DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUÇÃO DA ÉPICA HOMÉRICA …

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUÇÃO DA ÉPICA HOMÉRICA COMO PARADIGMAS METODOLÓGICOS DE RECRIAÇÃO POÉTICA Um estudo propositivo sobre linguagem, poesia e tradução Orientadora: Aurora Fornoni Bernardini Orientando: Marcelo Tápia Tese apresentada à Banca Examinadora para obtenção do grau de Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada 2012

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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM TEORIA LITERAacuteRIA

E LITERATURA COMPARADA

DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUCcedilAtildeO DA EacutePICA

HOMEacuteRICA COMO PARADIGMAS METODOLOacuteGICOS

DE RECRIACcedilAtildeO POEacuteTICA

Um estudo propositivo sobre linguagem poesia e traduccedilatildeo

Orientadora Aurora Fornoni Bernardini

Orientando Marcelo Taacutepia

Tese apresentada agrave Banca Examinadora para obtenccedilatildeo

do grau de Doutor em Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada

2012

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Resumo A tese discute inicialmente a conceituaccedilatildeo de poesia a especificidade da

traduccedilatildeo poeacutetica e as possibilidades de anaacutelise de poemas para com base nessas

consideraccedilotildees analisar fragmentos das traduccedilotildees da eacutepica de Homero agrave liacutengua

portuguesa realizadas por Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de

Campos considerando-se as respectivas concepccedilotildees acerca da atividade tradutoacuteria A

partir das obras estudadas busca-se a identificaccedilatildeo de diferentes paradigmas

metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica apresentando-se por fim uma proposta de meacutetodo

tradutoacuterio da poesia eacutepica que envolve uma concepccedilatildeo riacutetmica baseada em

possibilidades de adaptaccedilatildeo em portuguecircs do padratildeo hexameacutetrico da poesia greco-

latina

Palavras-chaves Poesia traduccedilatildeo poeacutetica recriaccedilatildeo poeacutetica eacutepica grega Homero

Abstract

Firstly the present thesis discusses the conceptualization of Poetry the specificity of

poetry translation and possible ways of analysing poems and bearing these aspects in

mind the aim is to analyse some excerpts of Homerrsquos Epic translated into Portuguese

by Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes and Haroldo de Campos taking into

consideration their respective views on translation work next by using the works

analysed different methodological paradigms applied to poetic recreation are identified

and finally a proposal for a translational method deemed suitable to Epic poetry is

presented envolving a rhythmic conception based on possibilities of adaptation to Portuguese

of the Greek and Latin hexameter patterns

Keywords Poetry poetic translation poetic recriation Greek epic Homer

3

Este trabalho eacute dedicado agrave memoacuteria de minha matildee

Maria Aparecida Belli Taacutepia e ao meu pai Acircngelo Taacutepia Fernandes

Agradeccedilo agrave minha mulher Peacuterola Wajnsztejn Taacutepia e ao meu filho Daniel Taacutepia pela

cooperaccedilatildeo e pelo estiacutemulo agrave minha filha Ana Luiza Taacutepia de modo especial por sua decisiva

influecircncia em minha iniciativa de formar-me ainda que tardiamente em Letras

Agradeccedilo tambeacutem a Aurora Bernardini por ter-me concedido o privileacutegio de me acolher

como seu orientando e a Jaa Torrano por seus tatildeo proveitosos conselhos

4

Sumaacuterio

Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip5

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica9

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica9

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade50 B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia50

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica 68

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo71 B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo77

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees81

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise 88

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo95 A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)95

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)107

A3 Haroldo de Campos (1929-2003)114 B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais122

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica 124 C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo131

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos133

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura137 C4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada140

Capiacutetulo III Vozes para Homero144

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade145

A2 Iliacuteada fragmentos152

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem154 A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise181

Capiacutetulo IV Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs240

1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio261

Conclusatildeo271

Bibliografia275

Apecircndices282

5

Introduccedilatildeo

A traduccedilatildeo de poesia eacute um terreno movediccedilo Chatildeo deslizante sobre o qual se

atua feito de elementos errantes como as rochas mencionadas no canto XII da Odisseacuteia

Mas natildeo soacute pelos obstaacuteculos tambeacutem pela incerteza pela mutabilidade do sentido pela

multiplicidade de opccedilotildees potencialmente vaacutelidas

Admitindo-se que a poesia exista pela especificidade de sua linguagem e que a

traduccedilatildeo de poesia seja possiacutevel ndash eacute o que se admite e se busca discutir neste estudo ndash

seraacute na diversidade que se poderatildeo obter talvez (como aqui se quer demonstrar)

indicativos de pontos de convergecircncia de processos de criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo

Este trabalho ndash elaborado com a perspectiva de entendimento da teoria literaacuteria

como um amplo campo no qual se pode recorrer a fundamentos provenientes de uma

abordagem interdisciplinar ndash se iniciaraacute com uma discussatildeo sobre a natureza da poesia

tendo-se como referecircncia diferentes esforccedilos teoacutericos voltados agrave identificaccedilatildeo e agrave

definiccedilatildeo do que se entende por ldquopoeacuteticordquo Argumentos contraacuterios a essa possibilidade

de identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas imanentes agrave linguagem poeacutetica (e que envolvem

portanto a sua distinccedilatildeo da prosa) seratildeo tambeacutem considerados procurando-se algum

pensamento norteador para a tarefa empreendida que incluiraacute anaacutelise de trechos da

poesia homeacuterica e de suas recriaccedilotildees em nossa liacutengua Assim faraacute parte de nossos

propoacutesitos a reflexatildeo sobre procedimentos de anaacutelise assim como a proposiccedilatildeo de

certos procedimentos que se consideraratildeo adequados aos objetivos gerais do estudo

Como natildeo poderia deixar de ser tambeacutem se discutiratildeo oacutepticas diversas e conceitos

referentes agrave traduccedilatildeo e particularmente agrave traduccedilatildeo de poesia aplicando-se nas anaacutelises

e nas propostas que seratildeo feitas relativamente agrave tarefa tradutoacuteria as conclusotildees

consideradas pertinentes como fundamentaccedilatildeo para as formulaccedilotildees introduzidas

Noacutes leitores de liacutengua portuguesa somos privilegiados pela oferta generosa de

traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica ao nosso idioma E isso mesmo desconsiderando-se as

diversas versotildees em prosa que escaparatildeo ao campo de interesse deste trabalho

dedicado essencialmente a questotildees sobre traduccedilatildeo de poesia a partir de um objeto de

interesse tomado como fonte para identificaccedilatildeo de modos e procedimentos tradutoacuterios

Para cumprir sua finalidade o estudo se valeraacute de obras que se pretendem ndash guardadas

as diferenccedilas de eacutepoca de princiacutepios e de resultados ndash produtos do que poderiacuteamos

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chamar de traduccedilatildeo poeacutetica dos poemas gregos ou seja de um processo tradutoacuterio que

busca atender agraves expectativas de realizaccedilatildeo de poemas eacutepicos em nossa liacutengua a partir

das composiccedilotildees originais Hoje apenas no Brasil dispomos de trecircs versotildees integrais da

Iliacuteada ndash a de Manuel Odorico Mendes (em versos decassiacutelabos) publicada em 1874 a

de Carlos Alberto Nunes (em hexacircmetros dactiacutelicos) publicada em 1962 e a de

Haroldo de Campos (em dodecassiacutelabos) publicada em dois volumes 2000-2002 aleacutem

de traduccedilotildees parciais significativas caso da apresentada em 2000 por Andreacute Malta

Campos (em versos compostos pela junccedilatildeo de dois heptassiacutelabos) Dispomos tambeacutem

de quatro versotildees da Odisseacuteia ndash a de Manuel Odorico Mendes (tambeacutem em

decassiacutelabos) a de Carlos Alberto Nunes (tambeacutem em hexacircmetros) a de Donaldo

Schuumller (em versos livres) e a de Trajano Vieira (em dodecassiacutelabos) aleacutem de uma

quinta a sair de Christian Werner (em versos livres) tambeacutem haacute traduccedilotildees

significativas de excertos da obra caso das realizadas por Haroldo de Campos (em

dodecassiacutelabos) que vieram a lume postumamente em 2006

Este estudo se concentraraacute na obra dos dois primeiros tradutores da obra integral

de Homero no paiacutes Odorico e Nunes e no trabalho de Haroldo de Campos que aleacutem

de particularmente importante como realizaccedilatildeo esteacutetica associa-se ao mais

desenvolvido e influente constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica levado a termo por

um poeta brasileiro Por essa razatildeo e por representar sua versatildeo da Iliacuteada a

contribuiccedilatildeo da maturidade de um tradutor-pensador da recriaccedilatildeo de poesia a produccedilatildeo

teoacuterico-criacutetica de Campos constituiraacute uma dimensatildeo relativamente privilegiada deste

trabalho

As demais traduccedilotildees mencionadas dos poemas homeacutericos natildeo seratildeo

investigadas por necessidade de delimitaccedilatildeo do jaacute vasto objeto dadas sua riqueza e sua

significaccedilatildeo talvez venham a constituir futuramente o foco de algum novo trabalho

que eu venha a empreender

Uma abordagem referencial a ser demonstrada

A argumentaccedilatildeo que deveraacute ser construiacuteda ao longo deste estudo teraacute de certo

modo como ponto de partida e de chegada a referecircncia norteadora (preacutevia portanto ao

pensamento a ser elaborado e alvo da conclusatildeo de seus objetivos) de uma

7

conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica brevemente apresentada a

seguir

Em anotaccedilotildees manuscritas para uma apresentaccedilatildeo realizada em 13 de dezembro

de 1979 Campos esquematiza pensamentos seus que se encontram de diversas formas

expostos no conjunto de seus textos teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica os quais visam a

construir o conceito do que denomina ldquotranscriaccedilatildeordquo Elabora contudo um esquema

que encontra particularidade em sua configuraccedilatildeo teoacuterica pelo enfoque que traz

relativamente agrave definiccedilatildeo da traduccedilatildeo de poesia Em vez de se ater ao conceito fundador

de sua teorizaccedilatildeo manifesto em diversos ensaios ndash a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica

ou paramoacuterfica ndash nestas anotaccedilotildees ele a entende como uma ldquooperaccedilatildeo semioacutetica em

dois sentidosrdquo O primeiro desses constitui-se no sentido ldquoestritordquo o de que a traduccedilatildeo

poeacutetica eacute uma ldquopraacutetica semioacuteticardquo especial ldquona medida em que visa ao intracoacutedigo que

opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo Para o autor

esse intracoacutedigo definido de um ponto de vista linguiacutestico seria o espaccedilo

operatoacuterio da funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson ou na expressatildeo alegoacuterica de Walter

Benjamin die Reine Sprache a liacutengua pura a ser desocultada resgatada pela

operaccedilatildeo tradutora no cerne do original (ao inveacutes do conteuacutedo cuja transmissatildeo eacute

afeita agrave traduccedilatildeo referencial)

O segundo o sentido ldquolatordquo diz respeito agrave traduccedilatildeo como um ldquoprocesso semioacuteticordquo de

ldquosemiose ilimitadardquo Afirma Campos

A traduccedilatildeo eacute o capiacutetulo por excelecircncia de toda teoria literaacuteria na medida em que a

literatura eacute um imenso canto paralelo um movimento paroacutedico em que uma dada

tradiccedilatildeo eacute sempre reproposta e reformulada na traduccedilatildeo [] Processo de semiose

ilimitada agrave maneira de Peirce

Assim a traduccedilatildeo seria correlata da proacutepria literatura e do processo essencial de

sua realizaccedilatildeo como campo abrangente de produccedilatildeo parodiacutestica

Pelo teor sinteacutetico e consistente da abordagem por seu amplo alcance e pelas

questotildees que desperta ndash incluindo-se a da proacutepria noccedilatildeo de ldquointracoacutedigordquo ou da

dimensatildeo intratextual ndash estas breves anotaccedilotildees podem consistir num marco preacutevio e

8

posterior a minha proacutepria tentativa de contribuiccedilatildeo ao pensamento sobre traduccedilatildeo

poeacutetica em geral e sobre a recriaccedilatildeo da eacutepica de Homero em particular

A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo veja-se uma coacutepia da referida paacutegina manuscrita1 por

Haroldo de Campos da qual resultaram as observaccedilotildees aqui inseridas

1A coacutepia do manuscrito de Haroldo de Campos (assim como de outras paacuteginas reproduzidas neste

trabalho) foi-me gentilmente cedida pelos herdeiros do autor durante processo de pesquisa de sua obra e

de seus originais do qual participei a fim de organizar em colaboraccedilatildeo com Thelma Noacutebrega uma

ediccedilatildeo contendo artigos de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica quase todos originalmente publicados em

perioacutedicos e natildeo recolhidos em livro (o volume seraacute publicado em 2012 pela Editora Perspectiva com o

tiacutetulo de Transcriaccedilatildeo e conteraacute reproduccedilatildeo de originais do autor)

9

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica

Ao considerar as versotildees da eacutepica grega ao portuguecircs como trabalhos de

traduccedilatildeo poeacutetica de modo a associaacute-los ao pensamento sobre traduccedilatildeo proacuteprio dos

diversos tradutores abordados neste estudo e a vislumbrar neles diferentes percursos

tradutoacuterios que podem constituir paradigmas metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo torna-se

necessaacuteria a formulaccedilatildeo acerca do que se entenderaacute por poesia para em seguida

conceituar-se preliminarmente a traduccedilatildeo poeacutetica como atividade recriadora

A poesia existe Esta questatildeo revela a natureza da reflexatildeo relativizadora que

marcou as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX por influecircncia da obra de pensadores como

Jacques Derrida2 Roland Barthes e Stanley Fish entre outros que propiciaram a

formaccedilatildeo do que seria a conceituaccedilatildeo poacutes-estruturalista acerca da linguagem Para situar

o problema numa breve abordagem geral que serviraacute como referecircncia a

complementaccedilotildees menos ligeiras opto3 por valer-me da quase totalidade de um artigo ndash

cujo tiacutetulo consiste na pergunta com a qual se inicia este paraacutegrafo ndash por mim escrito

com a finalidade de apresentaccedilatildeo do problema a um puacuteblico indiferenciado4

procurando-se adequar a linguagem a seus objetivos gerais

[] Ao questionarmos a existecircncia da poesia teremos dois caminhos ou

responder de imediato com um simples e indignado ldquosimrdquo (eu mesmo dedico

grande parte de minha vida a ela direta ou indiretamente e natildeo creio devotar-me a

algo inexistente) ou principiar uma discussatildeo que certamente natildeo cabe nos limites

de um texto de uma coluna como esta Mas o assunto surgiu porque penso que

talvez seja interessante relatar duas breves experiecircncias vividas durante os cursos

que tenho dado [] em torno do tema ldquoPoesia leitura anaacutelise e interpretaccedilatildeordquo A

2 Obras dos autores referidos relacionadas ao tema constam das Referecircncias Bibliograacuteficas 3 De modo atiacutepico num trabalho desta natureza uma vez que o artigo poderia integrar os anexos tal

expediente se deve agrave minha visatildeo de que as reflexotildees e experiecircncias nele relatadas seratildeo uacuteteis como

introduccedilatildeo agraves discussotildees posteriores 4 Trata-se de uma coluna em site literaacuterio (Cronopios wwwcronopioscombr) consultado em

24112011

10

primeira aconteceu jaacute haacute algum tempo [] e foi uma proposta inspirada no

conhecido estudo do teoacuterico e professor norte-americano Stanley Fish (autor de Is

there a text in the class The authority of interpretive communities [1980]) que

pediu a um grupo de alunos dedicados ao estudo da poesia religiosa do seacutec XVII

que analisassem o ldquopoemardquo escrito na lousa na verdade o que havia no quadro era

uma relaccedilatildeo de nomes de autores que integravam uma bibliografia sugerida Os

estudantes ndash habituados agrave anaacutelise e dotados de repertoacuterio para tanto ndash realizaram a

tarefa a contento estabelecendo correlaccedilotildees entre os nomes isso levou o autor a

considerar a literariedade um constructo motivado para ele a interpretaccedilatildeo natildeo eacute a

arte de entender mas a arte de construir afirma tambeacutem que o que eacute reconhecido

como literatura resulta de uma decisatildeo da ldquocomunidade interpretativardquo acerca do

que eacute literaacuterio ou natildeo Eacute faacutecil encontrar exemplos que ilustrem esta uacuteltima

proposiccedilatildeo alguns poemas hoje considerados como tal natildeo o seriam um seacuteculo

atraacutes Mas voltemos agrave experiecircncia agrave qual me referi tomei dois trechos de textos

que natildeo foram escritos como poemas ndash um fragmento de um dos Ensaios de

Montaigne e outro da coluna assinada por Contardo Calligaris no jornal Folha de

Satildeo Paulo ndash e os apresentei (divididos em ldquoversosrdquo) como poemas aos alunos

pedindo que discutissem suas caracteriacutesticas Conforme esperava os grupos

assinalaram diversos aspectos considerados interessantes nos ldquopoemasrdquo levando-

os a seacuterio como poesia ndash de fato nossa leitura eacute decisiva na qualificaccedilatildeo de um

texto Mas ocorreu algo que daacute subsiacutedio para outra questatildeo um dos alunos

observou que os poemas seriam ldquologopeiasrdquo Referia-se agrave classificaccedilatildeo de Pound

sobre as modalidades de poesia enquadrando os textos analisados naquela

categoria em que prevalece a ldquodanccedila do intelecto entre as palavrasrdquo ou seja em

que o engendramento loacutegico prevalece sobre outros aspectos como a musicalidade

(quando esta prepondera trata-se de ldquomelopeacuteiardquo) ou a forccedila de imagens (o

prevalecimento desta caracteriza a ldquofanopeiardquo) Ou seja notou que embora

aqueles textos fossem poesia ndash pois assim lhe foram apresentados ndash natildeo se podia

destacar neles por exemplo a melodia dos versos eram conforme lhe parecia

poemas de um tipo mais semelhante agrave prosa Quero discutir com isto a questatildeo de

que se a leitura pode atribuir a um texto um teor qualquer desde que haja ldquodecisatildeo

comunitaacuteriardquo acerca de sua qualificaccedilatildeo isto natildeo quer dizer que natildeo existam

elementos que lhe satildeo intriacutensecos e que permitem sua observaccedilatildeo diante da leitura

adequada Isto pode parecer oacutebvio mas natildeo eacute bem assim pois com base na ideia

da leitura como uma ldquoarte de construirrdquo pode-se dizer ndash como o faz Rosemary

Arrojo em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo Oficina de traduccedilatildeo ndash que ldquoo poeacutetico eacute na verdade

11

uma estrateacutegia de leitura uma maneira de ler e natildeo [] um conjunto de

propriedades estaacuteveis que objetivamente encontramos em certos textosrdquo Quando

se diz ldquopropriedades estaacuteveisrdquo estaacute-se pensando nos sentidos do poema que

conforme tal visatildeo ndash afinada com as proposiccedilotildees poacutes-estruturalistas e

particularmente com o desconstrucionismo de Jacques Derrida ndash decorrem da

leitura ldquocomo leitores do poemardquo ndash diz Arrojo ndash ldquoaceitamos o desafio impliacutecito de

interpretaacute-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para elerdquo

tal sentido contribuiraacute para ldquoa construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeordquo De acordo com

essa concepccedilatildeo quando lemos um texto ldquopoeticamenterdquo passamos a buscar

dimensotildees de sentido compatiacuteveis com a proacutepria ideia de poema que pode ser a de

um texto capaz de dizer muitas coisas ao mesmo tempo e que tenha na

ambiguidade muitas vezes um instrumento gerador de sentido inesperado

insoacutelito um texto em que todos os seus elementos devam ser considerados numa

teia de associaccedilotildees no processo interpretativo que pode resultar em conclusotildees

diversas e igualmente ldquoverdadeirasrdquo (considerando-se que natildeo haacute do ponto de

vista da desconstruccedilatildeo ldquoverdaderdquo original ou estaacutevel) Se pensarmos em termos de

sentido natildeo haveraacute mesmo propriedades ou elementos fixos no texto a leitura

cria ldquosignificadosrdquo ndash mesmo porque estes natildeo existem como uacutenicos e estaacuteveis

dentro de uma liacutengua Mas ndash e sem querer levar muito longe esta discussatildeo que

pode ser infindaacutevel e infinita ndash natildeo se pode negar sob outro ponto de vista que

uma leitura ao envolver muacuteltiplas possibilidades interpretativas teraacute de atentar

para aqueles elementos que laacute estatildeo inclusive com suas caracteriacutesticas sonoras e

visuais (quando for o caso) que por sinal contribuem para a construccedilatildeo do

sentido Mesmo que eu possa ler como poema um texto que natildeo foi criado como

tal isto natildeo quer dizer que natildeo possa distinguir nele caracteriacutesticas que me

permitam por exemplo afirmar que natildeo apresenta musicalidade ou imagens ou

que a sonoridade produzida por seus constituintes eacute pobre e embora eu possa

ldquojustificaacute-lordquo como poema a partir de outras qualidades que nele encontre ele natildeo

seraacute visto como uma melopeacuteia mesmo que eu me esforce para tanto (Antes de

prosseguir um parecircntese eacute claro que a ideia sobre o que eacute poesia mudou e muda

com o tempo e o contexto e que hoje haacute uma pluralidade indefinida do que se

considera poesia inclusive a jaacute usual ldquopoesia em prosardquo mas pensando no

experimento de Fish quanto de sua autoridade sobre os alunos natildeo restringiu uma

afirmaccedilatildeo do tipo ldquoo rei estaacute nurdquo ou seja ldquoisto natildeo eacute um poemardquo No meu caso

guardadas as devidas desproporccedilotildees o caso seria semelhante em que uma simples

autoridade de professor pode dificultar ou impedir uma questatildeo aleacutem do proposto

12

e ademais no meu caso particular devo admitir que a escolha teraacute envolvido de

certa forma uma preacute-leitura do que poderia dar margem a uma discussatildeo

estimulante) Claro que se pode dizer mas o que eacute considerado ldquomusicalrdquo tambeacutem

o eacute por decisatildeo da comunidade cultural assim como o que vem a ser muacutesica satildeo

muitos os exemplos que corroborariam esta afirmaccedilatildeo como o caso das

composiccedilotildees atonais (que sofreram grande resistecircncia no proacuteprio meio em que

foram criadas) e outras experimentais que muitos natildeo reconhecem como muacutesica

Nestes termos natildeo haacute qualquer possibilidade de definiccedilatildeo do que seja muacutesica

pintura ou literatura ou poesia nada disso existe a natildeo ser a partir do ldquoacordordquo

que cria sua identificaccedilatildeo Mas de novo a partir de outro ponto de vista uma

composiccedilatildeo feita de ruiacutedos e sons ldquoestranhosrdquo com base num sistema natildeo

convencional teraacute em si um esquema de relaccedilotildees ditado por suas proacuteprias regras

que podem ser ou natildeo percebidas conhecidas Um poema independentemente de

sua qualificaccedilatildeo como ldquomusicalrdquo traz em si por exemplo fonemas que se repetem

ou natildeo palavras que trazem a mesma terminaccedilatildeo ou natildeo vogais fechadas que

sucedem outras abertas ou vice-versa apresenta sons que escorrem fluidos ou que

se seguem em solavancos obstaacuteculos haacute a distribuiccedilatildeo de siacutelabas tocircnicas e pausas

que impotildeem um ritmo ao conjunto haacute sim ndash e de novo o oacutebvio pode natildeo o ser ndash

uma dimensatildeo fiacutesica do signo (poderiacuteamos dizer que considero aqui em termos da

semioacutetica de Charles Peirce o ldquoobjeto imediatordquo do signo isto eacute sua aparecircncia

graacutefica ou acuacutestica) que eacute uma espeacutecie de mateacuteria-prima do artista e que mesmo

natildeo se dissociando da produccedilatildeo de sentido pela leitura permite o estabelecimento

de regras internas de composiccedilatildeo e a sua identificaccedilatildeo por diferenccedila relativamente

a outras obras Assim da mesma forma como natildeo se pode atribuir musicalidade a

um determinado texto ndash nascido crocircnica por exemplo ndash que ao priorizar a ldquofunccedilatildeo

cognitivardquo (na classificaccedilatildeo de Jakobson) empregando as palavras como ldquosignos-

parardquo e natildeo como ldquosignos-derdquo (conforme a distinccedilatildeo de Charles Morris) isto eacute ao

usaacute-las como ldquoveiacuteculosrdquo que conduzem a algo natildeo apresenta relaccedilotildees que

sobressaiam no plano sonoro tambeacutem natildeo se pode negar musicalidade a um texto

que nascido poema ndash vale dizer tambeacutem ldquolidordquo como um poema por seu autor ndash

manifeste uma elaboraccedilatildeo discerniacutevel da tessitura dos sons Claro eacute no entanto

que mesmo um poema feito como tal e dotado de caracteriacutesticas consideradas

poeacuteticas ndash inclusive no campo da sonoridade ndash pode ser lido de maneira a natildeo se

perceberem seus elementos tudo pode ldquopassar batidordquo pelo leitor desavisado que

lecirc um poema como se leria uma notiacutecia de jornal ou uma narrativa qualquer ou

seja que natildeo se dispotildee a uma leitura que possibilite natildeo soacute a dita ldquoproduccedilatildeo de

13

sentidordquo como tambeacutem a simples percepccedilatildeo dos aspectos sonoro e visual das

palavras O reconhecimento portanto de certas caracteriacutesticas do texto observadas

a partir dos sons que se relacionam entre si por diferenccedilas e semelhanccedilas ndash

poderiacuteamos dizer que estamos focalizando em termos da teoria linguiacutestica de

Hjelmslev (para quem o signo eacute a junccedilatildeo de um ldquoplano de expressatildeordquo e um ldquoplano

de conteuacutedordquo cada plano compreendendo os niacuteveis da ldquoformardquo e da ldquosubstacircnciardquo)

a forma da expressatildeo dada pelas diferenccedilas focircnicas (lembrando que as oposiccedilotildees

se constroem sobre identidades) ndash tambeacutem depende de uma atitude de leitura que

envolve inclusive um repertoacuterio voltado agrave percepccedilatildeo de formas Muitas vezes o

leitor natildeo estaacute preparado para observar os elementos natildeo-verbais (embora

associados ao signo verbal ou integrantes deste) que se apresentam no texto

compondo sua identidade riacutetmica e sonora e buscaraacute num poema apenas o que

este ldquoquer dizerrdquo podemos dizer que neste caso o poema se perde porque a leitura

natildeo se faz ldquopoeticamenterdquo ou seja natildeo visa agrave percepccedilatildeo do acircmbito relativo ao que

Jakobson denominou ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo ndash caracterizada conforme

observa Deacutecio Pignatari em seu O que eacute comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquopela projeccedilatildeo de

coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo esta

pode ser uma maneira de compreendecirc-la Como diz ainda Deacutecio ldquoA maioria das

pessoas lecirc poesia como se fosse prosa A maioria quer lsquoconteuacutedosrsquo ndash mas natildeo

percebe formasrdquo Se lermos poesia como poesia ela existiraacute para noacutes com tudo

aquilo que a identifica em maior ou menor grau conforme seu niacutevel de realizaccedilatildeo

esteacutetica alcanccedila e assim desempenharaacute a funccedilatildeo que lhe cabe diferente da de um

texto natildeo poeacutetico

Mas voltando a questotildees iniciais o que deveraacute fazer com que leiamos um texto

como poesia Seraacute acaso a sua simples disposiccedilatildeo em versos Natildeo poderaacute ser

pois haacute poemas que natildeo satildeo em versos e haacute textos assim dispostos que

dificilmente poderemos chamar de poesia Ou seraacute sua qualificaccedilatildeo anterior como

um poema Isto nos levaraacute a lecirc-lo como tal mas eacute preciso considerar que os

criteacuterios para tanto satildeo variaacuteveis e mesmo que a informaccedilatildeo pode ser falsa Ou

ainda outras caracteriacutesticas ldquoformaisrdquo Natildeo pois podem ser considerados poemas

textos de caracteriacutesticas muito diversas O que entatildeo Resta-nos atentar para as

estruturas que nos permitam a percepccedilatildeo ndash e consequente apreciaccedilatildeo esteacutetica ndash de

elementos que se associam daquele modo peculiar que possibilitou a formulaccedilatildeo de

um conceito como ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo de nos abrirmos

aprioristicamente agrave leitura esteacutetica de um texto que se insinue como dotado de

14

algo mais do que a simples funccedilatildeo de ldquotransmissatildeo de mensagensrdquo de o vermos e

ouvirmos com olhos e ouvidos o mais possiacutevel libertos do sistema loacutegico-

discursivo facultando-nos o pensamento analoacutegico Se o texto nos eacute dado como

poesia seja qual for o ldquotipordquo de poema eacute claro que esta atitude seraacute ativa e

predeterminada ainda que natildeo o reconheccedilamos de imediato como poesia

conforme os padrotildees que adotamos se natildeo nos for dado como tal tambeacutem

poderemos nos surpreender ao encontrarmos pela frente por exemplo no meio de

um romance trechos que parecem emergir do contexto como um ser que salta do

plano da prosa para o da poesia Eacute o caso entre tantos outros de alguns fragmentos

de romances do autor cubano Alejo Carpentier ndash e eacute a partir de um deles que se deu

a segunda experiecircncia a que me referi no iniacutecio deste artigo mas como este jaacute se

alongou muito aleacutem de sua apropriada medida deixemos este tema para outra vez

Muitas satildeo as referecircncias feitas de passagem nesse artigo aqui evocado para

explicitar as concepccedilotildees envolvidas no suporte dessa abordagem precisaremos de

acreacutescimos significativos aleacutem de algumas reiteraccedilotildees No entanto esse texto pode dar

conta de apresentar a complexidade da discussatildeo pela tentativa mais ou menos bem

sucedida de formulaccedilatildeo de um ponto de vista Consideraremos neste trabalho para a

proacutepria presenccedila de um objeto de estudo no modo em que eacute proposto que a poesia

existe e possui caracteriacutesticas distinguiacuteveis que podemos buscar independentemente da

diversidade do que se chama ou chamou de poesia (da antiguidade ocidental ateacute nossos

dias)

Mencionou-se no artigo a teoacuterica brasileira Rosemary Arrojo sua leitura e sua

sistematizaccedilatildeo acerca das concepccedilotildees desconstrucionistas e sua aplicaccedilatildeo na

(in)definiccedilatildeo e na leitura de poesia assim como no entendimento da atividade de

traduccedilatildeo seratildeo frequentemente citados por tudo o que possibilitam de discussatildeo e

reflexatildeo Mas antes focalizemos da maneira mais breve possiacutevel (poreacutem mais detida

que o artigo apresentado) algo do principal arcabouccedilo teoacuterico da linguiacutestica estrutural

(fundamentada nas noccedilotildees de Ferdinand de Saussure5) sobre poesia

Natildeo cabe apresentar aqui a histoacuteria do estruturalismo na linguiacutestica pela

limitaccedilatildeo naturalmente imposta a explanaccedilotildees de fundamentaccedilatildeo ao tema central e pelo

fato de ser esse um tema amplamente difundido e explorado no seacuteculo XX apenas

5 SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Traduccedilatildeo de Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro

Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 1977

15

como indicaccedilatildeo contudo e para se manter alguma ilusatildeo de autonomia deste trabalho

leia-se uma abordagem sinteacutetica de Michael Peters a respeito do assunto conforme

afirma o estruturalismo

[] tem sua origem na linguiacutestica estrutural tal como desenvolvida por Ferdinand

de Saussure e por Roman Jakobson na virada do seacuteculo Saussure ministrou um

curso sobre linguiacutestica geral de 1907 a 1911 morreu em 1913 Seus alunos

publicaram em 1916 o livro Cours de linguistique reconstituiacutedo a partir de suas

anotaccedilotildees de aula O Cours de linguistique concebia a linguagem como um sistema

de significaccedilatildeo vendo seus elementos de uma forma relacional []6

Conheccedilam-se tambeacutem os esclarecimentos de Margarita Petter acerca do tema

Para o mestre genebrino a Linguiacutestica tem por uacutenico e verdadeiro objeto a liacutengua

considerada em si mesma e por si mesma Os seguidores dos princiacutepios

saussureanos esforccedilaram-se por explicar a liacutengua por ela proacutepria examinando as

relaccedilotildees que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor

funcional desses diferentes tipos de relaccedilotildees A liacutengua eacute considerada uma estrutura

constituiacuteda por uma rede de elementos em que cada elemento tem um valor

funcional determinado A teoria de anaacutelise linguiacutestica que desenvolveram herdeira

das ideias de Saussure foi denominada estruturalismo Os princiacutepios teoacuterico-

metodoloacutegicos dessa teoria ultrapassaram as fronteiras da Linguiacutestica e a tomaram

ciecircncia piloto entre as demais ciecircncias humanas [] (Fiorin 2002 14)7

Eacute importante que haja aqui ndash para que se tornem fundamentos a discussotildees

posteriores ndash uma referecircncia breve a conceituaccedilotildees e princiacutepios estabelecidos pelo

linguista suiacuteccedilo Ferdinand de Saussure (1857-1913) Sobre a linguagem e o conceito de

signo diz sinteticamente Haroldo de Campos8

6PETERS M Poacutes-estruturalismo e filosofia da diferenccedila ndash Uma introduccedilatildeo Belo Horizonte Autecircntica

2000 7 FIORIN Joseacute Luiz (org) Introduccedilatildeo agrave Linguiacutestica I Objetos teoacutericos Satildeo Paulo Contexto 2002 8 Citaccedilatildeo do artigo ldquoA comunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo In CAMPOS H de A arte no horizonte

do provaacutevel Satildeo Paulo Perspectiva 1975 pp 131-154

16

A linguagem eacute um sistema de signos O signo entatildeo eacute a unidade linguiacutestica Para

Saussure cujas concepccedilotildees pioneiras ainda estatildeo impregnadas de psicologismo9 o

signo linguiacutestico eacute uma entidade psiacutequica de duas faces unindo natildeo uma coisa e

um nome mas um conceito e uma imagem acuacutestica10

o significante eacute a imagem

sensorial psiacutequica (natildeo a pura materialidade fiacutesica do som) da forma focircnica e o

significado eacute a imagem mental da coisa (que pode estar ligada a outro significante

conforme o idioma) (1975 134)

Por sua vez Joseacute Luiz Fiorin observa que

A definiccedilatildeo de signo dada por Saussure eacute substancialista pois ele trata do signo em

si como uniatildeo de um significante e um significado No entanto no Curso de

linguiacutestica geral ele insiste no fato de que na liacutengua natildeo haacute senatildeo diferenccedilas ou

seja de que cada elemento linguiacutestico deve ser diferente dos outros elementos com

os quais contrai relaccedilatildeo Por isso eacute preciso considerar o signo natildeo mais em sua

composiccedilatildeo mas em seus contornos dados por suas relaccedilotildees com os outros signos

Por isso Saussure cria a noccedilatildeo de valor [] Com ela daacute-se uma definiccedilatildeo

negativa do signo um signo eacute o que os outros natildeo satildeo O valor proveacutem da situaccedilatildeo

reciacuteproca das peccedilas na liacutengua pois importa menos o que existe de conceito e de

mateacuteria focircnica num signo do que o que haacute ao seu redor A significaccedilatildeo eacute entatildeo

uma diferenccedila entre um signo e outro signo pois o que existe na liacutengua satildeo a

produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo de diferenccedilas (2002 58)

Eacute pertinente ndash por questotildees terminoloacutegicas e conceituais ndash incluir-se aqui a

ideia de signo para Hjelmslev11

Hjelmslev [] Comeccedila por dizer que o signo eacute a uniatildeo de um plano de conteuacutedo a

um plano de expressatildeo[] Para Hjelmslev cada plano compreende dois niacuteveis a

9 A observaccedilatildeo criacutetica de Campos eacute reveladora de sua posiccedilatildeo teoacuterica como se poderaacute verificar

posteriormente Agrave apresentaccedilatildeo do que seria o signo para Saussure o autor faz suceder a conceituaccedilatildeo de

signo segundo Jakobson ldquoJakobson deixando de lado o mentalismo saussuriano prefere distinguir entre

signans o aspecto sensualmente perceptiacutevel do signo e signatum o seu aspecto inteligiacutevel traduziacutevel

para concluir lsquoToda entidade linguiacutestica da maior agrave menor eacute uma conjunccedilatildeo necessaacuteria de signans e signatum Assim se define o traccedilo distintivo na base do signans como uma propriedade socircnica opositiva

aliada ao seu signatum que eacute a funccedilatildeo distintiva do traccedilo ndash a sua capacidade de diferenciar significaccedilotildeesrdquo 10 Campos usa aqui a mesma definiccedilatildeo que aparece no Curso de linguiacutestica geral de Saussure ldquoO signo

linguiacutestico une natildeo uma coisa e uma palavra mas um conceito e uma imagem acuacutesticardquo (1977 80) 11HJELMSLEV H Capiacutetulo ldquoExpressatildeo e conteuacutedordquo integrante de Hjelmslev H Prolegocircmenos a uma

teoria da linguagem Satildeo Paulo Perspectiva 1975

17

forma e a substacircncia Assim haacute uma forma do conteuacutedo e uma substacircncia do

conteuacutedo uma forma da expressatildeo e uma substacircncia da expressatildeo

[] A forma corresponde ao que Saussure chama valor ou seja eacute um conjunto de

diferenccedilas Para estabelecer uma definiccedilatildeo formal de um som ou de um sentido eacute

preciso estabelecer oposiccedilotildees entre eles por traccedilos pois os sons e os sentidos natildeo

se opotildeem em bloco [] A mesma coisa ocorre no acircmbito do sentido []

Assim o signo para Hjelmslev une uma forma da expressatildeo a uma forma de

conteuacutedo Essas duas formas geram duas substacircncias uma da expressatildeo e uma do

conteuacutedo A forma da expressatildeo satildeo diferenccedilas tocircnicas e suas regras

combinatoacuterias a forma do conteuacutedo satildeo diferenccedilas semacircnticas e suas regras

combinatoacuterias a substacircncia da expressatildeo satildeo os sons a substacircncia do conteuacutedo os

conceitos (2002 59)

Satildeo as seguintes as caracteriacutesticas do signo linguiacutestico assim apresentadas (aqui

em citaccedilotildees sucessivas) por J L Fiorin

Para Saussure o signo linguiacutestico tem duas caracteriacutesticas principais a

arbitrariedade do signo e a linearidade do significante []

[] o signo linguiacutestico eacute arbitraacuterio e portanto cultural Arbitraacuterio eacute o contraacuterio de

motivado[] ou seja [] natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o som e o

sentido [] natildeo haacute qualquer necessidade natural que determine a uniatildeo de um

significante e de um significado Isso eacute comprovado pela diversidade das liacutenguas

[] Algumas pessoas criticaram a concepccedilatildeo da arbitrariedade do signo

mostrando que as onomatopeacuteias [] satildeo motivadas No entanto eacute preciso dizer

que em [] as onomatopeacuteias ocupam um lugar marginal na liacutengua e [] elas satildeo

submetidas agraves coerccedilotildees fonoloacutegicas de cada liacutengua []

O corolaacuterio da arbitrariedade eacute a convenccedilatildeo[]

