provar o alegado é do acusador. Ora, se a

função do acusador é comprovar a materialidade a e autoria dos fatos, o magistrado que também

investiga termina por usurpar a prerrogativa do Ministério Público nesse ônus. Sai do seu lugar de fala

imparcial. A cadeira do juiz fica vazia. Onde isso ocorria? Na inquisição. A missão do juiz em uma

democracia tem que ser maior do que isso. Que deixe as partes atuarem e cumprirem seus papéis. O

trabalho do juiz é o de resgatar a historicidade dos fatos. Atuar assim é elevar a função de juiz.

O furo é mais embaixo

O caso pode nem ser importante (a não ser, é claro, para o réu, condenado a 7 anos e meio dereclusão, se me permitem a ironia). O mais importante é o simbólico. O STJ, o STF e os tribunais em

geral insistem em descumprir a lei (pelo menos em parte considerável do território nacional). O STF,

em vários HCs, decidiu que a nulidade decorrente do descumprimento do artigo 212 do CPP é relativa.

Em um deles, disse que o advogado deveria “protestar”, sob pena de a nulidade ser convalidada.

Impressionante como os limites semânticos valem tão pouco. E por que isso é assim? Porque

continuamos a desconfiar do Parlamento. Consideramos o Parlamento impuro. Por isso, apostamos na

virtuosidade — que seria sempre decorrente da técnica — do Judiciário. A técnica seria inerente

apenas ao Judiciário. Consequentemente, como o Parlamento faz política, o faz sem técnica. Com

isso, a política fica relegada a uma a-tecnicidade. Assim, a técnica corrige a lei, porque é mal feita,imprecisa, injusta.... E como fazemos isso? Com nossos juízos morais. Sim, substituímos os juízos que

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são do legislador pelos nossos. E por que os nossos seriam melhores do que daqueles que se

elegem? Afinal, queremos uma demo-cracia  ou uma juristo-cracia ?

Temos que nos livrar do “fantasma de Oskar Bülow”, isto é, a aposta no protagonismo judicial que

atravessou os séculos. É evidente que o judiciário deve zelar pelo cumprimento da correta aplicação

da legislação. Para tanto, ele dispõe do controle de constitucionalidade difuso e concentrado, além das

técnicas de interpretação conforme, etc.. O que ele — o Judiciário — não pode fazer é se substituir ao

legislador. Se o legislador é ruim para mim, o é também para todos. E se ele for bom, o é para todos.

Esse é o mínimo de previsibilidade que eu exijo, como cidadão.

Minha leitura lenta, lentíssima, do artigo 212 do CPP

Vejamos como se formou esse ovo da serpente. Guilherme Nucci, logo que saiu a Lei, sustentou

aquilo que o Poder Judiciário queria ouvir (v.g. STJ - HC 121215/DF DJ 22/02/2010), isto é, que a

“inovação [do artigo 212 do CPP], não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a

ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da

prova. Nada se alterou nesse sentido.”[1] No mesmo acórdão e no mesmo sentido, foi citada doutrinade Luís Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, que dizem: “A leitura

apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as partes devem, inicialmente,

formular as perguntas para que, somente a partir daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a

inquirição. Não parece se exatamente assim. (...) Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional,

arraigada na ‘praxis’ forense (...)”.[2]

Minha pergunta: uma leitura apressada, professor? Então eu sou muito lento. Na verdade, alguém

poderia me chamar de Esse-lentíssimo  (se me entendem a ironia). Vamos ler, juntos, de novo o

dispositivo? Assim: “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não

admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ouimportarem na repetição de outra já respondida.” E no parágrafo único fica claro que “sobre pontos não

esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”. Veja-se: sobre pontos não

esclarecidos. Somente sobre estes é que é lícito ao magistrado complementar a inquirição. Bingo.

Consequentemente, parece evidente que, respeitados os limites semânticos do que quer dizer cada

expressão jurídica posta pelo legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da

prova testemunhal. Repito: isso até nem decorre somente do “texto em si”, mas de toda a história

institucional que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo modelo acusatório. Por isso, é

extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica de terrae brasilis , por vezes tão

arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade (ou a sintaxe)

mínima que sustenta a alteração. Daí a minha indagação: em nome de que e com base em que é

possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É

possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

E, permito-me insistir: por vezes, cumprir a “letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela

democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las “à risca” é nosso

dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois! Por isso, não é possível concordar com as considerações

de Nucci e Luiz Flávio sobre a “desconsideração” da alteração introduzida pelo legislador democrático

no artigo 212.

