A épica de Cláudio Manuel da Costa: uma leitura do poema Vila Rica

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA

    DJALMA ESPEDITO DE LIMA

    A PICA DE CLUDIO MANUEL DA COSTA

    Uma leitura do poema Vila Rica

    SO PAULO 2007

  • DJALMA ESPEDITO DE LIMA

    A PICA DE CLUDIO MANUEL DA COSTA

    Uma leitura do poema Vila Rica

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao do Departamento de Letras

    Clssicas e Vernculas da FFLCH/USP.

    rea de concentrao: Literatura Brasileira.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen.

    SO PAULO 2007

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    E-mail para contato: [email protected]

    Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USP

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Lima, Djalma Espedito de A pica de Cludio Manuel da Costa: Uma leitura do poema Vila Rica / Djalma Espedito de Lima; orientador Joo Adolfo Hansen. -- So Paulo, 2007. 245 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas) -- Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1. Literatura brasileira - Sculo 18 - Crtica e interpretao 2. Poesia pica - Crtica e interpretao - Sculo 18 - Brasil 3. Vila Rica (poema) - Crtica e interpretao 4. Costa, Cludio Manuel da, 1729-1789 I. Ttulo CDD 869.9122

  • FOLHA DE APROVAO

    Djalma Espedito de Lima

    A pica de Cludio Manuel da Costa: Uma leitura do poema Vila Rica

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao do Departamento de Letras

    Clssicas e Vernculas da FFLCH/USP.

    rea de concentrao: Literatura Brasileira

    Aprovado em: _______________

    Banca Examinadora

    Profa. Dra. Laura de Mello e Souza

    Instituio: FFLCH/USP Assinatura: __________________________________

    Prof. Dr. Antonio Alcir Bernrdez Pcora

    Instituio: IEL/UNICAMP Assinatura: __________________________________

    Prof. Dr. Joo Adolfo Hansen

    Instituio: FFLCH/USP Assinatura: __________________________________

  • Ao meu pai,

    In memoriam.

  • Agradeo:

    Especialmente ao Professor Joo Adolfo Hansen, que orientou esta pesquisa com

    clareza e preciso. Muito obrigado pela inquestionvel competncia, grande sabedoria e

    alegre amizade.

    Aos Professores Laura de Mello e Souza e Ivan Prado Teixeira, pelas valiosas

    contribuies dadas a este trabalho na realizao do exame de qualificao. Ao Professor

    Antonio Alcir Bernrdez Pcora, por aceitar participar da Banca Examinadora desta

    dissertao.

    Ao Professor Eduardo de Almeida Navarro, pelas excurses no territrio luso-colonial

    dos cronistas, nas nossas expedies aos sculos XV, XVI e XVII, quando falvamos o Tupi.

    Ao Professor Jos Miguel Wisnik pela oportunidade de realizar uma reflexo intensa

    sobre os pressupostos crticos aplicados historiografia das letras brasileiras.

    Aos Professores que palestraram no curso de ps-graduao da FFLCH/USP: Alfredo

    Bosi, Hlio Guimares, Luiz Roncari, Flvio Aguiar, Cilaine Alves, Wagner Camilo, Jaime

    Ginsburg e Alcides Vilaa.

    Maria de Lourdes de Souza Lima, Espedito Manuel de Lima , Davi Espedito de

    Lima, Maria Dejanira de Lima, Marcelo Teles dos Santos, Clodoaldo de Lucas Santana,

    Edson Domingues, Pedro Pereira, Carlos Groh, Luiz Carlos Scarparo, Eschivane Manzo,

    Mauro Machado de Oliveira, Rosemeiri Gomes Felicio, Nelita Surati, Marino Volic,

    Henrique Linares, Mari Queiroz, Fulvia A. DAvello Napolitano, Fbio Batistella, Milena

    Ferrari, Andr Angelo Ferrari, Slvia Ernesto, Jaime Crivelaro, Marcos Vaskevicius,

    Valdemir M. Lira, Marcos Freire, Luclia Guerra, Murilo Marcondes de Moura, Ricardo

    Martins Valle, Eduardo Sinkevisque, Suely Perucci, rica Salgado, Slvio Roberto Neri, Joo

    Gonalves, Marta Marczyk, Fernanda Guisso, Mariana da Rocha Pita, Rodrigo Bastos,

    Alejandro e Daniela Avils, Renato Miguel Amendoeira Pires, Ricardo Vieira da Silva, ao

    poeta Francisco Barros Cascallar e a todos os outros familiares, amigos e conhecidos que

    acreditaram no meu empenho.

    A todos os meus alunos.

    Aos funcionrios da Biblioteca Central da FFLCH-USP, da Seo de Obras Raras da

    Biblioteca Mrio de Andrade de So Paulo, do Museu da Inconfidncia e da Casa dos Contos

    de Ouro Preto, pelo auxlio tcnico prestado.

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, pela oportunidade de

    realizao do curso de mestrado.

  • Um poema pico, no meio desta prosa atual em que vivemos, uma fortuna miraculosa. Pretendem alguns que o poema pico no do nosso tempo, e h quem j cavasse uma vasta sepultura para a epopia e para a tragdia, as duas belas formas da arte antiga. No fazemos parte do cortejo fnebre de Eurpedes e Homero. (...) Findou a idade herica, mas os heris no foram todos na voragem do tempo. Como fachos esparsos no vasto oceano da histria atraem os olhos da humanidade, e inspiram os arrojos da musa moderna. Casar a lio antiga ao carter do tempo, eis a misso do poeta pico.

    Machado de Assis.

  • RESUMO

    Este ensaio estuda a inveno retrico-potica do poema pico Vila Rica, lido como

    uma composio que emula o costume da escrita das epopias gregas, latinas e modernas,

    especialmente a Farslia de Lucano e a Henriade de Voltaire, atualizando, pelo intermdio

    do pensamento das preceptivas de Francisco Jos Freire, filtradas pela postura crtica de

    Voltaire, que deprecia a importncia de muitas regras convenientes ao decoro do gnero

    pico. A epopia de Cludio Manuel da Costa entendida como um exerccio prtico de

    poesia, orientado para o ensinamento da instruo moral e para a admirao do deleite

    potico, retratadas na atitude ideal do chefe militar portugus de uma encenao da histria da

    pacificao das terras mineiras, produzindo uma gnese mtica herica para a ptria mineira,

    buscando a perpetuao da memria na posteridade, seguindo o exemplo da poesia pica

    retratada no mundo hispano-colonial, no chamado Siglo de oro, que encena a descoberta e a

    pacificao das colnias pelos europeus, aplicando um estilo sublime na reinveno de uma

    ao entendida como herica. Ao realizar este movimento, permanecendo indito por muito

    tempo, e pouco divulgado por sculos, o poema Vila Rica agrega uma fortuna crtica que se

    divide entre a apologia e o vituprio do texto, que representa o topos do utpico, na medida

    em que a paisagem retratada difere evidentemente daquela encontrada na Arcdia e nas

    margens do rio Mondego, mais adequadas figurao do exemplar locus amoenus, da poesia

    idlica de Tecrito. Ao mesmo tempo, realiza a mitificao da histria pela superposio de

    diversos fatos histricos, apresentados no Fundamento Histrico, encenados como tpicos da

    morte e do amor, orientando e evidenciando o carter de valorizao da glria dos feitos dos

    representados do reino portugus num heri portador da perfecta eloquentia, contra um

    suposto domnio da lei natural pelos nativos do Estado do Brasil, reinventando a histria na

    agregao de uma glria potica a ser reconhecida ou inventada numa sociedade hierrquica

    que encena a si mesma num teatro de imagens e discursos. Exclui-se a subjetividade de um

    sujeito em conflito consigo prprio pela melancolia da paisagem rochosa, buscando-se a

    glria, alm da tradio, demonstrando a honra da moral catlica da sociedade colonial luso-

    brasileira no empenho da elucidao da histria.

    PALAVRAS-CHAVE: Vila Rica (poema); Teologia-poltica; Potica-retrica; Poesia pica; Glria potica.

  • ABSTRACT

    This essay studies the rhetorical-poetical invention of the epic poem Vila Rica, read as

    a composition that emulates the written custom of the greek, latim and modern epics,

    especially the Pharsalia of Lucan and the Henriade of Voltaire, bringing up to date, by the

    intermediacy of the thought of Francisco Jos Freires precepts, filtered by the critical

    position of Voltaire, that depreciates the importance of many convenient rules to the decorum

    on the epic genus. The epic of Cludio Manuel da Costa is understood as a practical exercise

    of poetry, guided by the teaching of a moral instruction and in favor of the admiration of a

    poetical delight, portrayed in the ideal attitude of the Portuguese military head as a

    representation of the mining lands pacifications history, producing a mythical heroic source

    for the mining country, searching the upholding of the memory in the posterity, following the

    example of the epic poetry portrayed in the Hispanic-colonial world, in the so called Siglo de

    oro, that represents the discovery and the pacification of colonies by Europeans, applying a

    sublime style in the re-invention of an action understood as heroic. When carrying through

    this movement, remaining unknown for a long time, and little divulged for centuries, the

    poem Vila Rica supports a critical history that is divided between praise and vituperation of

    the text, which represents the topos of utopian, taking into account that the portrayed

    landscape differs evidently from that one joined in the Arcadia and in the edges of the

    Mondego river, adjusted to the picture of the pattern locus amoenus, of the idyllic poetry of

    Theocritus. At the same time, it carries through turning the History into a myth, by the

    overlapping of various historical events, presented in the Fundamento Histrico, figured as

    topics of the death and of love, guiding and evidencing the estimations character on the glory

    of the Portuguese kingdoms representatives actions in a hero carrying a perfecta eloquentia,

    against a belief in the natural laws domain on the State of Brazils natives, re-inventing

    History in the aggregation of a recognized poetical glory, or to be invented in a hierarchic

    society that stages itself in a theater of images and speeches. It is abstained the subjectivity of

    a being in conflict with himself caused by the melancholy of the rocky landscape, searching

    the glory, further than tradition, demonstrating the moralistic catholics honor in the

    Portuguese-Brazilian colonials society, persistencing in the explanation of History.