Como diz Jakobson12

ldquoo proacuteprio Saussure atenuou seu lsquoprinciacutepio fundamental

do arbitraacuteriorsquo distinguindo em cada liacutengua aquilo que eacute lsquoradicalmentersquo arbitraacuterio

daquilo que soacute o eacute lsquorelativamentersquo (1973 109) Explica Fiorin

[] Jakobson (196998-117)13

mostra que embora estivesse correta a afirmaccedilatildeo

saussurreana de que os signos linguiacutesticos satildeo arbitraacuterios ela deveria ser matizada

12 JAKOBSON Roman Em traduccedilatildeo de Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo

Satildeo Paulo Clutrix 1973 6ordf ediccedilatildeo

18

pois em muitos casos em todos os niacuteveis da liacutengua aparecem motivaccedilotildees Os sons

parecem ter um simbolismo universal A oposiccedilatildeo de fonemas graves como o a

e agudos como o i eacute capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro do pontudo

e do arredondado do fino e do grosso do ligeiro e do maciccedilo Por isso quando se

vai indicar nas histoacuterias em quadrinho o riso dos homens e das mulheres usam-

se respectivamente ha ha ha e hi hi hi Ainda nas histoacuterias em quadrinho as

onomatopeacuteias que indicam ruiacutedo sons brutais e repentinos como pancadas

comeccedilam sempre por consoantes oclusivas que satildeo momentacircneas como um golpe

(pb td kg) pum paacute taacute Isso natildeo ocorre segundo Jakobson apenas nas

onomatopeacuteias Haacute regiotildees do leacutexico em que conjuntos de palavras apresentam

sentidos similares associados a sons similares Em inglecircs temos bash golpe

mash mistura smash golpe duro crash fragor desmoronamento dash

choque lash chicotada hash confusatildeo rash erupccedilatildeo brash ruiacutenas

clash choque violento trash repelente plash marulho splash salpico

flash relacircmpago[] (2002 62)

Ressaltem-se as observaccedilotildees que se seguem acerca da ldquomotivaccedilatildeordquo na poesia

Eacute na poesia no entanto que a motivaccedilatildeo do signo aparece em toda sua forccedila O

poeta busca motivar a relaccedilatildeo entre o significante e o significado Essa motivaccedilatildeo

natildeo aparece no niacutevel do signo miacutenimo mas no do signo-texto Por isso no texto

poeacutetico o plano da expressatildeo serve natildeo apenas para veicular conteuacutedos mas para

recriaacute-los em sua organizaccedilatildeo O material sonoro contribui para produzir

significaccedilatildeo o plano da expressatildeo eacute colocado em funccedilatildeo do conteuacutedo Os

elementos da cadeia sonora lembram de algum modo o significado presente no

plano do conteuacutedo As aliteraccedilotildees as assonacircncias os ritmos imitam aquilo de que

fala o poema pois ele eacute na frase do poeta Valeacutery um hesitaccedilatildeo prolongada entre

o som e o sentido Os sons na poesia satildeo escolhidos em razatildeo de seu poder

imitativo Nos versos abaixo de Os Lusiacuteadas a repeticcedilatildeo de consoantes oclusivas

especialmente do t imita as explosotildees que a tempestade produzia

Em tempo de tormenta e vento esquivo

De tempestade escura e triste pranto (V 18 3-4) (2002 63-64)

13 ID Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo em sua primeira ediccedilatildeo (1969) especificamente ao capiacutetulo ldquoAgrave procura

da essecircncia da linguagemrdquo que trata da motivaccedilatildeo de signos linguiacutesticos

19

A respeito da contribuiccedilatildeo do material sonoro para a significaccedilatildeo evoque-se a

teoria de Maurice Grammont citada por Antonio Candido em seu Estudo analiacutetico do

poema14

Candido refere-se ao que eacute exposto na segunda parte (ldquoLes sons consideres

comme moyens dexpressionrdquo p 193-375) do livro Le vers franccedilais como ldquoexemplo de

uma teoria que afirma a existecircncia de correspondecircncias entre a sonoridade e o

sentimentordquo15

Ponto de partida [da teoria de Grammont] Pode-se pintar uma ideia por meio de

sons todos sabem que isto eacute praticaacutevel na muacutesica e a poesia sem ser muacutesica eacute

() em certa medida uma muacutesica as vogais satildeo espeacutecies de notas []

Todavia Grammont eacute bastante prudente para observar e em seguida insistir

repetidas vezes que o som por si soacute natildeo produz efeitos se natildeo estiver ligado ao

sentido Em resumo todos os sons da linguagem vogais ou consoantes podem

assumir valores precisos quando isto eacute possibilitado pelo sentido da palavra em que

ocorrem se o sentido natildeo for suscetiacutevel de os realccedilar permanecem inexpressivos

[]

Distingue os seguintes casos 1 Repeticcedilatildeo de fonemas quaisquer 2 Vogais 3

Consoantes 4 Hiato 5 Rima

Destaquem-se as afirmaccedilotildees referentes agrave necessidade de associaccedilatildeo entre o som

e o sentido para a produccedilatildeo de efeitos e tambeacutem a distinccedilatildeo em sua teoria dos

diferentes casos de repeticcedilatildeo Grammont assim se refere agrave repeticcedilatildeo de consoantes e

vogais

Vogais 1 Agudas dor desespero alegria coacutelera ironia e desprezo aacutecido troccedila

2 Claras leveza doccedilura3 Brilhantes barulhos rumorosos 4 Sombrias barulhos

surdos raiva peso gravidade ideias sombrias 5 Nasais repetem os efeitos das

baacutesicas modificando-as

Consoantes 1 Momentacircneas Satildeo as explosivas proacuteprias a qualquer ideia de

choque oclusivas surdas e sonoras As primeiras mais fortes produzem mais

14 CANDIDO Antonio O estudo analiacutetico do poema Satildeo Paulo Humanitas 1996 pp 31-37 O

conteuacutedo do livro proveacutem de cursos ministrados pelo autor na USP em 1963 e 1964 15 Seraacute feito na Conclusatildeo deste trabalho breve comentaacuterio relativo agrave teoria de Grammont (assim como agrave

concepccedilatildeo de Castilho mencionada na proacutexima paacutegina) agrave luz de conceitos da semioacutetica de C S Peirce

20

efeito (T C P) que as segundas (DG B) Exprimem ou ajudam a dar ideia de um

ruiacutedo seco repetido [] (1996 31-37)

No seacuteculo XIX o escritor e teoacuterico da versificaccedilatildeo Antoacutenio Feliciano de

Castilho (1800-1875) jaacute se referia agrave potencialidade expressiva das vogais

Se a vogal A [] expressa a grandeza e a alegria o I [] parece conviraacute com as

ideias de pequenez e de tristeza O E parece incapaz de algum valor onomatoacutepico

ou representativo a natildeo ser para expressar languidez tibieza quietaccedilatildeo e ainda os

gozos serenos [] O O eacute [] som franco rasgado eneacutergico eacute como que uma

explosatildeo da alma [] O U [] sumido e soturno parece convir agrave desanimaccedilatildeo agrave

tristeza profunda aos assuntos lutuosos sepulcro tuacutemulo fuacutenebre funeacutereo etc16

Retornando agrave discussatildeo sobre a arbitrariedade do signo mencione-se a

referecircncia que faz Haroldo de Campos agrave objeccedilatildeo de Jakobson relativamente a tal

princiacutepio da linguiacutestica

Como observa Mattoso Cacircmara17

Jakobson nega a arbitrariedade absoluta do

signo fonoloacutegico sustentando que toda liacutengua que toda liacutengua necessariamente

procede a uma seleccedilatildeo entre um limitado nuacutemero de tipos de sons vocais e suas

combinaccedilotildees inclusive por uma injunccedilatildeo biopsicoloacutegica de que resulta a presenccedila

constante de certos tipos baacutesicos A tese do linguista russo encontra respaldo nas

posiccedilotildees de E Benveniste18

para quem haacute uma relaccedilatildeo de necessidade e

consubstancialidade entre os dois componentes do signo linguiacutestico (significante e

significado) ldquoSe a liacutengua eacute algo diverso de um conglomerado fortuito de noccedilotildees

erraacuteticas e de sons emitidos ao acaso isto se daacute porque haacute uma necessidade

imanente agrave sua estrutura como a toda estruturardquo afirma Benveniste Em todo caso

o que se poderaacute desde logo sustentar de maneira incontrastaacutevel eacute que na poesia

(onde como proclama Jakobson reina o jogo de palavras a paronomaacutesia figura

16 CASTILHO A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Para em pouco tempo e ateacute sem mestre

se aprenderem a fazer versos de todoas as medidas e composiccedilotildees Lisboa Imprensa Nacional 1851 pp 65-70 17 Referecircncia ao conceituado linguista brasileiro Joaquim Mattoso Cacircmara Juacutenior (1904-1970) ndash que foi

aluno de Jakobson nos Estados Unidos ndash autor de Histoacuteria da linguiacutestica entre outras obras 18 Referecircncia ao linguista estruturalista francecircs Eacutemile Benveniste (1902-1976) conhecido por seus

estudos sobre as liacutenguas indo-europeias e pela expansatildeo do paradigma linguiacutestico estabelecido por

Saussure Em portuguecircs eacute referecircncia a obra Problemas de Linguiacutestica Geral publicada em dois volumes

21

esta entendida num sentido amplo de correlaccedilatildeo de som e sentido) esta

arbitrariedade natildeo existe (1975 143)

Resta apresentar a outra caracteriacutestica essencial do signo na proposiccedilatildeo de

Saussure a ldquolinearidade do significanterdquo

O caraacuteter auditivo do significante linguiacutestico faz com que ele se desenvolva no

tempo Ele representa uma extensatildeo e essa extensatildeo eacute mensuraacutevel numa soacute

dimensatildeo eacute uma linha A escrita ao representar a fala representa essa linearidade

no espaccedilo [] (FIORIN 2002 65)

Roman Jakobson diga-se questionou tambeacutem esse outro postulado baacutesico da

linguiacutestica Saussuriana diz ele em seu estudo ldquoDois aspectos da linguagem e dois tipos

de afasiardquo ldquoPode-se dizer que a concorrecircncia de entidades simultacircneas e a concatenaccedilatildeo

de entidades sucessivas satildeo os dois modos segundo os quais noacutes que falamos

combinamos os constituintes linguiacutesticosrdquo (1973 38)19

Referecircncias que persistem em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo e agrave anaacutelise da linguagem

poeacutetica contemporaneamente apesar das relativizaccedilotildees ocasionadas pelas concepccedilotildees

poacutes-estruturalistas20

nas anaacutelises de poesia satildeo exatamente as ideias de Roman

Jakobson21

(1896-1982) (e persistem tambeacutem como se poderaacute ver relativamente agrave

traduccedilatildeo poeacutetica)22

Sobre elas leia-se inicialmente um esclarecimento sinteacutetico sobre

poesia do proacuteprio Jakobson expresso no artigo ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Em poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de princiacutepio construtivo

do texto As categorias sintaacuteticas e morfoloacutegicas os fonemas e seus componentes

19 Em seu trabalho sobre os afaacutesicos Jakobson aponta as duas formas para ele existentes de arranjo dos

signos combinaccedilatildeo e seleccedilatildeo esta postulaccedilatildeo seraacute fundamental para a compreensatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem (caracterizada pela projeccedilatildeo do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de combinaccedilatildeo como seraacute visto

adiante) 20 Mais adiante seratildeo mencionados por meio de citaccedilotildees alguns aspectos baacutesicos do denominado ldquopoacutes-

estruturalismordquo 21 Cabe que se incluam em nota como menccedilatildeo geral observaccedilotildees de Michael Peters

[] Roman Jakobson eacute uma figura central no desenvolvimento histoacuterico da linguiacutestica estrutural

Ele foi instrumental no estabelecimento do Formalismo Russo ajudando a fundar tanto o Ciacuterculo Linguiacutestico de Moscou quanto a Sociedade para o Estudo da Linguagem Poeacutetica (OPOJAZ) em

Satildeo Petersburgo antes de se mudar para a Checoslovaacutequia em 1920 para fundar o Ciacuterculo

Linguiacutestico de Praga []Opcit 2000 22 Veja-se por exemplo no livro O que eacute poesia (Rio de Janeiro 2009) a referecircncia presente entre poetas

brasileiros que expressam definiccedilotildees de caraacuteter mais teacutecnico ou que adotam referecircncias diretas a

conceitos de ordem linguiacutestica

22

(traccedilos distintivos) ndash em suma todos os constituintes do coacutedigo verbal ndash satildeo

confrontados justapostos colocados em relaccedilatildeo de contiguidade de acordo com o

princiacutepio de similaridade e de contraste e transmitem assim uma significaccedilatildeo

proacutepria A semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um parentesco semacircntico O

trocadilho ou para empregar um termo mais erudito e mais preciso a

paronomaacutesia reina na arte poeacuteticardquo (1973 72)

Ressalte-se a afirmaccedilatildeo ldquoA semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um

parentesco semacircnticordquo particularmente relevante para indicar a participaccedilatildeo das

relaccedilotildees focircnicas na construccedilatildeo do sentido de um poema entendimento que teremos em

vista na abordagem de certas passagens das traduccedilotildees que satildeo nosso objeto de estudo

Seraacute de interesse prioritaacuterio para este trabalho a formulaccedilatildeo de Jakobson sobre

as ldquofunccedilotildees da linguagemrdquo com base em sistema elaborado pelo linguista e psicoacutelogo

austriacuteaco Karl Buumlhler (1869-1963)23

Este identificou em 1934 a existecircncia de trecircs

dessas funccedilotildees Darstellungsfunktion a funccedilatildeo propriamente comunicativa que informa

sobre o conteuacutedo objetivo factual da realidade extralinguiacutestica Kundgabefunktion

(ldquofunccedilatildeo de exteriorizaccedilatildeordquo ou de ldquoexpressatildeordquo) Appelfunktion (ldquofunccedilatildeo de apelordquo ou

ldquoconativardquo) (Campos 1975 136-137) Para Jakobson seriam seis as funccedilotildees da

linguagem associadas respectivamente a cada um dos elementos que compotildeem o

esquema relativo agrave comunicaccedilatildeo verbal por ele proposto

23 ldquo[Buumlhler] [] participou em 1930 da Conferecircncia Fonoloacutegica Internacional convocada pelo Ciacuterculo de

Praga em 1930 e [] desenvolveu atividades na Universidade de Viena nos anos 30rdquo (Campos 1975

136)

23

Em raacutepida passagem cite-se a apresentaccedilatildeo do primeiro quadro por Diana

Pessoa de Barros

Para Jakobson na esteira dos estudos sobre a informaccedilatildeo haacute na comunicaccedilatildeo um

remetente que envia uma mensagem a um destinataacuterio e essa mensagem para ser

eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere apreensiacutevel pelo

remetente e pelo destinataacuterio um coacutedigo total ou parcialmente comum a ambos e

um contato isto eacute um canal fiacutesico e uma conexatildeo psicoloacutegica entre o remetente e o

destinataacuterio que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicaccedilatildeo (FIORIN

2002 28)

E de modo tambeacutem breve diga-se sobre as funccedilotildees que

1 A Emotiva centrada no remetente funda-se no ldquoeurdquo ou seja na primeira

pessoa do singular sendo-lhe afim a classe gramatical das interjeiccedilotildees uma vez que

ldquovida a suscitar reaccedilotildees de tipo emotivordquo (Campos 1975 137) Sobre esta funccedilatildeo diz

Haroldo de Campos ldquoEacute importante natildeo confundir esta funccedilatildeo com a funccedilatildeo poeacutetica O

Romantismo privilegiando a poesia do EU eacute o grande responsaacutevel por este equiacutevoco

que se perpetua na ideia vulgar que se tem de poesiardquo (1975 138)

2 A Referencial ou Cognitiva eacute aquela fulcrada no referente correspondente agrave

terceira pessoa do singular ldquoA mensagem denota coisas reais ou transmite

conhecimentos de ordem loacutegico-discursiva sobre determinado objeto [] Eacute a funccedilatildeo por

excelecircncia do conviacutevio diaacuteriordquo (CAMPOS 1975 138)

3 A Conativa centrada no destinataacuterio corresponde ao ldquoturdquo a segunda pessoa

do singular a ela se ligam as categorias gramaticais do imperativo e do vocativo ldquoA

mensagem representa uma ordem exortaccedilatildeo ou suacuteplica [] No acircmbito desta mesma

funccedilatildeo se enquadra a funccedilatildeo maacutegica ou encantatoacuteria expressa em foacutermulas optativas

[] como lsquoDeus te guardersquo ou em conjuros []rdquo (ib)

4 A Faacutetica centra-se no contato da comunicaccedilatildeo seu nome proveacutem do grego

phaacutetis (ruiacutedo rumor) As mensagens faacuteticas servem para ldquoestabelecer prolongar ou

interromper a comunicaccedilatildeordquo (p 139) consistindo em expressotildees como ldquoolaacuterdquo ldquoalocircrdquo

ldquoclarordquo ldquocomo vairdquo ldquonatildeo eacuterdquo etc

5 A Metalinguiacutestica centrada no coacutedigo eacute aquela em cujo exerciacutecio a

ldquomensagem se dirige para uma outra mensagem tomada como linguagem-objetordquo []

Os verbetes do dicionaacuterio exprimem tambeacutem esta funccedilatildeordquo (p 140)

24

6 A Poeacutetica eacute aquela funccedilatildeo em que a mensagem se volta sobre si mesma (ib

141) Sobre ela diz o proacuteprio Jakobson (as citaccedilotildees que se seguem ndash na versatildeo ao

portuguecircs dos tradutores jaacute mencionados ndash tornaratildeo o item relativo a esta funccedilatildeo maior

que os demais dada a sua importacircncia para a conceituaccedilatildeo de ldquopoesiardquo)

O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal o enfoque da mensagem por

ela proacutepria eis a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem []

A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo-somente a funccedilatildeo

dominante determinante ao passo que em todas as outras atividades verbais ela

funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (JAKOBSON 1973 127-

128)

[] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funccedilatildeo poeacutetica agrave poesia ou de

confinar a poesia agrave funccedilatildeo poeacutetica seria uma simplificaccedilatildeo excessiva e

enganadora A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo

somente a funccedilatildeo dominante ao passo que em todas as outras atividades

verbais ela funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (128)

[] qual eacute o caracteriacutestico indispensaacutevel inerente a toda obra poeacutetica Para

responder a esta pergunta devemos recordar os dois modos baacutesicos de arranjo

utilizados no comportamento verbal seleccedilatildeo e combinaccedilatildeo [] A seleccedilatildeo eacute feita

em base de equivalecircncia semelhanccedila e dessemelhanccedila sinoniacutemia e antoniacutemia ao

passo que a combinaccedilatildeo a construccedilatildeo da sequecircncia se baseia na contiguidade

(129)

[] A funccedilatildeo poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre

o eixo de combinaccedilatildeo (130) []

Os versos mnemocircnicos citados por Hopkins [] os modernos jungles de

propaganda e as leis medievais versificadas [] ou finalmente os tratados

cientiacuteficos sacircnscritos em verso [] ndash todos esses textos meacutetricos fazem uso da

funccedilatildeo poeacutetica sem contudo atribuir-lhe o papel coercitivo determinante que ela

tem na poesiardquo (131)

Sobre a funccedilatildeo poeacutetica e a poesia eacute importante ressaltar-se o seguinte

comentaacuterio do linguista que menciona a associaccedilatildeo de funccedilotildees nos diferentes gecircneros

poeacuteticos

25

Conforme dissemos o estudo linguiacutestico da funccedilatildeo poeacutetica deve ultrapassar os

limites da poesia e por outro lado o escrutiacutenio linguiacutestico da poesia natildeo se pode

limitar agrave funccedilatildeo poeacutetica As particularidades dos diversos gecircneros poeacuteticos

implicam uma participaccedilatildeo em ordem hieraacuterquica variaacutevel das outras funccedilotildees

verbais a par da funccedilatildeo poeacutetica dominante A poesia eacutepica centrada na terceira

pessoa potildee intensamente em destaque a funccedilatildeo referencial da linguagem a liacuterica

orientada para a primeira pessoa estaacute intimamente vinculada agrave funccedilatildeo emotiva a

poesia da segunda pessoa estaacute imbuiacuteda de funccedilatildeo conativa e eacute ou suacuteplice ou

exortativa dependendo de a primeira pessoa estar subordinada agrave segunda ou esta agrave

primeira (1973 129)

No caso da eacutepica portanto devido a seu teor narrativo prevaleceria aleacutem da

funccedilatildeo poeacutetica ndash comum aos gecircneros ndash a funccedilatildeo cognitiva mas isto natildeo excluiraacute as

demais funccedilotildees (lembre-se por exemplo de momentos de fala em primeira pessoa de

Odisseu)

Acerca das funccedilotildees da linguagem nos diversos gecircneros poeacuteticos diz Haroldo de

Campos

Na poesia o determinante eacute o exerciacutecio da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem aquela

que se volta sobre o lado sensiacutevel palpaacutevel dos signos linguiacutesticos [] Mas o

poeta usa concorrentemente outras funccedilotildees em caraacuteter acessoacuterio A maneira como

ele hierarquiza as funccedilotildees dentro de sua mensagem decide da natureza desta

Assim na poesia claacutessica caracterizada pela eacutepica a funccedilatildeo cognitiva ou

referencial eacute associada preferentemente agrave poeacutetica produzindo-se uma poesia da 3ordf

pessoa impessoal objetiva descritiva (na epopeacuteia haacute a representaccedilatildeo do objeto em

sua objetividade mesma Hegel) Na poesia romacircntica eacute a funccedilatildeo emotiva a

poesia do eu-liacuterico que ganha a palma sobre as remanescentes associando-se agrave

funccedilatildeo poeacutetica (tambeacutem a funccedilatildeo maacutegica eacute enfatizada pelo poeta romacircntico) Surge

assim uma poesia biograacutefico-emocional exortativa suplicatoacuteria encantatoacuteria uma

poesia do soluccedilo em que rebenta o sentimento pessoal na foacutermula de Musset

lembrada por Antocircnio Cacircndido Mas tanto na poesia claacutessica como na poesia

romacircntica se as funccedilotildees acessoacuterias determinantes do motivo primeiro do poetar

em cada uma dessas escolas natildeo forem por seu turno determinadas pela funccedilatildeo

poeacutetica ou configuradora da mensagem a informaccedilatildeo esteacutetica natildeo se realiza o

poema claacutessico ficaraacute entatildeo mero enunciado prosaico de ideias de descriccedilotildees de

informaccedilotildees documentaacuterias uma retoacuterica do pensamento cognitivo e o poema

26

romacircntico natildeo assumiraacute o estado esteacutetico do poema mas permaneceraacute no grito na

laacutegrima na explosatildeo emotiva na retoacuterica do coraccedilatildeo A fraqueza de boa parte do

Romantismo poeacutetico no Brasil e fora dele estaacute nesse dissiacutedio entre a motivaccedilatildeo

emocional e a capacidade de exerciacutecio da funccedilatildeo propriamente poeacutetica

(diagramadora configuradora) por parte de alguns de seus nomes mais conhecidos

[] A grandeza de um Camotildees de outro lado estaacute na sua capacidade de

equacionar na materialidade dos signos atraveacutes de operaccedilotildees de seleccedilatildeo e

combinaccedilatildeo de palavras o seu ideal classicista e no aporte de novidade que sua

poesia traz nesse sentido em relaccedilatildeo ao repertoacuterio da poesia portuguesa precedente

(1975 147-148)

Campos prossegue numa breve anaacutelise exemplo (entre tantos outros que

poderiam ser aqui incluiacutedos) ilustrativo de possibilidades de leitura ndash a partir da noccedilatildeo

de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (e conceitos correlatos) ndash que apontam para o exerciacutecio

a ser feito neste trabalho ao se abordar a eacutepica homeacuterica

Camotildees eacute um soberbo ldquodesignerrdquo da linguagem como se poderaacute ver pela anaacutelise

do exemplo seguinte

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas onde o mar se esconde

Laacute donde as ondas saem furibundas

Quando agraves iras do vento o mar responde

Netuno mora e moram as jocundas

Nereidas e outros deuses do mar onde

As aacuteguas campo deixam agraves cidades

Que habitam estas uacutemidas deidades

(Os Lusiacuteadas C VI n VIII)

Pode-se dizer para limitar nosso exame a este ponto fundamental que o efeito

poeacutetico desta descriccedilatildeo do reino marinho estaacute na habilidade com que o autor

estabelece um encadeamento de som e sentido fazendo com a palavra onda (seja

diretamente seja na sua forma latina unda por associaccedilatildeo etimoloacutegica) engaste-se

ou ressoe em outras palavras fundo profundas jocundas onde esconde donde

responde fonemas de unda podem ser vislumbrados ainda redistribuidamente em

ldquouacutemidasrdquo e ldquoNetunordquo aleacutem disto entre Nereidas e o epiacuteteto que lhes daacute Camotildees ndash

ldquouacutemidas deidadesrdquo haacute uma espeacutecie de apelo cruzado pois os fonemas finais da

27

primeira palavra se repetem no comeccedilo da segunda Toda esta oitava eacute percorrida

pela imagem semacircntica da agitaccedilatildeo das ondas atraveacutes de uma sucessatildeo de

projeccedilotildees focircnicas (Ib 148)

O poeta tradutor e semioticista brasileiro Deacutecio Pignatari estabelece uma

relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo jakobsoniana de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem e o pensamento

do criador da semioacutetica norte-americana contemporacircneo de Saussure o filoacutesofo

cientista e matemaacutetico Charles Sanders Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo eacute inadequada

embora se possa considerar que haja resistecircncia entre os estudiosos da linguiacutestica e da

semioacutetica de relacionarem os dois sistemas de estudo da linguagem (da linguiacutestica de

Saussure dedicada exclusivamente ao signo verbal emerge uma ldquosemiologiardquo mais

geral de reflexatildeo baseada no trabalho de Jakobson emergiria uma ldquosemioacutetica poeacuteticardquo

desenvolvida por A J Greimas e seguidores24

) pois o proacuteprio Jakobson aborda a

semioacutetica peirciana estabelecendo relaccedilotildees com a teorizaccedilatildeo de Saussure em seu

estudo ldquoAgrave procura da essecircncia da linguagemrdquo Citem-se as explicaccedilotildees de Pignatari

(ademais esclarecedoras acerca das proposiccedilotildees de Jakobson) nas quais se estabelece a

referida relaccedilatildeo (no trecho inicial o autor baseia-se no artigo do linguista sobre a

afasia)

Dois satildeo os processos de associaccedilatildeo ou organizaccedilatildeo das coisas por contiguidade

(proximidade) e por similaridade (semelhanccedila) Esses dois processos formam dois

eixos um eacute o eixo de seleccedilatildeo (por similaridade) chamado paradigma ou eixo

paradigmaacutetico o outro eacute o eixo de combinaccedilatildeo (por contiguidade)25

chamado

sintagma ou eixo sintagmaacutetico [] (2005 13)

Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce funccedilatildeo poeacutetica quando o

eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade Quando o paradigma

se projeta sobre o sintagma Em termos da semioacutetica de Peirce podemos dizer que

a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem se marca pela projeccedilatildeo do iacutecone sobre o siacutembolo ndash

ou seja ndash pela projeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc)

sobre o coacutedigo verbal Fazer poesia eacute transformar o siacutembolo (palavra) em iacutecone

24 Veja-se o livro Ensaios de semioacutetica poeacutetica (Satildeo Paulo Cultrix Ed da Univers de S Paulo 1976) Uma breve referecircncia a proposiccedilotildees da semioacutetica greimasiana seraacute feita adiante 25 A respeito de tais conceitos diz Pignatari em Semioacutetica e literatura (referindo-se agrave teoria de Peirce)

ldquoAs sugestotildees associativas satildeo inferecircncias segundo Peirce e as inferecircncias podem ser de dois tipos por

Contiguidade (Contiguity) e por Semelhanccedila (Resemblance) expressotildees cunhadas por David Hume

(1711-76) e que tiveram o mais amplo curso no pensamento moderno como o demonstram os exemplos

da psicologia da gestalt e da linguiacutestica estruturalrdquo (1979 35)

28

(figura) Figura eacute soacute desenho visual Natildeo Os sons de uma tosse e de uma melodia

tambeacutem satildeo figuras sonoras

Em poesia vocecirc observa a projeccedilatildeo de uma analoacutegica sobre a loacutegica da linguagem

a projeccedilatildeo de uma ldquogramaacuteticardquo analoacutegica sobre a gramaacutetica loacutegicardquo (p 17-18)

Para que seja elucidadas as concepccedilotildees de Charles Peirce (que serviratildeo para

referecircncias posteriores de anaacutelise) incluem-se a seguir esquemas e citaccedilotildees que

permitiratildeo do modo mais sinteacutetico possiacutevel uma compreensatildeo ligeira do assunto

Considere-se inicialmente uma das definiccedilotildees de signo propostas pelo ldquopai da

semioacuteticardquo

Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um

objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto) de modo idecircntico transformando-

se o interpretante por sua vez em signo e assim sucessivamente ad infinitum

(1977 74)26

Veja-se acerca do conceito expresso em tal definiccedilatildeo a representaccedilatildeo do

modelo triaacutedico peirciano27

por meio de esquema incluiacutedo por Pignatari em Semioacutetica amp

literatura

E em seguida a apresentaccedilatildeo que faz Pignatari iniciando-se com outra das

definiccedilotildees de signo propostas por Peirce

26 PEIRCE Charles S Semioacutetica Trad Joseacute Teixeira Coelho Neto Satildeo Paulo Perspectiva 1997 27 Sobre o esquema diz Pignatari ldquoJaacute se tornou bem conhecido o diagrama triangular com que C K

Ogden e I A Richards procuraram traduzir a relaccedilatildeo triaacutedica baacutesica de Peirce relativa ao problema do

significado envolvendo os termos de Signo ou Representame Objeto ou Referente Interpretanterdquo

(1979 25)

29

ldquoSigno ou Representame eacute um Primeiro que estaacute em tal genuiacutena relaccedilatildeo com o

Segundo chamado seu Objeto de forma a ser capaz de determinar que um

Terceiro chamado seu Interpretante assuma a mesma relaccedilatildeo triaacutedica (com o

Objeto) que ele signo manteacutem em relaccedilatildeo ao mesmo objetordquo []

Superando a relaccedilatildeo didaacutetica tipo signifiant signifieacute ndash que causa diga-se as

maiores dificuldades ao desenvolvimento de uma semiologia de extraccedilatildeo

saussuriana ndash Pierce cria um terceiro veacutertice chamado Interpretante que eacute o signo

de um signo ou como tentei definir em outra oportunidade um supersigno cujo

Objeto natildeo eacute o mesmo do signo primeiro pois que engloba natildeo somente Objeto e

Signo como a ele proacuteprio num contiacutenuo jogo de espelhos []

Um dos postulados baacutesicos ndash melhor dizendo ndash uma das descobertas fundamentais

de Peirce eacute a de que o significado de um signo eacute sempre outro signo (um dicionaacuterio

eacute o exemplo que ocorre imediatamente) portanto o significado eacute um processo

significante que se desenvolve por relaccedilotildees triaacutedicas ndash e o Interpretante eacute o signo-

resultado contiacutenuo que resulta desse processo

Acerca da classificaccedilatildeo dos signos segundo a semioacutetica norte-americana

observa Lucia Santaella que ldquoPeirce estabeleceu uma rede de classificaccedilotildees sempre

triaacutediacutecas (isto eacute trecircs a trecircs) dos tipos possiacuteveis de signordquo28

Antes que se prossiga no

entanto com excertos de texto de Santaella referentes ao tema leia-se o sinteacutetico e

esclarecedor escrito de Lucreacutecia DacuteAleacutessio Ferrara

Charles Sanders Peirce salienta trecircs tipos de representaccedilatildeo que satildeo de extrema

importacircncia porque apresentam de modo jaacute bem organizado a classificaccedilatildeo do

signo em iacutecone iacutendice e siacutembolo O iacutecone apresenta-se como uma representaccedilatildeo

que se manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo de qualidade o iacutendice

se apresenta como uma representaccedilatildeo que manteacutem com o objeto ao qual se refere

uma correspondecircncia de fato o siacutembolo se apresenta como uma representaccedilatildeo que

manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo imposta (A estrateacutegia os

signos 1981 67)

Seguem-se as colocaccedilotildees de Santaella acerca da tipologia siacutegnica de Peirce

28 SANTAELLA L O que eacute semioacutetica Satildeo Paulo Brasiliense 1983 p 83

30

Tomando como base as relaccedilotildees que se apresentam no signo por exemplo de

acordo com o modo de apreensatildeo do signo em si mesmo ou de acordo com o

modo de apresentaccedilatildeo do objeto imediato ou de acordo com o modo de ser do

objeto dinacircmico etc foram estabelecidas 10 tricotomias isto eacute 10 divisotildees

triaacutedicas do signo de cuja combinatoacuteria resultam 64 classes de signos e a

possibilidade loacutegica de 59049 tipos de signos

[] um exame mais minucioso dessas classificaccedilotildees pode nos habilitar para a

leitura de todo e qualquer processo siacutegnico []

Dentre todas essas tricotomias haacute trecircs as mais gerais agraves quais Peirce dedicou

exploraccedilotildees minuciosas Satildeo as que ficaram mais conhecidas e que tecircm sido mais

divulgadas Tomando-se a relaccedilatildeo do signo consigo mesmo (1ordm) a relaccedilatildeo do signo

com seu objeto dinacircmico (2ordm) e a relaccedilatildeo do signo com seu interpretante (3ordm)

tem-se

[] na relaccedilatildeo do signo consigo mesmo no seu modo de ser aspecto ou aparecircncia

(isto eacute a maneira como aparece) o signo pode ser uma mera qualidade um

existente (sin-signo singular) ou uma lei

Lembremos se algo aparece como pura qualidade este algo eacute primeiro Eacute claro

que uma qualidade natildeo pode aparecer e portanto natildeo pode funcionar como signo

sem estar encarnada em algum objeto Contudo o quali-signo diz respeito tatildeo-soacute e

apenas agrave pura qualidade

[] se o signo aparece como simples qualidade na sua relaccedilatildeo com seu objeto ele

soacute pode ser um iacutecone Isso porque qualidades natildeo representam nada Elas se

apresentam Ora se natildeo representam natildeo podem funcionar como signo Daiacute que o

iacutecone seja sempre um quase-signo algo que se daacute agrave contemplaccedilatildeo []

[] porque natildeo representam efetivamente nada senatildeo formas e sentimentos

(visuais sonoros taacuteteis viscerais) os iacutecones tecircm um alto poder de sugestatildeo []

Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas de criaccedilatildeo na arte e as descobertas

na ciecircncia tecircm a ver com iacutecones examinemos agora as modalidades de hipoiacutecones

31

ou melhor dos signos que representam seus objetos por semelhanccedila Assim uma

imagem eacute um hipoiacutecone porque a qualidade de sua aparecircncia eacute semelhante agrave

qualidade da aparecircncia do objeto que a imagem representa Todas as formas de

desenhos e pinturas figurativas satildeo imagens []

[] o interpretante que o iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera

possibilidade (qualidade ou impressatildeo) ou no maacuteximo no niacutevel do raciociacutenio um

rema isto eacute uma conjectura ou hipoacutetese Daiacute que diante de iacutecones costumamos

dizer ldquoParece uma escadardquo ldquoNatildeo parece uma cachoeirardquo [] e assim por diante

sempre no niacutevel do parecer29

[] Qualquer coisa que se apresente diante de vocecirc como um existente singular

material aqui e agora eacute um sin-signo

Isso em termos amplos e vastos Concretizando poreacutem em termos particulares o

iacutendice como seu proacuteprio nome diz eacute um signo que como tal funciona porque

indica uma outra coisa com a qual ele estaacute atualmente ligado Haacute entre ambos

uma conexatildeo de fato Assim o girassol eacute um iacutendice isto eacute aponta para o lugar do

sol no ceacuteu []

Rastros pegadas resiacuteduos remanecircncias satildeo todos iacutendices de alguma coisa que por

laacute passou deixando suas marcas []

Quanto agraves triacuteades ao niacutevel de terceiridade elas comparecem quando em si mesmo

o signo eacute de lei (legi-signo) Sendo uma lei em relaccedilatildeo ao seu objeto o signo eacute um

siacutembolo Isto porque ele natildeo representa seu objeto em virtude do caraacuteter de sua

qualidade (hipoiacutecone) nem por manter em relaccedilatildeo ao seu objeto uma conexatildeo de

fato (iacutendice) mas extrai seu poder de representaccedilatildeo porque eacute portador de uma lei

que por convenccedilatildeo ou pacto coletivo determina que aquele signo represente seu

objeto []

[Os siacutembolos satildeo] signos triaacutedicos genuiacutenos pois produziratildeo como interpretante

um outro tipo geral ou interpretante em si que para ser interpretado exigiraacute um

outro signo e assim ad infinitum Siacutembolos crescem e se disseminam mas eles

trazem embutidos em si caracteres icocircnicos e indiciais30

(1983 83-94)

29 Haacute algo importante a se observar ligado agraves conceituaccedilotildees apresentadas por vezes as anaacutelises de fragmentos da eacutepica homeacuterica realizadas neste trabalho enfrentaratildeo o limite da incomensurabilidade da

inviabilidade de avaliaccedilatildeo objetiva exatamente porque lidando-se com o plano esteacutetico ndash no acircmbito

portanto da iconicidade ndash muito do que se poderaacute dizer a respeito do objeto estudado seraacute apenas

impressatildeo percepccedilatildeo diante do sugerido 30 Estas observaccedilotildees finais do trecho satildeo especialmente relevantes para este trabalho a oacuteptica da

semioacutetica peirceana prevecirc a existecircncia ldquomaterialrdquo do signo que ainda que verbal convencionado traz em

32

Mencionem-se as dez classes de signo31

formuladas por Peirce assim

relacionadas por Santaella em A teoria geral dos signos (2000) com base em C

Hardwick32

I Quali-signo icocircnico remaacutetico Por exemplo um sentimento de

vermelhidatildeo

II Sin-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama individual

III Sin-signo indicativo remaacutetico Um grito espontacircneo

IV Sin-signo indicativo dicente Um catavento

V Legi-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama abstraindo-se sua

individualidade

VI Legi-signo indicativo remaacutetico Um pronome demonstrativo

VII Legi-signo indicativo dicente Um pregatildeo de rua

VIII Legi-signo simboacutelico remaacutetico Um substantivo comum

IX Legi-signo simboacutelico dicente Uma proposiccedilatildeo

X Legi-signo simboacutelico argumental Um soligismo

Eacute possiacutevel fazer-se tambeacutem uma relaccedilatildeo aparentemente imprevista entre

funccedilatildeo poeacutetica ldquoiconicidade verbalrdquo e o pensamento de um ldquooutro Saussurerdquo aquele

que se dedicou intensamente a identificar principalmente em versos latinos

ldquosaturninosrdquo a presenccedila de anagramas descobertos de certo modo como uma

determinaccedilatildeo interna ao signo arbitraacuterio arranjo simultacircneo natildeo-linear de fonemas o

pesquisador e anotador incansaacutevel dos cadernos deixados de lado ateacute a iniciativa de seu

disciacutepulo Jean Starobinski de apresentaacute-los e publicaacute-los O conceito que emerge dessas

anotaccedilotildees permite uma visatildeo da poeticidade ou da linguagem poeacutetica por um caminho

proacuteprio que pode ser considerado anaacutelogo e complementar agraves duas visotildees jaacute

relacionadas

Jakobson assim se refere ao trabalho de Saussure em entrevista concedida em

1966 ldquoquando indagado sobre a unidade da linguiacutestica e da poeacuteticardquo

si a presenccedila icocircnica ou indicial Com base nesta concepccedilatildeo podem ser feitas anaacutelises identificadoras da

iconicidade e da indicialidade manifestas nos textos poeacuteticos estudados 31 A identificaccedilatildeo das classes serviraacute de subsiacutedio para algum apontamento integrante deste estudo 32 HARDWICK C Semiotics and significs Bloomington Indiana University Press 1977 p 161