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E, por favor, que não se venha com a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ ( sic ) da lei” é assumir

uma postura positivista...! Aliás, o que seria essa “letra fria da lei”? E qual seria a letra “quente”? Na

verdade, confundem-se conceitos. As diversas formas de positivismo não podem ser colocadas no

mesmo patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as duas mais conhecidas) com a sua

superação pelo e no interior do paradigma da linguagem. Tudo isto já deixei explicitado em inúmeros

textos. Apenas quero relembrar que saltamos de um legalismo primitivo, que reduzia o elementocentral do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o

positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado

na ideia de direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se

constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal — e me recordo aqui de Elias Dias —, não

seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional.

Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca o texto da lei”

democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada

a ver com a “exegese” à moda antiga.

Portanto, deve haver um cuidado com o manejo da Teoria do Direito e da hermenêutica jurídica.

Olhando para a decisão do TJ-RS e para as posições doutrinárias citadas, é de se pensar em que

momento o direito legislado deve ser obedecido e quais as razões pelas quais fica tão fácil afastar até

mesmo — quando interessa — a assim denominada “literalidade da lei”[3].

Indago: juristas críticos (pós-positivistas?) seriam (são?) aqueles que “buscam valores” que estariam

“debaixo” da “letra da lei” (sendo, assim, pós-exegéticos) ou aqueles que, baseados na Constituição,

lançam mão da “literalidade da lei” para preservar direitos fundamentais?

Numa palavra final: vale a pena insistir? Eis a Montanha do PurgatórioA questão fulcral, aqui, não é discutir o caso ou os milhares de casos em que as leis são descumpridas

e mutiladas. O ponto do estofo é saber o que queremos de nossas instituições. Já não estamos

cansados de tanto ativismo?

Qual é o sentido se, em uma democracia, uma vez construída a legislação, no dia seguinte o judiciário

decida simplesmente não cumpri-la. E o Ministério Público se queda silente... E a OAB se queda

silente... O próprio Parlamento se queda silente...

E isso vai de seca à meca. Um dia é o STF determinando posse de juiz em TRF em decisão

flagrantemente contrária à “letra” da Constituição; noutro, em nome de argumentos meta-jurídicos, aSuprema Corte cassa mandato que, dias antes, dissera ser prerrogativa do Parlamento; o próprio STF

descumpre a Lei 9.868, ao emitir liminares e não as levar ao Plenário da Corte, como por exemplo, a

ADI 4.917 (dos Royalties), cuja liminar é de março de 2013, além de outras sete ações desde

2009[4] que pendem de ir a Plenário; o STJ emite súmulas contra-legem ... Os tribunais descumprem o

artigo 212 e o 564 do CPP. E assim por diante.

E a doutrina? Bem, a doutrina já de há muito se entregou, assumindo um lugar confortável de

reproduzir o que os tribunais dizem. Pior são os doutrinadores que sustentam que o direito é o que o

Judiciário diz que é, como que a repetir, tardiamente, um bordão do realismo jurídico.

O que levou a tudo isso? A resposta é simples: com esse ensino jurídico e com a mediocridade que

tomou conta do imaginário jurídico, nada mais pode nos surpreender. Confesso que estou cansando.

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Com pouca ajuda, penso em recolher minhas armas epistêmicas. Angariar antipatias cotidianas... vale

a pena?

Enfim... Sinto-me como Ulisses — e a inspiração me veio de um texto do jornalista Luis Antonio Araujo

 — que, ao deixar os encantos de Circe, conduz sua expedição até as Colunas de Hércules (o Estreito

de Gibraltar), onde era o limite do mundo, e exulta os companheiros a transpô-lo para conhecer o que

se encontra mais além (“Feitos não fostes para viver como animais mas para buscar virtude e

conhecimento”). Mas, no meio do oceano, sua última visão é a da Montanha do Purgatório, que se

ergue no poente, mas já um tufão se levanta e sepulta o navio e seus tripulantes (“Até que o mar sobre

nós se fechou”)!

[1] Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado . 8 ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2008, pp. 479-480. (grifei)

[2] Cf. Gomes, Luís Flávio; Cunha, Rogério Sanches. Pinto, Ronaldo Batista. Comentários às

Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008,

p. 302. (grifei)[3] Sobre “literalidade da lei”, remeto o leitor à introdução do Verdade e Consenso.

[4] Veja-se nesse sentido, denúncia do ministro Gilmar Mendes na ADI 4.638.