    KEYWORDS: Vila Rica (poem); Political-Theology; Rhetorical-Poetics; Epic poetry; Poetical Glory.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABL Academia Brasileira de Letras

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    APM Arquivo Pblico Mineiro

    BMA Biblioteca Mrio de Andrade

    BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

    CCM Cdice Costa Matoso

    CECO Centro de Estudos do Ciclo do Ouro

    Edusp Editora da Universidade de So Paulo

    FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    IEB Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo

    IEL Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas

    IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de Campinas

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    MHCMOP Memorial Histrico-Poltico da Cmara Municipal de Ouro Preto

    RAPM Revista do Arquivo Pblico Mineiro

    UFBA Universidade Federal da Bahia

    UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

    UFOP Universidade Federal de Ouro Preto

    UnB Universidade de Braslia

    UNESP Universidade Estadual Paulista

    UNICAMP Universidade de Campinas

    USP Universidade de So Paulo

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figuras

    Figura 1. Capa de um dos manuscritos do poema Vila Rica. BNRJ. ....................................... 16

    Figura 2. Frontispcio dOs Lusadas, de Luis de Cames. ...................................................... 25

    Figura 3. Folha de rosto da primeira edio da pica La Henriade, de Voltaire. ..................... 32

    Figura 4. Armand Pallire. Vila Rica. Sculo XIX. Museu da Inconfidncia, Ouro Preto. ..... 60

    Figura 5. Representao da Glria. RIPA, Caesar. Iconologia. ............................................... 68

    Figura 6. Capa da Historia verdadeira de la Conqvista de la Nueva-Espaa. ........................ 73

    Figura 7. Capa da Monarchia Indiana, de Juan de Torquemada. Madrid: 1725, v. 1.............. 79

    Figura 8. Frontispcio da primeira edio da Histria da Conquista do Mxico. .................... 89

    Figura 9. Mapa da viagem do Governador Antnio de Albuquerque s Minas Gerais. ........ 100

    Figura 10. Antigo Braso da Cidade de Ouro Preto. .............................................................. 102

    Figura 11. Atual Braso da Cidade de Ouro Preto. ................................................................ 102

    Figura 12. Representao do Furor Potico............................................................................ 109

    Figura 13. Retrato do Conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrada. ................................. 144

    Figura 14. Ilustrao de Viajante do Sculo XVIII da atual Praa Tiradentes. MHCMOP. .. 149

    Figura 15. Folha de rosto da Arte Potica, de Antnio Minturno. ......................................... 164

    Figura 16. A Cruz da Ordem de Cristo, que adornava as caravelas portuguesas. ................. 170

    Figura 17. Detalhe de vaso grego com desenho de ris. ........................................................ 173

    Figura 18. Guercino. Et in Arcadia ego (1618-22). ............................................................... 186

    Figura 19. Claude Gelle. Primeiro trabalho sobre Virglio. ................................................ 187

    Figura 20. Nicolas Poussin. Et in Arcadia ego. ...................................................................... 188

    Diagramas

    Diagrama 1. Verso 1 decasslabo sfico com encavalgamento. .......................................... 134

    Diagrama 2. Verso 2 decasslabo herico com encavalgamento......................................... 134

    Diagrama 3. Verso 3 decasslabo herico com encavalgamento......................................... 134

    Diagrama 4. Verso 4 decasslabo sfico com encavalgamento. .......................................... 134

    Diagrama 5. Verso 45 decasslabo sfico sem encavalgamento. ........................................ 147

    Diagrama 6. Verso 46 decasslabo herico com encavalgamento....................................... 147

    Esquemas

    Esquema 1. Escanso com encavalgamento dos vv. 1-12 do Canto I. ................................... 131

    Esquema 2. Separao dos ps dos quatro primeiros versos. ................................................. 132

    Esquema 3. Aliterao do verso 45. ....................................................................................... 147

    Esquema 4. Aliterao do verso 46. ....................................................................................... 147

    Esquema 5. Foras mitopoticas na epopia. ......................................................................... 178

  • SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................................... 11

    O POEMA VILA RICA E O GNERO PICO COMO MMESIS MITOPOTICA ............................................ 12

    1. AS MSCARAS DA RECEPO ..................................................................................... 26

    1.1. AUTOCRTICA PICA OU A MSCARA RECOMENDADA ........................................................ 27

    1.2. AS DUAS FACES DA MOEDA OU AS DUAS MSCARAS ........................................................... 33

    1.3. A PRIMEIRA FACE DA MOEDA OU A PRIMEIRA MSCARA .................................................... 35

    1.4. O TOPOS DO UTPICO .................................................................................................... 45

    1.5. A INVENO DE UMA TRILOGIA DE PICOS....................................................................... 49

    1.6. A SEGUNDA FACE DA MOEDA OU A SEGUNDA MSCARA ..................................................... 54

    2. O PALCO DA HISTRIA ................................................................................................. 61

    2.1. O PALCO DA CORTE OU O POETA HISTORIADOR ................................................................ 62

    2.2. PICA E HISTRIA: EXEMPLOS HISPANO-COLONIAIS ......................................................... 70

    2.3. A TEOLOGIA-POLTICA OU O PALCO LUSO-COLONIAL ........................................................ 80

    2.4. O FUNDAMENTO HISTRICO DO VILA RICA ...................................................................... 89

    3. A CENOGRAFIA DA POTICA ..................................................................................... 103

    3.1. A POTICA-RETRICA ................................................................................................. 104

    3.2. A ARTE DA POESIA OU A FIGURAO DA MMESIS ............................................................ 107

    3.3. A NATUREZA DO POEMA PICO .................................................................................... 123

    3.4. AS PARTES DA EPOPIA ............................................................................................... 137

    3.5. A FBULA PICA......................................................................................................... 150

    3.6. A AO HERICA ........................................................................................................ 156

    3.7. O ALTIVO LUGAR DO HERI ......................................................................................... 165

    4. A FIGURAO PICA DA MITOLOGIA ...................................................................... 171

    4.1. O LUGAR DA RIS NA EPOPIA ..................................................................................... 172

    4.2. O FATUM E A FORTUNA ................................................................................................ 177

    4.3. O ESPAO E O TEMPO MTICO ....................................................................................... 180

    5. A ENCENAO PICA DA MORTE ............................................................................. 184

    5.1. ET IN ARCADIA EGO E A ARTE DE MORRER .................................................................... 185

    5.2. A SOMBRA PICA DA MORTE. ....................................................................................... 191

    5.3. A TPICA DA MORTE NA POESIA PICA .......................................................................... 193

    5.4. A TPICA DA MORTE NO VILA RICA ............................................................................... 196

    CONCLUSO .......................................................................................................................... 204

    A EPOPIA COMO UM TEATRO DE PACIFICAO .......................................................................... 205

    BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 208

    APNDICE A ARGUMENTOS NARRATIVOS DO VILA RICA .......................................................... 233

  • 11

    INTRODUO

    La posie fut le premier art qui fut cultive avec succs. Dante et Ptrarque crivirent dans un temps o lon navait pas encore un ouvrage de prose supportable (...) Homre fleurit chez les Grecs plus dun sicle avant quil part un historien. Les cantiques de Mose sont le plus ancien monument des Hbreux. On a trouv des chansos chez les Carabes, qui ignoraient tous les arts. Les Barbares des ctes de la mer Baltique avaient leurs fameuses rimes runiques dans les temps quils ne savaient pas lire: ce qui prouve, en passant, que la posie est plus naturelle aux hommes quon ne pense. Voltaire. Essai sur la posie pique.

  • 12

    O poema Vila Rica e o gnero pico como mmesis mitopotica

    O poema pico Vila Rica, de Cludio Manuel da Costa, narra a viagem histrica do

    Governador Antnio Albuquerque Coelho de Carvalho s Minas Gerais do Estado do Brasil1

    no incio do sculo XVIII, culminando com a fundao da Cidade de Vila Rica em 1711. A

    finalidade era pacificar a regio, vital do ponto de vista econmico para o reino de Portugal,

    pelo ouro financiador da empresa mercantilista. A pacificao das Minas Gerais, caracterizada

    no poema como ao pica, configura-se como encerramento do episdio histrico conhecido

    como Guerra dos Emboabas, edificando o mito de um heri catlico civilizador na

    personagem memorvel do Governador.

    Em relao forma potica, o texto dessa composio pica est disposto em dez

    cantos de extenso varivel, cada um deles formado por estrofes tambm variveis. Ao lado

    da irregularidade no tamanho dos cantos e das estrofes, nota-se a regularidade dos versos

    decasslabos e o uso das rimas emparelhadas.

    Se, do ponto de vista histrico, a matria do poema muito pertinente para o

    entendimento da trajetria temporal do Estado do Brasil e para a do reino de Portugal, do

    ponto de vista potico, o poema no foi considerado importante pelos autores que escreveram

    as primeiras anlises crticas da obra na historiografia brasileira das letras coloniais, sendo

    interpretado como composio pica imperfeita ou experincia esttica fracassada2.

    Diversamente, outros crticos literrios arquitetaram novas possibilidades de leitura do Vila

    1 A expresso Estado do Brasil, usada aqui, refere-se a uma das duas regies americanas administradas pelo

    reino de Portugal na poca da colonizao. A expresso utilizada, por exemplo, em: MORENO, Diogo de

    Campos [suposto autor]. Livro que d Razo do Estado do Brasil. [1612]. Edio [fac-similar] comemorativa do

    V centenrio de nascimento de Pedro lvares Cabral [manuscrito do sc. XVII, conservado no IHGB.

    Cartografia atribuda a Joo Teixeira Albernaz I]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968. 2 Entre as interpretaes que consideram o poema Vila Rica como uma experincia potica malsucedida pode-se

    citar, em ordem cronolgica: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Ensaio Histrico sobre as Lettras no

    Brazil. In: Florilgio da Poesia Brazileira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850, tomo I, p. XXXIX; ROMERO,

    Slvio. Histria da Literatura Brasileira. [1888]. 3.a ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943, tomo II, p. 93-94;

    RIBEIRO, Joo. Carta ao Sr. Jos Verssimo sobre a Vida e as Obras do Poeta. [1903] In: PROENA FILHO,

    Domcio (org.). A Poesia dos Inconfidentes: Poesia completa de Cludio Manuel da Costa, Toms Antnio

    Gonzaga, Alvarenga Peixoto. Artigos, ensaios e notas de Melnia Silva de Aguiar et al. Rio de Janeiro: Nova

    Aguilar, 1996, p. 5-26; VERSSIMO, Jos. Histria da literatura brasileira. [1916]. Erechim (RS): Edelbra,

    [s.d.], p. 142; SODR, Nelson Werneck. Histria da Literatura Brasileira: Seus fundamentos econmicos.

    [1938]. 2.a ed., revista e aumentada. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1940, p. 77-79; CANDIDO, Antonio. No

    Limiar do novo Estilo: Cludio Manuel da Costa. In: Formao da Literatura Brasileira (momentos decisivos).

    [1959]. 8.a ed. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, vol. 1, p. 101; BOSI, Alfredo. Histria Concisa da

    Literatura Brasileira. [1970]. 2.a ed. So Paulo: Cultrix, 1994, p. 71; HOLANDA, Srgio Buarque de. Captulos

    de Literatura Colonial. Organizao e introduo de Antonio Candido. So Paulo: Brasiliense, 1991, p. 426.

  • 13

    Rica, recusando a reprovao da recepo, ao aventar outras hipteses de legitimao e de

    reconhecimento poticos3.

    Antes de adotar a palavra final de um ou outro lado, convm investigar com ateno a

    natureza desta controvrsia. A constituio da questo parece dever-se em grande parte s

    circunstncias de publicao, na diversidade de verses e edies do poema, como variantes

    de um mesmo texto inicial hipottico. Em razo disso, necessria uma anlise dessas

    condies, na tentativa de relacion-las com as vrias leituras urdidas nos percursos trilhados

    pela crtica.

