GRANDES EVENTOS DO IDP: XIX CONGRESSO...

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Organizadores

Gilmar Ferreira Mendes Paulo Gustavo Gonet Branco

GRANDES EVENTOS DO IDP: XIX CONGRESSO

INTERNACIONAL DE DIREITO

CONSTITUCIONAL (ANAIS 2016)

1ª edição

Autores:

Albie Sachs

Ana Frazão

Carlos Blanco de Morais

José Levi Mello do Amaral Júnior

José Luís da Cruz Vilaça

Juarez Quadros

Luca Belli

Luiz Alberto Gurgel de Faria

Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Rodolfo Tamanaha

Valerio de Oliveira Mazzuoli

IDP Brasília

2017

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CONSELHO CIENTÍFICO – SÉRIE IDP/SARAIVA MEMBROS EFETIVOS: Presidente: Gilmar Ferreira Mendes Secretário Geral: Jairo Gilberto Schäfer Coordenador-Geral: Walter Costa Porto Coordenador Executivo da Série IDP: Sergio Antonio Ferreira Victor

1. Afonso Códolo Belice (discente)

2. Alberto Oehling de Los Reyes – Universitat de lês Illes

Balears/Espanha

3. Alexandre Zavaglia Pereira Coelho – IDP/SP

4. António Francisco de Sousa – Faculdade de Direito da

Universidade do Porto/Portugal

5. Arnoldo Wald

6. Atalá Correia – IDP/DF

7. Carlos Blanco de Morais – Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa /Portugal

8. Everardo Maciel – IDP/DF

9. Fabio Lima Quintas – IDP/DF

10. Felix Fischer

11. Fernando Rezende

12. Francisco Balaguer Callejón – Universidad de

Granada/Espanha

13. Francisco Fernández Segado – Universidad

Complutense Madrid/Espanha

14. Ingo Wolfgang Sarlet – Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul/RS

15. Jacob Fortes de Carvalho Filho (discente)

16. Jorge Miranda – Faculdade de Direito da Universidade

de Lisboa /Portugal

17. José Levi Mello do Amaral Júnior – Universidade de São

Paulo – USP

18. José Roberto Afonso – FGV

19. Janete Ricken Lopes de Barros – IDP/DF

20. Julia Maurmann Ximenes – IDP/DF

21. Katrin Möltgen – Faculdade de Políticas Públicas – FhöV

NRW/Alemanha

22. Lenio Luiz Streck – Universidade do Vale do Rio dos

Sinos/RS

23. Ludger Schrapper

24. Marcelo Neves – Universidade de Brasília – UNB

25. Maria Alicia Lima Peralta

26. Michael Bertrams

27. Miguel Carbonell Sánchez – Universidade Nacional

Autônoma do México – UNAM

28. Paulo Gustavo Gonet Branco – IDP/DF

29. Pier Domenico Logroscino – Università degli studi di

Bari Aldo Moro/Itália

30. Rainer Frey – Universität de Münster/Alemanha

31. Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch – IDP/DF

32. Rodrigo de Oliveira Kaufmann – Universidade de

Brasília – UNB

33. Rui Stoco

34. Ruy Rosado de Aguiar – IDP/DF

35. Sergio Bermudes

36. Sérgio Prado

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Mendes, Gilmar Ferreira (Org.).

Grandes Eventos do IDP: XIX Congresso Internacional de Direito

Constitucional (2016). / Organizadores Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo

Gonet Branco. – Brasília: IDP, 2017.

114 p.

ISBN: 978-85-9534-023-7

1. Direito Constitucional. 2. Internet. 3. Economia Digital.

4. Comunicação. I. Título. II. Paulo Gustavo Gonet Branco.

CDDir 341.2

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APRESENTAÇÃO

O Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) tem como uma de suas mais caras

missões institucionais a realização de cooperações científicas com consagradas

universidades estrangeiras e com centros de pesquisa mundialmente reconhecidos. Essas

parcerias têm rendidos valiosos frutos, como a publicação de importantes estudos em

matéria de Direito Comparado e a organização de grandes eventos que possibilitam à

Academia brasileira dialogar diretamente com a comunidade jurídica internacional.

O Congresso Internacional de Direito Constitucional representa um desses ricos

espaços de intercâmbio de experiências jurídicas. Já em sua décima nona edição, o evento

reuniu em Brasília, entre os dias 26, 27 e 28 de outubro de 2016, conceituados docentes

estrangeiros e nacionais, ilustres Ministros de Estado e importantes advogados, tendo

como temática principal: Constituição e Novas Tecnologias - interfaces para um novo

Direito Constitucional. A presente obra congrega os artigos acerca dos debates travados

no evento, possibilitando aos leitores a contínua revisitação dos temas ali explorados.

Contribuíram para a presente obra os seguintes autores: Albie Sachs, Ana Frazão,

Carlos Blanco de Morais, José Levi Mello do Amaral Júnior, José Luís da Cruz Vilaça, Juarez

Quadros, Luca Belli, Luiz Alberto Gurgel de Faria, Manoel Gonçalves Ferreira Filho,

Rodolfo Tamanaha e Valerio de Oliveira Mazzuoli.

Todas essas discussões se tornam perenes com a publicação dos anais do evento.

Boa leitura a todos.

Gilmar Ferreira Mendes Paulo Gustavo Gonet Branco

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SUMÁRIO

INTERNET, NOVOS NEGÓCIOS E ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO: Desafios para a regulação jurídica.............................................................................................................................................07 ANA FRAZÃO RESPEITO PELA DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE ...................................... 28 ALBIE SACHS DEMOCRACIA DIGITAL: OS SEUS BENEFÍCIOS E RISCOS PARA A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA ....................................................................................................................................... 37 CARLOS BLANCO DE MORAIS CONSTITUIÇÃO, PRIVACIDADE, PROTEÇÃO DE DADOS E NOVAS TECNOLOGIAS ............ 47 JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR O MECANISMO DE PROTEÇÃO JURISDICIONAL DE DADOS PESSOAIS NUM SISTEMA CONSTITUCIONAL MULTI-NÍVEL – O CASO DA UNIÃO EUROPEIA .......................................... 51 JOSÉ LUÍS DA CRUZ VILAÇA TRANSMISSÃO DE DADOS E DEMAIS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES .. 61 JUAREZ QUADROS A INTEROPERABILIDADE LEGISLATIVA E O POLICYMAKING COLABORATIVO................................................................................................................................................65 LUCA BELLI ECONOMIA DIGITAL .................................................................................................................................... 74 LUIZ ALBERTO GURGEL DE FARIA SEGURANÇA PÚBLICA VIGILÂNCIA E EXERCÍCIO DE LIBERDADES NO AMBIENTE DIGITAL ............................................................................................................................................................ 82 MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO DIREITOS INTELECTUAIS E ECONOMIA DIGITAL ........................................................................... 93 RODOLFO TAMANAHA DIREITOS COMUNICATIVOS COMO DIREITOS HUMANOS: ABRANGÊNCIA, LIMITES, ACESSO À INTERNET E DIREITO AO ESQUECIMENTO ................................................................. 99 VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

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INTERNET, NOVOS NEGÓCIOS E ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO

Desafios para a regulação jurídica

Ana Frazão

Sumário

I. Introdução II. Internet, novos negócios e economia do compartilhamento: entre a inovação e a disrupção III. Os desafios dos novos negócios e da economia do compartilhamento à regulação jurídica IV. A necessária prevalência da realidade sobre a forma: ajustes, cuidados e calibrações V. Conclusões

I. Introdução

Recente reportagem da The Economist, intitulada “Eroding exceptionalism:

Internet firms’ legal immunity is under threat”1, apresenta interessante diagnóstico sobre

as razões do sucesso dos novos negócios na internet:

GOOGLE, Facebook and other online giants like to see their rapid raise as the product of their founders' brilliance. Others argue that their success is more a result of lucky timing and network effects – the economic forces that tend to make bigger firms even bigger. Often forgotten is a third reason for their thriumph: in America and, to some extent, in Europe, online platforms have been inhabiting a parallel legal universe. Broadly speaking, they are not legally responsible, either for what their users do or for the harm that their services can cause in the real world.2

A reportagem chama a atenção para o fato de que o advento das tecnologias da

informação possibilitou não apenas uma grande revolução na comunicação, mas também

a criação de novos modelos de negócio baseados no refinamento de tais tecnologias e nas

1 THE ECONOMIST. Eroding exceptionalism: Internet firms’ legal immunity is under threat. The Economist.

Disponível em: < http://www.economist.com/news/business/21716661-platforms-have-benefited-greatly-special-

legal-and-regulatory-treatment-internet-firms> Acesso em: 6 mar. 2017. 2 Tradução livre: Google, Facebook e outros gigants virtuais gostam de ver seu rápido crescimento como produto

do brilhantismo de seus fundadores. Outros sustentam que seu sucesso resulta de sincronização oportuna e de

efeitos de rede – as forças econômias que tendem a fazer de empresas grandes ainda maiores. Uma terceira razão

para seu triunfo é comumente esquecida: nos Estados Unidos e, em alguma medida, na Europa, plataformas virtuais

têm habitado um universo jurídico paralelo. Grosso modo, as empresas não são legalmente responsáveis, seja pelo

que seus usuários fazem, seja pelos danos que seus serviços podem causar no mundo real.

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possibilidades de interação entre usuários da rede, por meio de mecanismos ou

plataformas capazes de aproximar e intermediar relações entre indivíduos.

Como ensina Yochai Benkler3, a revolução da internet, longe de ser

ultrapassada, é fenômeno cada vez mais atual, na medida em que vem propiciando uma

mudança radical na forma de organização da produção de informação, que passa a

independer tanto do mercado como da propriedade. Daí se falar em nonmarket and

nonproprietary production, caracterizada pelo protagonismo dos indivíduos ou por

esforços cooperativos; e em economia da informação estruturada em rede (networked

information economy), marcada pela ação descentralizada, cooperativa e coordenada.

A partir daí, cria-se até mesmo novo paradigma de produção e consumo, que

se identifica não com a ideia absoluta de propriedade, mas com a noção de

aproveitamento de bens ociosos mediante seu emprego remunerado por usuários que

não podem ou não necessitam da aquisição de determinado bem. Emerge, assim, a figura

do “pro-sumidor”, isto é, do sujeito que, ao mesmo tempo em que participa de forma

intensa do mercado de consumo, fornece bens e serviços seus a outros consumidores.

Ocorre que, muito embora essas novas formas de interação em rede possam

trazer inúmeros benefícios aos indivíduos que delas se utilizam, seu alto grau de inovação

lhes coloca em posição incerta no que diz respeito à incidência de regulação, bem como

do tipo de regulação aplicável. A resposta a tais indagações obviamente dependerá de

algumas características fundamentais das networks, tais como a sua finalidade lucrativa

ou não, bem como os diferentes papéis que os indivíduos nelas podem assumir:

empresários, consumidores, trabalhadores autônomos ou trabalhadores assalariados.

Com isso, podem emergir não apenas problemas referentes à concorrência

com agentes atuantes em mercados regulados, os quais devem observar exigências

rigorosas, mas também questões ainda mais problemáticas sobre a incidência de normas

protetivas de vulneráveis, como o consumidor ou o trabalhador, além de outros

microssistemas destinados à proteção de interesses indisponíveis.

Não é sem razão que a reportagem da The Economist já citada4 aponta que a

era de excepcionalismo digital não pode durar para sempre e que alguns fatores impõem

uma reflexão acurada sobre a necessidade de regular tais serviços. Dentre eles,

3 BENKLER, Yochai. The Wealth of networks. How social production transforms markets and freedom. EUA:

Yale University Press, 2006. 4 THE ECONOMIST. Op. cit.

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encontram-se o tamanho de muitas empresas que exploram tais plataformas, as diversas

externalidades negativas geradas e a dificuldade crescente de se entender tais

plataformas como meras networks de comunicação marcadas pela neutralidade.

É em razão dessas preocupações que o presente trabalho pretende explorar o

fenômeno descrito, acenando para perspectivas que precisam ser consideradas na

discussão sobre a sua regulação. Por fim, será dada especial atenção à ideia de primazia

da realidade sobre a forma no âmbito de searas de regulação “dura”, apresentando, tão

somente para fins de exemplo, as controvérsias envolvendo o aplicativo Uber nas searas

trabalhista e concorrencial.

II. Internet, novos negócios e economia do compartilhamento: entre a inovação e a

disrupção

O rápido avanço das tecnologias da informação tem possibilitado não somente

a intensificação da atividade econômica por meio da operacionalização das trocas

eletrônicas e da facilitação da comunicação rápida entre agentes extremamente distantes

entre si, mas também mediante a renovação da forma pela qual a atividade econômica é

desenvolvida.

Além dos negócios dos já conhecidos gigantes da Internet, como Facebook e

Google, a rede mundial vem possibilitando outros tipos de negócio que, embora sejam

também baseados em networks, requerem uma participação mais ativa dos seus usuários.

Se o modo de produção de bens e serviços tradicionais concentra-se na figura

da empresa e em sua aptidão para reduzir custos de transação, isto é, de facilitar a

operação do mercado em razão de sua estrutura organizacional, de modo a permitir que

os frutos de sua atividade alcancem seu público consumidor5, a tecnologia facilita o

empreendimento de atividades econômicas por indivíduos. Segundo Yochai Benkler6, as

plataformas virtuais reduzem em grande medida os custos de produção, de maneira a

fomentar trocas descentralizadas levadas a cabo por indivíduos que, em lugar de

operarem por meio de estruturas societárias hierárquicas, o fazem por intermédio de suas

relações sociais.

5 A respeito da noção de custos de transação, ver: WILLIAMSON, Oliver E. Transaction cost economics: an

introduction. Economics discussion papers. n. 3, mar. 2007. 6 BENKLER, Yochai. Sharing nicely: on shareable goods and the emergence of sharing as a modality of economic

production. The Yale Law Journal. v. 114, pp. 273-358, 2004. p. 278.

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Diferentemente da atividade econômica tradicional, os serviços prestados por

indivíduos interligados por plataformas em rede caracterizam-se não pela organização e

pela produção em massa de bens e serviços, mas majoritariamente pelo

compartilhamento de bens pessoais, ociosos ou empregados de maneira a integrar

determinado serviço. Para Lawrence Lessig7, a introdução de formas de produção

baseadas não apenas na definição de preços – como na economia tradicional –, mas

também no compartilhamento de bens pessoais vem quebrar o paradigma de

propriedade, segundo o qual a melhor estratégia para a produção de riqueza é maximizar

o controle sobre os bens que se tem à disposição.

Nesse sentido, a chamada “economia colaborativa” ou “economia do

compartilhamento” consiste na combinação de elementos sociais e econômicos tornada

possível em razão de plataformas que interligam indivíduos. Por essa razão, tem-se que a

economia do compartilhamento constitui ruptura ao modo de produção tradicional,

transcendendo relações de consumo clássicas e substituindo-as pelo que se denomina

“capitalismo de multidões” (crowd-based capitalism). Dessa maneira, as plataformas peer-

to-peer, isto é, que têm o condão de interligar indivíduos, alteram a dinâmica da produção,

distribuição e consumo de bens e serviços, vindo a criar novas oportunidades de exercício

de atividade econômica8.

As “formas inovadoras de compartilhamento de bens subutilizados”9,

proporcionadas pela economia colaborativa, promovem o que se denomina por

“disrupção”, qualidade que distingue a inovação da mera mudança, consubstanciando

respostas proativas a problemas socioeconômicos. Nesse sentido, embora não se possa

afirmar que o compartilhamento de bens seja novidade, sua associação com a tecnologia

produz aperfeiçoamento técnico importante ao modo de produção capitalista, rompendo

com paradigmas antigos de fruição de bens e de produção10. A tecnologia disruptiva,

assim, tem o condão de desafiar a posição de mercado ocupada por produtos e serviços

7 LESSIG, Lawrence. Remix: making art and commerce thrive in the hybrid economy. Londres: Bloomsbury,

2008. p. 228. 8 SUNDARARAJAN, Arun. The sharing economy: the end of employment and the rise of crowd-based capitalism

[livro eletrônico]. Cambridge: The MIT Press, 2016. 9 RANCHORDÁS, Sofia. Does sharing mean caring? Regulating innovation in the sharing economy. Minnesota

Journal of Law, Science and Technology. v. 16, n.1, pp. 1-63, 2015. 10 RANCHORDÁS, Op. cit.

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tradicionais, representando risco iminente à sua substituição ou mesmo à substituição do

mercado como um todo11.

A economia colaborativa digital, quando disruptiva, torna disponíveis recursos

que anteriormente eram privados e inacessíveis, permitindo o desenvolvimento de

modelos de negócio em contínua evolução e transformação12. Dessa forma, torna-se viável

a alteração das bases de mercados como o de transporte individual de passageiros, de

serviços de hotelaria e inclusive de serviços bancários13.

As plataformas virtuais, assim, permitem que determinado indivíduo que

sempre ocupou a posição de consumidor passe a ser fornecedor, ao deixar seus bens ou

serviços à disposição de outros usuários. Trata-se do fenômeno do “pro-sumo”

(prosumption), processo no qual a interconexão entre produção e consumo é tão forte que

tais esferas não podem ser diferenciadas de forma inequívoca14. A noção de “pro-sumidor”

representa, portanto, forma híbrida de “produtor” e “consumidor”, categorias

rigidamente separadas por estudiosos das relações econômicas do pós-Revolução

Industrial como Marx15 e Baudrillard16.

Entretanto, na atualidade, é perfeitamente possível que os indivíduos realizem

incursões na seara da produção de bens e serviços, de maneira a participar e moldar os

produtos que desejam consumir, movendo-se tanto pelos incentivos econômicos

decorrentes das atividades em que participam quanto por incentivos não-monetários,

como melhores experiências de usuário17.

O fenômeno do “pro-sumidor” pode ser visualizado, por exemplo, no caso das

plataformas de vídeos na Internet, que possibilitam que qualquer usuário, ao mesmo

tempo em que acompanha vídeos produzidos por outros, organize seu canal para a

11 Ver, sobre a tecnologia disruptiva: BOWER, Joseph L.; CHRISTENSEN, Clayton M. Disruptive technologies:

catching the wave. Harvard Business Review. pp. 43-53, jan./fev. 1995. 12 LOBEL, Ory. The law of the platform. Legal studies research paper series. n. 16-212, mar. 2016. 13 O caso das fintechs, empresas que têm inovado os serviços bancários e em grande medida substituído os próprios

bancos, é extremamente interessante pelo fato de desafiar e simplificar modelo de negócios geralmente associado

a grandes capitais e à concentração de mercado. As plataformas peer-to-peer têm a capacidade de revolucionar,

por exemplo, contratos de empréstimo e de investimento, substituindo o papel de intermediação anteriormente

exercido pelos bancos. Mesmo a infraestrutura aplicável ao setor bancário vem sendo desafiada por modelos de

negócios disruptivos, fornecendo estrutura descentralizada que, mesmo sem a participação de bancos, é protegida

por protocolos de segurança avançados para a proteção das transações entre usuários. Ver, nesse sentido:

DOMBRET, Andreas R. Beyond technology – adequate regulation and oversight in the age of fintechs. Financial

stability review. n. 20, abr. 2016. 14 RITZER, George. Prosumer capitalism. The sociological quarterly. n. 56, pp. 413-445, 2015. pp. 413-414. 15 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. 16 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1975. 17 RITZER, George; JURGENSON, Nathan. Production, Consumption, Prosumption, Journal of Consumer

Culture, v. 10, n. 1, pp. 13-36, 2010. p. 14.

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veiculação de conteúdo próprio, podendo inclusive auferir lucros provenientes de

anúncios publicitários.

Adicione-se, ainda, que a indistinção entre as funções de produção e consumo

no conceito de “pro-sumidor” não é de modo algum absoluta ou estanque, tendo em vista

que é comum que um dos aspectos prevaleça sobre o outro. Nesse sentido, cada um dos

usuários de determinada plataforma pode, ao mesmo tempo que seja considerado “pro-

sumidor”, assumir com maior ênfase algum dos dois papéis18.

Certo é que as tecnologias da informação, a Internet e o surgimento dos

negócios eletrônicos modificaram a forma de organização empresarial, de maneira que a

prestação de serviços e a produção de bens dispensam grandes estruturas compostas por

muitos empregados. Ademais, a redução dos custos de transação verificada nos mercados

de tecnologia ou em mercados a eles conexos permite que empresários possam contratar

praticamente tudo o que precisam sem a necessidade de criar uma organização própria

com trabalhadores subordinados. Dessa forma, verifica-se a substituição do modelo das

grandes sociedades por estruturas simples interligadas por contratos nos quais se

esclarecem meticulosamente os direitos e responsabilidades das partes, de maneira que

as empresas possam expandir e adaptar seus negócios de forma extremamente ágil19.

As startups advindas dessa onda de novos negócios possibilitados pela

tecnologia, em lugar de separar a administração do capital acionário com baixa

participação nas decisões da empresa, estão fundadas em contratos cuidadosamente

elaborados, de modo a evitar os óbices regulatórios e políticos com os quais as grandes

corporações estão acostumadas a lidar. O sucesso dessas pequenas empresas inovadoras

é em grande medida alavancado pela atuação dos “investidores anjo”20, cujos aportes de

capital possibilitam a potencialização das ideias que motivaram a criação das startups21.

18 RITZER, Op. cit., p. 415. 19 THE ECONOMIST. Reinventing the Company. The Economist. Disponível em:

<http://www.economist.com/news/leaders/21676767-entrepreneurs-are-redesigning-basic-building-block-

capitalism-reinventing-company> 20 O ordenamento brasileiro reconhece a figura do investidor-anjo no âmbito da Lei Complementar nº 155/2016,

que permite que microempresas e empresas de pequeno porte recebam aportes de capital que não integrarão o

capital da empresa, advindos de investimentos de pessoas físicas ou jurídicas denominadas “investidor-anjo”. O

investidor-anjo, segundo a lei, não é considerado sócio e tampouco responde por qualquer dívida da empresa,

sendo remunerado com base na distribuição anual dos resultados e podendo resgatar o capital aportado em no

mínimo dois anos. 21 THE ECONOMIST. Reinventing the deal. The Economist. Disponível em: <

http://www.economist.com/news/briefing/21676760-americas-startups-are-changing-what-it-means-own-

company-reinventing-deal>.

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As características mencionadas suscitam inúmeras controvérsias, até porque

nem todos os negócios da chamada economia do compartilhamento se encaixam na

descrição acima exposta, inclusive para efeitos de serem considerados disruptivos. Em

muitos casos, as networks se limitam a aproximar, por meio de plataformas, prestadores

de serviços dos consumidores, sem causar qualquer mudança estrutural nem na

funcionalidade dos bens – que já estavam afetados à exploração econômica – nem na

qualidade dos agentes prestadores dos serviços – que já agiam como tal mesmo antes das

plataformas, ainda que sem contar com as facilidades a elas inerentes.

Tal reflexão é de fundamental importância, pois é bem mais fácil sustentar a

inaplicabilidade da regulação jurídica existente para os serviços tradicionais da

“economia real” em relação aos casos de disrupção do que em relação aos casos de

inovação, em que a melhoria ou avanço na produção dos bens ou serviços não vem

acompanhada do componente revolucionário que caracteriza a disrupção. Ocorre que,

como as networks podem agregar indivíduos com diferentes papéis, históricos e

pretensões, a identificação do que pode ser considerado disrupção pode ser um problema

de difícil solução22.

Uma coisa é certa: especialmente nos casos de disrupção, há dúvidas sensíveis

que decorrem dos papéis multifuncionais que os indivíduos assumem nas networks, como

a relativa à configuração de exercício de atividade empresarial, nos termos do artigo 966

do Código Civil. Afinal, quando indivíduos passam a exercer atividade lucrativa por sua

própria conta, de forma habitual, em que medida se pode dizer que se trata de

profissionalismo? Em que medida indivíduos que atuam na economia colaborativa não

estariam exercendo atividade empresarial? Em que medida deveriam ou não ser

considerados empresários? Para que fins?

Tais questões são essenciais para o desenvolvimento saudável da economia

colaborativa, o que exige a estruturação de um regime de responsabilidade para os

diversos agentes envolvidos, tanto para aquele que que explora a logística do negócio, por

meio do desenvolvimento e disponibilização da plataforma que interligará os usuários

22 Vale notar que, apesar de a economia do compartilhamento ter por premissa a prestação de serviços por usuários

a outros usuários, é fenômeno conhecido a entrada de agentes empresariais organizados nessas plataformas. Dessa

maneira, serviços de hospedagem como o AirBnB e plataformas de pequenos serviços como o TaskRabbits

apresentam operações de grande monta, com usuários dispondo de vários imóveis a serem locados ao mesmo

tempo ou verdadeiras estruturas empresariair destinadas a prestar serviços. Situação semelhante ocorreu com a

plataforma de vendas eBay, na qual os usuários de maior destaque não são indivíduos, mas grandes agentes

econômicos (os chamados power sellers). Ver, nesse sentido: ALDEN, William. The business tycoons of Airbnb.

The New York Times Magazine. 25 nov. 2014.

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(prestador de serviço e consumidor), quanto para aquele que presta efetivamente o

serviço.

Em casos assim, por mais que o grande organizador da atividade seja o criador

da logística ou do aplicativo, resta saber em que medida os cidadãos que aderem à

plataforma para prestar serviços ou ofertar bens – e, dessa maneira, assumem igualmente

uma parcela da organização – não deveriam ser também considerados empresários.

Certamente que a economia colaborativa possibilita inúmeras formas de

cooperação entre os indivíduos, havendo várias delas que, em razão de não cumprirem o

requisito do profissionalismo, não poderiam ser consideradas empresariais. Porém,

havendo a habitualidade e o aspecto organizacional que caracterizam a atividade

empresarial, uma primeira conclusão é a de que devem ser assim consideradas23. Não

sendo empresários, resta saber se são trabalhadores autônomos ou trabalhadores

assalariados, para efeitos da incidência da legislação trabalhista.

Como as relações que se estabelecem entre os indivíduos na economia do

compartilhamento são múltiplas, diversificadas e extremamente dinâmicas, nem sempre

será fácil verificar o caráter empresarial ou não de determinadas interações, o que mostra

a importância de uma maior reflexão sobre o tema. A economia do compartilhamento,

tendo em vista sua natureza fluida, dinâmica e potencialmente disruptiva, tende a não se

amoldar perfeitamente às formas jurídicas elaboradas para regular serviços tradicionais.

Semelhantes indagações se colocam igualmente diante dos demais tipos de

negócios da internet, em relação aos quais se questiona em que medida a tecnologia

empregada realmente os torna disruptivos ou é apenas um meio de aprimorar um serviço

já existente.

Como já se adiantou, todas essas questões são de fundamental importância

pois, quanto mais se entender que os novos negócios e a economia do compartilhamento

se afastam da economia real, mais é difícil sustentar a aplicação da regulação existente

sobre esta aos novos modelos de negócio. Os desafios impostos à regulação jurídica, nesse

sentido, serão abordados na seção a seguir.

III. Os desafios dos novos negócios e da economia do compartilhamento à regulação

jurídica

23 Segundo Benkler (Op. cit., 2004, pp. 330-345), o compartilhamento pode ser visto como verdadeiro modo de

produção.

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A tendência mundial pela regulação de serviços online, como ocorreu no

âmbito da Comissão Europeia com vistas a normatizar serviços de comunicação como

Skype e Whatsapp no que diz respeito à proteção de dados pessoais, evidencia a especial

preocupação que tais atividades merecem da normatização jurídica24.

Por mais que esses novos negócios ou a economia do compartilhamento

tenham como marca a inovação, nem sempre há um descolamento total em relação aos

serviços tradicionais. Pelo contrário, muitas vezes os “novos negócios” são substitutos

diretos – ou pelo menos apresentam alto grau de substituibilidade – dos serviços já

existentes, concorrendo diretamente com estes. É o caso do Skype e do WhatsApp em

relação aos serviços de telefonia, do Uber em relação aos serviços de táxi25 e do AirBnB

em relação aos serviços tradicionais de hotelaria.

Não obstante, uma característica comum dos novos players é negar a

proximidade com os serviços tradicionais, insistindo no caráter absolutamente inovador

de suas atividades, com o objetivo claro de afastar qualquer possibilidade de incidência

da regulação prevista para os primeiros. No caso dos serviços da economia do

compartilhamento, a estratégia é insistir no papel exclusivo de intermediação, o que

permite ao Airbnb, por exemplo, apresentar-se como intermediário entre imóveis ociosos

e possíveis interessados em alugá-los por um curto período, assim como à Uber defender

que apenas conecta passageiros a motoristas particulares independentes.

Trata-se do que alguns doutrinadores denominam por “empreendedorismo

evasivo”26, característica dos negócios que se distanciam (ou pretendem se distanciar) do

arcabouço institucional ao qual os demais agentes estão submetidos. Embora

empreendedores evasivos desafiem a regulação formal, não operam necessariamente na

ilicitude, mas muitas vezes em zonas de penumbra das instituições.

Por mais que o empreendedorismo evasivo não necessariamente tenha

conotação negativa – pelo contrário, pode inclusive ser interessante para a elaboração de

políticas públicas e de regulação que produzam ambiente empresarial fértil, de maneira a

24 Ver a Diretiva 2002/58/EC do Parlamento Europeu e Conselho, de 12 de Julho de 2002 e, mais recentemente, a

Proposta de Regulamento sobre a proteção de dados pessoais, de 10 de Janeiro de 2017. 25 Apesar de os serviços oferecidos por táxis e pela Uber serem essencialmente os mesmos e, portanto, concorrerem

diretamente, estudo do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica

demonstrou que, na entrada da Uber no mercado, não ocorreu propriamente usurpação dos clientes do serviço

tradicional, mas a Uber gerou nova demanda, isto é, o serviço digital conquistou novos clientes, que não utilizavam

serviços de táxi. Ver: ESTEVES, Luiz Alberto. Rivalidade após entrada: o impacto imediato do aplicativo Uber

sobre as corridas de táxi porta-a-porta. Documentos de trabalho – CADE. n. 03, 2015. 26 ELERT, Niklas; HENREKSON, Magnus. Evasive entrepreneurship. Small Business Economics. v. 47, n. 1,

pp. 95-113, jun. 2016.

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reformar as instituições já existentes27 –, operar à margem da regulação pode ser

prejudicial a diversos sujeitos afetados pela atividade em questão, especialmente no que

toca a situações de vulnerabilidade, como as tuteladas pelo Direito do Trabalho e pelo

Direito do Consumidor.

Apesar da delicadeza da questão, no plano teórico, a compreensão da

regulação dos novos negócios e da economia do compartilhamento tem se colocado

normalmente a partir de uma perspectiva simplista e maniqueísta, em que as alternativas

são extremas: ou se entende que os novos negócios não se diferenciam, na essência, dos

serviços já existentes, motivo pelo qual devem estar amplamente submetidos à regulação

destes, ou se entende que os novos negócios são totalmente diferentes e únicos, motivo

pelo qual devem ser imunes à regulação já existente28.

Já do ponto de vista dos consumidores, estes tendem a ver os novos negócios

com muito otimismo, em razão da gratuidade ou dos benefícios que normalmente são

apresentados, como praticidade, maior qualidade ou menor preço29. Nem sempre os

usuários percebem que não existe propriamente gratuidade, já que “pagam” com seus

dados pessoais e a possibilidade de serem facilmente acessíveis para fins de publicidade

e outros propósitos comerciais30, assim como nem sempre se atenta para o fato de que os

menores preços ou a melhor qualidade dos novos negócios podem decorrer de questões

circunstanciais, já que os seus prestadores precisam desafiar os agentes econômicos

tradicionais, a fim de conquistar mercado. Nada assegura que, deixando de existir

rivalidade, os entrantes não irão abusar da posição dominante obtida, aumentando os

preços, por exemplo.

