Post on 31-Dec-2016
UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA
DJALMA ESPEDITO DE LIMA
A PICA DE CLUDIO MANUEL DA COSTA
Uma leitura do poema Vila Rica
SO PAULO 2007
DJALMA ESPEDITO DE LIMA
A PICA DE CLUDIO MANUEL DA COSTA
Uma leitura do poema Vila Rica
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa
de Ps-Graduao do Departamento de Letras
Clssicas e Vernculas da FFLCH/USP.
rea de concentrao: Literatura Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen.
SO PAULO 2007
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
E-mail para contato: djalma.elima@ig.com.br
Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USP
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
Lima, Djalma Espedito de A pica de Cludio Manuel da Costa: Uma leitura do poema Vila Rica / Djalma Espedito de Lima; orientador Joo Adolfo Hansen. -- So Paulo, 2007. 245 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas) -- Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1. Literatura brasileira - Sculo 18 - Crtica e interpretao 2. Poesia pica - Crtica e interpretao - Sculo 18 - Brasil 3. Vila Rica (poema) - Crtica e interpretao 4. Costa, Cludio Manuel da, 1729-1789 I. Ttulo CDD 869.9122
FOLHA DE APROVAO
Djalma Espedito de Lima
A pica de Cludio Manuel da Costa: Uma leitura do poema Vila Rica
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa
de Ps-Graduao do Departamento de Letras
Clssicas e Vernculas da FFLCH/USP.
rea de concentrao: Literatura Brasileira
Aprovado em: _______________
Banca Examinadora
Profa. Dra. Laura de Mello e Souza
Instituio: FFLCH/USP Assinatura: __________________________________
Prof. Dr. Antonio Alcir Bernrdez Pcora
Instituio: IEL/UNICAMP Assinatura: __________________________________
Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen
Instituio: FFLCH/USP Assinatura: __________________________________
Ao meu pai,
In memoriam.
Agradeo:
Especialmente ao Professor Joo Adolfo Hansen, que orientou esta pesquisa com
clareza e preciso. Muito obrigado pela inquestionvel competncia, grande sabedoria e
alegre amizade.
Aos Professores Laura de Mello e Souza e Ivan Prado Teixeira, pelas valiosas
contribuies dadas a este trabalho na realizao do exame de qualificao. Ao Professor
Antonio Alcir Bernrdez Pcora, por aceitar participar da Banca Examinadora desta
dissertao.
Ao Professor Eduardo de Almeida Navarro, pelas excurses no territrio luso-colonial
dos cronistas, nas nossas expedies aos sculos XV, XVI e XVII, quando falvamos o Tupi.
Ao Professor Jos Miguel Wisnik pela oportunidade de realizar uma reflexo intensa
sobre os pressupostos crticos aplicados historiografia das letras brasileiras.
Aos Professores que palestraram no curso de ps-graduao da FFLCH/USP: Alfredo
Bosi, Hlio Guimares, Luiz Roncari, Flvio Aguiar, Cilaine Alves, Wagner Camilo, Jaime
Ginsburg e Alcides Vilaa.
Maria de Lourdes de Souza Lima, Espedito Manuel de Lima , Davi Espedito de
Lima, Maria Dejanira de Lima, Marcelo Teles dos Santos, Clodoaldo de Lucas Santana,
Edson Domingues, Pedro Pereira, Carlos Groh, Luiz Carlos Scarparo, Eschivane Manzo,
Mauro Machado de Oliveira, Rosemeiri Gomes Felicio, Nelita Surati, Marino Volic,
Henrique Linares, Mari Queiroz, Fulvia A. DAvello Napolitano, Fbio Batistella, Milena
Ferrari, Andr Angelo Ferrari, Slvia Ernesto, Jaime Crivelaro, Marcos Vaskevicius,
Valdemir M. Lira, Marcos Freire, Luclia Guerra, Murilo Marcondes de Moura, Ricardo
Martins Valle, Eduardo Sinkevisque, Suely Perucci, rica Salgado, Slvio Roberto Neri, Joo
Gonalves, Marta Marczyk, Fernanda Guisso, Mariana da Rocha Pita, Rodrigo Bastos,
Alejandro e Daniela Avils, Renato Miguel Amendoeira Pires, Ricardo Vieira da Silva, ao
poeta Francisco Barros Cascallar e a todos os outros familiares, amigos e conhecidos que
acreditaram no meu empenho.
A todos os meus alunos.
Aos funcionrios da Biblioteca Central da FFLCH-USP, da Seo de Obras Raras da
Biblioteca Mrio de Andrade de So Paulo, do Museu da Inconfidncia e da Casa dos Contos
de Ouro Preto, pelo auxlio tcnico prestado.
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, pela oportunidade de
realizao do curso de mestrado.
Um poema pico, no meio desta prosa atual em que vivemos, uma fortuna miraculosa. Pretendem alguns que o poema pico no do nosso tempo, e h quem j cavasse uma vasta sepultura para a epopia e para a tragdia, as duas belas formas da arte antiga. No fazemos parte do cortejo fnebre de Eurpedes e Homero. (...) Findou a idade herica, mas os heris no foram todos na voragem do tempo. Como fachos esparsos no vasto oceano da histria atraem os olhos da humanidade, e inspiram os arrojos da musa moderna. Casar a lio antiga ao carter do tempo, eis a misso do poeta pico.
Machado de Assis.
RESUMO
Este ensaio estuda a inveno retrico-potica do poema pico Vila Rica, lido como
uma composio que emula o costume da escrita das epopias gregas, latinas e modernas,
especialmente a Farslia de Lucano e a Henriade de Voltaire, atualizando, pelo intermdio
do pensamento das preceptivas de Francisco Jos Freire, filtradas pela postura crtica de
Voltaire, que deprecia a importncia de muitas regras convenientes ao decoro do gnero
pico. A epopia de Cludio Manuel da Costa entendida como um exerccio prtico de
poesia, orientado para o ensinamento da instruo moral e para a admirao do deleite
potico, retratadas na atitude ideal do chefe militar portugus de uma encenao da histria da
pacificao das terras mineiras, produzindo uma gnese mtica herica para a ptria mineira,
buscando a perpetuao da memria na posteridade, seguindo o exemplo da poesia pica
retratada no mundo hispano-colonial, no chamado Siglo de oro, que encena a descoberta e a
pacificao das colnias pelos europeus, aplicando um estilo sublime na reinveno de uma
ao entendida como herica. Ao realizar este movimento, permanecendo indito por muito
tempo, e pouco divulgado por sculos, o poema Vila Rica agrega uma fortuna crtica que se
divide entre a apologia e o vituprio do texto, que representa o topos do utpico, na medida
em que a paisagem retratada difere evidentemente daquela encontrada na Arcdia e nas
margens do rio Mondego, mais adequadas figurao do exemplar locus amoenus, da poesia
idlica de Tecrito. Ao mesmo tempo, realiza a mitificao da histria pela superposio de
diversos fatos histricos, apresentados no Fundamento Histrico, encenados como tpicos da
morte e do amor, orientando e evidenciando o carter de valorizao da glria dos feitos dos
representados do reino portugus num heri portador da perfecta eloquentia, contra um
suposto domnio da lei natural pelos nativos do Estado do Brasil, reinventando a histria na
agregao de uma glria potica a ser reconhecida ou inventada numa sociedade hierrquica
que encena a si mesma num teatro de imagens e discursos. Exclui-se a subjetividade de um
sujeito em conflito consigo prprio pela melancolia da paisagem rochosa, buscando-se a
glria, alm da tradio, demonstrando a honra da moral catlica da sociedade colonial luso-
brasileira no empenho da elucidao da histria.
PALAVRAS-CHAVE: Vila Rica (poema); Teologia-poltica; Potica-retrica; Poesia pica; Glria potica.
ABSTRACT
This essay studies the rhetorical-poetical invention of the epic poem Vila Rica, read as
a composition that emulates the written custom of the greek, latim and modern epics,
especially the Pharsalia of Lucan and the Henriade of Voltaire, bringing up to date, by the
intermediacy of the thought of Francisco Jos Freires precepts, filtered by the critical
position of Voltaire, that depreciates the importance of many convenient rules to the decorum
on the epic genus. The epic of Cludio Manuel da Costa is understood as a practical exercise
of poetry, guided by the teaching of a moral instruction and in favor of the admiration of a
poetical delight, portrayed in the ideal attitude of the Portuguese military head as a
representation of the mining lands pacifications history, producing a mythical heroic source
for the mining country, searching the upholding of the memory in the posterity, following the
example of the epic poetry portrayed in the Hispanic-colonial world, in the so called Siglo de
oro, that represents the discovery and the pacification of colonies by Europeans, applying a
sublime style in the re-invention of an action understood as heroic. When carrying through
this movement, remaining unknown for a long time, and little divulged for centuries, the
poem Vila Rica supports a critical history that is divided between praise and vituperation of
the text, which represents the topos of utopian, taking into account that the portrayed
landscape differs evidently from that one joined in the Arcadia and in the edges of the
Mondego river, adjusted to the picture of the pattern locus amoenus, of the idyllic poetry of
Theocritus. At the same time, it carries through turning the History into a myth, by the
overlapping of various historical events, presented in the Fundamento Histrico, figured as
topics of the death and of love, guiding and evidencing the estimations character on the glory
of the Portuguese kingdoms representatives actions in a hero carrying a perfecta eloquentia,
against a belief in the natural laws domain on the State of Brazils natives, re-inventing
History in the aggregation of a recognized poetical glory, or to be invented in a hierarchic
society that stages itself in a theater of images and speeches. It is abstained the subjectivity of
a being in conflict with himself caused by the melancholy of the rocky landscape, searching
the glory, further than tradition, demonstrating the moralistic catholics honor in the
Portuguese-Brazilian colonials society, persistencing in the explanation of History.