    Nos manuscritos existentes do poema, espalhados pelas bibliotecas e arquivos do

    Brasil e do exterior, a obra sempre datada pelo ano de 17734. Entretanto, a primeira edio

    impressa do texto na ntegra foi publicada apenas em 1839, na imprensa do jornal O

    Universal, na Cidade de Ouro Preto, pela iniciativa do redator Jos Pedro Dias de Carvalho5.

    Esse redator , talvez, excetuando o prprio Cludio Manuel, o primeiro crtico dessa

    composio pica, expondo seu juzo de valor ao escrever a histria da publicao do texto

    numa carta enviada ao Presidente do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro: Era pois

    justo que no continuasse a ser privado de sair luz o poema Vila Rica, to recomendvel

    pela noo variada de histria que contm, como pela beleza e eufonia dos versos, alm das

    notas e do fundamento histrico de que acompanhado6.

    Portanto, o primeiro fato relevante a considerar sobre a publicao do poema que ele

    no foi dado estampa pelo autor em vida, permanecendo indito7 por cerca de sessenta e

    seis anos, diferentemente das composies poticas do autor reunidas sob o ttulo genrico de

    3 Nessa linha valorativa podemos mencionar, em ordem cronolgica, entre outros: LAPA, Manuel Rodrigues. Os

    versos anarquistas do Vila Rica. Suplemento Literrio do Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 86, abr. 1968;

    RAMOS, Pricles Eugnio da Silva. Introduo. In: Poemas de Cludio Manuel da Costa. Introduo, seleo

    e notas de Pricles Eugnio da Silva Ramos. So Paulo: Cultrix, 1976, p. 19; LOPES, Hlio. Introduo ao

    Poema Vila Rica. Juiz de Fora: Esdeva, 1985; LOPES, Edward. Metamorfoses: A Poesia de Cludio Manuel da

    Costa. So Paulo: UNESP, 1995, p. 82-3; AGUIAR, Melnia Silva de. A Trajetria Potica de Cludio Manuel

    da Costa. In: PROENA FILHO, Domcio (org.). Op. cit., p. 27-39. 4 Cf. AGUIAR, Melnia Silva de. Op. cit., p. 36-39. 5 COSTA, Cludio Manuel da. Vila Rica. Ouro Preto: Tipografia do Universal, 1839. 6 Cf. IHGB, lata 142, doc. 17. Apud LOPES, Hlio. Op. cit., p. 9. 7 No perodo colonial, a cpia manuscrita uma forma de publicao, por isso, indito aqui se refere ao fato de

    o poema no ter sido impresso, pois entendo que de certa maneira ele foi publicado, ao serem feitas cpias

    manuscritas que circularam entre leitores selecionados pelo poeta e, depois, difundidas por estes a outros. Sobre

    a circulao desses manuscritos nas Minas, o trabalho de Adriana Romeiro esclarece que tal fato se deu desde o

    incio do sculo XVIII, por exemplo, com os manuscritos do Padre Antnio Viera, que so lidos por Pedro de

    Rates Henequim. Cf. ROMEIRO, Adriana. Um Visionrio na Corte de D. Joo V: revolta e milenarismo nas

    Minas Gerais. Tese (Doutorado em Histria) IFCH-UNICAMP, Campinas (SP), 1996, passim; Vide ainda

    sobre a circulao dos manuscritos no Estado do Brasil a pesquisa de John Monteiro. Cf. MONTEIRO, John M.

    Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Tese (Livre Docncia em

    Antropologia) IFCH-UNICAMP, Campinas (SP), 2001, p. 24-25; 44; 98; 150.

  • 14

    Obras, impressas em 17688.

    A segunda edio do poema impressa somente cinqenta e oito anos depois da

    primeira, em 1897, em folhetim e em livro, pelo jornal O Estado de Minas. Essa segunda

    edio foi declaradamente baseada na montagem tipogrfica de Ouro Preto9.

    A terceira edio publicada logo depois, em 1903, no conjunto de dois tomos das

    Obras Completas de Cludio Manuel da Costa, preparados por Joo Ribeiro para a editora

    Garnier, conferindo ao poema Vila Rica um lugar junto s outras obras do poeta10

    ,

    notavelmente muito mais conhecidas e reconhecidas, como A Fbula do Ribeiro do Carmo.

    Em 1957, foi publicada uma quarta edio no Anurio do Museu da Inconfidncia,

    fundamentada diretamente na primeira edio de Ouro Preto11

    .

    Pouco tempo depois, em 1969, Augusto de Lima Jnior publica a quinta edio,

    baseada, segundo ele, num manuscrito autgrafo herdado de seu pai, que o ganhara de um

    arcebispo da Cidade de Mariana12

    . Essa edio, portanto, uma segunda verso, com

    diferenas textuais considerveis em relao s edies anteriores. Este era o status das

    publicaes do poema at o abrangente estudo de Hlio Lopes intitulado Introduo ao

    poema Vila Rica, em 1985. Por haver tantas edies e verses, Lopes escreve este trabalho

    confrontando as edies existentes com os manuscritos encontrados por ele no Brasil.

    Ainda era preciso o estabelecimento de uma edio crtica da obra por meio de um

    extenso trabalho de pesquisa de campo que comparasse todos os manuscritos encontrados

    com todas as edies publicadas, recompondo palavras, versos perdidos, sanando equvocos e

    anulando diferenas etc. Essa pesquisa com a elaborao da edio crtica foi realizada por

    Melnia Silva de Aguiar, mas permanece indita. Entretanto, foi includa no volume A Poesia

    dos Inconfidentes, da editora Nova Aguilar, em 1996, uma nova verso baseada nessa edio

    crtica, constituindo a sexta e ltima edio do poema13

    .

    Foi usado o manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa como texto-base

    para o estabelecimento crtico do texto da sexta edio, comparando-o com mais outros dez

    manuscritos e as edies anteriores. Este manuscrito tinha sido dedicado por Cludio ao

    8 COSTA, Cludio Manuel da. Obras de Cludio Manuel da Costa, rcade Ultramarino, chamado Glauceste

    Satrnio. Coimbra: Officina de Luiz Secco Ferreira, 1768. 9 Idem. Vila Rica. 2.a ed. Ouro Preto: Tipografia do estado de Minas, 1897. 10 Idem. Vila Rica. 3.a ed. In: Obras poticas. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903, tomo II, p. 145-278. 11 Idem. Vila Rica. 4.a ed. In: ANURIO DO MUSEU DA INCONFIDNCIA. Ouro Preto: [s.n.], 1957, vol.

    IV, p. 113-97. 12 Idem. Vila Rica. 5.a ed. (Edio de Augusto de Lima Jnior). In: LIMA JNIOR, Augusto de. Cludio

    Manoel da Costa e seu poema Vila Rica. [Belo Horizonte], Imprensa Oficial, 1969. 13 Idem. Vila Rica. 6.a ed. In: PROENA FILHO, Domcio (org.). Op. cit., p. 355-446.

  • 15

    Conde de Cavaleiros e tem a particularidade de incluir oitenta e quatro novos versos no

    Canto V, no encontrados noutros manuscritos. Segundo Melnia Silva de Aguiar, esses

    novos versos so claramente partes do poema, no se tratando de uma insero apcrifa

    nesse manuscrito, mas provavelmente de uma excluso que Cludio fez posteriormente nos

    outros manuscritos, para evitar a identificao dos religiosos envolvidos no episdio da

    Guerra dos Emboabas14

    . Essa edio da Nova Aguilar , portanto, a mais indicada para ser o

    eixo do nosso exerccio de leitura, que pretende reconstituir, mesmo que precariamente, as

    diversas linhas discursivas que condicionaram a inveno pica do Vila Rica, cruzando o

    discurso potico-retrico com outros, como o teolgico-poltico15

    .

    Evidentemente, percebe-se que a questo da recepo crtica do poema enlaa-se com

    essas questes filolgicas, pois, de 1839 at 1969, ou seja, por aproximadamente 130 anos, os

    crticos dispuseram de uma nica verso do texto, reeditada quatro vezes. A partir de 1969 at

    1996, os leitores puderam ter acesso a duas verses. Todas essas edies possuam muitas

    variaes e, provavelmente, muitas falhas16

    . Acredito, como exps Manuel Rodrigues Lapa

    no seu artigo Os Versos Anarquistas do Vila Rica17

    , que os primeiros grandes crticos se

    deixaram levar em parte pelas imperfeies e lacunas dessas edies, desconsiderando a

    especificidade filolgica, numa leitura entendida aqui como desvalorizadora do poema.

    Depois de 1996, alm dos manuscritos, temos acesso a trs verses da obra, em seis

    edies. A terceira e ltima verso, correspondente sexta edio, particularmente a mais

    cuidadosa, com o trabalho de pesquisa de crtica textual exposto, com referncias a todas as

    outras verses e manuscritos, reconstituies e correes, apontamentos e notas.

    14 Acredita-se que por isso que esse manuscrito seja a cpia mais antiga do poema encontrada at o presente. Cf.

    AGUIAR, Melnia Silva de. Op. cit., p. 25-38; p.1079, nota 1. 15 Esta ltima linha discursiva se d pela considerao de que os letrados do Estado do Brasil obedeciam

    poltica portuguesa mercantilista e escravista, justificada pela expanso da F catlica e pelo reconhecimento do

    direito do Rei portugus de dispor das riquezas de suas colnias, aplicando a razo de Estado. Sobre essa

    funcionalidade da teologia-poltica aliada retrica-potica, em prticas mimticas de representao relativas

    racionalidade de Corte do Imprio de Portugal, constitui-se como obra fundamental de referncia, A Stira e o

    Engenho, de Joo Adolfo Hansen, 2.a edio de 2004, livro que rene e ata os conceitos poticos engenhosos

    aplicados s letras no sculo XVII, num exame amplo e aplicadssimo das stiras atribudas ao poeta Gregrio de

    Matos e Guerra. Os diversos conceitos desenvolvidos e demonstrados nessa obra fundamentam esta pesquisa,

    que pressupe certa continuidade e adaptao de articulaes, formas e preceitos das letras do sculo XVII no

    XVIII, seqenciao que vem a ser desfeita lentamente, somente no sculo XIX; Outro texto importante do autor

    Barroco, neobarroco e outras runas, publicado na revista Teresa, em 2001; Cf. tambm TORGAL, Lus

    Reis. Introduo In: BOTERO, Joo. Da Razo de Estado. Coordenao e introduo de Lus Reis Torgal.

    Traduo de Raffaella Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigao Cientfica Centro de

    Histria da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992, p. 2-3. 16 Veja-se o estudo das variaes de termos e palavras no Fundamento Histrico do poema, analisado por

    Brbara Fadel. Cf. FADEL, Brbara. Cludio Manoel da Costa e o Fundamento Histrico ao Poema Vila Rica.

    Dissertao (Mestrado em Histria) UNESP, Franca (SP), 1985. 17 Cf. LAPA, Manuel Rodrigues. Op. cit.