Todas as controvérsias relacionadas aos novos negócios são ainda travadas em

ambiente no qual o lobby tanto dos agentes já atuantes no mercado – a favor de uma

equiparação linear dos novos negócios aos serviços da economia tradicional – como dos

27 Nesse sentido: ELERT; HENREKSON, Op. cit. 28 Ver: KATZ, Vanessa. Regulating the sharing economy. Berkeley Technology Law Journal. v. 30, n. 385, pp.

1067-1126; MILLER, Stephen. First principles for regulating the sharing economy. Harvard Journal on

Legislation. v. 53, pp. 147-202, 2016. 29 A respeito dos benefícios da economia compartilhada para o consumidor, ver: SUNDARARAJAN, Op. cit.;

LESSIG, Op. cit. No mesmo sentido, Benjaafar et al (Peer-to-peer product sharing: implications for

ownership, usage and social welfare in the sharing economy. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers2.cfm?abstract_id=2669823> Acesso em: 19 fev. 2017) pontuam que o

consumo colaborativo tem o potencial de aumentar o acesso ao passo que reduz investimentos em recursos e

infraestrutura, de sorte a aumentar o bem-estar dos consumidores – na medida em que podem passar a usar

determinado produto ou serviço que anteriormente não poderiam custear – e reduzir externalidades negativas. 30 Ver: FEDERAL TRADE COMMISSION. Big data: a tool for inclusion or exclusion? Understanding the issues.

Washington: FTC, 2016. p. 1.

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entrantes – contra qualquer tipo de equiparação e, de certa forma, a favor da ausência de

regulação em relação aos novos negócios – tem um grande peso. Os novos agentes,

conforme pontuam Rauch e Schleicher31, procuram influenciar seus clientes leais e

interpelar políticos e reguladores, de modo a compensar seu baixo grau de organização

com investidas de marketing apoiadas na tecnologia, com vistas a seduzir e convencer o

poder público e a população sobre a qualidade dos novos negócios e a inadequação da

regulação sobre eles.

Observa-se, nesse contexto, a necessidade imperiosa de exame mais atento do

problema, que possa levar em consideração as semelhanças e diferenças entre os novos

negócios e os já existentes, bem como os impactos desta comparação para a questão da

regulação. Embora não haja respostas prontas para o problema, algumas preocupações

precisam ser salientadas desde já.

A primeira delas é que a correta compreensão dos novos negócios requer

provavelmente uma posição intermediária entre as alternativas extremas de que estes ou

são “mais do mesmo” ou são totalmente diferentes dos serviços tradicionais. Na verdade,

embora não se possa negar que os novos negócios têm suas diferenças e originalidades,

estes, mesmo quando disruptivos, muitas vezes se apresentam como substitutos dos

serviços tradicionais, exercendo relevante pressão competitiva sobre estes.

Analisando os novos negócios sob um ponto de vista funcional, fica difícil negar

que existem semelhanças e graus de substituibilidade suficientes entre os novos negócios

e os da “economia tradicional” para justificar a discussão sobre se a regulação prevista

para estes deveria alcançar também os primeiros. Por outro lado, existem também muitas

peculiaridades que podem justificar tratamentos diferenciados em determinadas searas.

Desse modo, a regulação dos novos negócios e das plataformas advindas da economia do

compartilhamento envolve ponderação importante sobre a necessidade de criação de

novas normas ou tão somente de revisitar normas já existentes32.

No caso específico da economia do compartilhamento, ainda há que se

considerar que, por mais que os novos mercados possam ser vistos como distintos, estão

muitas vezes conectados funcionalmente aos mercados do “mundo real”, motivo pelo qual

pode não fazer sentido, para efeitos regulatórios e concorrenciais, uma cisão absoluta

31 RAUCH, Daniel; SCHLEICHER, David. Like Uber, but for local government law: the future of local regulation

of the sharing economy. Ohio State Law Journal. v. 76, n. 4, pp. 2015. p. 928. 32 KATZ, Op. cit., p. 1087.

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entre o serviço de intermediação e o serviço final da prestação de serviço, já que o

primeiro é totalmente dependente do segundo.

Dessa maneira, não obstante as especificidades, diferenças, eficiências e

inovações dos novos negócios e da economia do compartilhamento, tais aspectos não são

suficientes para justificar um total isolamento destes, do ponto de vista regulatório e

concorrencial, diante dos demais serviços regulados. Por mais que se trate de análise

necessariamente casuística, em alguns casos pode ser sustentável que, em face das

grandes semelhanças, a melhor solução possível seja uma regulação única para os novos

negócios e os serviços tradicionais33.

A segunda observação é que a regulação dos novos negócios e da economia do

compartilhamento precisa estar atenta às suas repercussões concorrenciais. Embora

possa ser defensável que os novos negócios não devam estar sujeitos à mesma regulação

dos serviços tradicionais, ainda mais quando esta é considerada inadequada e falha

mesmo em relação a estes, é inequívoco que tais deficiências regulatórias se

potencializam quando são aplicadas apenas aos serviços já existentes34.

Por essa razão, o argumento da inadequação da regulação dos serviços

tradicionais, como justificativa para manter os novos negócios imunes do ponto de vista

regulatório, pode gerar uma série de distorções concorrenciais, fazendo com que apenas

os agentes anteriormente estabelecidos estejam sujeitos aos custos e aos ônus da

regulação já existente, enquanto que os entrantes dos novos negócios estejam na situação

ideal de total liberdade e ausência de regulação35.

Tal aspecto mostra como a questão regulatória está intrinsecamente ligada à

questão concorrencial e que a discussão sobre a regulação dos novos negócios deve ser

pensada também à luz de novas alternativas para a regulação dos serviços tradicionais, a

33 Nesse sentido, ver: RANCHORDÁS, Op. cit., pp. 50-54. 34 O aplicativo Uber é o cerne da controvérsia contida em uma série procedimentos que tramitam perante o CADE,

podendo ser destacados o Inquérito Administrativo nº 08700.010960/2015-97, motivado por representação da

Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, segundo a qual o serviço traria desequilíbrio à

concorrência; o Procedimento Preparatório nº 08700.004530/2015-36, motivado por representação da Associação

Boa Vista de Táxi, em que se alega que a Uber, ao prescindir dos requisitos regulatórios impostos aos táxis, obtém

vantagem concorrencial indevida; e o Processo Administrativo nº 08700.006964/2015-71, ensejado por

representação dos Diretórios Centrais dos Estudantes da Universidade de Brasília e do Centro Universitário de

Brasília em face do Sindicato dos Permissionários de Táxi e Motoristas Auxiliares do Distrito Federal, alegando

que os taxistas teriam incorrido em abuso de direito de petição (sham litigation) em suas investidas para

obstaculizar o serviço Uber. 35 Ver: RAUCH; SCHLEICHER, Op. cit.

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fim de que ambos os setores estejam sujeitos a regulação adequada e que não gere ônus

ou facilidades exageradas para nenhum dos segmentos.

Com efeito, a intervenção do Estado deve ser idônea para propiciar a

competição pelo mérito entre serviços com considerável grau de substituibilidade, não

parecendo adequada a opção apriorística de se manter a regulação dos serviços

tradicionais – muitas vezes antiquada e geradora de inúmeros custos e ineficiências – e

não se regular em absoluto os novos negócios. A regulação dos novos negócios requer,

portanto, harmonia e coerência com a regulação dos serviços tradicionais, podendo

inclusive exigir a reforma da regulação destes últimos.

A terceira observação é que a regulação deve estimular, na medida certa, a

inovação e os novos arranjos contratuais que se mostram como alternativas eficientes

para as novas demandas da realidade, reduzindo custos de transação e apresentando

diversos benefícios. Entretanto, alguns limites precisam ser observados36.

Tal questão está relacionada ao desafio de entender em que medida a

tecnologia muda a essência dos serviços ofertados ou, na verdade, simplesmente propicia

novos formatos e configurações do mesmo serviço, sem afetar substancialmente a

natureza ou a essência deste, muito menos para o fim de impossibilitar a aplicação da

regulação específica que sobre este se projeta. As preocupações sobre a necessidade de

regulação da economia do compartilhamento se agravam quando se trata de searas que

lidam com normas cogentes que visam assegurar interesses públicos indisponíveis e

tutelar vulneráveis, a exemplo do Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, Direito da

Concorrência, Direito Ambiental e Direito Tributário.

Em relação a tais áreas, não há dúvidas de que os novos negócios devem ser

regulados ou até mesmo sujeitos integralmente às regulações já existentes, até porque

estas normalmente se baseiam em conceitos econômicos de maior abrangência, a fim de

impor as responsabilidades respectivas ao efetivo titular do poder empresarial, qualquer

que seja a forma do exercício deste poder ou da atividade por ele desenvolvida. Trata-se,

na verdade, da implementação do princípio da prevalência da realidade sobre a forma, tão

caro a searas que lidam com interesses públicos indisponíveis, como se verá na seção

seguinte.

36 RANCHORDÁS, Op. cit; BENKLER, Op. cit., 2004; SUNDARARAJAN, Op. cit.

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IV. A necessária prevalência da realidade sobre a forma: ajustes, cuidados e

calibrações

Como já se sinalizou, o limbo regulatório em que se situam os novos negócios,

aqui incluídos aqueles advindos da economia do compartilhamento, não pode servir de

pretexto para afastar a incidência de normas protetivas de interesses públicos

indisponíveis e destinadas à tutela de vulneráveis. Muito embora as plataformas digitais

apresentem inúmeras vantagens, seja do ponto de vista financeiro para prestadores de

serviços, seja pela implementação de mecanismos de feedback que empoderam

consumidores para que sua opinião de fato tenha consequências sobre a qualidade do

serviço prestado37, os players envolvidos nessas novas atividades econômicas não podem

se eximir de sua responsabilidade nessas searas sensíveis.

Se pode haver dúvida sobre a incidência de regulação setorial de transporte de

passageiros sobre serviços como o da plataforma Uber ou de normas sobre hotelaria sobre

o AirBnB, deve ser claro que a responsabilidade trabalhista, tributária, antitruste,

consumerista, entre outras searas de regulação dura, deverá incidir. O princípio da

primazia da realidade sobre a forma, regra nessas searas, permite que se configurem

relações jurídicas dessas modalidades ainda que a empresa negue sua existência, de

maneira a fixar sua responsabilidade se preenchidos os respectivos requisitos.

Um bom exemplo para tal análise é o serviço Uber. Por mais que a empresa

sustente que sua atividade se resume à intermediação entre consumidores e prestadores

autônomo de serviços de transporte de passageiros, já existem decisões judiciais que

reconheceram a existência de vínculo empregatício entre a empresa e seus motoristas.

Foi o que ocorreu no âmbito da Justiça do Trabalho do Reino Unido (Employment Tribunal

de Londres)38, que recentemente afirmou que os motoristas da Uber são empregados – e

não autônomos ou agentes empresariais – para efeitos das proteções legais

correspondentes. A ação foi proposta por motoristas da Uber contra a controladora

sediada na Holanda e também contra as duas controladas que operam na Inglaterra, a

Uber London Ltd e a Uber Brittania Ltd39.

37 Ver: KOOPMAN, Christopher et al. The sharing economy and consumer protection regulation: the case for

policy exchange. The Journal of Business, Entrepreneurship & the Law. v. 8, n. 2, pp. 529-545, 2015. 38 REINO UNIDO. Employment Tribunals. Aslam and Farrar v. Uber. Caso nº 2202550/2015. Data de julgamento:

28.10.2016. 39 Para chegar à conclusão pela existência do vínculo de trabalho (dependent work relationship), o Tribunal,

preliminarmente, analisou com cuidado o negócio da Uber, diante do seu argumento de que apenas presta serviços

de tecnologia. Já no início de sua fundamentação, o Tribunal adverte que qualquer organização (i) que gerencie

uma empresa em cujo núcleo estejacoração está a função de transportar pessoas em veículos motorizados, ; (ii)

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Um ponto importante para desconstruir a tese de que a Uber seria mero

intermediador é que os motoristas não podem negociar com os passageiros, exceto para

reduzir a tarifa determinada pela Uber. Dessa maneira, o contrato entre o motorista e o

passageiro seria, na verdade, pura ficção40. Todos esses fatos foram considerados para

mostrar que, não havendo contrato entre o motorista e o passageiro, existe contrato entre

o motorista e a Uber, por meio do qual o primeiro, mediante compensação, torna-se

disponível para transportar passageiros da Uber. Dessa maneira, entendeu o Tribunal que,

na medida em que o contrato formal não correspondia à realidade, já que o verdadeiro

acordo entre as partes está localizado no campo das relações de trabalho dependente

(dependent work relationship), o ajuste firmado entre as partes poderia ser

desconsiderado.

Caso semelhante ocorreu na Justiça do Trabalho brasileira quando a 33ª Vara

do Trabalho de Belo Horizonte41 também reconheceu vínculo empregatício entre um

motorista e a empresa Uber. Segundo a decisão, a evolução tecnológica desempenha

importante papel na evolução das relações laborais, sendo necessário perceber que, ao

longo de todo esse processo de desenvolvimento tecnológico, manteve-se constante a

extração de valor da força de trabalho. Com isso, entendeu o Juízo que estavam presentes

os elementos configuradores da relação de emprego (pessoalidade, onerosidade, não

eventualidade e subordinação), na medida em que a empresa exercia diversas formas de

controle sobre a jornada do motorista, o qual não poderia ser considerado autônomo.

que opera opere em parte por meio de empresa que procura se desviar das responsabilidades reguladas de um

transportador privado - ou seja, o PHV -– (Private Hire Vehicle – operator); –- mas (iii) exige que motoristas e

passageiros concordem, contratualmente (“as a matter of contract”, ), que ela não provê presta o serviço de

transporte; e (iv) recorre, em seus documentos e cláusulas contratuais, a ficções, linguagem retorcida (twisted

language) e novas terminologias (brand new terminology) merece certo grau de ceticismo. 40 Dentre os inúmeros aspectos explorados pelo Tribunal para justificar a grande ingerência da Uber sobre os seus

motoristas e a consequente existência da relação de trabalho, encontram-se os seguintes: (i) o fato de a Uber

entrevistar e recrutar motoristas; (ii) o fato de a Uber controlar as informações essenciais (especialmente o

sobrenome do passageiro, informações de contato e destinação pretendida), excluindo o motorista destas

informações; (iii) o fato de a Uber exigir que motoristas aceitem viagens e/ou não cancelem viagens, assegurando

a eficácia desta exigência por meio da desconexão dos motoristas que violarem tais obrigações; (iv) o fato de a

Uber determinar a rota padrão; (v) o fato de a Uber fixar a tarifa e o motorista não poder negociar um valor maior

com o passageiro; (vi) o fato de a Uber impor inúmeras condições aos motoristas (como escolha limitada de

veículos aceitáveis), assim como instruir motoristas sobre como fazer o seu trabalho e, de diversas maneiras,

controlá-los na execução dos seus deveres; (vii) o fato de a Uber sujeitar motoristas, por meio do sistema de rating,

a determinados parâmetros que ensejarão procedimentos gerenciais ou disciplinares; (viii) o fato de a Uber

determinar questões sobre descontos, muitas vezes sem sequer envolver o motorista cuja remuneração será afetada;

(ix) o fato de a Uber aceitar o risco da perda; (x) o fato de a Uber deter as queixas dos motoristas e dos passageiros;

e (xi) o fato de a Uber se reservar ao poder de alterar os termos contratuais em relação aos motoristas

unilateralmente. 41 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Processo nº 0011359-34.2016.5.03.0112, Juiz Marcio Toledo

Gonçalves, Data de Julgamento: 13.02.2017.

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A descrição dos pontos fundamentais da decisão do Reino Unido e da decisão

da Justiça do Trabalho de Belo Horizonte mostra a tentativa dos julgadores de, em lugar

de se renderem às formas contratuais e à linguagem dos instrumentos firmados pela

empresa e pelos motoristas, buscar a essência do negócio desenvolvido pela Uber e das

relações travadas com os prestadores de serviços. Por essa razão, os casos podem ser

vistos como exemplos de aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma,

tão caro para a regulação jurídica da economia42.

Não se está, com tal afirmação, negando a complexidade da atividade

desenvolvida pela Uber nem os inúmeros aspectos de inovação e eficiência que estão por

trás do referido modelo de negócios. Tampouco se procura afirmar a plena concordância

com todos os fundamentos expostos pelas decisões. As duas decisões foram aqui

mencionadas em razão da sua relevância para a compreensão da repercussão jurídica dos

serviços advindos da economia do compartilhamento43.

Por outro lado, não se pode negar que diversas outras preocupações decorrem

de tal modelo de negócios, como as concorrenciais. Afinal, se os motoristas não são

empregados da Uber, mas transportadores autônomos, tem-se que o serviço envolve a

coordenação de agentes econômicos independentes, o que pode, pelo menos em tese,

consistir em infração concorrencial.

Nesse sentido, é necessário novamente esclarecer que tal debate não se

direciona exclusivamente à Uber, mas também a diversos outros negócios que,

pertencendo ou não à chamada economia colaborativa, envolvem as denominadas

42 A situação da Uber é ainda agravada em razão da assimetria de informações entre a empresa e os motoristas. O

algoritmo que dá estrutura à plataforma é também fator fundamental da estrutura de poder que se ergue sobre os

empregados. Nesse sentido, a plataforma não serve para superar estruturas de poder, mas é em si mesma uma nova

forma de moldar essas relações. Nesse sentido, ver: ROSENBLAT, Alex; STARK, Luke. Algorithmic labor and

information asymmetries: a case study of Uber drivers. International Journal of Communication. v. 10, pp.

3758-3784, 2016. 43 Vale notar que o parâmetro da flexibilidade de horário é característica que desafia o conceito tradicional de

subordinação, na medida em que os trabalhadores gozam de certa autonomia com relação ao empregador, que, em

lugar de exercer controle direto sobre suas atividades, o fazem de outras maneira, como pelo controle de

produtividade ou de metas específicas (ROSENFIELD, Cinara; ALVES, Daniela Alves. Autonomia e trabalho

informacional: o teletrabalho. Dados. v. 54, n. 1, 2011). Da mesma maneira, a noção de subordinação estrutural

acolhida pelo julgado de Belo Horizonte é extremamente fluida e abrangente, motivo pelo qual deve ser vista com

certa cautela. É o que se verifica da definição fornecida por Mauricio Godinho Delgado (Direitos fundamentais na

relação de trabalho. Revista de Direitos e Garantais Fundamentais. n. 2, pp. 11-39, 2007. p. 37), para quem

“Estrutural é, pois, a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus

serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua

dinâmica de organização e funcionamento. A idéia de subordinação estrutural supera as dificuldades de

enquadramento de situações fáticas que o conceito clássico de subordinação tem demonstrado, dificuldades que se

exacerbaram em face, especialmente, do fenômeno contemporâneo da terceirização trabalhista. Nessa medida, ela

viabiliza não apenas alargar o campo de incidência do Direito do Trabalho, como também conferir resposta

normativa eficaz a alguns de seus mais recentes instrumentos desestabilizadores – em especial, a terceirização”.

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plataformas de dois lados. Tais plataformas acabam possibilitando não apenas a

intermediação entre os dois lados do mercado, mas também, em alguns casos, a

coordenação em ambos os lados ou pelo menos em um deles44.

Tendo em vista que a empresa Uber não se limita a colocar em contato

motoristas e consumidores – os dois lados da plataforma, mas também determina as

condições da prestação de serviço e o preço, a plataforma neutraliza a concorrência entre

os motoristas, apesar de considerá-los transportadores autônomos. Por outro lado, é esta

uniformização do serviço e do preço que possibilita que a atividade seja vista pelo

consumidor como única, estabilizando o padrão de qualidade da plataforma e gerando as

eficiências que decorrem da referida coordenação45.

Veja-se, portanto, que a uniformização e a coordenação entre os motoristas da

Uber é pressuposto fundamental do seu modelo de negócios, embora nem sempre tal

aspecto seja examinado com a devida atenção. Afinal, do ponto de vista concorrencial,

todas as atenções têm normalmente se voltado para as repercussões da competição entre

o serviço Uber e os táxis, sem maior cuidado na análise das relações entre os diversos

transportadores autônomos que passam a estar sob o poder de coordenação – quando

não do poder hierárquico – da plataforma46.

Com efeito, por mais que tal coordenação possa ser geradora de eficiências, é

inequívoco que a neutralização das condições de rivalidade entre os diversos

transportadores autônomos que aderem à plataforma não pode ser vista como algo

desprovido de repercussões concorrenciais, ainda mais inexistindo uma regulação

específica sobre tais mercados47.

44 A respeito de plataformas de dois lados, ver: ROCHET, Jean-Charles; TIROLE, Jean. Platform competition in

two-sided markets. Journal of the European Economic Association. v. 4, n. 1, pp. 990-1029, jun. 2003. 45 Ver: NOWAG, Julian. The UBER-Cartel? UBER between labour and competition law. Lund Student Law

Review. v. 3, 2016. 46 Nesse sentido: LOBEL, Op. cit. Poder-se-ia questionar, é certo, que os motoristas não estariam concorrendo

entre si na inexistência da plataforma, pois não teriam como chegar ao mercado consumidor. Entretanto, isso não

dispensa a análise de legalidade desse tipo de arranjo, ainda mais porque a intermediação realizada pela plataforma

poderia ocorrer de outras maneiras, muitas delas menos restritivas da livre concorrência, na medida em que

poderiam assegurar maior autonomia aos motoristas, especialmente no que diz respeito à precificação. 47 Evidentemente que o problema não existiria se os transportadores da Uber fossem empregados, já que a

coordenação dentro da empresa, por meio do poder hierárquico que o empresário exerce sobre os seus empregados,

não apenas é considerada normal, como é o aspecto que caracteriza a própria empresa (COASE, Ronald. The

nature of the firm. Economica. v. 4, n. 16, pp. 386-405, nov. 1937.). Logo, a prevalecer o entendimento do Tribunal

do Reino Unido (REINO UNIDO. Employment Tribunals. Aslam and Farrar v. Uber. Caso nº 2202550/2015. Data

de julgamento: 28.10.2016), no sentido de que há relação de trabalho dependente entre os motoristas e a Uber, a

preocupação concorrencial ora exposta se desfaz. Da mesma maneira, se afastaria de plano a conduta

anticoncorrencial se se tratasse de integração entre empresários, ou seja, de um ato de concentração econômica.

Neste caso, a integração até poderia estar sujeita ao controle prévio de estruturas para o fim de se sopesar os seus

efeitos anticoncorrenciais, mas não haveria problemas na coordenação dos agentes em si, já que esta é

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Tais considerações sobre o Direito do Trabalho e o Direito Concorrencial

servem para demonstrar, em primeiro lugar, que os novos negócios não podem ser

imunes a determinadas searas protetivas, ainda que possam procurar albergar-se na falta

de clareza sobre a regulação setorial aplicável.

Adicione-se, ainda, que a emissão de juízos apriorísticos sobre a repercussão

das relações travadas entre as plataformas e os sujeitos a ela conectados (seja para

consumo, seja para prestação de serviços) pode não ser adequada para o correto

endereçamento das controvérsias daí advindas, sendo necessária análise acurada dos

casos concretos.

Além disso, especialmente no que diz respeito à seara antitruste, importa

notar que as plataformas de dois lados e a economia do compartilhamento exigem uma

nova reflexão sobre as funções e utilidades da coordenação nos mercados, o que

certamente traz impactos importantes para o Direito da Concorrência, exigindo

adaptações de suas premissas e metodologias.

V. Conclusões

Os novos negócios e a economia do compartilhamento trouxeram benefícios

nunca antes vistos, congregando interesses econômicos e sociais de maneira a gerar

grandes mudanças sobre as formas de consumo e produção. Contudo, é fundamental

compreender a dinâmica de tais serviços para que se aplique ou elabore modelo de

regulação jurídica adequado às necessidades deles advindas.

Como se procurou demonstrar ao longo do estudo, especialmente nos casos de

inovação, deve ser feito um esforço para se aplicar a regulação já existente para a

economia real, diante do princípio da primazia da realidade sobre a forma. Mesmo nos

casos de disrupção, principalmente nas áreas de regulação “dura”, é imperativo que se

aplique, ainda que por meio de uma interpretação funcional, os comandos já existentes

para a proteção de vulneráveis e interesses difusos da maior importância.

Por outro lado, qualquer tentativa de aplicação ou adaptação da regulação

existente para os novos negócios e a economia do compartilhamento precisa ser

extremamente cuidadosa. Muito embora já existam decisões pelas quais plataformas

precisamente o que justifica a concentração (FRAZÃO, Ana. Dilema antitruste: o Uber forma um cartel de

motoristas? Por definir preço de corrida, aplicativo também influenciaria adoção de conduta uniforme?. Jota. 12

dez. 2016).

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virtuais foram responsabilizadas por encargos trabalhistas, tais situações não podem ser

vistas como triviais. A inovação trazida por tais serviços, sem dúvida, não é capaz de

afastar a incidência de normas protetivas de vulneráveis ou de interesses indisponíveis,

mas, da mesma forma que as trocas econômicas têm sido ressignificadas em razão das

peculiaridades dos serviços oriundos da economia do compartilhamento, é essencial que

se verifique a adequação dos procedimentos e metodologias que esses ramos do direito

procuram aplicar a tais casos.

Por fim, impõe-se que a análise jurídica não se detenha exclusivamente a suas

categorias antigas – e talvez até antiquadas –, mas procure compreender esses novos

fenômenos sob uma perspectiva funcional, para garantir simultaneamente a eficiência

que deles decorre e a proteção de todos os interesses envolvidos, garantindo, ao final, que

a inovação e a disrupção possam sempre ocorrer em cenário no qual haja o equilíbrio

entre poder empresarial e responsabilidade, sempre em observância ao princípio da

primazia da realidade sobre a forma.

Referências

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Sobre a autora

Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-

Conselheira do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-

Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em

Direito pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Econômico e

Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito e Estado pela

Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Líder do GECEM – Grupo de Estudos

Constituição, Empresa e Mercado.

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RESPEITO PELA DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE

Albie Sachs

Eu preparei uma intervenção sobre a internet, com muita dificuldade, eu não estou

realmente bem integrado neste assunto. Mas na última hora me foi oferecido uma

oportunidade de falar sobre um tema que está mais perto da minha condição e eu vou

começar com isso em inglês. Dia 08 de abril de 1988 foi dia da mulher moçambicana, um

feriado público, eu estava exilado, eu estava indo, de repente para a praia, de repente veio

“Bum”, simplesmente uma escuridão. Eu não sei o que está acontecendo, mas eu sei que é

algo terrível e depois de algum tempo eu ouvi uma voz me dizendo em português: Albie,

você está no hospital central de Maputo, teu braço foi amputado, ele está em condições

lamentáveis, você tem que enfrentar o futuro com coragem e eu respondi: o que

aconteceu? E uma outra voz, a voz de uma mulher disse: foi um carro-bomba. Isso me fez

desmaiar, mas desmaiar de alegria, porque eu sabia que eu estava seguro. Eu não tinha

sido sequestrado, não me levaram para o outro lado da fronteira para ser preso na África

do Sul, e naquele momento, aquele era o momento que todo prisioneiro luta, esse

momento de nós sermos bravos, de sermos, perdão corajosos, eles tentaram me matar e

eles falharam, então o pior momento da minha vida foi o melhor momento da minha vida.

Eu me senti muito feliz e estar aqui me lembra que a língua de comunicação, a língua do

pensamento naquela época foi o português e eu tenho uma convicção de que eu melhorei

e se eu melhorei o meu país, a África do Sul, também iria melhorar, e foi isso que

aconteceu. A história que eu vou contar para vocês hoje começa no meu escritório, na

Corte de Constitucional, o telefone tocou e a pessoa falou: Oi. Tinha um homem, que quer

te ver, o nome dele é Henry, ele tem um horário com você, posso manda-lo entrar? Eu

falei: sim, eu vou encontra-lo no portão de segurança e o meu coração começou a bater

muito forte, eu estava andando em direção à segurança e eu lembro do Henry, ele era

oficial na Inteligência Militar da África do Sul que tinha organizado a bomba a ser colocada

no meu carro e agora ele estava participando da Comissão de Reconciliação na África do

Sul e me perguntaram se eu queria vê-lo, e eu falei que sim. Eu abri a porta e lá estava ele,

alto e magro como eu, mas ele era mais baixo, mais novo e eu vi em seus olhos a mensagem

de que ele sabia que eu era o homem, que ele tentou me matar, que ele tentou matar, e eu

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vi também, ele viu nos meus olhos que eu sabia que ele tentou me matar, nós nunca

tínhamos nos encontrado anteriormente, mas ele estava daquele lado e eu estava do lado

de cá. Ele andou até o meu escritório marchando como um soldado e eu utilizei a minha

melhor forma de andar para tentar ficar calmo. Nós nos sentamos, nós falamos, falamos,

falamos, falamos por muito tempo e ele me falou com orgulho que ele era um bom aluno

e também com orgulho o quanto ele tinha avançado dentro do exército e ele explicou

sobre a bomba e por que ele colocou a bomba e eu falei para ele: bom agora eu tenho que

continuar o meu trabalho, eu me levantei, normalmente, geralmente, quando eu falo

“Tchau” para alguém, normalmente, eu aperto a mão da pessoa, mas nesse caso eu não

posso apertar a sua mão, mas depois que você passar por esta comissão talvez isso

aconteça. E eu lembro que quando eu estava andando de volta ele não estava marchando

mais como um soldado, ele estava apenas andando, de forma devagar, um pouco

desorientado e eu falei adeus. E o que era essa Comissão da Verdade da qual ele iria

participar? Suas origens não são muito bem conhecidas, mas eu acredito que são muito

interessantes. É uma reunião dos executivos nacionais do Congresso Nacional Africano,

em novembro de 2003 apenas alguns meses antes da nossa primeira, das primeiras

eleições democráticas, uma reunião muito apaixonada e a questão que nós estávamos

discutindo era o que fazer em relação aos relatórios de uma comissão que nós tínhamos

estabelecido que afirmou que durante os esforços de liberdade as nossas pessoas tinham

utilizado tortura contra agentes inimigos que haviam sido capturados. As recomendações

foram de que nós deveríamos tomar atitudes contra os membros da INC, e agora nós

estávamos discutindo o que fazer e alguns de nós nos levantamos e falamos: o relatório

está aí agora nós temos que tomar atitudes. Outros não, falaram não, isso é um mal

entendido. Nós temos que ver que as circunstâncias são diferentes, as pessoas da

segurança e os alunos que vem aqui lutar por liberdade eles não sabem nada sobre

métodos de interrogação. Um dos meus colegas se levantou e falou: eu ouvi algo muito

interessante hoje é algo chamado a tortura do Apartheid e uma coisa chamada a tortura

da INC, aparentemente a INC pode fazer isso, mas o regime não pode fazer isso. É um

debate muito intenso e uma das questões que vocês tem que pensar é uma questão moral:

quem é você? Quais são as suas principais crenças? O que você defende? E então Alguém

disse: tem alguma coisa muito estranha na nossa discussão, nós somos muito corretos

quando estamos debatendo as nossas falhas, mas em relação à violência extrema que o

Estado colocou sobre nós envolvendo milhares de pessoas, cadê os limites nesse

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momento? E aí meu colega levantou e falou: o que nós precisamos é uma Comissão da

Verdade que vai olhar todas as violações dos direitos humanos que foram cometidas

durante essa luta pela Liberdade, então paradoxalmente nossa Comissão Verdade veio de

uma necessidade da ANC chegar a democracia com o coração aberto e com mãos limpas.