KEYWORDS: Vila Rica (poem); Political-Theology; Rhetorical-Poetics; Epic poetry; Poetical Glory.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABL Academia Brasileira de Letras
ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas
APM Arquivo Pblico Mineiro
BMA Biblioteca Mrio de Andrade
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
CCM Cdice Costa Matoso
CECO Centro de Estudos do Ciclo do Ouro
Edusp Editora da Universidade de So Paulo
FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
IEB Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo
IEL Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas
IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de Campinas
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
MHCMOP Memorial Histrico-Poltico da Cmara Municipal de Ouro Preto
RAPM Revista do Arquivo Pblico Mineiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFOP Universidade Federal de Ouro Preto
UnB Universidade de Braslia
UNESP Universidade Estadual Paulista
UNICAMP Universidade de Campinas
USP Universidade de So Paulo
LISTA DE ILUSTRAES
Figuras
Figura 1. Capa de um dos manuscritos do poema Vila Rica. BNRJ. ....................................... 16
Figura 2. Frontispcio dOs Lusadas, de Luis de Cames. ...................................................... 25
Figura 3. Folha de rosto da primeira edio da pica La Henriade, de Voltaire. ..................... 32
Figura 4. Armand Pallire. Vila Rica. Sculo XIX. Museu da Inconfidncia, Ouro Preto. ..... 60
Figura 5. Representao da Glria. RIPA, Caesar. Iconologia. ............................................... 68
Figura 6. Capa da Historia verdadeira de la Conqvista de la Nueva-Espaa. ........................ 73
Figura 7. Capa da Monarchia Indiana, de Juan de Torquemada. Madrid: 1725, v. 1.............. 79
Figura 8. Frontispcio da primeira edio da Histria da Conquista do Mxico. .................... 89
Figura 9. Mapa da viagem do Governador Antnio de Albuquerque s Minas Gerais. ........ 100
Figura 10. Antigo Braso da Cidade de Ouro Preto. .............................................................. 102
Figura 11. Atual Braso da Cidade de Ouro Preto. ................................................................ 102
Figura 12. Representao do Furor Potico............................................................................ 109
Figura 13. Retrato do Conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrada. ................................. 144
Figura 14. Ilustrao de Viajante do Sculo XVIII da atual Praa Tiradentes. MHCMOP. .. 149
Figura 15. Folha de rosto da Arte Potica, de Antnio Minturno. ......................................... 164
Figura 16. A Cruz da Ordem de Cristo, que adornava as caravelas portuguesas. ................. 170
Figura 17. Detalhe de vaso grego com desenho de ris. ........................................................ 173
Figura 18. Guercino. Et in Arcadia ego (1618-22). ............................................................... 186
Figura 19. Claude Gelle. Primeiro trabalho sobre Virglio. ................................................ 187
Figura 20. Nicolas Poussin. Et in Arcadia ego. ...................................................................... 188
Diagramas
Diagrama 1. Verso 1 decasslabo sfico com encavalgamento. .......................................... 134
Diagrama 2. Verso 2 decasslabo herico com encavalgamento......................................... 134
Diagrama 3. Verso 3 decasslabo herico com encavalgamento......................................... 134
Diagrama 4. Verso 4 decasslabo sfico com encavalgamento. .......................................... 134
Diagrama 5. Verso 45 decasslabo sfico sem encavalgamento. ........................................ 147
Diagrama 6. Verso 46 decasslabo herico com encavalgamento....................................... 147
Esquemas
Esquema 1. Escanso com encavalgamento dos vv. 1-12 do Canto I. ................................... 131
Esquema 2. Separao dos ps dos quatro primeiros versos. ................................................. 132
Esquema 3. Aliterao do verso 45. ....................................................................................... 147
Esquema 4. Aliterao do verso 46. ....................................................................................... 147
Esquema 5. Foras mitopoticas na epopia. ......................................................................... 178
SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................................... 11
O POEMA VILA RICA E O GNERO PICO COMO MMESIS MITOPOTICA ............................................ 12
1. AS MSCARAS DA RECEPO ..................................................................................... 26
1.1. AUTOCRTICA PICA OU A MSCARA RECOMENDADA ........................................................ 27
1.2. AS DUAS FACES DA MOEDA OU AS DUAS MSCARAS ........................................................... 33
1.3. A PRIMEIRA FACE DA MOEDA OU A PRIMEIRA MSCARA .................................................... 35
1.4. O TOPOS DO UTPICO .................................................................................................... 45
1.5. A INVENO DE UMA TRILOGIA DE PICOS....................................................................... 49
1.6. A SEGUNDA FACE DA MOEDA OU A SEGUNDA MSCARA ..................................................... 54
2. O PALCO DA HISTRIA ................................................................................................. 61
2.1. O PALCO DA CORTE OU O POETA HISTORIADOR ................................................................ 62
2.2. PICA E HISTRIA: EXEMPLOS HISPANO-COLONIAIS ......................................................... 70
2.3. A TEOLOGIA-POLTICA OU O PALCO LUSO-COLONIAL ........................................................ 80
2.4. O FUNDAMENTO HISTRICO DO VILA RICA ...................................................................... 89
3. A CENOGRAFIA DA POTICA ..................................................................................... 103
3.1. A POTICA-RETRICA ................................................................................................. 104
3.2. A ARTE DA POESIA OU A FIGURAO DA MMESIS ............................................................ 107
3.3. A NATUREZA DO POEMA PICO .................................................................................... 123
3.4. AS PARTES DA EPOPIA ............................................................................................... 137
3.5. A FBULA PICA......................................................................................................... 150
3.6. A AO HERICA ........................................................................................................ 156
3.7. O ALTIVO LUGAR DO HERI ......................................................................................... 165
4. A FIGURAO PICA DA MITOLOGIA ...................................................................... 171
4.1. O LUGAR DA RIS NA EPOPIA ..................................................................................... 172
4.2. O FATUM E A FORTUNA ................................................................................................ 177
4.3. O ESPAO E O TEMPO MTICO ....................................................................................... 180
5. A ENCENAO PICA DA MORTE ............................................................................. 184
5.1. ET IN ARCADIA EGO E A ARTE DE MORRER .................................................................... 185
5.2. A SOMBRA PICA DA MORTE. ....................................................................................... 191
5.3. A TPICA DA MORTE NA POESIA PICA .......................................................................... 193
5.4. A TPICA DA MORTE NO VILA RICA ............................................................................... 196
CONCLUSO .......................................................................................................................... 204
A EPOPIA COMO UM TEATRO DE PACIFICAO .......................................................................... 205
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 208
APNDICE A ARGUMENTOS NARRATIVOS DO VILA RICA .......................................................... 233
11
INTRODUO
La posie fut le premier art qui fut cultive avec succs. Dante et Ptrarque crivirent dans un temps o lon navait pas encore un ouvrage de prose supportable (...) Homre fleurit chez les Grecs plus dun sicle avant quil part un historien. Les cantiques de Mose sont le plus ancien monument des Hbreux. On a trouv des chansos chez les Carabes, qui ignoraient tous les arts. Les Barbares des ctes de la mer Baltique avaient leurs fameuses rimes runiques dans les temps quils ne savaient pas lire: ce qui prouve, en passant, que la posie est plus naturelle aux hommes quon ne pense. Voltaire. Essai sur la posie pique.
12
O poema Vila Rica e o gnero pico como mmesis mitopotica
O poema pico Vila Rica, de Cludio Manuel da Costa, narra a viagem histrica do
Governador Antnio Albuquerque Coelho de Carvalho s Minas Gerais do Estado do Brasil1
no incio do sculo XVIII, culminando com a fundao da Cidade de Vila Rica em 1711. A
finalidade era pacificar a regio, vital do ponto de vista econmico para o reino de Portugal,
pelo ouro financiador da empresa mercantilista. A pacificao das Minas Gerais, caracterizada
no poema como ao pica, configura-se como encerramento do episdio histrico conhecido
como Guerra dos Emboabas, edificando o mito de um heri catlico civilizador na
personagem memorvel do Governador.
Em relao forma potica, o texto dessa composio pica est disposto em dez
cantos de extenso varivel, cada um deles formado por estrofes tambm variveis. Ao lado
da irregularidade no tamanho dos cantos e das estrofes, nota-se a regularidade dos versos
decasslabos e o uso das rimas emparelhadas.
Se, do ponto de vista histrico, a matria do poema muito pertinente para o
entendimento da trajetria temporal do Estado do Brasil e para a do reino de Portugal, do
ponto de vista potico, o poema no foi considerado importante pelos autores que escreveram
as primeiras anlises crticas da obra na historiografia brasileira das letras coloniais, sendo
interpretado como composio pica imperfeita ou experincia esttica fracassada2.
Diversamente, outros crticos literrios arquitetaram novas possibilidades de leitura do Vila
1 A expresso Estado do Brasil, usada aqui, refere-se a uma das duas regies americanas administradas pelo
reino de Portugal na poca da colonizao. A expresso utilizada, por exemplo, em: MORENO, Diogo de
Campos [suposto autor]. Livro que d Razo do Estado do Brasil. [1612]. Edio [fac-similar] comemorativa do
V centenrio de nascimento de Pedro lvares Cabral [manuscrito do sc. XVII, conservado no IHGB.
Cartografia atribuda a Joo Teixeira Albernaz I]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968. 2 Entre as interpretaes que consideram o poema Vila Rica como uma experincia potica malsucedida pode-se
citar, em ordem cronolgica: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Ensaio Histrico sobre as Lettras no
Brazil. In: Florilgio da Poesia Brazileira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850, tomo I, p. XXXIX; ROMERO,
Slvio. Histria da Literatura Brasileira. [1888]. 3.a ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943, tomo II, p. 93-94;
RIBEIRO, Joo. Carta ao Sr. Jos Verssimo sobre a Vida e as Obras do Poeta. [1903] In: PROENA FILHO,
Domcio (org.). A Poesia dos Inconfidentes: Poesia completa de Cludio Manuel da Costa, Toms Antnio
Gonzaga, Alvarenga Peixoto. Artigos, ensaios e notas de Melnia Silva de Aguiar et al. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1996, p. 5-26; VERSSIMO, Jos. Histria da literatura brasileira. [1916]. Erechim (RS): Edelbra,
[s.d.], p. 142; SODR, Nelson Werneck. Histria da Literatura Brasileira: Seus fundamentos econmicos.
[1938]. 2.a ed., revista e aumentada. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1940, p. 77-79; CANDIDO, Antonio. No
Limiar do novo Estilo: Cludio Manuel da Costa. In: Formao da Literatura Brasileira (momentos decisivos).
[1959]. 8.a ed. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, vol. 1, p. 101; BOSI, Alfredo. Histria Concisa da
Literatura Brasileira. [1970]. 2.a ed. So Paulo: Cultrix, 1994, p. 71; HOLANDA, Srgio Buarque de. Captulos
de Literatura Colonial. Organizao e introduo de Antonio Candido. So Paulo: Brasiliense, 1991, p. 426.
13
Rica, recusando a reprovao da recepo, ao aventar outras hipteses de legitimao e de
reconhecimento poticos3.
Antes de adotar a palavra final de um ou outro lado, convm investigar com ateno a
natureza desta controvrsia. A constituio da questo parece dever-se em grande parte s
circunstncias de publicao, na diversidade de verses e edies do poema, como variantes
de um mesmo texto inicial hipottico. Em razo disso, necessria uma anlise dessas
condies, na tentativa de relacion-las com as vrias leituras urdidas nos percursos trilhados
pela crtica.