  • 16

    Figura 1. Capa de um dos manuscritos do poema Vila Rica. BNRJ.

    Podemos pautar esta pesquisa pela sexta e ltima edio com at certa serenidade, pois

    o objetivo aqui no o de estabelecer as caractersticas da crtica textual, visto que isso j foi

    feito, mas essencialmente ler as particularidades dos procedimentos de inveno retrico-

    poticos aplicados nesta forma pica luz das preceptivas utilizadas no sculo XVIII, como

    uma prtica de representao18

    , alm de dispor os critrios de juzo de valor adotados pelos

    seus receptores, historiadores e crticos literrios dos sculos XIX e XX.

    Deste modo, nesta anlise, importante a investigao da forma retrico-potica do

    18 Hansen pensa a categoria de representao segundo quatro articulaes simultneas e integradas: Na

    sociedade luso-brasileira do sculo XVII, a identidade definida como representao uma forma especfica da

    posio e pela representao uma ocasio de sua aplicao como aparncia decorosa subordinada no corpo

    mstico do Imprio Portugus. Por representao, no caso, entendo quatro coisas: 1. O uso particular, em

    situao, de signos no lugar de outra coisa. Nas representaes luso-brasileiras do sculo XVII, os signos so

    recortados em uma matria qualquer como imagens de conceitos produzidos na substncia espiritual da alma

    participada pela substncia metafsica de Deus. 2. A aparncia ou a presena da coisa ausente produzida na

    substituio. 3. A forma retrico-potica da presena da ausncia. 4. A posio hierrquica encenada na forma

    como tenso e conflito de representaes. Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Barroco, neobarroco e outras runas.

    Teresa: revista de Literatura Brasileira, So Paulo, n. 2, p. 11-12, nota 2, 2001, grifo do autor; No sculo XVIII,

    supondo-se a durao dessas articulaes e a mudana dos lugares da enunciao, a poesia encomistica

    evidencia essas quatro articulaes. A pica, por sua vez, pressupe a matria histrica. Segundo Castelvetro,

    tratando da epopia, a histria coisa representada e a poesia, coisa representante. Essa matria histrica

    representada est estilizada no pico representante. Nele, a histria melhorada, sutilizada, sublimada livre das

    imperfeies. O leitor l, na forma pica, a referncia histrica estilizada. Ela est presente na estilizao, como

    efeito potico; mas estar ausente como matria histrica bruta, sem estilizao. No Vila Rica, tudo calculado e

    disposto como um palco dessa estilizao, elogiando a hierarquia estabelecida, coisa representada, que reconhece

    a si prpria nessa pica, coisa representante. Cf. CASTELVETRO, Lodovico. Poetica dAristotele Vulgarizzata

    e Sposta. A cura di Werther Romani. Roma-Bari: Gius. Laterza & Figli, 1978, 2 v., I, p.44.

  • 17

    gnero pico exercitado na elaborao da escrita, considerando as prticas de representao

    em que fundamentado, na tentativa de reconstituio das preceptivas de inveno seguidas

    pelos homens de letras portugueses no sculo XVIII. Ao realizar a emulao19

    de seus

    predecessores picos, deparamos com tpicos aplicados edificao da histria20

    com uma

    lgica mtica prpria, entendida como ornamento do maravilhoso, no gnero pico,

    compreendendo esse processo de mitificao da histria como mitopotico porque se d

    segundo as regras da potica antiga, sobretudo a aristotlica.

    Considera-se tambm o pensamento exercitado nesse mundo colonial catlico, que

    acreditava na realidade histrica como uma allegoria in factis do reino de Deus, seguindo a

    doutrina de Santo Toms de Aquino que pregava a semelhana de todos os seres como seres

    criados por Deus21

    . A prpria poltica do reino de Portugal entendida como um reflexo da

    vontade divina, aliando-se teologia. Por constituir parte inseparvel do pensamento

    escolstico dos bacharis formados nas universidades portuguesas, essa teologia-poltica

    orienta a inveno das letras, representando personagens histricos no gnero pico como

    encenao de uma maneira de agir adequada ao decoro da razo de Estado portuguesa, numa

    tica poltica que disciplina os movimentos do corpo para uma moral catlica. No poema Vila

    Rica, a encenao de um heri que representa o prprio El-Rei faz necessria a adequao do

    discurso pico ao decoro externo da recepo com essa tica poltica exercitada na razo de

    19 importante definir aqui o conceito de emulao. A distino entre emulao e imitao foi elaborada por

    Joo Adolfo Hansen, a partir da leitura de Pallavicino; Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Ler e ver: modelos

    emblemticos da representao luso-brasileira no sculo XVII. In: SEXTO CONGRESSO DA ASSOCIAO

    INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. AIL, 1999. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2007; Cf. Tambm HANSEN, Joo Adolfo. Barroco, neobarroco e

    outras runas. Op. cit., p. 45-6; A emulao a imitao que se d como exerccio potico, na reescrita e

    reelaborao dos antigos, no plgio, mas pela admirao, diferencia-se. Pois a emulao, sentimento decente,

    no a desprezvel inveja, como anotado na Retrica, de Aristteles; Cf. ARISTTELES. Arte Retrica e Arte

    Potica. Traduo de Antnio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro/ So Paulo: Ediouro Publicaes, [s.d.], p. 125;

    Segundo Pallavicino, emular procurar conseguir com outros modos nos nimos dos leitores um semelhante,

    ou maior prazer do que aquele, que alcanaram os outros escritores emulados. , portanto, alcanar o mesmo

    efeito, dizendo outra coisa. Difere-se do roubo e da imitao, pois o roubo dizer a mesma coisa e a imitao

    simples dizer outra coisa sobre o mesmo. Cf. PALLAVICINO, Sforza. ARTE Dello Stile, ove nel cercarsi

    lideal dello scrivere insegnativo. Discorresi partitamente devarij pregi dello stile s Latino, come Italiano.

    Composta dal P. Sforza Pallavicino Della Compagnia Di Gies. AllIllustriss. Sig. Il Sig. Co. FABIO Acquaviva

    Pico Della Mirandola. In Bologna: per Giacomo Monti, 1647. Con Licenza de Superiori, p. 112. 20 O uso do termo histria variar bastante nesse trabalho. Sempre que nos referirmos ao conceito de

    histria, como o exerccio de reconstruo da memria pelo homem, em geral, o termo ser definido. Ao passo

    que ao referirmos a uma verso dessa memria, o termo ser indefinido. O termo ainda aparecer como sinnimo

    de estria ou enredo. Esperamos que o sentido de cada uso fique esclarecido pelo contexto. 21 Cf. AQUINO, Santo Toms de. Summa Theologicae, p. I, q. 13, aa. 5, 6, 10 Apud. HANSEN, Joo Adolfo.

    Barroco, neobarroco e outras runas. Op. cit., p. 48; Veja-se ainda sobre a alegoria factual o texto Alegoria:

    construo e interpretao da metfora, SP, Atual, 1987 (2.a ed.) Apud PCORA, Alcir. Cames e Vieira: as

    Artes e os Feitos. Revista do IFAC. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, n. 2, p. 37, dez. 1995.

  • 18

    Estado, justificando a piedade de sua ao pela moral catlica verossimilmente comparada

    de seus pares, os nobres da Corte de Portugal. Para efetivar essa poltica, D. Joo V., o

    Magnnimo, nomeia Antnio de Albuquerque Coelho de Carvalho como Governador da

    Repartio do Sul do Estado do Brasil, com a patente de Capito-General ad-honorem22

    .

    A ao de pacificar o territrio das Minas Gerais, representada como pica na piedade

    da moral crist do heri Antnio de Albuquerque, torna-se um marco significativo que

    estabelece a ordem da civilizao, enfrentando a rusticidade da natureza da regio e, ao

    mesmo tempo, lutando contra os rebelados emboabas23

    . Estes foram os primeiros habitantes

    colonizadores na regio, uma terra desconsiderada na ocupao do territrio do Estado do

    Brasil at aquele momento, o final do sculo XVII.

    Antnio de Albuquerque organiza e submete autoridade real esses primeiros

    colonizadores das Minas, figurados no Fundamento Histrico do poema como sediciosos em

    confronto com o grupo dos paulistas pelo reconhecimento do direito de ocupar e explorar as

    riquezas das Minas Gerais. Pela representao hierrquica de administradores da sociedade

    aristocrtica portuguesa, destitui a aspirao de Manuel Nunes Viana de estabelecer uma

    liderana poltica e de ser reconhecido como Governador:

    Fazendo, porm, justia, certo que entre os rebeldes e levantados daquele

    tempo, tinha melhor ndole que todos o suposto Governador Manuel Nunes

    Viana: no consta que cometesse, por si ou por algum de seus confidentes,

    positivamente ao alguma nociva ao prximo; desejava reger com

    igualdade o desordenado corpo que lhe ajuntara; acolhia afavelmente a uns e

    outros; socorria-os com os seus cabedais; apaziguava-os, compunha-os, e os

    serenava com bastante prudncia; ardia porm por ser Governador das Minas

    e, se tivesse letras, se podia dizer que trazia em lembrana a mxima de

    Csar Si violandum est jus, regnandi gratia violandum est24.

    22 Cf. SUANNES, S. Os Emboabas. So Paulo: Brasiliense, 1962, p. 260. 23 Charles Boxer relata em nota que as vrias significaes do termo emboaba so discutidas por Taunay, na

    sua Histria Geral, vol. 9, p. 475-478. Boxer destaca as fontes do sculo XVIII que definem emboaba como

    significando um pssaro de pernas emplumadas, da ser o termo aplicado como zombaria aos recm-chegados da

    Europa e do litoral, que usavam coberturas protetoras para pernas e ps, ao contrrio dos paulistas, que andavam

    descalos e de pernas nuas pelo matagal. Cf. BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de

    Crescimento de uma Sociedade Colonial. Traduo de Nair de Lacerda; prefcio terceira edio de Arno

    Wehling; prefcio primeira edio de Carlos Rizzini. 3.a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 105; O

    Professor Eduardo de Almeida Navarro, porm, explica que o termo emboaba significava mo peluda, como

    eram chamados os portugueses pelos ndios, palavra formada a partir dos vocbulos tupis mb- (mo) e ab-

    (peludo). Cf. NAVARRO, Eduardo de Almeida. Mtodo Moderno de Tupi Antigo. 2.a ed. Petrpolis: Vozes,

    1999, p. 492; A propsito, John Monteiro lembra o documento Relao de um Morador de Mariana, onde se

    relata que os paulistas apelidam os reinis de emboabas por desprezo, que na sua lngua quer dizer galinhas

    caludas, o que imitavam pelos cales que usavam de rolos, Cf. CCM, 1999 [1752], 1:206 Apud MONTEIRO,

    John M. Op., cit., p. 109-110. A dvida permanece e importante porque deixa em aberto a existncia, ou no,

    de um tratamento depreciativo dos paulistas contra os forasteiros nesse primeiro episdio da histria das Minas. 24 [Se as leis devem ser violadas, o direito de governar deve ser violado]; COSTA, Cludio Manuel da.