Não com uma visão para expor os crimes do regime, mas para lidar com as nossas próprias

falhas, mas ao mesmo tempo com as terríveis falhas do regime antigo. Depois de algum

tempo eu estava em Londres, estava falando com o Instituto internacional católico e de

relacionamentos e que nos apoiou muito durante a nossa Constituição. Eles me colocaram

em um hotel bem pequeno em uma área bastante pobre e aquele lugar me lembrava das

minhas raízes a medida que nós estávamos tendo melhores negociações as minhas

acomodações também começaram a ficar melhores. Naquela época nós não tínhamos uma

máquina de fax no hotel e eu ia dormir, de repente alguém bateu na porta e falou desculpa

incomodá-lo, mas nós recebemos um fax muito urgente da África do Sul. Vocês lembram

do fax? Daqueles telex que a gente recebia antigamente? A gente tinha que ler de uma

forma e era muito difícil e nesse fax dizia que tinha uma crise, os generais de segurança

estavam dizendo que o presidente tinha oferecido anistia a eles, mas não tinha nada no

texto constitucional que iria concedê-los essa anistia. Eles diziam que ia proteger o

processo democrático e que nós sabíamos de tentativas que haviam sido feitas para

bombardear as primeiras eleições causando grandes números de mortos, nós vamos

arriscar as nossas vidas para que isso não aconteça, mas isso está nos pedindo, está

demandando muito de nós para que nós consigamos implementar a democracia e os

nossos chefes políticos não vão para a cadeia, nós não estamos ameaçando fazer um golpe,

nós estamos simplesmente dizendo que vamos renunciar ir para outro lugar e vocês vão

precisar encontrar outras pessoas para lidar com a questão de segurança. Tinha uma

página no fax que parecia ser bastante interessante parecia falar sobre empatia e eu falei,

quando eu vi esse papel eu percebi que nós não podemos dar uma anistia geral depois de

todas as violações, das torturas, dos desaparecimentos, uma anistia simples e ampla seria

algo muito cruel, mas nós podemos usar uma Comissão para fazer com que os indivíduos

possam reconhecer o que eles fizeram e se eles falarem a verdade e reconhecerem o que

fizeram eles podem sim conseguir essa anistia. E isso então foi escrito na nossa

Constituição e a nossa Comissão da Verdade é a única que combinou anistia com

declarações individuais na Comissão da Verdade. Tem uma qualidade muito importante,

nós na verdade tínhamos três agrupamentos na Comissão da Verdade. Um era apenas

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para deixar as pessoas normais falarem, falarem sobre suas dores, esse é o oposto do

direito, o esquecimento, esse aqui é o direito de ser lembrados e nós tínhamos um oficial

que estava liderando essa área da Comissão. Ele não estava indo para lindos lugares. Não,

ele estava indo para dentro da comunidade e começando com essas histórias das pessoas

muitas delas começaram a chorar quando contavam suas histórias e elas simplesmente

eram abraçadas. Elas podiam falar em suas próprias línguas e os intérpretes eram muito

importantes nesse momento, milhares de pessoas deram seu testemunho em todo o País.

Milhares de outras pessoas também escreveram suas histórias que foram registradas. O

segundo grupo tinha a função de conceder a anistia. Tinham dois juízes e duas pessoas

ordinárias, basicamente se você falasse a verdade sobre o que tinha acontecido, se você

estabelecesse, falasse o que você fez foi durante o conflito político e houvesse uma

proporcionalidade entre os seus feitos e o que aconteceu você poderia sim receber anistia.

Muitas pessoas solicitaram essa anistia, muitos, a maioria eram ladrões que diziam que

estavam roubando porque eram pobres, porque eles eram negros e falaram dos diferentes

contextos nos quais eles estavam. Em dois casos muito importantes a anistia foi recusada

porque as pessoas envolvidas não falaram a verdade de uma forma completa e ficou muito

claro, mas em muitos outros casos a anistia foi concedida e ela foi concedida ao Henry.

Esse foi o segundo grupo. O terceiro grupo tinha a ver com as reparações e foi o grupo

menos bem sucedido. Essa reparação envolvia pagamentos, mas nós sabemos que a

reparação real tem que vir do coração, tem que ser algo significativo. Nós temos que ter

esse testamento bastante significativo eu acredito que nós poderíamos ter feito muito

melhor nesse grupo. Já faz 20 anos desde essa TLC, dessa Comissão, muitos livros estão

sendo escritos em relação a isso, existem também peças e também músicas sendo escritas

falando sobre isso e muitos dos testemunhos que estão sendo utilizados. Também existem

músicas revolucionárias que estão falando sobre isso, mas isso é ainda algo muito

polêmico no nosso País. Como eu me sinto com isso? O que fez a nossa Comissão da

Verdade tão poderosa é que ela foi baseada no princípio a qual eu tinha me oposto. Eu

acreditava que se as pessoas tinham feito coisas terríveis e se elas fossem obrigadas a

testemunhar em público elas nunca fariam isso, mas depois da experiência que nós

tivemos que foi bastante valiosa eu sugeri que nós tivéssemos entrevistas privadas. A

sociedade civil não gostava dessa ideia de anistia, elas pediam que fosse algo em público,

mas felizmente para o nosso processo as pessoas não me ouviram elas ouviram a

sociedade civil porque o que aconteceu foi que todo mundo lembra desses testemunhos.

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Ninguém lê os documentos, ninguém lê esses documentos, mas todo mundo lembra das

vozes, das lágrimas, das lamentações, das linguagens, das polícias falando do que eles

tinham feito, isso foi que as nossas pessoas estavam dizendo, nós vimos o que nosso povo

fez com o nosso povo e isso chegou, alcançou as diferentes casas. Nós ouvimos isso na

televisão, no rádio, nós não estávamos apenas capturando uma parte da nossa história,

isso aí era uma parte da história, a Comissão da Verdade era uma parte da história e

também isso me fez pensar por que tanta verdade apareceu nessa Comissão da Verdade?

Quando poucas verdades parecem, aparecem nos nossos tribunais. Isso foi algo bastante

interessante. Muitos sul-americanos acreditam que a justiça não foi feita da melhor forma.

Algumas pessoas acreditavam, por exemplo, naquela história do Oscar Pistorius achando

que era verdade, outros achavam que não era verdade, mas nós sabemos que isso muitas

vezes acontece, nós temos um processo de justiça que ele não termina com a justiça final,

a justiça que nós acreditamos que é a devida. Eu inventei quatro categorias de verdades

para me ajudar a entender isso. O que eu chamo de observação microscópica da verdade,

você define um terreno, você olha as variáveis, você mede essas variáveis, elas mudam

com o tempo você vai marca-las e você vai chegar à conclusões a partir disso. Pode ser

ciência, pode ser um caso judicial onde os documentos definem quais são as questões,

quais são os desafios e depois decisões são tomadas. Depois também você tem a verdade

lógica, isso não depende da observação isso depende da lógica. Por alguma razão, o

exemplo que me vem à mente é quando o meu livro, o manuscrito do meu livro, falando

sobre a minha luta, eu escrevi ele em Nova Iorque, e eu dei para os meus agentes, os meus

colegas agentes em Nova Iorque e quando eu fui vê-la com este livro, eu sabia toda a vida

dela. Dentro de 5 minutos ela começou a me contar a vida dela e no final ela disse: bom,

vamos entender que os seres humanos realmente são uma espécie cheia de defeitos e a

senhora tem razão. Sim, eu sou uma pessoa que tem defeitos, assim como todos os outros.

Isso está seguindo a lógica do que ela falou e todos nós temos defeitos e o trabalho legal

forense lida com a verdade observacional que é testada e a verdade lógica, mas também

existe a verdade baseada na experiência. Essa é uma ideia que eu tirei do Gandhi, em seu

livro que ele escreveu sobre os seus experimentos com a verdade nós fizemos

experimentos na escola, lembra que a gente utilizava aparelhos químicos para fazer

experimentos, esses experimentos são coisas que acontecem na nossa vida e na época

também no livro do Gandhi ele fala sobre diferentes experimentos de vida. E para mim

um exemplo muito importante foi quando ele estava com os auxiliares médicos das forças

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coloniais que mataram alguns rebeldes e submeteram alguns capitães a tortura também,

eles chicotearam essas pessoas e eles lavavam essas feridas dessas pessoas e as tropas

estavam observando e ele percebeu que o corpo humano era uma fonte de muita dor para

muitas pessoas e que seria errado tirar, ter prazer, com nosso corpo e foi por isso que ele

resolveu desistir de ter relações sexuais, mas ele não começou dizendo: eu tenho que

desistir de ter relação sexuais, e portanto, isso, isso, aquilo. Não, ele começou como

experiência e dessa forma ele chegou a um principio e para a maioria de nós essa verdade

baseada em experiência é o que nos guia. Nós não andamos por aí com microscópios, nós

nos interrogamos através das nossas experiências e essa era a força da Comissão da

Verdade. As pessoas estavam falando utilizando suas próprias vozes, estavam contando

as suas próprias histórias para serem acreditadas, para serem ouvidas e finalmente existe

o que eu chamo de verdade dialógica. Nós temos experiência, observação e de diferentes

aspectos, a Comissão da Verdade tinha diferentes membros e eles conversavam entre si.

O diálogo era feito em frente ao público e também existia um diálogo feito por trás e a

força da Comissão da Verdade estava baseada nas suas verdades experimentais e

dialógicas. Em relação à reconciliação, nós ainda não estamos reconciliados na África do

Sul no sentido de aceitação por toda a população de que todos nós somos iguais e que a

vida é igual para todos nós. Que a raiva baseada na violação, nas violações do passado e

as justiças já passaram, já fazem parte do passado, mas se nós não tivéssemos tido a

Comissão da Verdade, nós ainda teríamos essa sensação de amargura. Coisas terríveis

aconteceram e elas foram simplesmente negadas e nós não conseguiríamos mover em

direção a uma sociedade igual se nós tivéssemos duas histórias de um mesmo País. Dentro

desse País duas memórias diferentes. Você não vai estar vivendo no mesmo País. Nós

podemos apenas começar a viver no mesmo País se houver uma concordância de que

essas coisas horríveis aconteceram e nós chegamos a essa concordância porque as

pessoas responsáveis, elas reconheceram as suas, os seus problemas, o que elas fizeram.

Então, nós não podemos negar que isso aconteceu na África do Sul e o quão cruel isso foi.

O conhecimento é fato e informação. Nós sabemos que essas coisas acontecem. O

reconhecimento é trazer a informação para dentro do seu ponto de vista, seu

conhecimento emocional das coisas. Como que eu seria comportado? O que que nós

poderíamos fazer? Como eu posso fazer que isso se evite no futuro? Então, precisamos

aprofundar esse conhecimento. Então, pelo menos nós abrimos o caminho e eu acho que

eu gosto de sentir que o Tribunal Constitucional teve um papel fundamental, não somente

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porque o caso muito importante foi trazido a nós por pessoas que tinham perdido os seus

entes queridos para assassinatos e tortura, dizendo como a Comissão da Verdade pode

garantir anistia e acessar direitos a esses indivíduos e não dar a satisfação de manda-los

à prisão e nós examinamos todas essas questões e foi um dos mais difíceis que fizemos e

um julgamento foi escrito belamente pelo meu colega e é um dos casos que você não pode

definir a embasamentos técnicos é uma questão muito profunda. É um jogo do País, é o

motivo pelo um dos quais nós temos uma Constituição. A necessidade de, a verdade que

aconteceu era tão profunda que o Parlamento, nós demos incentivo aos assassinos e isso

nos permitiu descobrir novos corpos para que as pessoas descobrissem como seus

parentes tinham sido mortos, para que eles conseguissem fazer seus funerais. Isso

aconteceu conosco, como País e nós concordamos que essa lei passou dos padrões

constitucionais do Tribunal Constitucional. Deveria ser localizado, nós escolhemos a

prisão em Joanesburgo e as pessoas perguntaram: como vocês podem ter um Tribunal

dentro dessa prisão onde o Mandela estava preso? Então, as pessoas particularmente

foram submetidas a humilhações em particular terríveis e aí nós dissemos: não, a prisão

é parte da nossa história e essas coisas aconteceram, não neguem a dor do passado, mas

não se prendam a dor do passado. Peguem essa terrível energia negativa e a transformem

positividade. É uma frase na Bíblia em inglês: transforme as espadas em paz! Em

português como se fala essa frase, essa passagem? Não temos aqui acadêmicos da Bíblia.

Você pode pegar uma espada, você pode jogar ela fora, pode quebrar essa espada é bem

útil isso. E se essa mesma espada se tornar um instrumento para cavar é algo muito mais

poderoso. É por isso que nós escolhemos esse lugar. Nós escolhemos pegar a dor e

transformá-la e se tornou um símbolo de positividade do que pode ser feito, então

qualquer pessoa que chega na prisão sabe que não parou ali e também pode saber que

qualquer pessoa que saiba, que chega até o tribunal saiba da dor que já aconteceu ali. No

fim do ano, muito quente, eu fui para uma festa com os meus amigos, tinha música alta e

eu ouvi uma voz: Albie, essa voz disse! E aí eu olhei e era o Henry. Ele estava muito feliz,

ele é um diretor e estava fazendo um filme sobre os soldados que foram para a Comissão

da Verdade e ele estava sorrindo e nós chegamos em um canto e eu perguntei: Henry, o

que que aconteceu e ele disse: eu fui para a comissão da verdade e eu encontrei o Bob,

usando os primeiros nomes com todo mundo. Ele também me chamava de Albie, e aí eu

falei: Henry, eu tenho você para me dizer o que é que está acontecendo e a verdade e ele

saiu dessa conversa quase flutuando e eu quase desmaiei. E ele disse depois, ele de

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repente, ele disse depois que ele saiu da festa e que chorou por duas semanas. Eu não sei

se é verdade, mas eu prefiro acreditar que seja verdade isso, mais isso significa muito mais

para mim do que mandar ele para a cadeia porque nós moramos no mesmo País e as

pessoas estavam tentando matar umas às outras e nós moramos no mesmo País. E em

Colômbia recentemente eu fui para, tem alguns juízes que simplesmente não mandam as

pessoas para cadeia ou então executam. Elas têm essa justiça restaurativa que transforma

as pessoas, não é perdão. Eu não perdoei o Henry, eu não tenho o poder de perdoa-lo, ele

precisa entender isso. Ele tem que entender o que que é o quê, mas ele transcendeu essa

situação é um tipo de generosidade que está no espírito de Mandela, o espírito da nossa

nação, o espírito da nossa Constituição e a generosidade é muito poderosa, é muito

poderosa. E as pessoas precisam descobrir a humanidade dentro delas mesmas. Temos

que ver o que vai acontecer eventualmente na Colômbia, mas o que foi interessante falar

dos dois lados é que, é o que eu chamo de vingança suave, isso é transcender a raiva, a

amargura e ver as coisas de um ponto de vista mais suave. E eu me pergunto se aqui no

Brasil, eu nem sei. Nós encontramos muitos brasileiros no exílio quando eu estava em

Moçambique, muitos torturados, muito já haviam sofrido muito e no Brasil para mim é

um País de felicidade, de alegria, de exuberância, de criatividade, dos cariocas, de futebol

e ainda assim é um país assassinatos e eu não sei se o Brasil já se resolveu com o isso. Eu

não sei se teve algo tipo a nossa Comissão da Verdade. E isso importa? Eu acho que isso

importa em qualquer País. Eu não sei se, o formato não precisa ser o mesmo, não precisa,

se você está olhando para a reparação o importante é que você está olhando para a

verdade. Vocês precisam entender que parte das pessoas que sofreram tanto, elas, essas

pessoas vão ser reconhecidas e o mais importante é assegurar que essas coisas não vão

acontecer de novo, então é um prazer enorme para mim falar com vocês e compartilhar

essas experiências. Eu fui para o paraíso por não falar sobre a internet, mas é muito mais

valoroso para mim falar sobre isso. Transmitir para vocês como nós falamos em

Moçambique: Obrigadíssimo. É muito maravilhoso, uma cópia de um DVD chamado:

Suave Vingança, que só tem cerca de 15 minutos falando sobre a minha vida em

Moçambique e também captura o momento, tem até o momento de quando eu fui

explodido. Eu não falei com as pessoas da publicidade. Eu não arrumei com as pessoas da

publicidade para que eu estivesse na câmera, mas vai mostrar o que que aconteceu de

verdade e principalmente o processo de transformação todo que aconteceu na África. E

também vou deixar uma cópia desse livro que fala sobre a bomba e também todo processo

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de recuperação.

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DEMOCRACIA DIGITAL: OS SEUS BENEFÍCIOS E RISCOS PARA A

DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Carlos Blanco de Morais*

*Mestre e Doutor pela universidade de Lisboa e Professor

catedrático da faculdade de direito de Lisboa.

1. A erosão da democracia representativa

Se pegarmos em fatores tão diversos como a Câmara dos deputados na crise

do impeachment no Brasil, a impotência do Parlamento britânico perante o Brexit e o

afundamento dos partidos do centro na Europa em face da ascensão da direita e esquerda

radicais e populistas , eles confirmam um velho postulado de Cocozza no final dos anos

80, de que a democracia representativa estaria deficitária na sua legitimidade e que

careceria ela própria de ser democratizada.

Diversas ideias difusas confluem na crítica às insuficiências do paradigma

clássico da democracia-representativa de Shumpeter; Dahl e Sartori que tenderam a

valorizar a componente eletiva de representantes a ideia força de que se trata de um

processo em que o povo decide livremente, por maioria, quem serão os decisores. A apatia

derivada da insatisfação da cidadania com os seus representantes geraria atos eleitorais

cada vez menos participados e transformaria os partidos em máquinas de publicidade

organizada, financiadas de modo opaco e destinadas a, com base em ideias simplificadas

e manifestações de propaganda lúdica, fazer eleger candidatos, no sentido de Gaetano

Mosca, de que a democracia instilaria nos eleitores a ideia elegeriam os candidatos,

quando seriam estes a fazer-se eleger.

São os seguintes os sintomas da crise da representação:

i) Reducionismo eleitoral: o Modelo representativo seria insuficiente para

exprimir todos os ângulos da vontade popular no governo da “Polis” pois, entre atos

eleitorais, o povo não teria capacidade de influir na tomada de decisões (problema

assinalado há muito por Rousseau quando, na crítica à democracia representativa

britânica terá aduzido que o povo britânico, sem se aperceber, seria escravo entre duas

eleições);

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ii) Clausura no processo de decisão: existiria na democracia representativa uma

“Cidade Proibida”, um circuito de decisão sobre grandes problemas nacionais fechado à

discussão em espaço público, que importaria romper através de acesso à informação e da

intervenção de um número alargado de cidadãos no debate desses problemas (

Habermas);

iii) Captura do poder político pelos grandes centros de poder económicos e

financeiros ( Habermas) internos e externos, graças ao modelo de globalização e

concentração de riqueza, à colonização dos media por grupos económicos, e à forte

dependência das campanhas dos partidos relativamente a interesses particulares

forçando “trade offs” ilícitos entre o público e o privado;

iv) Sobre-representação nos media de minorias poderosas: os mandatários

eleitos tomariam decisões sob pressão de influentes minorias sobre-representadas e

enquistadas nos media e universidades que liderariam a opinião pública e a agenda desses

mandatários sobre questões relativas à vida individual e familiar, à liberdade de

expressão e consciência e ao tema da soberania,;

v) Engessamento da representação : alguns institutos do processo eleitoral

diminuem a liberdade, igualdade e competitividade do processo eleitoral (Munck),

destacando-se: cláusulas-barreiras muito elevadas; “cordões sanitários” dos partidos do

“mainstream” contra partidos ideologicamente estigmatizados com alta votação em

sistemas eleitorais maioritários, a manipulação dos círculos eleitorais intentando

favorecer e instrumentalização dos midia para demonizar certos partidos anti-sistema

(§).

vi) Partidocracia e representação: A relação fiduciária eleitor/representante,

seria “curto-circuitada” por partidos de eleitores com programas difusos, “cartelizados”

entre si ( Rudolf Koole), fechados aos eleitores, dotados de direções profissionalizadas

que monopolizam as candidaturas e tutelam os representantes eleitos os quais, declarada

a sua independência em relação a quem os elegeu, passariam a vincular-se

exclusivamente ao aparelho partidário ou à própria liderança governativa);

vii) Afastamento das elites e eleitores do processo representativo: Graças a

fatores como a degradação da imagem pública dos dirigentes afetados pela corrupção , do

aparelhismo partidário, a militância declinou, altos quadros técnicos fugiram da politica,

e os eleitores não se identificam com os partidos.

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viii) A “federação” dos partidos nacionais em cartéis supranacionais de“partidos

europeus” na U.E que co-decidem a nível das instâncias de governo da União, levam a que

se relativize a importância das escolhas eleitorais, e se questione a utilidade da

democracia

2. Contributos catalíticos da representação: democracia semidireta, participativa e

deliberativa

Várias conceptualizações de democracia têm sido avançadas como formas de

“revitalização ” qualitativa da representação política.

A democracia semi-direta, com o uso do referendo tem estado em expansão na

Europa como complemento à democracia representativa que todavia teme os resultados

da vontade popular como sucedeu no Brexit. Setores conservadores apostam na via

referendária para curto-circuitar a clausura da elite do poder. Sem os referendos que

mataram o tratado constitucional europeu a U.E. seria hoje uma federação.

A democracia participativa, incentiva os cidadãos e as suas estruturas

associativas a intervir na tomada de decisões pelos poderes públicos, fazendo-o, em regra,

a título consultivo sempre que estejas em causa os seus direitos ou interesses protegidos.

Tratou-se de uma construção que, no plano teórico originário, teve raízes em alguns

pensadores marxistas, como Poulantzas, ou da nova esquerda, como Pateman. Um salto

qualitativo experimentado pela “democracia participativa” , já dessacralizada da sua

componente ideológica, consistiu no fenómeno da concertação social. Esta, com forte peso

na Alemanha, implica a necessidade de se institucionalizarem estruturas de

representação pública das corporações empresariais e sindicais erigidas a “parceiros

sociais” do Estado, para permitir que a sociedade civil transmita à sociedade política,

através de procedimentos e regulados, o seu entendimento sobre políticas públicas no

domínio económico e social.

Finalmente emerge a democracia deliberativa que bebe, no pensamento de

Habermas,. Este esboça uma construção com um fundamento epistemológico de matriz

ético republicana de integração inclusiva dos cidadãos na definição das políticas públicas.

Para esta corrente o processo de decisão compreenderia a existência de

mecanismos formais e informais destinados a permitir vias de comunicação inclusiva,

alargada e participada no espaço público sobre matérias submetidas a decisão das

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autoridades representativas. O objetivo seria potenciar uma cidadania crítica,

responsável e vigilante que possa informar, discutir e “deliberar” no espaço público sobre

as questões relevantes, de modo que a decisão final do poder político seja instruída e

condicionada pelo produto do debate. A integração de minorias marginalizadas seria uma

preocupação desta construção que considera que apenas “mais democracia

representativa” não resolveria certos problemas como a de um universo eleitoral onde a

classe média seja claramente maioritária e classes mais baixas e desprotegidas, uma

minoria: o modelo competitivo daria ao primeiro estrato social mais representantes e o

poder de negar direitos e proteção ao segundo estrato como defende no Brasil Alvaro de

Vito.

A política deliberativa operaria através de duas vias: a via institucional (onde

seria possível integrar num processo juridico a intervenção cidadã) e a via extra-

institucional, integrada pelo debaten livre no espaço público, encontrando-se as duas vias

interligadas. A democracia deliberativa não se confundiria, com a democracia

participativa, sem prejuízo de estimular uma participação alargada e informada dos

cidadãos. Contudo há quem entenda como Álvaro de Vito que, na medida em que não se

posicione como alternativa à democracia representativa, a democracia deliberativa

poderia não ser mais do que a e atualização das velhas teorias da participação.

3. A dimensão extra-institucional e tecnológica da democracia deliberativa

As discussões mais intensas em torno da configuração e projeção da dimensão

extra-institucional da democracia participativa foram catalisadas durante as “primaveras

árabes”, no pico dos movimentos europeus de contestação à austeridade durante a crise

das dívidas soberanas, ao Wikileaks, ao “Brexit” e aos movimentos pró e anti-imigração na

Europa .

O ativismo político informalizou-se através das redes sociais, mormente do

Facebook, dos blogs e do twitter ultrapassando a rigidez da comunicação social clássica,

as fronteiras nacionais, as hierarquias tradicionais de feitura da opinião pública, e as

barreiras entre o público e o privado.

O novo espaço publico de debate alargou-se à blogoesfera e ao ciberespaço

onde todos podem comunicar e ser lidos, onde desde o Papa aos dirigentes políticos usam

o tweet para passar mensagens curtas que são respondidas por muitos cidadãos, que têm

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a ilusão de comunicar diretamente com o decisor, apoiando-o, aconselhando-o,

criticando-o ou insultando-o.

Por exemplo, através dos meios informais de comunicação eletrónica: foram

convocados manifestantes para a praça Tharir fazendo cair o regime de Mubarak no Egito;

soçobraram eleitoralmente partidos que galopavam nas sondagens (caso do PP espanhol

em 2004 depois dos atentados de Madrid, confrontado com manifestações à boca das unas

convocadas por sms onde se alertava para as mentiras do Governo sobre a origem dos

mesmos atentados); foram convocadas manifestações colossais de jovens indignados em

Portugal e Espanha atingidos pela austeridade, das quais resultou o fortalecimento de

partidos de extrema-esquerda; mobilizaram-se manifestações encarniçadas e semanais

contra a imigração pelo PEGIDA em Dresden; passaram-se mensagens ferozes na

campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia oxidou-se a campanha

presidencial norte-americana com a divulgação de e-mails problemáticos; e até se

derrotou, via Facetime, um golpe militar na Turquia em julho de 2016.

Esta vertente comunicativa de massas da chamada democracia deliberativa,

que alguns designam por “democracia digital”, geraria um espaço de opinião influente

pautado pelo dinamismo, fluidez, novos atores, liberdade difusa, ativismo, imediatismo,

conteúdo sintético e horizontalidade (parificando a posição de governantes e governados

e fazendo-os interagir como refere Saskia Sassen.).

4. Forças e riscos da democracia deliberativa “digital”

a) Democracia ou revolução na comunicação e acesso ao espaço público?

Em termos teóricos, a “democracia deliberativa” constitui uma narrativa

filosófica que, no fundo, se propõe democratizar, não só a representação mas a própria

“democracia participativa”,. A bem da verdade, trata-se de um “aggiornamento” do

discurso teórico da democracia participativa com correção das suas insuficiências

reclamando que as vias e meios de intervenção cidadã impliquem um tratamento igual

entre participantes, o que exclui a redução da participação ao circuito gasto das grandes

corporações envolvidas no “jogo” da concertação social; à opinião pública tecida ex

cathedra a partir dos media detidos pelos grandes interesses económicos.

Só que a mesma construção doutrinária, no plano institucional, pouco ou nada

adianta em relação à oferta tradicional da democracia participativa, pois não dá,

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nomeadamente, respostas, sobre o modo: como se poderá potenciar a intervenção

esclarecida das minorias culturalmente menos educadas); como poderão ser erigidos

canais de comunicação do individuo no espaço público e junto do poder fora as vias de

petição e discussão pública; e, como seria possível que os que intervêm no espaço público

pudessem ser tratados como iguais.

Já a componente extra-institucional da democracia deliberativa resulta ser mais

caótica mas mais instigante, sobretudo na sua dimensão digital. É um facto que a discussão

no espaço público se alargou tremendamente na chamada “blogosfera”, com o acesso

individualizado e grupal das massas ao ciberespaço, mediante a utilização de tweets,

blogs, jornais eletrónicos informais e páginas eletrónicas com uma componente em vídeo,

mitigando-se, em parte, o império crescentemente concentrado do áudio visual e da

imprensa escrita em papel. Por outro lado, a imprensa escrita digital interagiu com a

blogosfera, passando muitos artigos de imprensa a alimentar-se das opiniões e

informações postadas no ciberespaço e criando, simultaneamente, espaços para que

artigos de opinião publicados “online” sejam sujeitos a comentários dos leitores,

potenciando-se uma interação com as redes sociais.

A sobredita “democracia digital” na sua componente difusa e libertária,

refletiria uma sociedade crescentemente informada, emancipada e ativa, que confrontaria

o poder político e disputaria o espaço público com os opinion makers. E é um facto que a

expansão transfronteiriça da blogosfera abala governos e hierarquias políticas dentro das

fronteiras de cada Estado, já que o domínio da esfera privada dos governantes passa a ser

ferozmente escrutinado, são eliminadas barreiras à circulação de informação relevante

que flui com uma velocidade inédita e emergem novos atores políticos transnacionais que

possuem um domínio efetivo sobre o conteúdo, dessa informação, tal como reconhece

Miriam Bascunan.. A dimensão mais oculta do poder fica por vezes a descoberto e a

autoridade dessacraliza-se, sendo obrigada a sair a terreiro para justificar condutas

embaraçosas ou controversas.

Ao acederem eles próprios ao twitter e ao permitirem-se dialogar com

qualquer cidadão no espaço público os decisores são confrontados com interlocutores

incómodos que divulgam informação comprometedora que os obriga a responder e a

descer ao patamar dos cidadãos. Por outro lado, respostas desadequadas e impulsivas

com mau acolhimento na opinião pública obrigam o decisor a retratar-se e até a demitir-

se ( João Soares), expondo-se a uma erosão de imagem e a um debate multipolar cujo

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desfecho não domina. Finalmente, a denúncia de comportamentos irregulares ou ilícitos

de governantes nas redes sociais, sempre que divulgados ou ampliados pelos media

clássicos, é um fator de retroalimentação de potenciais inquéritos ou investigações

Em síntese, a blogosfera passou a segregar um sincrético e indefinível limite adicional ao

poder político,gerando-se uma via extra-orgânica e difusa de controlo do poder político

sem precedentes

b) Escrutínio difuso ou via de descredibilização e enfraquecimento dos governantes ?

Reconhecendo alguns impactos positivos da “democracia digital” no acesso à

informação e à faculdade do povo interagir com o poder, existem dúvidas sobre a sua

capacidade de aumentar o nível de desempenho da democracia,. Cumpre tecer quatro

considerações

1º. Sendo certo que o ciberespaço permite um melhor conhecimento dos

cidadãos sobre problemas de ordem económica, política e social o facto é que muitos dos

dados disponibilizados são oriundos de fontes fidedignas, são frequentemente distorcidos

e simplificados, pois são concebidos para a ação política numa lógica instantânea de ação

e reação. Muitas de ordem política fazem-no com um propósito de combate destinado a

atingir alvos cirúrgicos adversos e, muito frequentemente, quer o cidadão médio quer o

jornalista ( campanha eleitoral americana), tomam a “nuvem por Juno” assumindo e

difundindo como verídicos, simples boatos, contra-informações, ou noticias parcialmente

verdadeiras. Para Fernando Vallespin trata-se de um “mundo órfão de verdade onde a

textura do real se abre a uma gama ilimitada de interpretações”. A inexistência de filtros

efetivos ou de instrumentos de controlabilidade da informação e o despontar de uma

cascata acrítica de fontes que emergem como matrioskas a partir de outras fontes difusas

e cria “terras de ninguém” onde não se torna racionalmente possível desmontar ficções,

boatos fantasistas ou mensagens difamatórias. Isto, porque uma boa parte dos debates

políticos nas redes sociais tendem a ser maniqueístas não propendendo os cibernautas

para o escrutínio do que lhes é fornecido: ou se está “in”, ao lado da informação

controversa e se procede à sua partilha com comentários simples e favoráveis ou se está

“out” combatendo-a de uma forma elementar e verbalmente violenta.

Em suma, a difusão da informação nas redes sociais, não envolve,

necessariamente, conhecimentos mais exatos. Para Vallespin realidade e a ficção no

conúbio entre a política, os media e as redes sociais terão gerado uma rede parasitária de

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fluxos recíprocos, em que em muitos casos, os cidadãos e os agentes políticos têm a

perceção daquilo que é falso, mas não deixam de se acomodar a essa mesma falsidade.

2º. O uso das redes sociais, e do tweeter em particular, revelar-se-iam mais

instrumentos de ação, contestação e mobilização do que de reflexão”. É igualmente um

campo, onde ações ilícitas e de desobediência civil de pequenos grupos extremistas se

mobilizam em rede e “deliberam” ocupações de propriedade (caso do movimento

“Occupy”). Como se esse tipo de ação direta de minorias sem rosto, que se representam a

si próprias, pudessem assumir-se como expressões da vontade maioritária, de discussão

informada no espaço público ou de integração pluralista na fase prévia à tomada de

decisões .