Nos manuscritos existentes do poema, espalhados pelas bibliotecas e arquivos do
Brasil e do exterior, a obra sempre datada pelo ano de 17734. Entretanto, a primeira edio
impressa do texto na ntegra foi publicada apenas em 1839, na imprensa do jornal O
Universal, na Cidade de Ouro Preto, pela iniciativa do redator Jos Pedro Dias de Carvalho5.
Esse redator , talvez, excetuando o prprio Cludio Manuel, o primeiro crtico dessa
composio pica, expondo seu juzo de valor ao escrever a histria da publicao do texto
numa carta enviada ao Presidente do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro: Era pois
justo que no continuasse a ser privado de sair luz o poema Vila Rica, to recomendvel
pela noo variada de histria que contm, como pela beleza e eufonia dos versos, alm das
notas e do fundamento histrico de que acompanhado6.
Portanto, o primeiro fato relevante a considerar sobre a publicao do poema que ele
no foi dado estampa pelo autor em vida, permanecendo indito7 por cerca de sessenta e
seis anos, diferentemente das composies poticas do autor reunidas sob o ttulo genrico de
3 Nessa linha valorativa podemos mencionar, em ordem cronolgica, entre outros: LAPA, Manuel Rodrigues. Os
versos anarquistas do Vila Rica. Suplemento Literrio do Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 86, abr. 1968;
RAMOS, Pricles Eugnio da Silva. Introduo. In: Poemas de Cludio Manuel da Costa. Introduo, seleo
e notas de Pricles Eugnio da Silva Ramos. So Paulo: Cultrix, 1976, p. 19; LOPES, Hlio. Introduo ao
Poema Vila Rica. Juiz de Fora: Esdeva, 1985; LOPES, Edward. Metamorfoses: A Poesia de Cludio Manuel da
Costa. So Paulo: UNESP, 1995, p. 82-3; AGUIAR, Melnia Silva de. A Trajetria Potica de Cludio Manuel
da Costa. In: PROENA FILHO, Domcio (org.). Op. cit., p. 27-39. 4 Cf. AGUIAR, Melnia Silva de. Op. cit., p. 36-39. 5 COSTA, Cludio Manuel da. Vila Rica. Ouro Preto: Tipografia do Universal, 1839. 6 Cf. IHGB, lata 142, doc. 17. Apud LOPES, Hlio. Op. cit., p. 9. 7 No perodo colonial, a cpia manuscrita uma forma de publicao, por isso, indito aqui se refere ao fato de
o poema no ter sido impresso, pois entendo que de certa maneira ele foi publicado, ao serem feitas cpias
manuscritas que circularam entre leitores selecionados pelo poeta e, depois, difundidas por estes a outros. Sobre
a circulao desses manuscritos nas Minas, o trabalho de Adriana Romeiro esclarece que tal fato se deu desde o
incio do sculo XVIII, por exemplo, com os manuscritos do Padre Antnio Viera, que so lidos por Pedro de
Rates Henequim. Cf. ROMEIRO, Adriana. Um Visionrio na Corte de D. Joo V: revolta e milenarismo nas
Minas Gerais. Tese (Doutorado em Histria) IFCH-UNICAMP, Campinas (SP), 1996, passim; Vide ainda
sobre a circulao dos manuscritos no Estado do Brasil a pesquisa de John Monteiro. Cf. MONTEIRO, John M.
Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Tese (Livre Docncia em
Antropologia) IFCH-UNICAMP, Campinas (SP), 2001, p. 24-25; 44; 98; 150.
14
Obras, impressas em 17688.
A segunda edio do poema impressa somente cinqenta e oito anos depois da
primeira, em 1897, em folhetim e em livro, pelo jornal O Estado de Minas. Essa segunda
edio foi declaradamente baseada na montagem tipogrfica de Ouro Preto9.
A terceira edio publicada logo depois, em 1903, no conjunto de dois tomos das
Obras Completas de Cludio Manuel da Costa, preparados por Joo Ribeiro para a editora
Garnier, conferindo ao poema Vila Rica um lugar junto s outras obras do poeta10
,
notavelmente muito mais conhecidas e reconhecidas, como A Fbula do Ribeiro do Carmo.
Em 1957, foi publicada uma quarta edio no Anurio do Museu da Inconfidncia,
fundamentada diretamente na primeira edio de Ouro Preto11
.
Pouco tempo depois, em 1969, Augusto de Lima Jnior publica a quinta edio,
baseada, segundo ele, num manuscrito autgrafo herdado de seu pai, que o ganhara de um
arcebispo da Cidade de Mariana12
. Essa edio, portanto, uma segunda verso, com
diferenas textuais considerveis em relao s edies anteriores. Este era o status das
publicaes do poema at o abrangente estudo de Hlio Lopes intitulado Introduo ao
poema Vila Rica, em 1985. Por haver tantas edies e verses, Lopes escreve este trabalho
confrontando as edies existentes com os manuscritos encontrados por ele no Brasil.
Ainda era preciso o estabelecimento de uma edio crtica da obra por meio de um
extenso trabalho de pesquisa de campo que comparasse todos os manuscritos encontrados
com todas as edies publicadas, recompondo palavras, versos perdidos, sanando equvocos e
anulando diferenas etc. Essa pesquisa com a elaborao da edio crtica foi realizada por
Melnia Silva de Aguiar, mas permanece indita. Entretanto, foi includa no volume A Poesia
dos Inconfidentes, da editora Nova Aguilar, em 1996, uma nova verso baseada nessa edio
crtica, constituindo a sexta e ltima edio do poema13
.
Foi usado o manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa como texto-base
para o estabelecimento crtico do texto da sexta edio, comparando-o com mais outros dez
manuscritos e as edies anteriores. Este manuscrito tinha sido dedicado por Cludio ao
8 COSTA, Cludio Manuel da. Obras de Cludio Manuel da Costa, rcade Ultramarino, chamado Glauceste
Satrnio. Coimbra: Officina de Luiz Secco Ferreira, 1768. 9 Idem. Vila Rica. 2.a ed. Ouro Preto: Tipografia do estado de Minas, 1897. 10 Idem. Vila Rica. 3.a ed. In: Obras poticas. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903, tomo II, p. 145-278. 11 Idem. Vila Rica. 4.a ed. In: ANURIO DO MUSEU DA INCONFIDNCIA. Ouro Preto: [s.n.], 1957, vol.
IV, p. 113-97. 12 Idem. Vila Rica. 5.a ed. (Edio de Augusto de Lima Jnior). In: LIMA JNIOR, Augusto de. Cludio
Manoel da Costa e seu poema Vila Rica. [Belo Horizonte], Imprensa Oficial, 1969. 13 Idem. Vila Rica. 6.a ed. In: PROENA FILHO, Domcio (org.). Op. cit., p. 355-446.
15
Conde de Cavaleiros e tem a particularidade de incluir oitenta e quatro novos versos no
Canto V, no encontrados noutros manuscritos. Segundo Melnia Silva de Aguiar, esses
novos versos so claramente partes do poema, no se tratando de uma insero apcrifa
nesse manuscrito, mas provavelmente de uma excluso que Cludio fez posteriormente nos
outros manuscritos, para evitar a identificao dos religiosos envolvidos no episdio da
Guerra dos Emboabas14
. Essa edio da Nova Aguilar , portanto, a mais indicada para ser o
eixo do nosso exerccio de leitura, que pretende reconstituir, mesmo que precariamente, as
diversas linhas discursivas que condicionaram a inveno pica do Vila Rica, cruzando o
discurso potico-retrico com outros, como o teolgico-poltico15
.
Evidentemente, percebe-se que a questo da recepo crtica do poema enlaa-se com
essas questes filolgicas, pois, de 1839 at 1969, ou seja, por aproximadamente 130 anos, os
crticos dispuseram de uma nica verso do texto, reeditada quatro vezes. A partir de 1969 at
1996, os leitores puderam ter acesso a duas verses. Todas essas edies possuam muitas
variaes e, provavelmente, muitas falhas16
. Acredito, como exps Manuel Rodrigues Lapa
no seu artigo Os Versos Anarquistas do Vila Rica17
, que os primeiros grandes crticos se
deixaram levar em parte pelas imperfeies e lacunas dessas edies, desconsiderando a
especificidade filolgica, numa leitura entendida aqui como desvalorizadora do poema.
Depois de 1996, alm dos manuscritos, temos acesso a trs verses da obra, em seis
edies. A terceira e ltima verso, correspondente sexta edio, particularmente a mais
cuidadosa, com o trabalho de pesquisa de crtica textual exposto, com referncias a todas as
outras verses e manuscritos, reconstituies e correes, apontamentos e notas.
14 Acredita-se que por isso que esse manuscrito seja a cpia mais antiga do poema encontrada at o presente. Cf.
AGUIAR, Melnia Silva de. Op. cit., p. 25-38; p.1079, nota 1. 15 Esta ltima linha discursiva se d pela considerao de que os letrados do Estado do Brasil obedeciam
poltica portuguesa mercantilista e escravista, justificada pela expanso da F catlica e pelo reconhecimento do
direito do Rei portugus de dispor das riquezas de suas colnias, aplicando a razo de Estado. Sobre essa
funcionalidade da teologia-poltica aliada retrica-potica, em prticas mimticas de representao relativas
racionalidade de Corte do Imprio de Portugal, constitui-se como obra fundamental de referncia, A Stira e o
Engenho, de Joo Adolfo Hansen, 2.a edio de 2004, livro que rene e ata os conceitos poticos engenhosos
aplicados s letras no sculo XVII, num exame amplo e aplicadssimo das stiras atribudas ao poeta Gregrio de
Matos e Guerra. Os diversos conceitos desenvolvidos e demonstrados nessa obra fundamentam esta pesquisa,
que pressupe certa continuidade e adaptao de articulaes, formas e preceitos das letras do sculo XVII no
XVIII, seqenciao que vem a ser desfeita lentamente, somente no sculo XIX; Outro texto importante do autor
Barroco, neobarroco e outras runas, publicado na revista Teresa, em 2001; Cf. tambm TORGAL, Lus
Reis. Introduo In: BOTERO, Joo. Da Razo de Estado. Coordenao e introduo de Lus Reis Torgal.
Traduo de Raffaella Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigao Cientfica Centro de
Histria da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992, p. 2-3. 16 Veja-se o estudo das variaes de termos e palavras no Fundamento Histrico do poema, analisado por
Brbara Fadel. Cf. FADEL, Brbara. Cludio Manoel da Costa e o Fundamento Histrico ao Poema Vila Rica.