33

Uma tal unidade pode jaacute pode ser extraiacuteda dos ensinamentos de Saussure Veja os

seus ldquoAnnagrammesrdquo Acabo justamente de examinar os seus manuscritos em

Genebra graccedilas a Starobinski Trata-se sua obra mais genial que chegou a assustar

ateacute mesmo seus disciacutepulos Daiacute a tentativa destes uacuteltimos de manter essa parte da

obra saussuriana em segredo tanto tempo quanto possiacutevel Saussure todavia em

carta a Meillet dizia considerar esse trabalho como sendo sua obra-prima

(CAMPOS H 1976 106-107)33

Sobre o propoacutesito de Saussure diz Haroldo de Campos

O anagrama propriamente dito noacutes o sabemos lida com as letras os sinais

graacuteficos os diacutegitos do alfabeto foneacutetico [] Assim EVA eacute anagrama de AVE

ROMA de AMOR e reciprocamente

Saussure poreacutem interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos

fonemas pelo anagrama enquanto ldquofigura focircnicardquo como diria Jakobson

constituiacutedo pela repeticcedilatildeo de certos sons cuja combinaccedilatildeo imitaria uma dada

palavra []

As observaccedilotildees de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino

caracterizado pela aliteraccedilatildeo Ao cabo do exame que empreendeu a praacutetica

aliterativa pareceu-lhe neste verso a manifestaccedilatildeo particular e menos significativa

de determinadas leis focircnicas cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na

afonia Assim no exemplo

Taurasia Cisauna samnio cepit

Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipiatildeo) convocando para esta reconstruccedilatildeo

fonoloacutegica as siacutelabas Ci (de Cisauna) pi (de cepit) e io (de Samnio) aleacutem de

vislumbrar uma outra repeticcedilatildeo quase-perfeita do mesmo nome-tema em

fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra

os quatro primeiros fonemas da segunda) [] (A operaccedilatildeo do texto 1976 107)

O ponto nodal das reflexotildees de Saussure sobre os fenocircmenos anagramaacuteticos estaacute

justamente naquilo em que elas tocam a questatildeo da lienaridade da liacutengua []

Como eacute sabido um dos postulados fundamentais da linguiacutestica saussuriana eacute o da

linearidade do significante do signo linguiacutestico [] Jakobson contestou a validade

33 CAMPOS H de A operaccedilatildeo do texto Satildeo Paulo Perspectiva 1976

34

desta assertiva invocando para infirmaacute-la o caraacuteter natildeo-linear mas simultacircneo

dos traccedilos distintivos que constituem o fonema (Ib 110)

Repeticcedilatildeo aliada agrave simultaneidade talvez seja esta (ressalte-se como referencial

proposto) a resposta mais evidente agrave necessidade de se identificar uma condiccedilatildeo de

leitura dada pela reincidecircncia que permita a identificaccedilatildeo do que caracterizaria ateacute

onde a generalizaccedilatildeo pudesse propiciar a linguagem poeacutetica Neste sentido um fator

miacutenimo ndash e muacuteltiplo ndash comum (formado pelos dois fatores associados ou seja pela

possibilidade de se ldquolerrdquo ou perceber uma unidade por meio de elementos que se

juntam pela repeticcedilatildeo) serviraacute de base a uma aproximaccedilatildeo dos objetos escolhidos para

este trabalho

Retornando ao empenho do pesquisador genebrino citem-se comentaacuterios

relevantes de Jakobson sobre ele no artigo ldquoA primeira carta de Ferdinand de Saussure

a A Meillet sobre os Anagramasrdquo (em traduccedilatildeo de Joatildeo Alexandre Barbosa)

Eacute muito surpreendente que os noventa e nove cadernos manuscritos de Saussure

consagrados agrave ldquopoeacutetica fonizanterdquo e em particular ao ldquoprinciacutepio do anagramardquo

tenham podido permanecer ocultados aos leitores por mais de meio seacuteculo ateacute que

Jean Starobinski tivera a feliz ideia de publicar vaacuterias amostras cuidadosamente

escolhidas e comentadas (1990 9)34

[]

A anaacutelise linguiacutestica dos versos latinos gregos veacutedicos e germacircnicos esboccedilada

por Saussure eacute sem nenhuma duacutevida salutar natildeo somente para a poeacutetica mas

tambeacutem segundo a expressatildeo do autor ldquopara a proacutepria linguiacutesticardquo ldquoA genialidade

da intuiccedilatildeordquo do pesquisador potildee agrave luz a natureza essencial e eacute preciso acrescentar

universalmente polifocircnica e polissecircmica da linguagem poeacutetica e desafia como

Meillet bem observou a concepccedilatildeo corrente ldquode uma arte racionalistardquo em outras

palavras a ideia oca e importuna de uma poesia infalivelmente racional (p 12)

Talvez a atitude de disciacutepulos do linguista de ocultarem seu trabalho sobre

anagramas natildeo seja surpreendente o proacuteprio Saussure manifestava duacutevidas acerca da

pertinecircncia de sua pesquisa e da proacutepria existecircncia real de seu objeto de estudo como

34 JAKOBSON Roman Poeacutetica em accedilatildeo Seleccedilatildeo prefaacutecio e org de Joatildeo Alexandre Barbosa Satildeo

Paulo Perspectiva Ed da Univers de S Paulo 1990

35

revela a carta referida no tiacutetulo do artigo de Jakobson a primeira das por ele enviadas ao

linguista francecircs Paul Jules Antoine Meillet (1866-1936)

Poderia o senhor por amizade fazer-me o favor de ler as notas sobre o annagrame

dans les poegravemes homeacuteriques que reuni entre outros estudos no decorrer das

pesquisas sobre o verso saturnino e a respeito dos quais eu o consulto

confidencialmente porque eacute quase impossiacutevel agravequele que teve a ideia saber se eacute

viacutetima de uma ilusatildeo ou se alguma coisa de verdadeiro estaacute na base de sua ideia

ou se a verdade existe apenas parcialmente (1990 4)

A duacutevida de Saussure quanto agrave existecircncia dos anagramas que distinguia eacute para

este toacutepico do presente estudo de particular importacircncia primeiro porque reflete a

questatildeo da existecircncia de caracteriacutesticas inerentes agrave linguagem poeacutetica segundo porque

evidencia os limites incertos entre o que seria de fato integrante de um texto e o que

seria originado pela proacutepria leitura terceiro porque a questatildeo da ldquoveracidaderdquo das

descobertas esbarra no questionamento da intencionalidade do produtor do texto assim

como da do leitor intencionalidade esta que poderaacute depender da postura teoacuterica dos

objetivos e do repertoacuterio de quem exerce a leitura Estes aspectos seratildeo aqui discutidos

com base na contraposiccedilatildeo entre as oacutepticas estruturalista e poacutes-estruturalista

desconstrucionista35

(Neste ponto da exposiccedilatildeo cabe referir-me a um texto meu que acredito poderaacute

cumprir um papel de informaccedilatildeo (ou de expressatildeo) adicional ao que tem sido exposto36

e por isso encontra-se anexo a este trabalho Trata-se de um texto ficcional sobre o

Saussure dos anagramas (e sobre os anagramas de Saussure) ilustrativo do trabalho do

linguista e de seu contexto (e auto-referido pela inserccedilatildeo de anagramas desvendaacuteveis

conscientes ou inconscientes para o autor) o conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo que

apresenta uma imaginada situaccedilatildeo referente agrave derradeira tentativa do pesquisador em

35 Os focos teoacutericos escolhidos para discussatildeo integram possiacuteveis categorias em que se podem agrupar as

teorias sobre traduccedilatildeo Na classificaccedilatildeo de Anthony Pym (2011) ndash que seraacute abordada em outro toacutepico ndash

teorias advindas do estruturalismo baseado em Saussure como as de Catford e Nida (que creem na possibilidade de ldquotransporterdquo dos significados de uma liacutengua a outra e de equivalecircncia de sentido entre

palavras de liacutenguas diversas) satildeo enquadradas na categoria de ldquoTeorias da equivalecircnciardquo enquanto que a

teorizaccedilatildeo estruturalista de Jakobson integra a categoria ldquoTeorias descritivistasrdquo o desconstrucionismo

por sua vez pertence agrave categoria de ldquoteorias indeterministasrdquo 36 O conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo estaacute publicado na revista eletrocircnica Zunaacutei (wwwrevistazunaicom)

consultado em 24112011

36

obter confirmaccedilatildeo quanto agrave pertinecircncia de sua pesquisa suscitando reflexotildees sobre o

existente e o imaginado desejaacuteveis aos objetivos gerais deste estudo)

Mas retornemos agrave discussatildeo sobre linguagem poeacutetica por meio de postulaccedilotildees a

serem consideradas complementarmente Entre as inuacutemeras reflexotildees baseadas nas

proposiccedilotildees de ordem estrutural sobre poesia ndash cuja amplitude e diversidade

ultrapassariam em muito os limites deste estudo ndash escolho algumas que particularmente

satildeo de interesse por adicionarem alguns aspectos apontados sobre a especificidade da

linguagem poeacutetica visando agrave disponibilizaccedilatildeo de referecircncias internas ao trabalho

Apresentemos inicialmente neste toacutepico complementar a visatildeo expressa em

hipoacutetese do linguista Jean Cohen37

sobre a caracterizaccedilatildeo da poesia

[] O fato inicial em que se basearaacute nossa anaacutelise eacute que o poeta natildeo fala como

todo mundo Sua linguagem eacute anormal e tal anormalidade confere-lhe um estilo A

poeacutetica eacute a ciecircncia do estilo poeacutetico (1978 16)

admitimos pelo menos a tiacutetulo de hipoacutetese de trabalho a existecircncia na linguagem

de todos os poetas de uma invariante que permanece atraveacutes das variaccedilotildees

individuais ou seja uma maneira idecircntica de desviar da norma uma regra

imanente ao proacuteprio desvio (ib)

O verso natildeo eacute simplesmente diferente da prosa Opotildee-se a ela natildeo eacute natildeo-prosa

mas antiprosa [] (p 80)

Como a prosa a poesia compotildee um discurso isto eacute alinha seacuteries de termos

foneticamente diferentes Todavia na linha das diferenccedilas semacircnticas o verso

adapta toda uma seacuterie de semelhanccedilas focircnicas eacute como tal que ele eacute verso (p 81)

[] temos o direito de concluir que a redundacircncia eacute um processo que caracteriza

como tal a linguagem poeacutetica (p 121)

[] A diferenccedila entre prosa e poesia eacute de natureza linguiacutestica38

vale dizer formal

Natildeo se acha nem na substacircncia sonora nem na substacircncia ideoloacutegica mas no tipo

particular de relaccedilotildees que o poema institui entre o significante e o significado de

um lado e os significados entre si de outro

37 Os excertos de textos do autor satildeo colhidos de Estrutura da linguagem poeacutetica (Struture du langage poeacutetique) publicado originalmente em 1966 e de A plenitude da linguagem ndash teoria da poeticidade (Le

haut langage ndash theorie de la poeticite) publicado originalmente em 1979 38 Explicitamente (de modo anaacutelogo agraves demais procuras e definiccedilotildees estruturalistas) o autor atribui

caracteriacutesticas e diferenccedilas da poesia agrave proacutepria linguagem a contraposiccedilatildeo desta oacuteptica com a concepccedilatildeo

poacutes-estruturalista (que atribui agrave leitura o papel preponderante na identificaccedilatildeo dos ldquogecircnerosrdquo) seraacute

novamente discutida adiante

37

[] Esse tipo particular de relaccedilotildees caracteriza-se pela sua negatividade jaacute que

cada um dos processos ou ldquofigurasrdquo que constituem a linguagem poeacutetica em sua

especificidade eacute uma maneira diferente segundo os niacuteveis de violar o coacutedigo da

linguagem normal39

(1978 161)

[] A funccedilatildeo da prosa eacute denotativa a funccedilatildeo da poesia eacute conotativa A teoria

conotativa da linguagem poeacutetica natildeo eacute nova [] Valeacutery jaacute distinguia ldquodois efeitos

de expressatildeo pela linguagem transmitir um fato ndash produzir uma emoccedilatildeo A poesia

eacute um compromisso ou certa proporccedilatildeo destas duas funccedilotildeesrdquo (p 165)

Em A plenitude da linguagem Cohen comeccedila por afirmar a existecircncia da poesia

como objeto de estudo de uma ciecircncia e como tal deveraacute apresentar invariantes que a

definam (conforme jaacute anunciara em sua obra anterior)

A poesia eacute uma segunda potecircncia da linguagem um poder de magia e de

encantamento cujos segredos a poeacutetica tem por objetivo descobrir []

O primeiro postulado da presente pesquisa eacute o postulado da existecircncia de seu

objeto Se a palavra ldquopoesiardquo tem um sentido [] eacute necessaacuterio que em todos os

objetos designados por esta palavra exista alguma coisa de idecircntico uma ou

algumas invariantes subjacentes que transcendam a variedade infinita dos textos

individuais [] Pode-se dar um nome a essa variacircncia Platatildeo dizia que o belo eacute

ldquoaquilo por que satildeo belas todas as coisas belasrdquo [Hiacutepias maior] Definiccedilatildeo que soacute eacute

tautoloacutegica na aparecircncia pois postulando uma essecircncia comum a todos os objetos

belos faz escapar a beleza ao relativismo e fornece um objeto especiacutefico agrave esteacutetica

como ciecircncia [] (1987 7)

O autor prossegue propondo (em continuidade ao que propusera em seu estudo

anteriormente publicado) uma anaacutelise que em vez de considerar a poesia como algo

mais do que a prosa a considere um ldquoanticoacutedigordquo (de passagem critica a teoria de

Jakobson e a teoria dos anagramas de Saussure40

)

39 Embora o autor utilize uma terminologia em parte diferenciada relativa a aspectos definidos ao longo

de seu amplo estudo Estrutura da linguagem poeacutetica pode-se compreender esta siacutentese por seu sentido

geral 40 Sobre a primeira diz Cohen ldquoo princiacutepio de lsquoprojeccedilatildeo do eixo das equivalecircncias no eixo das

combinaccedilotildees lsquogeneraliza aos trecircs niacuteveis da linguagem as recorrecircncias formais que a versificaccedilatildeo reserva

em exclusivo ao niacutevel sonoro O que podemos chamar sentido natildeo eacute em princiacutepio afetado pela adiccedilatildeo

das regras de equivalecircncia e permanece parafraseaacutevel em prosardquo [O autor parece desconsiderar que

Jakobson prevecirc uma associaccedilatildeo entre som e sentido (relativo ao plano semacircntico) que comporia como se

pode deduzir um ldquosentidordquo mais amplo integrado] Sobre a segunda afirma ldquoA perspectiva

38

O conjunto das teorias poeacuteticas conhecidas ateacute aqui assenta num postulado comum

[] convergem para aceitar como traccedilo pertinente da diferenccedila poesianatildeo poesia

(ou prosa) um caraacuteter propriamente quantitativo A poesia natildeo eacute coisa diferente da

prosa ela eacute mais [] (p 10)

Ao inveacutes das teorias precedentes [a anaacutelise proposta] constitui a linguagem poeacutetica

natildeo como hipercoacutedigo mas como anticoacutedigo [] (p 14)41

Para destacar uma proposiccedilatildeo que particularmente interessaraacute a este estudo

mencione-se que no texto ldquoPoesia e redundacircnciardquo integrante da obra O discurso da

poesia42

Cohen reafirma com novo alcance o conceito expresso em frase jaacute aqui

transcrita

A redundacircncia eacute a lei constitutiva do discurso poeacutetico (1982 17)

No livro mencionado acrescente-se o autor ndash que sustenta que a ldquocoerecircncia [nos

poemas] eacute obtida no niacutevel da sinoniacutemia pateacuteticardquo distingue a existecircncia em poesia de

trecircs espeacutecies de redundacircncia do signo (repeticcedilatildeo de palavra a estrofe) do significante

(total ndash homoniacutemia ou parcial ndash rimas etc) e do significado (total ndash sinoniacutemia ou

parcial ndash pleonasmo) (pp 54-57)

Passemos a apresentar aspectos da proposiccedilatildeo do linguista Samuel R Levin por

meio da citaccedilatildeo de postulaccedilotildees suas

Vaacuterias satildeo as teacutecnicas empregadas em criacutetica literaacuteria mas um dos resultados a que

todas chegam parece ser o de evidenciar que em oposiccedilatildeo agrave prosa a poesia se

distingue por uma singular unidade de estrutura []

A anaacutelise revela certas estruturas que satildeo peculiares agrave linguagem da poesia [] A

tais estruturas chamamos ACOPLAMENTOS (couplings) [] o conceito de

acoplamento alcanccedila explicar uma experiecircncia generalizada a saber a de que a

contemporacircnea herdada da teoria dos anagramas de Saussure [] natildeo vecirc na poesia mais que um traccedilo

suplementar Se num texto em que se trata de Cipiatildeo se deve (re)constituir o nome lsquoCipiatildeorsquo disperso na

cadeia sintagmaacutetica teremos aiacute um signo adicional que faz do texto [] qualquer coisa lsquomaisrsquordquo (1979 12-13) 41 As citaccedilotildees servem para exemplificar o esforccedilo na concepccedilatildeo estruturalista de identificaccedilatildeo de

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave linguagem poeacutetica e em primeira e uacuteltima anaacutelise a afirmaccedilatildeo da existecircncia

da poesia 42 COHEN Jean ldquoPoesia e redundacircnciardquo In O discurso da poesia Coimbra [Poeacutetique 28] Almedina

1982

39

poesia tende a permanecer na memoacuteria do leitor Possui ela uma qualidade

duradoura [] (1975 13-14)

Um poema combina no eixo sintagmaacutetico elementos que na base de suas

equivalecircncias naturais constituem classes ou paradigmas de equivalecircncia []

Ademais a exploraccedilatildeo dessas equivalecircncias que podem derivar de traccedilos focircnicos

eou semacircnticos natildeo eacute fortuita mas processa-se sistematicamente num poema Tal

exploraccedilatildeo sistemaacutetica assume a forma de colocaccedilatildeo de elementos linguiacutesticos

naturalmente equivalentes em posiccedilotildees equivalentes ou para dizecirc-lo de outro

modo de uso de posiccedilotildees equivalentes como engastes para elementos focircnicos eou

semacircnticos equivalentes (pp 51-52)

Neste ponto da apresentaccedilatildeo de uma questatildeo primeira para os objetivos de nosso

estudo cabe observar a possibilidade (simplificadora) de identificaccedilatildeo de um fator

comum agraves principais teorias mencionadas seja pela associaccedilatildeo de signos por

semelhanccedila seja pela detecccedilatildeo de anagramas subjacentes conforme regras de reiteraccedilatildeo

seja pela visatildeo de unidade a partir de redundacircncias isto eacute pela identificaccedilatildeo de

elementos em posiccedilotildees equivalentes haacute inerentemente agraves configuraccedilotildees vislumbradas

a ocorrecircncia de repeticcedilatildeo De modos diversos e em diferentes planos da linguagem a

reincidecircncia de elementos permite que se perceba a repeticcedilatildeo ainda que esta seja

aproximativa isto eacute guarde algum niacutevel de variaccedilatildeo (que natildeo impeccedila o seu

reconhecimento) e dependa de certo grau interpretativo Em um de seus textos

referenciais sobre poesia do qual transcrevemos a seguir alguns excertos Jakobson

afirma a importacircncia da repeticcedilatildeo nos versos antes de expressar ndash com base na lapidar e

famosa frase de Paul Valeacutery (Le poegraveme mdash cette hesitation prolongeacutee entre le son et le

sens)43

ndash sua visatildeo relativa agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo

A poesia eacute um facto inelutaacutevel Dizem os antropoacutelogos que natildeo haacute um soacute grupo

eacutetnico desprovido de poesia mesmo na sociedades denominadas primitivas

Trata-se pois dum fenocircmeno universal exactamente como a linguagem em certos

grupos eacutetnicos apenas existe a par da linguagem quotidiana a linguagem poeacutetica

desconhecem-se poreacutem sociedades em que aleacutem da linguagem corrente se

cultive exclusivamente a prosa artiacutestica [] Note-se por outro lado que em certas

43 VALEacuteRY Paul Varieacuteteacute II Œuvres II (1941) Paris Gallimard col Bibliothegraveque de la Pleiade 1960

p 636

40

sociedades soacute existe poesia sob a forma de poesia cantada eacute o sincretismo

primitivo da palavra poeacutetica e da muacutesica Mais em certas tribos que natildeo possuem

muacutesica instrumental opotildeem-se o conjunto poesia-muacutesica dum lado e a linguagem

corrente do outro Nas tribos que possuem muacutesica vocal e muacutesica instrumental

observa-se por via de regra uma estreita ligaccedilatildeo entre a muacutesica instrumental e a

danccedila Logo dois sincretismos muacutesica instrumental-danccedila e muacutesica vocal-poesia

[] Como se sabe a palavra poesia que eacute de origem grega prende-se a um verbo

que significa criar e na verdade a poesia natildeo sendo o uacutenico aspecto criador eacute o

domiacutenio mais criador da linguagem[] versus quer dizer ldquoretorno um discurso

que comporta regressos ndash e penso ser este um fenocircmeno fundamental [] no verso

a repeticcedilatildeo desempenha um papel de que estamos conscientes Projeta-se na

linguagem poeacutetica o princiacutepio da equivalecircncia na sequecircncia as siacutelabas Os acentos

tornam-se unidades equivalentes Donde vem a importacircncia da repeticcedilatildeo Cumpre

natildeo esquecer que as frases satildeo feitas de palavras e grupos de palavras e se por

assim dizer ldquovivemos a repeticcedilatildeo das silabas dos acentos das entoaccedilotildees as

palavras que se correspondem pela sua posiccedilatildeo avaliamo-las subconscientemente

do ponto de vista de sua equivalecircncia []

A questatildeo fundamental reside em poesia nas relaccedilotildees entre som e sentido []

Fala-se de estruturas ritmicas fala-se de aliteraccedilatildeo ou de rima satildeo sem duacutevida

realidades mas natildeo se trata soacute de muacutesica estaacute sempre em jogo a relaccedilatildeo entre som

e sentido [] (JAKOBSON R ldquoO que fazem os poetas com as palavrasrdquo revista

Coloacutequio Letras nordm 12 Marccedilo de 1973 5-9)

Uma das consequecircncias previsiacuteveis da repeticcedilatildeo eacute a criaccedilatildeo de expectativas que

podem incluir a proacutepria expectativa de coerecircncia ou unidade capaz de influir na

apreensatildeo do objeto de linguagem favorecendo por exemplo a memorizaccedilatildeo Mas a

expectativa de repeticcedilatildeo eacute a prerrogativa do ritmo como diz Dubois

Ritmo e expectativa estatildeo sempre ligados Eacute a repeticcedilatildeo regular isoacutecrona de um

evento que estabelecendo forte correlaccedilatildeo leva agrave percepccedilatildeo do ritmo cria a

previsibilidade e provoca a expectativa [] a experiecircncia demonstra que as

condiccedilotildees de percepccedilatildeo do ritmo correspondem a regras flutuantes [] O

isocronismo antes de tudo pode ser muito aproximativo satildeo necessaacuterios

intervalos [] que variem do simples ao duplo para destruir a percepccedilatildeo do ritmo

[] (DUBOIS Jacques et al Retoacuterica da poesia 1980 134)rlm

41

Assim sendo natildeo seraacute despropositada a opiniatildeo ateacute certo ponto generalizada

entre poetas e estudiosos de arte poeacutetica de que a poesia envolve sempre ritmo tambeacutem

natildeo o seraacute a visatildeo de alguns de que a poesia nasceria da percepccedilatildeo dele em diferentes

niacuteveis em que se possa denominar ritmo a associaccedilatildeo de elementos reincidentes44

Para prosseguir com a menccedilatildeo de esforccedilos para a caracterizaccedilatildeo da linguagem

poeacutetica cite-se no acircmbito sinteacutetico de nosso estudo que o contato com referecircncias

importantes natildeo tocadas aqui podem ser obtidas por meio do trabalho do teoacuterico

brasileiro da traduccedilatildeo Maacuterio Laranjeira45

Apoacutes apresentar em seu estudo proposiccedilotildees

estruturalistas e gerativistas46

o referido autor observa o que considera serem limitaccedilotildees

proacuteprias de tais ldquogramaacuteticasrdquo (cujos recursos natildeo bastariam para caracterizar o texto

como poema) propotildee logo a utilizaccedilatildeo do conceito de ldquoautotelicidaderdquo (funccedilatildeo interior

ao texto este se portador dessa funccedilatildeo natildeo teria objetivos externos a si mesmo) com

base em J M Adam (Pour lire le poegraveme) Apoacutes considerar que a contribuiccedilatildeo da

linguiacutestica eacute ldquoincontestavelmente preciosa e insubstituiacutevelrdquo afirma ser ela ldquonecessaacuteria

mas natildeo suficienterdquo Para ele a ldquoPoeacutetica transcende os estritos limites da linguiacutesticardquo e

para ldquocobrir pelo menos parcialmente essa lacunardquo opta por lanccedilar matildeo

principalmente da semanaacutelise desenvolvida pela filoacutesofa semioticista e criacutetica buacutelgaro-

francesa Julia Kristeva (1941) Apoiando-se em conceitos como o de significacircncia

(ldquoComo o poema sempre nos diz uma coisa e significa outra a sua marca identificadora

estaacute nessa maneira obliacutequa de gerar o seu proacuteprio sentidordquo ldquoa essa lsquounidade formal e

semacircntica que conteacutem todos os sinais de obliquidadersquo Riffaterre chama significacircnciardquo)

Laranjeira encaminha sua importante contribuiccedilatildeo para o entendimento da traduccedilatildeo

poeacutetica como sendo uma tarefa que deve considerar a ldquounidade de significacircnciardquo ldquoa

unidade de significacircncia eacute o texto inteirordquo ldquo[] se eacute o poema todo que constitui a

unidade de significacircncia tambeacutem seraacute o poema todo a unidade da traduccedilatildeo poeacuteticardquo

Este ponto de vista diga-se de passagem relaciona-se com a conclusatildeo desde cedo

manifesta por Haroldo de Campos com base no conceito de informaccedilatildeo esteacutetica de

44 Para o poeta e tradutor brasileiro Guilherme de Almeida ldquoDo paralelismo da ideia com a expressatildeo ndash

brotadas a um mesmo tempo de um mesmo ritmo ndash vem esse misteacuterio do verso puro Ideia expressatildeo e

ritmo satildeo necessariamente inseparaacuteveisrdquo Almeida Guilherme de Ritmo elemento de expressatildeo (tese de

concurso) Satildeo Paulo 1926 45 LARANJEIRA Maacuterio Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp Fapesp 2003 46 Natildeo consideradas neste trabalho devido ao recorte escolhido tendo-se em conta os propoacutesitos e

encaminhamento das proposiccedilotildees que o integraratildeo (ldquoGerativismo teoria linguiacutestica desenvolvida por

Noam Chomsky (1928-) desde 1957 que representa a capacidade linguiacutestica humana por meio de um

sistema formalizado de regras de aplicaccedilatildeo mecacircnica (gramaacutetica gerativa) baseadas em princiacutepios de

caraacuteter universalrdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001)

42

Max Bense Mas natildeo se deve ainda iniciar a discussatildeo relativa agrave traduccedilatildeo poeacutetica

propriamente dita reservada para outro capiacutetulo deste trabalho Comente-se no entanto

em relaccedilatildeo agraves consideraccedilotildees de Laranjeira que embora sejam relevantes as referidas

fundamentaccedilotildees sobre as quais constroacutei o proacuteprio pensamento natildeo nos deteremos nelas

por considerarmos que as postulaccedilotildees aqui adotadas como suporte agrave discussatildeo sejam

suficientes e as mais adequadas aos objetivos imediatos relativos agrave afirmaccedilatildeo da

existecircncia da linguagem poeacutetica (e portanto da proacutepria poesia) para contraposiccedilatildeo agrave

visatildeo desconstrucionista que abordaremos adiante assim como aos objetivos gerais de

apreciaccedilatildeo das traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica como paracircmetros de diferentes condutas de

recriaccedilatildeo textual

Resta-nos ainda incluir referecircncia ao jaacute mencionado instrumental propiciado

pela semioacutetica poeacutetica desenvolvida por Greimas e colaboradores Para tanto dadas as

delimitaccedilotildees deste estudo contarei com elementos de percuciente artigo de J L Fiorin

(2003)47

que traz proposiccedilatildeo para superar o que ele considera ser insuficiente na

semioacutetica greimasiana para a anaacutelise de textos poeacuteticos seu artigo que eacute esclarecedor

sobre os proacuteprios conceitos e propoacutesitos dessa semioacutetica interessa-nos pela abordagem

analiacutetica apresentada Devido agrave siacutentese que nos propicia seraacute uma oportunidade para se

elucidar um modo de ver questotildees baacutesicas da linguagem poeacutetica e por isso ocasionaraacute

alguma breve reflexatildeo de minha parte Um parecircntese inicial a anaacutelise realizada penso

parte de um pressuposto como as demais possibilidades que temos visto de que o texto

apresenta caracteriacutesticas que o distinguem em relaccedilatildeo a outro que a ele se contrapotildee

sendo um ldquotexto com funccedilatildeo esteacuteticardquo (caso da poesia) seu oposto seraacute um ldquotexto com

funccedilatildeo utilitaacuteriardquo O que torna distinto o texto poeacutetico eacute o objeto de partida de toda

anaacutelise mesmo quando as caracteriacutesticas que o distinguem satildeo atribuiacutedas agrave leitura e natildeo

agrave dimensatildeo intratextual (como se buscaraacute discutir adiante) Mas uma questatildeo como essa

natildeo faria parte de uma abordagem como a do referido texto cujo pressuposto da

existecircncia de caracteriacutesticas distintivas da poesia satildeo a base de sua execuccedilatildeo

Na parte inicial do artigo conceituam-se os dois tipos de texto mencionados

47 FIORIN Joseacute Luiz ldquoTrecircs questotildees sobre a relaccedilatildeo entre expressatildeo e conteuacutedordquo In Revista Itineraacuterios

no especial pp 77-89 Araraquara Unesp Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios 2003

43

Do ponto de vista da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e expressatildeo haacute dois tipos de texto

aqueles que tecircm funccedilatildeo utilitaacuteria (informar convencer explicar documentar etc)

e os que tecircm funccedilatildeo esteacutetica Se algueacutem ouve ou lecirc um texto com funccedilatildeo utilitaacuteria

natildeo se importa com o plano de expressatildeo Ao contraacuterio atravessa-o e vai

diretamente ao conteuacutedo para entender a informaccedilatildeo No texto com funccedilatildeo

esteacutetica a expressatildeo ganha relevacircncia pois o escritor procura natildeo apenas dizer o

mundo mas recriaacute-lo nas palavras de tal sorte que importa natildeo apenas o que se

diz mas o modo como se diz Como o poeta recria o conteuacutedo na expressatildeo a

articulaccedilatildeo entre os dois planos contribui para a significaccedilatildeo global do texto A

compreensatildeo de um texto com funccedilatildeo esteacutetica exige que se entenda natildeo somente o

conteuacutedo mas tambeacutem o significado dos elementos da expressatildeo (2003 77-78)

Segundo o autor a fim de ldquoexplicar essa relaccedilatildeo a semioacutetica acolheu [] a

diferenccedila entre sistemas simboacutelicos e sistemas semioacuteticosrdquo nos primeiros haveria uma

conformidade total entre os planos de conteuacutedo e de expressatildeo (por exemplo ldquoa foice

simboliza sempre o campesinato o martelo o proletariado e o cruzamento dos dois a

uniatildeo dessas duas classesrdquo) enquanto nos ldquosemioacuteticosrdquo ldquoNatildeo haacute uma conformidade

entre o planos de expressatildeo e o do conteuacutedordquo Para lidar com a falta de correspondecircncia

entre unidades dos dois planos ldquoa Semioacutetica cria o conceito de sistemas semi-

simboacutelicosrdquo nos quais a correspondecircncia se daria por categorias em vez de unidades

(por exemplo ldquona gestualidade a categoria da expressatildeo verticalidade vs

horizontalidade correlaciona-se agrave categoria do conteuacutedo afirmaccedilatildeo vs negaccedilatildeordquo) Na

conceituaccedilatildeo de Greimas tais sistemas constituiriam a base dos textos poeacuteticos no

entanto Fiorin considera que ldquona anaacutelise de textos poeacuteticos essa definiccedilatildeo eacute claramente

insuficienterdquo Ocorre que a semioacutetica distingue diferentes niacuteveis do chamado ldquopercurso

gerativo de sentidordquo do mais ao menos profundo segundo o autor as categorias do

conteuacutedo que se correlacionam (realizam ldquohomologaccedilotildeesrdquo) com as categorias da

expressatildeo satildeo abstratas e ldquoremetem aos niacuteveis mais profundosrdquo do dito percurso

enquanto em poesia os ldquoefeitos de sentidordquo gerados por recursos do poema (como

aliteraccedilotildees e rimas) manteriam correlaccedilatildeo ldquoem todos os niacuteveis do percurso gerativo de

sentidordquo e por isso deve-se propor que seja ampliada ldquoa definiccedilatildeo de sistema semi-

simboacutelico eacute o que estabelece correlaccedilotildees entre categorias situadas em todos os niacuteveis

do percurso gerativo de sentidordquo Como se vecirc o esforccedilo eacute para modificar um conceito a

fim de que um constructo teoacuterico e metodoloacutegico possa dar conta da anaacutelise de poesia eacute

44

de nosso interesse sobretudo a condiccedilatildeo praacutetica da proposta o autor passaraacute a buscar

as diversas ldquohomologaccedilotildeesrdquo entre categorias da expressatildeo e do conteuacutedo em poemas

mostrando-nos exemplos de sua anaacutelise Um dos textos analisados eacute o poema

ldquoDebussyrdquo de Manuel Bandeira

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Um novelozinho de linha

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila

(Vem e vai)

Que delicadamente e quase a adormecer o balanccedila

ndash Psio ndash

Para caacute para laacute

Para caacute e

ndash O novelozinho caiu

(BANDEIRA 1973 p 64)48

Comenta o autor

O poeta vai acompanhando o movimento pendular de alguma coisa Os versos

como um metrocircnomo tecircm um ritmo que acompanha o movimento ldquopara caacute para

laacuterdquo Esse ritmo eacute interrompido e explica-se o que estava oscilando um novelozinho

de linha [] as reticecircncias interrompem a comunicaccedilatildeo Eacute como se o poeta

estivesse a contemplar a crianccedila que estava para adormecer e parasse o que ia dizer

para contemplar novamente o novelozinho na matildeo da crianccedila ldquopara caacute para laacuterdquo

Ele diz que o novelozinho ldquooscila no ar pela matildeo de uma crianccedila () que

delicadamente e quase a adormecer o balanccedilardquo Entre os dois versos da fala do

poeta haacute um verso que aparece entre parecircnteses a indicar que enquanto o poeta

fala o movimento do novelo continua Ele mostra que seu vaiveacutem prossegue

sempre igual primeiro para caacute (vem) e depois para laacute (vai) As reticecircncias revelam

que o movimento eacute contiacutenuo

48 BANDEIRA M Estrela da vida inteira 4ordf ed Rio de Janeiro J Olympio 1973 (Fonte do autor do

artigo)

45

Depois de ter-nos informado que esse ldquopara caacute para laacuterdquo [] eacute o movimento de um

novelozinho de linha que oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila que delicadamente

e quase a adormecer o balanccedila o poeta impede nossa manifestaccedilatildeo com um psio

para natildeo acordarmos a crianccedila quase adormecida

O ritmo do verso continua a recriar o ritmo do balanccedilo A interrupccedilatildeo do verso

seguinte que mostra o movimento apenas numa direccedilatildeo significa que a crianccedila

dormiu e portanto derrubou o novelo O uacuteltimo verso reitera esse significado para

noacutes

Temos aqui a homologaccedilatildeo de uma categoria da expressatildeo riacutetmico vs arritmico

a uma categoria figurativa balanccedilo vs natildeo balanccedilo [] temos tambeacutem quando

se observa a interrupccedilatildeo riacutetmica do penuacuteltimo verso em contraste com os outros

versos que indicam o balanccedilo uma homologaccedilatildeo a uma categoria narrativa

disjunccedilatildeo com o sono vs conjunccedilatildeo com o sono

O tiacutetulo do poema eacute o nome do compositor francecircs Debussy cuja obra Childrenrsquos

corner [] possui uma peccedila intitulada ldquoA menina dos cabelos de linhordquo composta

de movimentos ascendentes (vem) e descendentes (vai) e terminada com uma

cadecircncia harmocircnica com movimento meloacutedico descendente (caiu)

Para um ponto de vista que natildeo pretende circunscrever-se no meacutetodo de anaacutelise

no acircmbito da semioacutetica greimasiana o mais importante nesse rico estudo eacute a busca bem

sucedida de demonstrar as diferentes correlaccedilotildees entre os planos de conteuacutedo e de

expressatildeo Isso comeccedila com a escolha desse exemplo (e dos demais) cuja coesatildeo entre

os planos eacute particularmente clara o ritmo e os recursos de sequecircncia corte e pontuaccedilatildeo

dos versos se relacionam com o que se diz o poeta ldquorecria o mundo com palavrasrdquo na

conceituaccedilatildeo dita inicialmente (Faccedila-se aqui um comentaacuterio em terreno adjascente a

visatildeo da poesia como recriaccedilatildeo do mundo estaacute expressa no proacuteprio discurso de anaacutelise

cria-se uma cena cujo protagonista eacute o poeta ldquoo poeta vai acompanhando o

movimentordquo se depreendemos o movimento este eacute uma recriaccedilatildeo do que o poeta vecirc

ou viu O ldquomundordquo do poema seria portanto um correlato da realidade (com elementos

associados entre si) que se revela por meio das relaccedilotildees percebidas Um modo de

interpretar o que poderia ser visto como simples criaccedilatildeo de uma realidade com os

elementos que lhe satildeo proacuteprios mas dependeraacute sempre da leitura para sua re-criaccedilatildeo

Esse modo de abordagem vecirc de maneira geral ndash e aqui num ldquolivre pensamentordquo natildeo

uso terminologia ldquoteacutecnicardquo ndash o poema como uma ldquofiguraccedilatildeordquo uma representaccedilatildeo

figurativa da realidade No caso do poema de Bandeira o ldquodesenhordquo eacute niacutetido as

46

sugestotildees satildeo delineadas delimitadas de modo a se perceber com nitidez a ldquofigurardquo

nem sempre seraacute assim no entanto em poesia as sugestotildees poderatildeo ser mais vagas as

relaccedilotildees mais difusas por exemplo quando inseridas no contexto vasto de um poema

extenso e ao se considerarem elementos impressivos com associaccedilatildeo menos imediata agrave

dimensatildeo do sentido49

(anaacutelogos talvez aos de uma obra de arte abstrata por exemplo)