    Fundamento Histrico. Op. cit., p. 370.

  • 19

    Por isso, a ao de pacificao do Governador Albuquerque foi decisiva no

    estabelecimento de um processo colonizador nessa sociedade, visando manter o controle no

    vasto territrio, ameaado pela suposta apropriao indevida do governo por Manuel Nunes

    Viana. Nessas novas faixas territoriais de ocupao, Antnio de Albuquerque Coelho de

    Carvalho institui a normalidade da lei, garantindo o benefcio da taxao da explorao dos

    metais para a Coroa portuguesa.

    Vale ponderar que estudar essas letras desse passado colonial em sua constituio

    especfica, recompondo sua prpria lgica de representao e interpretao, uma tarefa de se

    aventurar num mundo desconhecido, no mais existente, mas fascinante. Escrever sobre o

    passado sempre um anacronismo, devido impossibilidade da comprovao emprica da

    prpria hermenutica precria inventada por nosso discurso, ao tentar tratar a histria

    historicamente, eliminando, no possvel, os universalismos, apartando-se de constantes

    transistricas que conduzem a descobrir o Mesmo de um arqutipo em todos os tempos 25

    .

    Isso pressupe observar essas letras como runas do passado com a lupa embaada de

    sua poca, reinventando sua especificidade. O trabalho do crtico, nessa perspectiva,

    aproxima-se do trabalho do arquelogo, numa tentativa de recomposio precria de

    fragmentos do passado que estruturam essas representaes; ou seja, um trabalho de

    pesquisa do primeiro critrio normativo de legibilidade dessas letras, fundamentado sob

    preceitos de gneros, obedecendo s estruturas particulares do pico e das variaes deste.

    O significado da palavra epopia e sua suposta frmula ocidental codificada na matriz

    do gnero pico abrangem atualmente diversas composies e construes simblicas letradas

    mais extensas do que estabelece o significado original de sua raiz grega epos, que denota

    simplesmente o ato de narrar.

    Atualmente, h dois pontos de vista clebres sobre o conceito de epopia. O

    primeiro a define como resultado da tradio oral transmissora de conhecimentos codificados

    numa narrao mitolgica, seguindo o conceito aristotlico de mmesis (). Isso se daria

    num mundo da oralidade que ainda ignora a escrita, mas, assim que a descobre, documenta

    suas representaes. Esse primeiro conceito de epopia generalizante e universalista,

    adotando obras das mais diversas do engenho humano, entendidas como herana da

    construo de uma coletividade pela transmisso oral mitopotica26

    dos feitos de seus

    25 HANSEN, Joo Adolfo. Op. cit., p. 25. 26 Entendendo o conceito de mitopoesis como a relao ntima entre as correspondncias alegricas do real e ao

    prprio processo mimtico para compor os mitos que explicam essa mesma realidade, renomeando o conceito de

  • 20

    antepassados. Nessa viso, o mito o causador da histria. Retomando o texto bblico de

    Gnesis, se Deus cria o mundo pelo lgos (), pela palavra, sem dvida o ritmo aplicado

    a esse lgos foi o pico, ou em outras palavras, o epos (), a poesia, o princpio

    organizador do lgos, da histria, na inveno do mythos (), mito, que explica e

    constitui a prpria histria27

    . Nessa concepo, a poesia pica, em chave antropolgica, a

    detentora da funo social de repassar valores e crenas, consolidando as ligaes simblicas

    entre os membros de uma comunidade antiga, primeva expresso cultural coletiva desta:

    Em seguida vem a epopia e seus cantores. Ela substitui toda a Histria e

    boa parte da revelao como expresso vital nacional e como testemunho de

    primeira categoria, das necessidades e capacidade de um povo de

    contemplar-se e representar-se por meio da tipificao28

    .

    Assim, essas epopias so classificadas tambm como primitivas, pois expressam as

    primeiras representaes de uma sociedade, como gnero do discurso primrio, definido por

    tipos do dilogo oral, como entende Bakhtin29

    . Podemos dizer que, numa obra pica desse

    tipo, existe uma relao fundamental entre a ao e o discurso oral, entre o drama () e o

    lgos, determinando a unidade potica, implicando a plausibilidade ou verossimilhana do

    discurso oral com a ao do heri.

    Homero nesta tradio apenas o aedo que teria cantado a verso final da Ilada e da

    Odissia, constituda coletivamente, materializada por um annimo num escrito30

    . Nesta

    perspectiva, podem-se incluir ainda, alm da Ilada e da Odissia, o Gilgamesh babilnico31

    ,

    os escritos bblicos, o Mahabharata e o Ramayana indianos32

    , O Poema ou Cantar de mio

    Cid33

    , o pico alemo Nibelungenlied34

    , e ainda o pico do Rei Gesar35

    , representativo desse

    cosmopeia, de Thomas Blackwell. Cf. LACERDA, Sonia. Metamorfoses de Homero: Histria e antropologia

    na crtica setecentista da poesia pica. Braslia: UnB, 2003, p. 205. 27 oportuno lembrar aqui que no sculo XVII o escritor ingls John Milton escolhe a forma pica para compor

    a sua obra prima Paradise Lost. Cf. MILTON, John. Paradise Lost. [1667]. London: Penguin Books, 1996. 28 BURCKHARDT, Jacob. Reflexes sobre a Histria. Traduo de Leo Gilson Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,

    1961, p. 76. 29 BAKHTIN, Mikhail. Os gneros do discurso. In: Esttica da criao verbal. 4.a ed. So Paulo: Martins

    Fontes, 2001, p. 285. 30 Cf. PESSANHA, Nely Maria. Caractersticas bsicas da epopia clssica. In: APPEL, Myrna Bier;

    GOETTEMS, Miriam Barcellos (orgs.). As Formas do pico: da epopia snscrita telenovela. Porto Alegre:

    Movimento, 1992, p. 30. 31 Cf. GEORGE, Andrew. Introduction. In: THE EPIC of Gilgamesh: The Babylonian Epic poem and the

    Other Texts in Akkadian and Sumerian. Translated with an introduction by Andrew George. London: Penguin

    Books, 2003, p. XIII-LII. 32 Cf. FONSECA, Carlos Alberto da. A Literatura pica Snscrita. In: APPEL, Myrna Bier; GOETTEMS,

    Miriam Barcellos (orgs.). Op. cit., p. 22. 33 POEMA de mio Cid. Edicin de Colin Smith. 19.a ed. revisada. Madrid: Ed. Catedra, 1994. 34 BATTS, Michael S. (org.). Das Nibelungenlied. [1190?-1200?]. Tubingen: Max Niemeyer, 1971. 35 GESAR. Lpope tibtaine de Gesar dans sa version lamaque de Ling. Paris: PUF, [19--].

  • 21

    processo de construo coletiva atual, at hoje em transformao, com vrias verses,

    encontrvel em diversas regies do Tibete36

    .

    Mas, o que poderia aproximar obras to diversas quanto o Gilgamesh e a Odissia?

    Examinando poemas to distintos, resultantes de culturas to distanciadas na lngua, no

    espao e no tempo, muitos encontraram semelhanas e paralelos, propondo uma

    universalidade da epopia como expresso primitiva que celebra as faanhas dos antepassados

    de um povo, narrando guerras, traies e lutas internas pela honra de seus heris mortos e

    usando, s vezes, um discurso que apresenta um sistema especfico de ritmo37

    . Nessa

    perspectiva, George Dumzil e Jean-Pierre Vernant, entre outros, estudaram as epopias,

    especialmente as primitivas como o Mahabharata, a Odissia e outras, aplicando a anlise

    mitolgica, propondo a recorrncia de trs traos delineadores caractersticos ou funes

    nas sociedades dos povos indo-europeus, a saber: soberania, fora e fecundidade38

    .

    Esse primeiro critrio exclui as obras inventadas deliberadamente por algum que no

    mais canta, porm escreve os fatos narrados em longos poemas, emulando os textos picos

    anteriores, considerando ainda as obras que tratam da prpria composio do gnero,

    atribuindo intencionalmente caractersticas mticas narrao como ornamentao potica,

    como a Eneida, a Farslia, o Orlando Furioso, a Jerusalm Libertada, o Paraso Perdido, Os

    Lusadas, e tantos outros, que emulam o costume da potica aristotlico-horaciana. Este um

    segundo conceito de epopia, no qual o epos no mais o princpio organizador do lgos na

    inveno do mythos, mas, pelo contrrio, o lgos, entendido como discurso histrico, passa a

    determinar a condio do epos, a forma potica. Ao contrrio da primeira concepo de

    epopia, a relao simblica se inverte e particulariza-se, pois uma histria passa a ser a

    causadora de um mito, na inveno mimtica emuladora dos mythoi anteriores. Deste modo,

    por meio da perpetuao da memria do discurso pico na forma escrita, no labor do vate, os

    feitos do heri so imortalizados para todas as geraes vindouras, como escreveram

    magnificamente Lucano, nos versos de sua Farslia, e Cames, nOs Lusadas:

    36 Cf. STEIN, Rolf Alfred. Recherches sur lpope et le barde au Tibet. Paris: PUF, 1959 ; Cf. GESAR.

    Lpope tibtaine de Gesar dans sa version lamaque de Ling. Paris: PUF, [19--]. 37 Cf. SMITH, Colin. El Espritu de la pica. In: POEMA de mio Cid. Op. cit., p. 17-18; Cf. PACHECO, Jos

    Maria Valverde; RIQUER, Martn de. La pica Medieval: Universalidad de la Epopeya. Disponvel em:

    . Acesso em: 27 fev. 2005. 38 Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Notas sobre o gnero pico. So Paulo: 2007, indito, p. 17-20; O autor cita,

    dentre outros, DUMZIL, Georges. Mito y Epopeia. In: El Destino del Guerrero. Mxico: Siglo Veinteuno,

    1971, p. 22; p. 99; e VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pense grecque. Paris: PUF, 1969, p. 23-24 e p.

    26. Cf. tambm DUMZIL, Georges. Mythe et pope I: Lidologie des trois fonctions dans les popes des

    peuples indo-europens. Paris: Gallimard, 1968.

  • 22

    sagrado e magnfico labor dos vates! Tudo

    arrebatas do destino e ds s gentes mortais a imortalidade.

    No te deixes enganar, Csar, pela inveja do que a fama consagrou.

    Pois, se lcito fazer alguma promessa s musas latinas,

    enquanto durar todo o tempo da glria do poeta de Esmirna,

    os vindouros o lero nos meus versos. Nossa Farslia

    viver e os que viro no nos condenaro s trevas39

    .

    E tambm as memrias gloriosas

    Daqueles reis que foram dilatando

    A F, o Imprio, e as terras viciosas

    De frica e de sia andaram devastando,

    E aqueles que por obras valerosas

    Se vo da lei da morte libertando:

    Cantando espalharei por toda parte,

    Se a tanto me ajudar o engenho e a arte40

    .