Dissertao (Mestrado em Histria) UNESP, Franca (SP), 1985. 17 Cf. LAPA, Manuel Rodrigues. Op. cit.
16
Figura 1. Capa de um dos manuscritos do poema Vila Rica. BNRJ.
Podemos pautar esta pesquisa pela sexta e ltima edio com at certa serenidade, pois
o objetivo aqui no o de estabelecer as caractersticas da crtica textual, visto que isso j foi
feito, mas essencialmente ler as particularidades dos procedimentos de inveno retrico-
poticos aplicados nesta forma pica luz das preceptivas utilizadas no sculo XVIII, como
uma prtica de representao18
, alm de dispor os critrios de juzo de valor adotados pelos
seus receptores, historiadores e crticos literrios dos sculos XIX e XX.
Deste modo, nesta anlise, importante a investigao da forma retrico-potica do
18 Hansen pensa a categoria de representao segundo quatro articulaes simultneas e integradas: Na
sociedade luso-brasileira do sculo XVII, a identidade definida como representao uma forma especfica da
posio e pela representao uma ocasio de sua aplicao como aparncia decorosa subordinada no corpo
mstico do Imprio Portugus. Por representao, no caso, entendo quatro coisas: 1. O uso particular, em
situao, de signos no lugar de outra coisa. Nas representaes luso-brasileiras do sculo XVII, os signos so
recortados em uma matria qualquer como imagens de conceitos produzidos na substncia espiritual da alma
participada pela substncia metafsica de Deus. 2. A aparncia ou a presena da coisa ausente produzida na
substituio. 3. A forma retrico-potica da presena da ausncia. 4. A posio hierrquica encenada na forma
como tenso e conflito de representaes. Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Barroco, neobarroco e outras runas.
Teresa: revista de Literatura Brasileira, So Paulo, n. 2, p. 11-12, nota 2, 2001, grifo do autor; No sculo XVIII,
supondo-se a durao dessas articulaes e a mudana dos lugares da enunciao, a poesia encomistica
evidencia essas quatro articulaes. A pica, por sua vez, pressupe a matria histrica. Segundo Castelvetro,
tratando da epopia, a histria coisa representada e a poesia, coisa representante. Essa matria histrica
representada est estilizada no pico representante. Nele, a histria melhorada, sutilizada, sublimada livre das
imperfeies. O leitor l, na forma pica, a referncia histrica estilizada. Ela est presente na estilizao, como
efeito potico; mas estar ausente como matria histrica bruta, sem estilizao. No Vila Rica, tudo calculado e
disposto como um palco dessa estilizao, elogiando a hierarquia estabelecida, coisa representada, que reconhece
a si prpria nessa pica, coisa representante. Cf. CASTELVETRO, Lodovico. Poetica dAristotele Vulgarizzata
e Sposta. A cura di Werther Romani. Roma-Bari: Gius. Laterza & Figli, 1978, 2 v., I, p.44.
17
gnero pico exercitado na elaborao da escrita, considerando as prticas de representao
em que fundamentado, na tentativa de reconstituio das preceptivas de inveno seguidas
pelos homens de letras portugueses no sculo XVIII. Ao realizar a emulao19
de seus
predecessores picos, deparamos com tpicos aplicados edificao da histria20
com uma
lgica mtica prpria, entendida como ornamento do maravilhoso, no gnero pico,
compreendendo esse processo de mitificao da histria como mitopotico porque se d
segundo as regras da potica antiga, sobretudo a aristotlica.
Considera-se tambm o pensamento exercitado nesse mundo colonial catlico, que
acreditava na realidade histrica como uma allegoria in factis do reino de Deus, seguindo a
doutrina de Santo Toms de Aquino que pregava a semelhana de todos os seres como seres
criados por Deus21
. A prpria poltica do reino de Portugal entendida como um reflexo da
vontade divina, aliando-se teologia. Por constituir parte inseparvel do pensamento
escolstico dos bacharis formados nas universidades portuguesas, essa teologia-poltica
orienta a inveno das letras, representando personagens histricos no gnero pico como
encenao de uma maneira de agir adequada ao decoro da razo de Estado portuguesa, numa
tica poltica que disciplina os movimentos do corpo para uma moral catlica. No poema Vila
Rica, a encenao de um heri que representa o prprio El-Rei faz necessria a adequao do
discurso pico ao decoro externo da recepo com essa tica poltica exercitada na razo de
19 importante definir aqui o conceito de emulao. A distino entre emulao e imitao foi elaborada por
Joo Adolfo Hansen, a partir da leitura de Pallavicino; Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Ler e ver: modelos
emblemticos da representao luso-brasileira no sculo XVII. In: SEXTO CONGRESSO DA ASSOCIAO
INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. AIL, 1999. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2007; Cf. Tambm HANSEN, Joo Adolfo. Barroco, neobarroco e
outras runas. Op. cit., p. 45-6; A emulao a imitao que se d como exerccio potico, na reescrita e
reelaborao dos antigos, no plgio, mas pela admirao, diferencia-se. Pois a emulao, sentimento decente,
no a desprezvel inveja, como anotado na Retrica, de Aristteles; Cf. ARISTTELES. Arte Retrica e Arte
Potica. Traduo de Antnio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro/ So Paulo: Ediouro Publicaes, [s.d.], p. 125;
Segundo Pallavicino, emular procurar conseguir com outros modos nos nimos dos leitores um semelhante,
ou maior prazer do que aquele, que alcanaram os outros escritores emulados. , portanto, alcanar o mesmo
efeito, dizendo outra coisa. Difere-se do roubo e da imitao, pois o roubo dizer a mesma coisa e a imitao
simples dizer outra coisa sobre o mesmo. Cf. PALLAVICINO, Sforza. ARTE Dello Stile, ove nel cercarsi
lideal dello scrivere insegnativo. Discorresi partitamente devarij pregi dello stile s Latino, come Italiano.
Composta dal P. Sforza Pallavicino Della Compagnia Di Gies. AllIllustriss. Sig. Il Sig. Co. FABIO Acquaviva
Pico Della Mirandola. In Bologna: per Giacomo Monti, 1647. Con Licenza de Superiori, p. 112. 20 O uso do termo histria variar bastante nesse trabalho. Sempre que nos referirmos ao conceito de
histria, como o exerccio de reconstruo da memria pelo homem, em geral, o termo ser definido. Ao passo
que ao referirmos a uma verso dessa memria, o termo ser indefinido. O termo ainda aparecer como sinnimo
de estria ou enredo. Esperamos que o sentido de cada uso fique esclarecido pelo contexto. 21 Cf. AQUINO, Santo Toms de. Summa Theologicae, p. I, q. 13, aa. 5, 6, 10 Apud. HANSEN, Joo Adolfo.
Barroco, neobarroco e outras runas. Op. cit., p. 48; Veja-se ainda sobre a alegoria factual o texto Alegoria:
construo e interpretao da metfora, SP, Atual, 1987 (2.a ed.) Apud PCORA, Alcir. Cames e Vieira: as
Artes e os Feitos. Revista do IFAC. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, n. 2, p. 37, dez. 1995.
18
Estado, justificando a piedade de sua ao pela moral catlica verossimilmente comparada
de seus pares, os nobres da Corte de Portugal. Para efetivar essa poltica, D. Joo V., o
Magnnimo, nomeia Antnio de Albuquerque Coelho de Carvalho como Governador da
Repartio do Sul do Estado do Brasil, com a patente de Capito-General ad-honorem22
.
A ao de pacificar o territrio das Minas Gerais, representada como pica na piedade
da moral crist do heri Antnio de Albuquerque, torna-se um marco significativo que
estabelece a ordem da civilizao, enfrentando a rusticidade da natureza da regio e, ao
mesmo tempo, lutando contra os rebelados emboabas23
. Estes foram os primeiros habitantes
colonizadores na regio, uma terra desconsiderada na ocupao do territrio do Estado do
Brasil at aquele momento, o final do sculo XVII.
Antnio de Albuquerque organiza e submete autoridade real esses primeiros
colonizadores das Minas, figurados no Fundamento Histrico do poema como sediciosos em
confronto com o grupo dos paulistas pelo reconhecimento do direito de ocupar e explorar as
riquezas das Minas Gerais. Pela representao hierrquica de administradores da sociedade
aristocrtica portuguesa, destitui a aspirao de Manuel Nunes Viana de estabelecer uma
liderana poltica e de ser reconhecido como Governador:
Fazendo, porm, justia, certo que entre os rebeldes e levantados daquele
tempo, tinha melhor ndole que todos o suposto Governador Manuel Nunes
Viana: no consta que cometesse, por si ou por algum de seus confidentes,
positivamente ao alguma nociva ao prximo; desejava reger com
igualdade o desordenado corpo que lhe ajuntara; acolhia afavelmente a uns e
outros; socorria-os com os seus cabedais; apaziguava-os, compunha-os, e os
serenava com bastante prudncia; ardia porm por ser Governador das Minas
e, se tivesse letras, se podia dizer que trazia em lembrana a mxima de
Csar Si violandum est jus, regnandi gratia violandum est24.
22 Cf. SUANNES, S. Os Emboabas. So Paulo: Brasiliense, 1962, p. 260. 23 Charles Boxer relata em nota que as vrias significaes do termo emboaba so discutidas por Taunay, na
sua Histria Geral, vol. 9, p. 475-478. Boxer destaca as fontes do sculo XVIII que definem emboaba como
significando um pssaro de pernas emplumadas, da ser o termo aplicado como zombaria aos recm-chegados da
Europa e do litoral, que usavam coberturas protetoras para pernas e ps, ao contrrio dos paulistas, que andavam
descalos e de pernas nuas pelo matagal. Cf. BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de
Crescimento de uma Sociedade Colonial. Traduo de Nair de Lacerda; prefcio terceira edio de Arno
Wehling; prefcio primeira edio de Carlos Rizzini. 3.a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 105; O
Professor Eduardo de Almeida Navarro, porm, explica que o termo emboaba significava mo peluda, como
eram chamados os portugueses pelos ndios, palavra formada a partir dos vocbulos tupis mb- (mo) e ab-
(peludo). Cf. NAVARRO, Eduardo de Almeida. Mtodo Moderno de Tupi Antigo. 2.a ed. Petrpolis: Vozes,
1999, p. 492; A propsito, John Monteiro lembra o documento Relao de um Morador de Mariana, onde se
relata que os paulistas apelidam os reinis de emboabas por desprezo, que na sua lngua quer dizer galinhas
caludas, o que imitavam pelos cales que usavam de rolos, Cf. CCM, 1999 [1752], 1:206 Apud MONTEIRO,
John M. Op., cit., p. 109-110. A dvida permanece e importante porque deixa em aberto a existncia, ou no,
de um tratamento depreciativo dos paulistas contra os forasteiros nesse primeiro episdio da histria das Minas. 24 [Se as leis devem ser violadas, o direito de governar deve ser violado]; COSTA, Cludio Manuel da.