Uma comunicação em que as pessoas pensariam em 140 caracteres significaria

para alguns , que as mesmas pessoas não pensariam genuinamente. Cidadãos clausurados

em “nuvens” de radicalização e flutuando em torno “trending topics” difundiriam uma

comunicação que ganharia, por arrastamento, uma força misteriosa e passando a partir

da sua difusão pelos media a fazer parte da opinião pública.

A democracia deliberativa idealizada por Habermas, ligada ao confronto de

opiniões diversas no espaço público e da demanda do melhor argumento, pouco tem a ver

com a democracia digital da blogoesfera, pautada pelo imediatismo, a mobilização, o

“soundbite”, o “pronto a pensar” e a humilhação verbal do adversário. A ideia de que a

discussão da política teria atingido um estádio superior através da democracia blogueira

foi reduzida por diversos autores uma manifestação de “ciberutopia” ou

“internautocentrismo”. Isto porque, a ideia de liberdade que emerge da blogosfera tem o

seu reverso da medalha quando a mesma é vigiada e manipulada por relevantes forças

políticas e económicas bem como por grupos subversivos e serviços de informação dos

Estados, dotados de poderosos meios técnicos e de comunicação que permitem desfigurar

o debate e alimentar através do produto das distorções por si criadas junto das redes

sociais, os media.

3º. Igualmente ilusório é o entendimento de Habermas que a sobredita

democracia digital em rede potenciará irreversivelmente um cidadão mais culto, mas

esclarecido. Na verdade, uma simples visitação aos principais jornais digitais, no sítio

referente aos comentários de leitores a artigos de opinião permite aferir um esmagador

número de comentários injuriosos, grosseiros, tendenciosos, reveladores de uma atroz

iliteracia e em que os debates se assemelham a cenas de pugilato. Por outro lado, ,

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sobretudo em período eleitoral, as mensagens nos tweets e facebooks dos políticos destes

são objeto de ataques pré-ordenados e sincronizados de tribos de internautas que os

inundam de de posts difamatórios ou de ameaças ( conhecidas por “shitstorm”) que

rapidamente defluem para as capas dos jornais digitais.

Ainda assim, uma comunicação digital de elevado nível transcorre na retaguarda, em

plataformas académicas, em blogues semi-fechados e em grupos especializados de

reflexão, ou seja, num hemisfério elitista que pouco tem a ver com o espaço público

alargado às minorias despossuídas como pretendiam os teóricos da democracia

deliberativa.

4º. Finalmente, não é incontroverso que a democracia digital tenha, elevado a

qualidade e a credibilidade da democracia representativa.

Esta última procura criar a ideia de que os dirigentes políticos e, em especial,

os governantes, devem ser vistos pelos cidadãos como paradigmas de verdade e

integridade, merecendo, por conseguinte, serem eleitos. Contudo, nas últimas décadas, a

colocação à luz do dia de ilícitos eleitorais e a investigação de atos de corrupção e abuso

de poder converteram o escândalo em componente central do debate cívico e político. Por

um lado, o escrutínio judicial dos políticos (permitiu uma ablação da parte contaminada

da política mas potenciou, por outro, um ambiente envenenado e persistente de

desconfiança e descredibilização da elite governante.

Assentando o “ethos” da democracia representativa na integridade ou

credibilidade dos representantes, quando a mesma credibilidade é posta em causa, todo

o regime é afetado. Nessa descredibilização destacou-se a blogoesfera, em rede com a

imprensa digital e com os fornecedores de informação relevante, oriundos do mundo

económico, judiciário e político. Do mesmo modo não é concebível um Estado de direito

com direitos nominalizados: a blogoesfera, em nome da “transparência” e da

comunicação, os cidadãos e os políticos despossuídos de direitos de personalidade como

o direito à honra, à imagem, ao bom nome, à reserva de intimidade da vida privada e

familiar, à segurança e à liberdade de expressão para lá do politicamente correto.

A “rebelião das massas” e a democracia digital , podem não ter, como muitos

acreditavam, oferecido uma via alternativa à democracia representativa, feito triunfar as

primaveras árabes e derrubado as autocracias chinesa e iraniana, mas lograram, pelo

menos, nas democracias representativas, dessacralizar o poder, esmaecer a auctoritas e a

gravitas dos governantes e fragilizar direitos civis..Em sistemas corrompidos a

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democracia deliberativa digital poderá ter contribuído para a refundação republicana de

sistemas democráticos e estimulado novas formas de comunicação entre governantes e

governados. O facto é que se teme que a sua faceta menos positiva se contente, por hábito,

a desdignificar o poder, num exercício nihilista, sem que comporte consigo uma proposta

alternativa construtiva. Repensar o papel político da comunicação política digital e

repensar os seus filtros contra abusos, manipulações e capturas pela criminalidade

organizada constitui uma requesta para o tempo presente.

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CONSTITUIÇÃO, PRIVACIDADE, PROTEÇÃO DE DADOS E NOVAS

TECNOLOGIAS

José Levi Mello do Amaral Júnior

Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo e do Centro Universitário de

Brasília. Procurador da Fazenda Nacional.

RESUMO: o artigo reproduz, com adequações pontuais, exposição realizada em Painel de

título “Privacidade, Proteção de Dados e Proposições Legislativas” por ocasião do XIX

Congresso Internacional de Direito Constitucional, exposição essa que foi realizada em

Brasília, no Instituto Brasiliense de Direito Público, no dia 27 de outubro de 2016.

Discorre sobre os impactos decorrentes das novas tecnologias, sobretudo no que se refere

às novas formas de comunicação. Avalia proposição legislativa em tramitação no

Congresso Nacional acerca do tema.

Boa tarde!

Agradeço ao Instituto Brasiliense de Direito Público a gentileza do convite para

participar dessa mesa de debates.

Cumprimento a todos de uma maneira especial nas pessoas do Senhor Procurador-

Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Professor Leonardo Roscoe Bessa e do

Deputado Orlando Silva, que aqui também tomam parte dos debates, e em nome deles,

cumprimento a todos os presentes, não só os meus demais colegas de Painel, mas a todos

os que aqui acorrem.

Desde logo peço perdão porque tive a ousadia de pedir para falar primeiro. Isso

porque um compromisso de última hora impossibilita-me permanecer até o final do

Painel. Porém, as minhas anotações são bastante breves e, pretensiosamente, talvez

tenham um caráter introdutório para os debates que se seguirão, claro, certamente, com

muito mais propriedade do que eu poderia fazê-lo.

Quando se discute o tema proposto, a primeira lembrança que me ocorre, inclusive

porque me marcou muito, é uma obra ainda dos anos 1990 do professor italiano Giovanni

Sartori: Homo Videns. Parte da ideia de que o ser humano passou a crescer na frente de

uma televisão. Fala do “vídeo bambino” e como o crescer na frente da televisão acaba por

empobrecê-lo naquilo que é a maior característica humana: a capacidade de abstração. O

ser humano é um ser simbólico e essa capacidade humana, tão humana, especificamente

humana (que escapa ao animal e que dele nos difere), na verdade, independe dos próprios

sentidos. Qualquer ser humano tem a sua capacidade de abstração e a capacidade de

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abstração acaba severamente empobrecida quando o ser humano cresce na frente de

imagens prontas e acabadas, quando não manipuladas, fornecidas pela televisão. Em uma

apertada síntese, essa é a tese de Sartori e que ele projeta para o próprio regime

democrático. O regime democrático é empobrecido pelo homo videns que desde

pequenino nasce e cresce massificado diante da televisão, nasce e cresce empobrecido na

sua capacidade de abstração, na sua capacidade simbólica, na sua capacidade de criticar,

de pensar, enfim, de avaliar.

Fiz essa introdução porque a nossa cultura é uma cultura digital. Vivemos hoje

conectados, de modo que existe para nós um novo espaço, um novo âmbito público, que é

o universo digital e a evolução das tecnologias que movem esse novo âmbito público, esse

novo espaço público, conhece evolução muito rápida, cada vez mais rápida. Em verdade,

a evolução dos meios digitais se dá em velocidade com crescimento geométrico. É

assustador como se dá, como é vertiginosa a velocidade da evolução dos meios digitais.

Dou exemplo banal. Durante quantas décadas usamos cartas? Não a nossa geração, mas

quantas gerações, quantas décadas viram o uso das cartas? Durante quantos anos usou-

se telegrama? Surgiu o e-mail e a mensagem eletrônica, vieram os torpedos e as coisas

sucedem-se, talvez, não em anos, mas em meses. Esses novos meios migraram dos

computadores pessoais para os smartphones. As tecnologias convergiram e surgiram

alternativas aos torpedos “tradicionais”, basta citar o WhatsApp. Consequência: o e-mail

e as mensagens eletrônicas, em poucos anos, sofreram tombo semelhante no respectivo

volume de uso que as cartas conheceram.

Esses novos espaços de convívio geram blogs, micro blogs, redes sociais. Falando

em micro blogs, até que o Twitter está sobrevivendo... As próprias redes sociais sucedem-

se. A minha geração conheceu o Orkut, que nem existe mais. Foi desbancado pelo

Facebook que luta para se reinventar, para seguir sobrevivendo.

Nesses novos espaços públicos é curioso e dramático ver como as pessoas revelam-

se, para o bem e para o mal. Nesses novos espaços públicos, protegidas, ou pretensamente

protegidas pela tela de um computador, pelo teclado do computador ou pela tela e pelo

teclado virtual de um smartphone, muitas pessoas perdem os freios morais mais

elementares, talvez revelando os respectivos verdadeiros “eu”.

Essa realidade impacta não só o indivíduo, mas também a grande mídia. A TV

aberta cedeu espaço para a TV por assinatura, que perde espaço para os serviços por

streaming, que perdem espaço para o Youtube e assim por diante.

Veja-se o caso telefone. O telefone já foi um investimento, tão escasso era. Perdeu

espaço para o celular. Ora, hoje, trocamos de celular pelo menos uma vez por ano, mas o

celular, enquanto telefonia, perdeu espaço para o Skype, que perdeu espaço para o Viber.

Ambos perderam espaço para o FaceTime. As operadoras de celular hoje são provedoras

de acesso à Internet.

Como lidar com isso? Quais são as implicações disso? Por exemplo, como aplicar

leis eleitorais a esses novos espaços públicos? Em todos esses espaços virtuais, em todos

esses meios de trânsito e trocas digitais, deixamos nossos dados, deixamos nossas

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informações, deixamos rastros. Nossos dados são automaticamente coletados por

“robozinhos” que, na verdade, são algoritmos cada vez mais sofisticados, inteligentes,

seletivos, globais.

Falei há pouco em TV, em TV por assinatura e em serviço por streaming. Veja-se o

caso Netflix. Com efeito, Netflix decifra os nossos gostos e tenta antecipar as nossas

escolhas, forma um banco de dados pelo convívio que trava com cada um dos seus

assinantes, com cada um de nós. Trata-se de um banco de dados que tem valor estratégico

e econômico imensurável. E está ali: dentro da nossa casa, diuturnamente aprendendo

com os nossos usos, com os nossos costumes, com os nossos gostos. Como esses dados

são utilizados pela empresa? Netflix utiliza apenas para prover os seus próprios serviços

ou compartilha, fornece, vende esses dados – nossos dados – para terceiros?

Ora, a legislação que venha a disciplinar os bancos de dados decorrentes dessas

novas realidades devem colher quaisquer bancos de dados acessíveis no território

nacional, não importando onde estejam eles hospedados.

Para prosseguir, tomo em consideração o Projeto de Lei, hoje no Senado Federal

sob a relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira Filho, Projeto que sabidamente teve

participação muito importante do Instituto Brasiliense de Direito Público, em especial da

Professora Laura Schertel Mendes. O Projeto é explicito: não importa onde estejam

hospedados os bancos de dados, a lei brasileira haverá de ser aplicada. E não tem como

ser diferente: do contrário seria muito fácil escapar ao nosso Direito, escapar à disciplina

do Direito brasileiro aplicável ao caso. As legislações que hoje tateiam nesse novo

universo dispõem neste exato sentido.

O Projeto a que me referi exclui da sua incidência o que se denomina “dados

anonimizados” (até esse tipo de palavra surge pelas novas necessidades...). Muito bem, o

“dado anonimizado” é aquele que não tem gravado em si, rotulado em si, o titular do dado.

Parece-me natural que a lei não se aplique a esse tipo de dado, pois não traduz uma pessoa

a ser protegida.

Porém, como assegurar que os dados realmente estão dissociados das pessoas de

que se originam? Não é uma questão simples. O Projeto cria uma obrigação para a União

no particular. A União precisará aprender a lidar com isso.

O Projeto menciona dados pessoais sensíveis, por exemplo, aqueles que revelam

orientação religiosa, política e sexual. São disponíveis? Parece-me que sim, o Projeto

considera que sim, desde que a disposição seja feita pelo titular de maneira direta, clara,

expressa e consciente. Ora, é necessária muita responsabilidade nisso, de lado a lado,

daquele que cede e daquele que toma. O Projeto pressupõe uma governança responsável

acerca desse conjunto de dados. O Projeto impõe uma governança responsável aos bancos

de dados e isso é da maior importância e de muito grande sabedoria.

Tomei como fio condutor da parte conclusiva da minha exposição o Projeto de Lei

hoje em tramitação no Senado Federal. Os expositores seguintes certamente poderão

esmiuçá-lo muito melhor do que eu. Ainda assim, sintetizo: o Projeto hoje sob a relatoria

do Senador Aloysio Nunes Ferreira Filho revela-se bastante lúcido, bastante abrangente

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e, inclusive, capaz de dispor sobre meios atuais e futuros. Essa é uma arte, um desafio a

que é chamado todo projeto da espécie. Isso porque, afinal, os meios sucedem-se de

maneira muito rápida, como mencionado no início da exposição. Por isso mesmo, o

Projeto toma medidas, opções, caminhos que me parecem amigos dos Direitos

Fundamentais, sem prejuízo da evolução dos meios tecnológicos, das mídias digitais.

Enfim, pretendi fazer apenas uma introdução, uma introdução que talvez tenha

sido pontuada menos por colocações e mais por perguntas, o que é próprio de um

universo que estamos ainda desvendando. Tenho certeza de que o debate que se seguirá

será muito mais rico do que eu poderia proporcionar nessas minhas palavras breves,

introdutórias. O Professor Leonardo Roscoe Bessa conhece muito desse assunto na ótica

do direito do consumidor. Para além disso, o Deputado Orlando Silva já lidou com vários

outros projetos sobre a matéria e também tem muito a contribuir.

Agradeço aos organizadores do Evento, uma vez mais, a oportunidade de estar com

vocês. Peço perdão ao Coordenador do Painel, pois me excedi no tempo, mas, sobretudo,

expresso a minha alegria – uma muito grande alegria – de poder tomar parte do debate

com todos vocês.

Muito obrigado!

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O MECANISMO DE PROTEÇÃO JURISDICIONAL DE DADOS PESSOAIS

NUM SISTEMA CONSTITUCIONAL MULTI-NÍVEL – O CASO DA UNIÃO

EUROPEIA

José Luís da Cruz Vilaça

Síntese:

O sistema judicial da União Europeia (adiante também designada por “União”) é um

sistema descentralizado, de tipo não federal, mas baseado num mecanismo de cooperação

judiciária entre, de um lado, os tribunais dos Estados-membros e, do outro, o Tribunal de

Justiça da União Europeia (“Tribunal de Justiça”). A característica fundamental desta

ordem jurídica consiste no mecanismo do reenvio prejudicial, em interpretação e em

apreciação de validade do direito da União, consagrado actualmente no artigo 267.º do

Tratado sobre o funcionamento da União Europeia. A acção deste sistema no seu conjunto

resulta na garantia de uma protecção judicial efectiva dos direitos dos particulares.

O Tribunal de Justiça tem sido solicitado principalmente pela via do reenvio prejudicial a

pronunciar-se sobre o nível de protecção dos direitos fundamentais dos particulares na

ordem jurídica da União, e em especial sobre o direito à protecção dos dados de carácter

pessoal que lhes digam respeito. No entanto, estas questões poderão chegar ao Tribunal

de Justiça por outras vias processuais, em particular através de pedidos de Parecer sobre

projectos de acordos internacionais (veja-se, Parecer n.º 1/15 sobre a transferência e o

tratamento de dados dos passageiros de transportes aéreos entre a União e o Canadá).

No que respeita ao quadro geral da protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica

da União, importa referir que durante muitos anos a (na altura designada) Comunidade

Europeia não dispôs de um catálogo escrito de direitos fundamentais, devido

fundamentalmente ao próprio esquema inicial de integração baseado em meras

liberdades de carácter económico. O Tribunal de Justiça, inspirando-se nas tradições

constitucionais comuns aos Estados-Membros e nas orientações fornecidas por tratados

internacionais, foi definindo paulatinamente na sua jurisprudência um catálogo não

formal de direitos fundamentais. Esta evolução culminou, em dezembro de 2000, com a

Professor da Universidade Católica Portuguesa - Global School of Law, Lisboa; Juiz-Presidente da V Secção do

Tribunal de Justiça da União Europeia; ex-Advogado-Geral no Tribunal de Justiça e ex-Presidente do Tribunal de

Primeira Instância (atual Tribunal Geral) das Comunidades Europeias. O autor exprime-se a título estritamente

pessoal.

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proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“Carta”), a qual com

alguns ajustamentos foi adaptada em dezembro de 2007 e à qual foi conferida, na altura

do Tratado de Lisboa, o mesmo valor jurídico que os Tratados.

O Tratado de Lisboa trouxe também outra novidade importante em matéria de direitos

fundamentais, a saber, a previsão da adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos

Direitos do Homem (“Convenção Europeia”), tendo sido preparado um projecto de acordo

em abril de 2013, relativamente ao qual a Comissão solicitou ao Tribunal de Justiça que

se pronunciasse, a título prévio, sobre a sua compatibilidade com os Tratados. O Tribunal

de Justiça concluiu, no seu Parecer n.º 2/2013, que o projecto, tal como redigido, não era

compatível com o n.º 2 do artigo 6.º do TUE nem com o protocolo n.º 8 anexo ao Tratado.

No entanto, o Tribunal de Justiça indicou no seu Parecer orientações claras para uma

futura revisão do projecto.

A dificuldade nesta matéria surge em organizar todas as dimensões de um sistema

polimórfico no qual pelo menos três ordens jurídicas distintas, mas mutuamente

permeáveis de protecção dos direitos fundamentais coexistem, a saber, (i) a União e a sua

Carta, (ii) a Convenção Europeia e (iii) os Estados-Membros da União com os respectivos

catálogos constitucionais de direitos fundamentais.

1. Considero uma honra pessoal e um privilégio institucional intervir neste

importante Congresso organizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público

(IDP) e pelo seu Centro de Direito, Internet e Sociedade (CEDIS). Cumprimento

todos os participantes e assistentes a esta sessão, bem como os ilustres Membros

e Presidente do presente Painel.

A minha intervenção é complementar da do Presidente Koen Lenaerts e pretende

fornecer o respectivo enquadramento. O meu objectivo consistirá, assim, em

esclarecer o contexto jurídico-constitucional da jurisprudência do Tribunal de

Justiça da União Europeia (adiante “TJUE”) sobre protecção de dados pessoais.

2. Duas palavras, antes de mais, sobre a natureza e a estrutura do Sistema Judicial

da União Europeia (adiante “UE”).

Trata-se de um sistema descentralizado, de tipo não federal, mas baseado num

mecanismo de cooperação judiciária entre, de um lado, os tribunais dos Estados-

membros e, do outro, o TJUE. Estes – tribunais nacionais e TJUE, sediado no

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Luxemburgo – constituem os dois pilares sobre os quais se apoia aquele sistema

judicial.

Como dois pilares isolados não chegam para sustentar um sistema, torna-se

necessária uma ponte, ou um arco, entre eles, que constitua o fecho da abóbada

do edifício judicial da União. Esse fecho é representado pelo mecanismo do

reenvio prejudicial, em interpretação e em apreciação de validade do direito

da UE, consagrado atualmente no artigo 267º TFUE (Tratado sobre o

Funcionamento da União Europeia).

O funcionamento deste sistema assenta em dois bem conhecidos princípios

fundamentais da ordem jurídica da UE, os princípios do efeito direto e do

primado do direito da União sobre os direitos dos Estados-membros48. Na

decorrência de tais princípios, os particulares podem invocar directamente,

perante os tribunais nacionais competentes49, as regras de direito da União que

disponham de efeito direto, devendo o juiz afastar a aplicação das normas

nacionais que contrariem o direito da União (princípio do primado).

O mecanismo do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça visa, neste contexto,

assegurar um duplo objectivo, a saber: a aplicação efectiva e uniforme, em todo

o espaço da União, do direito da UE, com a interpretação que lhe dá o TJUE, único

órgão judicial competente, para o efeito instituído pelos tratados.

Da existência e do funcionamento de um tal sistema descentralizado, assim

instituído pelos tratados, resultam dois corolários: (i) um limitado acesso direto

48 Os referidos princípios, verdadeiros alicerces do direito da UE, foram formulados e definidos nos acórdãos

fundadores da ordem jurídica comunitária: acórdãos de 5.2.1963, Van Gend & Loos/Administração fiscal

holandesa, 26/62, Colect. p. 3, de 15.7.1964, Flaminio Costa/ENEL, 61/64, Colect. p. 1141, e de 9.3.1978,

Administração das Finanças do Estado/Simmenthal, 106/77, Colect. p. 629. Sobre estes princípios, ver K. Lenaerts

e P. Van Nuffel, European Union Law, Sweet & Maxwel, Londres, 3ª ed., 2011; J. L. da Cruz Vilaça, A propósito

dos efeitos das directivas na ordem jurídica dos Estados-membros, in Cadernos de Justiça Administrativa, Lisboa

, vol. 30, 2001, p. 3; J. L. da Cruz Vilaça, Le principe de l’effet utile du droit de l’Union dans la jurisprudence de

la Cour, in The Court of Justice and the Construction of Europe: Analyses and Perspectives on Sixty Years of

Case-law/La Cour de Justice et la Construction de l’Europe: Analyses et Perspectives de Soixante Ans de

Jurisprudence, Asser Press /Springer/Tribunal de Justiça, Luxemburgo/Haia, 2013, p. 279. 49 As regras de competência e de processo a aplicar são as de cada Estado-membro, no respeito da respectiva

“autonomia processual”, consagrada na jurisprudência do TJUE (acórdãos de 16.2.1976, Rewe, 3/76, Colect. p.

1989, nº 5, de 7.7.1981, Rewe, 158/80, Colect. p. 1805, nº 44, de 19.11.1991, Francovich, C-6/90 e 9/90, Colect.

I-5357, nº 42, de 13.7.2006, Manfredi, C-295/04 a C-298/04, Colect. I-6619, nºs 62, 71 e 77), salvo quando essas

regras possam conflituar com os princípios da equivalência e da efetividade, tal como definidos pela jurisprudência

do TJUE (ver, respectivamente, acórdãos de 1.12.1998, Levez, C-326/96, Colect. I-7835, nºs 41-43, e de 16.5.2000,

Preston e.a., C-78/98, Colect. I-3201, nºs 55-57; e acórdãos Francovich, cit., de 9.11.1983. San Giorgio, 199/82,

Colect. p. 3595, e de 5.3.1996, Brasserie du pêcheur et Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colect. I-1029, nº 67).

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dos particulares aos tribunais da União50; (ii) os tribunais nacionais dos Estados-

membros são, verdadeiramente, os tribunais comuns de aplicação do direito da UE

em todo o território desta, funcionando os “tribunais do Luxemburgo” como

órgãos especializados de aplicação daquele direito, encarregados de velar pela sua

aplicação uniforme, e o Tribunal de Justiça como o verdadeiro “tribunal

constitucional” da ordem jurídica da União.

É da ação deste sistema no seu conjunto, envolvendo os tribunais nacionais e os

tribunais da União, que há-de resultar a garantia de uma proteção judicial

efectiva dos direitos dos particulares, tal como determinam o artigo 19º, nº 1, TUE

(Tratado da União Europeia) e o artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da

União Europeia.

3. É essencialmente pela via do reenvio prejudicial que o TJ tem sido solicitado, pelos

tribunais nacionais, a pronunciar-se sobre o nível de protecção dos direitos

fundamentais dos particulares na ordem jurídica da União, e em especial sobre o

direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito.

O Presidente Lenaerts falar-vos-á especificamente de um certo número de

acórdãos do TJ em que, no contexto das graves ameaças que enfrentam

actualmente as nossas sociedades abertas e democráticas e que põem em causa os

valores essenciais sobre os quais estas se baseiam, foi necessário estabelecer o

justo equilíbrio entre diferentes direitos fundamentais: por um lado, as exigências

primordiais de segurança de pessoas e bens, incluindo o próprio direito à vida e à

dignidade humana, e, por outro lado, o respeito pela vida privada e o direito à

protecção dos dados pessoais.

Todos estes acórdãos resultaram de reenvios prejudiciais de tribunais de

diferentes Estados-membros, tribunais com distintas posições na respectiva

hierarquia judicial. Ouvireis assim falar de Digital Rights51 (pedidos de decisão

prejudicial da High Court irlandesa e do Tribunal Constitucional austríaco), de

50 O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é actualmente constituído pelo Tribunal de Justiça (adiante

“TJ”, único competente para responder a questões prejudiciais dos tribunais nacionais) e pelo Tribunal Geral

(competente para conhecer, em primeira instância, de certos recursos interpostos pelos Estados-membros ou as

instituições da EU, bem como, nas condições definidas no artigo 263º, 4º parágrafo, TFUE, de recursos dos

particulares – ver, igualmente, artigo 256º FFUE). 51 Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland e Seitlinger, C‑293/12 e C‑594/12, ECLI:EU:C:2014:238.

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Schrems52 (reenvio da High Court da Irlanda), de Google Spain53 (questões

prejudiciais da Audiencia Nacional espanhola), de Volker and Markus Schecke54

(reenvio do Tribunal Administrativo de Wiesbaden, na Alemanha).

Nos processos perante os tribunais nacionais foi discutida a interpretação e posta

em causa a validade de normas de directivas da União Europeia, relativas, em

particular, ao tratamento e à conservação de dados e à protecção da privacidade e

da confidencialidade das comunicações, bem como a validade de decisões das

instituições europeias para aplicação dessas directivas, ou mesmo de

regulamentos em matéria de política agrícola.

Ora, por um lado, como vimos, é ao TJ que compete interpretar, com força

vinculativa geral, qualquer norma de direito da União Europeia sobre a qual exista

uma dúvida razoável, assim se assegurando a uniformidade da sua aplicação pelos

tribunais nacionais.

Por outro lado, de acordo com uma jurisprudência constante desde 1987 (acórdão

Foto-Frost55), só o Tribunal de Justiça pode declarar a invalidade, à luz do Tratado,

de uma qualquer norma de direito da UE. Os particulares podem, contudo (nos

termos do artigo 277º TFUE), arguir, perante um tribunal nacional, por via de

excepção, a inaplicabilidade de uma norma de direito da UE que reputem contrária

ao Tratado, mesmo quando não têm legitimidade para impugnar directamente a

sua validade perante os tribunais da UE (Tribunal Geral e TJ). Para esse efeito, os

tribunais nacionais competentes estão obrigados a remeter ao TJ uma questão

prejudicial em apreciação de validade, sendo eles próprios incompetentes para

concluir pela invalidade de qualquer norma de direito da UE.

Em especial quando se trate de diretivas (ver artigo 288°, 3° parágrafo, TFUE),

compete aos Estados-membros assegurar a necessária transposição em direito

interno, de maneira a permitir alcançar os resultados pretendidos pelo legislador

da União.

Não admira, por isso, que uma segunda geração de casos tenha sido levada –

também pela via prejudicial – à consideração do TJ, a fim de que este ajuíze,

designadamente, da conformidade com normas ou princípios gerais de direito da

52 Acórdão de 6 de outubro 2015, Schrems, C‑362/14, EU:C:2015:650. 53 Acórdão de 13 de maio de 2014, Google Spain, C‑131/12, EU:C:2014:317. 54 Acórdão de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Schecke, C‑92/09 e C‑93/09, EU:C:2010:662. 55 Acórdão de 22 de outubro de 1987. Foto-Frost, 14/85, Colect. p. 4199.

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UE (por exemplo, o princípio da proporcionalidade), bem como com o próprio

acórdão Digital Rights, das regras adoptadas no plano nacional para transposição

das directivas entretanto anuladas por aquele acórdão.

É esse o caso de questões prejudiciais provenientes do Reino Unido e da Suécia

(Tele2 Sverige e Tom Watson e.o.), que se encontravam em processo de deliberação

na altura em que teve lugar o presente Congresso56.

Não é de excluir, no entanto, que estas questões possam chegar ao TJ por outras

vias processuais, em especial através de pedidos de Parecer do TJ sobre projectos

de acordos internacionais, nos termos do artigo 218º, nº 11, TFUE. Estes

pareceres podem ser solicitados ao TJ por qualquer Estado-membro ou por

qualquer uma das três principais instituições políticas da UE (Parlamento Europeu

- PE, Conselho, Comissão). Se o Parecer do TJ concluir pela eventual

incompatibilidade do projecto de acordo com os tratados, o acordo projectado não

pode entrar em vigor, salvo se for alterado ou se se proceder a uma revisão dos

tratados.

Neste contexto, está actualmente pendente o pedido de Parecer 1/15, apresentado

pelo PE, sobre a transferência e o tratamento de dados dos passageiros de

transportes aéreos entre a UE e o Canadá (PNR).

Este procedimento (espécie de apreciação prévia da constitucionalidade de uma

norma) é particularmente importante, tendo em vista a conveniência de prevenir,

antes da entrada em vigor de um acordo internacional em que a União seja parte,

a ocorrência de contestações à sua legalidade já na fase de aplicação do acordo e

início de execução, com as consequentes perturbações no normal

desenvolvimento das relações internacionais.

4. As considerações que precedem levam-me a esclarecer um outro ponto, que tem

que ver com a questão mais geral da protecção dos direitos fundamentais na

ordem jurídica da União, anteriormente designada ordem jurídica comunitária.

Pode dizer-se que esta questão começou por não ser tema de apreciação

jurisdicional. A Comunidade Europeia não dispôs, durante muitos anos, de um

56 Posteriormente ao Congresso, foi proferido o acórdão de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Tom Watson,

C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:970.

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catálogo escrito de direitos fundamentais, o que não é surpreendente, uma vez que,

na sua primeira fase de construção e desenvolvimento, se tratava essencialmente

de um esquema de integração baseado em “meras” liberdades de carácter

económico e comercial. Por isso, só após alguns anos a jurisprudência foi

confrontada com a questão dos direitos fundamentais na ordem jurídica

comunitária.

Invocada, no final dos anos 1950 e na primeira metade dos anos 1960, perante um

alto tribunal alemão e um alto tribunal italiano, a incompatibilidade de certas

normas do chamado “direito derivado” da Comunidade com princípios e direitos

fundamentais consagrados nas constituições desses países, o TJ começou por não

se considerar competente para se pronunciar sobre tal questão.

Foram, curiosamente, a insistência e a pressão dos tribunais constitucionais

alemão e italiano – recorde-se a famosa jurisprudência “Solange”, do

Bundesverfassungsgericht – que levaram o TJ a inflectir o rumo e a abrir o caminho

para uma jurisprudência de grande alcance e extremamente avançada para a

protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica da UE.

Para o efeito, apoiando-se na consideração de que os direitos humanos

fundamentais faziam parte integrante dos princípios gerais do direito comunitário,

que a ele competia proteger, o TJ inspirou-se nas tradições constitucionais comuns

aos Estados-membros e nas orientações fornecidas pelos tratados internacionais

de protecção dos direitos humanos, que os Estados-membros assinaram ou em

cuja elaboração colaboraram, em especial a Convenção Europeia para a Protecção

dos Direitos Humanos e da Liberdades Fundamentais (CEDH), para ir definindo,

paulatinamente, um catálogo não formal de direitos fundamentais que foi impondo

na sua jurisprudência57.