    (Os Lusadas. Canto I, vv. 9-16.)

    Nessa viso, a pica pode ser entendida como a substncia da vida espiritual de um

    povo que assume sua forma mais duradoura, eterna e especfica nas palavras de seus

    grandes poetas e pensadores41

    . As epopias pensadas nessa concepo so classificadas

    como secundrias, pois se efetivam pelo uso da escrita, como um modelo do discurso

    secundrio absorvem e transmutam os gneros primrios (simples) de todas as espcies42

    .

    Este segundo conceito de epopia o aplicado s letras picas dos sculos XVI ao XVIII,

    numa prtica de representao consolidada exemplarmente no chamado Siglo de Oro, no

    mundo hispano-colonial, onde podemos observar inumerveis edies, tradues e invenes

    de poemas picos43

    . Essa prtica reconhece as autoridades precedentes e segue as preceptivas

    determinadas nas retricas e nas artes poticas que regulam os procedimentos de inveno das

    39 o sacer et magnus uatum labor! omnia fato/ eripis et populis donas mortalibus aeuum./ inuidia sacrae, Caesar,

    ne tangere famae;/ nam, siquid Latiis fas est promittere Musis,/ quantum Zmyrnaei durabunt uatis honores,/

    uenturi me teque legent; Pharsalia nostra/ uiuet, et a nullo tenebris damnabimur aeuo. (Farslia. Canto IX,

    vv.980-6). Cf. LUCANO, Marco Anneo. Farsalia. Introduccin, Traduccin y notas de Antonio Holgado

    Redondo. Madrid, Espana: Editorial Gredos, 1984, p. 480; Cf. LVCANI, M. A. Pharsalia. Disponvel em:

    . Acesso em: 02 abr. 2005. Nestes versos

    justificada a escolha do ttulo do poema de Farslia, visto que o ttulo realmente empregado pelo poeta foi De

    Bello Civili [A Guerra Civil]; Cf. LUCAN. The Civil War. (Pharsalia). Cambridge, Massachusetts: Harvard

    University Press/ London: William Heinemann, [19--], p. 2-3. (Edio bilnge: Latim; Ingls). 40 CAMES, Lus de. Os Lusadas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1990, p. 29. 41 Cf. BURCKHARDT, Jacob. Op. cit., p. 63. 42 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Op. cit., p. 281. 43 Cf. PIERCE, Frank. La Poesia pica del Siglo de Oro. [Spanish Epic Poetry of the Golden Age]. Segunda

    Edicin Revisada y Aumentada. Versin Espaola de J. C. Cayol de Bethencourt. Madrid: Editorial Gredos,

    1968; Nesta obra, no Apndice A, Pierce enumera mais de 200 ttulos de epopias espanholas elaboradas

    principalmente entre os sculos XVI e XVII, na Espanha e na Amrica. No apndice B, elenca dezenas de

    tradues espanholas de epopias, desde obras antigas, como as de Virglio, Homero e Lucano, at obras mais

    recentes, por assim dizer, como as de Sannazaro, Cames, Tasso etc. No seu Apndice C, Pierce demonstra

    que essas epopias continuaram sendo reeditadas inumerveis vezes durante os sculos XVIII e XIX, como a

    Araucana, reeditada quinze vezes, e a Christiada, reeditada seis vezes, entre outras.

  • 23

    epopias, estruturando-as segundo as convenincias do gnero, como a Arte Potica, Arte

    Retrica e o Organum, de Aristteles, passando pela Epistula ad Pisones, de Horcio, a de

    autoria desconhecida De Ratione Dicendi ad C. Herennium, o De Inventione, de Ccero etc.;

    considerando na poesia do sculo XVIII na Europa, as modernas Lart Potique, de Boileau,

    La potica o reglas de la poesia em general y de sus principales espcies, de Luzn, a Arte

    Potica, de Francisco Jos Freire etc.; os estudos sobre poticas, como o Della Perfetta

    Poesia Italiana, de Muratori, o Discorsi dellarte poetica ed in particolare sopra il poema

    eroico, de Torquato Tasso, o Essai sur la Posie pique, de Voltaire etc. Alm disso, so

    considerados como modelos dessa poesia muitos picos, como Os Lusadas, de Cames, a

    Ulissia, de Gabriel Pereira de Castro, a Eneida, de Virglio, a Farslia, de Lucano, La

    Henriade, de Voltaire, a Jerusalm Libertada, de Torquato Tasso etc.; e ainda, obras

    histricas como, no caso particular de Cludio Manuel da Costa, a Monarchia Indiana, de

    Juan de Torquemada e a Historia de la conquista de Mexico, de Antonio de Solis etc.

    Observando-se apenas esses dois conceitos tradicionais de epopia, so consideradas

    obras picas uma grande coleo de escritos de diversas civilizaes, em diversas lnguas,

    variantes no tempo e no espao, que demandam estudos e cruzam discursos de literatura,

    antropologia, sociologia, teologia, filosofia, retrica, direito, poltica, geografia, mitologia,

    histria etc., de omni re scibili, implicando a necessidade de limitar a abrangncia do conceito

    de gnero pico para o estudo do poema Vila Rica.

    Dessa maneira, analisar uma obra que segue essa prtica de representao codificada

    como pica, ligada continuidade dos exerccios de pronunciao das epopias milenares,

    cristalizadas na escrita, exige serenidade diante da impossibilidade da leitura e considerao

    de tudo impresso e disperso pelo orbe a respeito do gnero, em suas mltiplas definies e em

    aspectos to amplos quanto s prprias cincias humanas. Convm nortear este trabalho pelas

    preceptivas seguidas no poema, destituindo a possibilidade de leituras estticas da expresso

    de sujeitos que, na verdade, apenas aplicam o artifcio de uma tcnica mimtica desde a

    Potica, de Aristteles.

    O Vila Rica no um poema de composio oral, como, por exemplo, a Teogonia,

    resultante da aglutinao de fbulas e relatos histricos numa construo coletiva primitiva,

    codificados pelo pensamento mtico explica a natureza e a si prprio atravs de seus prprios

  • 24

    termos44

    . No o caso de um pico primevo que almeja instituir os supostos fundamentos da

    condio humana, como poderia ser lido nOs trabalhos e os Dias, de Hesodo45

    . Tambm

    no fruto da angstia de um sujeito patritico e intelectual, consciente da sua inaptido para

    usar as frmulas das descries do locus amoenus da paisagem arcdica em face das speras e

    duras rochas mineiras, interpretao que se deve a no leitura da aplicao do topos do locus

    horrendus, no como antecipao romntica, mas como emulao artificiosa da poesia de

    Tasso e outros, como mostraremos mais adiante. Estas interpretaes so anacrnicas, pois

    aplicam valores ou categorias inexistentes no artifcio retrico-potico da inveno do poema.

    Vila Rica , antes de tudo, uma pica que segue o costume da escrita, como a Farslia ou a

    Eneida, imitando e combinando elementos dos modelos picos reconhecidos, sem perder suas

    especificidades46

    , inventando um discurso potico que possui seu estilo prprio:

    Antes que em fumo ou ar voe desfeito

    De tanta idia o quadro portentoso,

    Quer declarar em tudo o misterioso

    Teatro das imagens: vs agora

    Influ-me uma voz alta e sonora,

    Ninfas do ptrio Rio, com que eu possa

    Cantar na glria minha a glria vossa47

    .

    (Vila Rica. Canto VI, vv. 317-326.)

    Assim, este estilo produz uma fbula pica mitopotica, que entralha e celebra a

    histria, e glorifica o carter da ao nobre do heri, representante do poder da Corte

    portuguesa, num teatro das imagens, cantado pelo poeta com a alta e sonora voz que as suas

    ninfas do ptrio Rio lhe inspiram, invocao pica feita a partir de uma imagem metafrica

    camoniana48

    , convencional das condies de inveno dessa escrita, que se d pela elaborao

    de uma histria, emulada de modelos, e pela observao formal, no-pessoal, das

    particularidades da natureza local.

    44 Cf. TORRANO, Jaa. O Mundo como Funo das Musas. In: HESODO. Teogonia: A Origem dos Deuses.

    Traduo de Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 1995, p. 77. 45 Cf. LAFER, Mary de Camargo Neves. As duas lutas. In: HESODO. Os trabalhos e os dias. 4.a ed.

    Traduo, introduo e comentrios de Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Iluminuras, 2002, p. 53. 46 Cf. LEONI, G.D. Virglio no ambiente histrico e literrio de seu tempo. In: VIRGLIO. Eneida. Traduo

    de Manuel Odorico Mendes. So Paulo: Martin Claret, 2004, p. 44. 47 Todas as nossas citaes do poema Vila Rica se daro pela edio da editora Nova Aguilar: COSTA, Cludio

    Manuel da. Vila Rica. 6.a ed. Op. cit. 48 Ou seja, emulada conforme a invocao dOs Lusadas, de Cames: E vs, Tgides minhas, pois criado/

    Tendes em mi um novo engenho ardente,/ Se sempre, em verso humilde, celebrado/ Foi de mi vosso rio

    alegremente,/ Dai-me agora um som alto e sublimado,/ Um estilo grandloco e corrente,/ Por que de vossas guas

    Febo ordene/ Que no tenham inveja s de Hipocrene./ Dai-me uma fria grande e sonorosa,/ E no de agreste

    avena ou frauta ruda,/ Mas de tuba canora e belicosa,/ Que o peito acende e a cor ao gesto muda;/ Dai-me igual

    canto aos feitos da famosa/ Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,/ Que se espalhe e se cante no universo,/ Se to

    sublime preo cabe em verso. Cf. CAMES, Lus de. Os Lusadas. Op. cit. p. 30.

  • 25

    Figura 2. Frontispcio dOs Lusadas, de Luis de Cames.

    Lisboa: Antonio Galuez, 1572. (Ed. Ee).

  • 26

    1. AS MSCARAS DA RECEPO

    Qui legis ista, tuam reprehendo, si mea laudas omnia, stultitiam, si nihil, invidiam. Owen, Liv. I, ep. 3. Cit. por Cludio M. da Costa nas Obras.

  • 27

    1.1. Autocrtica pica ou a mscara recomendada

    A forma do gnero pico do Vila Rica foi comentada pelo prprio Cludio Manuel da

    Costa, no Prlogo, esclarecendo que no adotou para o poema a categoria de pico, mas

    preferiu design-lo apenas como uma composio em metro. Para ele, todos aqueles que se

    submeteram censura dos crticos, atribuindo a classificao de pico a seus poemas, foram

    censurados por algum erro ou defeitos e a razo disso a que estabeleceu um bom

    Autor49

    de que inventaram-se leis aonde as no havia 50

    . Esse bom Autor a quem o poeta

    se refere Voltaire, de onde retira o juzo de invenes de regras, no Essai sur la Posie

    pique: Sobrecarregaram quase todas as artes com prodigioso nmero de regras que, na

    maior parte, so inteis ou falsas51

    .