Fundamento Histrico. Op. cit., p. 370.
19
Por isso, a ao de pacificao do Governador Albuquerque foi decisiva no
estabelecimento de um processo colonizador nessa sociedade, visando manter o controle no
vasto territrio, ameaado pela suposta apropriao indevida do governo por Manuel Nunes
Viana. Nessas novas faixas territoriais de ocupao, Antnio de Albuquerque Coelho de
Carvalho institui a normalidade da lei, garantindo o benefcio da taxao da explorao dos
metais para a Coroa portuguesa.
Vale ponderar que estudar essas letras desse passado colonial em sua constituio
especfica, recompondo sua prpria lgica de representao e interpretao, uma tarefa de se
aventurar num mundo desconhecido, no mais existente, mas fascinante. Escrever sobre o
passado sempre um anacronismo, devido impossibilidade da comprovao emprica da
prpria hermenutica precria inventada por nosso discurso, ao tentar tratar a histria
historicamente, eliminando, no possvel, os universalismos, apartando-se de constantes
transistricas que conduzem a descobrir o Mesmo de um arqutipo em todos os tempos 25
.
Isso pressupe observar essas letras como runas do passado com a lupa embaada de
sua poca, reinventando sua especificidade. O trabalho do crtico, nessa perspectiva,
aproxima-se do trabalho do arquelogo, numa tentativa de recomposio precria de
fragmentos do passado que estruturam essas representaes; ou seja, um trabalho de
pesquisa do primeiro critrio normativo de legibilidade dessas letras, fundamentado sob
preceitos de gneros, obedecendo s estruturas particulares do pico e das variaes deste.
O significado da palavra epopia e sua suposta frmula ocidental codificada na matriz
do gnero pico abrangem atualmente diversas composies e construes simblicas letradas
mais extensas do que estabelece o significado original de sua raiz grega epos, que denota
simplesmente o ato de narrar.
Atualmente, h dois pontos de vista clebres sobre o conceito de epopia. O
primeiro a define como resultado da tradio oral transmissora de conhecimentos codificados
numa narrao mitolgica, seguindo o conceito aristotlico de mmesis (). Isso se daria
num mundo da oralidade que ainda ignora a escrita, mas, assim que a descobre, documenta
suas representaes. Esse primeiro conceito de epopia generalizante e universalista,
adotando obras das mais diversas do engenho humano, entendidas como herana da
construo de uma coletividade pela transmisso oral mitopotica26
dos feitos de seus
25 HANSEN, Joo Adolfo. Op. cit., p. 25. 26 Entendendo o conceito de mitopoesis como a relao ntima entre as correspondncias alegricas do real e ao
prprio processo mimtico para compor os mitos que explicam essa mesma realidade, renomeando o conceito de
20
antepassados. Nessa viso, o mito o causador da histria. Retomando o texto bblico de
Gnesis, se Deus cria o mundo pelo lgos (), pela palavra, sem dvida o ritmo aplicado
a esse lgos foi o pico, ou em outras palavras, o epos (), a poesia, o princpio
organizador do lgos, da histria, na inveno do mythos (), mito, que explica e
constitui a prpria histria27
. Nessa concepo, a poesia pica, em chave antropolgica, a
detentora da funo social de repassar valores e crenas, consolidando as ligaes simblicas
entre os membros de uma comunidade antiga, primeva expresso cultural coletiva desta:
Em seguida vem a epopia e seus cantores. Ela substitui toda a Histria e
boa parte da revelao como expresso vital nacional e como testemunho de
primeira categoria, das necessidades e capacidade de um povo de
contemplar-se e representar-se por meio da tipificao28
.
Assim, essas epopias so classificadas tambm como primitivas, pois expressam as
primeiras representaes de uma sociedade, como gnero do discurso primrio, definido por
tipos do dilogo oral, como entende Bakhtin29
. Podemos dizer que, numa obra pica desse
tipo, existe uma relao fundamental entre a ao e o discurso oral, entre o drama () e o
lgos, determinando a unidade potica, implicando a plausibilidade ou verossimilhana do
discurso oral com a ao do heri.
Homero nesta tradio apenas o aedo que teria cantado a verso final da Ilada e da
Odissia, constituda coletivamente, materializada por um annimo num escrito30
. Nesta
perspectiva, podem-se incluir ainda, alm da Ilada e da Odissia, o Gilgamesh babilnico31
,
os escritos bblicos, o Mahabharata e o Ramayana indianos32
, O Poema ou Cantar de mio
Cid33
, o pico alemo Nibelungenlied34
, e ainda o pico do Rei Gesar35
, representativo desse
cosmopeia, de Thomas Blackwell. Cf. LACERDA, Sonia. Metamorfoses de Homero: Histria e antropologia
na crtica setecentista da poesia pica. Braslia: UnB, 2003, p. 205. 27 oportuno lembrar aqui que no sculo XVII o escritor ingls John Milton escolhe a forma pica para compor
a sua obra prima Paradise Lost. Cf. MILTON, John. Paradise Lost. [1667]. London: Penguin Books, 1996. 28 BURCKHARDT, Jacob. Reflexes sobre a Histria. Traduo de Leo Gilson Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
1961, p. 76. 29 BAKHTIN, Mikhail. Os gneros do discurso. In: Esttica da criao verbal. 4.a ed. So Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 285. 30 Cf. PESSANHA, Nely Maria. Caractersticas bsicas da epopia clssica. In: APPEL, Myrna Bier;
GOETTEMS, Miriam Barcellos (orgs.). As Formas do pico: da epopia snscrita telenovela. Porto Alegre:
Movimento, 1992, p. 30. 31 Cf. GEORGE, Andrew. Introduction. In: THE EPIC of Gilgamesh: The Babylonian Epic poem and the
Other Texts in Akkadian and Sumerian. Translated with an introduction by Andrew George. London: Penguin
Books, 2003, p. XIII-LII. 32 Cf. FONSECA, Carlos Alberto da. A Literatura pica Snscrita. In: APPEL, Myrna Bier; GOETTEMS,
Miriam Barcellos (orgs.). Op. cit., p. 22. 33 POEMA de mio Cid. Edicin de Colin Smith. 19.a ed. revisada. Madrid: Ed. Catedra, 1994. 34 BATTS, Michael S. (org.). Das Nibelungenlied. [1190?-1200?]. Tubingen: Max Niemeyer, 1971. 35 GESAR. Lpope tibtaine de Gesar dans sa version lamaque de Ling. Paris: PUF, [19--].
21
processo de construo coletiva atual, at hoje em transformao, com vrias verses,
encontrvel em diversas regies do Tibete36
.
Mas, o que poderia aproximar obras to diversas quanto o Gilgamesh e a Odissia?
Examinando poemas to distintos, resultantes de culturas to distanciadas na lngua, no
espao e no tempo, muitos encontraram semelhanas e paralelos, propondo uma
universalidade da epopia como expresso primitiva que celebra as faanhas dos antepassados
de um povo, narrando guerras, traies e lutas internas pela honra de seus heris mortos e
usando, s vezes, um discurso que apresenta um sistema especfico de ritmo37
. Nessa
perspectiva, George Dumzil e Jean-Pierre Vernant, entre outros, estudaram as epopias,
especialmente as primitivas como o Mahabharata, a Odissia e outras, aplicando a anlise
mitolgica, propondo a recorrncia de trs traos delineadores caractersticos ou funes
nas sociedades dos povos indo-europeus, a saber: soberania, fora e fecundidade38
.
Esse primeiro critrio exclui as obras inventadas deliberadamente por algum que no
mais canta, porm escreve os fatos narrados em longos poemas, emulando os textos picos
anteriores, considerando ainda as obras que tratam da prpria composio do gnero,
atribuindo intencionalmente caractersticas mticas narrao como ornamentao potica,
como a Eneida, a Farslia, o Orlando Furioso, a Jerusalm Libertada, o Paraso Perdido, Os
Lusadas, e tantos outros, que emulam o costume da potica aristotlico-horaciana. Este um
segundo conceito de epopia, no qual o epos no mais o princpio organizador do lgos na
inveno do mythos, mas, pelo contrrio, o lgos, entendido como discurso histrico, passa a
determinar a condio do epos, a forma potica. Ao contrrio da primeira concepo de
epopia, a relao simblica se inverte e particulariza-se, pois uma histria passa a ser a
causadora de um mito, na inveno mimtica emuladora dos mythoi anteriores. Deste modo,
por meio da perpetuao da memria do discurso pico na forma escrita, no labor do vate, os
feitos do heri so imortalizados para todas as geraes vindouras, como escreveram
magnificamente Lucano, nos versos de sua Farslia, e Cames, nOs Lusadas:
36 Cf. STEIN, Rolf Alfred. Recherches sur lpope et le barde au Tibet. Paris: PUF, 1959 ; Cf. GESAR.
Lpope tibtaine de Gesar dans sa version lamaque de Ling. Paris: PUF, [19--]. 37 Cf. SMITH, Colin. El Espritu de la pica. In: POEMA de mio Cid. Op. cit., p. 17-18; Cf. PACHECO, Jos
Maria Valverde; RIQUER, Martn de. La pica Medieval: Universalidad de la Epopeya. Disponvel em:
. Acesso em: 27 fev. 2005. 38 Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Notas sobre o gnero pico. So Paulo: 2007, indito, p. 17-20; O autor cita,
dentre outros, DUMZIL, Georges. Mito y Epopeia. In: El Destino del Guerrero. Mxico: Siglo Veinteuno,
1971, p. 22; p. 99; e VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pense grecque. Paris: PUF, 1969, p. 23-24 e p.
26. Cf. tambm DUMZIL, Georges. Mythe et pope I: Lidologie des trois fonctions dans les popes des
peuples indo-europens. Paris: Gallimard, 1968.
22
sagrado e magnfico labor dos vates! Tudo
arrebatas do destino e ds s gentes mortais a imortalidade.
No te deixes enganar, Csar, pela inveja do que a fama consagrou.
Pois, se lcito fazer alguma promessa s musas latinas,
enquanto durar todo o tempo da glria do poeta de Esmirna,
os vindouros o lero nos meus versos. Nossa Farslia
viver e os que viro no nos condenaro s trevas39
.
E tambm as memrias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A F, o Imprio, e as terras viciosas
De frica e de sia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vo da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e a arte40
.