Mais uma vez no artigo em questatildeo evidencia-se o caminho da anaacutelise de

poesia pela criaccedilatildeo de modos de identificaccedilatildeo das ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo e pelo

esforccedilo em recriar a adequaccedilatildeo de modelo e meacutetodo a um objeto que poderaacute talvez

sempre escapar de sua proacutepria definiccedilatildeo por meio de um constructo especiacutefico Mas

diante de esforccedilos como esse dificilmente se poderaacute atribuir apenas agrave leitura o que se

demonstra de existente na dimensatildeo intratextual ainda que se ponham em questatildeo

elementos interpretativos como sendo criados pela leitura O movimento no sentido de

se ampliarem conceitos de maneira a estender o alcance da anaacutelise e da demonstraccedilatildeo

do modo como se realiza e se aprecia o texto esteacutetico eacute considero o caminho para a

proacutepria noccedilatildeo de existecircncia da poesia como linguagem diferenciada por mais extensa

que sejam suas possibilidades e por mais difiacutecil que seja abrangecirc-la num modelo

teoacuterico

Mas retornemos ao texto discutido Fiorin anuncia uma segunda questatildeo relativa

ao tema da relaccedilatildeo entre os dois referidos planos postulando que embora geralmente se

pense ldquoque as categorias [de expressatildeo e de conteuacutedo] precisam estar efetivamente

manifestadas com seus dois termos em oposiccedilatildeordquo haveria na verdade ldquoduas maneiras

de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas presenccedila vs presenccedila dos elementos

correlacionados ou presenccedila vs ausecircncia dos elementos correlacionadosrdquo Para o autor

ldquona anaacutelise de uma categoria do plano da expressatildeo e de sua correlaccedilatildeo com uma

categoria do plano do conteuacutedo natildeo eacute preciso que os dois termos estejam manifestados

porque a manifestaccedilatildeo de um pressupotildee a presenccedila do outrordquo O exemplo tomado para a

primeira das maneiras apontadas eacute o poema ldquoA ondardquo de Manuel Bandeira

a onda anda

aonde anda

a onda

49 Nas partes posteriores deste trabalho ao se tratar de possibilidades de anaacutelise seraacute feita uma tentativa

de discussatildeo da ldquoobjetividaderdquo no estudo da poesia como limitada agrave natureza qualitativa do signo icocircnico

tendo-se como referecircncia (num esfoccedilo desapegado de um ou outro constructo teoacuterico) a semioacutetica de

Peirce

47

a onda ainda

ainda onda

ainda anda

aonde

aonde

a onda a onda

(1973 p 286)

O autor apoacutes assinalar diversos aspectos da composiccedilatildeo (o poema eacute ldquoconstituiacutedo

de uma oposiccedilatildeo entre vogal oral e vogal nasalrdquo ldquoeacute constituiacutedo basicamente com

vogais que do ponto de vista acuacutestico satildeo ondas perioacutedicasrdquo ldquoa uacutenica consoante que

ocorre no texto eacute o d que por ser oclusiva eacute momentacircnea e explosiva e por ser sonora

conteacutem uma certa periodicidaderdquo etc) afirma que todos os ldquoelementos focircnicos (ritmo

assonacircncia alternacircncia de orais e nasais etc) recriam no plano da expressatildeo o

movimento ondulatoacuterio ininterrupto das ondas do marrdquo e conclui que ldquoo poema eacute

constituiacutedo por oposiccedilotildees da expressatildeo que se correlacionam com oposiccedilotildees do

conteuacutedo para recriar sensivelmente o movimento ondulatoacuterio das ondasrdquo A segunda

maneira (de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas) eacute ilustrada por um fragmento

do poema ldquoA valsardquo de Casimiro de Abreu

Tu ontem

Na danccedila

Que cansa

Voavas

Coas faces

Em rosas

Formosas

De vivo

Lascivo

Carmim

Na valsa

Corrias

Fugias

Ardente

Contente

48

Tranquila

Serena

Sem pena

De mim

(ABREU 1974 p 49-50)50

Sobre ele afirma o autor que ldquoeacute feito com versos dissiacutelabos com acento na

segunda siacutelaba o que cria o ritmo raacutepido da valsa Natildeo temos o contraste entre dois

ritmos mas entre a presenccedila do ritmo e sua ausecircncia pressupostardquo

Haacute ainda como o tiacutetulo do artigo indica uma terceira questatildeo a se considerar

que ldquodiz respeito agrave utilizaccedilatildeo das formas fixas em poesiardquo O autor observa que ldquoa

especificidade da semioacutetica poeacutetica caracteriza-se pela correlaccedilatildeo entre expressatildeo e

conteuacutedo ou seja que o discurso poeacutetico eacute um discurso duplo pois projeta suas

articulaccedilotildees simultaneamente no plano da expressatildeo e no do conteuacutedo (GREIMAS

1976 p 12)51

rdquo e comenta que o plano de conteuacutedo (ao qual o de expressatildeo deve

articular-se) possibilitaraacute vaacuterias leituras por caracterizar-se pela densidade Segundo

Fiorin ldquoesses postulados natildeo permitem confundir versificaccedilatildeo com poesiardquo no entanto

para o autor no caso dos ldquograndes poetasrdquo ldquoas formas fixas constituem uma maneira

codificada de segmentar o discurso poeacutetico em unidadesrdquo haveria ldquono plano de

expressatildeo da poesiardquo ldquocategorias topoloacutegicas que se relacionam com as categorias do

conteuacutedordquo Para Fiorin essa eacute uma sugestatildeo que precisa ser resgatada ldquopara verificar

que a distribuiccedilatildeo do conteuacutedo eacute homoacuteloga a sua estruturaccedilatildeordquo (tal verificaccedilatildeo

exemplificada no artigo por meio de dois sonetos natildeo seraacute aqui incluiacuteda)

Numa observaccedilatildeo um tanto externa ao foco da discussatildeo caberia perguntar se a

produccedilatildeo de ldquograndes poetasrdquo (uma categoria vaga e relativa) seria a referecircncia para a

verificaccedilatildeo das correlaccedilotildees entre estruturaccedilatildeo meacutetrica e conteuacutedo ou se seria o proacuteprio

modo de produccedilatildeo que pode envolver tais correlaccedilotildees mesmo sem alto desempenho

esteacutetico

Como se vecirc mais uma vez a procura desse ponto de vista eacute sempre de se

possibilitar a identificaccedilatildeo das correlaccedilotildees identificaacuteveis num texto poeacutetico No caso das

traduccedilotildees da eacutepica grega o aspecto meacutetrico teraacute papel importante na proacutepria

50 ABREU C Poesia 4ordf ed Rio de Janeiro Agir 1974 (Fonte do autor do artigo) 51

GREIMASS A J (org) Ensaios de semioacutetica poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1976 (Fonte do autor do artigo)

49

configuraccedilatildeo do conteuacutedo ainda que nem sempre se possam estabelecer relaccedilotildees semi-

simboacutelicas entre tais dimensotildees do poema

Jaacute se apontou de passagem que mesmo a oacuteptica questionadora da existecircncia do

ldquotexto de partida como um objeto definidordquo pode recorrer agrave anaacutelise de poesia baseada em

estabelecimento de relaccedilotildees entre elementos do poema Eacute o que se poderaacute constatar durante a

discussatildeo exposta no proacuteximo toacutepico

50

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade

B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia

A discussatildeo em torno de conceituaccedilotildees linguiacutestico-estruturalistas de um lado e

desconstrucionistas de outro alusivas agrave existecircncia ndash ou natildeo ndash de aspectos intriacutensecos ao

texto poeacutetico seraacute fundamental para a discussatildeo que se seguiraacute sobre a tarefa do

tradutor de poesia que por sua vez serviraacute de suporte agraves posteriores colocaccedilotildees e

anaacutelises relativas agrave eacutepica grega que este trabalho abrangeraacute Natildeo se pretende aqui

evidentemente tratar de modo amplo das controveacutersias que tecircm alimentado nas uacuteltimas

deacutecadas um debate inesgotaacutevel tampouco se tem a intenccedilatildeo de expor com mais

profundidade as conceituaccedilotildees desconstrucionistas52

baseadas em Jacques Derrida este

assunto seria por si soacute suficiente para um estudo de grande focirclego a limitaccedilatildeo

decorrente de nossos objetivos impotildee que apenas se identifiquem os pontos de vista em

conflito (ou natildeo) a fim de se propor um modo de ver as fundamentaccedilotildees e caminhos

para a traduccedilatildeo de poesia

Em ensaio53

de importacircncia particular para a discussatildeo da traduccedilatildeo neste estudo

(e que por isso seraacute evocado repetidas vezes) Rosemary Arrojo afirma

Em linhas muito gerais as teorias da linguagem que emergem da tradiccedilatildeo

intelectual do Ocidente alicerccediladas no logocentrismo e na crenccedila no que Jacques

Derrida chama de ldquosignificado transcendentalrdquo tecircm considerado o texto de partida

como um objeto definido congelado receptaacuteculo de significados estaacuteveis

geralmente identificados com as intenccedilotildees de seu autor Obviamente esse conceito

de texto traz consigo uma concepccedilatildeo de leitura que atribui ao leitor a tarefa de

ldquodescobrirrdquo os significados ldquooriginaisrdquo do texto (ou de seu autor) Ler seria em

uacuteltima anaacutelise uma atividade que propotildee a ldquoproteccedilatildeordquo dos significados

originalmente depositados no texto por seu autor (1993 16)

52 Sobre a ldquodesconstruccedilatildeordquo diz Edwin Gentzler ldquoDerrida lsquobasesrsquo his lsquotheoryrsquo of desconstruction on non-

identity on non-presence on unrepresentability What does exist according to Derrida are different chains of signification ndash including the lsquooriginalrsquo and its translations in a symbiotic relationship ndash mutually

supplementing each other defining and redefining a phantasm of sameness which never has existed nor

will exist as something fixed graspable known or understoodrdquo GENTZLER E Contemporary

translation theories New York Routledge 1993 p 147 53 ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo In ARROJO R Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo e

psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago 1993

51

Sobre a ldquotradiccedilatildeo intelectual do Ocidenterdquo baseada na ldquocrenccedila no Logosrdquo

afirma Arrojo em outro artigo seu54

Nessa tradiccedilatildeo cultural que crecirc na possibilidade de uma distinccedilatildeo intriacutenseca entre

sujeito e objeto a origem do significado eacute necessariamente localizada no

significante (no texto na mensagem na palavra) nas intenccedilotildees (conscientes) do

emissorautor ou numa combinaccedilatildeo ou alternacircncia dessas duas possibilidades A

primeira delas se reflete por exemplo na noccedilatildeo de literalidade que autoriza a

possibilidade de um significado subordinado agrave letra anterior a qualquer

interpretaccedilatildeo e independente de qualquer contexto Reflete-se tambeacutem na

concepccedilatildeo de literariedade que ainda domina a tradiccedilatildeo dos estudos literaacuterios entre

noacutes a noccedilatildeo de que o literaacuterio eo poeacutetico se encontram no texto como

propriedades intriacutensecas que o marcam indelevelmente e o distinguem dos textos

natildeo-literaacuterios Segundo essa visatildeo o leitor [] deve poder encontrar os

significados [] no texto e em suas marcas que teriam portanto a propriedade de

preservar seus conteuacutedos []

A segunda possibilidade como vimos projeta no emissorautor a origem

dosignificado [] Compreender ouler envolveria [] a descoberta e o resgate

daquilo que o emissor ou o autor quis dizer [] (2003 37-38)

Como veremos mais agrave frente ideias sobre traduccedilatildeo baseadas em conceitos que

incluem destacadamente os constructos teoacutericos de Jakobson ndash refiro-me centralmente

agrave teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash podem compatibilizar-se embora por outro vieacutes

de compreensatildeo com a postura de natildeo-submissatildeo a desejos autorais ou de descrenccedila na

preservaccedilatildeo de ldquoconteuacutedosrdquo nos textos Aponte-se jaacute contudo que a accedilatildeo de atribuir a

elementos do texto ndash perceptiacuteveis na leitura que busca caracteriacutesticas do poema ou da

proacutepria poesia como tais ndash a dimensatildeo de ldquosignificadosrdquo ou de preservaccedilatildeo de

ldquoconteuacutedosrdquo parece reducionista e desvirtuadora dos propoacutesitos de investigaccedilatildeo das

especificidades da linguagem poeacutetica os elementos que possivelmente a caracterizam

podem ser vistos como figuras iacutecones passiacuteveis de apreensatildeo pela leitura que os busca e

encontra em poemas de diversas eacutepocas ldquogecircnerosrdquo e tendecircncias construindo ou

reconstruindo (ainda que a ldquointenccedilatildeordquo possa ser de descoberta de elementos presentes

no texto) uma configuraccedilatildeo que comporaacute a trama de ldquosentidordquo Observar a existecircncia de

54 ldquoA desconstruccedilatildeo do logocentrismo e a origem do significadordquo In ARROJO R (org) O signo

desconstruiacutedo Campinas Pontes 2003

52

repeticcedilotildees (em diferentes planos) semelhanccedilas focircnicas aspectos visuais e outros

elementos que permitam a formulaccedilatildeo (na leitura) de relaccedilotildees entre som e sentido

permitidas pelo texto eacute um ato que natildeo pode ser desqualificado pela pressuposiccedilatildeo de

que ele resulta da busca de significados preservados ou intriacutensecos ainda que a maneira

de aproximaccedilatildeo ou de discurso feita pelo investigador possa ser enquadrada no que seria

a revelaccedilatildeo de elementos intriacutensecos (e natildeo propriamente ldquosignificadosrdquo) ao texto O

exemplo de Saussure permanentemente em duacutevida com a existecircncia ou natildeo do que via

nos versos latinos (e outros) atribui por si soacute a consideraccedilatildeo da leitura como

participante do processo de produccedilatildeo ou construccedilatildeo de sentido os diversos exemplos de

anaacutelise de Jakobson como a que realizou do poema ldquoThe ravenrdquo de E A Poe mostra a

importacircncia de leituras analiacuteticas que ao buscar desvelar relaccedilotildees paradigmaacuteticas entre

elementos do texto edificam suas particularidades linguiacutesticas e esteacuteticas (admitindo-se

o entendimento do poema como obra de arte verbal) independentemente de

corresponderem as ldquodescobertasrdquo a intenccedilotildees do autor do poema Mesmo que Poe natildeo

tenha pretendido ao menos conscientemente articular a relaccedilatildeo fonicamente especular

entre ldquoravenrdquo e ldquoneverrdquo esta observaccedilatildeo de Jakobson revela uma qualidade que

associada ao conjunto de elementos passiacuteveis de depreensatildeo no poema (incluindo-se os

assinalados por seu autor no texto ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo) colabora para a

compreensatildeo de seu ldquofuncionamentordquo como objeto de linguagem e de arte Ainda que

os conceitos referentes ao que seja poesia ao que seja arte ao que seja esteticamente

desejaacutevel ou indesejaacutevel estejam ndash como postulam os desconstrucionistas ndash vinculados

ao repertoacuterio e ao modo de ver do apreciador (veja-se por exemplo o referido texto ldquoA

que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo) identidades e fatores que as compotildeem

sempre teratildeo seu lugar como agentes da produccedilatildeo de cultura Mas voltemos por ora

aos argumentos da desconstruccedilatildeo por meio do trabalho especialmente esclarecedor e

consistente de Rosemary Arrojo

Em outros estudos seus a autora ndash com base em comentaacuterios de George Steiner

sobre um conto de Jorge Luis Borges ldquoPierre Menard o autor do Quixoterdquo (1939) ndash

vale-se dessa obra para o objetivo de elucidar a ideia de inexistecircncia do significado fixo

ou ldquodepositadordquo no texto O personagem (fictiacutecio) dessa obra-prima de Borges o receacutem-

falecido escritor Menard (ldquohomem de letras que viveu na primeira metade do seacuteculo

XX) produzira aleacutem de suas obras ldquovisiacuteveisrdquo uma outra ldquoinvisiacutevelrdquo que seria sua obra

mais significativa Esta seria uma reescritura de capiacutetulos do romance Dom Quixote de

53

Cervantes feita de modo a que Menard sendo ele mesmo conseguisse reproduzir (natildeo

copiar) o mesmo texto repetindo-o na iacutentegra O ldquonarradorrdquo do conto um criacutetico

literaacuterio que comenta as obras do escritor faz um cotejo de um trecho de Cervantes com

o mesmo trecho escrito por Menard

Constitui uma revelaccedilatildeo cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes

Este por exemplo escreveu (Dom Quixote primeira parte nono capiacutetulo)

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

Redigida no seacuteculo XVII redigida pelo ldquoengenho leigordquo Cervantes essa

enumeraccedilatildeo eacute mero elogio retoacuterico da histoacuteria Menard em compensaccedilatildeo escreve

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

A histoacuteria matildee da verdade a ideia eacute assombrosa Menard contemporacircneo de

William James natildeo define a histoacuteria como indagaccedilatildeo da realidade mas como sua

origem A verdade histoacuterica para ele natildeo eacute o que aconteceu eacute o que julgamos que

aconteceu As claacuteusulas finais ndash exemplo e aviso do presente advertecircncia do

futuro ndash satildeo descaradamente pragmaacuteticas

Diz Arrojo

Menard tenta recuperar o significado ldquooriginalrdquo de Cervantes mas somente

consegue reproduzir suas palavras O que Menard lecirc e reproduz como sendo o

verdadeiro Quixote (e portanto de acordo com Menard imutaacutevel e evidente) eacute

interpretado pelo narradorcriacutetico como algo diferente Paradoxalmente ao

ldquorepetirrdquo a totalidade do texto de Cervantes Menard ilustra a impossibilidade da

repeticcedilatildeo total exatamente porque as palavras do texto de Cervantes natildeo

conseguem delimitar ou petrificar seu significado ldquooriginalrdquo independentemente

de um contexto ou de uma interpretaccedilatildeo (2003 21-22)55

55 ARROJO R Oficina de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

54

Considerado por George Steiner ldquoo mais perspicaz o mais condensado

comentaacuterio que algueacutem jaacute ofereceu sobre a atividade de traduccedilatildeordquo56

o conto de Borges

eacute um instrumento da constataccedilatildeo da impermanecircncia do significado e por extensatildeo da

existecircncia de qualquer atributo ldquofiacutesicordquo ldquoconcretordquo ldquomaterialrdquo ao texto Essa ideia

diga-se afina-se com um encaminhamento radical do conceito de signo arbitraacuterio

proposto por Saussure que o define como uma instacircncia psicoloacutegica ldquoimaterialrdquo Sobre

a radicalizaccedilatildeo desconstrutivista do signo saussuriano por seus aspectos de

arbitrariedade e convenccedilatildeo diz Arrojo

Ao levar agraves uacuteltimas consequecircncias a concepccedilatildeo do signo arbitraacuterio econvencional

proposta por Saussure a reflexatildeo desconstrutivista necessariamente revisae

redimensiona as noccedilotildees tradicionais de significado Se o signo eacute resultado de

umaconvenccedilatildeo de um pacto a origem do significado eacute necessariamente remetida

para esse pacto e em uacuteltima anaacutelise para a necessidade de organizaccedilatildeo e de

domiacutenio quedesemboca nesse pacto Se aceitarmos a tese da convencionalidade do

signo ou seja anoccedilatildeo de que todo significado eacute necessariamente construiacutedo e

atribuiacutedo a partir de umtaacutecito acordo comunitaacuterio natildeo poderemos portanto eximir

a leitura e a compreensatildeo ou qualquer outro processo de utilizaccedilatildeo de signos de

uma origem atrelada agrave construccedilatildeoe agrave produccedilatildeo de significados (2003 37)

Mas ldquolevar agraves uacuteltimas consequecircnciasrdquo as ideias de Saussure envolve considerar

como referecircncia absoluta a incorporeidade do significante Afirma o proacuteprio Saussure

Todos os valores convencionais apresentam esse caraacuteter de natildeo se confundir com o

elemento tangiacutevel que lhe serve de suporte Assim natildeo eacute o metal da moeda que lhe

fixa o valor Isso eacute ainda mais verdadeiro no que respeita ao significante

linguiacutestico em sua essecircncia este natildeo eacute de modo algum focircnico eacute incorpoacutereo

constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas que

separam sua imagem acuacutestica de todas as outras

Leiam-se acerca da ecircnfase derridiana quanto agrave imaterialidade do significante as

observaccedilotildees de Cristina Carneiro Rodrigues

56 STEINER G Depois de Babel Trad C A Faraco Curitiba Editora da UFPR 2005 p 96

55

Ao salientar o caraacuteter diferencial e formal do funcionamento dos signos Saussure

mostrou que o som natildeo pode pertencer agrave liacutengua e que o significante natildeo eacute uma

entidade puramente material Na medida em que para Saussure o significado natildeo

eacute puramente focircnico a substacircncia de expressatildeo eacute de alguma maneira considerada

abstrata e natildeo puramente fiacutesica [] caso se levassem as ideias de Saussure agraves

uacuteltimas consequecircncias seria rejeitada qualquer noccedilatildeo de materialidade do

significante e do signo em geral Efetivamente apenas pela materialidade focircnica

natildeo seria possiacutevel identificar um signo repetido como se fosse o mesmo pois cada

repeticcedilatildeo dele natildeo eacute idecircntica Essa concepccedilatildeo deveria se estender ao significado

que tambeacutem seria marcado pela alteridade pela diferenccedila concepccedilatildeo que natildeo

conduziria agrave noccedilatildeo de equivalecircncia [em traduccedilatildeo ndash ou seja agrave ideia de que os

significados de uma liacutengua encontram equivalentes aos de outra e que a traduccedilatildeo

seria um processo de reproduccedilatildeo de sentidos equivalentes agravequeles fornecidos pelo

texto ldquooriginalrdquo]

Eacute importante discutirmos neste ponto a noccedilatildeo de (i)materialidade do

significante ou do signo com alguma tentativa de raciociacutenio que contribua para

ultrapassar o que eu veria como um ldquoconfinamentordquo ao modelo relacional do signo

convencionado O modelo binaacuterio de Saussure enfatiza uma unidade intriacutenseca do

processo psicoloacutegico de transmissatildeo de mensagens que permitiu o modo de

investigaccedilatildeo e compreensatildeo propiciador dos frutos notoacuterios do desenvolvimento da

ciecircncia linguiacutestica no uacuteltimo seacuteculo mas eacute um modelo voltado ao signo verbal

arbitraacuterio ndash ainda que o modelo possa ser frutiacutefero para a anaacutelise de objetos de outra

natureza como por exemplo um poema graacutefico-visual57

ele eacute um modelo fundado no

espaccedilo mental em que opera a comunicaccedilatildeo O fato de isolar a concepccedilatildeo ou a

ldquonaturezardquo do signo em sua relaccedilatildeo entre uma imagem acuacutestica e um conceito natildeo

significa entretanto que deixem de existir o estiacutemulo focircnico em sua dimensatildeo

material assim como o objeto relacionado ao conceito integrante do signo Trata-se

evidentemente de uma constataccedilatildeo oacutebvia mas que pode ter implicaccedilotildees na visatildeo sobre

um poema por exemplo logo voltaremos a isso Mas considere-se outro aspecto oacutebvio

a identidade do proacuteprio som como fenocircmeno fiacutesico participa da definiccedilatildeo do modo

57 Veja-se a anaacutelise desenvolvida por Antocircnio Vicente Pietroforte do poema ldquoCoacutedigordquo de Augusto de

Campos com base na diferenccedila entre a linha e o ciacuterculo mostrando que o poema ilustraria a proacutepria

natureza relacional do coacutedigo) Em Pietroforte Antocircnio Vicente O discurso da poesia concreta ndash uma

abordagem semioacutetica Satildeo Paulo AnnaBlume 2011 p 47-50

56

como eacute percebido para que se forme uma ldquoimagem acuacutesticardquo eacute preciso que a emissatildeo

do som ou dos fonemas permita sua percepccedilatildeo adequada os sons agudos seratildeo assim

percebidos ainda que possam ocasionar diferentes sensaccedilotildees ou mesmo participar da

formaccedilatildeo de diferentes significados pense-se ainda a tiacutetulo digressivo-ilustrativo no

caso particular de uma gravaccedilatildeo de sons por exemplo de muacutesica na qual o tratamento

teacutecnico da sonoridade de um instrumento ou de uma voz pode interferir na percepccedilatildeo

esteacutetica e na emoccedilatildeo que a ela pode associar-se influindo no ldquosentidordquo da composiccedilatildeo

em termos amplos

Se a linguiacutestica saussuriana considera o signo como um processo

exclusivamente mental ndash o que permite estabelecer as identidades apenas pelas

diferenccedilas que estabelecem entre si e portanto relativizar as ldquoverdadesrdquo em cuja

crenccedila se depositaria a tradiccedilatildeo do logocentrismo ndash isto natildeo quer dizer que a

consideraccedilatildeo da realidade fiacutesica material seja necessariamente fixadora de verdades ou

significados ou de atributos que lhe sejam perenes Considere-se o modelo (triaacutedico) da

semioacutetica de Peirce representado anteriormente em um dos veacutertices do triacircngulo estaacute o

objeto em outro oposto o signo e no terceiro o interpretante o interpretante origina

outro signo e assim sucessivamente Num exerciacutecio de livre pensamento comparativo

poderiacuteamos atribuir uma correspondecircncia possiacutevel entre a funccedilatildeo do interpretante (que

realiza a relaccedilatildeo entre signo e objeto) e a concepccedilatildeo da dualidade imagem-acuacutestica ndash

conceito de Saussure que opera no campo mental das relaccedilotildees O modelo de Peirce

destinado a abranger os diferentes tipos de signo por ele identificados ndash e natildeo apenas o

verbal arbitraacuterio que ele denominaria de ldquosiacutembolordquo um ldquolegissignordquo (porque resultante

de lei ou convenccedilatildeo) ndash permite a natildeo-exclusatildeo da dimensatildeo material dos estiacutemulos

envolvidos na produccedilatildeo da linguagem em suas diferentes manifestaccedilotildees

Como jaacute se mencionou Deacutecio Pignatari fala da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

como sendo marcada pela ldquoprojeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais

etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo Elementos sonoros e visuais se vistos como existentes em

si (ou seja positivamente) embora participantes do signo verbal e existentes nele

apenas em termos relacionais ou pela negatividade poderatildeo tambeacutem compor uma teia

adicional engendradora de um coacutedigo de natureza diversa que se projeta sobre o campo

verbal ou semacircntico (do significado) Quando Saussure buscava anagramas enquanto

ldquofiguras focircnicasrdquo (no dizer de Jakobson) rastreava os elementos isolados do contexto do

proacuteprio signo a que pertenciam destacando-os da relaccedilatildeo interna significante-

57

significado que compotildee a sua noccedilatildeo abstratizante de signo se tomados apenas como

fonemas em sua representaccedilatildeo por letras natildeo seratildeo esses elementos vistos em sua

materialidade ainda que possam originar diferenccedilas em sua audiccedilatildeo ou emissatildeo Nos

exerciacutecios de Jakobson em que relaciona unidades focircnicas para revelar sentidos

adjacentes ou subjacentes ou suprajacentes (como fizera por exemplo na jaacute

mencionada anaacutelise de ldquoThe ravenrdquo entre tantas outras) e em sua proacutepria noccedilatildeo de

projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma natildeo haacute a identificaccedilatildeo de ldquoformasrdquo

ldquoexternasrdquo a cada signo verbal que consistem em elementos integrantes de coacutedigos

sonoros visuais etc

Veja-se esta breve reflexatildeo natildeo como uma proposiccedilatildeo ambiciosamente

resolutoacuteria mas apenas como um exerciacutecio voltado agrave superaccedilatildeo de importantes entraves

de compreensatildeo ou operacionalizaccedilatildeo no trabalho com a linguagem por conflitos

supostamente insuperaacuteveis Em seu constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica Haroldo

de Campos vale-se muitas vezes da ideia de ldquomaterialidade siacutegnicardquo contudo como se

poderaacute ver seu pensamento natildeo se volta ao ldquoresgate de significados estaacuteveisrdquo e

tampouco considera o ldquooriginalrdquo como autoridade dotada de uma intenccedilatildeo a ser

respeitada ou seguida ancilarmente agrave semelhanccedila dele outros poetas e tradutores de

poesia encaram sua tarefa de traduzir de modo bem diverso do que seria o modus

operandi da traduccedilatildeo ldquofiel ao sentido que o autor quis transmitirrdquo etc

Num novo livre pensamento com alguma possiacutevel utilidade reflexiva

admitindo-se que seja na ldquodiferenccedilardquo (conforme preconizou Saussure) que a

significaccedilatildeo se decirc no processo relacional dos signos e ainda que se considere o signo

natildeo ldquoem sua composiccedilatildeo mas em seus contornosrdquo talvez se possa supor que no

ldquoconfrontordquo entre contornos focircnicos estes tambeacutem recuperem na leitura sua

ldquoidentidade materialrdquo ou se faccedilam notar em sua especificidade ldquomaterializandordquo o

corpo que envolvem seria na comparaccedilatildeo que a ldquomaterialidaderdquo tambeacutem se afirmaria

ldquoconsolidando-serdquo pelo ldquoembaterdquo entre contornos58

58 Em outra oportunidade referi-me agrave questatildeo geral da materialidade do signo desta forma um tanto

diversa e mais sinteacutetica ldquoAinda que se considere a postulaccedilatildeo de Saussure de que o lsquosignificante

linguiacutesticorsquo eacute lsquoincorpoacutereo constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas

que separam sua imagem acuacutestica de todas as outras (1972 137-8) [] eacute inegaacutevel a existecircncia da materialidade siacutegnica que permite o estabelecimento das diferenccedilas pelas quais o lsquosignificantersquo se define

Assim ainda que o lsquosignificantersquo natildeo seja lsquouma entidade puramente materialrsquo (Rodrigues 1999 189) (o

grifo eacute meu) tambeacutem o eacute (material) e as diferenccedilas que o delimitam ainda que de teor lsquoabstratorsquo

integram a cadeia de relaccedilotildees entre signos identificadas numa obra de arte verbal relaccedilotildees estas

marcadas exatamente por semelhanccedilas e diferenccedilas (considerando-se a projeccedilatildeo do eixo de similaridade

sobre o de contiguidade caracteriacutestico da lsquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrsquo) []rdquo

58

O poeta tradutor e ensaiacutesta Joseacute Paulo Paes tambeacutem fala em ldquomaterialidaderdquo

Apoacutes discutir a traduccedilatildeo de poesia em sua obra Traduccedilatildeo a ponte necessaacuteria (1990)

considerando-a ldquoo caso-limite da problemaacutetica geral da traduccedilatildeordquo (devido

principalmente para ele por ser a poesia ldquoa forma mais condensada de linguagemrdquo

conceito colhido do poeta e criacutetico norte-americano Ezra Pound) assim se refere agrave

atividade do poeta evocando o ldquoprinciacutepio miacutetico do mundo aquele jardim do Eacuteden a

cujos seres Adatildeo deu o nome inauguralrdquo

Ao perturbar constantemente o primado do sentido loacutegico do discurso por via de

operadores diversivos como a metaacutefora a aliteraccedilatildeo a assonacircncia o jogo

paronomaacutestico etc busca o poeta com isso chamar a atenccedilatildeo do leitor menos para

o significado abstrato dos signos do que para a materialidade deles ndash o seu som a

sua forma ndash que eacute o penhor de serem congeniais das coisas Precisamente porque

aspira ao ideoleto imaginaacuterio [(o ldquoprimeiro ideoletordquo a liacutengua privativa de Adatildeo

teria se transformado por meio de seus descendentes em socioleto uma liacutengua

grupal instaurando-se a partir de entatildeo o ldquoreino da vicariedade ou

intermediaccedilatildeo)] o poeta estaacute sempre redescobrindo o mundo vendo-o como nunca

ningueacutem o tivesse visto antes como se fosse ele o primeiro homem sobre a face da

Terra (1990 47)

A recorrecircncia agrave noccedilatildeo natildeo-saussuriana das palavras como ldquocongeniais das

coisasrdquo (ideia que pode ser vista como manifestaccedilatildeo logocecircntrica) serve para enfatizar o

que seria a busca da poesia pela ldquomaterializaccedilatildeordquo da palavra que ansiaria a ser ldquocoisardquo

no poema A esse respeito leia-se ndash por sua sugestatildeo materializante ndash o seguinte poema

de Joatildeo Cabral de Melo Neto criador de uma ldquopoesia com coisasrdquo (no dizer de Marta

Peixoto59

) feita de ldquopalavras-coisasrdquo contendo uma interessante metaacutefora

(materializadora) da criaccedilatildeo poeacutetica

59 PEIXOTO Marta Poesia com coisas Satildeo Paulo Perspectiva 1983

59

Catar feijatildeo

1

Catar feijatildeo se limita com escrever

joga-se os gratildeos na aacutegua do alguidar

e as palavras na folha de papel

e depois joga-se fora o que boiar

Certo toda palavra boiaraacute no papel

aacutegua congelada por chumbo seu verbo

pois para catar esse feijatildeo soprar nele

e jogar fora o leve e oco palha e eco

2

Ora nesse catar feijatildeo entra um risco

o de que entre os gratildeos pesados entre

um gratildeo qualquer pedra ou indigesto

um gratildeo imastigaacutevel de quebrar dente

Certo natildeo quando ao catar palavras

a pedra daacute agrave frase seu gratildeo mais vivo

obstrui a leitura fluviante flutual

accedilula a atenccedilatildeo isca-a como o risco60

Antes de encerrar este toacutepico preparatoacuterio a nossas abordagens centrais com

alguns comentaacuterios criacuteticos agrave postura radicalmente relativizadora proacutepria do

desconstrucionismo escolho referir-me a um interessante exerciacutecio realizado por

Rosemary Arrojo em que analisa o poema ldquoAacuteporordquo de Carlos Drummond de Andrade

Aleacutem do proveito que o exerciacutecio traz como exemplificaccedilatildeo de possibilidades de anaacutelise

de um poema haacute tambeacutem o aspecto de ainda que convicta da inexistecircncia de qualquer

caracteriacutestica intriacutenseca aos poemas que os distingam como tais a autora recorrer a

procedimento muito semelhante ao empregado em uma anaacutelise estrutural como se veraacute

nesta breve referecircncia Comenta Arrojo ldquolsquoAacutepororsquo [] eacute o texto escolhido pois apesar

de sua brevidade pode nos dar um bom exemplo do que seria ler lsquopoeticamentersquo um

textordquo Ainda que a ecircnfase seja na ldquoleiturardquo na praacutetica natildeo haacute mudanccedila significativa de

procedimento em relaccedilatildeo agravequele adotado nas anaacutelises usualmente desenvolvidas por

60 De A educaccedilatildeo pela pedra (1965)

60

linguistas semioticistas ou criacuteticos de poesia a diferenccedila reside essencialmente no

modo de referir-se ao ato de anaacutelise como ldquoleiturardquo ldquoA leitura de Aacuteporo que proponho

a seguir se assemelha agrave construccedilatildeo de um quebra-cabeccedilardquo (p 47) Independentemente

do referencial teoacuterico e da oacuteptica de abordagem do objeto o que se realizaraacute seraacute um

conjunto de observaccedilotildees elaboradas a partir do que o objeto de anaacutelise ldquopode nos darrdquo

por suas qualidades de possibilidades de identificaccedilatildeo do ldquoquebra-cabeccedilardquo que

pressupotildee a existecircncia de peccedilas identificaacuteveis ainda que associadas a um processo

sempre interpretativo Assim os procedimentos de anaacutelise efetuados por estruturalistas

como Jakobson61

ou entre noacutes por teoacutericos da poesia como Haroldo de Campos e

Deacutecio Pignatari permanecem sendo o meio para reconhecimento de aspectos e

possibilidades da linguagem poeacutetica ainda que a postura desconstrucionista utilize um

discurso enfatizador do aspecto de ldquoconstruccedilatildeordquo da leitura analiacutetica ldquoVamos tentar

construir melhor esse enredo quebra-cabeccedilardquo Mas o que eacute construiacutedo natildeo vem do

nada procede natildeo soacute da dimensatildeo psicoloacutegica (que inclui a percepccedilatildeo) mas tambeacutem de

elementos e relaccedilotildees que podem ser identificados e aos quais podem ser atribuiacutedos

aspectos de organizaccedilatildeo da linguagem do poema ou de interpretaccedilatildeo a partir das

relaccedilotildees estabelecidas Tais elementos podem ser observados pela ldquoleitura poeacuteticardquo do

texto que diga-se sempre foi a leitura desejaacutevel para uma obra que se propotildee como um

poema tenha ela a funccedilatildeo que tiver em determinado contexto soacutecio-cultural Assim

ainda que se opte por coerecircncia teoacuterico-ideoloacutegica pela referecircncia enfaacutetica de que se

trata de ldquoleiturardquo e natildeo de algo inerente ao texto permanece viva a escolha pela anaacutelise

voltada a mostrar o alcance das intrincadas relaccedilotildees entre som e sentido encontraacuteveis

num poema

Previamente agraves observaccedilotildees sobre a anaacutelise de Arrojo leia-se o poema de

Drummond

61 Vejam-se como exemplos entre tantos estudos do linguista os relativos a poemas de Dante Bellay

Shakespeare Blake Yeats Houmllderlin Baudelaire e Poe (jaacute mencionado) enfeixados na antologia

(tambeacutem jaacute referida) Poeacutetica em accedilatildeo (1990)

61

Aacuteporo

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape

Que fazer exausto

em paiacutes bloqueado

enlace de noite

raiz e mineacuterio

Eis que o labirinto

(oh razatildeo misteacuterio)

presto se desata

em verde sozinha

antieuclidiana

uma orquiacutedea forma-se

A respeito do poema Arrojo observa (apoacutes decorrida grande parte de sua longa

anaacutelise)

O jogo da leitura poeacutetica natildeo deve descartar nenhum fragmento que possa ser

empregado na construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo [] No ldquoAacuteporordquo um destes

elementos eacute o nuacutemero de siacutelabas do uacuteltimo verso ldquouma orquiacutedea forma-serdquo que se

destaca dos demais por ser o uacutenico a contar som seis siacutelabas Portanto exatamente

o verso em que se forma a orquiacutedeaaacuteporo62

eacute tambeacutem ldquoantieuclidianordquo na medida

em que subverte a organizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoAacuteporordquo

Sobre a observaccedilatildeo um comentaacuterio a interpretaccedilatildeo ainda que interessante

encerra um erro de leitura evidenciando-se que as caracteriacutesticas do texto exigem

62 A autora usa as combinaccedilotildees ldquoorquiacutedeaaacuteporordquo e ldquoinsetoaacuteporordquo em decorrecircncia dos muacuteltiplos sentidos

do termo ldquoaacuteporordquo (do grego aacuteporos ldquointransponiacutevel sem saiacuteda difiacutecil inelutaacutevelrdquo) que tanto pode

significar ldquosituaccedilatildeo sem saiacutedardquo como ldquoinseto himenoacutepterordquo e ainda (como observa Arrojo com base no

Dicionaacuterio contemporacircneo da liacutengua portuguesa de Caldas Aulete (Lisboa 1948) referir-se a ldquoum tipo

de planta da famiacutelia das orquiacutedeas solitaacuteria geralmente esverdeadardquo