    Pode-se perceber nessas linhas do Prlogo, pela citao desta idia crtica de Voltaire,

    um primeiro passo de questionamento do juzo potico das letras na Capitania de Minas

    Gerais. No entanto, preciso compreender que, no sculo XVIII, o processo de inveno

    potica pensado retoricamente como estilo, ajustado em funo do conceito de

    verossimilhana, preferindo-se o verossmil crvel ao possvel incrvel52

    . Nesse perodo, o

    conceito de crtica entendido como uma atividade do juzo, predicado em termos de

    verdadeiro ou falso, segundo a teoria aristotlica do juzo como um ato da alma conforme

    uma doutrina da alma53

    , pensada na formao cultural dos letrados no sculo XVIII. Por

    isso, Voltaire conceitua que muitas das regras para as artes so falsas, cabendo ao letrado a

    busca das regras teis, verdadeiras e verossmeis na inveno de composies poticas.

    49 Autor significa nesse discurso uma auctoritas, uma autoridade, um exemplo ou modelo que podemos imitar,

    pois a noo de eurets (), auctoritas, codificado como sujeito criador, um primo inventore ou autoria, em

    uma publicao impressa, institucionalmente autorizada, inaplicvel para o sculo XVIII. Pois no existia neste

    tempo a noo de direitos autorais, de que uma elaborao intelectual, ou de conhecimentos tcnicos, deveria

    pressupor uma originalidade, criando uma obra artstica ou tecnolgica que pudesse ser entendida como a

    propriedade de um particular. Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Autor. In: JOBIM, Jos Lus (org.). Palavras da

    crtica: Tendncias e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 11-43. Apud VALLE,

    Ricardo Martins. A construo da Posteridade, ou A tradio para o Novo Mundo, ou A gnese como Runa.

    Dissertao (Mestrado em Literatura Brasileira) - USP, So Paulo, 2004, p. 38. Cf. tambm HANSEN, Joo

    Adolfo. Barroco, neobarroco e outras runas. Op. cit., p. 40-46. 50 COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. In: PROENA FILHO, DOMCIO. Op. cit., p. 359. 51 On a accabl presque tous les arts dun nombre prodigieux de rgles, dont la plupart sont inutiles ou fausses.

    Cf. VOLTAIRE [Franois Marie Arouet]. Essai sur la posie pique. In: Ouvres Compltes. Paris: Firmin-

    Didot Frres, 1834, tome X (La Henriade avec prfaces, avertissements, notes, etc. par M. Beuchot), p. 401. 52 Cf. ARISTTELES. Op. cit., p. 281. 53 Cf. VALLE, Ricardo Martins. A construo da posteridade ou A gnese como runa. Revista Usp (Dossi

    Brasil Colnia), So Paulo, n. 57, mar.-maio 2003, p. 109.

  • 28

    Tambm evidente no Prlogo a utilizao do topos da humildade54

    , aplicado

    retoricamente como captao de benevolncia55

    de seu leitor. O poeta no ostenta, nem espera

    ser reconhecido pela elaborao de uma epopia. O pico foi totalmente esquadrinhado,

    medido e regrado, impossibilitando que qualquer poeta conseguisse ou pretendesse alcanar a

    excelncia potica ou a perfeio, seguindo a todos os preceitos estabelecidos em todas as

    poticas. Tal fato seria impraticvel, pois naquele momento e lugar seria pretenso

    inadequada ao poeta querer exceder Homero, Virglio, Cames e Tasso, que, seguindo o

    julgamento austero dos preceptistas, no conseguiram atingir a perfeio.

    Portanto, no se espera que o pico de Cludio siga rigorosamente todas as

    convenes do gnero, encontradas nas artes poticas, lembrando as idias de Voltaire,

    filsofo que comea a questionar os preceitos rgidos dessas poticas e os duros comentrios

    realizados pelos historiadores56

    , como crtica das letras: H cem poticas contra um

    poema. (...) O mundo est repleto de crticos, que, pela fora de comentrios, definies,

    distines, so levados a obscurecer os conhecimentos mais claros e mais simples57

    .

    Dado o nmero de citaes e comentrios nas suas notas ao Vila Rica, aludindo a

    epopias e poticas, evidente que Cludio distingue os preceitos destas, aplicando ao seu

    poema. Entretanto, cobre-se com o manto crtico de Voltaire, que props uma nova

    interpretao dos conceitos, atualizao mal-compreendida. Para Cludio, a dificuldade de

    inventar uma epopia no se deve a uma suposta incompetncia de seu engenho, diante da

    inspita rispidez do clima mineiro, mas emulao do juzo de um letrado reconhecido. No

    caso de Voltaire, o labor da inveno pica no parece ser causado pela monotonia da

    Monarquia decadente da Frana, mas de uma posio terico-ideolgica singular de um

    pensador que ousava emular e reformular as idias. Para Voltaire, o pico, nele prprio, segue

    apenas uma regra verdadeira, de ser apenas uma narrativa em versos de aventuras hericas:

    54 Ernst Robert Curtius explica que um topos muito difundido a incapacidade de satisfazer s exigncias do

    assunto; um topos do panegrico: louvor dos antepassados e de seus feitos. Na Antiguidade colecionaram-se

    topoi. Cf. CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europia e Idade Mdia Latina. Traduo de Teodoro Cabral

    Paulo Roni. So Paulo: Hucitec/ Edusp, 1996, p. 108-109. 55 A captao de benevolncia (captatio benevolentiae) o procedimento retrico que consiste na tcnica de

    obter a benevolncia dos ouvintes logo no incio do discurso, o exrdio, tornando-os bem dispostos, favorveis

    ao discurso. Cf. TRINGALI, Dante. Introduo Retrica (A Retrica como crtica literria). So Paulo:

    Livraria Duas Cidades, 1988, p. 83. 56 Se que podemos chamar dessa maneira estes letrados que comentavam e enumeram as diversas poticas e

    obras letradas nos sculos XV ao XIX, ajuizando valores que variavam do gosto, passando pela prudncia

    aparentemente desinteressada at a simples citao tcita ou dissimuladamente potica. 57 Il y a cent potiques contre un pome. (...) Le monde est plein de critiques, qui, force de commentaires, de

    dfinitions, de distinctions, sont parvenus obscurcir les connaissances le plus claires et les plus simples. Cf.

    VOLTAIRE [Franois Marie Arouet]. Op. cit., p. 401.

  • 29

    Que a ao seja simples ou complexa; que ela se estenda por um ms ou por

    um ano, ou que dure mais tempo; que a cena seja fixada para uma direo,

    como na Ilada, que os heris viagem de mar em mar, como na Odissia;

    que seus heris sejam desafortunados, furiosos como Aquiles, ou piedosos

    como Enias; que haja um personagem principal ou vrios; que a ao se

    passe na terra ou no mar; sobre a chegada frica, como nOs Lusadas; na

    Amrica, como a Araucana; no Cu, no Inferno, sobre os limites de nosso

    mundo, como nO Paraso de Milton; isto no importa: o poema ser sempre

    um poema pico, um poema herico, a menos que algum encontre um novo

    ttulo proporcional ao seu mrito58

    .

    Decifrando estas linhas, no exatamente expressa uma idia de suspenso do uso dos

    preceitos do gnero pico, enquanto protocolos de escrita e leitura, mas sim a defesa de uma

    maior abertura na inveno potica. Os critrios retrico-poticos de entendimento

    permanecem como categorias vlidas de leitura, inveno e comparao: tipo de ao, lugar

    da ao, tipo de heri etc.59

    Os preceitos continuam teis, deleitveis e aplicveis ao poema

    pico. Cabe ao poeta discernir o modo mais conveniente de aplic-los, observando os decoros

    da matria histrica e do heri escolhidos, que definem a validade daquilo que falso, ou

    verdadeiro, para cada soluo discursiva adotada no gnero pico, mesmo as menos usuais,

    como os versos decasslabos de rimas emparelhadas, ou uma ao recente na histria como

    matria, ou a falta do maravilhoso etc.

    Contudo, Cludio mostra uma acentuada preocupao com a verdade histrica de seu

    relato, tomando o devido cuidado de indicar os fatos histricos, diferenciados dos que adapta

    ficcionalmente como parte de sua composio potica. Assim, acompanhando Voltaire,

    Cludio Manuel da Costa demonstra, atravs de suas notas e de seu Fundamento Histrico,

    que se empenhou nesta tarefa de elucidao da matria histrica adotada:

    Se eu fiz alguma diligncia por averiguar a verdade, digam-te as muitas

    Ordens e Leis que vs citadas nas minhas notas, e a extenso de notcias to

    individuais com que formei o plano desta obra: pode ser que algum as

    conteste pelo que tem lido nos escritores da Histria da Amrica; mas esses

    no tiveram tanto mo as concludentes provas de que eu me sirvo60

    ;

    Desta forma Cludio exalta solenemente no poema a ao prudente de pacificar um

    58 Que laction soit simple ou complexe; quelle sachve dans un mois ou dans une anne, ou quelle dure plus

    longtemps; que la scne soit fixe dans un seul endroit, comme dans lIliade; que le hros voyage de mers en

    mers, comme dans lOdysse; quil soit heurex ou infortun, furieux comme Achille, ou pieux comme ne;

    quil y ait un principal personage ou plusieurs; que laction se passe sur la terre ou sur la mer; sur le rivage

    dAfrique, comme dans la Lusiada; dans lAmerique, comme dans lAraucana; dans le ciel, dans lenfer, hors

    des limites de notre monde, comme dans le Paradis de Milton; il nimporte: le pome sera toujours un pome

    pique, un pome hroque, moins quon ne lui trouve un nouveau titre proportionn son mrite. Cf. Idem,

    p. 406. 59 Ainda que Voltaire tenha dito que os poetas picos so forados a escolher um heri conhecido, sob pena de

    seu poema jamais ser lido, justificando a escolha de Enias por Virglio; Cf. Ibidem, p. 428. 60 COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. Op. cit., p. 359.

  • 30

    povo rebelde, atravs de seu heri militar que instaura exemplarmente a Real Autoridade,

    evidenciando o carter memorialstico da composio. Seu objetivo exaltar a fundao de

    Vila Rica, deixando um legado para as futuras geraes, elucidando a histria de sua ptria, a

    Capitania de Minas Gerais, parte do Estado do Brasil, colnia do reino de Portugal:

    E se estas Minas, pelas riquezas que tm derramado por toda a Europa, e

    pelo muito que socorrem com a fadiga dos seus habitantes ao comrcio de

    todas as naes polidas, eram dignas de alguma lembrana na posteridade,

    desculpa o amor da Ptria, que me obrigou a tomar este empenho,

    conhecendo tanto a desigualdade das minhas foras. Estimarei ver elogiada

    por melhor pena uma terra que constitui hoje a mais importante Capitania

    dos domnios de Portugal61

    .