(Os Lusadas. Canto I, vv. 9-16.)
Nessa viso, a pica pode ser entendida como a substncia da vida espiritual de um
povo que assume sua forma mais duradoura, eterna e especfica nas palavras de seus
grandes poetas e pensadores41
. As epopias pensadas nessa concepo so classificadas
como secundrias, pois se efetivam pelo uso da escrita, como um modelo do discurso
secundrio absorvem e transmutam os gneros primrios (simples) de todas as espcies42
.
Este segundo conceito de epopia o aplicado s letras picas dos sculos XVI ao XVIII,
numa prtica de representao consolidada exemplarmente no chamado Siglo de Oro, no
mundo hispano-colonial, onde podemos observar inumerveis edies, tradues e invenes
de poemas picos43
. Essa prtica reconhece as autoridades precedentes e segue as preceptivas
determinadas nas retricas e nas artes poticas que regulam os procedimentos de inveno das
39 o sacer et magnus uatum labor! omnia fato/ eripis et populis donas mortalibus aeuum./ inuidia sacrae, Caesar,
ne tangere famae;/ nam, siquid Latiis fas est promittere Musis,/ quantum Zmyrnaei durabunt uatis honores,/
uenturi me teque legent; Pharsalia nostra/ uiuet, et a nullo tenebris damnabimur aeuo. (Farslia. Canto IX,
vv.980-6). Cf. LUCANO, Marco Anneo. Farsalia. Introduccin, Traduccin y notas de Antonio Holgado
Redondo. Madrid, Espana: Editorial Gredos, 1984, p. 480; Cf. LVCANI, M. A. Pharsalia. Disponvel em:
. Acesso em: 02 abr. 2005. Nestes versos
justificada a escolha do ttulo do poema de Farslia, visto que o ttulo realmente empregado pelo poeta foi De
Bello Civili [A Guerra Civil]; Cf. LUCAN. The Civil War. (Pharsalia). Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press/ London: William Heinemann, [19--], p. 2-3. (Edio bilnge: Latim; Ingls). 40 CAMES, Lus de. Os Lusadas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1990, p. 29. 41 Cf. BURCKHARDT, Jacob. Op. cit., p. 63. 42 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Op. cit., p. 281. 43 Cf. PIERCE, Frank. La Poesia pica del Siglo de Oro. [Spanish Epic Poetry of the Golden Age]. Segunda
Edicin Revisada y Aumentada. Versin Espaola de J. C. Cayol de Bethencourt. Madrid: Editorial Gredos,
1968; Nesta obra, no Apndice A, Pierce enumera mais de 200 ttulos de epopias espanholas elaboradas
principalmente entre os sculos XVI e XVII, na Espanha e na Amrica. No apndice B, elenca dezenas de
tradues espanholas de epopias, desde obras antigas, como as de Virglio, Homero e Lucano, at obras mais
recentes, por assim dizer, como as de Sannazaro, Cames, Tasso etc. No seu Apndice C, Pierce demonstra
que essas epopias continuaram sendo reeditadas inumerveis vezes durante os sculos XVIII e XIX, como a
Araucana, reeditada quinze vezes, e a Christiada, reeditada seis vezes, entre outras.
23
epopias, estruturando-as segundo as convenincias do gnero, como a Arte Potica, Arte
Retrica e o Organum, de Aristteles, passando pela Epistula ad Pisones, de Horcio, a de
autoria desconhecida De Ratione Dicendi ad C. Herennium, o De Inventione, de Ccero etc.;
considerando na poesia do sculo XVIII na Europa, as modernas Lart Potique, de Boileau,
La potica o reglas de la poesia em general y de sus principales espcies, de Luzn, a Arte
Potica, de Francisco Jos Freire etc.; os estudos sobre poticas, como o Della Perfetta
Poesia Italiana, de Muratori, o Discorsi dellarte poetica ed in particolare sopra il poema
eroico, de Torquato Tasso, o Essai sur la Posie pique, de Voltaire etc. Alm disso, so
considerados como modelos dessa poesia muitos picos, como Os Lusadas, de Cames, a
Ulissia, de Gabriel Pereira de Castro, a Eneida, de Virglio, a Farslia, de Lucano, La
Henriade, de Voltaire, a Jerusalm Libertada, de Torquato Tasso etc.; e ainda, obras
histricas como, no caso particular de Cludio Manuel da Costa, a Monarchia Indiana, de
Juan de Torquemada e a Historia de la conquista de Mexico, de Antonio de Solis etc.
Observando-se apenas esses dois conceitos tradicionais de epopia, so consideradas
obras picas uma grande coleo de escritos de diversas civilizaes, em diversas lnguas,
variantes no tempo e no espao, que demandam estudos e cruzam discursos de literatura,
antropologia, sociologia, teologia, filosofia, retrica, direito, poltica, geografia, mitologia,
histria etc., de omni re scibili, implicando a necessidade de limitar a abrangncia do conceito
de gnero pico para o estudo do poema Vila Rica.
Dessa maneira, analisar uma obra que segue essa prtica de representao codificada
como pica, ligada continuidade dos exerccios de pronunciao das epopias milenares,
cristalizadas na escrita, exige serenidade diante da impossibilidade da leitura e considerao
de tudo impresso e disperso pelo orbe a respeito do gnero, em suas mltiplas definies e em
aspectos to amplos quanto s prprias cincias humanas. Convm nortear este trabalho pelas
preceptivas seguidas no poema, destituindo a possibilidade de leituras estticas da expresso
de sujeitos que, na verdade, apenas aplicam o artifcio de uma tcnica mimtica desde a
Potica, de Aristteles.
O Vila Rica no um poema de composio oral, como, por exemplo, a Teogonia,
resultante da aglutinao de fbulas e relatos histricos numa construo coletiva primitiva,
codificados pelo pensamento mtico explica a natureza e a si prprio atravs de seus prprios
24
termos44
. No o caso de um pico primevo que almeja instituir os supostos fundamentos da
condio humana, como poderia ser lido nOs trabalhos e os Dias, de Hesodo45
. Tambm
no fruto da angstia de um sujeito patritico e intelectual, consciente da sua inaptido para
usar as frmulas das descries do locus amoenus da paisagem arcdica em face das speras e
duras rochas mineiras, interpretao que se deve a no leitura da aplicao do topos do locus
horrendus, no como antecipao romntica, mas como emulao artificiosa da poesia de
Tasso e outros, como mostraremos mais adiante. Estas interpretaes so anacrnicas, pois
aplicam valores ou categorias inexistentes no artifcio retrico-potico da inveno do poema.
Vila Rica , antes de tudo, uma pica que segue o costume da escrita, como a Farslia ou a
Eneida, imitando e combinando elementos dos modelos picos reconhecidos, sem perder suas
especificidades46
, inventando um discurso potico que possui seu estilo prprio:
Antes que em fumo ou ar voe desfeito
De tanta idia o quadro portentoso,
Quer declarar em tudo o misterioso
Teatro das imagens: vs agora
Influ-me uma voz alta e sonora,
Ninfas do ptrio Rio, com que eu possa
Cantar na glria minha a glria vossa47
.
(Vila Rica. Canto VI, vv. 317-326.)
Assim, este estilo produz uma fbula pica mitopotica, que entralha e celebra a
histria, e glorifica o carter da ao nobre do heri, representante do poder da Corte
portuguesa, num teatro das imagens, cantado pelo poeta com a alta e sonora voz que as suas
ninfas do ptrio Rio lhe inspiram, invocao pica feita a partir de uma imagem metafrica
camoniana48
, convencional das condies de inveno dessa escrita, que se d pela elaborao
de uma histria, emulada de modelos, e pela observao formal, no-pessoal, das
particularidades da natureza local.
44 Cf. TORRANO, Jaa. O Mundo como Funo das Musas. In: HESODO. Teogonia: A Origem dos Deuses.
Traduo de Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 1995, p. 77. 45 Cf. LAFER, Mary de Camargo Neves. As duas lutas. In: HESODO. Os trabalhos e os dias. 4.a ed.
Traduo, introduo e comentrios de Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Iluminuras, 2002, p. 53. 46 Cf. LEONI, G.D. Virglio no ambiente histrico e literrio de seu tempo. In: VIRGLIO. Eneida. Traduo
de Manuel Odorico Mendes. So Paulo: Martin Claret, 2004, p. 44. 47 Todas as nossas citaes do poema Vila Rica se daro pela edio da editora Nova Aguilar: COSTA, Cludio
Manuel da. Vila Rica. 6.a ed. Op. cit. 48 Ou seja, emulada conforme a invocao dOs Lusadas, de Cames: E vs, Tgides minhas, pois criado/
Tendes em mi um novo engenho ardente,/ Se sempre, em verso humilde, celebrado/ Foi de mi vosso rio
alegremente,/ Dai-me agora um som alto e sublimado,/ Um estilo grandloco e corrente,/ Por que de vossas guas
Febo ordene/ Que no tenham inveja s de Hipocrene./ Dai-me uma fria grande e sonorosa,/ E no de agreste
avena ou frauta ruda,/ Mas de tuba canora e belicosa,/ Que o peito acende e a cor ao gesto muda;/ Dai-me igual
canto aos feitos da famosa/ Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,/ Que se espalhe e se cante no universo,/ Se to
sublime preo cabe em verso. Cf. CAMES, Lus de. Os Lusadas. Op. cit. p. 30.
25
Figura 2. Frontispcio dOs Lusadas, de Luis de Cames.
Lisboa: Antonio Galuez, 1572. (Ed. Ee).
26
1. AS MSCARAS DA RECEPO
Qui legis ista, tuam reprehendo, si mea laudas omnia, stultitiam, si nihil, invidiam. Owen, Liv. I, ep. 3. Cit. por Cludio M. da Costa nas Obras.
27
1.1. Autocrtica pica ou a mscara recomendada
A forma do gnero pico do Vila Rica foi comentada pelo prprio Cludio Manuel da
Costa, no Prlogo, esclarecendo que no adotou para o poema a categoria de pico, mas
preferiu design-lo apenas como uma composio em metro. Para ele, todos aqueles que se
submeteram censura dos crticos, atribuindo a classificao de pico a seus poemas, foram
censurados por algum erro ou defeitos e a razo disso a que estabeleceu um bom
Autor49
de que inventaram-se leis aonde as no havia 50
. Esse bom Autor a quem o poeta
se refere Voltaire, de onde retira o juzo de invenes de regras, no Essai sur la Posie
pique: Sobrecarregaram quase todas as artes com prodigioso nmero de regras que, na
maior parte, so inteis ou falsas51
.