62

atenccedilatildeo cuidado e propriedade na ldquoleitura poeacuteticardquo O verso apontado como

apresentando seis siacutelabas pode perfeitamente ser lido como sendo uma redondilha

menor agrave semelhanccedila dos demais versos do poema

U ma or quiacute dea for ma-se

1 2 3 4 5

Contamos portanto ateacute a uacuteltima tocircnica do verso cinco siacutelabas considerando-se

a esperada elisatildeo entre as vogais aacutetonas de ldquoma orrdquo e a habitual leitura de ldquodeardquo como

ditongo Dada a normalidade da leitura e da contagem dela decorrente natildeo haacute nenhuma

razatildeo para que se veja tal verso como hexassiacutelabo mesmo porque a leitura do conjunto

de heptassiacutelabos sugere (para natildeo dizer ldquodeterminardquo) pela sequecircncia riacutetmica que esse

verso tambeacutem seja lido como tal Haacute muitos casos em que a regularidade meacutetrica

empregada pelo poeta exige mais flexibilidade na leitura para que se mantenha e isso eacute

um procedimento usual em composiccedilatildeo de poesia expedientes de ditongaccedilatildeo de hiatos

e elisotildees por vezes forccediladas satildeo aceitas em funccedilatildeo da percepccedilatildeo do conjunto riacutetmico-

meacutetrico articulado (e observado) no poema Uma evidenciaccedilatildeo assim entendo de que

as anaacutelises envolvem a observaccedilatildeo de aspectos intratextuais ainda que estes sejam

ldquorecriadosrdquo por meio da leitura

Acerca do mesmo verso diz ainda Arrojo

Outro fragmento que se destaca nesse verso eacute o pronome se que encerra o poema

[] o que chama a atenccedilatildeo eacute sua posiccedilatildeo encliacutetica numa situaccedilatildeo em que a

proacuteclise [] seria mais natural [] Visualmente o hiacutefen que separa o ldquoserdquo do

verbo (e do verso) pode enfatizar a sugestatildeo do extravazar O ldquoserdquo poderia

representar a relaccedilatildeo estabelecida entre criador e objeto criado entre o insetoaacuteporo

e a orquiacutedeaaacuteporo Relaccedilatildeo essa que sugere quase um expelir um parto o

momento mesmo em que a orquiacutedea sai da terra

E com uma sequecircncia analiacutetica que apresenta pontos em comum com aquela

realizada por Pignatari em seu ensaio criacutetico ldquoAacuteporordquo (iniciado com o subtiacutetulo ldquoUm

inseto semioacuteticordquo (Contracomunicaccedilatildeo 1973 131) Arrojo prossegue

63

Tal interpretaccedilatildeo pode ser ainda enriquecida pela observaccedilatildeo de que a siacutelaba ldquoserdquo

se encontra tambeacutem no centro do substantivo ldquoinsetordquo o inseto ldquoconteacutemrdquo aquilo

que se transforma em orquiacutedea e que nasce depois de um processo quase doloroso

Se prestarmos atenccedilatildeo aos demais versos do poema podemos observar que a siacutelaba

ldquoserdquo ou variaccedilotildees dela (ieacute sibilante + vogal e) satildeo constantes no poema No

primeiro quarteto o ldquoserdquo de ldquoinsetordquo se repete em ldquosemrdquo nos versos 2 e 4 e surge

a variaccedilatildeo ldquoesrdquo em ldquoescaperdquo No segundo quarteto concentram-se diversas

variaccedilotildees em que o s desaparece e eacute substituiacutedo por outras sibilantes ldquofazerrdquo

ldquoexaustordquo ldquoenlacerdquo ldquoraiz erdquo No primeiro terceto ldquoserdquo volta a ocorrer em sua

forma original aleacutem da variaccedilatildeo ldquoesrdquo ldquopresto se desatardquo Em seguida a siacutelaba ldquoserdquo

volta a se repetir somente no uacuteltimo verso Tais ocorrecircncias poderiam sugerir os

vaacuterios caminhos percorridos pelo insetocriador em sua tentativa de chegar agrave forma

ideal da orquiacutedeaaacuteporo []

Afirmaccedilotildees como ldquosiacutelaba ou variaccedilotildees dela constantes no poemardquo ldquoa siacutelaba

volta a se repetir volta a ocorrerrdquo ou ldquotais ocorrecircncias poderiam sugerirrdquo revelam que

natildeo obstante o esforccedilo para que tudo seja visto como criado pela leitura as referecircncias a

ocorrecircncias no texto integram o processo de anaacutelise e de ldquoproduccedilatildeo de sentidordquo Poder-

se-ia dizer que as referecircncias satildeo inevitaacuteveis porque a linguagem que usamos estaacute

imbuiacuteda do logocentrismo que pressupotildee os existentes independentes fixos etc Mas

creio natildeo leva a nada a permanecircncia ciacuteclica interminaacutevel na sustentaccedilatildeo de

inexistecircncias antes satildeo bastante interessantes do ponto de vista de operacionalidade no

labor e na criacutetica de poesia as decorrecircncias (possivelmente generalizantes) dos

resultados obtidos pelas anaacutelises de poemas assim como a simples apreciaccedilatildeo

propiciada pela ldquoleitura poeacuteticardquo envolvendo a observaccedilatildeo de padrotildees de relaccedilatildeo entre

som e sentido e outros identificaacuteveis como recorrentes em poesia

De todo modo a iniciativa da anaacutelise exemplifica a necessidade ou

inevitabilidade de superar o imobilismo que a total relativizaccedilatildeo das identidades textuais

poderia ocasionar ao natildeo deixar de buscar num poema as possibilidades que o texto

mesmo revela agrave leitura ainda que as noccedilotildees a respeito de poesia ou literatura sejam

mutaacuteveis atraveacutes dos tempos e variaacuteveis atraveacutes dos espaccedilos e contextos culturais

vale o que vemos em nosso meio e com nosso modo de ver a universalidade ou

64

imutabilidade de conceitos natildeo satildeo penso imprescindiacuteveis para que exista um ldquogecircnerordquo

ou um modo de ser da linguagem ainda que mutante

A intenccedilatildeo foi fazer nesta parte do trabalho certo esforccedilo para a discussatildeo

acerca da linguagem poeacutetica visando agrave compreensatildeo de princiacutepios de traduccedilatildeo de

poesia e agrave aplicaccedilatildeo de algumas referecircncias para tanto Entre as muitas teorias sobre a

linguagem e sobre a traduccedilatildeo (na proacutexima etapa deste capiacutetulo seraacute abordado

brevemente o amplo panorama teoacuterico relativo agrave atividade tradutoacuteria) elegeu-se certo

estruturalismo e para estabelecimento de um confronto criacutetico com algumas concepccedilotildees

que dele advecircm e seratildeo utilizadas neste estudo foram apresentados alguns aspectos do

pensamento poacutes-estruturalista desconstrucionista Com o intuito de refletir sobre o

impacto do desconstrucionismo na teoria na praacutetica e na avaliaccedilatildeo da tarefa de traduccedilatildeo

poeacutetica seratildeo apontadas a seguir duas colocaccedilotildees de especial pertinecircncia tendo-se em

conta nossos propoacutesitos gerais

Leia-se primeiro o ldquoAbstractrdquo que acompanha o artigo ldquoDoubts about

deconstruction as a general theory of translationrdquo do teoacuterico da traduccedilatildeo Anthony Pym

apresentado aqui em traduccedilatildeo integrante da publicaccedilatildeo do artigo em inglecircs pela revista

brasileira TradTerm (1995)

A comparaccedilatildeo de quatro versotildees de uma frase de Derrida coloca a questatildeo da

redaccedilatildeo da filosofia desconstrutivista com a teoria da traduccedilatildeo Levantam-se

duacutevidas acerca da pertinecircncia geral da desconstruccedilatildeo da possibilidade de expandir

o alcance de seus insights para aleacutem da anaacutelise do texto-fonte e das razotildees de

uma certa inferiorizaccedilatildeo residual da traduccedilatildeo Sugere-se no espiacuterito de uma

discordacircncia paciacutefica que a teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute seriamente abalada pelo

fato dos textos-fonte constituiacuterem pontos de partida semanticamente instaacuteveis

(1995 11)

Sem que se pretenda alongar demais a referecircncia ao artigo e a seu conteuacutedo eacute

uacutetil que se destaque a frase final desse Resumo ldquoa teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute

seriamente abalada []rdquo e que sejam citados alguns fragmentos do ensaio

65

There is some irony in the way that the critique of origins tends to invest all its

efforts on the level of origins to the detriment of efficient formal or final purposes

[hellip] A critique of origins is inevitably locked into a backward vision to the

detriment of present action or future agreements In its psychoanalytic metaphors

this critique focuses on the imaginary status of initial causes but forgets that the

analysts final cause is to help cure someone Deconstruction might perhaps be able

to say something about how a translator should accept semantic plurality [hellip] or

how a user should assess a translation in terms of this plurality But as soon as the

specific problem of anterior origins becomes the problem of translation

deconstruction reduces translation to a form of source-text analysis In fact it turns

translation into what could only be an inferior form of the kind of readings

undertaken by deconstruction itself [hellip]

The problem with deconstructionist propositions like those based on the obverse

dominance of target-side or final causes is that they are decidedly unhelpful once

agreed to One eventually has to ask So what and then get on with solving

concrete problems [hellip]

In a world where everything is to constructed deconstructionist theory can and

should raise passing doubts on the way to concrete action But translation theory

has a lot of other work to do awaiting the philosopheracutes return from Derridean

islands (1995 15-17)

Em suma o tradutor em seu aacuterduo ofiacutecio teria problemas mais ldquoconcretosrdquo com

que lidar aleacutem das questotildees da pluralidade semacircntica63

ou da instabilidade do

significado que teriam reduzido a traduccedilatildeo a uma forma de anaacutelise do texto-fonte

Sobre a questatildeo da utilidade ou das contribuiccedilotildees da desconstruccedilatildeo e considerando a

argumentaccedilatildeo de Pym Paulo Henriques Britto ndash autor da talvez mais perspicaz criacutetica agrave

visatildeo desconstrucionista no Brasil ndash diz em seu artigo ldquoDesconstruir para quecircrdquo64

[] O grande meacuterito da desconstruccedilatildeo portanto eacute ter levantado discussotildees que nos

tornou a todos ndash independentemente da posiccedilatildeo que adotemos ndash mais conscientes

da diferenccedila entre o que devem ser as metas da atividade tradutoacuteria e o que na

praacutetica se pode exigir de uma traduccedilatildeo real Hoje por exemplo afirmar que uma

63 Sobre esta fundamental postulaccedilatildeo de Derrida ver seu ensaio ldquoDes tours de Babelrdquo em Psycheacute

(19871998) Haacute ediccedilatildeo brasileira em traduccedilatildeo de Junia Barreto DERRIDA J Torres de Babel Belo

Horizonte UFMG 2006 64 In Cadernos de traduccedilatildeo vol 2 Florianoacutepolis UFSC 2001

66

determinada traduccedilatildeo de um determinado texto eacute a uacutenica correta ou a uacutenica

possiacutevel eacute uma demonstraccedilatildeo de absoluta ingenuidade teoacuterica Talvez a melhor

maneira de ver a desconstruccedilatildeo seja encaraacute-la como uma vertente de pensamento

de valor puramente negativo boa para apontar para as limitaccedilotildees de conceitos

correntes poreacutem incapaz de propor alternativas viaacuteveis []

Sem duacutevida a criacutetica desconstrutivista nos leva a relativizar vaacuterios conceitos ndash ou

seja encaraacute-los tais como satildeo como ficccedilotildees e natildeo realidades Poreacutem natildeo podemos

abrir matildeo dessas ficccedilotildees ndash e ldquonatildeo podemosrdquo aqui natildeo tem o sentido deocircntico de

ldquonatildeo devemosrdquo trata-se de uma impossibilidade praacutetica Conceitos como

ldquosignificadordquo ldquooriginalrdquo e ldquoequivalecircnciardquo satildeo pressupostos incontornaacuteveis das

praacuteticas textuais por mais problemaacuteticos que sejam Devemos criticaacute-los estar

sempre atentos para seu caraacuteter construiacutedo mas deles natildeo podemos abrir matildeo O

jogo do logocentrismo eacute em uacuteltima anaacutelise o jogo da linguagem Recusar-se a

jogaacute-lo eacute condenar-se ao silecircncio

Para chegar a essas conclusotildees ndash com as quais mantenho certo grau de

concordacircncia ndash Britto mostrou em seu artigo a divergecircncia entre a criacutetica feita por R

Arrojo (que ele considera ldquotalvez a mais destacada defensora da desconstruccedilatildeo na aacuterea

da teoria da traduccedilatildeo no Brasilrdquo) a pressupostos ldquoestigmatizados como lsquologocecircntricosrsquordquo

e o proacuteprio discurso tradutoloacutegico realizado por ela no artigo ldquoAs questotildees teoacutericas da

traduccedilatildeo e a desconstruccedilatildeo do logocentrismo algumas reflexotildeesrdquo65

Nele Arrojo cita

em portuguecircs vaacuterios trechos de obras de F Nietzche e G Mounin referindo-se a eles

como se fossem os textos dos proacuteprios autores sem mencionar quem realizou as

traduccedilotildees utilizadas Diante disso Brito considera que

[] para Arrojo a traduccedilatildeo de um texto pode ser considerada equivalente ao

original [] o que lhe interessa no momento satildeo os significados as ideias que

Nietzsche e Mounin exprimiram em seus textos e ela considera que esses

significados ou ideias foram transpostos para o portuguecircs nas traduccedilotildees de modo

razoavelmente confiaacutevel Ao tratar traduccedilotildees como originais e atribuiacute-las aos

autores dos originais Arrojo assume plenamente a visatildeo logocecircntrica [] ndash

traduccedilotildees satildeo textos equivalentes a originais

65 In ARROJO R (org) O signo desconstruiacutedo implicaccedilotildees para a traduccedilatildeo a leitura e o ensino

Campinas Pontes 2003 p 71-79

67

Em segundo lugar vemos que Arrojo utiliza expressotildees como ldquoMounin crecircrdquo e

ldquopara Mouninrdquo Ora se Arrojo pode atribuir crenccedilas e opiniotildees a Mounin com

base na sua leitura do texto de Mounin eacute porque a seu ver o texto de Mounin

reflete as intenccedilotildees conscientes de Mounin

[] na sua praacutetica textual Arrojo segue o pressuposto [de que] o significado eacute uma

propriedade estaacutevel do texto que pode ser identificada com a intenccedilatildeo consciente

do autor ao escrevecirc-lo e que independe das circunstacircncias do leitor Por fim

constatamos tambeacutem que para Rosemary Arrojo o significado pode ser

considerado um objeto distinto do estilo do texto em que ele aparece Caso

contraacuterio ela teria citado Nietzsche e outros autores no original []

Vemos portanto que para os fins de um artigo cujo tema eacute a desconstruccedilatildeo do

logocentrismo Arrojo subscreve justamente aqueles aspectos da visatildeo logocecircntrica

que segundo ela devem ser desconstruiacutedos A autora naturalmente poderia

argumentar que se trata de uma aproximaccedilatildeo apenas que na verdade ela sabe que

a traduccedilatildeo de Mounin feita pelo tradutor brasileiro natildeo eacute a mesma coisa que o texto

de Mounin tal como sabe que o texto de Mounin natildeo eacute uma representaccedilatildeo estaacutevel

dos significados e intenccedilotildees conscientes de Mounin mas que para os fins a que se

propotildee no artigo em questatildeo ela pode perfeitamente admitir essas ficccedilotildees ndash a

ficccedilatildeo do original estaacutevel e consciente e a ficccedilatildeo da traduccedilatildeo equivalente Pois esta

hipoteacutetica defesa de Arrojo eacute justamente o ponto a que quero chegar Todas as

criacuteticas ao logocentrismo apontam para fatos inegaacuteveis Tem razatildeo Arrojo quando

chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de traduccedilotildees perfeitamente literais em que

a figura do tradutor eacute de todo invisiacutevel Tambeacutem eacute verdade que natildeo eacute possiacutevel

determinar com exatidatildeo qual o significado uacutenico e preciso de um determinado

texto nem tampouco identificar um tal significado com a intenccedilatildeo consciente do

autor E eacute evidente que eacute ingenuidade acreditar que o significado eacute uma entidade

abstrata que pode ser destacada dos outros elementos do texto como o estilo O

problema poreacutem eacute que para a grande maioria dos fins praacuteticos que envolvem a

utilizaccedilatildeo de textos soacute podemos agir se adotarmos certos pressupostos

aproximaccedilotildees que embora natildeo correspondam agrave realidade dos fatos satildeo

imprescindiacuteveis (2001 42-48)

Mais uma vez a longa citaccedilatildeo se justifica pela acuidade dos argumentos e por

sua total conveniecircncia para o encerramento desta parte de nosso estudo Outros textos

do mesmo autor seratildeo evocados nos proacuteximos toacutepicos ao tratarmos propriamente da

traduccedilatildeo poeacutetica

68

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica

The death of Irish

The tide gone out for good

Thirty-one words for seaweed

Whiten on the foreshore

Aidan Carl Mathews

A morte do Irlandecircs

A mareacute vazia de vez

Trinta e uma palavras para alga

Empalidecem na praia

(Trad Marcelo Taacutepia66

)

ldquoSegundo Jakobson a estrateacutegia do traduzir impotildee [] um ldquomodus operandirdquo []

distinto a este ldquomodus operandirdquo Jakobson denomina ldquotransposiccedilatildeo criativardquo

(caso em que eu falo de lsquore-criaccedilatildeorsquo ou lsquotranscriaccedilatildeorsquo e

Meschonnic de lsquotraduccedilatildeo-textorsquo) []

Haroldo de Campos67

Jaacute se fez referecircncia neste trabalho agrave hipoacutetese proposta nos anos 1930 pelos

linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf tese que se tornou durante muito

tempo referecircncia para o relativismo linguiacutestico Segundo a tatildeo conhecida hipoacutetese

Sapir-Whorf as diferentes culturas caracterizam-se por universos mentais muito

distintos natildeo soacute expressos mas tambeacutem determinados pelas diferentes liacutenguas que lhes

satildeo proacuteprias Assim o estudo das estruturas de uma liacutengua pode levar agrave elucidaccedilatildeo das

concepccedilotildees de mundo a que ela se liga Esta proposiccedilatildeo suscitou o entusiasmo de uma

geraccedilatildeo inteira de antropoacutelogos psicoacutelogos e linguistas nas deacutecadas que se seguiram

Do entendimento que ela implica deduz-se a natildeo-correspondecircncia entre os diferentes

idiomas e as consequentes visotildees diacutespares de mundo condenando-se a ideia da traduccedilatildeo

agrave impossibilidade por princiacutepio

66 O poema refere-se ao processo de ldquomorterdquo do idioma irlandecircs que conta com 31 palavras para designar

variedades de alga coerentemente com a cultura da ilha In A forja ndash alguma poesia irlandesa Ed

biliacutengue trad M Taacutepia Satildeo Paulo Olavobraacutes 2003 67 CAMPOS H ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo Conferecircncia apresentada

no II Congresso Brasileiro de Semioacutetica Satildeo Paulo 1985

69

Jakobson como jaacute se aludiu esforccedilou-se por introduzir uma visatildeo menos

pessimista expressa em seu referencial ensaio ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Diz ele

A praacutetica e a teoria da traduccedilatildeo abundam em problemas complexos de quando em

quando fazem-se tentativas de cortar o noacute goacuterdio proclamando o dogma da

impossibilidade da traduccedilatildeo ldquoO Sr Todo-Mundo esse loacutegico naturalrdquo tatildeo

vivamente imaginado por B L Whorf teria supostamente de raciocinar da

seguinte maneira ldquoOs fatos satildeo diferentes para pessoas cuja formaccedilatildeo linguiacutestica

lhes fornece uma formulaccedilatildeo diferente para expressar tais fatosrdquo68

Nos primeiros

anos da revoluccedilatildeo russa existiam visionaacuterios fanaacuteticos que advogaram[] uma

revisatildeo radical da linguagem tradicional e em particular a supressatildeo de expressotildees

enganosas como o ldquonascerrdquo ou ldquopocircrrdquo do Sol Entretanto [] eacute faacutecil para noacutes

passar de nossas conversaccedilotildees costumeiras sobre o Sol nascente ou poente agrave

representaccedilatildeo da rotaccedilatildeo da Terra [] porque qualquer signo pode ser traduzido

num outro signo em que ele se nos apresenta mais plenamente desenvolvido e mais

exato []

Toda experiecircncia cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer liacutengua

existente Onde houver uma deficiecircncia a terminologia poderaacute ser modificada por

empreacutestimos calccedilos neologismos transferecircncias semacircnticas e finalmente por

circunloacutequios [] (1973 66-67)

Sobre a questatildeo da equivalecircncia Jakobson afirma que

[] no niacutevel da traduccedilatildeo interlingual69

natildeo haacute comumente equivalecircncia completa

entre as unidades de coacutedigo ao passo que as mensagens podem servir como

interpretaccedilotildees adequadas das unidades de coacutedigo ou mensagens estrangeiras []

No caso da traduccedilatildeo poeacutetica apoacutes sustentar (conforme citaccedilatildeo jaacute incluiacuteda no

iniacutecio deste estudo) que ldquoem poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de

princiacutepio construtivo do textordquo e de que ldquoo trocadilho ou [] a paronomaacutesia reina na

68 Referecircncia a Benjamin Lee Whorf Language thought and reality Massachusetts Cambridge 1956

p 235 69 O linguista distingue trecircs espeacutecies de traduccedilatildeo intralingual ou reformulaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo dos signos

verbais por meio de outros signos da mesma liacutengua) interlingual ou traduccedilatildeo propriamente dita

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de alguma outra liacutengua) e traduccedilatildeo intersemioacutetica

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de sistemas de signos natildeo-verbais)

70

arte poeacuteticardquo o linguista considera que ldquoquer esta dominaccedilatildeo seja absoluta ou limitada

a poesia por definiccedilatildeo eacute intraduziacutevelrdquo Sendo assim para ele ldquosoacute eacute possiacutevel a

transposiccedilatildeo criativardquo (1973 72)

A expressatildeo ldquotransposiccedilatildeo criativardquo daria origem agrave palavra ldquotranscriaccedilatildeordquo

designadora do conceito de traduccedilatildeo poeacutetica segundo Haroldo de Campos que

examinou a questatildeo da ldquofragilidaderdquo de uma ldquoobra de arte verbalrdquo e propotildee do mesmo

modo o caminho de transcriaacute-lo Veja-se oportunamente a teoria da transcriaccedilatildeo de

Campos em toacutepico a ela dedicado neste estudo

71

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo

George Steiner em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo livro sobre traduccedilatildeo After Babel (1973)

diz70

que ldquoA traduccedilatildeo eacute necessaacuteria em razatildeo de os seres humanos falarem diferentes

liacutenguasrdquo (2005 77) A afirmaccedilatildeo aparentemente oacutebvia implica a noccedilatildeo de que sendo

necessaacuteria seraacute realizada independentemente de suas dificuldades ou mesmo de ser

ldquopossiacutevelrdquo ou ldquoimpossiacutevelrdquo Desde a Antiguidade haacute a praacutetica da traduccedilatildeo assim como

a reflexatildeo sobre ela Ao longo da histoacuteria diferentes modos de visatildeo da atividade se

sobrepotildeem se contradizem se complementam sem que haja qualquer perspectiva de

uma teoria uacutenica que venha a se converter em referencial universal para a praacutetica da

traduccedilatildeo Embora cada uma das teorias existentes possa reivindicar a superioridade

sobre as demais o que permanece eacute um conjunto intrincado e muito amplo de

formulaccedilotildees e consequentemente de possibilidades de metodologia para a atividade

tradutoacuteria Enquanto se pode ter a ideia de que sempre a transposiccedilatildeo de um sentido de

um idioma a outro seraacute possiacutevel pela ldquosubstituiccedilatildeo do material textual de uma liacutengua

pelo material textual equivalente em outra liacutenguardquo (J C Catford)71

agrave semelhanccedila de

vagotildees de um trem de carga que rearranjados da forma que for necessaacuteria conduziratildeo

todo o ldquoconteuacutedordquo da mensagem do ponto de partida ao ponto de chegada (Eugene

Nida)72

pode-se concluir pela impossibilidade da traduccedilatildeo (hipoacutetese Humboldt ndash Sapir-

Whorf73

) ou por uma oacuteptica menos ldquopessimistardquo (mesmo incorporando a ideia de

impossibilidade) que ofereceraacute saiacuteda (Jakobson) tambeacutem se pode questionar a ideia de

traduccedilatildeo relativizando o significado como algo absolutamente incorpoacutereo e inacessiacutevel

(Derrida) Com a permanecircncia num conjunto de historicidade complexa de uma

extensa pluralidade de teorias mais antigas e mais novas seraacute sempre necessaacuterio eleger

aquela ou aquelas que melhor se prestem a determinadas perspectivas de realizaccedilatildeo

70 Utilizaremos para as citaccedilotildees de Steiner a ediccedilatildeo brasileira de seu livro Depois de Babel questotildees de

linguagem e traduccedilatildeo (Curitiba UFPR 2005) em traduccedilatildeo de Carlos Alberto Faraco 71 CATFORD J C A linguistic theory of translation Oxford Oxford University Press 1965 Traduccedilatildeo

brasileira Uma teoria linguiacutestica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1980 72 NIDA E Language structure and translation California Stanford University Press 1975 73

Wilhelm von Humboldt argumentou que as diferentes liacutenguas determinam constroem ldquovisotildees de

mundordquo (Weltanschauungen) diversas a ideia foi desenvolvida posteriormente pelos linguistas norte-

americanos Edward Sapir e Benjamin Whorf

72

Steiner considera que a ldquobibliografia sobre teoria praacutetica e histoacuteria da traduccedilatildeo

[] pode ser distribuiacuteda por quatro periacuteodosrdquo (259) embora natildeo haja linhas divisoacuterias

niacutetidas O primeiro por ele delimitado corresponde a um periacuteodo de dezenove seacuteculos

estende-se

[] do famoso preceito de Ciacutecero que recomenda em seu Libellus de optimo

genere oratorum de 46 a C que natildeo se traduza verbum pro verbo (ldquopalavra por

palavrardquo) e de sua reiteraccedilatildeo por Horaacutecio na Ars Poetica aproximadamente 20

anos mais tarde ateacute o enigmaacutetico comentaacuterio de Houmllderlin sobre suas proacuteprias

traduccedilotildees de Soacutefocles (1804)

O autor baseia-se para sua definiccedilatildeo desse imenso intervalo no fato de que

nele ldquoanaacutelises e pronunciamentos seminais brotam diretamente do empreendimento do

tradutorrdquo e destaca no periacuteodo

as observaccedilotildees e polecircmicas de Satildeo Jerocircnimo o magistral Sendbrief vom

Dolmetschen de Lutero (1530) os comentaacuterios de Du Bellay Montaigne e

Chapman os de Jacques Amyot para os leitores de sua traduccedilatildeo de Plutarco [] as

elaboraccedilotildees de Dryden sobre Horaacutecio Quintiliano e Jonson as de Pope sobre

Homero as de Rochefort sobre a Iliacuteada A teoria de Floacuterio [] os pontos de vista

gerais de Cowley [] o De interpretatione recta de Leonardo Bruni [] O tratado

de Huet [] (259-260)

Algumas notaccedilotildees que faccedilo de marcos (entre outros possiacuteveis) nessa histoacuteria

Ciacutecero inicia a histoacuteria da tradutologia distingue entre ut interpres (mero

tradutor) e ut orator (orador escritor) rechaccedilando a traduccedilatildeo literal (pro verbo

uerbum) Nec verbum verbo reddere fidus interpres (ldquonatildeo se preocupe em verter

palavra por palavra como um fiel inteacuterpreterdquo) Mas antes no seacutec VI a C quando a

liacutengua persa dominava o oriente os targumistas (targum traduccedilatildeo interpretaccedilatildeo)

ajudavam o puacuteblico a entender os versos biacuteblicos traduzindo-os oralmente e

comentando-os ndash cite-se o lema de Judaacute bem Ilai ldquoo que traduz literalmente eacute um

falsaacuterio o que acrescenta algo eacute um blasfemordquo No seacuteculo III a C judeus integrados agrave

cultura heleniacutestica do Mediterracircneo centro-oriental ocasionam a necessidade de

73

traduccedilatildeo de textos sagrados para o grego por dificuldade de leitura do hebraico surge o

primeiro caso histoacuterico de traduccedilatildeo bem-sucedida ndash a Biacuteblia na ldquoversatildeo dos setentardquo

ldquo72 anciatildeos traduzem em 72 dias inspirados pela divindaderdquo No final do seacuteculo IV

aparece a Vulgata Satildeo Jerocircnimo procede agrave revisatildeo dos textos biacuteblicos latinos existentes

a partir do grego e realiza a traduccedilatildeo do velho testamento com base no texto hebraico

propotildee que ldquoEadem igitur interpretandi sequenda est regula quam saepe diximus ut

ubi non sit damnum in sensu linguae in quam transferimus εὐφωνία et proprietas

conserveturrdquo74

(ldquoAssim pois deve-se seguir a regra de traduccedilatildeo que jaacute indicamos vaacuterias

vezes quando natildeo redunde em detrimento do sentido haacute que se conservar a eufonia e as

caracteriacutesticas proacuteprias da liacutengua que se traduzrdquo) Na Idade Meacutedia Maimocircnides formula

concepccedilotildees acerca de procedimentos de traduccedilatildeo que ainda correspondem a uma visatildeo

pragmaacutetica de equivalecircncia adotada por tradutores

O tradutor que pretenda verter literalmente cada vocaacutebulo e apegar-se servilmente

agrave ordem das palavras e frases do original depararaacute com muitas dificuldades e o

resultado apresentaraacute reparos e corruptelas O tradutor teraacute de apreender primeiro

todo o alcance da ideia e reproduzir depois seu conteuacutedo com maacutexima clareza em

outro idioma Mas isto natildeo pode ser realizado sem alterar a disposiccedilatildeo sintaacutetica

sem usar de muitos vocaacutebulos onde soacute havia um ou vice-versa e sem acrescentar

ou suprimir palavras de tal maneira que a mateacuteria resulte perfeitamente inteligiacutevel

na liacutengua para a qual se traduz75

Na Idade Moderna durante o Renascimento destaca-se o problema da traduccedilatildeo

de textos sagrados Lutero e Frei Luis de Leoacuten satildeo partidaacuterios da ldquoliteralidaderdquo (ldquose

pudesse ater-me agrave letra o fariardquo ndash Lutero) haacute preocupaccedilatildeo com a ldquonaturalidaderdquo no

idioma de chegada que levaria a acusaccedilotildees de uso de linguagem profana nos textos

biacuteblicos Em 1533 surge a obra De ratione dicendi de Juan Luis Vives que traz

ldquoquestotildees certamente muito sugestivas para a moderna teoria moderna da traduccedilatildeordquo

(Torre 1994 35) o linguista romeno Coseriu o considera ldquoprecursor da teoria moderna

do traduzirrdquo pelo fato de ele propor o problema da traduccedilatildeo como uma atividade

74 Hieronymus Epistolae 4 106 55 75 A partir da versatildeo ao espanhol de Santoyo (Santoyo J C Teoriacutea y criacutetica de La traduccioacuten Antologiacutea

Barcelona Bellaterra 1987) que por sua vez traduziu da versatildeo inglesa de Stitskin (Stitskin L D

Letters of Maimonides New York Yeshiva University Press 1977) Apud Torre E Teoria de La

traduccioacuten literaacuteria Madri Sintesis 1994 p 24

74

diferenciada para cada tipo de texto suas colocaccedilotildees centrais vatildeo ao encontro de

proposiccedilotildees como as de Nida (Theory and Practice of Translation 1969) para ele a

traduccedilatildeo eacute ldquouma transferecircncia de palavras de uma liacutengua a outra conservando-se o

sentidordquo76

Distingue trecircs tipos de traduccedilatildeo

Em algumas versotildees atende-se somente ao sentido (solus spectatur sensus) em

outras somente agrave construccedilatildeo e ao estilo [] como se por exemplo algueacutem

tentasse trasladar a outras liacutenguas os discursos de Demoacutestenes ou de Ciacutecero ou os

poemas de Homero ou de Virgiacutelio respeitando fielmente todas as suas

caracteriacutesticas e nuanccedilas [] Um terceiro tipo de versatildeo eacute aquele em que se tecircm

em conta tanto os conteuacutedos 77

como as palavras (et res et verba) isto eacute quando as

palavras vecircm a adicionar forccedila e graccedila agraves ideias seja isoladamente ou em grupos

ou na totalidade do discurso78

Mencione-se tambeacutem como referecircncia especialmente marcante a proposiccedilatildeo de

Alexander Fraser Tytler (1792) comumente citadas como a manifestaccedilatildeo modelar da

concepccedilatildeo logocecircntrica da traduccedilatildeo79

1 A traduccedilatildeo deve reproduzir em sua totalidade a ideia do texto original

2 O estilo da traduccedilatildeo deve ser o mesmo do original

3 A traduccedilatildeo deve ter toda a fluecircncia e a naturalidade do texto original

E ainda o ldquodecisivo ensaiordquo (Steiner 2005 260) de Friedrich Schleirmacher80

ldquoUeber die verschiedenen Methoden des Uebersetzensrdquo (ldquoSobre os diferentes meacutetodos

de traduccedilatildeordquo conforme traduccedilatildeo brasileira)81

de 1813 Schleiermacher distingue

primeiramente ldquoduas formasrdquo que teriam sido inventadas de ldquotravar conhecimento com

as obras de liacutenguas desconhecidasrdquo ndash a ldquoimitaccedilatildeordquo e a ldquoparaacutefraserdquo

76 Apud TORRE 1994 p35 77 Apud ARROJO R 2003 A partir de The principles of translation (1791) apud Bassnet-McGuire

Susan Translation studies p 63 78 Id ib 79 Vejam-se as referecircncias agraves concepccedilotildees desconstrucionistas neste trabalho Outras observaccedilotildees sobre o assunto seratildeo incluiacutedas adiante 80 O filoacutesofo Shleiermacher (1768-1834) foi um dos criadores do Romantismo alematildeo ao lado dos irmatildeos

August e Friedrich Schlegel do poeta Novalis do autor de obras dramaacuteticas Ludwig Tieck e do tambeacutem

filoacutesofo Schelling todos unidos em torno da revista ldquoAtheanumrdquo em 1797 81 SCHLEIRMACHER F Traduccedilatildeo de Margarete Von Muumlhlen Poll In Claacutessicos da teoria da traduccedilatildeo

vol I ndash Alematildeo-portuguecircs Florianoacutepolis UFSC 2001 p 27

75

A paraacutefrase quer dominar a irracionalidade das liacutenguas mas somente de forma

mecacircnica [] O parafraseador lida com os elementos de ambas as liacutenguas como se

fossem sinais matemaacuteticos que se deixam levar aos mesmos valores por adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo e nem o espiacuterito da liacutengua traduzida nem o da liacutengua original

conseguem aparecer nesse procedimento [] Em contrapartida a imitaccedilatildeo se

curva ante a irracionalidade das liacutenguas [] natildeo restaria outra coisa com a

diversidade das liacutenguas com a qual tantas outras diversidades estatildeo ligadas a natildeo

ser esboccedilar uma imitaccedilatildeo um todo composto de elementos visivelmente diferentes

dos do original que contudo aproximasse o seu efeito daquele tanto quanto as

diferenccedilas de material ainda lhe permitissem (2005 41-43)

Mas a contribuiccedilatildeo mais importante do pensador alematildeo foi a distinccedilatildeo entre

caminhos a serem seguidos pelo ldquoverdadeiro tradutorrdquo (ldquoaquele que realmente pretende

levar as encontro essas duas pessoas tatildeo separadas seu autor e seu leitor []rdquo) ldquo[] que

caminhos ele [o verdadeiro tradutor] pode tomar A meu ver soacute existem dois Ou o

tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor ateacute ele ou deixa o leitor em paz e leva o

autor ateacute elerdquo (2001 43)

Com a obra de Tytler e a de Schleiermacher encerra-se segundo Steiner o

primeiro periacuteodo da histoacuteria bibliograacutefica da traduccedilatildeo caracterizada essencialmente por

uma orientaccedilatildeo empiacuterica de ldquoasserccedilotildees e notaccedilotildees teacutecnicas primaacuteriasrdquo iniciando-se

entatildeo o segundo periacuteodo eminentemente teoacuterico e voltado agrave investigaccedilatildeo

hermenecircutica ldquoA questatildeo da natureza da traduccedilatildeo eacute posicionada no interior das teorias

mais gerais da linguagem e da mente [] A abordagem hermenecircutica [] foi iniciada

por Schleiermacher e adotada por A W Schlegel e Humboldtrdquo Steiner atribui a ldquoesse

intercacircmbiordquo relatos dos mais reveladores sobre traduccedilatildeo como os de Goethe

Schopenhauer Matthew Arnold Paul Valeacutery Ezra Pound Walter Benjamin e Ortega y

Gasset entre outros Sobre Arnold mencione-se que em seu ensaio On translating

Homer (1861) ldquosustenta a tese de que toda boa traduccedilatildeo haveria de produzir no leitor de

liacutengua receptora a mesma impressatildeo que produziu o original em sua eacutepoca em seus

primeiros leitoresrdquo enquanto F W Newman (tambeacutem em 1861) ldquodefendia exatamente

o contraacuterio a traduccedilatildeo deveria seguir fielmente as caracteriacutesticas formais do texto

original e o leitor da traduccedilatildeo haveria de ter sempre a impressatildeo de que se encontrava

76

precisamente diante de uma traduccedilatildeo e natildeo diante do texto originalrdquo (Torre 1994 47)

O ldquoperiacuteodo de teorizaccedilatildeo e definiccedilatildeo poeacutetico-filosoacuteficardquo termina para Steiner com Sous

lrsquonvocation de Saint Jeacuterome (1946) de Valery Larbaud

O terceiro periacuteodo eacute marcado pela aplicaccedilatildeo por estudiosos russos e tchecos ndash

ldquoherdeiros do movimento formalistardquo de teorias linguiacutesticas e estatiacutesticas no estudo da

traduccedilatildeo Quine (1960) e Andrej Fedorov (1953) estatildeo entre os autores representativos

do contexto

Um novo periacuteodo se configura para Steiner a partir das proximidades da deacutecada

de 1970 surge um novo interesse na hermenecircutica da traduccedilatildeo despertado pela

redescoberta do texto ldquoDie Aufgabe decircs Uumlbersetzersrdquo (ldquoA tarefa do tradutorrdquo) de

Walter Benjamin (1923) e pela influecircncia de Heidegger e Hans-George Gadamer a

reflexatildeo sobre teoria e praacutetica da traduccedilatildeo se transforma num ponto de contato entre

diferentes disciplinas Quanto agraves ideias de Walter Benjamin dadas a sua complexidade

e a sua importacircncia para a discussatildeo da atividade tradutoacuteria ndash e em especial para a

teorizaccedilatildeo sobre traduccedilatildeo poeacutetica por Haroldo de Campos ndash elas seratildeo referidas

oportunamente ao tratarmos das reflexotildees do brasileiro

77

B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo

Eacute recente ndash de 2011 ndash a publicaccedilatildeo de Teorias contemporaneas de la traduccioacuten

de A Pym82

Para uma raacutepida referecircncia ao panorama teoacuterico geral sobre traduccedilatildeo creio

que essa seja a fonte mais conveniente pela proposta de categorizaccedilatildeo e pela

abrangecircncia que encerra

O autor afirma que estruturou seu estudo ldquoem torno de paradigmas e natildeo de

teorias teoacutericos ou escolas individuaisrdquo Propotildee-se a examinar os paradigmas baseados

em ldquoequivalecircnciardquo ldquofinalidaderdquo ldquodescriccedilatildeordquo ldquoindeterminaccedilatildeordquo e ldquolocalizaccedilatildeordquo os

paradigmas aparecem em parte por ordem cronoloacutegica dos anos 1960 agrave atualidade