A evolução neste sentido culminou com a proclamação, pelas três instituições

políticas (Parlamento Europeu - PE, Conselho, Comissão), por ocasião do Conselho

Europeu de Nice, de dezembro de 2000, de uma Carta dos Direitos Fundamentais

da União Europeia, a qual foi retomada (com alguns ajustamentos), em dezembro

57 Sobre a evolução jurisprudencial que conduziu ao reconhecimento dos direitos humanos fundamentais na ordem

jurídica comunitária, ver J. L. da Cruz Vilaça, “A proteção dos direitos fundamentais na ordem jurídica

comunitária”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Studia Iuridica 61, Boletim da

Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, p. 415.

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de 2007 e à qual foi conferido, na altura do Tratado de Lisboa, pelo artigo 6º TUE,

“o mesmo valor jurídico que os Tratados”.

É, em síntese, o respeito por direitos hoje em dia consagrados na Carta que está em

causa, direta ou indiretamente, na jurisprudência à qual se referirá o Presidente

Lenaerts.

Lembrem-se, em particular, os direitos consagrados nos artigos 1º (Dignidade do

ser humano), 2º (Direito à vida), 3º (Direito à integridade do ser humano), 4º

(Proibição da tortura e dos tratamentos desumanos ou degradantes), 6º (Direito à

liberdade e à segurança), 7º (Respeito pela vida privada e familiar) e 8º (Protecção

de dados pessoais), todos da Carta Europeia.

Convém ainda sublinhar, neste contexto, a importância dos preceitos finais da

Carta que regem a interpretação e a aplicação desta.

Assim, o artigo 51º, nº 1, esclarece que as disposições da Carta têm por

destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, bem como os Estados-

membros, mas estes apenas quando apliquem o direito da União. Na mesma linha,

o nº 2 do mesmo artigo 51º sublinha que a Carta não alarga o direito da União para

além das competências desta e também não cria para esta, nem modifica,

quaisquer atribuições ou competências.

Quer isto dizer que, em se tratando de atos dos Estados-membros, as disposições

da Carta e os direitos nela consagrados só são aplicáveis quando a situação

controvertida seja abrangida pelo âmbito de aplicação de outras disposições

materiais do direito da UE.

Se assim é, questões prejudiciais como as que foram já remetidas ao TJ por

tribunais britânicos e suecos sobre a compatibilidade de normas internas com a

Carta (às quais já me referi) caem, em princípio, na competência interpretativa do

TJ.

5. Para terminar, gostaria de insistir num ponto: a “jurisprudência direitos

fundamentais” do TJ constituiu, para além de uma antecipação da Carta Europeia,

uma etapa decisiva no processo de “constitucionalização” dos tratados,

promovido, passo a passo, pelo TJ, na ausência de uma Constituição em sentido

formal e na falta, até à data, da expressão de um poder constituinte autónomo, no

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plano europeu, gorada que foi, em 2005, a tentativa de adoção do “Tratado que

instituía uma Constituição para a Europa”.

O Tratado de Lisboa trouxe também uma outra novidade importante quanto à

tutela jurídica dos direitos fundamentais na UE, ao prever, no artigo 6º, nº 2, TUE,

que a União adere à CEDH. Por essa via, a CEDH passaria a fazer parte integrante

do direito da UE e se instituiria um controlo externo do Tribunal Europeu dos

Direitos Humanos - TEDH, de Estrasburgo, sobre as instituições da União quanto à

aplicação da Convenção.

Abertas em 2010 as negociações para celebração de um acordo de adesão entre a

UE e o Conselho da Europa, estas culminaram, em abril de 2013, num projeto de

acordo de adesão. A fim de garantir a segurança jurídica numa matéria tão

delicada, a Comissão solicitou ao TJ, ao abrigo do artigo 218º TFUE, que se

pronunciasse sobre a questão de saber se o referido projeto era compatível com os

Tratados.

Pelo Parecer 2/13, o TJ concluiu que, tendo em conta os vários problemas que

identificou, o projeto, tal como estava redigido, não era compatível com o artigo 6º,

nº 2, TUE nem com o Protocolo nº 8, anexo ao Tratado e relativo às condições a

respeitar nesta adesão.

Foi, basicamente, em nome da necessidade de preservar a especificidade e a

autonomia da ordem jurídica da União e do sistema jurisdicional instituído pelos

Tratados que o TJ assim se pronunciou. E não é para admirar, dada a dificuldade

da operação: a Convenção Europeia foi concebida como um instrumento de direito

internacional destinado a vincular Partes Contratantes que eram, na sua

totalidade, Estados internacionalmente soberanos.

Ora o projeto de acordo de adesão foi estruturado sem ter suficientemente em

conta a realidade de que a União não é um Estado, antes constituindo um tertium

genus, caraterizado por uma complexidade institucional que a distingue dos

Estados que a compõem e das organizações internacionais de que possa vir a fazer

parte (no caso, a CEDH, adotada no quadro do Conselho da Europa), juntamente

com os seus Estados-membros.

O TJ não fechou, porém, ao contrário do que alguns pensavam, definitivamente a

porta a uma adesão. Pelo contrário, deixou, no seu Parecer, orientações claras para

revisão futura do projeto.

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Em todo o caso, não é por isso que, neste ínterim, o nível de proteção dos direitos

fundamentais na UE é minimamente afectado. Por um lado, o artigo 52º, nº 3, da

Carta estipula que, na medida em que esta contenha direitos correspondentes aos

que são garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos

conferidos por essa Convenção, sem que isso impeça o direito da União de conferir

uma protecção mais ampla. Por outro lado, artigo 53º (sob a epígrafe “Nível de

proteção”) estabelece que a Carta deve ser interpretada no sentido de que

nenhuma das suas disposições pode restringir ou lesar os direitos humanos e as

liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo

direito da UE, o direito internacional e as Convenções de que são partes a União ou

todos os seus Estados-membros, nomeadamente a CEDH, bem como pelas

constituições dos Estados-membros.

No fundo, o que está em causa é a dificuldade de organizar, em todas as suas

dimensões, um sistema polimórfico, multilevel, em que convergem, ao menos, três

ordens distintas mas mutuamente permeáveis de protecção dos direitos

fundamentais: a União Europeia, com a sua Carta; o Conselho da Europa, com a

CEDH; e os Estados-membros da UE, com os respectivos catálogos constitucionais

de direitos fundamentais.

Mais delicado o exercício se torna perante o imperativo de respeitar, em qualquer

caso, a identidade constitucional fundamental de cada parte constitutiva deste

conjunto complexo.

Mas essa é a tarefa do TJ, enquanto Tribunal Constitucional da União Europeia,

como bem o ilustrará, no domínio da protecção dos dados pessoais, a exposição do

Presidente Koen Lenaerts.

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TRANSMISSÃO DE DADOS E DEMAIS SERVIÇOS PÚBLICOS DE

TELECOMUNICAÇÕES

Juarez Quadros

Se olharmos a Constituição Federal de 1988, nota-se que o Artigo 21 dizia, do que

competia a União, no Inciso XI: “explorar diretamente ou mediante concessão a empresa

sob controle estatal.....”, para explorar os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão

de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de

serviços de informações por entidade de direito privado via a rede pública de

telecomunicações explorada pela União.

Em 1995, por meio da Emenda Constitucional de número 8, esse artigo foi

modificado no seu Inciso XI, para: “explorar diretamente ou mediante autorização,

concessão, ou permissão, os serviços de telecomunicações nos termos da lei, que disporá

sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos

institucionais”. Então, surge a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) e a Anatel.

A LGT Artigo 60 parágrafo 1º define o que é serviço de telecomunicações quando

diz: “telecomunicações é a transmissão, emissão, ou recepção por fio, radio eletricidade,

meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético de símbolos, caracteres, sinais,

imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. Em seguida, a Lei dispõe sobre o

que é serviço de valor adicionado justamente no Artigo 61: “serviço de valor adicionado é

a atividade que acrescenta a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o

qual não se confunde novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento,

apresentação, movimentação ou recuperação de informações”.

Ainda no parágrafo 1º, também é disposto que o serviço de valor adicionado não

constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do

serviço que lhe dá suporte com os direitos e deveres inerentes a essa condição. No

parágrafo 2º é assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de

telecomunicações para a prestação de serviço de valor adicionado, cabendo à Agência

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assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como, o relacionamento entre

as prestadoras de serviços de telecomunicações.

A lei de 1997 foi uma boa solução para as questões presentes até a década passada,

quanto à ordem institucional, econômica e tecnológica, ocasião em que não havia nenhum

acesso banda larga.

Em 1997 havia 17 milhões de telefonia fixa e quase 5 milhões de acessos de

telefonia celular, como já dito. A Lei foi uma boa solução para as questões presentes até

aquela década passada, mas o crescimento da internet em um ritmo cada vez mais

acelerado, gerou, gera e vai gerar ainda mais o que está em destaque no mundo todo, que

é essa desrupção econômica, via, justamente, a transformação tecnológica que impacta

toda a estrutura tanto legal, quanto a regulatória. Tanto que, em agosto de 2016, o que se

tem no Brasil: 42 milhões de acessos de telefonia fixa (serviço que está diminuindo ano a

ano). No celular em 1997 tínhamos 4,6 milhões de acessos, agora, em agosto de 2016

estamos com 252 milhões e a banda larga com 222 milhões, considerando-se acessos com

a rede fixa, e os acessos com telefonia celular. E lá vem facebook, yahoo, twitter e tudo

mais, tudo suportado justamente por esses acessos. É importante notarem que a inovação

tecnológica causa forte impacto em todas as estruturas legais e regulatórias, não só no

Brasil.

É notado no mundo inteiro que a inovação regulatória está a reboque da inovação

tecnológica. O FCC nos Estados Unidos (agência reguladora desde 1942), enfrenta o

mesmo problema. A Comunidade Europeia junta seus órgãos reguladores para tratar

dessas questões. Então, chegamos a um ecossistema digital, com uma convergência

tecnológica total. Esse ecossistema digital ou mundo digital, chega à condição de uso dos

aplicativos via internet. Então, usando a teoria dos conjuntos da matemática, temos o

conjunto das telcos e o conjunto das OTT’s (over-the-top). A OTT, no caso mencionado

está dentro da região de intercessão dos dois conjuntos, seja, tanto de telcos, quanto de

OTT’s. Enquanto isso, os governos não arrecadam tributos, porque esse serviço não é

regulado. Os provedores de conteúdo não estão sendo remunerados no uso dos conteúdos

que acabam sendo utilizados. Os detentores de rede também não são remunerados pelo

uso das redes e o judiciário não está sendo obedecido nas suas solicitações. Mas há um

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destaque, o usuário está muito satisfeito, porque ele pode usar essa facilidade, reduzindo

a sua despesa com o uso de serviços de telecomunicações ou até mesmo de internet.

Como regular OTT não é fácil, todos os países onde o fato está acontecendo,

ninguém está conseguindo. Estão todos analisando para ver o que realmente precisaria

ser feito. Estamos diante de novas fronteiras, não é uma só fronteira, são muitas

fronteiras para tratar de como regular esse ambiente de ampla competição. O que

reclamam os setores dentro do conceito do “level playing field”? Eles entendem que o jogo

está em uma plataforma inclinada e eles pedem que fique pelo menos na horizontal para

todos, ante as assimetrias ou simetrias que são necessárias nos ambientes de regulação.

Há uma série de variáveis a serem consideradas, os efeitos estáticos e dinâmicos

sobre a competição decorrente da aplicação de obrigações. Como redefinir essa fronteira

regulatória? No contexto atual, como regular o limite quanto a interface ou a relação entre

os atores e provedores de infraestrutura de redes e telecomunicações e os agentes OTT’s?.

O entendimento segundo o Artigo 61 no seu parágrafo 2º da LGT é que não tem como

regular, permitir ou facilitar que a rede seja usada por esses detentores de aplicativos.

Então, como desenhar de forma inovadora a assimetria regulatória? Como aumentar a

regulamentação dos serviços emergentes ou diminuir a regulamentação dos serviços

tradicionais? Não há resposta no momento. Ainda falando da regulação, da modulação da

atividade regulatória, há que ser garantida toda uma sequência de quanto ter ou não ter

heterogeneidade da infraestrutura, de grau de competição no Brasil, principalmente por

ser um país continental.

Como fazer tudo isso sem observar as particularidades geográficas que requerem

uma abordagem regulatória diferenciada? Como no Brasil tratar a questão da

previsibilidade?. Como considerar que essas inovações devam ocorrer em todas as

camadas?. E para resumir, o que se vê é que as aplicações sobre a rede são muitas, de toda

a ordem e serão muito mais.

Como essa receita não é sentida pelos detentores de redes, pelos provedores de

conteúdos, e pelos Estados, há necessidade de investimento em infraestrutura do setor de

Telecom, que são os detentores de rede, para poder dispor de rede compatível para o

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tráfego, porque está diminuindo o tráfego de voz na telefonia fixa quanto na celular, mas

existe a necessidade de rede em função do tráfego demandado pelo uso desses aplicativos.

Essa demanda cresce e com riscos, inclusive, de não atender o tráfego gerado. Então, há

necessidade de investimentos, seja em fibras ótica, seja em satélites e toda a

infraestrutura que permita dar vasão a esse tráfego. Em função de ter que investir e não

ter receita, há uma queda na taxa de retorno do investimento e todos reclamam.

Entendo que há necessidade de ver tudo o que está acontecendo. Não é algo só

nosso, é um momento mundial em função da tecnologia que passa por muita inovação a

toda hora, não é nem a todo dia, ou a todo mês, ou a todo ano.

Obrigado!

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A INTEROPERABILIDADE LEGISLATIVA E O POLICYMAKING

COLABORATIVO

Luca Belli*

*Doutor e pesquisador sênior do CTS da FGV no Rio.

Resumo

Essa fala analisa brevemente o policymaking colaborativo, no âmbito da internet, a fim de

ilustrar a utilidade desta tipologia de processo para promover a interoperabilidade no

ecossistema digital. Depois de uma breve análise do princípio da interoperabilidade de

um ponto de vista técnico e do ponto de vista legislativo, oferecerei um exemplo concreto

de como a interoperabilidade legislativa pode ser estimulada por meio de um processo

bottom-up, aberto e participativo. Nomeadamente, analisarei a experiência do Marco

regulatório padrão sobre neutralidade da rede, cuja elaboração tive a honra de coordenar,

no âmbito do Fórum de governança da internet das Nações Unidas, e cujos elementos

foram incorporados em várias normas, como a Recomendação do Conselho da Europa

sobre neutralidade da rede.

Queria, em primeiro lugar, parabenizar o IDP pela realização desse evento

excelente e também agradecer a Sérgio Alves e a Laura Mendes, que me convidaram. O

objetivo da minha fala é estimular uma discussão sobre o policymaking colaborativo a fim

de ilustrar o interesse na aplicação desse tipo de processo para promover a

interoperabilidade no ecossistema digital. Particularmente, queria analisar o princípio da

interoperabilidade de um ponto de vista técnico, mas, também, de um ponto de vista

legislativo. Então, o caráter da minha análise será duplo: a fala terá uma finalidade

substancial, ou seja, debater o conteúdo e a relevância da interoperabilidade, mas terá

também uma finalidade processual, ou seja, debater como pode ser implementada, na

pratica, a participação do maior número de partes interessadas – geralmente definidos

como “stakeholders” – na elaboração das normas técnicas, bem como das policies que

regulam a internet. Tal participação multissetorial é um elemento fundamental do que eu

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chamo de “direito consuetudinário da internet”58, ou seja, o conjunto de normas

consuetudinárias que regram o desenvolvimento de padrões técnicos e policies que

permitem o funcionamento de vários aspectos da internet.

Voltando à interoperabilidade, como vocês sabem, com certeza depois de 2 dias de

congresso debatendo a internet, a internet é uma rede de redes interoperáveis. Mas o que

isso significa, concretamente? Principalmente, que a interoperabilidade das redes que

compõem a internet é baseada na utilização de padrões técnicos comuns, que são

utilizados por todas as operadoras, por todos os provedores de serviços na internet. Esses

padrões são adotados voluntariamente pelas operadoras e pelos provedores por causa da

eficiência dos padrões técnicos ou, às vezes, a adoção dessas normas técnicas é imposta

pelos reguladores das telecomunicações. Por exemplo, no caso da transição do IPv4 (ou

seja, a 4ª versão do protocolo IP) até o IPv6, os reguladores nacionais, como a ANATEL,

têm desempenhado um papel fundamental na estimulação da transição. Nesse sentido,

quando os atores do mercado têm demostrado reticências na adoção do IPv6, apesar da

eficiência do padrão, os reguladores desempenham uma função essencial na promoção

das normas técnicas, impondo a adoção de tais normas.

Por que a interoperabilidade desempenha um papel essencial no interesse

público? Porque permite que qualquer usuário possa ter acesso a uma rede

interconectada, compartilhar informações e utilizar serviços, independentemente da

localização geográfica do usuário ou da operadora que está usando. Esse elemento é

essencial porque, no âmbito da internet, a interoperabilidade se torna uma base do direito

fundamental à liberdade de expressão. Assim, a liberdade de expressão é a liberdade de

procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, sem

interferência, e independentemente de fronteiras. A interoperabilidade facilita o pleno

gozo dessa liberdade fundamental, permitindo a livre circulação das informações e de

inovação. Na verdade, cabe considerar que, no ecossistema digital, a liberdade de

compartilhar e receber livremente ideias significa ter a liberdade de acessar e

compartilhar livremente inovações, como novos aplicativos e serviços inovadores que,

num ambiente interoperável, podem ser desenvolvidos – e compartilhados – por cada

58 Veja Luca Belli. De la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp. 168-170.

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usuário. Enfim, de um ponto de vista econômico, a interoperabilidade é muito positiva

porque reduz os custos transitivos dos provedores de aplicativos. Quando um provedor

pode difundir serviços em qualquer rede porque todas as redes são interoperáveis, o

provedor elimina o custo de adaptar o seu serviço a diferentes sistemas técnicos. Então

uma rede de redes interoperáveis torna os serviços escaláveis, porque é muito mais fácil

e mais econômico expandir o sistema.

À luz dessas considerações, a pergunta que gostaria de analisar é a seguinte: os

sistemas legislativos podem ser considerados sob a perspectiva de interoperabilidade?

Como vocês sabem muito bem, sendo constitucionalistas, qualquer sistema legislativo,

qualquer sistema jurídico, é baseado em normas domésticas que geralmente são

diferentes de um Estado para outro. A partir da Paz de Westfalia, de 1648, o princípio de

“Cuius regio eius religio” foi estabelecido como fundamento do sistema internacional. Este

princípio afirma que qualquer soberano define as regras no seu próprio território.

Subsequentemente à Paz de Westfalia, cada soberano adquiriu o direito de estabelecer a

religião dos seus sujeitos, definindo as regras que os seus cidadãos devem respeitar.

Voltando para a era da internet, o que significa ter uma discrepância, uma divergência

entre sistemas legislativos nos quais cada soberano define regras diferentes? Significa

uma falta de interoperabilidade legislativa entre sistemas. Significa que usuários

brasileiros podem ter níveis de proteção dos próprios direitos diferentes dos usuários

europeus, dos usuários americanos, e significa também que os atores do mercado têm

obrigações diferentes, por causa de regulações diferentes nos vários sistemas legislativos.

Então, a primeira pergunta que eu queria colocar hoje é: os sistemas jurídicos

podem ser interoperáveis? Claro que sim, e temos vários exemplos neste sentido. Ao nível

global, por exemplo, o Regulamento internacional das telecomunicações – sobretudo, a

versão de 1988 –foi essencial para a difusão da internet, estabelecendo regras comuns

sobre infraestrutura de telecomunicações, que harmonizaram todos os sistemas jurídicos

dos membros da União Internacional de Telecomunicações. Um outro exemplo é a atual

proposição de acordo sobre comércio eletrônico entre México e Brasil. Tal proposição de

acordo é uma tentativa bilateral de construir uma interoperabilidade legislativa entre

dois países. Finalmente, existem exemplos mais complexos de interoperabilidade

legislativa, como a União Europeia, que é uma organização supranacional cujo objetivo

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precípuo é a definição de regras comuns – de diretivas e regulamentos – para harmonizar

os sistemas legislativos dos 28 Estados membros, ou seja, para promover a

interoperabilidade legislativa na área geográfica europeia.

Todavia, todos esses exemplos que mencionei são exemplos de origem

governamental, definidos de maneira top-down, ou seja, de cima para baixo. Então, a

segunda pergunta que eu queria colocar é: um esforço bottom-up, aberto e colaborativo,

que não seja iniciado pelo governo, pode estimular a interoperabilidade legislativa? Ou

seja, a interoperabilidade legislativa pode somente ser favorecida para iniciativas

governamentais ou tal processo poderia também ser iniciado por qualquer indivíduo, por

qualquer usuário da internet, como acontece, por exemplo, com a elaboração dos padrões

técnicos da internet no âmbito da IETF59 (a Internet Engineering Task Force) onde

qualquer pessoa pode – pelo menos teoricamente60 – propor a elaboração de uma nova

norma? Então, a pergunta é: é possível um esforço aberto e participativo para elaborar

padrões regulatórios abertos que permitam a interoperabilidade legislativa? Ou seja, é

possível replicar o processo participativo das organizações de padronização como a IETF,

para organizar um processo bottom-up e participativo a fim de elaborar princípios e

normas jurídicas que poderiam ser adotados voluntariamente para governos e

reguladores nacionais, ou para organizações internacionais? A compatibilidade dos

vários sistemas legislativos pode ser estimulada por um esforço bottom-up e

multissetorial ao invés de top-down e governamental? Existe um fórum ou um processo

que possa permitir esse tipo de esforço aberto, de baixo para cima e colaborativo? Claro

que sim, existe o Fórum de governança da internet das Nações Unidas (o IGF) que é um

dos principais resultados da Cúpula mundial sobre a sociedade da informação de 2003 a

2005, cujo mandato é definido pela Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação.61

Neste sentido, o Art. 72 da Agenda estabelece não somente que o Fórum deve facilitar a

troca de ideias, de informações, de boas práticas e deve fazer uma plena utilização da

consciência das comunidades acadêmicas, científicas e técnicas, mas especifica também,

nos incisos k e g, que o IGF deve “ajudar a encontrar soluções para as questões decorrentes

59 Veja Paul Hoffman. O Tao do IETF: Guia destinado aos novos participantes do Internet Engineering Task

Force. 2013. http://www.ietf.org/tao-translated-br.html 60 Para uma abordagem crítica aos filtros que limitam a participação nos trabalhos da IETF, veja: Luca Belli. De

la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp. 166-167. 61 A versão porguguesa da Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação pode ser acessada aqui

https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf

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do uso e do mal-uso da Internet” e deve identificar as questões emergentes, “quando

necessário, fazendo recomendações.” Esse último ponto é um elemento que 99.9% dos

participantes do IGF não conhecem ou, simplesmente, ignoram. Ou seja, o IGF é

geralmente considerado como fórum de discussão, mas o mandato desse órgão inclui

explicitamente a elaboração de recomendações, caso seja necessário.

Então, seria possível implementar no IGF um processo participativo, aberto,

cooperativo para elaborar padrões jurídicos, da mesma maneira como acontece no IETF

no que diz respeito à elaboração de padrões técnicos? Claro que sim. Na verdade, o modus

operandi participativo dos grupos de trabalho da IETF pode ser replicado facilmente

porque, além de elaborar os padrões técnicos que definem como a arquitetura da internet

deve ser estruturada, o IETF já codificou o seu modus operandi nas RFC 2016 e RFC 2418.62

O processo de padronização da IETF começa com um rascunho de norma técnica que é

difundido em uma lista de difusão do grupo de trabalho que cuidará do assunto específico

e do qual qualquer pessoa63 pode participar. O rascunho é reelaborado e aprimorado

utilizando os comentários dos participantes, até o momento em que se atinge o rough

consensus, ou seja, o consenso aproximado sobre o texto. Quando tal consenso é atingido

no âmbito do grupo de trabalho, o rascunho aprimorado é enviado para o Internet

Engineering Steering Group que é o grupo onde se reúnem os diretores das áreas temáticas

da IETF que abrirão um processo dito de “Last Call”, a última chamada em que toda a

comunidade da IETF pode fazer uma última roda de comentários. Tais comentários são

subsequentemente consolidados no padrão técnico, nesta altura, o padrão será testado

para ver se pode funcionar concretamente, ou seja, se pode ser considerado “running

code”, código informático que funciona de maneira interoperável.

Na verdade, os constitucionalistas especialistas em direito americano devem ter

percebido que esse processo não é uma novidade da IETF porque relembra muitíssimo a

postura do mecanismo do “Notice and Comment” descrito na seção 553 do Administrative

62 Veja Scott Bradner. The Internet Standards Process - Revision 3. Request for Comments: 2026. 1996.

https://tools.ietf.org/html/rfc2026 ; Scott Bradner. IETF Working Group Guidelines and Procedures. Request for

Comments: 2418. 1998. https://tools.ietf.org/html/rfc2418 63 Como destaquei em presidência, “embora o IETF seja “aberto” a todos, cabe ressaltar que apenas os

indicviduos com habilidades técnicas elevadoas, um domínio da lingua inglêsa, o tempo necessário para

acompanhar o trabalho e os recursos económicos necessarios para as viagens internacionais e as taxas de

inscrição das reuniões do IETF podem participar de facto das atividades desse organismo.” Veja Luca Belli. De

la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, p. 167.

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Procedure Act ou seja, o Código de Processo Civil Americano.64 Todavia, a diferença entre

o processo da IETF e o processo do Notice and Comment é que este último é um processo

consultivo totalmente gerenciado por agências governamentais. Ao contrário, o processo

da IETF é tipicamente bottom-up, ou seja, ascendente, e pode ser iniciado por qualquer

pessoa sem necessitar de intervenção governamental. Então, quando eu estava estudando

esses elementos há alguns anos, quando estava escrevendo a minha tese doutoral, eu me

perguntei: e se o modous operandi do IETF pudesse ser replicado para construir padrões

jurídicos? E naquele mesmo momento, por coincidência, estava trabalhando como

consultor jurídico pelo Conselho da Europa, com a tarefa de elaborar uma série de

relatórios sobre a relação entre neutralidade da rede e direitos humanos.65 Então, a minha

ideia, um pouco não convencional, foi de criar um grupo de trabalho no IGF (tais grupos

de trabalho do IGF se chamam coalisões dinâmicas) sobre a neutralidade da rede para

elaborar um padrão regulatório aberto, de maneira participativa. Assim, qualquer pessoa

interessada na elaboração de um modelo padrão sobre neutralidade da rede teria a

possibilidade de participar da elaboração do modelo de marco regulatório que o Conselho

da Europa me pediu para sugerir e que foi anexado ao relatório final, submetido ao Comitê

sobre a mídia e sociedade da informação do Conselho da Europa, em 2013.66

É importante destacar que o marco regulatório padrão sobre neutralidade da rede,

dito “Model Framework”, era uma resposta para um problema muito relevante que estava

sendo verificado em vários países, ou seja, o problema do tratamento discriminatório de

conteúdo, aplicativos e serviços pelos provedores de acesso. Particularmente, os cidadãos

europeus tinham evidências empíricas que bloqueios ilegais e degradação abusiva de

aplicativos e conteúdo eram um fenômeno muito difundido naquele período. Em 2012,

uma investigação da Comissão Europeia e do BEREC (o Organismo de Reguladores

Europeus das Comunicações Eletrônicas) acabava de confirmar que 36% dos usuários de

64 Uma explicação de como os mecanismos do processo administrativo americano tem influenciado os

mecanismo participativos típicos do direito consuetudinário internautico pode ser encontrada em Luca Belli. De

la gouvernance à la régulation de l'internet. Berger-Levrault. Paris. 2016, pp 239-242. 65 Vejam-se Luca Belli. Network Neutrality and Human Rights. Background Paper. Council of Europe. 2013;

Luca Belli. Council of Europe Multi-Stakeholder Dialogue on Network Neutrality and Human Rights. Outcome

Paper. Council of Europe, CDMSI(2013)misc 18E. May 2013; Luca Belli and Matthijs van Bergen. Protecting

Human Rights through Network Neutrality: Furthering Internet Users’ Interest, Modernising Human Rights and

Safeguarding the Open Internet. Council of Europe. CDMSI(2013)misc 19E. December 2013 66 Veja Luca Belli and Matthijs van Bergen. Protecting Human Rights through Network Neutrality: Furthering

Internet Users’ Interest, Modernising Human Rights and Safeguarding the Open Internet. Council of Europe.

CDMSI(2013)misc 19E. December 2013.

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internet móvel e 25% de todos os usuários na Europa eram interessados por esse tipo de

restrições ilícitas.67 Então, uma solução devia ser encontrada para resolver um problema

tão difundido. Cabe destacar que o Conselho da Europa já em 2010 tinha apoiado o

princípio da neutralidade da rede, ou seja, o tratamento não discriminatório do trânsito

da internet, aprovando a Declaração do Comitê dos Ministros sobre Neutralidade da Rede,

cujo parágrafo 9º sugeria a elaboração de um “marco regulatório padrão” para fornecer

indicações sobre qual tipo de técnica de gestão do trânsito da internet poderia ser

considerada razoável e compatível com os direitos fundamentais dos usuários.

Cabe ressaltar, também, que o princípio de tratamento não discriminatório do

trânsito da internet está em total conformidade com a jurisprudência do Tribunal europeu

dos direitos humanos que, a partir dos anos 90, com o caso Autronic contra a Suíça68, até

o celebre caso Yildirim contra Turquia69 de 2012, estabeleceu explicitamente que a

liberdade de expressão não se aplica simplesmente ao conteúdo das informações, mas

também às medidas de transmissão das informações, como, por exemplo, a gestão do

trânsito da internet. Então qualquer restrição nessas medidas implica uma restrição à

liberdade de acesso e de compartilhamento das informações e, portanto, é admissível

somente quando for necessária e proporcional para atingir um fim estabelecido pela lei.

O marco regulatório padrão foi desenvolvido no curso do ano 2013 e foi

apresentado no IGF em 2013 e se encontra disponível em acesso aberto no site do grupo

de trabalho do IGF.70 Exatamente como os padrões técnicos da IETF, ele deve ser

considerado como uma norma aberta, acessível e utilizável para qualquer pessoa ou

entidade interessada. Neste sentido, uma coalisão de entidades da sociedade civil está

usando esse modelo de marco regulatório para fazer atividade de lobbying ao nível global,

pedindo leis que protegiam os direitos humanos no âmbito da neutralidade da rede.71

Como mencionei em precedência, o Model Framework foi incluído também no relatório

final que apresentei, com Matthijs van Bergen, no Comitê sobre a mídia e sociedade da

67 Veja BEREC. (26 November 2012). Differentiation practices and related competition issues in the scope of

net neutrality. Final report BoR (12) 132 68 Veja European Court of Human Rights. Autronic AG v. Switzerland, 22 May 1990. Application no. 12726/87.

http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57630 69 Veja European Court of Human Rights). 2012. Case of Ahmet Yıldırım v. Turkey. Application no. 3111/10.

http://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-115705 70 Veja https://networkneutrality.info/sources 71 Veja https://www.thisisnetneutrality.org/

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informação do Conselho da Europa, em dezembro de 2013. A estrutura do marco

regulatório é muito parecida com a estrutura de um padrão técnico: inclui uma serie de

definições, dentre as quais a definição de neutralidade da rede como princípio de não

discriminação; estabelece exceções ao princípio de neutralidade que, claramente, não é

um princípio absoluto; prevê a aplicação do princípio a redes fixas, bem como às redes

móveis; prevê um direito a ter um endereço IP público, a fim de permitir a difusão do IPv6

e limitar o uso do Network Address Translation que é uma técnica de gestão pouco

transparente que pode gerar vários problemas; estabelece a necessidade de proteção da

privacidade dos usuários, a fim de evitar problemas gerados para técnicas de

monitoramento e gestão do tráfico, como a Deep Packet Inspection que têm um profundo

impacto na privacidade dos usuários; prevê a necessidade de obrigações de transparência

no que diz respeito às técnica de gestão de tráfego exploradas pelos provedores de acesso;

e, por fim, estabelece a necessidade de implementação das normas sobre neutralidade da

rede pelos reguladores nacionais que desempenham um papel fundamental no que diz

respeito à fiscalização.