Pode-se perceber nessas linhas do Prlogo, pela citao desta idia crtica de Voltaire,
um primeiro passo de questionamento do juzo potico das letras na Capitania de Minas
Gerais. No entanto, preciso compreender que, no sculo XVIII, o processo de inveno
potica pensado retoricamente como estilo, ajustado em funo do conceito de
verossimilhana, preferindo-se o verossmil crvel ao possvel incrvel52
. Nesse perodo, o
conceito de crtica entendido como uma atividade do juzo, predicado em termos de
verdadeiro ou falso, segundo a teoria aristotlica do juzo como um ato da alma conforme
uma doutrina da alma53
, pensada na formao cultural dos letrados no sculo XVIII. Por
isso, Voltaire conceitua que muitas das regras para as artes so falsas, cabendo ao letrado a
busca das regras teis, verdadeiras e verossmeis na inveno de composies poticas.
49 Autor significa nesse discurso uma auctoritas, uma autoridade, um exemplo ou modelo que podemos imitar,
pois a noo de eurets (), auctoritas, codificado como sujeito criador, um primo inventore ou autoria, em
uma publicao impressa, institucionalmente autorizada, inaplicvel para o sculo XVIII. Pois no existia neste
tempo a noo de direitos autorais, de que uma elaborao intelectual, ou de conhecimentos tcnicos, deveria
pressupor uma originalidade, criando uma obra artstica ou tecnolgica que pudesse ser entendida como a
propriedade de um particular. Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Autor. In: JOBIM, Jos Lus (org.). Palavras da
crtica: Tendncias e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 11-43. Apud VALLE,
Ricardo Martins. A construo da Posteridade, ou A tradio para o Novo Mundo, ou A gnese como Runa.
Dissertao (Mestrado em Literatura Brasileira) - USP, So Paulo, 2004, p. 38. Cf. tambm HANSEN, Joo
Adolfo. Barroco, neobarroco e outras runas. Op. cit., p. 40-46. 50 COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. In: PROENA FILHO, DOMCIO. Op. cit., p. 359. 51 On a accabl presque tous les arts dun nombre prodigieux de rgles, dont la plupart sont inutiles ou fausses.
Cf. VOLTAIRE [Franois Marie Arouet]. Essai sur la posie pique. In: Ouvres Compltes. Paris: Firmin-
Didot Frres, 1834, tome X (La Henriade avec prfaces, avertissements, notes, etc. par M. Beuchot), p. 401. 52 Cf. ARISTTELES. Op. cit., p. 281. 53 Cf. VALLE, Ricardo Martins. A construo da posteridade ou A gnese como runa. Revista Usp (Dossi
Brasil Colnia), So Paulo, n. 57, mar.-maio 2003, p. 109.
28
Tambm evidente no Prlogo a utilizao do topos da humildade54
, aplicado
retoricamente como captao de benevolncia55
de seu leitor. O poeta no ostenta, nem espera
ser reconhecido pela elaborao de uma epopia. O pico foi totalmente esquadrinhado,
medido e regrado, impossibilitando que qualquer poeta conseguisse ou pretendesse alcanar a
excelncia potica ou a perfeio, seguindo a todos os preceitos estabelecidos em todas as
poticas. Tal fato seria impraticvel, pois naquele momento e lugar seria pretenso
inadequada ao poeta querer exceder Homero, Virglio, Cames e Tasso, que, seguindo o
julgamento austero dos preceptistas, no conseguiram atingir a perfeio.
Portanto, no se espera que o pico de Cludio siga rigorosamente todas as
convenes do gnero, encontradas nas artes poticas, lembrando as idias de Voltaire,
filsofo que comea a questionar os preceitos rgidos dessas poticas e os duros comentrios
realizados pelos historiadores56
, como crtica das letras: H cem poticas contra um
poema. (...) O mundo est repleto de crticos, que, pela fora de comentrios, definies,
distines, so levados a obscurecer os conhecimentos mais claros e mais simples57
.
Dado o nmero de citaes e comentrios nas suas notas ao Vila Rica, aludindo a
epopias e poticas, evidente que Cludio distingue os preceitos destas, aplicando ao seu
poema. Entretanto, cobre-se com o manto crtico de Voltaire, que props uma nova
interpretao dos conceitos, atualizao mal-compreendida. Para Cludio, a dificuldade de
inventar uma epopia no se deve a uma suposta incompetncia de seu engenho, diante da
inspita rispidez do clima mineiro, mas emulao do juzo de um letrado reconhecido. No
caso de Voltaire, o labor da inveno pica no parece ser causado pela monotonia da
Monarquia decadente da Frana, mas de uma posio terico-ideolgica singular de um
pensador que ousava emular e reformular as idias. Para Voltaire, o pico, nele prprio, segue
apenas uma regra verdadeira, de ser apenas uma narrativa em versos de aventuras hericas:
54 Ernst Robert Curtius explica que um topos muito difundido a incapacidade de satisfazer s exigncias do
assunto; um topos do panegrico: louvor dos antepassados e de seus feitos. Na Antiguidade colecionaram-se
topoi. Cf. CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europia e Idade Mdia Latina. Traduo de Teodoro Cabral
Paulo Roni. So Paulo: Hucitec/ Edusp, 1996, p. 108-109. 55 A captao de benevolncia (captatio benevolentiae) o procedimento retrico que consiste na tcnica de
obter a benevolncia dos ouvintes logo no incio do discurso, o exrdio, tornando-os bem dispostos, favorveis
ao discurso. Cf. TRINGALI, Dante. Introduo Retrica (A Retrica como crtica literria). So Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1988, p. 83. 56 Se que podemos chamar dessa maneira estes letrados que comentavam e enumeram as diversas poticas e
obras letradas nos sculos XV ao XIX, ajuizando valores que variavam do gosto, passando pela prudncia
aparentemente desinteressada at a simples citao tcita ou dissimuladamente potica. 57 Il y a cent potiques contre un pome. (...) Le monde est plein de critiques, qui, force de commentaires, de
dfinitions, de distinctions, sont parvenus obscurcir les connaissances le plus claires et les plus simples. Cf.
VOLTAIRE [Franois Marie Arouet]. Op. cit., p. 401.
29
Que a ao seja simples ou complexa; que ela se estenda por um ms ou por
um ano, ou que dure mais tempo; que a cena seja fixada para uma direo,
como na Ilada, que os heris viagem de mar em mar, como na Odissia;
que seus heris sejam desafortunados, furiosos como Aquiles, ou piedosos
como Enias; que haja um personagem principal ou vrios; que a ao se
passe na terra ou no mar; sobre a chegada frica, como nOs Lusadas; na
Amrica, como a Araucana; no Cu, no Inferno, sobre os limites de nosso
mundo, como nO Paraso de Milton; isto no importa: o poema ser sempre
um poema pico, um poema herico, a menos que algum encontre um novo
ttulo proporcional ao seu mrito58
.
Decifrando estas linhas, no exatamente expressa uma idia de suspenso do uso dos
preceitos do gnero pico, enquanto protocolos de escrita e leitura, mas sim a defesa de uma
maior abertura na inveno potica. Os critrios retrico-poticos de entendimento
permanecem como categorias vlidas de leitura, inveno e comparao: tipo de ao, lugar
da ao, tipo de heri etc.59
Os preceitos continuam teis, deleitveis e aplicveis ao poema
pico. Cabe ao poeta discernir o modo mais conveniente de aplic-los, observando os decoros
da matria histrica e do heri escolhidos, que definem a validade daquilo que falso, ou
verdadeiro, para cada soluo discursiva adotada no gnero pico, mesmo as menos usuais,
como os versos decasslabos de rimas emparelhadas, ou uma ao recente na histria como
matria, ou a falta do maravilhoso etc.
Contudo, Cludio mostra uma acentuada preocupao com a verdade histrica de seu
relato, tomando o devido cuidado de indicar os fatos histricos, diferenciados dos que adapta
ficcionalmente como parte de sua composio potica. Assim, acompanhando Voltaire,
Cludio Manuel da Costa demonstra, atravs de suas notas e de seu Fundamento Histrico,
que se empenhou nesta tarefa de elucidao da matria histrica adotada:
Se eu fiz alguma diligncia por averiguar a verdade, digam-te as muitas
Ordens e Leis que vs citadas nas minhas notas, e a extenso de notcias to
individuais com que formei o plano desta obra: pode ser que algum as
conteste pelo que tem lido nos escritores da Histria da Amrica; mas esses
no tiveram tanto mo as concludentes provas de que eu me sirvo60
;
Desta forma Cludio exalta solenemente no poema a ao prudente de pacificar um
58 Que laction soit simple ou complexe; quelle sachve dans un mois ou dans une anne, ou quelle dure plus
longtemps; que la scne soit fixe dans un seul endroit, comme dans lIliade; que le hros voyage de mers en
mers, comme dans lOdysse; quil soit heurex ou infortun, furieux comme Achille, ou pieux comme ne;
quil y ait un principal personage ou plusieurs; que laction se passe sur la terre ou sur la mer; sur le rivage
dAfrique, comme dans la Lusiada; dans lAmerique, comme dans lAraucana; dans le ciel, dans lenfer, hors
des limites de notre monde, comme dans le Paradis de Milton; il nimporte: le pome sera toujours un pome
pique, un pome hroque, moins quon ne lui trouve un nouveau titre proportionn son mrite. Cf. Idem,
p. 406. 59 Ainda que Voltaire tenha dito que os poetas picos so forados a escolher um heri conhecido, sob pena de
seu poema jamais ser lido, justificando a escolha de Enias por Virglio; Cf. Ibidem, p. 428. 60 COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. Op. cit., p. 359.
30
povo rebelde, atravs de seu heri militar que instaura exemplarmente a Real Autoridade,
evidenciando o carter memorialstico da composio. Seu objetivo exaltar a fundao de
Vila Rica, deixando um legado para as futuras geraes, elucidando a histria de sua ptria, a
Capitania de Minas Gerais, parte do Estado do Brasil, colnia do reino de Portugal:
E se estas Minas, pelas riquezas que tm derramado por toda a Europa, e
pelo muito que socorrem com a fadiga dos seus habitantes ao comrcio de
todas as naes polidas, eram dignas de alguma lembrana na posteridade,
desculpa o amor da Ptria, que me obrigou a tomar este empenho,
conhecendo tanto a desigualdade das minhas foras. Estimarei ver elogiada
por melhor pena uma terra que constitui hoje a mais importante Capitania
dos domnios de Portugal61
.