Quanto agraves teorias anteriores diz Pym ldquoAs teorias novas substituiacuteram as teorias

precedentes Em absoluto Todos os paradigmas continuam funcionando ateacute certo

ponto en contextos profissionais ou acadecircmicos atuais Todos merecem ser objeto de

um estudo geralrdquo

Sobre as teorias enquadradas no primeiro paradigma diz Pym ao apresentar

suas bases conceituais

En el aacutembito de la linguiacutestica se prestoacute atencioacuten al problema del ldquosentidordquo

Saussure habiacutea establecido una distincioacuten entre el ldquovalorrdquo que tiene una palabra

(con relacioacuten al sistema del lenguaje) y su ldquosignificacioacutenrdquo (que tiene en el uso

concreto) Consideremos el ejemplo famoso del ajedrez el valor del caballo es la

suma de todos los movimientos que puede hacer mientras que la significacioacuten de

un caballo en concreto depende de la posicioacuten que ocupe en el tablero en un

momento dado Por tanto el valor depende del sistema que Saussure denominoacute

langue (lengua) mientras que la significacioacuten depende del uso concreto que

Saussure denominoacute parole (habla) Para algunos teoacutericos como Coseriu podriacutea

trazarse una correspondencia entre esos teacuterminos y la distincioacuten en alemaacuten entre

Sinn (significado estable) y Bedeutung (significado momentaacuteneo significacioacuten) Si

una traduccioacuten no puede reproducir el primero podriacutea tal vez transmitir el

segundo En espantildeol por ejemplo no hay palabra equivalente al vocablo ingleacutes

shallow tal como aparece en la expresioacuten shallow water No obstante su

82 Anthony Pym que eacute professor de Traduccedilatildeo e Estudos Interculturais na Universitat Rovira i Virgili em

Tarragona (Catalunha Espanha) publicou o trabalho em liacutengua espanhola O livro encontra-se

disponiacutevel pela internet em site da referida Universidade

78

significacioacuten se puede transmitir empleando dos palabras poco profundo (cf

Coseriu 1978) Asiacute queda demostrado que aunque las estructuras de ambos

idiomas sean diferentes es posible establecer cierta equivalencia

E cita posteriormente algumas das primeiras definiccedilotildees de ldquoequivalecircnciardquo

La traduccioacuten entre lenguas puede definirse como la sustitucioacuten de los elementos

de un idioma el campo [domain] traductivo por elementos equivalentes de otro

idioma la gama [range] traductiva (A G Oettinger 1960 110)

La traduccioacuten podriacutea definirse de la siguiente manera la sustitucioacuten del material

textual en un idioma por material equivalente en otro idioma (Catford 1965 20)

Traducir consiste en reproducir en la lengua meta el equivalente natural maacutes

proacuteximo al mensaje de la lengua de origen (Nida and Taber 1969 12 cf Nida

1959 33)

[La traduccioacuten] lleva de un texto de origen a un texto de destino que es el

equivalente lo maacutes proacuteximo posible y presupone una comprensioacuten del contenido y

el estilo del original (Wilss 1982 62)

Sobre as teorias agrupadas com base no paradigma da finalidade diz o autor

[] es frecuente encontrar referencias a la Skopostheorie la llamada teoriacutea del

Skopos que es la palabra griega para lo que denominaremos ldquofinalidadrdquo Este

teacutermino forma el nuacutecleo de la ldquoteoriacutea generalrdquo de Reiss y Vermeer gracias sobre

todo a la proposicioacuten siguiente

Una accioacuten viene determinada por su finalidad (o sea es una funcioacuten de su

finalidad) (Reiss y Vermeer 1984 101[])

Esta ldquoregla del Skoposrdquo implica que el acto de traducir considerado como una

accioacuten obedece en uacuteltima instancia a las razones por las cuales alguien ha

encargado la traduccioacuten []

[] tenemos el mismo texto de origen varias posibles traducciones y un factor

dominante el Skopos

O paradigma seguinte o das teorias descritivas nasceria da noccedilatildeo de que ldquoa

equivalecircncia eacute uma caracteriacutestica de todas as traduccedilotildees sem importar sua qualidade

linguiacutestica ou esteacuteticardquo de modo a que o conceito natildeo poderia servir para a formaccedilatildeo

79

prescritiva de tradutores O que se propotildee dentro desse paradigma eacute descrever o que

satildeo na realidade as traduccedilotildees ou como satildeo efetivamente feitas e natildeo apenas

prescrever como elas deveriam ser Por essa razatildeo a mudanccedila da prescriccedilatildeo para a

descriccedilatildeo representou como diz Pym um claro desafio ao paradigma da equivalecircncia

Enquadram-se nesta categoria entre outros constructos teoacutericos o do formalismo russo

e do estruturalismo do Ciacuterculo Liacutenguiacutestico de Praga

Para abordar as teorias referentes ao paradigma do indeterminismo Pym se vale

inicialmente de um comentaacuterio sobre a permanecircncia em certa medida do paradigma da

equivalecircncia em traduccedilatildeo para ele as diferentes versotildees desse paradigma ainda

ldquosubjazem na maior parte do trabalho realizado em tradutologiardquo O autor constata que

a equivalecircncia natildeo morreu ainda que tenha sido questionada De seu ponto de vista haacute

duas ldquorazotildees profundasrdquo para as duacutevidas teoacutericas relativas agrave equivalecircncia e que natildeo

provecircm dos dois paradigmas jaacute mencionados a ldquoinstabilidade da lsquoorigemrsquordquo (ldquoa

investigaccedilatildeo descritiva mostra que as tarefas dos tradutores variam consideravelmente

em funccedilatildeo de seu posicionamento cultural e histoacutericordquo) e o ldquoceticismo epistemoloacutegicordquo

Faz tempo como observa Pym que os filoacutesofos da proacutepria ciecircncia e mais tarde os das

humanidades puseram em duacutevida a ldquocertezardquo proacutepria das diversas formas de

estruturalismo ao assumirem que o estudo cientiacutefico poderia produzir conhecimentos

estaacuteveis num mundo de relaccedilotildees puras ndash ldquoas relaccedilotildees entre coisas natildeo podem ser

separadas das relaccedilotildees entre pessoasrdquo e por isso o estruturalismo deu origem ao poacutes-

estruturalismo e agrave desconstruccedilatildeo nos estudos literaacuterios e culturais Segundo Pym uma

teoria ldquodeterministardquo pressupotildee um tipo de relaccedilatildeo em que um fator X impotildee a natureza

de um fator Y e assim a determina enquanto uma teoria ldquoindeterministardquo admite que a

relaccedilatildeo ldquonatildeo eacute tatildeo direta tatildeo unidirecional tatildeo binaacuteria ou tatildeo faacutecil de observarrdquo (113)

Entre as teorias estudadas sob este paradigma encontra-se evidentemente a

desconstruccedilatildeo

As ideias e praacuteticas reunidas sob o uacuteltimo dos paradigmas identificados por

Pym o da localizaccedilatildeo ldquoprovavelmente natildeo formamrdquo segundo ele ldquouma teoria da

traduccedilatildeo do estrito ponto de vista acadecircmicordquo Nascidas para atender a necessidades de

mercado ndash ldquoa localizaccedilatildeo implica fazer com que um produto seja apropriado linguiacutestica

e culturalmente ao mercado local de destino onde seraacute utilizado e vendidordquo (segundo

uma Associaccedilatildeo norte-americana dedicada agrave aacuterea) ndash ldquonatildeo satildeo mais que um conjunto de

nomes e ideias desenvolvido dentro de alguns setores da induacutestria da linguagemrdquo O

80

autor comenta que ldquose os idiomas e as culturas satildeo tatildeo incertos e instaacuteveis que ningueacutem

pode estar seguro sobre o que eacute a equivalecircncia entatildeo uma soluccedilatildeo poderia ser criar-se

um conjunto de idiomas e culturas artificiais onde a certeza fosse possiacutevelrdquo

Uma vez apresentado ligeiramente este breve panorama pode-se deduzir que a

grande questatildeo remanescente no campo da teoria da traduccedilatildeo e portanto em relaccedilatildeo agraves

possibilidades de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees diz respeito ao conceito de equivalecircncia

sua utilizaccedilatildeo (ou natildeo) como fundamento para a atividade tradutoacuteria e as possiacuteveis

formas de seu emprego caso seja ele considerado Assim seraacute aproveitada esta

constataccedilatildeo para que se apresente uma breve reflexatildeo sobre as possibilidades de um

estudo comparativo de traduccedilotildees a ser aqui realizado

O construto teoacuterico da ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos deve enquadrar-

se ainda que imprecisamente (pelas limitaccedilotildees da categorizaccedilatildeo apresentada presentes

em qualquer categorizaccedilatildeo) entre as teorias descritivas pelo niacutevel geneacuterico de suas

ldquoprescriccedilotildeesrdquo (voltadas apenas ao posicionamento de iniciativa criadora incluindo-se a

ousadia criativa e agrave noccedilatildeo de ldquoconstruccedilatildeo paramoacuterficardquo que permite um amplo campo

de accedilotildees diacutespares conforme a leitura) e pela concepccedilatildeo dessacralizante do ldquooriginalrdquo a

ser recriado diante do qual se prevecirc a atitude rebelionaacuteria

81

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre

traduccedilotildees

No ensaio ldquoFidelidade em traduccedilatildeo poeacutetica o caso Donnerdquo Paulo Henriques

Britto assim sintetiza de iniacutecio a questatildeo sobre a possibilidade de se compararem

traduccedilotildees tendo em conta a visatildeo desconstrucionista

Na aacuterea de Estudos da Traduccedilatildeo no Brasil tem certa influecircncia o ideaacuterio poacutes-

estruturalista que pode ser encarado como uma versatildeo contemporacircnea do

ceticismo em sua versatildeo mais radical mdash natildeo o ceticismo de Hume mas o de Sexto

Empiacuterico A posiccedilatildeo poacutes-estruturalista pode ser resumida aproximadamente como

se segue os textos natildeo possuem significados estaacuteveis que correspondam a

intenccedilotildees que seus autores tivessem em mente ao escrevecirc-los (se eacute que os autores

tecircm controle total sobre suas intenccedilotildees) soacute temos acesso a nossas proacuteprias leituras

dos textos Assim quando dizemos que uma dada traduccedilatildeo eacute fiel ao original

estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traduccedilatildeo eacute fiel agrave nossa leitura do

original nada podemos afirmar sobre os textos em si Entende-se pois que natildeo

haja consenso absoluto a respeito dos meacuteritos relativos de duas traduccedilotildees de um

dado texto se achamos a traduccedilatildeo de um texto feita por A melhor que a feita por

B isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais agrave do

tradutor A do que a de B e nada mais haacute a se dizer (2006 239) 83

Britto parte para uma contribuiccedilatildeo sua agrave comparaccedilatildeo de traduccedilotildees do artigo (jaacute

mencionado neste trabalho) ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo de R

Arrojo sobre uma polecircmica ocorrida entre os criacuteticos e tradutores Nelson Ascher e

Paulo Vizioli relativa a traduccedilotildees da poesia de John Donne realizadas por Augusto de

Campos e por Vizioli Ele cita um trecho do referido artigo

[] a traduccedilatildeo de um poema e a avaliaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo natildeo poderatildeo realizar-se

fora de um ponto de vista ou de uma perspectiva ou sem a mediaccedilatildeo de uma

ldquointerpretaccedilatildeordquo Portanto a traduccedilatildeo de um poema ou de qualquer outro texto

inevitavelmente seraacute fiel agrave visatildeo que o tradutor tem desse poema e tambeacutem aos

objetivos de sua traduccedilatildeo [] Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos satildeo

83 Publicado na revista Terceira margem nuacutemero 15 Rio de Janeiro julho-dezembro de 2006 pp 239-

253

82

ldquofieacuteisrdquo agraves suas concepccedilotildees teoacutericas acerca de traduccedilatildeo e acerca da poesia de

Donne e nesse sentido tanto as traduccedilotildees de um como de outro satildeo legiacutetimas e

competentes Inevitavelmente as traduccedilotildees de cada um deles agradaratildeo aos

leitores que consciente ou inconscientemente compartilharem de seus

pressupostos e desagradaratildeo agravequeles que como Ascher jaacute foram seduzidos por

pressupostos diferentes

Apoacutes comentar que ldquonum primeiro momentordquo essa argumentaccedilatildeo (de que natildeo

temos jamais acesso agrave coisa-em-si mas somente agrave nossa percepccedilatildeo dela) parece

inatacaacutevel Britto aponta a existecircncia de um problema esse argumento natildeo se aplicaria

apenas agrave traduccedilatildeo e deveria valer aos outros campos do saber Evoca entatildeo o fato de

os cientistas dedicados agraves questotildees da fiacutesica contemporacircnea (aacuterea de conhecimento na

qual tambeacutem natildeo se teria acesso agrave realidade-em-si) ao natildeo serem unacircnimes em relaccedilatildeo

agrave teoria das cordas (uma das tentativas de teoria unificada) prosseguirem com

experimentos publicaccedilotildees e debates em vez de se contentarem com a constataccedilatildeo de

que as discordacircncias se devam somente aos diferentes pressupostos de cada fiacutesico para

concluir que ldquoo ponto de partida de Arrojo procede mas a conclusatildeo a que ela chega

natildeo se sustentardquo

Eacute verdade que natildeo temos acesso direto ao real e que todas nossas opiniotildees satildeo

qualificadas pelosnossos pressupostos mas essa constataccedilatildeo natildeo leva agrave conclusatildeo

de que todas as traduccedilotildees ou todas as teorias satildeo igualmente ldquolegiacutetimas e

competentesrdquo Pelo contraacuterio eacute precisamente porque natildeo temos esse acesso direto

ao real que eacute necessaacuterio analisar discutir e tentar estabelecer consensos ainda que

parciais ndash pois se o real se oferecesse diretamente como evidecircncia agrave inteligecircncia

humana o que haveria para discutir

Depois de contestar diversos argumentos possiacuteveis a favor da noccedilatildeo

desconstrucionista o autor propotildee um procedimento de anaacutelise comparativa cujas

providecircncias satildeo primeiramente assinalar em negrito no ldquotexto originalrdquo ldquotoda

palavra ou expressatildeo cujo significado pareccedila natildeo ter sido transposto na traduccedilatildeordquo

depois marcar em itaacutelico no ldquooriginalrdquo e nas traduccedilotildees ldquotoda passagem cujo sentido

tenha sido alterado de forma significativardquo e ainda sublinhar nas traduccedilotildees ldquoas

palavras e expressotildees que no plano do sentido parecem natildeo corresponder a nada que

conste no originalrdquo

83

Veja-se como exemplo um pequeno fragmento do poema analisado em ambas

as versotildees ao portuguecircs

Antes da anaacutelise o autor observa que sendo o texto em inglecircs composto em

pares de pentacircmetros jacircmbicos84

as duas traduccedilotildees utilizaram medidas diferentes

Vizioli o dodecassiacutelabo Campos o decassiacutelabo E comenta que embora ldquoa maioria dos

tradutoresrdquo tendesse a considerar o decassiacutelabo como o verso portuguecircs mais proacuteximo

do pentacircmetro jacircmbico poderia ser vantajoso usar o verso de doze siacutelabas pois sendo

as palavras inglesas mais curtas do que as portuguesas haveria menor chance de cortes

visando agrave manutenccedilatildeo do nuacutemero de siacuteladas

Na etapa seguinte Britto exibe um quadro com a quantificaccedilatildeo das marcaccedilotildees

em negrito itaacutelico e sublinhas

84Versos de cinco jambos ou seja cinco peacutes binaacuterios com a tocircnica na segunda siacutelaba

84

Faz ele entatildeo algumas constataccedilotildees

No que diz respeito agraves perdas de significado e agraves alteraccedilotildees de elementos

semacircnticos as duas traduccedilotildees se equivalem com ligeira vantagem para V por

outro lado V apresenta muito mais acreacutescimos do que C Ou seja ao queparece a

adoccedilatildeo de um metro mais longo em V embora permitisse diminuir um pouco as

perdas e alteraccedilotildees semacircnticas teve o efeito contraproducente de obrigar o tradutor

a acrescentar um grande nuacutemero de palavras e expressotildees que natildeo correspondem a

nada que se encontre no original a fim de preencher as doze siacutelabas de cada verso

Examinando a primeira tabela mais detidamente chegamos a uma outra

constataccedilatildeo importante dos 15 acreacutescimos em V nada menos que 11 ocorrem em

posiccedilatildeo final o que parece indicar que as palavras em questatildeo foram acrescentadas

com o duplo objetivo de preencher espaccedilo e tambeacutem forccedilar uma rima Quando

verificamos que em C haacute apenas um acreacutescimo em posiccedilatildeo final somos levados a

concluir que em C muito mais do que em V as rimas se datildeo entre termos que

correspondem semanticamente ao original ao passo que em V em 11 versos

traduziu-se o sentido do original e em seguida acrescentaram-se uma ou mais

palavras ao verso para que houvesse rima Ou seja em V o metro mais longo foi a

soluccedilatildeo encontrada pelo tradutor para compensar sua dificuldade em encontrar

soluccedilotildees que funcionassem ao mesmo tempo no plano do significado e no da rima

Este fato se comprovado por si soacute jaacute constitui um forte argumento em favor da

superioridade de C (245)

Britto passa a examinar ldquoos 11 diacutesticos em cujas traduccedilotildees houve acreacutescimos na

posiccedilatildeo final dos versosrdquo para comprovar a sua hipoacutetese Apoacutes a anaacutelise enumera

verificaccedilotildees a respeito dos aspectos observados nas traduccedilotildees para concluir por fim

que ldquoeacute possiacutevel argumentar que C eacute superior a V quanto ao quesito fidelidade

utilizando argumentos razoavelmente objetivos Dizer que as pessoas que preferem a de

Campos agrave de Vizioli o fazem apenas por compartilharem os pressupostos de Campos e

natildeo os de Vizioli natildeo resolve o problema []rdquo

O esforccedilo de Britto eacute de grande relevacircncia procura um meio de natildeo se

permanecer na relativizaccedilatildeo total em que tudo poderia ser igualmente ldquovaacutelidordquo (e

portanto tendente a despir-se de atrativos para a busca das qualidades proacuteprias de cada

criaccedilatildeo responsaacuteveis pela fruiccedilatildeo e pelo conhecimento que os textos proporcionam)

para distinguir caracteriacutesticas ndash e com elas vantagens ou desvantagens ndash de cada uma

85

das traduccedilotildees concluindo pela ldquosuperioridaderdquo de uma sobre a outra No entanto eacute

nesta parte que continua a residir em meu modo de ver uma duacutevida quais as vantagens

de se constatar por um meacutetodo de anaacutelise ndash entre outros certamente possiacuteveis ndash a

superioridade de um trabalho sobre o outro Pode-se argumentar que a escolha dos

procedimentos jaacute seraacute compatiacutevel com um ponto de vista e coerente com a hipoacutetese

preconcebida Nesse sentido uma reafirmaccedilatildeo do foco descritivo que manteacutem a noccedilatildeo

da relatividade de avaliaccedilotildees permite observar por meio da constataccedilatildeo de diferenccedilas

o modo como realizaccedilotildees distintas operam em suas escolhas natildeo necessariamente se

dando um passo conclusivo sobre a inferioridade ou natildeo de um resultado sobre outro

No caso em questatildeo a superioridade eacute depreendida em relaccedilatildeo ao quesito ldquofidelidaderdquo

sendo esta vinculada ao aspecto semacircntico ou ao ldquoplano do conteuacutedordquo poderia ser

outro o quesito e poderiam ser outras portanto as conclusotildees natildeo se pode esquecer

que a ldquofidelidade ao sentidordquo eacute como outras condiccedilotildees predefinidas discutiacutevel como

referecircncia essencial e se fundamenta inevitavelmente no conceito de equivalecircncia

Embora este pareccedila ser um conceito que tende a resistir aos questionamentos e

relativizaccedilotildees da noccedilatildeo de origem natildeo deveraacute penso ser visto como mais do que um

dos possiacuteveis princiacutepios sobre os quais se poderaacute buscar correspondecircncias para

verificaccedilatildeo de resultados num processo geral de ldquodesvendamentordquo das caracteriacutesticas

que compotildeem os textos como fontes de leitura e de recriaccedilatildeo O que eacute importante

admitir para a viabilizaccedilatildeo de qualquer passo de anaacutelise ou compreensatildeo eacute que o texto

eacute um objeto que pode ser lido e ldquocriadordquo pela leitura de modos diversos mas que

tambeacutem apresenta caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias que vatildeo aleacutem do significado e

sua permanecircncia do mesmo modo que um poema traduzido as teraacute e natildeo

necessariamente as ldquomesmasrdquo do texto do qual partiu uma vez que tambeacutem seja visto

como criaccedilatildeo como um poema autocircnomo A questatildeo eacute que um poema que ldquofuncione

bemrdquo ainda que em determinado contexto poderaacute ser considerado uma boa traduccedilatildeo

mesmo que pouco ldquofielrdquo sob certos aspectos ao texto do qual partiu Lembre-se por

exemplo entre tantas outras referecircncias possiacuteveis a traduccedilatildeo de Fitzgerald do Rubayat

de Omar Khayam tatildeo ldquodiferenterdquo do original persa no aspecto da ldquofidelidaderdquo

semacircntica e que se tornou ele mesmo um claacutessico da poesia universal

Haroldo de Campos fala em ldquovivissecccedilatildeo implacaacutevelrdquo do poema ldquooriginalrdquo

pressupondo sua materialidade necessaacuteria para um exame particular que pode originar

um novo ser uma criaccedilatildeo ldquoparamoacuterficardquo de ldquoestrutura anaacutelogardquo (construiacuteda com base

86

no reconhecimento propiciado por referenciais linguiacutestico-esteacuteticos como a funccedilatildeo

poeacutetica da linguagem ou a iconicidade do signo) nascida ao lado do outro que a

antecedeu Mas a proposta de Campos central neste estudo seraacute vista em outro

capiacutetulo

Voltando ao ensaio de Britto ele eacute tatildeo relevante para a poesia e para a traduccedilatildeo

de poesia como o ensaio de Arrojo que o motivou Ainda que se discorde do autor (que

prevecirc em seu texto as inevitaacuteveis discordacircncias) por exemplo em relaccedilatildeo a sua crenccedila

no valor da equivalecircncia e nos ldquofatosrdquo ndash manifesta na ideia de se cotejarem duas

traduccedilotildees e original ldquolinha a linha siacutelaba a siacutelaba examinando e pesando as diferenccedilas

para se chegar a uma conclusatildeo baseada em fatos [] e expressa em argumentos loacutegicos

(natildeo por exemplo em trocadilhos)rdquo ndash seu empreendimento vai contra a imobilidade e a

resignaccedilatildeo

Atualmente nos estudos da traduccedilatildeo como na aacuterea dos estudos literaacuterios eacute

frequente o argumento de que como natildeo podemos ter acesso direto a um

significado essencial absolutamente estaacutevel devemos adotar um relativismo

absoluto ndash todas as soluccedilotildees satildeo igualmente vaacutelidas e competentes cada uma em

relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos e nada mais haacute a dizer Como natildeo pode

haver uma avaliaccedilatildeo de traduccedilatildeo absolutamente objetiva e universalmente aceita

avaliar traduccedilotildees seria uma atividade ociosa A alternativa que proponho eacute esta

ainda que natildeo haja um consenso absoluto e ainda que cada um de noacutes faccedila seus

julgamentos com base em seus proacuteprios pressupostos eacute possiacutevel utilizar o discurso

racional para fazer avaliaccedilotildees e tecer consideraccedilotildees em torno de traduccedilotildees fazendo

referecircncia a certas propriedades dos textos traduzidos com relaccedilatildeo agraves quais haacute um

certo grau de acordo entre um bom nuacutemero de pessoas envolvidas nas atividade de

traduzir

Se concordamos com a accedilatildeo e com a contraposiccedilatildeo a um relativismo absoluto

(inclusive sobre poesia ou qualquer existecircncia) temos de considerar contudo que

mesmo quando se consideram diferentes soluccedilotildees como igualmente vaacutelidas em

princiacutepio isso natildeo impede necessariamente que se proceda a uma anaacutelise visando agrave

revelaccedilatildeo ao mesmo tempo das diferenccedilas entre os textos e da coerecircncia interna de

cada um e em relaccedilatildeo a seus possiacuteveis pressupostos ndash um modo talvez de concluir

87

sobre sua eficiecircncia intriacutenseca ndash extraindo-se ateacute aspectos comuns num substrato mais

ldquofundamentalrdquo do poeacutetico

A breve discussatildeo realizada neste toacutepico prosseguiraacute no seguinte de modo um

pouco mais aprofundado e amplo valendo-me para tanto de outro artigo de P H

Britto como referecircncia para reflexatildeo

88

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise

Como se veraacute iniciaremos nossos comentaacuterios e anaacutelises de breves fragmentos

da obra homeacuterica apontando primeiramente aspectos fundamentais da poesia eacutepica

grega e caracteriacutesticas gerais das traduccedilotildees dos poemas ao portuguecircs Consideraremos o

plano de conteuacutedo e algumas correspondecircncias principais de sentido para

prosseguirmos tambeacutem com apontamentos de ordem formal assim como de relaccedilotildees

entre conteuacutedo e expressatildeo Nenhuma novidade nesse procedimento que entretanto

adotaraacute modos de descriccedilatildeo e avaliaccedilatildeo natildeo baseados centralmente na quantificaccedilatildeo

esta escolha natildeo representa apenas o natildeo-uso de um recurso possiacutevel mas uma

diferenccedila de concepccedilatildeo e procedimento em relaccedilatildeo a anaacutelises como as propostas por

Paulo H Britto tomadas como referecircncia imediata Pode-se depreender de iniacutecio que o

referencial da estrita equivalecircncia como o meio para se avaliarem traduccedilotildees natildeo se

mostra o mais adequado agrave traduccedilatildeo da poesia homeacuterica que de certo modo serve para

demonstrar as dificuldades e para mim a inadequabilidade de se permanecer no uso da

equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo seja semacircntica seja formal Trata-se eacute claro de

discutir a proacutepria conceituaccedilatildeo de traduccedilatildeo poeacutetica e do que seja a ldquofidelidaderdquo na accedilatildeo

tradutoacuteria

Um ponto de vista como aquele elaborado por Haroldo de Campos com base

em conceitos que seratildeo apresentados oportunamente permite ver a traduccedilatildeo de um

poema como uma criaccedilatildeo de algo novo com suas proacuteprias ldquoregrasrdquo internas ainda que

resulte propriamente de um processo de recriaccedilatildeo e ainda que seja construiacutedo de modo a

guardar relaccedilotildees de paramorfismo com o texto-fonte As prescriccedilotildees tradutoacuterias de uma

teorizaccedilatildeo como essa natildeo determinam procedimentos sempre idecircnticos ou uniformes

nem soluccedilotildees encaminhadas pelas mesmas diretrizes sendo um processo de criaccedilatildeo

envolveraacute as escolhas do tradutor-criador a cada etapa de seu trabalho iniciando-se com

a eleiccedilatildeo pela leitura do que considera relevante da ldquoestruturardquo do poema a ser ldquore-

produzidordquo85

e prosseguindo com suas opccedilotildees de composiccedilatildeo e modo de

ldquocorrespondecircnciardquo com o texto de que parte Existiraacute potencialmente permitida por uma

abordagem como essa grande flexibilidade no processo de escolhas que levaratildeo a

resultados diferentes abolindo-se uma relaccedilatildeo de ldquoservituderdquo em relaccedilatildeo ao ldquooriginalrdquo ndash

85 Relembre-se neste ponto a explicitaccedilatildeo deste termo pelo poeta e tradutor Guilherme de Almeida em

sua apresentaccedilatildeo ao livro Poetas de Franccedila (1ordf ediccedilatildeo 1936 5ordf ediccedilatildeo ndash Satildeo Paulo Babel 2011) o

autor sugere a palavra ldquolsquore-produzirrsquo quer dizer produzir de novordquo como o que seria traduzir poesia

89

que deixa de ter o peso impliacutecito agrave noccedilatildeo de equivalecircncia completa e com o qual o

poema traduzido deseja ombrear-se podendo ser visto como ldquooriginal do originalrdquo ndash o

poema resultante da traduccedilatildeo seraacute antes construiacutedo a partir de princiacutepios e de processos

considerados anaacutelogos ou correspondentes do que de obrigaccedilotildees de equivalecircncia

palavra a palavra ou efeito a efeito (sonoro ou imageacutetico) Do ponto de vista de uma

recriaccedilatildeo de fato ndash ou transcriaccedilatildeo conforme propotildee H de Campos ndash o poema poderaacute

dar conta da eficiecircncia construtiva e comunicativa (ou anticomunicativa se pensarmos

na exigecircncia pelo poema de uma leitura apropriada para sua apreensatildeo86

) daquele ao

qual se refere de modos diversos seguindo-se por exemplo o conceito de ldquomake it

newrdquo (ldquorenovarrdquo) proposto por Ezra Pound e buscando-se elementos (inclusive

referecircncias) na proacutepria cultura poderatildeo ocorrer alteraccedilotildees semacircnticas significativas

assim como a ldquomodernizaccedilatildeordquo e a ldquocontextualizaccedilatildeordquo do poema (como na traduccedilatildeo de

Augusto de Campos de fragmento do Rubayat na versatildeo de Fitzgerald defendida em

artigo por Haroldo87

) ao passo que ao seguir-se uma ideia de recriaccedilatildeo que possa ser

inserida em contexto histoacuterico correspondente seraacute obtido um texto ldquoanacrocircnicordquo como

na traduccedilatildeo de Guilherme de Almeida do poema ldquoBallade des dames du temps jadisrdquo

de Franccedilois Villon considerada modelar por H de Campos88

No caso da eacutepica grega (e latina) em portuguecircs temos no trabalho de Odorico

Mendes o exemplo niacutetido da conceituaccedilatildeo da traduccedilatildeo como natildeo vinculada agrave

obrigatoriedade de correspondecircncia ldquopalavra a palavrardquo Ao optar pelo uso do verso

camoniano ou seja do decassiacutelabo para recriar poemas originalmente produzidos em

hexacircmetros dactiacutelicos e ao propor-se a realizar uma obra marcada pela concisatildeo (na

qual natildeo haveria lugar para o aumento da quantidade de versos por serem mais breves)

o tradutor baseia-se na ideia de correspondecircncias menos restritas de sentido

dispensando por vezes detalhes inessenciais agrave narrativa e repeticcedilotildees de foacutermulas e

epiacutetetos inadequados para ele a um poema produzido e lido em seu tempo Se

analisada com base num modelo como o proposto por P H Brito em que se

quantificam as palavras e suas estritas correspondecircncias na traduccedilatildeo a fim de se

86 Pelos usos que faz de recursos sonoros riacutetmicos e de repeticcedilatildeo (conforme jaacute se viu neste estudo) ou

seja da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma) e dos denominados ldquodesvios de linguagemrdquo pelas construccedilotildees semacircntico-sintaacuteticas inabituais e ambiacuteguas e essencialmente

por ser visto como um poema (e portanto gerar expectativa de leitura diversa daquela dedicada a um

texto de raacutepida comunicaccedilatildeo) a poesia suscitaraacute um modo apropriado de leitura 87 ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) In Cadernos do MAM no 1 R de Janeiro dezembro de 1983 88 ldquoMemoraacutevel e virtuosiacutestica recriaccedilatildeordquo assim se refere Campos agrave versatildeo de G de Almeida em texto de

orelha para o livro ALMEIDA G de VIEIRA T Trecircs trageacutedias gregas S Paulo Perspectiva 1997

90

estabelecer um juiacutezo de valor para a traduccedilatildeo a obra de Odorico estaria previamente

condenada a uma avaliaccedilatildeo de inferioridade em relaccedilatildeo a outras de verso mais longo ou

feitas em prosa embora estas tambeacutem contenham omissotildees89

este resultado seria

inadequado tendo-se em conta as qualidades e a importacircncia histoacuterico-literaacuteria da

traduccedilatildeo (e do pensamento) de Mendes que como veremos prevecirc a utilizaccedilatildeo de

paraacutefrases muitas vezes mais ldquoeconocircmicasrdquo (ou seja com emprego de menor quantidade

de palavras) e portanto sem correspondecircncia ldquoliteralrdquo para compor sentidos similares

aos do texto-fonte Embora talvez se pudesse usar esse criteacuterio por exemplo para

traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (em versos de dezesseis siacutelabas) de Andreacute

Malta (em versos compostos por duas redondilhas) de Donaldo Schuumller (em versos

livres) e a portuguesa de Frederico Lourenccedilo (tambeacutem em versos livres)90

o criteacuterio natildeo

daria conta creio de uma comparaccedilatildeo mais abrangente Mas o que se precisa

considerar fundamentalmente eacute a proacutepria inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo quantitativa de

correspondecircncia seja semacircntica ou formal e a ideia de avaliaccedilatildeo como estabelecimento

de superioridade entre traduccedilotildees ainda que se possam evidenciar suas qualidades

intriacutensecas ndash numa anaacutelise com propoacutesito predominantemente descritivo ndash permitindo-

se assim que se faccedilam juiacutezos de valor baseados na coerecircncia interna do trabalho e em

aspectos determinados (como por exemplo a ldquodensidaderdquo sonora em segmentos

correspondentes) conforme os princiacutepios e os propoacutesitos adotados pela criacutetica

Assim a anaacutelise natildeo se basearaacute em conceitos fundamentados (ao menos

exclusivamente) na noccedilatildeo de equivalecircncia91

como os de correspondecircncia e de perda

(quando natildeo haacute correspondecircncia plena) propostos por Britto no texto que citaremos em

seguida para esclarecimento da referecircncia antes de prosseguirmos com a apresentaccedilatildeo

dos propoacutesitos desta tarefa seratildeo marcadas em negrito passagens que serviratildeo de base

a minhas observaccedilotildees posteriores

A avaliaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo de poesia eacute uma tarefa complexa e delicada Temos

consciecircncia de que o texto poeacutetico trabalha com a linguagem em todos os seus

niacuteveis mdash semacircnticos sintaacuteticos foneacuteticos riacutetmicos entre outros Idealmente o

89 Como se veraacute nas anaacutelises no entanto ndash em algum momento quantificador ndash ocorre de o texto de Odorico Mendes apresentar menos omissotildees que as traduccedilotildees feitas em verso mais longo 90 Supondo-se que a opccedilatildeo por versos mais longos inclui alguma noccedilatildeo de ldquoliteralidaderdquo na

correspondecircncia ao sentido 91 Isso natildeo quer dizer que natildeo seraacute usada nas anaacutelises desenvolvidas neste trabalho uma avaliaccedilatildeo de

correspondecircncias e mesmo uma quantificaccedilatildeo de elementos recorrerei sim a dados comparativos e a

quantidades Os dados serviratildeo contudo de um modo proacuteprio relativo agrave anaacutelise e agraves conclusotildees

91

poema deve articular todos esses niacuteveis ou pelo menos vaacuterios deles no sentido de

chegar a um determinado conjunto harmocircnico de efeitos poeacuteticos A tarefa do

tradutor de poesia seraacute pois a de recriar utilizando os recursos da liacutengua-meta os

efeitos de sentido e forma do original mdash ou ao menos uma boa parte deles []

Podemos entender o conceito de ldquocorrespondecircnciardquo em diversos niacuteveis de

exatidatildeo Vejamos um exemplo meacutetrico Digamos que eu queria traduzir para o

portuguecircs um determinado verso inglecircs com uma pauta acentual que podemos

representar como se segue (onde ldquoˇrdquo representa uma siacutelaba aacutetona e ldquo rdquo uma siacutelaba

com acento primaacuterio e ldquo|rdquo eacute o separador de peacutes)

ˇ | ˇ | ˇ | ˇ ˇ |

[] Numa primeira acepccedilatildeo da expressatildeo ldquocorresponderrdquo um verso portuguecircs

correspondente a esse verso inglecircs teria de ser precisamente um decassiacutelabo com

acento na 2a 4

a 5

a 6

a 9

a e 10

a siacutelabas Esta seria a acepccedilatildeo mais ldquoforterdquo da

expressatildeo ldquoo verso A corresponde ao verso Brdquo porque se daria no niacutevel mais

proacuteximo da realidade focircnica do verso Se enfraquecermos um pouco a acepccedilatildeo de

ldquocorresponderrdquo diriacuteamos que qualquer decassiacutelabo de ritmo predominantemente

jacircmbico no portuguecircs corresponde a qualquer decassiacutelabo predominantemente

jacircmbico no inglecircs Saltando para um niacutevel ainda mais alto de generalidade

qualquer decassiacutelabo do portuguecircs corresponderia a qualquer pentacircmetro do inglecircs

Mas podemos ter uma correspondecircncia ainda mais fraca se considerarmos que o

pentacircmetro eacute um metro relativamente longo no inglecircs mdash em oposiccedilatildeo ao triacutemetro

por exemplo mdash e que o decassiacutelabo e o alexandrino no portuguecircs satildeo metros

relativamente longos mdash em comparaccedilatildeo com os hexassiacutelabos e heptassiacutelabos mdash

poderiacuteamos dizer que um alexandrino em portuguecircs corresponde a um pentacircmetro

inglecircs na medida em que ambos satildeo ldquoversos longosrdquo []

Podemos agora entender de modo mais preciso a noccedilatildeo de perda na traduccedilatildeo

poeacutetica quanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia mdash ou seja quanto

mais alto o niacutevel de generalidade em que ela se daacute mdash maior a perda No exemplo

acima haveraacute mais perda se eu traduzir o verso original por um alexandrino do que

se eu traduzi-lo por um decassiacutelabo qualquer por exemplo

Na avaliaccedilatildeo do grau de perda poreacutem o niacutevel de generalidade natildeo eacute o uacutenico fator

a ser levado em conta No caso de uma traduccedilatildeo de letra de muacutesica a prosoacutedia

musical pede uma correspondecircncia quase exata entre a configuraccedilatildeo acentual do

original e a da traduccedilatildeo []

92

Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros elementos da forma e tambeacutem do

conteuacutedo semacircntico do poema

[]

O meacutetodo proposto eacute ainda um esboccedilo em que muitos detalhes ainda precisam ser

elaborados Mas creio que temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar

a uma avaliaccedilatildeo menos subjetivista das traduccedilotildees poeacuteticas que trabalhe com dados

mais objetivos e permita quantificar os juiacutezos de valor expressos atraveacutes de

conceitos como ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoperdardquo 92