Cabe destacar que, tendo sido utilizado para várias organizações como modelo

para fazer lobbying em favor da neutralidade da rede, muitos elementos do Model

Framework são particularmente visíveis no Regulamento (UE) 2015/2120 que estabelece

medidas relativas ao acesso à Internet aberta e, claramente, são muito visíveis na

Recomendação do Conselho da Europa sobre neutralidade da rede72, que se inspira

diretamente desse modelo. Cabe destacar que o objetivo do marco regulatório padrão não

é simplesmente oferecer sugestões sobre como proteger a neutralidade da rede de

maneira eficiente mas, também, favorecer a interoperabilidade legislativa em matéria de

neutralidade da rede, a fim de que usuários de países diferentes tenham níveis de

proteção homogêneos e provedores de aplicativos e conteúdo possam operar em países

diferentes sem ser bloqueados ou degradados indebitamente.

Para fazer, então, uma conclusão otimista, parece que o exemplo do Model

Framework confirma que é possível afirmar que a interoperabilidade jurídica pode ser

72 Veja Council of Europe. Recommendation CM/Rec (2016) 1 of the Committee of Ministers to member States

on protecting and promoting the right to freedom of expression and the right to private life with regard to

network neutrality.

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estimulada por meio de processos bottom-up, abertos e colaborativos. Além disso, cabe

ressaltar que a interoperabilidade jurídica é extremamente desejável, para permitir que

os usuários de vários países tenham níveis de proteção dos direitos homogêneos e

também para reduzir os custos de transação enfrentados pelos atores do mercado digital.

Enfim, parece que o IGF é uma plataforma ideal para desenvolver proposições de policy,

que pode estimular a interoperabilidade legislativa, mesmo se os esforços nesse sentido

são muito raros. Como demostra o exemplo do Model Framework sobre neutralidade da

rede, os resultados desse tipo de exercício participativo podem ser utilizados

voluntariamente pelos vários policymakers a fim de inspirar os processos de regulação

nacionais ou internacionais. Assim, o IGF, bem como outros processos de governança da

internet, podem ser explorados para alcançar resultados concretos e permitir aos

diferentes stakeholders não somente debater problemas comuns, mas também sugerir

soluções concretas, estimulando um esforço voltado à interoperabilidade legislativa de

maneira bottom-up.

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ECONOMIA DIGITAL

Luiz Alberto Gurgel de Faria73

Bem, eu gostaria de, nas minhas palavras iniciais, agradecer o convite que me foi

feito pelo Ministro Gilmar para participar deste evento e falar de um tema tão relevante,

que é o pertinente à economia digital. Mas eu não poderia, também, deixar de registrar a

satisfação de estar participando de uma banca com pessoas tão seletas e tão

especializadas na área sobre a qual nós vamos falar. O nosso Professor Everardo Maciel,

que revolucionou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, a Dra. Caroline, da OCDE, que

é um organismo que estuda por demais a questão da economia digital e os seus reflexos

em todos os países, o Dr. Jorge Rachid, que volta a emprestar a sua inteligência para a

Receita Federal, dirigindo tão bem esse órgão que é importantíssimo para a nossa nação,

e o Dr. Gustavo, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil, que está presidindo esta

Mesa. Eu gostaria de pedir licença a todos os integrantes da mesa para lembrar uma

rápida fala de um mestre para todos nós, brasileiros, e especialmente para nós,

nordestinos, Professor Everardo Maciel, que é o Ariano Suassuna. Esta fala do Ariano

Suassuna talvez muitos aqui já conheçam, mas eu gosto de lembrar que, diante da

composição desta Mesa, ela me veio à mente, obviamente no sentido reverso que depois

eu irei revelar, mas ela me veio à mente. O Professor Ariano, em uma das suas aulas

espetáculo, chegou e disse: “Olha, existe uma história de que, quando você vai falar mal de

uma pessoa, você tem que falar pela frente, para que aquela pessoa saiba. Isso é uma falta

de educação: você falar mal de uma pessoa na frente dela. Você não pode falar mal da

73

Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foi Juiz do Trabalho no Rio Grande do Norte (1993), Juiz Federal (1993/2000),

Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (2000/2014), no qual foi seu Diretor da Escola de Magistratura (biênio

2003/2005), Corregedor (biênio 2005/2007) e Presidente (biênio 2009/2011), além de ter sido Desembargador do Tribunal Regional Eleitoral

de Pernambuco (biênio 2011/2013). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre e Doutor em

Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Tributário na UFRN, atualmente em colaboração

técnica com a Universidade de Brasília (UnB). Foi Professor Visitante dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UFPE, como também

nos cursos de especialização em Direito Tributário e Direito Administrativo daquela instituição de ensino. Foi professor da Escola da

Magistratura do Rio Grande do Norte — ESMARN. Autor de vários artigos e livros jurídicos, havendo proferido diversas palestras em

seminários e congressos. É membro da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte (ALEJURN) e do Instituto Potiguar de Direito

Tributário (IPDT).

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pessoa na frente dela; você tem que falar, na verdade, por trás. Então, não fale mal dessa

pessoa na frente, fale, efetivamente, por trás; mas, quando é um elogio, a gente tem que

fazer pela frente.”. Como eu já tive oportunidade de, no caso, fazer aqui a todos os

integrantes da mesa, queria pedir licença a todos para fazer um especial ao Professor

Everardo Maciel. Professor Everardo Maciel é de Pesqueira, no Estado de Pernambuco,

que é o meu Estado de nascimento, embora eu seja potiguar de coração e pelas raízes. E o

Professor Everardo, muito jovem, foi Secretário da Fazenda. Imaginem um desafio desse!

Depois passou por vários órgãos aqui em Brasília, inclusive pela Secretaria de Fazenda do

Distrito Federal e também pela Secretaria da Receita Federal. Hoje, empresta o seu saber

não só ao Instituto de Direito Público e atua como consultor de Direito Tributário. E, antes

de começar – sei que o tempo é curto, mas eu não poderia deixar de falar outra coisa que

me veio à memória, Professor Everardo. Era uma inauguração no interior do meu Estado

do Rio Grande do Norte e o Senador Dinarte Mariz, que é meu tio-avô, estava presente.

Era em Jucurutu, no sertão do meu Estado. Dinarte foi um grande agropecuarista,

comerciante, empresário, e era daquele tempo em que, primeiro, a pessoa enriquecia,

para, depois, ir para a política, e assim aconteceu com ele. Então, ele depois foi Governador

e, após, Senador. Nessa inauguração, o promotor estava fazendo um discurso e disse:

“Olha Dinarte ... elogiou, trouxe o currículo dele, que, efetivamente, para um homem do

campo, era um currículo belíssimo, mas só tinha o curso secundário, e, ao final, ele chegou

e disse: imagine se esse homem tivesse o curso de Direito? O que ele seria?” Dinarte

atalhou o discurso e disse: “Seria Promotor de Justiça em Jucurutu.” Quer dizer, sem

querer diminuir o Ministério Público, mas ele deu toda uma magnitude. Já com relação ao

Professor Everardo Maciel, o que a gente diria? Senhor Professor, se ele tivesse o curso de

Direito, ele seria o professor de todos nós, do Direito Tributário, seria o consultor de

Direito Tributário que é tão famoso e que nos empresta tanto saber. Mas, bem, vamos ao

tema da economia digital. Eu gostaria de dizer aos senhores que esse tema é muito

relacionado à questão do Direito Tributário Internacional. Então, por óbvio, nós vamos

tratar dessa questão, mas eu gostaria de falar um pouco da economia digital do nosso dia

a dia, a economia digital um pouco no âmbito, digamos assim, do nosso Direito Tributário

Doméstico, para, só então, falar da parte da tributação internacional. E eu começo

destacando que a nossa palestra, a nossa exposição será a respeito da economia digital, só

que nós não estamos tão só no âmbito de uma economia digital, nós estamos, na verdade,

no mundo digital. Hoje a gente não consegue mais viver sem estar ligado nos nossos

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Smartphones, nos nossos Ipads, nos nossos computadores. Em qualquer lugar a que nós

chegamos e que não tem internet, a gente já fica ali, na verdade, com um verdadeiro pavor,

com uma verdadeira preocupação, porque isso passou a ser quase como a necessidade de

água, de energia elétrica. Então, há uma efetiva necessidade de nós termos esse contato

com o mundo digital. Apenas para exemplificar o que é isso, eu gosto de trazer uma foto

que retrata que daqui a pouco os bebês, no ventre, já vão estar, de alguma forma, tendo

um contato com o mundo digital; porque essa foto simboliza bem qual é a realidade que

nós estamos vivendo. Todos, a partir da infância, mesmo ali, ainda bebês, começam a ter

contato seja com telefones celulares, seja com Ipad, seja com computadores. Então, essa é

uma realidade que, às vezes, como educadores, como pais, como professores, preocupa-

nos, mas está aí, e nós não podemos fugir dela. Então, no que diz respeito ao mundo

tributário, ao sistema tributário, nós não podemos também fugir disso. Então, os países

têm que se preparar para ser tal realidade, o mundo tem que se preparar para ser essa

realidade, porque, com a globalização e com a força que a internet trouxe para essa

realidade digital, nós não temos como fugir dela. E eu entro, como eu gostaria de

mencionar, para a relevância da economia digital no ambiente doméstico, sem ainda falar

da parte especificamente do Direito Tributário Internacional. Vejam os senhores como o

comércio eletrônico vem ganhando força a cada ano. A gente teve, no ano de 2011, 18,7

bilhões de vendas através do chamado comércio eletrônico e, no ano passado, 41,3

bilhões, com a projeção de ter, neste ano, em face das dificuldades que todos nós sabemos,

um aumento relativamente pequeno de 8%, mas passando a ter 44,6 bilhões de reais em

transações através do comércio eletrônico. É, efetivamente, um mundo digital se

transpondo para o mundo real. Nós temos, então, as pessoas fazendo cada vez mais

aquisições sem que precisem sair das suas casas, fazendo essas compras de forma direta

através dos seus Smartphones, dos seus computadores, dos seus tablets; fazendo compras

dos mais diversos bens – livros, passagens aéreas, televisões, eletrodomésticos, de uma

maneira geral – sem sair de casa, e com um detalhe: muitas vezes, com preços bem

melhores do que se nós formos comprar no mundo real, numa loja. Inclusive, abrindo uma

janela, quem quiser fazer alguma compra em uma loja (em termos físicos), primeiro faça

uma pesquisa na internet, veja qual o preço daquele produto (na internet), imprima e leve

para uma loja. É uma dica que eu dou, porque, na realidade, isso eu já fiz várias vezes e

sempre consigo um desconto, porque na internet, geralmente, está mais barato. Chega ao

ponto de, por exemplo, livro, na Saraiva – não estou fazendo propaganda aqui de nenhuma

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loja Saraiva, Cultura, enfim, qualquer uma que seja – a gente vai e procura, e geralmente

está mais barato do que se a gente for diretamente às livrarias; só que livraria tem,

digamos assim, aquele prazer de você ir lá, de tocar o livro, de estar vivenciando aquele

mundo. Então, eu não consigo fazer a compra através da internet, e continuo indo, mas,

quanto a vários outros produtos, efetivamente é muito mais fácil você comprar no mundo

digital (através da internet). Em razão disso, qual foi o reflexo para o Direito Tributário, o

que aconteceu? Todos nós sabemos que, na Constituição, pela redação originária, os

Estados de destino só receberiam uma parcela do ICMS se quem estivesse comprando

fosse também contribuinte. Para deixar mais claro, vamos imaginar uma determinada loja

no Rio Grande do Norte que fosse vender uma camisa da Lacoste – não estou fazendo

propaganda nenhuma, mas apenas me lembrando de uma marca, como Brooksfield,

Richard, qualquer marca dessas. Então, a loja, na hora em que ela comprava da sede –

vamos imaginar que fosse em São Paulo e, sendo ela contribuinte do ICMS, quando ela

fosse vender, o Rio Grande do Norte ficaria com uma parcela do ICMS. Por quê? Porque

quem estava comprando para revender era contribuinte desse tributo. Então, a operação

dava direito a uma parcela do tributo também para o Estado destinatário, o Estado onde

aquele produto ia ser consumido; afinal de contas, a gênese, a ideia do ICMS é ser um

imposto sobre o consumo, motivo pelo qual o Estado onde ele seria consumido iria

também ele receber uma parcela. Só que o comércio eletrônico mudou essa realidade.

Quem estava comprando não era contribuinte do ICMS, mas pessoas físicas. Então, como

elas não eram contribuintes, o Estado destinatário não estava recebendo nada de

tributação, e isso estava gerando uma insatisfação muito grande, porque o comércio

eletrônico estava aumentando –como eu já comentei aqui com vocês – e os Estados

destinatários não recebiam nada. O que é que os Estados fizeram? Fizeram um protocolo,

no ano de 2011, subscrito por todos os Estados do Nordeste, prevendo que, mesmo que o

consumidor não fosse contribuinte do ICMS, o Estado destinatário teria direito a uma

parcela da tributação. Vejam só! Isso violando totalmente a nossa Constituição! Quer

dizer, os Estados pensaram que poderiam resolver o problema fazendo um convênio, um

simples protocolo e tangenciado uma regra clara, precisa da nossa Constituição. Qual foi

o resultado? No ano de 2014, uma vez provocado, o Supremo Tribunal Federal não

poderia fazer outra coisa que não dizer que, na realidade, essa disposição, esse protocolo

que foi assinado é inconstitucional. Não se pode mudar a Constituição através de qualquer

outro ato normativo, muito menos um protocolo subscrito pelos secretários da Fazenda,

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por mais respeitabilidade que eles tenham, por óbvio. Então, houve a declaração de

inconstitucionalidade, no ano de 2014, após o que os Estados fizeram o correto. Todos nós

conhecemos a Emenda Constitucional 87, que trouxe a previsão de que, quando a

mercadoria fosse vendida também para não contribuinte, os Estados de destino da

mercadoria ficariam com uma parcela da tributação, e até para que, digamos assim, os

Estados de origem pudessem ir se organizando quanto as suas receitas. A regra é essa,

mas foi previsto que isso fosse escalonado até o ano de 2019. Então, os Estados de destino

ficarão com a diferença entre a alíquota interestadual e a alíquota interna – 100% apenas

no ano de 2019, mas eles já começaram a receber uma parcela, de forma progressiva. Isso,

na minha visão, Dr. Rachid e Professor Everardo, que lidam mais com o dia a dia dessa

situação, está correto, já que se trata, no caso, de um imposto de consumo. Então, o Estado

de destino precisava ter uma parcela a respeito disso. E essa modificação na Constituição

foi necessária em face do mundo digital, da economia digital. O direito tributário precisa

se readequar a essa realidade, e foi preciso uma norma constitucional ser alterada, via

emenda, para que o mundo tributário se adequasse ao mundo digital, à nova realidade

que estava surgindo. Vamos a um segundo exemplo muito simples e que começa

exatamente na internet, que deu origem a toda essa discussão acerca da economia digital.

Vejam que uma decisão do Superior Tribunal de Justiça do ano de 2005 disse que os

provedores de acesso à internet exercem atividade que não está sujeita ao ICMS, porque

os Estados queriam cobrar o ICMS. E eu disse não, porque aqui, na verdade, não se

constitui serviço de telecomunicação, mas um serviço agregado, que, como tal, não está

dentro das hipóteses de incidência do ICMS. Pode ser ISS, mas ainda não está previsto na

lei dos serviços, não está incluído no anexo da lista de serviços. Então, diante desse fato,

não se cobra ICMS nem ISS. Vejam: uma decisão em 2005 e, 10 anos depois, em 2015,

ainda não havia cobrança do ISS no que diz respeito aos provedores de acesso à internet,

porque não havia lei. Por que eu estou chamando atenção para isso? – já estou recebendo

advertência do Dr. Gustavo, que, de forma bem discreta, levantou os dois dedos, como se

tivesse dando paz para mim, mas eu já sei que é tempo. Ele está se vingando muito bem,

mas vamos lá! – Porque o sistema tributário precisa ser mais célere, para se adequar a

essa realidade da economia digital, do mundo digital (eu vou falar um pouco depois sobre

isso). É bem verdade que há uma previsão de passar a haver tal tributação, mas o tema

está de volta ao Senado. Mas vejam que em 2005 houve uma decisão do STJ, e 11 anos

depois ainda não existiu essa realidade, de forma que os provedores de acesso à internet

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ainda não pagam nem o ICMS, que, na verdade, não caberia, nem o ISS. E o que eu trago de

novidade no que diz respeito à economia digital, à parte da tributação que interessa para

todos nós? A quantidade de startups e de aplicativos que estão surgindo e tendo sucesso,

de modo que, no tocante à tributação, é preciso haver uma adequação. Vejamos o exemplo

do Uber. São Paulo criou uma determinada cobrança de uma outorga no que diz respeito

ao número de quilômetros rodados. Está certo? Mas quanto ao Uber não há, no caso, ainda,

uma cobrança no que diz respeito a imposto sobre serviço, especificamente no âmbito do

município. Há uma discussão quanto a isso, mas é uma realidade. Temos também o Airbnb.

Agora o Brasil está preocupado com essa situação; os hotéis estão reclamando. É uma

novidade – vejam só, essas novidades são sempre boas para nós consumidores, e eu não

estou querendo desmerecê-las, de maneira alguma, pois são importantes e que, cada vez

mais, nós tenhamos gente no mercado que venha a oferecer bons serviços –, mas o sistema

tributário precisa ir se adequando a essa realidade. Então, tudo bem que não está lá na lei

dos serviços a parte de locação de imóveis, mas, na hora em que há um agenciamento e

aquele imóvel é colocado para hospedar pessoas, qual é a realidade dessa situação? Como

é que o Direito Tributário vai enfrentar essa questão? Já há discussão no Brasil,

envolvendo inclusive os países do Mercosul, no tocante a uma eventual tributação no que

diz respeito ao Airbnb. Spotify, que eu tenho e adoro. No caso, você tem, no seu celular,

Ipad, computador, um serviço de músicas, e o que o Spotify está pagando em termos de

tributação? – e eu já vou mostrar a minha conta, uma conta que tenho a respeito disso

(pelo tempo) . Eu também tenho Netflix e pago um valor, e quanto é que ele está pagando

de tributação? Há ensejo para o ISS? Já respondo que, quanto ao Spotify e ao Netflix, por

enquanto, não, mas na nova lei que está modificando os serviços, sim, vai haver uma

tributação. O iCloud é um serviço da Apple, que todos nós conhecemos, para que a gente

possa colocar determinados dados nossos nas nuvens, sejam fotos, contatos e muitos

outros dados. Quando a gente paga a Apple, qual é a tributação que está havendo sobre

isso? Sem falar em outras novidades que certamente virão. Eu trago aqui o exemplo de

uma conta da Net, que é a TV por assinatura, e vejam que aqui é uma conta agora de

outubro. Um valor altíssimo (realmente, a conta de TV é cara), e ali há COFINS, 3%, mas

qual é o valor? ICMS 28%, e qual é o valor? PIS, 0,65%, qual o valor? E eu vou trazer aqui

uma conta do cartão de crédito – não coloquei meus dados do cartão, em respeito ao sigilo

deles, mas são valores reais. Está certo? Olha a minha conta do Spotify. O que aparece?

Brasil, 22,35 reais. Não sei o que está sendo pago em termos de tributo, quanto é que está

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sendo pago, mas pelo menos o Spotify abriu alguma coisa no Brasil. E quanto à Apple,

quando eu pago o que eu compro na Apple Store? Aqui, por exemplo, é a minha conta

mesmo, e eu só coloquei um dado. Conta mensal, baratinha, relativo ao iCloud é 1 dólar só,

0,99 centavos de dólar. Muito barato, mas onde é que isso está sendo tributado? Apareceu

CA como país, e eu imagino que seja o Canadá, mas fiquei na dúvida se não seria uma sigla

do Estado da Califórnia, que é a sede da Apple. Você diz: mas é 1 dólar! Mas imagine

quantas pessoas não pagam para ter o iCloud! Será que o país está recebendo alguma coisa

da Apple no que diz respeito a isso? Confesso, Dr. Rachid, talvez o senhor possa me

responder, mas acredito que não. Bem, temos também o Netflix e o Uber. Fui a São Paulo

– aliás, não precisamos ir a São Paulo, já que, no dia em que a gente quer tomar um bom

vinho, a gente não quer dirigir, e a melhor alternativa é realmente usar o Uber. Então por

duas corridas que eu fiz em São Paulo paguei determinados valores. Qual é a tributação

que está acontecendo? Uma coisa positiva, no que diz respeito a essas empresas, é que,

efetivamente, pelo que eu vi da fatura, elas têm alguma sede aqui no Brasil, mas, com

relação à Apple, que eu sei que tem também, tudo o que eu faço de compra aqui no Brasil

(com relação aos Apps) sempre vem como compra no exterior. Será que está havendo

alguma tributação para cá? Bem, a resposta fica de sugestão de tema para debate. E para

a gente poder – veja que o magistrado tem uma vantagem, porque o advogado já teria tido

a palavra cortada, mas, bem, vamos aqui correr, pois só faltam 3 rápidos slides – apenas

para dar a notícia que, com relação à lei da reforma do ISS, que, a qualquer momento, vai

passar no Senado, porque foi aprovada lá, foi para a Câmara e agora já voltou para o

Senado –, no que diz respeito ao Netflix e ao Spotify, passará a haver o pagamento do ISS,

porque são especificamente conteúdos de áudio e de vídeo. Outro tema que eu não quis

explorar – porque sabia que só teria 20 minutos e teria um presidente muito exigente para

controlar o tempo –, mas eu entro no tópico até para, digamos assim, “levantar a bola”

para os outros ilustres palestrantes que me seguirão, é o alusivo a uma preocupação da

OCDE – a Dra. Caroline certamente irá abordar isso. A economia digital traz uma

preocupação, qual seja, onde é que aquele valor, efetivamente, vem a ser agregado para

ser tributado? Qual é a jurisdição sobre a qual aquele valor vai ser tributado? Dentro

desses tópicos eu procurei centrar muito a questão sob o aspecto doméstico, mas eu

coloco para vocês, por exemplo, o iCloud ou qualquer outra coisa que eu compre no âmbito

da Apple, através da Apple Store. Eu me recordo, só para dar um rápido exemplo, que

cheguei a ser assinante do Spotify, comprando na Apple Store, e a minha assinatura era, na

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época, quando eu fazia pela Apple, 36 reais, porque era para 4 pessoas; e a mesma

assinatura, quando eu fiz direto com o Spotify, era 22 reais; quer dizer, um decréscimo

muito grande. Imaginem o lucro que a Apple estava tendo em face disso! E o detalhe:

quando era pela Apple, vinha desse jeito, como se fosse CA, que eu não sei de onde era, em

dólar, 5,99 dólares. Então, na verdade, vinha sempre lá o valor como se eu tivesse feito a

compra no exterior, quando eu estava aqui, tinha feito o contrato por aqui. Então, valores

efetivamente bem mais caros, e não é à toa que, a respeito desse tema, nós tivemos uma

decisão recente da Comissão Europeia dizendo que vantagens que haviam sido

concedidas à Apple, na Irlanda, tinham sido concedidas de forma ilegal, violando normas

da União Europeia, de maneira que a Apple teria que devolver para a Irlanda benefícios

em torno de 13 bilhões de euros. Vejam só! Não é de reais! 13 bi de euros! Então, valores

efetivamente altos, o que demonstra essa importância de a gente estar aqui em seminários

como esse debatendo a questão da economia digital, erosão da base tributária e como os

países vão se relacionar e cuidar desse tema tão relevante. Então, agradecendo a paciência

de todos, inclusive, do nosso presidente, eu concluo!

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SEGURANÇA PÚBLICA VIGILÂNCIA E EXERCÍCIO DE LIBERDADES NO

AMBIENTE DIGITAL

Manoel Gonçalves Ferreira Filho*

*Professor emérito de direito Constitucional da faculdade de

direito da universidade de São Paulo Doutor honoris causa da

universidade de Lisboa-Portugal e Doutor em direito pela

universidade paris um Sorbonne.

Introdução

1. O mundo contemporâneo vive no "ambiente digital". O impacto da

novíssima tecnologia é profundo e se reflete nas mais diversas esferas da vida humana.

Com efeito, tudo o que depende de comunicação entre indivíduos e/ou grupos tende a

passar ou se fazer, hoje, por ela. Entretanto, sendo recentíssima, ainda não foi essa

"revolução na comunicação" causada pela internet devidamente assimilada, nem clara,

expressa e completamente regulada pelo direito positivo. Isto também no Brasil.

Ora, do ângulo da expressão ou da comunicação do pensamento, a internet é

um novo meio, como já o foi a palavra imprensa - o livro, depois o jornal, desde

Guttenberg; já na primeira metade do século passado a radiodifusão; na segunda, a

televisão; agora neste século, ela, a internet. A propósito dos velhos meios, o constituinte,

o legislador, os juristas já definiram princípios gerais, que se desdobram em preceitos de

justiça e sabedoria. Não é impróprio consequentemente recordar essas normas como

substrato de um disciplinamento específico do novo meio.

Este trabalho, por essa razão, parte da disciplina da expressão ou comunicação

do pensamento tal qual estabelece a Constituição brasileira, visando extrair daí princípios

que informem o tratamento do meio digital. Igualmente aborda sumariamente a

regulação já existente quanto a essa matéria.

Preocupa-se, como lhe determina o tema, com a problemática da segurança

pública em face do mundo digital, inclusive com a presente e constante ameaça que é o

terrorismo.

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Não tem a pretensão de abordar senão de modo superficial um tema de

atualidade, que - ouso dizer - não é ainda examinado a fundo pelo mundo jurídico. Visa,

sobretudo, a chamar atenção para essa questão.

I. A expressão do pensamento no quadro dos direitos fundamentais.

2. É pacífico ser a liberdade a principal fonte dos direitos fundamentais. É para

reconhecê-la que as Declarações de Direitos se fizeram e se fazem, pois a igualdade é a

igualdade da liberdade e os direitos sociais são condições da liberdade pessoal. A

liberdade tem inúmeras projeções, reconhecidas pela filosofia, pela história, que se

especificam em direitos de liberdade, como os relativos à comunicação entre os

indivíduos. Pode-se dizer, por isso, que as Declarações consagram "famílias" de direitos

fundamentais, famílias que crescem à medida em que as situações históricas as põem à

vista e levam à sua consagração especial.

Na verdade, esta ideia já se entremostra no direito positivo, como é o caso do

art. 5º, caput da Constituição brasileira. Neste, arrolam-se cinco direitos - vida, liberdade,

igualdade, segurança, propriedade - cujas projeções são especificadas nos incisos desse

artigo e noutras disposições da Carta Magna. Cada um deles tem assim os seus

desdobramentos, a sua "família".

A) A família dos direitos de liberdade do pensamento.

3. A mais profunda raiz desta “família” é a liberdade da razão humana. Esta, no

foro íntimo, é inapagável, mas assim mesmo tem sofrido na história graves agressões.

a) A liberdade de consciência ou crença.

4. O repúdio a estas agressões se manifesta na consagração da liberdade de

consciência, e, decorrência incindível desta, a liberdade de crença,

Com efeito, a expressão do pensamento tem como fundamento a liberdade de

consciência. Esta é o foro íntimo em que o homem livremente determina o que faz e o que

não faz - o livre arbítrio - bem como o que crê ou não crê, o que é a essência de seu pensar.

Recusá-lo é recusar toda a filosofia que está na base do constitucionalismo, portanto, seria

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perder tempo discuti-lo neste trabalho, pois a afirmação desse livre pensamento, dessa

crença livre, é condição sine qua non do estudo e da temática em discussão.

Reitere-se que esta liberdade de consciência e crença é insuprimível, pois, no

foro de sua consciência, o ser humano sempre há de determinar o que aceita e o que nega.

Entretanto, cabe lembrar que em todos os tempos houve como há escolas de pensamento

que pretendem determinar a crença de cada indivíduo. É o caso da condenação dos não-

crentes em determinadas religiões, ou concepções da vida e do mundo, dos apóstatas a

uma determinada crença, o que é comprovado pela experiência da inquisição, ou pelo

direito islâmico que condena à morte o apóstata. Claro está que isto pressupõe uma

manifestação exterior, real ou suposta, o que raramente podem evitar os crentes

religiosos, em razão dos ritos ou prescrições que têm de seguir.

É em razão disto que a liberdade de crença está na Constituição - art. 5º, VI -

acompanhada da liberdade de culto.

b) O direito à expressão do pensamento.

5. A expressão do pensamento é, porém, uma forma de sociabilidade natural

do ser humano. O homo rationalis é também homo loquens. Ele se comunica com os outros,

exprimindo seu pensamento (e por este viés as suas crenças), a fim de partilhar com estes

novas descobertas, novas verdades descobertas, etc.

Na Constituição vem ela, no art. 5º, IV: "É livre a manifestação do pensamento,

sendo vedado o anonimato".

Note-se que o reconhecimento desta projeção se complementa pela exigência

de que quem expressa um pensamento é responsável pelas consequências do que diz.

Para que o seja, tem de ser identificado. Estão aqui bem claros princípios impostos ao

regime da liberdade de expressão do pensamento: o princípio da identificação e o

princípio da responsabilidade, aquele instrumental em relação a este.

c) A liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação.

6. Ainda no art. 5º, a Constituição explicita a liberdade de expressão intelectual,

artística, científica e de comunicação, precisando não caber no seu campo nem censura

nem licença prévia.

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Trata-se evidentemente de um desdobramento o que registra o inciso IV, na

sua primeira parte, sem mencionar a proibição do anonimato, certamente por supô-lo

inviável no seu campo de abrangência.

d) O direito da comunicação social.

7. A Constituição de 1988, mais adiante, inova, ao consagrar um direito à

comunicação social. Este pertence ao rol dos direitos fundamentais de terceira geração.

Na verdade, a inovação é relativa, porque de há muito o constitucionalismo se

preocupa em dar um tratamento específico a meios de comunicação de massa, como

fazem fé as referências à liberdade de imprensa, ou a jornais, em textos constitucionais

bem anteriores (no Brasil, expressamente desde o de 1934, art. 113, nº 9).

Tal (novo) direito vem no art. 220, inserido num capítulo V do Título VIII da

Lei Magna, título este designado "Da Ordem Social". Diz o caput deste artigo: "A

manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,

processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta

Constituição".

À primeira vista, ele repete aquilo que decorre do art. 5º, IV e IX da

Constituição acima referidos. A novidade, porém, está na referência à prestação de

informação.

Entretanto, o exame dos §§ desse artigo 220 torna claro que seu objetivo é

assegurar a liberdade de informar. O § 1º proíbe que a lei edite dispositivo "que possa

constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de

comunicação social", respeitado, porém, o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

Este último dispõe: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado

o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional."

Para uns, sobretudo, os profissionais da comunicação social, esta norma os

exime de indicar qual a fonte de que proveio a informação, de modo absoluto. Esta tese

enseja conflito com outros direitos fundamentais, de modo que há de ser tratada pelos

princípios próprios à colisão de direitos, de que se tratará mais adiante.

e) A internet como instrumento de expressão do pensamento.

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8. Por ser ainda recente o fenômeno da manifestação do pensamento pelo

instrumento que é a internet, cumpre dedicar-lhe atenção especial.

No quadro do direito constitucional positivo, a transmissão de ideias e

informações via internet, não tem por que não se sujeitar aos princípios expostos acima.

Ela se inclui incontestavelmente entre os meios de expressão do pensamento e assim deve

obedecer aos princípios gerais que regem a expressão do pensamento, afora normas

específicas dadas as suas peculiaridades.