O poeta prescreve o prprio procedimento de leitura que dever ser desempenhado
pela recepo: dispensar o empenho do patriotismo gerado pelo pthos do amor para
destacar a importncia da prpria Vila Rica pelo mrito de sua riqueza mineral. Vila que
uma parte, metonimicamente representante do todo, o territrio das Minas Gerais, que possui
a glria de ser a mais importante Capitania do reino de Portugal. Assim, alm de deleitvel,
o poema til, pois promove politicamente a importncia econmica das Minas Gerais na
hierarquia da razo de Estado. No podemos deixar de relacionar esta leitura de utilidade
potica com o que diz Adam Smith em sua famosa obra A Riqueza das Naes, que nessa
poca era difundida a idia de que a riqueza de um Estado dependia diretamente da
acumulao de uma enorme quantidade de ouro e prata, fortalecendo o Real Errio, juzo
fundamentador da economia poltica na Espanha e em Portugal, enquanto na Frana e na
Inglaterra procurava-se uma nova fundamentao econmica para o Estado62
. Preparando o
caminho da recepo, Cludio pressupe o juzo discreto63
do leitor, definido pela capacidade
do discernimento, em oposio vulgaridade do gosto e ignorncia do nscio, como
contrato enunciativo, configurando seu leitor como expectador erudito e como ator social, que
deve comparar o Vila Rica com outras obras, apreciando a medida de sua emulao, que
reafirma a importncia econmica das Minas Gerais. Nessas letras, o juzo discreto do leitor
prprio de um homem catlico que segue o princpio divino do amor ao prximo, perdoando
todos os erros do escritor, conforme argumenta Pedro Mexa, cronista de Carlos I de Espanha:
61 Ibidem. 62 Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Naes: Investigao sobre sua natureza e suas causas. [An Inquiry into the
Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776]. Traduo de Luiz Joo Barana. So Paulo: Nova Cultural,
1996, vol. 1, p. 415 et seq. (Os Economistas). 63 O tipo discreto, corteso caracterizado por uma distino de juzo e de prudncia, na escolha conveniente das
aes pelo intelecto, conceituado primeiramente na crtica das letras no Brasil por Joo Adolfo Hansen. Cf.
GRACIN y MORALES, Baltasar. El Discreto. In: Obras Completas. 3.a ed. Ed. de Arturo del Hoyo. Madrid:
Aguilar, 1967, passim. Apud HANSEN, Joo Adolfo. A Stira e o Engenho. Op. cit., p. 48; p. 94.
31
Quanto estudo me teve custado a escrever e a ordenar esta obra, e quantos
livros me foram necessrios para eu ler, e ver para isto, isto remeto eu ao
discreto e benigno leitor, porque a mim no est bem encarec-lo. Nem
tampouco quero responder aos maledicentes e defender a minha obra de
murmuradores, e como todos fazem em seus promios, porque conheo que
nela existem muitas faltas, inadvertncias e descuidos. Antes terei por
singular benefcio ser avisado de meus erros porque em outra impresso,
Deus querendo, emende-me e retrate. E se algum houver que, com somente
a inteno de trair e condenar meu livro, vier a l-lo, quero-lhe avisar que
ofende a Deus nisso, e seria muito melhor dispor-se a escrever e compor
algo para o proveito pblico, que no impedir e acovardar aos que se
animam e dispem a faz-lo. E a uns e outros tenham de mim certo que eu
fiz o que pude, e quisera no errar em coisa alguma e fazer muito perfeita
minha obra e devem de boa razo aceitar minha inteno e desejo, se ela nos
merecer64
.
No Vila Rica, essa orientao pela discrio catlica e piedosa do leitor efetiva-se no
plano da leitura pela observao e considerao das virtudes de Antnio de Albuquerque, que
se dignifica para ser eternizado na memria: Leitor,/ Eu te dou a ler uma memria por escrito
das virtudes de um Heri que fora digno de melhor engenho para receber um louvor
completo65
. Portanto, esse poema pico composto por Cludio concebe a sua arte como
resultado de um louvor, devido memria dos fundadores heris portugueses. Colocando-se
num lugar humilde, inferior ao do heri, o poeta garante a benevolncia de seu discreto
leitor. Para tanto, o Vila Rica louva o feito glorioso de Albuquerque para elogiar a prpria
Capitania de Minas Gerais, do mesmo modo que a epopia Os Lusadas louva os heris da
ptria para enaltecer o reino de Portugal como uma nao.
Vejamos como a recepo do poema apaga essa orientao didtica de entender a
poesia como celebrao da importncia econmica da Capitania de Minas Gerais para a
soberania do reino de Portugal, pela glorificao da memria da ao prudente de
Albuquerque, enfatizando exclusivamente uma suposta inpcia potica de Cludio em compor
versos hericos que pintassem as cores locais, eliminando, inclusive, a apreciao do topos da
64 Quanto estudio me aya costado escrivir, y ordenar esta obra, y quantos libros me fuessen necessario leer, y
vr para ello, esto remitido yo al discreto, y benigno lector, porque mi no esta bien encarecerlo. Ni tampoco
quiero responder los maldicientes, y defender mi obra de murmuradores, y como todos hazen en sus proemios,
porque conozco que en ella ay muchas faltas, inaduertencias, y descuydos. Antes tendr por singular beneficio,
ser avisado de mis yerros porque en otra impression, Dios queriendo, me enmiende, y retrate. Y si alguno
huviere, que con sola intencion de traer y condenar mi libro, viniere lo leer, quierole avisar que ofende Dios
en ello, y seria muy mejor disponerse escrivir, y componer algo para el publico provecho, que no impedir, y
acobardar los que se animan, y disponen ello. Y los vnos, y los otros tengan de mi cierto, que yo hize lo que
pude, y quisiera no errar en cosa alguna, y hazer muy perfeta mi obra, y deven de buena razon aceptar mi
intencion, y deseo, si ella no lo merece. Cf. MEXA, Pedro. Proemio y prefacio de la obra - Discreto Lector.
In: Silva de varia leccin. [1540]. Madrid: Matheo de Espinosa y Arteaga, 1673. Disponvel em:
. Acesso em: 25 out. 2005. 65 Cf. COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. Op. cit., p. 359.
32
humildade, aplicado ficcionalmente como captao de benevolncia do discreto leitor.
Figura 3. Folha de rosto da primeira edio da pica La Henriade, de Voltaire.
33
1.2. As duas faces da moeda ou as duas mscaras
Ao tentarmos traar as linhas gerais seguidas pela crtica do poema pico de Cludio,
ns a dividimos imediatamente em duas correntes evidentes, como duas faces de uma mesma
moeda66
ou como mscaras que cobrem a orientao didtica preceituada da recepo pelo
autor. A primeira crtica a da leitura desvalorizadora, disfrica ou negativa, geralmente
tcita e subjetiva. A segunda a da leitura valorizadora, eufrica ou positiva, que considera a
obra como importante e representativa na histria das letras do Estado do Brasil, em oposio
apreciao antecedente.
O intervalo de tempo entre a inveno do Vila Rica e a sua publicao, isto , entre a
elaborao da obra e a sua incluso no sistema de comunicao literria67
, produziu um efeito
na crtica no-superado integralmente at hoje, consistente na leitura interpretativa da obra
positivando valores ora romnticos, ora realistas68
, desconsiderando a relevncia dos preceitos
seguidos pelo poeta. Em outras palavras, no temos a leitura crtica contempornea ao poema,
por isso, no h registros de sua divulgao, lacuna lida como insucesso da obra decorrente de
sua prpria m-qualidade potica, confirmada pelos primeiros crticos com as imperfeies
encontradas nos manuscritos e edies.
Alm disso, de considerar que a memria do poeta Cludio Manuel foi manchada em
1792, com a sua condenao pelo envolvimento no episdio da Inconfidncia Mineira69
.
Mesmo que o poema estivesse em vias de publicao, ou fosse admirado, seria necessria a
espera de 50 anos, quando sua publicao pde ser realizada, aps a Independncia do Brasil,
pois certamente naquele primeiro momento da Inconfidncia Mineira, nenhum editor gostaria
de ser relacionado com uma personagem desse episdio, dados os castigos exemplares
aplicados pela Coroa portuguesa, sobretudo, a histria que consta nos registros dos Autos da
Devassa, no empenho do Governador da Capitania de Minas Gerais, Lus Antnio Furtado de
66 A expresso utilizada aqui retoma a mesma idia proverbial do lema do cinismo na expresso
(Paracattein to nomisma), traduzida convencionalmente por falsificar a moeda. Cf. FLORES
JNIOR, Olimar. ou as vrias faces da moeda. gora - Estudos Clssicos em
Debate. Aveiro [Portugal], n. 2, p. 21-32, 2000. 67 Entendendo aqui por sistema de comunicao literria aquele composto por obras publicadas na forma
impressa, portanto de grande divulgao e de fcil acesso, sem entrar ainda na problemtica dos conceitos
modernos de autor, leitor, autoria etc. 68 Valores que se apresentam como um realismo, na proposta de observao e registro das especificidades da
natureza local, ou romantismo, se a proposta tem carter nacionalista. 69 Cf. LUCAS, Fbio. Prefcio: Edward Lopes e o Elogio de Cludio Manuel da Costa. In: LOPES, Edward.
Op. cit., p. 7-8; Cf. LOPES, Hlio. Morto sem sepultura. In: Letras de Minas e outros ensaios. Op. cit., p. 120.
34
Castro do Rio de Mendona e Faro, o famigerado Visconde de Barbacena70
.
O suposto insucesso do poema no se deve ainda, no caso da leitura hegeliana, ao
anacronismo da epopia, lapidada por Lukcs na constituio de um sujeito em busca de
aventuras, nas quais a vida torna-se essencial, possvel apenas no mundo grego,
desaparecendo e dando lugar ao romance71
. Essa leitura anacrnica se aplicada s letras
picas dos sculos XVI, XVII e XVIII das colnias ibricas, pois nelas o gnero pico
cultivado com admirao, at o incio do sculo XIX, como a melhor empresa potica que
algum poderia se dar ao trabalho de realizar.
Tambm no conveniente aplicar nessas letras picas o princpio estruturalista, que
entende a potica como uma cincia, uma estilstica do gnero, que deve analisar
lingisticamente o texto como um modo de linguagem, em suas articulaes fonticas e
semnticas, na sua expresso e contedo. Nestas duas articulaes, a poesia adquire apenas
um status de desvio codificado, criador de um estilo, determinado por uma anlise
estatstica de um corpus, donde se chega concluso de que a diferena entre prosa e poesia
se caracteriza unicamente pelas relaes particulares da natureza lingstica formal da
linguagem normal72
. Tal leitura dissocia as especificidades histrico-sociais e os preceitos
retrico-poticos que regulam a inveno dessas letras como uma arte, uma