O autor baseia-se na ideia de que eacute possiacutevel a correspondecircncia total entre as

caracteriacutesticas do plano de conteuacutedo e do plano de expressatildeo entre uma traduccedilatildeo e o

texto de que ela parte Embora natildeo se possam levar em conta os argumentos da

intraduzibilidade de poesia superados pela proacutepria praacutetica tambeacutem natildeo se podem

desconsiderar as diferenccedilas de ldquonaturezardquo entre obras elaboradas natildeo soacute em idiomas

como em sistemas distintos sob diversos aspectos para ficarmos com a dimensatildeo

apontada no artigo a do esquema meacutetrico-riacutetmico considere-se que embora possa

parecer que o sistema em peacutes praticado nas liacutenguas anglo-saxocircnicas encontraraacute esquema

exatamente correspondente em portuguecircs essa crenccedila na equivalecircncia absoluta ficaraacute

abalada quando se pensar na ldquoorigemrdquo do sistema greco-latino baseado em siacutelabas

longas e breves e natildeo em siacutelabas tocircnicas e aacutetonas O aproveitamento do antigo sistema

exigiu uma adaptaccedilatildeo decorrente da caracteriacutestica essencialmente diversa entre os

idiomas envolvidos ou seja a inexistecircncia de fonemas longos e breves nas liacutenguas para

as quais o sistema foi adaptado o que era nos peacutes gregos e latinos uma composiccedilatildeo

entre siacutelabas longas e breves passou a ser uma composiccedilatildeo entre siacutelabas tocircnicas e

aacutetonas determinando-se desse modo uma alteraccedilatildeo de identidade93

Se considerarmos

portanto a traduccedilatildeo direta ao portuguecircs de um poema grego depararemos com a

diferenccedila ldquoem primeira instacircnciardquo entre os sistemas quantitativo (quantidade de

duraccedilatildeo das siacutelabas breves ou longas) e qualitativo (siacutelabas acentuadas ou natildeo)94

92 BRITTO PH ldquoPara uma avaliaccedilatildeo mais objetiva das traduccedilotildees de poesiardquo In Krause Gustavo B As

margens da traduccedilatildeo Rio de Janeiro FAPERJCaeteacutesUERJ 2002 93 Como se veraacute mais adiante houve tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro greco-latino baseadas na

atribuiccedilatildeo de duraccedilatildeo agraves siacutelabas em liacutenguas neolatinas (ou seja buscando-se fazer corresponderem

sistemas semelhantes quantitativos) As referidas tentativas natildeo satildeo referecircncias presentes em nosso atual

contexto lieraacuterio 94 A afirmaccedilatildeo se baseia no aspecto eminentemente praacutetico do uso dos idiomas da leitura de poemas e da

tradiccedilatildeo poeacutetica das liacutenguas ocidentais modernas No entanto eacute possiacutevel relativar a inexistecircncia de siacutelabas

93

diversamente do que ocorre entre os idiomas inglecircs e portuguecircs (uma diferenccedila

diriacuteamos em ldquosegunda instacircnciardquo) pelo fato de os poemas compostos no primeiro jaacute

trazerem embora num sistema meacutetrico diverso do utilizado como referecircncia baacutesica em

liacutengua portuguesa (quantidade de siacutelabas e natildeo distribuiccedilatildeo de tocircnicas ainda que a

quantidade fixa ocasione esquemas ndash comumente irregulares ndash de colocaccedilatildeo dos

acentos) a caracteriacutestica semelhante de natildeo se construiacuterem com base na duraccedilatildeo das

siacutelabas A ilusatildeo de correspondecircncia absoluta mascararaacute as diferenccedilas entre os idiomas e

as culturas poeacuteticas (para natildeo dizer dos contextos culturais gerais a que pertencem) as

aproximaccedilotildees envolveratildeo com caraacuteter mais ou menos acentuado uma diversidade que

sugere aleacutem de tudo o mais (ver as referecircncias aos argumentos da inviabilidade da

traduccedilatildeo) a inexistecircncia de equivalecircncia completa Por conseguinte estabelecer valores

de correspondecircncia (no caso referido de padratildeo meacutetrico-riacutetmico) como criteacuterio de

avaliaccedilatildeo eacute a priori incerto afirmaccedilotildees como ldquo[o verso em pentacircmetro jacircmbico] teria

de ser precisamente [um decassiacutelabo em portuguecircs]rdquo natildeo seriam sob o ponto de vista

apresentado desejaacuteveis

Assim sendo a vinculaccedilatildeo da ideia de ldquoperdardquo e sua quantificaccedilatildeo a diferentes

niacuteveis de correspondecircncia (ldquoquanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia []

maior a perdardquo) tambeacutem careceraacute de propriedade E natildeo seraacute adequada por outra razatildeo

fundamental agrave qual jaacute se aludiu a noccedilatildeo de ldquoperdardquo vincula-se a uma ideia do texto

traduzido como subordinado ao original e portanto como devendo resultar de uma

obrigatoacuteria equivalecircncia cujos niacuteveis de ausecircncia determinaratildeo o valor da perda De

outro ponto de vista que rompa a relaccedilatildeo ancilar entre original e traduccedilatildeo a relativa

independecircncia de um texto recriado como poema o desobrigaraacute da suposta fidelidade

nos seus diversos planos possiacuteveis Para Haroldo de Campos (com base em postulaccedilotildees

de Walter Benjamin que como se veraacute consideraria a priorizaccedilatildeo da ldquomensagemrdquo

como uma ldquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrdquo) o ldquosignificadordquo do texto

de partida seraacute apenas uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a configuraccedilatildeo do sentido no

texto traduzido que envolveraacute diferenccedilas em relaccedilatildeo ao anterior decorrentes do

proacuteprio processo de re(ou trans)criaccedilatildeo A anunciada ldquofidelidade agrave formardquo tambeacutem

envolve noccedilotildees relativizadoras das equivalecircncias dissociadas da ideia de

correspondecircncia ldquoliteralrdquo

longas e breves nessas liacutenguas e houve jaacute propostas de composiccedilatildeo quantitativa em idiomas modernos

Leia-se sobre este assunto referecircncias agraves adaptaccedilotildees do hexacircmetro no capiacutetulo IV deste trabalho

94

As anaacutelises que se faratildeo neste estudo embora possam considerar o ldquoconteuacutedo

literalrdquo (sabendo-se claro da inadequaccedilatildeo desse conceito pela mutabilidade do

significado conforme jaacute se abordou extensamente) dos textos-fonte para evidenciar o

que eacute suprimido ou acrescentado nas traduccedilotildees natildeo o utilizaraacute como ponto de partida

para qualquer avaliaccedilatildeo A noccedilatildeo de equivalecircncia embora natildeo desapareccedila seraacute tratada

com a relatividade que o processo tradutoacuterio impotildee vista como equivalecircncia relativa

consistiraacute em aproximaccedilotildees referentes agraves informaccedilotildees mais relevantes para o acircmbito

ldquoconteudiacutesticordquo e na proporcionalidade quanto agrave concentraccedilatildeo de efeitos e relaccedilotildees

entre som e sentido (que envolvem como se viu a ocorrecircncia de repeticcedilotildees de variado

teor)

Seraacute feita uma tentativa de mostrar diferentes possibilidades de anaacutelise com base

em aspectos presentes em cada traduccedilatildeo (e portanto na configuraccedilatildeo que lhe eacute proacutepria)

reservando-se possiacuteveis atribuiccedilotildees de valor a observaccedilotildees referentes a categorias

construiacutedas pela oacuteptica do observador (maior ou menor quantidade de efeitos e mais ou

menos informaccedilotildees por exemplo) lidando-se com a relatividade das correspondecircncias

existentes entre poemas natildeo colocados em posiccedilatildeo hieraacuterquica Sem o estabelecimento

aprioriacutestico de meacutetodo de anaacutelise avanccedilaremos agregando alternativas de referencial

sempre como se disse com a finalidade antes de tudo descritiva por vezes

comparativa dos textos estudados

95

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo

A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Em 1854 saiacutea o primeiro poema eacutepico traduzido no paiacutes a Eneida brasileira

por obra do poeta e tradutor maranhense Manuel Odorico Mendes Precedido pelas

traduccedilotildees ao nosso idioma da obra de Virgiacutelio pelos portugueses Leonel da Costa

(seacuteculo XVII) Joatildeo Franco Barreto (seacuteculo XVII) Francisco Joseacute Freire (ldquoCacircndido

Lusitano seacuteculo XVIII) e Barreto Feio Odorico seria no entanto pioneiro na traduccedilatildeo

completa da Iliacuteada de Homero publicada postumamente em 1874 a que se seguiu sua

versatildeo da Odisseia publicada em 1928

Sobre seu pioneirismo diz Silveira Bueno autor do Prefaacutecio da ediccedilatildeo da Iliacuteada

de 1956

Na Ameacuterica do Sul estaacute o Brasil em primeira plana levando nisto a palma ao

proacuteprio Portugal apresentando em liacutedimo vernaacuteculo natildeo soacute a Iliacuteada mas tambeacutem

a Odisseia completadas ambas pela Eneida de Virgilio Ao ilustre maranhense

Manuel Odorico Mendes ficamos a dever esta homenagem esta gratidatildeo porque

da sua pena saiacuteram essas traduccedilotildees que os anos apenas fazem avultar e agigantar

Em 1874 na tipografia ldquoGuttenbergrdquo aparecia [] a obra-prima de Odorico

Mendes Quase contemporaneamente em Portugal o Conselheiro Antocircnio Joseacute

Viale publicava esparsamente alguns episoacutedios da Iliacuteada [] Natildeo eacute soacute

cronologicamente o primeiro mas tambeacutem o primeiro pelo valor literaacuterio de sua

traduccedilatildeo Que natildeo conhecesse os versos de Viale provam negativamente as notas

que apocircs a cada livro traduzido []rdquo95

Abra-se aqui um parecircntese Odorico seraacute de fato pioneiro na traduccedilatildeo da Iliacuteada

se considerarmos (como jaacute se indicou) o poema completo uma vez que surgira em

1811 a traduccedilatildeo do Canto I realizada pelo portuguecircs Joseacute Maria da Costa e Silva Essa

95 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio do Prof Silveira Bueno Satildeo Paulo Atena

Editora 1956 P 10

96

traduccedilatildeo emprega a mesma escolha decassilaacutebica de Odorico ou seja o verso heroacuteico

camoniano (essa caracteriacutestica da obra do brasileiro seraacute estudada aqui

posteriormente) tambeacutem adianta a opccedilatildeo de Odorico pela utilizaccedilatildeo de versotildees latinas

dos nomes dos deuses gregos Leia-se o iniacutecio do uacutenico canto traduzido precedido pela

apresentaccedilatildeo de seu argumento tambeacutem apresentado em versos decassiacutelabos

Iliacuteada de Homero ndash Livro I

Argumento

De Febo o Sacerdote venerando

Vem a filha remir que lhe eacute negada

Recorre ao Deus que as setas disparando

Fere de mortal peste a Grega Armada

Aquiles de Agameacutemnon discordando

Quer mataacute-lo susteacutem Minerva a espada

Teacutetis queixa-se ao Padre nrsquoalta Corte

aos Aquivos impetra estrago e morte

Coacutelera funesta oacute Deusa canta

Do Peacuteleo Aquiles dolorosa aos Gregos

Que ao Inferno baixar de Heroacuteis valentes

Mil Espiacuteritos fez e deu seus corpos

A catildees e aves em pasto assim de Jove

Se cumpriu o Decreto des qu em oacutedio

Inimizara suacutebita contenda

Atrides dHomens Rei e o divo Aquiles96

Embora guarde semelhanccedila com a traduccedilatildeo do brasileiro (conforme se poderaacute

constatar adiante) a versatildeo de Costa e Silva eacute menos afeita agrave siacutentese (nessa sequecircncia

ultrapassa em um verso o nuacutemero de versos gregos traduzidos e em dois o nuacutemero de

versos da versatildeo de Odorico para o mesmo fragmento grego) Haacute no entanto certa

relaccedilatildeo entre as construccedilotildees sintaacuteticas ldquocomplexasrdquo de ambos os tradutores mesmo que

Costa e Silva pareccedila valer-se menos de ldquopreciosismo vocabularrdquo comumente atribuiacutedo

96 HOMERO Iliacuteada de Homero ndash traduzida do grego em verso portuguecircs por Joseacute Maria da Costa e

Silva Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1811

97

agrave obra de Odorico embora isso seja discutiacutevel considerando-se os possiacuteveis criteacuterios do

tradutor e o contexto em que seu trabalho foi produzido97

Mas retornando ao prefaacutecio de Silveira Bueno diga-se que embora o

prefaciador enalteccedila o trabalho de Odorico na verdade eacute mais recente o reconhecimento

da importacircncia e da qualidade de sua obra tradutoacuteria principalmente pelo empenho por

sua reavaliaccedilatildeo criacutetica empreendido pelo poeta Haroldo de Campos (1923-2003) a

partir de um ensaio seu de 1962 Hoje muitas vozes se juntam para a celebraccedilatildeo das

traduccedilotildees de Odorico considerado por Campos ldquoo patriarca da traduccedilatildeo criativa no

Brasilrdquo98

Diz o criacutetico sobre Odorico Mendes no referido artigo99

em que propotildee uma

revisatildeo de sua obra

ldquoNo Brasil natildeo nos parece que se possa falar no problema da traduccedilatildeo criativa sem

invocar os manes daquele que entre noacutes foi o primeiro a propor e a praticar com

empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da traduccedilatildeo

Referimo-nos ao preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares

Realmente fazer um negative approach em relaccedilatildeo a suas traduccedilotildees eacute empresa

faacutecil de primeiro impulso e desde Siacutelvio Romero (que as considerava

lsquomonstruosidadesrsquo escritas em lsquoportuguecircs macarrocircnicorsquo)100

quase natildeo se tem feito

97 Conheccedila-se o comentaacuterio que pode ser lido na Wikipedia (site de divulgaccedilatildeo popular) acerca da

traduccedilatildeo de Odorico ldquoDas [traduccedilotildees] brasileiras [da Iliacuteada] a mais antiga eacute a de Odorico Mendes feita

no seacuteculo XIX (1874) que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus

arqueacutetipos equivalentes latinos Ou seja em vez de Zeus Juacutepiter de Posiacutedon Netuno etc A traduccedilatildeo de

Odorico Mendes toda em decassiacutelabos se notabiliza pela escolha lexical preciosa e a estrutura sintaacutetica amiuacutede incomum de feiccedilatildeo muitas vezes arcaizante e com farto recurso ao neologismordquo 98Haroldo de Campos (1991-92 144) ldquoOdorico com efeito eacute o patriarca da traduccedilatildeo criativa no Brasil

no seu intuito pioneiro de conceber um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar o

portuguecircs em lugar de neutralizar a diferenccedila do original rasurando-lhe as arestas sintaacuteticas e lexicais em

nossa liacutenguardquo 99 CAMPOS Haroldo de ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo In Metalinguagem ndash ensaios de

teoria e criacutetica literaacuteria 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1976 100 Escreveu Siacutelvio Romero no capiacutetulo ldquoPoetas de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo de sua Histoacuteria

da Literatura apoacutes incluir o ldquoHino agrave tarderdquo de Odorico e de comentaacute-lo favoravelmente ldquoQuanto agraves

traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-

las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidades [] A traduccedilatildeo deve revelar-se na leitura como trabalho autocircnomo e independente como se fora produto

original e assim primitivamente escrito Eacute o que natildeo se nota nas traduccedilotildees de Odorico Aacutesperas prosaicas

obscuras assaltam o leitor aquelas paacuteginas como flagelos O tradutor atirou-se agrave faina sem emoccedilatildeo sem

entusiasmo e munido de um sistema preconcebido O preconceito era a monomania de natildeo exceder o

nuacutemero de versos feitos por Virgiacutelio e Homero para provar a ideia pueril de ser a liacutengua portuguesa tatildeo

concisa quanto o latim e o grego Para obter este resultado esdruacutexulo e extravagante o maranhense

98

outra coisa Mas difiacutecil seria poreacutem reconhecer que Odorico Mendes admiraacutevel

humanista soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente onde

os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese (reduziu por exemplo os 12106 versos da Odisseia a 9302

segundo taacutebua comparativa que acompanha a ediccedilatildeo) seja para demonstrar que o

portuguecircs era capaz de tanta ou mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para

acomodar em decassiacutelabos heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para

evitar as repeticcedilotildees e a monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar

com as terminaccedilotildees diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas

palavras ofereceria na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado

Sobre este uacuteltimo aspecto diz ele lsquoSe vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de

Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a pior das infidelidadesrsquo

Procurou tambeacutem reproduzir as lsquometaacuteforas fixasrsquo os caracteriacutesticos epiacutetetos

homeacutericos inventando compoacutesitos em portuguecircs animado pelo exemplo dos

tradutores italianos de Homero minus Monti e Pindemonte minus e muitas vezes

extremando o paradigma pois entendia a nossa liacutengua lsquoainda mais afeita agraves

palavras compostas e ainda mais ousadarsquo do que o italianordquo (1976 27)

A citaccedilatildeo apresenta ainda que sob a visatildeo particular do criacutetico uma siacutentese de

aspectos relacionados agrave produccedilatildeo tradutoacuteria de Odorico aspectos estes que

mencionados nessas observaccedilotildees seratildeo de novo abordados logo adiante com base em

comentaacuterios do proacuteprio Haroldo de Campos e de outros autores a fim de apresentarmos

um quadro da recepccedilatildeo criacutetica do trabalho do tradutor especialmente relevante em seu

caso pela divergecircncia que tem suscitado ao longo do tempo de julgamentos quanto a

seus resultados

Mas leiamos a seguir na iacutentegra a nota de Odorico ao Canto I de sua Iliacuteada ndash

assinale-se que eacute do conjunto de notas presente em sua obra que se pode depreender o

pensamento do tradutor sobre seu trabalho ndash na qual apresenta claramente a sua visatildeo

torturou frases inventou termos fez transposiccedilotildees baacuterbaras e periacuteodos obscuros jungiu arcaiacutesmos e

neologismos latinizou e grecificou palavras e proposiccedilotildees o diabo Num portuguecircs macarrocircnico abafou

evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora 1949 4ordf ediccedilatildeo tomo terceiro p 35 (Primeira ediccedilatildeo Rio de

Janeiro Garnier 1902 Vol I)

Diga-se que eacute curioso como exatamente a qualidade apontada por criacuteticos posteriores como H de

Campos e A Medina Rodrigues de ser a de Odorico obra marcada pela recriaccedilatildeo e por consequente

autonomia eacute tida como inexistente por Romero teremos oportunidade neste estudo de apreciar a

identidade recriadora de Odorico Mendes

99

acerca do que seria ser ldquofielrdquo a Homero recriar a obra de acordo com os padrotildees de

percepccedilatildeo criacutetica do tradutor renovada em seu tempo e lugar segundo os paracircmetros

entatildeo tidos como desejaacuteveis Odorico manifesta opccedilotildees coerentes com a determinaccedilatildeo

de concisatildeo ideia esta comum ao entendimento moderno de poesia (lembrem-se os

comentaacuterios de Ezra Pound sobre a correspondecircncia anotada em dicionaacuterio alematildeo-

italiano entre a palavra dichten (poesia) e a palavra condensare101

As repeticcedilotildees de Homero se reduzem a duas classes ora por exemplo manda

Juacutepiter um recado que o mensageiro daacute pelos mesmos ou quase pelos mesmos

termos ora juntam-se epiacutetetos que por continuados agraves vezes podem enfastiar

Conservo as primeiras como proacuteprias da singeleza do autor e porque nelas se

assemelha aos antigos da Biacuteblia Quanto agraves segundas procedo assim trato do

verter os epiacutetetos com exatidatildeo e nos lugares mais apropriados isto feito omito as

repeticcedilotildees onde seriam enfadonhas Ainda mais vario a forma de cada epiacuteteto ou

me sirvo de um equivalente em vez de Aquiles velociacutepede digo tambeacutem

impetuoso raacutepido fogoso e assim no demais Note-se que os adjetivos gregos

terminando em casos diversos natildeo tecircm a monotonia dos nossos que soacute variam nos

dois gecircneros e nos dois nuacutemeros mdash Rochefort apoda do pueril o empenho de

variar natildeo sei como quem andava sempre agarrado ao rabicho da cabeleira de

Boileau e de Racine se levantou contra a variedade no estilo que um recomenda e

pratica o outro Se vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixava a

obra de ser apraziacutevel como eacute a dele a pior das infidelidades Com isto natildeo quero

fazer a apologia das paraacutefrases aspiro a ser tradutor (2008 873)

Em sua apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada organizada por Antocircnio Medina

Rodrigues102

Campos refere-se novamente agrave criacutetica de Silvio Romero (1851-1914)

associando a ela o julgamento posterior de Antonio Candido

Em ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo [] tive a ocasiatildeo haacute exatamente

30 anos de rebater a criacutetica preconceituosa de Siacutelvio Romero [] Esse juiacutezo

depreciativo natildeo obstante o ponto de vista em contraacuterio de filoacutelogos [] como

Joatildeo Ribeiro Silveira Bueno e Martins de Aguiar [] acabou por prevalecer e dar

101 POUND E ABC da literatura Satildeo Paulo Cultrix 1977 p 86 102 HOMERO Odisseia Org Antonio Medina Rodrigues Satildeo Paulo Ars Poetica Ateliecirc 2000

100

o tom [] Importa sim destacar neste contexto que a sentenccedila condenatoacuteria de

Siacutelvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido

(1918) O autor da Formaccedilatildeo da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na

tinta usando expressotildees como ldquobestialoacutegicordquo ldquopreciosismo do pior gostordquo

ldquopedantismo arqueoloacutegicordquo e ldquoaacutepice de tolicerdquo para se referir ao legado tradutoacuterio

do maranhense [] A propoacutesito do conceito ldquomacarrocircnicordquo usado

pejorativamente por Siacutelvio Romero lembrei que ldquoo preconceito contra o

maneirismo natildeo pode ter mais vez para a sensibilidade moderna configurada por

escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimaratildees Rosa das

inesgotaacuteveis invenccedilotildees vocabularesrdquo [] (2000 11-12)

Mas antes de prosseguirmos com a questatildeo das traduccedilotildees de Odorico e sua

recepccedilatildeo criacutetica tratemos brevemente do proacuteprio escritor e de seu tempo Sobre ele diz

Antonio Medina Rodrigues

[Manuel Odorico Mendes viveu] no periacuteodo que abrange os uacuteltimos momentos do

neoclassicismo e o iniacutecio do romantismo Foi de corpo e alma um humanista um

claacutessico empenhado na traduccedilatildeo dos poemas de Virgiacutelio e Homero Mas foi

tambeacutem homem inclinado agrave singeleza que agrave margem das traduccedilotildees escreveu

poemas um pouco afinados com a sensibilidade romacircntica e que chegaram a ter

alguma repercussatildeo (2000 21)

Silvio Romero enquadra em sua Histoacuteria Odorico na classe dos ldquoPoetas

de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo Diz ele

A rotina criacutetica entre noacutes estabeleceu que o romantismo surgiu no Brasil em 1836

com a publicaccedilatildeo dos Suspiros Poeacuteticos de Magalhatildees [] A verdade eacute que antes

de Magalhatildees diversos poetas haviam abraccedilado os princiacutepios da nova escola

especialmente entre os estudantes de Olinda e Satildeo-Paulo desde 1829 Maciel

Monteiro Cacircndido de Arauacutejo Viana Odorico Mendes Moniz Barreto Barros

Falcatildeo [] (1949 tomo terceiro 12)

101

Por ter Odorico perdido sua produccedilatildeo em uma de suas ldquofrequentes viagens do

Maranhatildeo para o Riordquo103

restaram de sua produccedilatildeo poeacutetica (como relata Rodrigues)

apenas

[] o ldquoHino agrave Tarderdquo impresso em 1861 no Parnaso Maranhense depois de ter

aparecido em 1844 na Minerva Brasiliense com sua versatildeo mais precisa no

BreacutesilLitteacuteraire (1863) de Ferdinand Wolf poema de que Siacutelvio Romero dizia

sempre lembrar-se natildeo ldquosem boa e saudosa emoccedilatildeordquo tendo seus versos ldquoum natildeo

sei quecirc de vago e tristerdquo que bem pareciam ser ldquoa essecircncia mesma da poesiardquo ldquoO

sonhordquo (ou ldquoA morterdquo como se acha no Parnaso Maranhense) impresso em vaacuterias

coletacircneas e ldquoO Meu Retirordquo publicado na Minerva Brasiliense mais alguns

poemas de circunstacircncia fecham esse diminuto espoacutelio literaacuterio que Odorico natildeo

quis aumentar Seu interesse estava de fato voltado para a traduccedilatildeo (2000 22)

Incluam-se aqui os versos iniciais do ldquoHino agrave tarderdquo poema em versos

decassiacutelabos como referecircncia agrave criaccedilatildeo poeacutetica do tradutor

Que amaacutevel hora Expiram os favocircnios

Transmonta o Sol o rio se espreguiccedila

E a cinzenta alcatifa desdobrando

Pelas azuis diaacutefanas campinas

Na carroccedila de chumbo assoma a tarde

Salve moccedila tatildeo meiga e sossegada

Salve formosa virgem pudibunda

Que insinuas cos olhos doce afeto

Natildeo criminosa abrasadora chama

Em ti repousa a triste humana prole

Do trabalho do dia nem jaacute lavra

Juiz severo a baacuterbara sentenccedila

Que haacute de a fraqueza conduzir ao tuacutemulo

Lasso o colono mal avista ao longe

A irmatilde da noite coa-lhe nos membros

Plaacutecido aliacutevio mdash posta a dura enxada

Limpa o suor que em bagas vai caindo

103 Citaccedilatildeo (incluiacuteda por A Medina Rodrigues) de Antonio Henriques Leal in Pantheon maranhense

ensaio biograacutefico dos maranhenses ilustres jaacute falecidos Lisboa Imprensa nacional 1873 p36

102

Que ventura A mulher o espera ansiosa

Cos filhinhos em braccedilo e jaacute deslembra

O homem dos campos a diurna lida

Com entranhas de pai ledo abenccediloa

A progecircnie gentil que a olho pula

Natildeo vecircs como o fantasma do silecircncio

Erra e paacutera o buliacutecio dos viventes

Soacute quebra esta mudez o pastor simples

Que trazendo o rebanho dos pastios

Coa suspirosa frauta ameiga os bosques

Feliz que nunca o ruiacutedo dos banquetes

Do estrangeiro escutou nem alta noite

Foi agrave porta bater de alheio alvergue

Acha no humilde colmo os seus penates

Como acha o grande em soberbotildees palaacutecios

[]

No contexto preacute-romacircntico o uso do decassiacutelabo classicizante associa-se como

se pode constatar agrave mencionada ldquosensibilidade romacircnticardquo104

Como se veraacute

detalhadamente depois (ao analisarmos a produccedilatildeo do tradutor) o verso camoniano seraacute

ndash conforme se poderia esperar sabendo-se que esta era em seu tempo a medida de

escolha para a dicccedilatildeo elevada da narrativa heroacuteica ndash o metro escolhido por Odorico (agrave

semelhanccedila de seus antecessores na traduccedilatildeo da Eneida) para suas versotildees das eacutepicas

latina e grega dotadas contudo de aspectos maneiristas (como observou Campos) e

mais ousadia vocabular incluindo-se a formulaccedilatildeo de compostos agrave semelhanccedila dos

termos greco-latinos A opccedilatildeo pelos decassiacutelabos eacute assim comentada por Saacutelvio

Nienkoumltter em seu Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada105

por ele anotada ldquoverso a versordquo

104 Confira-se em termos da associaccedilatildeo do classicismo agrave ldquosensibilidade romacircnticardquo o teor um tanto

semelhante (embora menos ldquoclaacutessicordquo pela diversidade temaacutetica e de perceptiacutevel menor competecircncia

esteacutetica) em relaccedilatildeo aos de Odorico dos decassiacutelabos (heroacuteicos estes) de um dos representantes da

ldquoTerceira fase do romantismordquo (segundo Romero ndash id 265-331) Joseacute Bonifacio ldquo[] O desdenhoso

passo o gesto ousado A descuidosa matildeo que a tranccedila alisa Na triacutepode infernal a pitonisardquo (Romero

1949 317) 105 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio e notas verso a verso Saacutelvio Nienkoumltter

Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da Unicamp 2008

103

[Odorico] Conseguiu com esta escolha imprimir ao verso a velocidade que

Homero imprimiu Sendo a liacutengua portuguesa mais lenta que a grega o verso

decassiacutelabo acaba imprimindo a velocidade que eacute proacutepria do hexacircmetro grego

contudo o decassiacutelabo portuguecircs eacute notadamente mais acelerado (2008 28)

Sobre a adoccedilatildeo do decassiacutelabo pelo tradutor diz Silveira Bueno

Maior efeito teria [Odorico Mendes] alcanccedilado se tivesse tido a coragem de

romper com a praxe do Renascimento e houvesse empregado o alexandrino mais

amplo o uacutenico metro moderno que se aproxima do hexacircmetro dactiacutelico de

Homero Natildeo foi seu o pecado mas da sua eacutepoca (1946 10)106

(A questatildeo dos metros seraacute tratada neste estudo diga-se ao longo das referecircncias aos

procedimentos utilizados pelos diversos tradutores focalizados)

Sobre as caracteriacutesticas da linguagem de Odorico comenta Rodrigues ao refutar

a observaccedilatildeo de Siacutelvio Romero de que ldquoEm literatura e arte o maranhense era um

claacutessico um espiacuterito conservadorrdquo107

Nem poliacutetica nem literariamente Odorico Mendes teria sido conservador e natildeo o

foi sobretudo quando comparamos o trabalho de seus textos tanto com a

textualidade do classicismo em que ele se formara quanto com a do romantismo

que de certa forma ele quis evitar Odorico Mendes levou a liacutengua portuguesa aos

limites que pocircde e explorou vaacuterios tipos de recurso desde o tenso claacutessico ateacute o

oral cotidiano [] E Odorico natildeo fez o que fez para ldquoser modernordquo mas por

necessidade interna de seu trabalho [] (2000 24)

Quanto ainda agrave relaccedilatildeo de Odorico com a eacutepoca em que se insere diz o mesmo

autor

A eacutepoca em que se publica o Virgiacutelio Brasileiro (1854) era francamente romacircntica

sobretudo realccedilada pela vertente popular de Macedo Alencar Gonccedilalves Dias

homens que praticamente constituiacuteram o primeiro ldquogostordquo da era nacional Natildeo

obstante o ideal algo nostaacutelgico e elitizante da epopeia ainda perdurava A

106 O comentaacuterio seraacute referecircncia para H de Campos ao justificar sua proacutepria opccedilatildeo pelo metro

dodecassiacutelabo para a traduccedilatildeo da Iliacuteada 107 ROMERO S Op cit

104

Confederaccedilatildeo dos Tamoios ndash de que O Guarani pode ser considerado uma espeacutecie

de antiacutepoda mais popular e mais feliz ndash eacute de 1856 Os Timbiras [] eacute de 1857[]

Pode-se dizer [] que o experimentalismo da eacutepica na fase romacircntica fazia com

que o antigo vernaacuteculo camoniano desse um salto sobre si proacuteprio na acircnsia de

fazer o gecircnero sobreviver agraves novas modalidades literaacuterias do tempo [] O romance

e boa parte da poesia se vatildeo orientar pela construccedilatildeo de uma personalidade

brasileira []

Odorico era um dos que resistiam Achava que se podia ser original ldquoimitando os

antigosrdquo e explorando as esferas mais tenebrosas da linguagem coisa que por

sinal o nacionalismo abominava Daiacute que ele veraacute o gecircnero eacutepico como uma

estrutura trans-histoacuterica internamente dinamizaacutevel e dinamizaacutevel sobretudo pela

infinita possibilidade criadora das liacutenguas Este racionalismo linguiacutestico []

somado agrave obsessiva concisatildeo ao gosto pelas literaturas eacutepicas e agrave aversatildeo aos

iacutempetos emolientes do nacionalismo literaacuterio acabou fazendo com que Odorico

Mendes compusesse obra homogecircnea e coerente [] (2000 26-27)

Tambeacutem a respeito da linguagem de Odorico sob os aspectos do vocabulaacuterio e

da sintaxe Nienkoumltter atribui-lhe um ldquoamor agrave precisatildeordquo que seria a verdadeira razatildeo

para o uso que faz de ldquovocabulaacuterio raro e contorccedilotildees sintaacuteticasrdquo em vez da ldquoprimeira

impressatildeordquo que se pode ter de que o motivo seja ldquodemonstrar erudiccedilatildeordquo Apesar da

suposiccedilatildeo das intenccedilotildees do autor algo pouco uacutetil ou desejaacutevel (ldquoOdorico natildeo usa por

demonstrarrdquo o propoacutesito de Odorico natildeo erardquo) haacute nesse e nos comentaacuterios que se

seguem afirmaccedilotildees que correspondem ao que se pode constatar por meio da observaccedilatildeo

do texto de Mendes

[] O propoacutesito de Odorico Mendes natildeo era traduzir todas as palavras do original

mas construir periacuteodos que denotassem todo o sentido contido neste original

mantendo deste a forccedila expressiva e riacutetmica Este preceito o leva agrave economia

verbal e agrave frase composta [] As frases invertidas se datildeo pelo mesmo motivo

concatenadas duas frases podem encerrar contexto mais abrangente e produzir um

estilo mais elegante e inteligente (2008 31-32)

O mesmo criacutetico assim se refere de modo geral agraves opccedilotildees tradutoacuterias de

Odorico

105

Odorico Mendes trabalha com o texto de Homero em plena maturidade

especialmente na maturidade poeacutetica e literaacuteria Ao planejar o trabalho o poeta

teve de fazer escolhas preacutevias como o metro o estilo o vocabulaacuterio etc suas

escolhas foram sempre fundadas na tradiccedilatildeo Tradiccedilatildeo da liacutengua que o fez preferir

o verso camoniano que julgava mais apropriado agraves epopeias a nomenclatura dos

deuses de Virgiacutelio jaacute que nossa liacutengua eacute latina o vocabulaacuterio dos grandes claacutessicos

da liacutengua portuguesa etc Produz assim uma espeacutecie de interliacutengua em que nas

palavras de Octaacutevio Camargo ldquopotildee a conversar Homero Virgiacutelio e Camotildeesrdquo

(2008 31-32)

Acerca da criaccedilatildeo de palavras com base na combinaccedilatildeo de termos marcante no

texto do tradutor jaacute assim se referia Silveira Bueno antecipando a valoraccedilatildeo por H de

Campos desse procedimento

Esta eacute outra qualidade de Odorico Mendes preceito que recebeu de Homero a

formaccedilatildeo de termos novos pela adjunccedilatildeo de outros jaacute conhecidos Para dar uma

simples amostra da sua fecunda invenccedilatildeo notamos somente no primeiro livro

todas estas formaccedilotildees segundo os moldes do grande mestre grego infrugiacutefero mar

altipotente Jove celeriacutepede Aquiles [] arciargecircnteo Febo [] dedirroacutesea Aurora

[] (1956 11-12)

Sobre a recepccedilatildeo criacutetica da obra de Odorico citem-se nesta breve apresentaccedilatildeo

geral do tradutor e sua obra comentaacuterios que dela faz em artigo publicado em 2007 e

em resenha criacutetica publicada em 2008 Paulo Seacutergio de Vasconcellos

[] A obra de Odorico Mendes foi alvo frequente de incompreensotildees sobretudo

suas traduccedilotildees de Homero [] Eacute que difiacutecil e desafiador por vezes natildeo eacute lido

com o cuidado e a exigecircncia que merece []

Odorico Mendes foi um desses tradutores que deixaram o discurso da estrita e

suposta fidelidade ao sentido literal por alegaccedilatildeo de que a poesia em seu aspecto

formal eacute mesmo intraduziacutevel [] no tiacutetulo mesmo de sua Eneida se lecirc ldquotraduccedilatildeo

poeacuteticardquo condensando todo um projeto de traduccedilatildeo que jaacute se revela na escolha de

uma focircrma meacutetrica riacutegida o decassiacutelabo heroacuteico []108

108 VASCONCELLOS P S ldquoDuas traduccedilotildees poeacuteticas da Eneida Barreto Feio e Odorico Mendesrdquo In

Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo

Humanitas 2007 pp 9597

106

Independentemente do que entendamos por traduccedilatildeo natildeo haacute como negar que nessa

traduccedilatildeo [da Iliacuteada por Odorico Mendes] extremamente concisa (por vezes talvez

excessivamente concisa) atenta agrave palavra exata (agraves raias da obsessatildeo vejam-se as

notas do tradutor sobre os nomes das diversas peccedilas de uma roda) latinizante ([]

o vocabulaacuterio eacute repleto de latinismos) e ao mesmo tempo helenizante (nos

compostos agrave moda grega []) haacute inuacutemeros versos dignos de figurar em antologia

de literatura pelas qualidades esteacuteticas prodiacutegios de som ritmo e expressividade

[]109

Inclua-se ainda o comentaacuterio relativo agraves traduccedilotildees de Odorico por Joatildeo Acircngelo

Oliva Neto110

como tendo se convertido hoje (apoacutes portanto a reavaliaccedilatildeo de seu

trabalho incitada por Haroldo de Campos) em uma referecircncia quanto a seus

procedimentos para criacutetica de outras traduccedilotildees (evidenciando-se assim a importacircncia

que tal obra adquiriu como paracircmetro de recriaccedilatildeo poeacutetica em nosso tempo no paiacutes)

[] mercecirc da importacircncia que a traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes auferiu entre

noacutes apoacutes as reflexotildees de Haroldo de Campos os criteacuterios da teoria tradutoacuteria do

maranhense estatildeo a tornar-se equivocadamente criteacuterio de avaliaccedilatildeo de todas as

traduccedilotildees ateacute mesmo daquelas tributaacuterias das dominantes poeacuteticas anteriores agrave

teoria de Odorico e daquelas cujo criteacuterio deliberadamente natildeo eacute o mesmo de

Odorico e de Haroldo de Campos caso evidente de Leonel da Costa Franco

Barreto Cacircndido Lusitano por ser anteriores e de Carlos Alberto Nunes e

Agostinho da Silva Tomemos a concisatildeo ou siacutentese ingrediente necessaacuterio de

alguns gecircneros antigos como o epigrama grego e o latino jaacute era procedimento

valorizado por certos autores [] ateacute mesmo em outros gecircneros de poesia como a

proacutepria eacutepica e bem sabemos que eacute pedra de toque por exemplo de manifestaccedilotildees

da poesia modernista e da contemporacircnea Era-o tambeacutem na teoria de Odorico

Mendes que por lograr concisatildeo suprimiu a repeticcedilatildeo de discursos proacutepria da

oralidade homeacuterica [] Mas o Homero que hoje lemos escrito em grego eacute

tributaacuterio da tradiccedilatildeo oral em que sobejam aquelas repeticcedilotildees pelo que se deve

109Idem ldquoHomero Iliacuteada Traduccedilatildeo de O Mendes Satildeo Paulo Campinas ateliecirc Editorial Unicamp

2008rdquo (resenha criacutetica) In Nuntius Antiquus nordm 3 Belo Horizonte agosto de 2009 (ISSN 19833636) 110 OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo ldquoA Eneida em bom portuguecircs consideraccedilotildees sobre teoria e praacutetica da

traduccedilatildeo poeacuteticardquo In Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da

USP Satildeo Paulo Humanitas 2007 pp 77-78

107

lembrar que natildeo eacute conciso natildeo eacute sinteacutetico porque natildeo havia este criteacuterio entre os

aedos [] (2007 77-78)