    O poeta prescreve o prprio procedimento de leitura que dever ser desempenhado

    pela recepo: dispensar o empenho do patriotismo gerado pelo pthos do amor para

    destacar a importncia da prpria Vila Rica pelo mrito de sua riqueza mineral. Vila que

    uma parte, metonimicamente representante do todo, o territrio das Minas Gerais, que possui

    a glria de ser a mais importante Capitania do reino de Portugal. Assim, alm de deleitvel,

    o poema til, pois promove politicamente a importncia econmica das Minas Gerais na

    hierarquia da razo de Estado. No podemos deixar de relacionar esta leitura de utilidade

    potica com o que diz Adam Smith em sua famosa obra A Riqueza das Naes, que nessa

    poca era difundida a idia de que a riqueza de um Estado dependia diretamente da

    acumulao de uma enorme quantidade de ouro e prata, fortalecendo o Real Errio, juzo

    fundamentador da economia poltica na Espanha e em Portugal, enquanto na Frana e na

    Inglaterra procurava-se uma nova fundamentao econmica para o Estado62

    . Preparando o

    caminho da recepo, Cludio pressupe o juzo discreto63

    do leitor, definido pela capacidade

    do discernimento, em oposio vulgaridade do gosto e ignorncia do nscio, como

    contrato enunciativo, configurando seu leitor como expectador erudito e como ator social, que

    deve comparar o Vila Rica com outras obras, apreciando a medida de sua emulao, que

    reafirma a importncia econmica das Minas Gerais. Nessas letras, o juzo discreto do leitor

    prprio de um homem catlico que segue o princpio divino do amor ao prximo, perdoando

    todos os erros do escritor, conforme argumenta Pedro Mexa, cronista de Carlos I de Espanha:

    61 Ibidem. 62 Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Naes: Investigao sobre sua natureza e suas causas. [An Inquiry into the

    Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776]. Traduo de Luiz Joo Barana. So Paulo: Nova Cultural,

    1996, vol. 1, p. 415 et seq. (Os Economistas). 63 O tipo discreto, corteso caracterizado por uma distino de juzo e de prudncia, na escolha conveniente das

    aes pelo intelecto, conceituado primeiramente na crtica das letras no Brasil por Joo Adolfo Hansen. Cf.

    GRACIN y MORALES, Baltasar. El Discreto. In: Obras Completas. 3.a ed. Ed. de Arturo del Hoyo. Madrid:

    Aguilar, 1967, passim. Apud HANSEN, Joo Adolfo. A Stira e o Engenho. Op. cit., p. 48; p. 94.

  • 31

    Quanto estudo me teve custado a escrever e a ordenar esta obra, e quantos

    livros me foram necessrios para eu ler, e ver para isto, isto remeto eu ao

    discreto e benigno leitor, porque a mim no est bem encarec-lo. Nem

    tampouco quero responder aos maledicentes e defender a minha obra de

    murmuradores, e como todos fazem em seus promios, porque conheo que

    nela existem muitas faltas, inadvertncias e descuidos. Antes terei por

    singular benefcio ser avisado de meus erros porque em outra impresso,

    Deus querendo, emende-me e retrate. E se algum houver que, com somente

    a inteno de trair e condenar meu livro, vier a l-lo, quero-lhe avisar que

    ofende a Deus nisso, e seria muito melhor dispor-se a escrever e compor

    algo para o proveito pblico, que no impedir e acovardar aos que se

    animam e dispem a faz-lo. E a uns e outros tenham de mim certo que eu

    fiz o que pude, e quisera no errar em coisa alguma e fazer muito perfeita

    minha obra e devem de boa razo aceitar minha inteno e desejo, se ela nos

    merecer64

    .

    No Vila Rica, essa orientao pela discrio catlica e piedosa do leitor efetiva-se no

    plano da leitura pela observao e considerao das virtudes de Antnio de Albuquerque, que

    se dignifica para ser eternizado na memria: Leitor,/ Eu te dou a ler uma memria por escrito

    das virtudes de um Heri que fora digno de melhor engenho para receber um louvor

    completo65

    . Portanto, esse poema pico composto por Cludio concebe a sua arte como

    resultado de um louvor, devido memria dos fundadores heris portugueses. Colocando-se

    num lugar humilde, inferior ao do heri, o poeta garante a benevolncia de seu discreto

    leitor. Para tanto, o Vila Rica louva o feito glorioso de Albuquerque para elogiar a prpria

    Capitania de Minas Gerais, do mesmo modo que a epopia Os Lusadas louva os heris da

    ptria para enaltecer o reino de Portugal como uma nao.

    Vejamos como a recepo do poema apaga essa orientao didtica de entender a

    poesia como celebrao da importncia econmica da Capitania de Minas Gerais para a

    soberania do reino de Portugal, pela glorificao da memria da ao prudente de

    Albuquerque, enfatizando exclusivamente uma suposta inpcia potica de Cludio em compor

    versos hericos que pintassem as cores locais, eliminando, inclusive, a apreciao do topos da

    64 Quanto estudio me aya costado escrivir, y ordenar esta obra, y quantos libros me fuessen necessario leer, y

    vr para ello, esto remitido yo al discreto, y benigno lector, porque mi no esta bien encarecerlo. Ni tampoco

    quiero responder los maldicientes, y defender mi obra de murmuradores, y como todos hazen en sus proemios,

    porque conozco que en ella ay muchas faltas, inaduertencias, y descuydos. Antes tendr por singular beneficio,

    ser avisado de mis yerros porque en otra impression, Dios queriendo, me enmiende, y retrate. Y si alguno

    huviere, que con sola intencion de traer y condenar mi libro, viniere lo leer, quierole avisar que ofende Dios

    en ello, y seria muy mejor disponerse escrivir, y componer algo para el publico provecho, que no impedir, y

    acobardar los que se animan, y disponen ello. Y los vnos, y los otros tengan de mi cierto, que yo hize lo que

    pude, y quisiera no errar en cosa alguna, y hazer muy perfeta mi obra, y deven de buena razon aceptar mi

    intencion, y deseo, si ella no lo merece. Cf. MEXA, Pedro. Proemio y prefacio de la obra - Discreto Lector.

    In: Silva de varia leccin. [1540]. Madrid: Matheo de Espinosa y Arteaga, 1673. Disponvel em:

    . Acesso em: 25 out. 2005. 65 Cf. COSTA, Cludio Manuel da. Prlogo. Op. cit., p. 359.

  • 32

    humildade, aplicado ficcionalmente como captao de benevolncia do discreto leitor.

    Figura 3. Folha de rosto da primeira edio da pica La Henriade, de Voltaire.

  • 33

    1.2. As duas faces da moeda ou as duas mscaras

    Ao tentarmos traar as linhas gerais seguidas pela crtica do poema pico de Cludio,

    ns a dividimos imediatamente em duas correntes evidentes, como duas faces de uma mesma

    moeda66

    ou como mscaras que cobrem a orientao didtica preceituada da recepo pelo

    autor. A primeira crtica a da leitura desvalorizadora, disfrica ou negativa, geralmente

    tcita e subjetiva. A segunda a da leitura valorizadora, eufrica ou positiva, que considera a

    obra como importante e representativa na histria das letras do Estado do Brasil, em oposio

    apreciao antecedente.

    O intervalo de tempo entre a inveno do Vila Rica e a sua publicao, isto , entre a

    elaborao da obra e a sua incluso no sistema de comunicao literria67

    , produziu um efeito

    na crtica no-superado integralmente at hoje, consistente na leitura interpretativa da obra

    positivando valores ora romnticos, ora realistas68

    , desconsiderando a relevncia dos preceitos

    seguidos pelo poeta. Em outras palavras, no temos a leitura crtica contempornea ao poema,

    por isso, no h registros de sua divulgao, lacuna lida como insucesso da obra decorrente de

    sua prpria m-qualidade potica, confirmada pelos primeiros crticos com as imperfeies

    encontradas nos manuscritos e edies.

    Alm disso, de considerar que a memria do poeta Cludio Manuel foi manchada em

    1792, com a sua condenao pelo envolvimento no episdio da Inconfidncia Mineira69

    .

    Mesmo que o poema estivesse em vias de publicao, ou fosse admirado, seria necessria a

    espera de 50 anos, quando sua publicao pde ser realizada, aps a Independncia do Brasil,

    pois certamente naquele primeiro momento da Inconfidncia Mineira, nenhum editor gostaria

    de ser relacionado com uma personagem desse episdio, dados os castigos exemplares

    aplicados pela Coroa portuguesa, sobretudo, a histria que consta nos registros dos Autos da

    Devassa, no empenho do Governador da Capitania de Minas Gerais, Lus Antnio Furtado de

    66 A expresso utilizada aqui retoma a mesma idia proverbial do lema do cinismo na expresso

    (Paracattein to nomisma), traduzida convencionalmente por falsificar a moeda. Cf. FLORES

    JNIOR, Olimar. ou as vrias faces da moeda. gora - Estudos Clssicos em

    Debate. Aveiro [Portugal], n. 2, p. 21-32, 2000. 67 Entendendo aqui por sistema de comunicao literria aquele composto por obras publicadas na forma

    impressa, portanto de grande divulgao e de fcil acesso, sem entrar ainda na problemtica dos conceitos

    modernos de autor, leitor, autoria etc. 68 Valores que se apresentam como um realismo, na proposta de observao e registro das especificidades da

    natureza local, ou romantismo, se a proposta tem carter nacionalista. 69 Cf. LUCAS, Fbio. Prefcio: Edward Lopes e o Elogio de Cludio Manuel da Costa. In: LOPES, Edward.

    Op. cit., p. 7-8; Cf. LOPES, Hlio. Morto sem sepultura. In: Letras de Minas e outros ensaios. Op. cit., p. 120.

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    Castro do Rio de Mendona e Faro, o famigerado Visconde de Barbacena70

    .

    O suposto insucesso do poema no se deve ainda, no caso da leitura hegeliana, ao

    anacronismo da epopia, lapidada por Lukcs na constituio de um sujeito em busca de

    aventuras, nas quais a vida torna-se essencial, possvel apenas no mundo grego,

    desaparecendo e dando lugar ao romance71

    . Essa leitura anacrnica se aplicada s letras

    picas dos sculos XVI, XVII e XVIII das colnias ibricas, pois nelas o gnero pico

    cultivado com admirao, at o incio do sculo XIX, como a melhor empresa potica que

    algum poderia se dar ao trabalho de realizar.

    Tambm no conveniente aplicar nessas letras picas o princpio estruturalista, que

    entende a potica como uma cincia, uma estilstica do gnero, que deve analisar

    lingisticamente o texto como um modo de linguagem, em suas articulaes fonticas e

    semnticas, na sua expresso e contedo. Nestas duas articulaes, a poesia adquire apenas

    um status de desvio codificado, criador de um estilo, determinado por uma anlise

    estatstica de um corpus, donde se chega concluso de que a diferena entre prosa e poesia

    se caracteriza unicamente pelas relaes particulares da natureza lingstica formal da

    linguagem normal72

    . Tal leitura dissocia as especificidades histrico-sociais e os preceitos

    retrico-poticos que regulam a inveno dessas letras como uma arte, uma