A ela se aplicam a proibição do anonimato, a preservação da intimidade, da

vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Não pode ela incidir nos ilícitos penais,

nem pôr em risco a segurança privada ou pública. Na verdade, isto é apontado pela

própria lei específica que rege a internet no Brasil (Lei nº 12.965/2014). São expressos a

este respeito o disposto nos arts. 3º, I e II, e, sobretudo, no art. 7º, I, II e III, afora o que

consta do art. 8º.

Assinale-se que a lei tem normas especiais de proteção da privacidade dos

usuários, proibindo a divulgação de dados pessoais destes, inclusive registros de conexão

e registro de acesso a aplicações da internet (art. 7º, VII).

Quanto à proibição do anonimato, que na Lei Magna é expresso no art. 5º, IV

onde genericamente se afirma a liberdade de manifestação do pensamento, a referida Lei

não o nega. Ela - é certo - institui a "inviolabilidade e o sigilo do fluxo de ... comunicações

pela internet" (art. 7º, II), bem como a "inviolabilidade e o sigilo das comunicações

privadas armazenadas" (art. 7º, III), mas é expressa nesses mesmos dispositivos ao

admitir a quebra desse sigilo por "ordem judicial".

Assim, é inaceitável que provedoras desse meio de comunicação pretendam

pôr fora do alcance da lei as ideias e informações que portam de um, ou alguns, para

muitos.

O § 2º repete a proibição de censura, especificando "de natureza política,

ideológica e artística" (o que, a contrario sensu, abriria campo para censura em matéria de

moral e bons consumes...).

f) A liberdade de expressão do pensamento e a colisão com outros direitos

fundamentais.

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9. A reiterada proibição da censura que está na Constituição vigente é, por um

lado, a reação contra normas do direito a ela anterior. Neste, o art. 150, § 8º da redação

primitiva da Constituição consagrava a liberdade de manifestação do pensamento "sem

sujeição a censura", mas aduzia: "Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de

subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe". A Emenda nº 1, de 1969,

art. 153, § 8º, acrescentou outra proibição – a de “exteriorizações contrárias à moral e aos

bons costumes”, (com o que as revistas pornográficas eram equiparadas ao Manual de

Guerrilha Urbana). Para viabilizar essa intolerabilidade instituiu-se mesmo uma

"verificação prévia", ou seja, uma censura com outro nome.

Por outro, inegavelmente ela valoriza a liberdade de manifestação do

pensamento, reconhecendo-a como essencial a uma sociedade livre, gerida por um Estado

democrático.

É certo, porém, que esta ênfase não exclui sejam punidos os responsáveis por

manifestações de pensamento de caráter criminoso, definidas na legislação competente,

mas a posteriori, por meio do processo adequado. Sem dúvida, tal repressão não raro é

tardia e não apaga o mal produzido, mas reflete uma importante opção de valor da parte

do Constituinte: Antes o risco do que a "rolha".

10. Cabe, todavia, examinar o caso de a manifestação do pensamento - direito

fundamental - entrar em choque com outros direitos fundamentais.

Com efeito, a Constituição consagra no art. 5º, X o direito fundamental à

privacidade: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das

pessoas", que se completa pela previsão de indenização por dano moral ou material.

Ora, não é meramente teórica a hipótese de a livre manifestação do

pensamento entrar em choque com a inviolabilidade da intimidade, vida privada e

imagem das pessoas.

11. Mais. A Lei Magna consagra um direito à segurança pública, claramente

reconhecido pela doutrina, com base no art. 5º, caput, combinado com o art. 144 da

Constituição.

Ora, o respeito a este direito reclama frequentemente o sigilo de investigações

ou apurações, a fim de impedir grave perturbação da ordem, ato terrorista, ou a

divulgação de segredos militares. Não é difícil imaginar o conflito entre tal necessidade e

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a livre expressão do pensamento, mormente na forma particular que é a liberdade de

comunicação social.

Na verdade, o sigilo quanto a informações de tal espécie tem em seu favor o

disposto no art. 5º, XXXIII da Constituição, que expressamente preserva o "sigilo

imprescindível à segurança da sociedade e do Estado".

Claro está que, num caso como este, a mera punição do informante é

insuficiente.

12. Pode-se lembrar que, em casos de colisão entre direitos fundamentais, se a

solução é sempre delicada e controversa, a doutrina já avançou princípios que podem

guiá-la. Um seria o princípio da ponderação, medindo-se no caso concreto qual direito há

de prevalecer, na impossibilidade de todos serem ao mesmo tempo intocados. Outro seria

o da pertinência, levando-se em conta a vinculação do caso in concreto preferentemente

ao campo de incidência de um direito e não de outro. Igualmente, cabe recordar o

multissecular princípio de que o interesse público prima o interesse individual.

III. A segurança pública em face da liberdade de manifestação do

pensamento.

13. Claro está que o regime da manifestação do pensamento acima exposto é o

constitucionalmente previsto para situações de "normalidade", não para situações de

emergência ou grave crise. Em face destas, há um regime especial, que se examinará mais

adiante.

14. É inerente ao Estado, enquanto organização política, a tarefa essencial da

preservação da segurança. Ou seja, a garantia de todo o seu povo no tocante à sua pessoa

e a seus direitos, o que tem como pressuposto indispensável a garantia de sua própria

preservação, seja em face de ameaças internas, seja em face de agressão estrangeira.

a) A potencialidade "incendiária" da expressão do pensamento.

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15. Ora, é fato inegável que a manifestação do pensamento pode ter, e a história

o comprova incontáveis vezes, um caráter ameaçador para a segurança, podendo servir

para a destruição da ordem pública e para a destruição do próprio Estado.

De fato, a manifestação do pensamento, seja por meras palavras, seja por

expressões artísticas, pode ter consequências "incendiárias" a provocar conflitos,

rebeliões, insurreições, chegando até à subversão da ordem política estabelecida. Este

fenômeno foi potencializado pelos meios de comunicação de massa, desde a imprensa,

depois pelo rádio, pelo cinema, pela televisão, e na atualidade pela internet, cujas facetas

ainda não são bem sopesadas. E - não se olvide - pode ela servir à própria atuação de

grupos e Estados estrangeiros, como uma arma de guerra, particularmente, hoje, como

instrumento para o terrorismo.

Assim sendo, é natural - e imprescindível - que o Estado exerça uma vigilância,

para prevenir a sua destruição e para proteger a vida e os direitos do seu povo.

b) A defesa da segurança pública na "normalidade".

16. Todo Estado, digno do nome, se propõe a fazê-lo, mesmo em períodos de

"normalidade". Entenda-se em períodos em que a ordem definida constitucionalmente é,

de modo global respeitada. Isto não colide com as liberdades do pensamento, desde que

exercida segundo os parâmetros da Constituição e da lei.

No Estado constitucional, esta vigilância visa a prevenir violações da referida

ordem constitucional definida. Num Estado de Direito, sempre com o controle do

Judiciário.

Não há Estado que não tenha o seu "serviço secreto".

c) Em situações de grave crise.

17. É óbvio que tal vigilância tem de ser incrementada em situações de

anormalidade.

Na verdade, nos Estados constitucionais, como o Brasil, a atuação do Estado

para prevenir e debelar a subversão institucional, ou enfrentar guerra externa, enseja a

implantação de regime excepcional para o exercício de direitos fundamentais.

Na Constituição vigente, são dois os regimes - um o do "estado de defesa" (art.

136), outro o do "estado de sítio" (art. 137 e s.). Aquele, menos drástico, previsto "para

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preservar ou prontamente restabelecer, em locais estritos e determinados, a ordem

pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou

atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136, caput). O

segundo, para o caso de ineficácia das medidas tomadas no estado de defesa, ou "comoção

grave de repercussão nacional" (art. 137, I), como para o de guerra declarada ou "agressão

armada estrangeira" (art. 137, II).

Na hipótese do estado de defesa, a Constituição, no que tange às liberdades de

manifestação do pensamento, apenas se refere a restrições ao "sigilo de correspondência"

(art. 136, § 1º, I, "b") e ao "sigilo de comunicação telegráfica e telefônica" ("c"). No estado

de sítio, são admitidas "restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo

das comunicações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão", isto "na forma da

lei" (art. 139, II). Todavia, exclui dessas restrições "a difusão de pronunciamentos de

parlamentares efetuados em suas Casas legislativas, desde que liberada pela respectiva

Mesa" (art. 139, parágrafo único).

18. Não se refere a Constituição às manifestações do pensamento por

intermédio da internet, cujas peculiaridades não eram apercebidas ao tempo de sua

promulgação.

Entretanto, os princípios implícitos nas disposições apontadas são aplicáveis

à manifestação via internet. Ou seja, no estado de defesa, a possibilidade de restrição ao

sigilo das comunicações e da correspondência.

No estado de sítio, as restrições previstas para a inviolabilidade da

correspondência, o sigilo das comunicações e à liberdade de manifestação e informação

dos meios de comunicação de massa, imprensa, radiodifusão e televisão.

e) O caso peculiar do terrorismo.

19. Estes primeiros anos do século XXI tem sido marcados pela proliferação de

atos de terrorismo promovidos em diferentes países por grupos ou entes estrangeiros -

o chamado terrorismo "internacional". Ora, este terrorismo é favorecido pelos meios

eletrônicos, mormente pela internet, beneficiando-se da escala mundial da rede, do sigilo

que propicia e da quebra do sigilo de informações secretas em computadores violados

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pelos hackers ou pela espionagem de órgãos governamentais. Os fatos não precisam ser

mencionados, porque são de conhecimento público.

Em razão disto, normas restritivas quanto à comunicação por esses meios

eletrônicos têm sido editadas pelo mundo afora. Evidentemente tais normas suscitam

delicados problemas ao tocarem nas liberdades do pensamento.

20. A legislação mais abrangente a este respeito é a editada pelos Estados

Unidos, a partir do atentado às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. Essencialmente

estão elas contidas no Patriot Act de 26 de outubro de 2001, que outras leis modificaram

ou reconduziram, quando temporárias.

Em síntese, tal lei habilita órgãos governamentais a obter dados pela quebra

do sigilo de comunicações eletrônicas ou de dados de arquivos eletrônicos. Isto enseja

monitoramentos que alcançam pessoas indiscriminadas, sem o cumprimento de

exigências que garantam a sua privacidade (por exemplo, a obtenção de informações

confidenciais que constam de bancos de dados de serviços de saúde, atingindo todos os

que foram por este atendidos).

Igualmente, ela flexibiliza o controle judicial dessas medidas, por exemplo

autorizando os roving wiretaps (que propiciam que uma ordem de quebra de sigilo possa

ser cumprida fora da competência territorial do juiz que a deferiu) e os sneak and peek

warrants (que permitem o retardamento da comunicação de investigações a dano dos

investigados.

Estas e outras medidas permitidas pela referida lei suscitaram e suscitam

controvérsia entre os juristas, mas de modo geral têm sido aceitas como constitucionais

pelos tribunais competentes.

21. No Brasil, foi editada há meses a Lei nº 13.260 (de 16 de março de 2016),

cuja ementa (talvez inconscientemente) declara ser feita "disciplinando o terrorismo"

(sic) e tratando de "disposições investigatórias e processuais" a seu respeito.

Tal lei, no art. 2º, caput, restringe os atos de terrorismo àqueles promovidos

"por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor , etnia e religião".

Assim, ao pé da letra, não seria ato de terrorismo o que fosse praticado por razões

políticas...

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Ela, sem dúvida, enuncia um elenco de atos de terrorismo (art. 2º, § 1º) tipifica

delitos ligados a ação terrorista (art. 3º, 5º), como fornecer recursos para este (art. 6º),

etc. e no art. 12 contém disposições processuais a serem observadas no processo e

julgamento dos acusados de ato terrorista.

Nela, portanto, não há uma palavra sobre a vigilância e a prevenção de atos

terroristas (o que é compreensível levando-se em conta o passado da "presidenta" que a

sancionou).

Como também a enxundiosa Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014,

pomposamente batizada de Marco Civil da Internet, nada dispõe sobre tal assunto, fica

certo que a vigilância indispensável à prevenção dos atos de terrorismo há de ser feita

segundo o regime jurídico ordinário que acima se apontou.

Observações finais.

22. A disciplina vigente da manifestação do pensamento é no Brasil

extremamente liberal. Ela valoriza a liberdade, mesmo quando ela pode pôr em risco

outros valores, como a segurança nacional. Cria também potenciais conflitos com outros

direitos fundamentais, como a privacidade. Resguarda a comunicação social de restrições

não apenas quanto à informação, mas também quanto à moral e os (bons) costumes,

embora se preocupe com os malefícios da propaganda. Reage, globalmente falando,

contra as restrições do período militar e atende bem à moda do "politicamente correto".

Não havendo, ao tempo de sua elaboração, consciência das peculiaridades e do

impacto da internet, não se pode culpá-la por omissão a respeito de sua disciplina.

Surpreendente é, porém, que, cerca de cem vezes emendada, nenhuma de suas mudanças

se tenha preocupado de atualizá-la a esse respeito. Existe uma cegueira nesse ponto,

conforme comprova a recente legislação sobre o terrorismo e sobre a própria internet.

Assim, o direito constitucional brasileiro está em nítido atraso em relação ao estrangeiro,

o que é grave, porque propicia séria ameaça à segurança nacional, à segurança pública e

à segurança individual.

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DIREITOS INTELECTUAIS E ECONOMIA DIGITAL

Rodolfo Tamanaha*

Doutor em Direito Tributário (USP). Mestre em Direito Público (UNB). Presidente da

Comissão Especial de Inovação da OAB/DF. Advogado e Professor. Atualmente, ocupa o

cargo de Diretor de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura.

Até como último palestrante um painel antes do almoço, com o horário estourado,

então, a melhor qualidade do palestrante nesse momento, nessa posição é a brevidade.

Então, eu primeiro lugar, agradeço aqui na figura do Dr. Gustavo, cumprimento, na

verdade, o Gustavo e os demais colegas. Agradeço ao IDP na figura do Sérgio, que não está

aqui no momento, pelo convite e eu digo de forma muito rápida, foi até interessante ter

me colocado no último painel porque de uma maneira a minha exposição, na verdade, são

algumas reflexões, elas, de alguma maneira, trabalham com vários temas que foram

tocados pelos painelistas anteriores. Então, eu não vou ser muito inovador nas minhas

colocações, mas minha ideia realmente é tentar unificar alguns pontos de vista, alguns

temas que foram colocados. O primeiro ponto só que eu gostaria de chamar atenção é

realmente o fato do IDP ter no seu tradicional congresso de Direito Constitucional ter

estabelecido uma pauta sobre internet, mostra exatamente como o tema, ele tem um

protagonismo hoje seja no Brasil, seja fora do Brasil, muito grande e mostra exatamente

o potencial, a relevância acadêmica, a relevância social, a relevância econômica que os

novos modelos de negócio propiciados principalmente pela internet tem sobre a nossa

realidade cotidiana, seja desde um aplicativo de mobilidade como o Uber, seja os

aplicativos aqui que a gente for mencionados, de redes sociais ou de acesso (ininteligível)

conteúdo audiovisual ou musical. Então, a gente percebe, realmente a internet tem essa

presença muito forte na nossa vida e para nós, como operadores do direito, seja no órgão

público, seja na iniciativa privada, seja na academia, parece que todos, realmente, de

alguma maneira se encontram ainda em uma fase muito de entender como os novos

modelos de negócio se processam, porque nesse ponto, realmente, fica muito claro como

a economia, como o mercado de alguma maneira ele está uma velocidade muito rápida,

muito mais rápida talvez do que em outros setores e exatamente o direito ali

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acompanhando para tentar entender como é que tem que se estabelecer uma arquitetura

regulatória, onde que a riqueza é produzida naquele modelo de negócio para fins de seja

de tributação, como é que o consumidor ele pode ser protegido sem você também

enrijecer a legislação de forma a muitas vezes ser uma desincentivadora da inovação.

Então, a gente percebe, realmente, que em vários campos do direito você ainda está muito

nessa fase de mapear, de compreender, de como a internet e todas as suas estruturas

baseadas, com base tecnológica, elas se processam para você poder trabalhar exatamente

uma regulação ou uma política pública que tente ao máximo proteger direitos, mas

também ser um instrumento de indução, isso é uma perspectiva que me é muito cara e eu

acredito realmente que o desafio está exatamente você equilibrar esses pontos de vista.

Até recuperando um pouco o que foi colocado pelos colegas, quando a gente fala,

realmente de propriedade intelectual em ambiente digital e aquilo for uma propriedade

intelectual realmente no sentido amplo, abarcando não só o direito autoral, mas também

a propriedade industrial foi mencionada questão da contrafação que é exatamente a

falsificação de marcas. Então, quando você fala em propriedade intelectual em meio

digital, realmente, o tema da observância do direito é um tema que se coloca, às vezes,

muitas pessoas na verdade acabam tomando contato com esse tema quando se deparam

com o conceito, a referência ao tema da pirataria. Então, esse tema realmente ele, seja a

pirataria stricto sensu, seja a contrafação, é um desafio no ambiente digital porque o

ambiente digital, ele permite, realmente, um acesso, seja a esses conteúdos de direito

autoral, seja aos produtos frutos da falsificação de uma forma muito mais fácil do que

ocorria antes e você tem, realmente, nessa ceara um desafio muito grande porque

tradicionalmente se pensou e se pensa o enfrentamento dessas violações, uma

perspectiva realmente mais repressiva, isso é natural, você pensava realmente, quando

você pensa em uma feira do Paraguai aqui em Brasília ou, às vezes, na 100 em São Paulo,

você associa imediatamente aquelas violações a uma atividade policial. Já quando você

está pensando em direito autoral, quando a gente está falando realmente de direitos mais

intangíveis, vamos dizer assim, em meio digital, parece que o desafio se coloca na verdade

mais em uma arquitetura regulatória, ou seja, está se entendendo, está se compreendendo

como é que funcionam esses novos usos na internet para tentar exatamente adequá-lo as

categorias que já existem ou eventualmente criar categorias novas. Então, a discussão ela

coloca já, me parece que se coloca já em um outro plano, um plano realmente de você

pensar nessa arquitetura regulatória que passa exatamente por você conhecer, por

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exemplo, como a internet se processa, como é que ela se estrutura, que foi exatamente a

nossa última palestrante, ela pontuou diversas características que tem que ser mais em

consideração nessa arquitetura regulatória e um outro tema que me parece também que

está relacionado com esses dois eixos, é exatamente o eixo da inovação, ou seja, na medida

em que você também tem, pensa realmente como um formulador de políticas públicas, ou

um órgão público, ele tem que, de alguma maneira, intervir naquele setor, entre outras

finalidades que aquela intervenção tem que buscar, me parece também que é necessário

se pensar se aquela intervenção ela vai, de alguma maneira contribuir para inovação

tecnológica, a inovação em geral, ou seja, ela não vai ser realmente uma mão pesada

demais, uma intervenção regulatória estatal que vai acabar, muitas vezes, intervindo em

um setor que, inicialmente, não era regulado ou no máximo era um auto regulação, às

vezes, privada e como é que vai se dar realmente essa atuação do Estado. Isso me parece

realmente que ele está linkado, está conectado com uma linha de pesquisa, vamos dizer,

uma preocupação muito grande hoje no campo do direito que é a pesquisa empírica,

principalmente no campo das políticas públicas, a gente percebe, realmente que falta

mesmo para o formulador da política pública muitas vezes dados empíricos para você

poder discutir, você faz uma audiência pública, faz uma consulta pública, é importante,

você ouve os atores, mas assim também como isso é importante, ou seja, você ter dados

empíricos, econômicos, de impacto social, etc. também são muitas vezes são informações

que o próprio formulador da política pública não tem acesso, ou seja, ele mesmo não está

promovendo que (ininteligível) um dever também, ou seja, tem que promover de alguma

maneira, incentivar que esse tipo de pesquisa ocorra, inclusive para poder subsidiar a

política pública, mas exatamente para que se possa também, de alguma maneira, até para

permitir muitas vezes, isso parece que a gente sabe que falar teoricamente é muito fácil,

na prática, às vezes, não é muito fácil, você estabelece uma política pública, você

estabelece um marco regulatório, depois de um tempo você percebe que muitas vezes, ele

está gerando algum tipo de disfunção naquele mercado para você retornar, voltar atrás e

ajustar aquele marco regulatório, a gente sabe que não é muito fácil, mas talvez algo que

deveria, em um campo tão dinâmico como é o campo da propriedade intelectual, talvez

seja algo que não deveria ser tão difícil de ser realizado, exatamente porque, muitas vezes,

você vai estar trabalhando com uma intervenção regulatória que ela vai ser muito por

tentativa e erro, ou seja, você vai se aproximar, você vai buscar uma finalidade, se acredita

a partir daquela colheita de informações, ouvindo os stakeholders, analisando as

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pesquisas empíricas, mas muitas vezes você vai perceber que, por algum motivo,

exatamente porque a internet, pensando realmente em internet, ela é um instrumento que

está em evolução constante, ela mostrou realmente que na prática a sociedade reagiu de

uma outra forma. Então, isso me parece também uma preocupação que tem que estar

presente, seja no âmbito de pesquisa, seja, realmente, em uma atuação em termos de

políticas públicas. E um tema que eu gostaria de chamar atenção aqui na minha fala, até

porque, inclusive, ontem eu tive ciência, fui informado de que um caso importante que foi

pautado no STJ, um caso que quem acompanha essa discussão com relação, no caso a

gente está falando do streaming, ou seja, então, entre vários modelos de negócio em

ambiente digital, o streaming é um modelo que ele tem gerado muita discussão de você

entender exatamente como ele funciona, entender exatamente que medida você teria

algum tipo de transferência de propriedade ou não, em que medida você teria alguma

interatividade do usuário com relação aquele conteúdo para exatamente você poder

enquadrar o streaming e os usos que ele propicia dentro das categorias já existentes hoje

no campo do, especificamente, no campo do direito autoral e a notícia que eu tive foi que

existe uma ação. Então, a gente tem um recuso especial no STJ de uma ação que foi

proposta, salvo engano, pelo ECAD contra a OI e FM exatamente discutindo se o

webcasting e o simulcasting seriam, não vou dizer que são, tecnicamente não vou dizer

que são exatamente espécies de streaming, mas estão exatamente nesse contexto desse

modelo de negócio, se de alguma maneira elas corresponderiam ao que a legislação

estabelece como execução pública. Execução pública que é o que vai exatamente permitir

que o ECAD como o Escritório Central de Arrecadação, ele possa cobrar dessas

plataformas digitais por essa disponibilização desse conteúdo. Não é um tema simples, é

um tema que do ponto de vista do Ministério da Cultura foi realizado um trabalho muito

importante, inclusive, o Guilherme participou também dessa discussão, se ouviram

muitos stakeholders, se refletiu muito sobre isso, se (ininteligível) de que talvez boa parte

dos usos relacionados ao streaming realmente corresponderiam a uma execução pública,

o que a gente percebe até em termos de benchmarking internacional é uma discussão que

ela não é classificada, existe ainda muito debate, agora, é interessante porque são

circunstancias também, por mais que a gente também tenha uma visão, estabeleça uma

política pública, o tema ele foi judicializado, ele foi colocado sobre a apreciação do

Judiciário. Então, a gente talvez tenha uma decisão que ou confirma esse entendimento ou

na verdade se trilhe um caminho diferente. Então, reputo, realmente como muito

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relevante a gente acompanhar esse julgamento, exatamente porque ele vai de alguma

maneira, ele vai estabelecer alguns parâmetros para as políticas públicas relacionadas ao

direito autoral em ambiente digital e para realmente, finalizar, acredito que até para

eventual possibilidade de perguntas por parte da plateia, é colocar realmente que a gente,

do ponto de vista, agora hoje em uma função realmente de propor políticas públicas, há

todo o interesse de se ouvir os principais, os participantes desse mercado e a internet tem

essa beleza, porque a gente está falando, na verdade, ou seja, quando a gente fala dos

steakholders, a gente está falando não só dos órgãos estatais, não só da indústria, mas

também dos usuários, ou seja, agente da sociedade civil que representam as mais

diferente categorias de usuários, vamos dizer assim, da internet em geral, são realmente

entidades que tem que ser ouvidas, tem muito a contribuir e exatamente pelo fato de você

ainda ter diversas discussões relacionadas ao direito autoral em ambiente digital que

ainda carecem de uma sinalização do poder público de como deve ser encaminhado esses

assuntos, encaminhado de que maneira? Ou seja, tanto na perspectiva que proteja,

principalmente o criador daquela propriedade intelectual, principalmente, se por

possível, ainda mais brasileiro na medida em que você, exatamente estimular essa

produção cultural nacional, mas também a gente tem que levar em consideração que é

uma cadeia complexa, ou seja, ela tem vários elementos. Então, se eu penso em um dado

momento que eu tenho hoje poucos players que fazem, por exemplo, os streamings aqui

no Brasil, porque também não pensar nessa política pública mecanismos que possam

incentivar que eu tenha, por exemplo, os players nacionais, os players brasileiros, ou que

possam de alguma forma se consorciar com parceiros estrangeiros, mas que também

possam oferecer modelos de negócio nessa linha, ou que possam criar variações, ou seja,

por mais que a internet, ela tenha essa característica de que talvez aquela ideia de que

winner takes it all, ou seja, então, há essa, uma certa tendência de que a primeira empresa,

o primeiro player que ingressa em um dado mercado que, às vezes, não existia, ele acaba

se tornando, realmente, um monopolizador, não porque ele está adotando práticas anti

concorrenciais, ou seja o que for, mas na verdade porque ele, praticamente criou um

mercado, o mercado ele não existia, ele criou. Então, isso é natural, é algo talvez estrutural

dos próximos modelos de negócios nessa economia digital, mas então, do ponto de vista

da política pública a gente tem que levar isso em consideração, ou seja, o Estado ele não

só, ele tem que ser um, muitas vezes ali um órgão de supervisão e de repressão, de

observância dos direitos, mas também porque não ser um órgão de indução, exatamente,

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ou seja, as empresas pequenas, médias empresas brasileiras, por exemplo, porque elas

não podem ter um tipo de estruturação a partir de uma indução do Estado, para

exatamente que elas possam competir, exatamente em um ambiente que ele até permite

uma competição muito, talvez um pouco mais equitativa do que, às vezes, em outros

setores econômicos, em que, às vezes, você precisa ter um capital inicial, você precisa ter

uma série de estruturas para poder ingressar, caso contrário, você não tem como

competir. A internet de alguma maneira, ela possibilita rapidamente um startup, que surja

em uma garagem no Piauí, para a gente não fazer o uso só da Apple e etc., mas, ou seja,

que ela pode, de alguma maneira competir, às vezes, com o player global. Logicamente

que não é só uma indução do Estado que vai promover isso, são diversos outros fatores,

de investimento, de uma série de (...), assunção de riscos, etc., mas a gente acredita

realmente que essa temática, de alguma maneira ela tem que estar ligado com o

estabelecimento dessas políticas públicas porque, exatamente para que a mão do Estado,

ela não seja uma mão que acabe a pretexto de, às vezes, proteger direitos e estimular o

surgimento de (...), seja o surgimento de novos modelos de negócio, seja o fortalecimento

de modelos de negócio que já existem e que podem florescer caso Estado ou não atrapalhe

ou ele seja, realmente, uma figura, uma instituição que contribua para essa indução em

prol da inovação. Então, com essas considerações, eu agradeço os senhores que

permaneceram aqui até 30 minutos depois do esperado e me coloco a disposição para

qualquer dúvida.

Obrigado.

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DIREITOS COMUNICATIVOS COMO DIREITOS HUMANOS:

ABRANGÊNCIA, LIMITES, ACESSO À INTERNET E DIREITO AO

ESQUECIMENTO

Valerio de Oliveira Mazzuoli*

* Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Professor do Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna – UIT. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD).

RESUMO: O estudo busca compreender a concepção contemporânea dos chamados

“direitos comunicativos” a partir da perspectiva dos direitos humanos e de sua proteção,

quer no plano internacional como no plano interno. O ensaio investiga a abrangência e os

limites dos direitos comunicativos, a questão do acesso livre à Internet, o problema das

“mídias sociais”, bem assim os desafios jurídicos à efetivação do “direito ao

esquecimento”.

1. INTRODUÇÃO

Este ensaio tem por finalidade investigar os assim chamados “direitos

comunicativos”, que compõem hoje o núcleo-chave dos direitos humanos

contemporâneos. Seu estudo é de fundamental importância para que se compreenda todo

esse mosaico protetivo que tanto o direito internacional quanto o direito interno garante

aos cidadãos.

Mais do que conhecer, porém, quais são esses direitos, deve-se ter em conta que há

limites ao seu exercício arbitrário, especialmente em casos de violação a direitos

humanos. Na era atual da Internet e da pluralidade das mídias sociais é premente que se

compreendam os desafios que doravante se colocam relativamente à efetividade desses

direitos. Um desses desafios está na compatibilização dos direitos comunicativos com o

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cada vez mais em voga “direito ao esquecimento”, como também se analisará neste

estudo.

Em suma, como quaisquer direitos os direitos comunicativos garantem pretensões

e impõem limites tanto para os poderes públicos quanto para os cidadãos, devendo ser

bem compreendidos e analisados à luz das normas internacionais e internas em vigor no

Estado.

2. CONCEITO DE DIREITOS COMUNICATIVOS

Entende-se por “direitos comunicativos” o conjunto dos direitos relativos a

quaisquer formas de expressão ou de recebimento de informações. Mais precisamente,

trata-se da liberdade que todos os cidadãos têm de expressar ideias e opiniões, pontos

de vista em matéria científica, artística ou religiosa, em quaisquer meios de

comunicação, em assembleias ou associações, conotando ainda o direito relativo aos que

sofreram o impacto de tais ideias, opiniões, conceitos ou pontos de vista.74 São, como se

percebe, direitos bifrontes, que permitem a expressão das ideias e opiniões ao tempo

que também resguardam os direitos dos que foram impactados pela veiculação da

informação.

Não se trata apenas de assegurar a liberdade de expressão, de opinião ou de

imprensa, mas de garantir, sobretudo, que o meio para se chegar à expressão do

conhecimento (que é, em última análise, a comunicação) seja exercido livremente e

sem embaraços, quer no que tange às liberdades artísticas e literárias, à liberdade de

proceder a uma investigação científica ou à liberdade de ensinar e ser ensinado etc.75

Pode-se dizer que, na era da comunicação (especialmente da comunicação digital)

pela qual passa o mundo,76 os direitos comunicativos integram o eixo fundamental da

concepção contemporânea dos direitos humanos.77 Daí se falar na existência de “direitos

comunicativos fundamentais” (Kommunikationsgrundrechte) dos cidadãos, que se

expressam de maneira multifuncional, deles decorrendo, v.g., a liberdade de expressão

stricto sensu, de informação, de investigação acadêmica, de criação artística, de edição, de

74 V. HALMAI, Gabor. Freedom of expression and information. In: DE SHUTTER, Olivier (Ed.). Commentary of

the Charter of Fundamental Rights of the European Union. [s.l.]: EU Network of Independent Experts on

Fundamental Rights, 2006, p. 116.

75 Idem, p. 121.

76 Cf. VIGANÒ, Dario Edoardo. I sentieri della comunicazione: storia e teorie. Soveria Manelli: Rubbettino, 2003,

p. 71 e ss.

77 Cf. ZARET, David. Tradition, human rights and the English Revolution. In: WASSERSTROM, Jeffrey N. [et. all.]

(Ed). Human rights and revolutions. Maryland: Rowman & Littlefield, 2007, p. 58.

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jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de programação, de comunicação individual, de

telecomunicações e de comunicação em rede.78 Nesse sentido, o acesso livre à Internet

para todos os cidadãos torna-se um dos direitos humanos mais importantes do mosaico

de direitos comunicativos da pós-modernidade.

Tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19) como o Pacto sobre

Direitos Civis e Políticos (art. 19, § 2.º) garantem a liberdade de opinião e expressão,

reafirmando que esse direito inclui “a liberdade de procurar, receber e difundir

informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de

fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro

meio de sua escolha”.79 Na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tal direito vem

expresso no art. 13, § 1.º, com redação praticamente idêntica àquela que se acaba de

citar.80 Por sua vez, no âmbito da União Europeia os direitos comunicativos vêm

garantidos pelos arts. 10 a 13 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

(2000).81

Trata-se de assunto mais bem compreendido a partir das obras Mudança estrutural

na esfera pública (1962) e Direito e democracia: entre facticidade e validade (1992),

ambas de Jürgen Habermas, sobre a legitimidade das ordens constitucionais e

democráticas, a efetividade e a validade (ou a positividade e a normatividade) do

Direito.82

A questão dos direitos comunicativos tem ligação com o conceito de “espaço público”

na visão de Habermas, enquanto locus institucionalizado das relações comunicativas

entre os cidadãos e necessário ao desenvolvimento das ações políticas. Esse espaço

78 V. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social. Lisboa:

Wolters Kluwer, 2013, p. 18.

79 Cf. DE LA VEGA, Connie; WEISSBRODT, David. International human rights law: an introduction. Philadelphia:

University of Pensylvania Press, 2007, p. 102-106.

80 Para detalhes, v. GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana

sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013,

p. 175-180.

81 Sobre o tema na Europa, cf. GROTE, Rainer. Free speech in German and European constitutional jurisprudence.

In: BOGDANDY, Armin von, PIOVESAN, Flávia & ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Estudos avançados

de direitos humanos: democracia e integração jurídica – emergência de um novo direito público. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2013, p. 521-532.

82 V. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1988; e Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, 2 v. V. também HABERMAS, Jürgen. Três

modelos normativos de democracia. Lua Nova: Revista de Cultura Política, n. 36 (1995), p. 49. Para um

estudo aprofundado desse pensamento habermasiano, v. BLOTTA, Vitor S. L. O direito da comunicação: uma

nova teoria crítica do direito a partir da esfera pública política. São Paulo: Fiuza, 2013.

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permitiria, na visão de Habermas, a todos os potencialmente envolvidos o poder de opinar

e interagir previamente à adoção de uma dada decisão.83 Nessa visão, o direito da

comunicação atuaria sobre a esfera pública política a fim de fomentar o processo de

deliberação democrática.84 Tal garantiria, também, e por consequência, a livre

concorrência de ideias, o desenvolvimento normativo, a libertação das tensões sociais, a

proteção da diversidade de opiniões e a transformação pacífica da sociedade.85

Como se nota, os direitos comunicativos mantêm estreita relação com o direito à

liberdade de reunião, uma vez que, como explicam Sarlet e Weingartner Neto, “é por meio

de reuniões que o exercício coletivo da liberdade de expressão e manifestação do

pensamento pode servir como instrumento eficiente para a luta política e assegurar a

possibilidade de influenciar o processo político, de tal sorte que a liberdade de reunião

representa um elemento de democracia direta”, fortalecendo também “o direito de

expressão das minorias e o exercício da oposição no embate político-democrático”.86 No

mesmo sentido, Waldir Alves observa que a liberdade de manifestação do pensamento

“está umbilicalmente ligada à liberdade de reunião, pois o âmbito coletivo da reunião, seja

ela privada ou pública, é o momento e o espaço de externar o que a pessoa pensa de forma

mais ampla e democrática possível, quer nos aspectos pessoal como social, quer no âmbito

das reflexões individuais, coletivas ou políticas”. E conclui: “As liberdades de reunião e de

manifestação do pensamento são direitos que também possuem uma dimensão

democrática em nossa ordem constitucional, especialmente no âmbito da liberdade de

participação no Estado Democrático de Direito (art. 1.º, caput, da Constituição) e da

formação democrática da vontade política, para a constituição e outorga do poder que

emana do povo (art. 1.º, parágrafo único, da Constituição). Essa participação política, por

sua vez, não se dá somente em momentos de disputa eleitoral, mas de forma permanente

por intermédio do exercício da soberania popular (art. 14 da Constituição), em contínuo

processo de participação democrática na formação da vontade política, principalmente

das minorias, que podem não dispor das mesmas acessibilidades das maiorias”.87

83 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública, cit., p. 39.

84 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia…, cit., p. 446.

85 Cf. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social, cit.,

p. 17.

86 SARLET, Ingo Wolfgang & WEINGARTNER NETO, Jayme. Democracia desmascarada? Liberdade de reunião

e manifestação: uma resposta constitucional contra-hegemônica. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE,

Alexandre (Coord.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 480.

87 ALVES, Waldir. As manifestações públicas e as liberdades de expressão e de reunião. Revista dos Tribunais,

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Por fim, interessante notar que Erik Jayme insere a comunicação dentre os traços

característicos da cultura pós-moderna, especialmente em razão da cada vez mais nítida

“vontade de comunicar que surge como uma força irresistível”, bem como do “interesse

mútuo da troca de ideias interculturais”.88 Para Jayme, assim, a comunicação é parte de

uma sociedade global sem fronteiras.89 Nesse sentido, não há dúvidas de que o direito à

comunicação digital (Internet) livre para todos torna-se um dos direitos humanos mais

importantes dentre todo o plexo dos direitos comunicativos contemporâneos (v. item 6.3,

infra).

3. LIMITES AOS DIREITOS COMUNICATIVOS

No âmbito da Convenção Americana sobre Direitos Humanos o exercício do direito

de liberdade de pensamento e de expressão não pode sujeitar-se à censura prévia, mas

apenas a responsabilidades ulteriores (expressamente previstas em lei) que se façam

necessárias para assegurar (a) o respeito dos direitos ou da reputação das demais

pessoas, ou (b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da

moral públicas (art. 13, § 2.º).

Não obstante seja difícil conceituar alguns termos referidos pela Convenção, como

“ordem pública” e “moral pública”, o certo é que nos termos da própria Convenção (art.

29, a) nenhum desses conceitos pode ser usado para justificar a supressão ou a limitação

de um direito garantido pela Convenção ou para desfigurá-lo do seu real conteúdo.90

Ainda segundo a Convenção Americana “não se pode restringir o direito de expressão

por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel

de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na

difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a

comunicação e a circulação de ideias e opiniões” (art. 13, § 3.º).

Não obstante a previsão do art. 13, § 2.º, da Convenção Americana – que impede a

censura prévia como condição ao exercício do direito à liberdade de pensamento e de

São Paulo, v. 104, n. 953, p. 142, mar. 2015.

88 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, v.

251, 1995, p. 257.

89 Idem, ibidem. Destaque-se, por oportuno, que a ideia do “diálogo das fontes” de Erik Jayme nasceu

estreitamente conectada ao direito à comunicação no seu Curso da Haia de 1995. De fato, no tópico “A

comunicação” (p. 257) o “diálogo das fontes” é o quarto e derradeiro item (p. 259), precedido dos seguintes:

“A integração” (p. 257); “A colaboração dos juízes de diferentes países” (p. 257-258); e “O direito à

informação” (p. 258-259).

90 Corte IDH. A Associação Obrigatória de Jornalistas (artigos 13 e 29 da Convenção Interamericana de Direitos

Humanos). Opinião Consultiva OC-5/85 de 13 de novembro de 1985, Série A, n. 5, parágrafo 67.

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expressão –, autoriza-se, contudo, a censura prévia dos espetáculos públicos (jamais dos

espetáculos e apresentações realizados em esferas puramente privadas), com o objetivo

exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência.

Nesse caso, parece justificável a censura prévia dos espetáculos públicos, quando visa

proteger as crianças e adolescentes de cenas que, possivelmente, possam comprometer

sua formação moral.91

No que tange ao direito brasileiro, o art. 220 da Constituição estabelece que “a

manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,

processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta

Constituição”, vedando-se também “toda e qualquer censura de natureza política,

ideológica e artística” (§ 2.º).

4. ESPÉCIES DE DIREITOS COMUNICATIVOS

Os direitos comunicativos compõem um mosaico de direitos nem sempre fáceis de

identificar a priori. Pode-se dizer, porém, que todos os direitos que permitem alguma

forma de expressão comunicativa integram o núcleo contemporâneo dos direitos

comunicativos.

Basicamente, pode-se dizer que são espécies de direitos comunicativos: (a) a

liberdade de expressão stricto sensu; (b) a liberdade de opinião; (c) a liberdade de

informação; (d) a liberdade de religião; (e) a liberdade de investigação científica; (f) a

liberdade de criação artística; (g) a liberdade de edição; (h) a liberdade de jornalismo; (i)

a liberdade de imprensa; (j) a liberdade de radiodifusão; (k) a liberdade de programação;

(l) a liberdade de telecomunicações; e (m) a liberdade de navegação em meios digitais.92

Todos esses direitos somados, é dizer, quando vistos em conjunto, formam o que se

pode chamar de “mosaico comunicativo”, nova categoria de direitos formada a partir dos

direitos comunicativos individualmente considerados, com a finalidade de fortalecer e

91 Cf. GOMES, Luiz Flávio & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre

Direitos Humanos…, cit., p. 179. Nesse exato sentido, referindo-se à Constituição brasileira de 1988, v. SILVA,

José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 69-70, para quem a

liberdade de expressão cultural se sujeita “apenas às limitações expressamente previstas na Constituição,

especialmente em favor da criança e do adolescente. (…) Mas tais medidas são exclusivamente as que a própria

Constituição expressamente estabelece nos termos do art. 220, § 3.º – regular as diversões e espetáculos

públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se

recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. (…) A preservação da criança

e do adolescente em tais situações não significa condenação ao modo de ser da representação artística, mas a

ideia de que a possível imaturidade do jovem interprete o fenômeno com visão diversa da consideração

estética”.

92 Cf. MACHADO, Jónatas E. M. & BRITO, Iolanda Rodrigues de. Curso de direito da comunicação social, cit.,

p. 18.

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garantir globalmente o acesso de todas as pessoas aos meios de comunicação e de

expressão (individuais ou coletivos) atualmente existentes.

5. FORMAS DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS COMUNICATIVOS

O Estado viola os direitos comunicativos não somente quando censura a expressão

de ideias e opiniões, senão também quando impede o acesso dos cidadãos aos meios de

comunicação (v.g., rádio, televisão, Internet etc.). Daí ter estabelecido a Convenção

Americana, como já se falou, que “não se pode restringir o direito de expressão por vias e

meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de

imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na

difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a

comunicação e a circulação de ideias e opiniões” (art. 13, § 3.º).

Na atualidade, passa a ser violação (por omissão) dos direitos comunicativos a falta

de regulamentação estatal do acesso à Internet, em que se devem incluir os direitos e

deveres dos usuários da rede e as formas e mecanismos de atuação do Estado.

6. MARCO CIVIL DA INTERNET NO BRASIL

Cabe destacar que por meio da Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014,93 regulou-se

no Brasil o chamado “Marco Civil da Internet”, pelo qual se estabelecem os princípios,

garantias, direitos e deveres dos usuários da Internet no País, bem como as diretrizes

necessárias para a atuação do Estado.

6.1. Direitos humanos como fundamento do Marco Civil da Internet

A promulgação da lei que regula o “Marco Civil da Internet” no Brasil atende à

obrigação do Estado em disciplinar o direito comunicativo na era digital, em especial na

rede mundial de computadores, sem o que haveria violação de direitos humanos (por

omissão) por parte do poder público. Não é por outro motivo que os direitos humanos e

o exercício da cidadania encontram-se entre os fundamentos da Lei n.º 12.965/2014 (art.

2.º, II). De fato, dizer que os direitos humanos e o exercício da cidadania são

“fundamentos” de uma norma jurídica significa que tal norma tem por base essas

premissas, e que a matéria por ela regulada é um “braço” ou “parte” desses fundamentos.

Tal quer dizer que o direito comunicativo à Internet livre faz parte do núcleo dos direitos

humanos e fundamentais que a ordem jurídica brasileira deve consagrar a todos os

cidadãos.

93 Em vigor a partir de 23.06.2014, nos termos do seu art. 32.

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6.2. Acesso à Internet como essencial ao exercício da cidadania

A Lei n.º 12.965/2014 diz serem princípios da disciplina do uso da Internet no Brasil

a garantia da liberdade de expressão, a comunicação e a manifestação do pensamento (art.

3.º, I), complementando que tais princípios “não excluem outros previstos no

ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em

que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 3.º, parágrafo único). Isso leva a crer

que o acesso à Internet no País, a partir do Marco Civil da Internet, passa a ser essencial

ao exercício da cidadania, como diz expressamente, aliás, o art. 7.º, caput, da Lei n.º

12.965/2014.

Como se percebe, o Marco Civil da Internet fomenta no Brasil os direitos

comunicativos à medida que considera a Internet como ferramenta essencial para a

liberdade da expressão e o exercício da cidadania, bem como para a promoção da cultura

e o desenvolvimento tecnológico. Tal demonstra que o acesso à Internet tem ligação

direta com o tema dos direitos humanos, eis que auxilia na concretização do direito à

liberdade de expressão e no exercício da cidadania.

Compreendeu-se, finalmente, que a expansão da comunicação mundial via rede

mundial de computadores, somada aos baixos custos da transmissão comunicativa,

necessitava de um gerenciamento estatal adequado a essa nova realidade em expansão,

garantindo aos cidadãos os direitos inerentes à cidadania na era digital e o consequente

aproveitamento dos recursos tecnológicos postos hoje à disposição.

6.3. Direito humano ao acesso livre à Internet

À medida que a Internet representa uma ferramenta da liberdade de expressão e do

exercício da cidadania, tem-se que o seu acesso há de ser completamente livre a todos os

cidadãos (independentemente de permissão ou autorização do Estado). Essa liberdade de

acesso à rede pertence, hoje, ao núcleo essencial dos direitos humanos, pelo que se

condena qualquer ato arbitrário do Estado capaz de limitar ou impedir o seu pleno

exercício.

As próprias Nações Unidas já declararam ser o acesso à Internet um direito humano

contemporâneo, sugerindo que os Estados deixem de praticar quaisquer atos capazes, v.g.,

de bloquear ou filtrar o seu tráfego ou, ainda, impedir globalmente o seu acesso, mesmo

durante períodos de conturbação interna. O relatório da ONU – subscrito pelo Relator

Especial para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Sr.

Frank La Rue – sugeriu a todos os Estados que garantam aos seus cidadãos o acesso livre

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à Internet, independentemente de passar ou não por períodos de agitação política, como

eleições etc.94

7. A QUESTÃO DAS “MÍDIAS SOCIAIS”

A criação da Internet possibilitou a intercomunicação mundial por meio das

chamadas “mídias sociais”, plataforma utilizada por milhares de pessoas como forma de

acesso à informação e à comunicação em todo o mundo. Seu maior impacto foi a

possibilidade de compartilhamento de informações online ao descontrole do Estado e dos

poderes constituídos.

As redes sociais como Facebook, Twitter, Orkut, Flickr e Instagram permitiram que

pessoas de todo o mundo se comunicassem entre si e intercambiassem todo tipo de

informação possível (inclusive imagens, vídeos etc.). Com isso, os meios tradicionais de

comunicação (especialmente o rádio e a televisão) passaram a perder espaço para essa

nova modalidade intercomunicativa, operacionalizada não mais por proprietários de

veículos de comunicação, mas por cidadãos comuns de forma quase que inteiramente

dátila (com a ponta dos dedos).

No plano do Direito as mídias sociais têm revolucionado a questão da proteção do

consumidor em face do mercado de consumo, levando as corporações empresariais a se

preocupar cada vez mais com a qualidade daquilo que oferecem, tendo em vista que o

feedback sobre um produto ou serviço ofertado é hoje imediato e além fronteiras. De fato,

os cidadãos da sociedade digital dão mais crédito uns para os outros que para o marketing

oficial de empresas e instituições (públicas e privadas).95

As mídias sociais também têm gerado preocupação do poder público de vários

Estados, que se veem ameaçados com o acesso imediato à comunicação pelos seus

cidadãos. Por exemplo, em 2014 o Irã proibiu que homens e mulheres que não se

conhecem conversem por chat, tendo sido bloqueados e impedidos de ser utilizados o

Facebook, o Twitter e o aplicativo WhatsApp.96 Este último, v.g., permite o envio de

mensagens instantâneas (com textos, imagens e vídeos) por smartphones.

À medida que um Estado impede ou bloqueia o uso de funcionalidades comunicativas

em seu território, como o Facebook, o Twitter e o WhatsApp, está violando os direitos

94 ONU, AG-Doc. A/HRC/17/27, “Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right

to freedom of opinion and expression, Frank La Rue”, 16 May 2011, p. 4-22.

95 Cf. CHARLESWORTH, Alan. Revolução digital. São Paulo: Publifolha, 2010.

96 V. Jornal O Globo, de 08.01.2014.

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comunicativos assegurados pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos

humanos. Ou seja, está violando o direito humano à comunicação livre e desembaraçada,

essencial ao exercício da cidadania, merecendo, portanto, a reprimenda do direito

internacional.

Toda liberdade de ação, porém, traz consigo a contrapartida da responsabilidade,

inclusive criminal. A liberdade comunicativa da pós-modernidade há de ser livre, porém

regulamentada, a fim de que não se tolerem abusos ou violações a direitos de outrem.

Nesse sentido, o Marco Civil da Internet no Brasil (v. item 6, supra) inicia bem a discussão

desses direitos e deveres na era digital. Falta ainda, entretanto, norma internacional a

regular amplamente o tema.

Por fim, um tema também muito discutido atualmente, sobretudo na Europa, diz

respeito à proteção do direito à privacidade nas redes sociais, eis que os conteúdos

alimentados em tais redes podem ser utilizados indevidamente por outrem, também por

meio de hackers ou de vírus, ou ainda utilizados por empresas para fins de propaganda

comercial (eis que, por meio da violação da intimidade do cidadão, passam a conhecer o

perfil comportamental do indivíduo, como, v.g., o que gosta de frequentar, consumir etc.).

Esse fato levou o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia a editar a Diretiva

95/46/CE sobre a proteção de dados pessoais e a livre circulação desses dados.97

8. DIREITOS COMUNICATIVOS E “DIREITO AO ESQUECIMENTO”

Já se falou (v. item 2, supra) que os direitos comunicativos permitem a todos os

cidadãos expressar ideias e opiniões, pontos de vista em matéria científica, artística ou

religiosa, em quaisquer meios de comunicação, em assembleias ou associações,

garantindo também o direito relativo aos que sofreram o impacto de tais ideias, opiniões,

conceitos e pontos de vista.

Esta última referência – relativa ao direito dos que sofreram o impacto das ideias,

opiniões, conceitos e pontos de vista externados nos meios de comunicação – merece ser

devidamente compreendida. De fato, o direito de expressar ideias, opiniões, conceitos e

pontos de vista nos vários meios de comunicação existentes (v.g., rádio, televisão, jornal,

Internet etc.) guarda a contrapartida de também se assegurar proteção jurídica às pessoas

que sofreram eventuais impactos negativos de tais ideias, opiniões, conceitos e pontos de

97 Para detalhes, v. HIRATA, Alessandro. Direito à privacidade e as redes sociais: o Facebook. In: SIQUEIRA,

Dirceu Pereira & AMARAL, Sérgio Tibiriçá (Org.). Sistema constitucional de garantias e seus mecanismos de

proteção. Birigui: Boreal, 2013, p. 1-14.

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vista, capazes de violar direitos humanos reconhecidos e garantidos por normas

internacionais.

A discussão ganhou fôlego a partir de 13 de maio de 2014, quando o Tribunal de

Justiça da União Europeia (TJUE) defendeu, pela primeira vez, o “direito ao esquecimento”

na Internet como um direito fundamental no âmbito da União Europeia. O acórdão do

TJUE originou-se de um litígio que opôs a empresas Google Spain SL e Google Inc. à Agência

Espanhola de Proteção de Dados – AEPD e ao Sr. Mário Costeja González, a propósito de

uma decisão desta Agência que deferiu a reclamação apresentada por Mário González

contra aquelas duas empresas e ordenou à Google Inc. a adoção das medidas necessárias

para retirar os dados pessoais relativos ao reclamante dos seus links de busca na Internet

(os quais vinculavam seu nome a fatos passados que o incomodavam98) e impossibilitar o

acesso futuro e esses mesmos dados.99

O TJUE especificou que os interessados em retirar suas informações pessoais dos

links de busca na Internet devem apresentar seus pedidos “diretamente” ao

administrador do site de busca, que deve então examinar se tais pedidos têm razão de ser

e, se for caso, pôr termo ao tratamento dos dados em questão. Porém, se o administrador

do site de busca não der seguimento aos pedidos de retirada, o cidadão em causa, ainda

segundo o TJUE, “pode submeter o assunto à autoridade de controle ou aos tribunais, para

que estes efetuem as verificações necessárias e ordenem a esse responsável a tomada de

medidas precisas em conformidade”.100

O Tribunal fez questão de frisar no acórdão que o manejo de dados pessoais realizado

pelo operador de um motor de busca pode “afetar significativamente os direitos

fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais, quando a

pesquisa através desse motor seja efetuada a partir do nome de uma pessoa singular, uma

vez que o referido tratamento permite a qualquer internauta obter, com a lista de

98 O fato concreto consistiu no seguinte: em 19 de janeiro de 1998, o jornal espanhol La Vanguardia publicou

um anúncio do Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais sobre um leilão de imóveis para o pagamento

de dívidas à Seguridade Social, em que um dos devedores era o Sr. Mário Costeja González, cujo apartamento

foi levado a hasta pública. Apesar de o caso ter sido encerrado há anos, o nome de Mário González continuou

para sempre associado a uma dívida que já não mais existia, quando o jornal La Vanguardia decidiu digitalizar

o seu acervo, em 2008. De fato, até os dias hoje a página do jornal espanhol se encontra na Internet com o

nome de Mário Gonzáles, no seguinte link: <http://hemeroteca.lavanguardia.com/preview/1998/01/19/pagina-

23/33842001/pdf.html>. Ali se informa que o apartamento de Mário Costeja González, localizado na Rua

Montseny, em Barcelona, tem 90m2 e está à venda por 8,5 milhões de pesetas.

99 TJUE, Grande Seção, Processo C-131/12, “Google Spain SL e Google Inc. Vs. Agência Espanhola de Proteção

de Dados (AEPD) e Mario Costeja González”, j. 13.05.2014, parágrafo 2.

100 Idem, parágrafo 77.

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resultados, uma visão global estruturada das informações sobre essa pessoa, que se

podem encontrar na Internet, respeitantes, potencialmente, a numerosos aspetos da sua

vida privada e que, sem o referido motor de busca, não poderiam ou só muito dificilmente

poderiam ter sido relacionadas, e, deste modo, estabelecer um perfil mais ou menos

detalhado da pessoa em causa”.101

Em conclusão, o TJUE estabeleceu que “o operador de um motor de busca é obrigado

a suprimir da lista de resultados, exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir

do nome de uma pessoa, as ligações a outras páginas web publicadas por terceiros e que

contenham informações sobre essa pessoa, também na hipótese de esse nome ou de essas

informações não serem prévia ou simultaneamente apagadas dessas páginas web, isto, se

for caso disso, mesmo quando a sua publicação nas referidas páginas seja, em si mesma,

lícita”.102

Em suma, a emblemática decisão do TJUE, de 13 de maio de 2014, veio

definitivamente consagrar o “direito ao esquecimento” como um direito fundamental de

todos os cidadãos na União Europeia, limitando, em nome do princípio da dignidade

humana, os direitos comunicativos e de busca na Internet em determinados casos

concretos.

A questão, contudo, é ainda controversa, vez que contrasta com o direito também

fundamental relativo à liberdade de opinião e de expressão, igualmente assegurados por

normas internacionais. Sopesados, porém, os direitos em jogo, integrantes do grande

mosaico de direitos comunicativos atualmente reconhecidos, é possível sobrepor o direito

ao esquecimento ao direito de liberdade à profusão de ideias e de opiniões quando há

verdadeiro prejuízo à dignidade da pessoa, especialmente na era atual, em que a

multiplicação de informações na rede mundial de computadores faz-se instantaneamente

por meio de sites de busca e de redes sociais. Tal demonstra que os motores de busca da

Internet não são imunes a qualquer controle, bem assim às responsabilidades por danos

ocasionados às pessoas, o que tem determinado a elaboração de diretrizes supranacionais

sobre o tema (especialmente no âmbito da União Europeia) e de normas internas dos

respectivos Estados-partes.103

101 Idem, parágrafo 80.

102 Idem, parágrafo 100, item 3.

103 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados.

Consultor Jurídico, de 05.06.2015, p. 5.

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A multiplicação de uma informação ou conteúdo indesejado tem sido nominada de

Streisand Effect (“Efeito Streisand”), remontando à tentativa da atriz e cantora norte-

americana Barbara Streisand, em 2003, de retirar da Internet uma foto aérea de sua

mansão feita pelo fotógrafo Kenneth Adelman e inserida na coleção de 12.000 fotos da

costa da Califórnia, publicada em um site da Internet, cuja repercussão teve como

resultado o efeito totalmente contrário ao por ela esperado, tendo a referida foto sido

vista por milhares de pessoas a partir daquele momento e como decorrência específica

daquele fato.

No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu expressamente o “direito ao

esquecimento” no julgamento do Recurso Especial n.º 1.334.097/RJ, no caso relativo a um

cidadão que, não obstante absolvido da acusação de ter participado da Chacina da

Candelária, foi objeto de programa televisivo (Linha Direta – Justiça) veiculado pela TV

Globo, que o apontava como envolvido no crime, mas que fora absolvido. O STJ entendeu,

naquela oportunidade, que “a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas

nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade

do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana,

simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o

reconhecimento do ‘direito ao esquecimento’ pode significar um corretivo – tardio, mas

possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais

pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia”.104 O Tribunal ainda aduziu

que “o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram

integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além

de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento

jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança

– que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa

ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade,

como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional

de regenerabilidade da pessoa humana”.105 Por fim, concluiu o STJ que devem ser

ressalvados do direito ao esquecimento apenas “os fatos genuinamente históricos –

historicidade essa que deve ser analisada em concreto –, cujo interesse público e social

deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos

104 STJ, REsp. 1.334.097/RJ, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013, DJe 10.09.2013.

105 Idem, ibidem.

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se fizer impraticável”.106

Na Alemanha, desde o julgamento do Caso Lebach pelo Tribunal Constitucional

Federal, na década de 1970, tem-se entendido que, embora a regra seja a de que o direito

à informação deva ser respeitado, a ponderação estaria a exigir, em razão do transcurso

de tempo entre o fato e a sua lembrança, devesse o interesse público da notícia ceder face

o direito à ressocialização de indivíduo criminalmente condenado (no caso, um dos

partícipes de um assassinato de quatro soldados havia sido condenado a seis anos de

reclusão, estando prestes a obter o livramento condicional quando da veiculação de

matéria televisiva sobre o ocorrido). Entendeu, então, o Tribunal Constitucional alemão,

que, se num primeiro momento, o direito à informação deveria prevalecer em razão do

interesse público da persecução penal, em momento posterior, já tendo sido a opinião

pública informada, haveria de ceder face os direitos de personalidade dos indivíduos, pois,

caso contrário, a lembrança do passado implicaria nova e intolerável reprovação social ao

autor do fato.107

Crê-se que a sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia (de 13.05.2014)

deverá reforçar, doravante, a jurisprudência dos Estados sobre o tema, permitindo cada

vez mais um profícuo “diálogo inter-cortes”, capaz de coordenar os vários interesses em

jogo, sopesá-los e, finalmente, garantir o “direito ao esquecimento” nas situações que

justificarem a sua implementação.

Não há dúvidas que os direitos comunicativos devem garantir que os meios para se

chegar à expressão do conhecimento sejam livremente acessados, quer no que tange às

liberdades artísticas e literárias, à liberdade de proceder a uma investigação científica ou

à liberdade de ensinar e ser ensinado. Tal, contudo, não pode justificar abusos e violações

a outros direitos humanos, tal como o direito de ser definitivamente esquecido dos meios

de comunicação em geral ou de não serem lembrados contra a vontade do interessado os

atos violadores de sua dignidade, ressalvados os fatos genuinamente históricos, desde que

a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.

Destaque-se, por fim, que o Enunciado n.º 531, editado na VI Jornada de Direito Civil,

promovida pelo Conselho da Justiça Federal em março de 2013, expressamente

estabeleceu que: “A tutela da dignidade humana na sociedade de informação inclui o

106 Idem, ibidem.

107 Cf. BVerfGE 35, Sentença de 05.06.1973, p. 202 e 233 e ss; e SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao

caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados, cit., p. 1-2.

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direito ao esquecimento”. A justificativa do Enunciado, por sua vez, ficou assim ementada:

“Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos

dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das

condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à

ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria

história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos

pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.108

Atualmente, no Brasil, diversos tribunais estaduais, na sequência do que foi decidido

pelo STJ, têm determinado a provedores de Internet, com fundamento no art. 5.º, V e X, da

Constituição Federal,109 e no art. 12 do Código Civil,110 que retirem dos seus sites de busca

conteúdos ofensivos aos cidadãos, impedindo sejam acessados e reproduzidos por

terceiros a qualquer momento.

Em conclusão, pode-se dizer que o “direito ao esquecimento”, antes de

definitivamente consagrado na União Europeia, já era reconhecido pela jurisprudência

brasileira, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, a qual se impregnou nas

decisões dos demais Tribunais de Justiça pátrios desde então.

9. CONCLUSÃO

Ao cabo desta exposição foi possível perceber que a proteção dos direitos

comunicativos abrange, além da liberdade de expressão, de opinião ou de imprensa,

também a garantia de que o meio para se chegar à expressão do conhecimento seja

livremente exercido, quer no que toca, v.g., às liberdades artísticas e literárias, à

liberdade de proceder a uma investigação científica ou mesmo à liberdade de ensinar

e ser ensinado.

Na era atual da comunicação os direitos comunicativos compõem o eixo

fundamental dos direitos humanos, pelo que é possível falar em “direitos

comunicativos fundamentais”, que se expressam de maneira multifuncional. Deles

decorrem a liberdade de expressão stricto sensu, de informação, de investigação

acadêmica, de criação artística, de edição, de jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de

108 CJF, VI Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-

cej/vijornada.pdf>. Acesso em: 18 agosto 2015.

109 Verbis: “V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,

moral ou à imagem”; “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,

assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

110 Verbis: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas

e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.

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programação, de comunicação individual, de telecomunicações e de comunicação em

rede.

Nesse sentido, o acesso livre à Internet torna-se um dos direitos humanos mais

importantes do mosaico de direitos comunicativos da pós-modernidade, sobretudo, no

Brasil, com a entrada em vigor do Marco Civil da Internet, que elevou a rede mundial de

computadores à condição de meio essencial ao exercício da cidadania. Assim, à medida

que a Internet representa uma ferramenta da liberdade de expressão e do exercício da

cidadania, tem-se que o seu acesso há de ser completamente livre a todos os cidadãos

(independentemente de permissão ou autorização do Estado). Essa liberdade de acesso à

rede, atualmente, pertence ao núcleo essencial dos direitos humanos, pelo que se condena

qualquer ato arbitrário do Estado capaz de limitar ou impedir o seu pleno exercício.

No que tange ao “direito ao esquecimento”, entende-se que a questão deve ser

resolvida em favor de sua sobreposição à liberdade de profusão de ideias e de opiniões

quando há verdadeiro prejuízo à dignidade da pessoa humana, não se podendo deixar fora

de qualquer controle e isentos de quaisquer responsabilidades os motores de busca da

Internet, fato que tem levado à crescente regulamentação supranacional e jurisprudencial

do tema.

Não há dúvidas que os direitos comunicativos devem garantir que os meios para se

chegar à expressão do conhecimento sejam livremente acessados, quer no que tange às

liberdades artísticas e literárias, à liberdade de proceder a uma investigação científica ou

à liberdade de ensinar e ser ensinado. Tal, contudo, não pode justificar abusos e violações

a outros direitos humanos, tal como o direito de ser definitivamente esquecido dos meios

de comunicação em geral ou de não serem lembrados contra a vontade do interessado os

atos violadores de sua dignidade, ressalvados os fatos genuinamente históricos, desde que

a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.