A importante relativizaccedilatildeo (conceituada no artigo acima citado tendo-se em

conta a adoccedilatildeo da obra de Odorico como referecircncia da traduccedilatildeo criativa) dos

procedimentos e resultados de traduccedilotildees com base na existecircncia de pontos de vista

proacuteprios que os norteiam e a consequente proposiccedilatildeo de Oliva Neto de que uma

traduccedilatildeo seja avaliada ldquoa partir de sua proacutepria teoria e eventualmente das doutrinas

retoacuterico-poeacuteticas em que se insere essa teoria em seu tempo evitando-se generalizar

criteacuterios de um dado tradutor para outros em outros temposrdquo (2007 65) constituem-se

em referecircncia particularmente uacutetil a este trabalho

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)

Responsaacutevel por traduccedilotildees da Odisseia e da Iliacuteada (publicadas respectivamente

em 1960 e 1962) o meacutedico poeta e tradutor (tambeacutem maranhense) Carlos Alberto

Nunes (que entretanto morou no interior e na capital de Satildeo Paulo a maior parte de sua

vida) eacute dono de vasta obra tradutoacuteria incluindo-se a Eneida de Virgiacutelio vertida do

latim os Diaacutelogos de Platatildeo vertidos (assim como as eacutepicas homeacutericas) do grego o

teatro completo de Shakespeare e peccedilas teatrais de J W Goethe e de Friedrich Hebbel

traduzidas do alematildeo Escreveu tambeacutem diversas obras originais de poesia e drama

entre elas a epopeia (em versos decassiacutelabos) Os brasileidas publicada em 1938 da

qual citamos em seguida os versos iniciais (a fim de que se perceba que embora em

decassiacutelabos o poema se faz com constante uso de enjambement aparentemente sem

compromisso com a siacutentese)

Musa canta-me a reacutegia poranduba

das bandeiras os feitos sublimados

dos heroacuteis que o Brasil plasmar souberam

traveacutes do Pindorama demarcando

nos sertotildees a conquista e as esperanccedilas111

111 NUNES C A Os brasileidas (Epopeia nacional em nove cantos e um epiacutelogo) Satildeo Paulo

Melhoramentos s d

108

Cite-se pela pertinecircncia em se incluir o ponto de vista do autor acerca da poesia

eacutepica agrave qual dedicou grande parte de seu empenho criador e recriador algo de seu

pensamento sobre ldquoo lugar da poesia eacutepica na literatura modernardquo exposto em ensaio

publicado na ediccedilatildeo de Os brasileidas

A epopeia como gecircnero literaacuterio natildeo estaacute morta nem pertence aos museus da

literatura O exemplo do escritor cretense [Nikos Kazantzakis autor de nova

Odisseia] eacute decisivo para demonstrar a possibilidade da criaccedilatildeo em nossos dias de

uma epopeia heroacuteica ao mesmo tempo claacutessica e revolucionaacuteria tendo se revelado

como carecente de base a tentativa dos teoacutericos e doutrinadores de fechar caminhos

para a atividade da imaginaccedilatildeo criadora [] 112

E inclua-se tambeacutem uma apreciaccedilatildeo sua integrante das ldquoNotas de um tradutor

de Homerordquo a respeito da poesia homeacuterica como um meio de se observar sua crenccedila de

que a traduccedilatildeo pode aproximar eacutepocas e culturas diversas pela poesia ldquoinfusa dos

poemas de Homerordquo

Sempre fui de parecer que ateacute para os menos iniciados os poemas de Homero

podem constituir ocasiatildeo de deleite natildeo foi por acaso que esses dois monumentos

inigualaacuteveis atravessaram milecircnios sem perder o frescor dos primeiros tempos []

Atrever-me-ei a dizer que ateacute mesmo as pessoas mais imbuiacutedas de prevenccedilatildeo

contra a literatura claacutessica natildeo poderatildeo deixar de sentir a poesia infusa dos poemas

de Homero se se entregarem agrave leitura honesta dessas criaccedilotildees sem par em pouco

tempo se sentiratildeo empolgadas pela verdade eterna que se irradia daquele mundo de

poesia Onde quer que abramos Homero o sol bate sempre em cheio A sua poesia

natildeo eacute de ontem nem de hoje poreacutem eterna agrave medida que se afasta que se afasta no

tempo liberta-se dos liames da contingecircncia humana para refletir em sua estrutura

liacutempida os traccedilos das criaccedilotildees universais []113

112 NUNES C A ldquoEnsaio sobre a poesia eacutepicardquo In Os brasileidas ndash epopeia nacional Satildeo Paulo

Melhoramentos 1962 p 14 113 Idem ldquoNotas de um tradutor de Homerordquo In Revista da Academia Paulista de Letras Satildeo Paulo s

d p 142

109

Algo importante acerca de suas concepccedilotildees relativas agrave tarefa da traduccedilatildeo pode

ser depreendido do seguinte trecho de suas referidas ldquoNotasrdquo114

[] ateacute mesmo as divergecircncias remanescentes que tanto acirram os acircnimos nos

arraiais da Filologia redundam em vantagem para o tradutor pela variedade daiacute

decorrente que lhe proporciona maior amplitude de movimentos Um exemplo

entre muitos diante do epiacuteteto Argeiphontes em referecircncia a Hermes encontrado

na Odisseia teraacute o tradutor que optar rapidamente entre vaacuterias interpretaccedilotildees

ldquomatador de Argosrdquo ndash numa etimologia forccedilada mas que vem da antiguidade ndash

ldquobrilhanterdquo e vaacuterias outras Se se resolver pela primeira empregaraacute com toda

certeza o neologismo ldquoArgicidardquo o que o obrigaraacute a uma nota para elucidaccedilatildeo de

um mito tardio e de pouca ou de nenhuma significaccedilatildeo no mundo helecircnico na

segunda hipoacutetese falaraacute linguagem simples mas por isso mesmo mais de acordo

com as caracteriacutesticas do estilo homeacuterico o leitor natildeo perceberaacute o obstaacuteculo e

prosseguiraacute empolgado pela beleza dos poemas imortais (p 145)

Como se pode notar Nunes antepotildee-se a formulaccedilotildees que possam dificultar a

leitura fluente da traduccedilatildeo de Homero abolindo o uso de notas (ldquoAo publicar o texto da

traduccedilatildeo portuguesa daqueles poemas deixei-o desacompanhado de notas jaacute por afagar

a esperanccedila de que conseguiria infundir-lhe uma parcela da beleza original []) (pp

141-142) A dicccedilatildeo de sua obra tradutoacuteria aponta portanto para uma pretendida

oposiccedilatildeo ao modo como Odorico realizara seu intento ao optar por ldquouma linguagem

simplesrdquo (opccedilatildeo baseada tambeacutem em sua visatildeo do texto homeacuterico como dotado de

simplicidade) busca favorecer a fruiccedilatildeo da obra pelo leitor a que se dirige Diz ele ldquoem

geral as notas que acompanham as traduccedilotildees valem como trabalho agrave parte que servem

para revelar os fundamentos filoloacutegicos de seus autores Natildeo eacute um trabalho dessa

natureza que me proponho nesse momentordquo (p 144)

Sobre sua versatildeo da obra teatral de Shakespeare e a recepccedilatildeo criacutetica por ela

obtida diz Marcia A P Martins115

114 Outras observaccedilotildees de C A Nunes sobre traduccedilatildeo seratildeo citadas oportunamente durante as primeiras

iniciativas de anaacutelise de fragmentos da obra homeacuterica 115 ldquoA Traduccedilatildeo do drama shakespeariano por poetas brasileirosrdquo In revista Ipotesi v 13 n 1 janjul

Juiz de Fora 2009 pp 27-40

110

[Carlos Alberto Nunes] dedicou-se durante a deacutecada de 1950 a um projeto

grandioso a traduccedilatildeo de todas as comeacutedias trageacutedias e dramas histoacutericos de

Shakespeare para o portuguecircs

[] A recepccedilatildeo criacutetica do trabalho de Nunes pode ser avaliada pelos comentaacuterios

de alguns tradutores e criacuteticos Eugecircnio Gomes elogiou o trabalho de Nunes que

considerou de grande envergadura e de modo geral consciencioso e seguro

ldquocapaz de impor-se como verdadeiro modecirclo do que deveraacute ser uma traduccedilatildeo

brasileira de Shakespearerdquo (GOMES 1961 p 68) []

Para Nelson Ascher tradutor e criacutetico Nunes eacute um tradutor erudito e rigoroso com

sua busca por manter o esquema meacutetrico do original enquanto que na avaliaccedilatildeo da

especialista em estudos shakespearianos Margarida Rauen (1993) as traduccedilotildees de

Nunes satildeo difiacuteceis de ler por causa do seu estilo ornamentado e grandiloquente e

por observarem as normas da linguagem escrita tatildeo diferentes daquelas da

linguagem oral Barbara Heliodora por sua vez criticou-lhe o excesso de

inversotildees que inviabilizam o uso da sua traduccedilatildeo no palco (1997)

Eacute possiacutevel observar que enquanto o comentaacuterio de Ascher deixa transparecer uma

concepccedilatildeo de traduccedilotildees shakespearianas que valoriza a manutenccedilatildeo das

caracteriacutesticas formais observadas no texto de partida as duas apreciaccedilotildees

seguintes evidenciam uma concepccedilatildeo de ldquofidelidaderdquo a Shakespeare que pressupotildee

a preservaccedilatildeo da sua funccedilatildeo teatral para a qual contribuem uma dicccedilatildeo e uma

sintaxe adequadas a um texto que se destina primordialmente agrave fala e natildeo agrave

leitura

Por fim em seu artigo ldquoFigura em minha liacutengua da traduccedilatildeo em verso do verso

dramaacutetico de William Shakespeare um projeto para Ricardo IIIrdquo (2007) o

dramaturgo e tradutor de textos teatrais Marcos Barbosa de Albuquerque considera

Nunes um tradutor brilhante embora ldquobastante particular em sua escolha de

palavras e vasto no emprego de inversotildees e de malabarismos sintaacuteticosrdquo estilo que

tem sido recorrentemente tachado de arcaizante pela criacutetica (2009 35)

Tendo alcanccedilado relativa popularidade suas traduccedilotildees da eacutepica greco-latina

foram publicadas com significativa tiragem em ediccedilotildees de bolso Sobre essas

traduccedilotildees diz Haroldo de Campos

No que respeita agrave traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes embora natildeo se possa

enquadrar na categoria da lsquotranscriaccedilatildeorsquo (termo que eacute liacutecito aplicar sem exagero a

Odorico natildeo obstante os eventuais lsquodesniacuteveisrsquo que possam afetar o resultado

111

esteacutetico de seu projeto tradutoacuterio) estamos diante de uma empreitada incomum

que merece como tal respeito e admiraccedilatildeo Desde logo pelo focirclego do tradutor

que levou a cabo a transposiccedilatildeo integral em versos para o portuguecircs de ambos os

extensos poemas Num outro plano o prosoacutedico pela interessante soluccedilatildeo

(louvada por Maacuterio Faustino se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis

siacutelabas o equivalente em meacutetrica vernaacutecula do hexacircmetro (verso de seis peacutes)

homeacuterico O resultado para o nosso ouvido embora relente um pouco o passo do

verso aproximando-o da prosa ritmada eacute uma boa demonstraccedilatildeo de que natildeo

assistia razatildeo a Mattoso Cacircmara Jr quando impugnava a ac1imataccedilatildeo do verso de

medida longa em portuguecircs considerando-o lsquointeiramente anocircmalorsquo em nossa

liacutengua (Mattoso referia-se agrave adoccedilatildeo de um verso de quinze siacutelabas por Fernando

Pessoa em sua traduccedilatildeo de The Raven de E A Poe) A praacutetica de Carlos Alberto

Nunes sustentando com brio por centenas de versos essa medida contesta

eloquentemente aquela restriccedilatildeo normativa No que se refere agrave linguagem todavia

natildeo eacute um empreendimento voltado para soluccedilotildees novas com a estampa da

modernidade Trata-se antes de uma traduccedilatildeo acadecircmica de pendor

lsquoclassicizantersquo que retroage estilisticamente no tempo116

Um aspecto da obra tradutoacuteria de Nunes ndash jaacute mencionado na referecircncia a

avaliaccedilatildeo de Nelson Ascher relativa a suas traduccedilotildees de Shakespeare ndash eacute a preocupaccedilatildeo

de correspondecircncia riacutetmico-meacutetrica com o original e portanto a importacircncia por ele

atribuiacuteda aos padrotildees formais do texto que se traduz Frequentemente assinalada por

seus criacuteticos a caracteriacutestica de recriaccedilatildeo do aspecto meacutetrico costuma ser contraposta ndash

como o fez Campos ndash ao que seria um conservadorismo da linguagem Para Martins

referindo-se a sua versatildeo da obra shakespeariana suas traduccedilotildees satildeo

conservadoras no que diz respeito tanto agraves poeacuteticas que vinham surgindo no

sistema literaacuterio brasileiro [agrave eacutepoca em que realizou o trabalho quando se

desenvolvia o movimento da vanguarda concretista na poesia] como agrave maneira de

se traduzir Shakespeare como um autor de linguagem elevada que exigiria

rebuscamento sintaacutetico e lexical (2009 35)

116 CAMPOS H ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo Revista USP no 12 dez-jan- fev 1991-1992 pp 143-161

112

Parece-me bastante discutiacutevel a noccedilatildeo de que a opccedilatildeo tradutoacuteria teria de estar

vinculada agraves ldquopoeacuteticas que vinham surgindo []rdquo e tambeacutem de que a ideia da obra de

Shakespeare como dotada de linguagem elevada implique necessariamente

conservadorismo

A importacircncia atribuiacuteda por Nunes no plano formal agrave observacircncia do esquema

meacutetrico em traduccedilatildeo evidencia-se nesta sua referecircncia agrave eacutepica grega

Firmemos portanto mais uma caracteriacutestica do estilo eacutepico a uniformidade do

verso ldquoHomero emerge da corrente da vidardquo diz Staiger ldquoe se conserva imoacutevel

em face do mundo exterior contempla as coisas de um certo ponto de vista por

uma determinada perspectiva Esta eacute condicionada pelo ritmo de seus versos sendo

ela que lhe assegura a identidade o ponto fixo no fluxo permanente das coisasrdquo Eacute

essa condiccedilatildeo que permite ao poeta conservar a serenidade em face dos

acontecimentos relatados Interpretando o hexacircmetro em termos da meacutetrica

portuguesa veremos que se trata de um verso longo de dezesseis siacutelabas

paroxiacutetono com acento predominante na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e 16ordf siacutelabas e discreta

cesura depois do terceiro peacute

Ouve-me Atena tambeacutem nobre filha de Zeus poderoso

Quando o poeta se afasta desse paradigma para introduzir duas pausas no verso

que o dividem em trecircs porccedilotildees quase iguais de regra volta no verso subsequente a

cair no ritmo inicial que eacute o predominante em todo o recitativo

Daacute que possamos cobertos de gloacuteria voltar para as naves

poacutes grande feito acabarmos que haacute de lembrar sempre aos Teucros

Nas traduccedilotildees esse esquema natildeo eacute observado com rigor notando-se ainda a

tendecircncia para variar de ritmo pelo deslocamento das pausas dentro do verso com

o que se evita a monotonia de possiacutevel desagrado para o ouvido moderno Mas

com isso padece o estilo eacutepico em uma de suas caracteriacutesticas essenciais []

(1962 38-39)

Haacute no entanto em relaccedilatildeo agrave opccedilatildeo de Nunes de ldquofidelidaderdquo ao esquema

riacutetmico-meacutetrico do texto-fonte discussotildees acerca da qualidade de seu resultado esteacutetico

113

Sobre o sistema praticado pelo tradutor em suas versotildees da eacutepica virgiliana defende-o

Oliva Neto (que no entanto tambeacutem aponta no aspecto da linguagem o ldquodefeitordquo do

ldquoleacutexico beletristardquo empregado por Nunes)

[] Carlos Alberto Nunes quis reproduzir o hexacircmetro datiacutelico [] A bem dizer

quando se diz ldquo16 siacutelabasrdquo [quantidade que se atribui ao verso usado por Nunes]

estaacute-se de fato a contaacute-las ateacute a uacuteltima siacutelaba tocircnica como se faz na meacutetrica

portuguesa hoje o que revela que se levou em conta a dimensatildeo do verso que eacute

entatildeo muito longo em vez privilegiar-se a ceacutelula datiacutelica que sendo o que

ritmicamente se impotildee era o que o tradutor tinha em mente Na leitura riacutetmica eacute

secundaacuteria a dimensatildeo do verso jaacute que os daacutetilos se sucedem verso apoacutes verso natildeo

tendo tanta importacircncia aqui a quebra deles ou seja onde terminam isto eacute a

dimensatildeo Estaacute-se a criticar a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes natildeo pelos defeitos

intriacutensecos que decerto possui como a meu ver entre outros o leacutexico beletrista

mas porque natildeo fez segundo cada criacutetico ou o que Odorico Mendes ou que

Barreto Feio fizeram o que eacute extriacutenseco [] (2007 82-83)

O esquema meacutetrico adotado por Nunes eacute objeto de comentaacuterio de Medina

Rodrigues que questiona sua pertinecircncia embora em referecircncia geneacuterica a seu

trabalho reforce o juiacutezo aparentemente consensual de ser ele um ldquomeritoso tradutorrdquo

O hexacircmetro de Homero tem seis peacutes com predomiacutenio do daacutectilo como em nossas

proparoxiacutetonas Carlos Alberto Nunes incansaacutevel e meritoso tradutor levou isso a

seacuterio Em suas versotildees da Iliacuteada e da Odisseia procurou ajeitar o portuguecircs em

compassos ternaacuterios para imitar o original []

Certamente o tradutor sabia que os compassos ou peacutes de Homero natildeo privilegiam

siacutelabas tocircnicas e aacutetonas mas longas e breves que aliaacutes natildeo existem em liacutenguas

que falamos Privilegiando a estrutura silaacutebica naquilo que pocircde o tradutor imitou

uma teacutecnica sem levar-lhe em conta o efeito a saber aquela velocidade colorida

que Homero consegue com o hexacircmetro grego e que a traduccedilatildeo de Carlos Alberto

Nunes natildeo consegue com o hexacircmetro portuguecircs por ser este muito pesado lento

Eacute a ilusatildeo aritmeacutetica da semelhanccedila formal que natildeo percebe que teacutecnicas idecircnticas

levam a efeitos distintos

[] enquanto Odorico estava preocupado em traduzir efeitos ou sentidos Carlos

Alberto Nunes se preocupou em traduzir basicamente a forma ou mais

114

precisamente como querem alguns a focircrma os esquemas retoacutericos prosoacutedicos os

epiacutetetos a frase oralizada etc (2000 50-51)

O aspecto particular ndash e tatildeo relevante ndash da tarefa empreendida por Nunes em

manter a dinacircmica fixa de acentuaccedilatildeo dos versos assim como suas peculiaridades

esteacuteticas gerais seratildeo assim como as obras dos demais tradutores analisadas

oportunamente

A3 Haroldo de Campos

Apresenta-se a seguir de modo sucinto a trajetoacuteria do poeta tradutor e ensaiacutesta

Haroldo de Campos ndash que como jaacute se disse seraacute objeto relativamente privilegiado deste

trabalho devido ao alcance e agrave importacircncia de sua obra tradutoacuteria e ensaiacutestica sobre

traduccedilatildeo poeacutetica Para uma certa independecircncia desta apresentaccedilatildeo natildeo seratildeo evitadas

algumas informaccedilotildees sobre aspectos de seu pensamento e de suas fontes presentes

tambeacutem em outros toacutepicos deste estudo

Estabelecer relaccedilotildees nexos transitar entre tempos espaccedilos culturas liacutenguas

formas ligar fundir elementos aparentemente diacutespares distantes realizar o hibridismo

a atitude que permeia estes objetivos parece-me determinante na obra e no pensamento

de Haroldo de Campos

Vejamos brevemente algumas manifestaccedilotildees da focalizaccedilatildeo do entremeio do

espaccedilo em que se podem traccedilar conexotildees entre dois pontos referenciais

Sobre sua obra Galaacutexias diz Haroldo em entrevista concedida a Carlos Rennoacute e

publicada em 23 de outubro de 1984117

A poesia concreta respondeu a uma das vertentes da minha personalidade as

Galaacutexias respondem a outra Que elas tenham podido coexistir eacute algo que me

demonstrou a inexistecircncia de uma oposiccedilatildeo antagocircnica entre barroquismo e

construtivismo [] Natildeo teria sido possiacutevel por outro lado sem a experiecircncia de

rigor e controle do acaso da poesia concreta disciplinar o turbilhatildeo barroquizante

que a escritura galaacutetica desencadeia

117 A referida entrevista foi publicada nessa data no caderno Folha Ilustrada do jornal Folha de SPaulo

115

Coexistecircncia entre ldquoconstrutivismo e barroquismordquo entre a poesia concreta e o

ldquoturbilhatildeo barroquizanterdquo da ldquoescritura galaacuteticardquo a fusatildeo desenvolve-se como

instrumento como caminho para o autor de encontro entre diferentes tendecircncias que

criaraacute um espaccedilo manifesto natildeo soacute na ldquoproesiardquo de Galaacutexias como em sua obra

propriamente poeacutetica (lembre-se por exemplo a poesia de Signacircncia quase ceacuteu ou a de

Finismundo a uacuteltima viagem agraves quais voltaremos mais adiante) A linguagem de

Galaacutexias em seu ldquohibridismo textualrdquo jaacute conteria em si o ldquofusionismordquo do proacuteprio

barroco

[Em um ensaio] referia-me ao Barroco pelo fusionismo que lhe eacute proacuteprio pelo

hibridismo de liacutenguas e culturas que o caracteriza como o momento embrionaacuterio

em nossa Ameacuterica dessa rebeliatildeo contra a normatividade claacutessica dos gecircneros

Tambeacutem a proacutepria ideia de ldquoruptura dos gecircnerosrdquo ou seja fusatildeo de seus limites

estaria na base da escritura da obra

Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos

gecircneros na literatura contemporacircnea da rarefaccedilatildeo dos limites entre poesia e prosa

e tambeacutem entre ficccedilatildeo e ensaio criacutetico entre o exerciacutecio ficcional e o exerciacutecio

metalinguiacutestico da escritura

Teria sido ainda um tracircnsito uma passagem que leva a outro hibridismo a

concepccedilatildeo de que ldquoA escritura galaacutetica foi [] um gesto eacutepico que se resolveu numa

epifacircnicardquo ndash ldquoo narrar deixou-se levar de roldatildeo pela proliferaccedilatildeo de imagens pela

voracidade focircnica pelas fosforescecircncias de uma semacircntica moacutevel que o contaacutegio de

significantes eacute capaz de suscitar e sustar []rdquo

Vista rapidamente a presenccedila de passagem de ligaccedilatildeo ndash que leva agrave fusatildeo ndash em

Galaacutexias prossigamos o itineraacuterio erraacutetico de referecircncias abordando sob a mesma

perspectiva a sua atividade de recriaccedilatildeo e mais exatamente o seu pensamento sobre

traduccedilatildeo poeacutetica

Em seu primeiro ensaio de focirclego sobre o assunto ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e

como criacuteticardquo118

Haroldo buscou fundamentar-se em duas referecircncias principais a

118 Op cit

116

noccedilatildeo de ldquosentenccedila absolutardquo de Albrecht Fabri e de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max

Bense traccedilando por meio de sua proacutepria concepccedilatildeo de poesia e de traduccedilatildeo uma

conexatildeo entre as duas formulaccedilotildees que serviram a uma forma de ldquounificaccedilatildeordquo expressa

em seu pensamento Mas essa junccedilatildeo seria apenas o iniacutecio de um processo de agregaccedilatildeo

de fundamentos num esforccedilo de leitura que buscaria pontos de convergecircncia em fontes

de diferente teor Nesse mesmo texto de 1962 o autor propotildee valendo-se de noccedilotildees da

cristalografia o conceito de ldquoisomorfismordquo para designar a operaccedilatildeo de traduzir poesia

para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica

autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas

entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo diferentes enquanto linguagem mas como

os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro de um mesmo sistemardquo (1976 24) uma

ldquodialeacutetica do diferente e do mesmordquo (Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria) Em primeiro

lugar haacute a evidente aproximaccedilatildeo de dois campos distintos de conhecimento a quiacutemica

e a poesia em segundo a proacutepria natureza do conceito de isomorfismo cuja ecircnfase eacute na

analogia correspondecircncia de forma que seraacute um exerciacutecio de passagem O termo

ldquoisomoacuterficordquo cederaacute lugar mais tarde a ldquoparamoacuterficordquo no pensamento de Haroldo para

que fosse enfatizada a relaccedilatildeo de paralelismo sugerida pelo prefixo ldquopara-rdquo ldquolsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquordquo) Observando-se a obra do tradutor natildeo se

encontraratildeo no entanto regras precisas ou absolutas de como se deve construir o corpo

paramoacuterfico ndash as relaccedilotildees de correspondecircncia a serem estabelecidas seratildeo de certa

forma uacutenicas como eacute cada poema e como eacute cada recriaccedilatildeo autocircnomos cada

transposiccedilatildeo uma viagem com seu proacuteprio percurso sua proacutepria paisagem

Seraacute na descoberta do trabalho do linguista russo Roman Jakobson no entanto

que Haroldo teraacute uma dos principais sustentaccedilotildees de seu pensamento sobre poesia e

sobre traduccedilatildeo poeacutetica As proposiccedilotildees desse autor iratildeo ao encontro das ideias que

acompanhavam o grupo concretista paulistano desde sua origem permitindo uma

referecircncia desenvolvida e precisa sobre aspectos natildeo-verbais da linguagem a

materialidade do signo linguiacutestico tal como pode ser vista na linguagem poeacutetica ideia

que encontra respaldo em Jakobson seraacute um ponto essencial na concepccedilatildeo de Haroldo

Centralmente a formulaccedilatildeo do linguista relativa agraves funccedilotildees da linguagem entre as quais

se inclui a funccedilatildeo poeacutetica passaraacute a ser para os poetas construtivistas uma referecircncia

absoluta porque capaz de definir a especificidade da linguagem da poesia Por essa

117

razatildeo Haroldo incluiraacute em longo ensaio de A arte no horizonte do provaacutevel119

uma

abordagem dos conceitos jakobsonianos relacionando-os com o trabalho de outros

autores como o criador da semioacutetica norte-americana Charles Peirce outra das

referecircncias principais dos concretistas e seu disciacutepulo Charles Morris

A ideia central de Jakobson sobre a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem poderaacute ser

associada por Haroldo agraves outras fontes jaacute por ele utilizadas como fundamentaccedilatildeo de

seu pensamento eacute perfeitamente compatiacutevel com a noccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de

Bense ou de ldquosentenccedila absolutardquo de Fabri Se para Bense a informaccedilatildeo esteacutetica de um

poema eacute coincidente com a totalidade de sua realizaccedilatildeo para Jakobson a ldquoequaccedilatildeo

verbalrdquo tambeacutem eacute irredutiacutevel Daiacute sobreviria ndash para ambos os pensadores ndash a

impossibilidade de uma ldquotraduccedilatildeordquo de poesia Se Haroldo jaacute falava em recriaccedilatildeo em

criaccedilatildeo de um corpo anaacutelogo iso- ou paramoacuterfico a proposiccedilatildeo de Jakobson de que

(ao mesmo tempo em que a traduccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel) seraacute possiacutevel a transposiccedilatildeo

criativa integraraacute perfeitamente o constructo em curso de seu pensamento que se

articularaacute progressiva e crescentemente em torno do conceito nominado transcriaccedilatildeo

Mas o ponto mais importante da concepccedilatildeo de Haroldo sobre transcriaccedilatildeo ndash que

se define e se arma no conjunto de seus textos sobre o assunto publicados tambeacutem em

perioacutedicos ao longo de uacuteltimas deacutecadas de sua vida e que recolhidos integraratildeo um

volume a ser publicado ndash eacute no meu modo de ver a explicitaccedilatildeo de que seu caminho

como transcriador parte de criteacuterios originados da observaccedilatildeo de elementos

intratextuais para chegar a um novo texto que por desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da

histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo reinventando-a (1983 60)120

Para tanto o ato de

construccedilatildeo de uma traduccedilatildeo viva seraacute um ato ateacute certo ponto usurpatoacuterio que se rege

pelas necessidades do presente de criaccedilatildeo (ib) Em vez de buscar reconstruir um

mundo passado a visatildeo haroldiana decide pela reinvenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo inserida em

novo contexto o texto portanto transforma-se na viagem e seu ponto de chegada

acolhe-o de modo a participar de sua reestruturaccedilatildeo para a qual o presente a releitura e

a comunicaccedilatildeo em novo espaccedilo e em novo tempo satildeo determinantes Resultado de

tracircnsito de trans-historicizaccedilatildeo o texto tambeacutem seraacute objeto de viagem para o leitor e

119 ldquoComunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo op cit (1975)

120 Esta citaccedilatildeo e as duas seguintes provecircm do artigo Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria in Cadernos do

MAM nuacutemero 1 Rio de Janeiro dezembro de 1983

118

seraacute objeto e sujeito de transformaccedilatildeo no dizer de Joatildeo Alexandre Barbosa121

[] a

compreensatildeo [por parte do leitor] estaacute na busca que eacute o iniacutecio de uma viagem [] o

leitor do poema recorta o seu espaccedilo de reflexatildeo e pensa a viagem e Transformando

pela leitura o poema que lecirc o leitor eacute transformado pela leitura

Recriaccedilatildeo reescritura um ponto de vista que abarca um amplo horizonte capaz

de revelar sincronicamente poeacuteticas de diversas eacutepocas espaccedilos e culturas este seria um

modo de se entender a posiccedilatildeo de Haroldo como leitor-criador Sigamos a ecircnfase no

foco extensivo de seu olhar e de seu pensamento amplamente dirigido agrave passagem

evocando (conforme anunciado) duas de suas escrituras palimpseacutesticas Signacircncia

quase ceacuteu e Finismundo a uacuteltima viagem

Sobre o primeiro lembre-se muito brevemente que o texto rastreia

reinscrevendo iacutendices da passagem textual da criaccedilatildeo dantesca num percurso inverso ao

da Divina Comeacutedia iniciando-se no paraiacuteso o livro-poema finda no fundo do inferno

atravessando os acircmbitos e lindes desde o iniacutecio com palavras pendentes desde as

alturas por um fio invisiacutevel que as susteacutem ateacute o derradeiro niacutevel uma queda evidenciada

na Coda em que a visatildeo dos uacuteltimos lecircmures configuram o ecircxito ao reveacutes a

viagem se daacute na amplitude do alcance de cada plano e tambeacutem na dimensatildeo da

profundidade como que colhendo fragmentos desvelados pela releitura Uma

reescrituraindicial-icocircnica pois ao indicar elementos de uma tradiccedilatildeo evocada reinstala

paradigmas ndash qualidade transformada na passagem de um a outro tempo de um a outro

espaccedilo ndash novos estiacutemulos agrave percepccedilatildeo em novo contexto em que se insere a nova

dimensatildeo poeacutetica

Sobre o segundo trata-se de um poema que no dizer de Haroldo envolve o

risco da criaccedilatildeo pensado como um problema de viagem e como um problema de

enfrentamento com o impossiacutevel uma empresa que se por um lado eacute punida com um

naufraacutegio por outro eacute recompensada com os destroccedilos do naufraacutegio que constituem o

proacuteprio poema Um desafio encarado pelo poeta que encontrou em estudo

semioloacutegico do italiano DacuteArco Silvio Avalle o embriatildeo de seu proacuteprio texto no

estudo eacute analisado o canto XXVI do Inferno no qual Dante propotildee a soluccedilatildeo para um

enigma que vinha da tradiccedilatildeo claacutessica o enigma do fim de Ulisses O enigma referido

121 As citaccedilotildees satildeo excertos do ensaio Um cosmonauta do significante navegar eacute preciso que introduz

o livro Signantia quase coelum Signacircncia quase ceacuteu de Haroldo de Campos (Satildeo Paulo Perspectiva

1979)

119

diz respeito a um segmento de verso do canto XI da Odisseia thaacutenatosekshaloacutes que

como diz Haroldo (na esteira de Avalle) pode ser entendidocomo uma morte para

longe do mar salino ou como uma morte que procede do mar salino (ou seja se

Odisseu teria morrido no mar ou longe dele em paz em Iacutetaca) No canto dantesco o

velho Odisseu (Ulisses) teria ousado uma nova aventura a travessia das fronteiras

permitidas do mundo ndash uma atitude provinda da hyacutebris (definida por Haroldo como

essa desmesura orgulhosa com que o ser humano intenta [] confrontar-se com o

impossiacutevel) Se haacute hyacutebris na accedilatildeo de Ulisses esta encontra paralelo no proacuteprio

enfrentamento do desafio do poema pelo poeta de Finismundo a travessia desde a

tradiccedilatildeo ndash a situaccedilatildeo do heroacutei homeacuterico Odisseu focalizada no primeiro tempo do

texto ndash ateacute a contemporaneidade em que o agora renomeado Ulisses (tambeacutem evocador

do anti-heroacutei criado parodicamente por James Joyce um paradigma do homem na

cidade contemporacircnea ou seja um Ulisses da banalidade do mundo como diria

Lukaacutecz abandonado pelos deuses) transforma-se num factotum Transmutaccedilatildeo

confronto passagem viagem ousadia no tracircnsito e na superaccedilatildeo de limites a jornada

de Haroldo em toda a sua obra eacute emblematicamente representada por Finismundo

talvez seu poema maacuteximo nele o poeta chega ao cume de seu processo interespaccedilos

navega destemida e firmemente no mar encarnado avermelhado multitudinoso cor de

vinho (tema de uma passagem de Galaacutexias) com a sensibilidade de quem sorve o

aroma desfruta das notas do paladar e deglute antropofagicamente toda a

humanidade e sua histoacuteria criadora reinventando-a

Terminemos com uma breve menccedilatildeo a uma iniciativa ndash emblemaacutetica ndash do poeta-

criacutetico-transcriador movida pela circunstacircncia em 1991 apoacutes diversos anos de

colaboraccedilatildeo com o livreto (por vezes livro) feito anualmente para o Bloomsday (data

em que se celebra internacionalmente a obra de James Joyce) paulistano Haroldo

propocircs e organizou o volume Ulisses a travessia textual122

que traccedilava por meio de

traduccedilotildees suas e alheias um percurso iniciado com o proacuteprio Odisseu homeacuterico (a

Odisseia aparece representada por fragmento do canto VI em que Nausiacutecaa depara-se

com o heroacutei naacuteufrago nu sujo de marugem salina) e que prosseguia com o tema

odisseico relido e recriado por Jorge Guilleacuten e por Derek Walcott aleacutem de ligar-se

entre outras referecircncias multiliacutengues agrave versatildeo em grego moderno do texto homeacuterico

122 Satildeo Paulo Olavobraacutes ABEI 2001

120

(realizada por Kazantzaacutekis) e agrave paroacutedica reimaginaccedilatildeo do episoacutedio em Ulysses de

Joyce ligava-se ainda ao poema evocador do retorno do heroacutei a sua terra Iacutetaca de

Kavaacutefis O sintagma travessia textual representa bem o mar siacutegnico que eacute objeto do

poeta a assumir em sua autocircnoma materialidade sonora e visual uma realidade

equivalente ndash espelho com vida proacutepria e independente tramado com seus proacuteprios

constituintes geradores de significaccedilatildeo ndash agrave dos elementos da vida e da histoacuteria

transitadas transpostas transcriadas Mar em que se viaja sempre com o olhar largo

extensivo da passagem

Complemente-se a apresentaccedilatildeo da obra de Haroldo de Campos com citaccedilotildees

que a discutem Sobre a Iliacuteada e a traduccedilatildeo do poema realizada por Campos foco de

interesse deste estudo diz Trajano Vieira

[] a linguagem da Iliacuteada eacute elaboradiacutessima ao contraacuterio do que ateacute pouco tempo

atraacutes entendiam alguns comentadores [] Se eacute verdade que a Iliacuteada apresenta

caracteriacutesticas formais que indicam sua natureza oral ndash retomada de expressotildees

fixas ao longo do texto repeticcedilatildeo de cenas tiacutepicas predomiacutenio da sintaxe parataacutetica

ndash isso natildeo implica que no plano esteacutetico sua linguagem seja simples ou despojada

[]

Desconheccedilo outra traduccedilatildeo tatildeo fiel agrave complexidade formal da Iliacuteada quanto esta

[]123

A fim de introduzir jaacute a referecircncia ao metro adotado por Campos em sua

recriaccedilatildeo da Iliacuteada visando ao dado comparativo em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees jaacute referidas e

agraves posteriores discussotildees sobre o tema cite-se o proacuteprio tradutor

De minha parte em lugar do decassiacutelabo de molde camoniano que mais de uma

vez obrigou Odorico a prodiacutegios de compressatildeo semacircntica e contorccedilatildeo sintaacutetica

recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na sexta siacutelaba ou mais raramente na

quarta oitava e deacutecima-segunda) Evitei assim o risco do prosaiacutesmo decorrente

123 VIEIRA T ldquoIntroduccedilatildeordquo In CAMPOS H Odisseia de Homero Satildeo Paulo Mandarim 2002 pp 20-

21

121

de um verso mais alongado e sua contrapartida a constriccedilatildeo derivada de um metro

demasiadamente conciso []124

Em nota referente agrave sua opccedilatildeo pelo metro dodecassiacutelabo Campos cita opiniatildeo de

Said Ali e o jaacute mencionado comentaacuterio de Silveira Bueno

M Said Ali estudando o hexacircmetro latino refere que a ldquoideia primitiva de

construir verso de seis peacutes uniformemente dactiacutelicosrdquo teve de ser modificada na

praacutetica jaacute que ldquoo predomiacutenio dos hexacircmetros de 15 e 14 siacutelabas se observa em

qualquer poeta latinordquo (Acentuaccedilatildeo e versificaccedilatildeo latinas Rio de Janeiro

Organizaccedilatildeo Simotildees 1957) Silveira Bueno por sua vez considera o

dodecassiacutelabo (alexandrino) ldquoo uacutenico metro moderno que se aproxima do

hexacircmetro dactiacutelicordquo (prefaacutecio de 1956 da ediccedilatildeo da Iliacuteada traduzida por M

Odorico Mendes)

124 CAMPOS H VIEIRA T ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo In Mecircnis ndash A ira de Aquiles Satildeo Paulo Nova

Alexandria 1994 pp 13-14

122

B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais

Se temos do seacuteculo XIX a teorizaccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes proveniente

das notas a suas traduccedilotildees da eacutepica e indiretamente da proacutepria metodologia tradutoacuteria

por ele empregada no seacuteculo XX alguns poetas se destacam quanto agrave produccedilatildeo de um

pensamento sobre traduccedilatildeo entre eles inegavelmente Haroldo de Campos ocupa

posiccedilatildeo mais elevada como se tem visto e seraacute reiterado adiante seu irmatildeo Augusto de

Campos referecircncia quase unacircnime pela excelecircncia de suas traduccedilotildees natildeo se dedicou

tanto quanto Haroldo a teorizar o que denomina ldquotraduccedilatildeo-arterdquo em conceito

semelhante ao de ldquotranscriaccedilatildeordquo outros seriam dignos de nota mas nos alongariacuteamos

para aleacutem dos destaques centrais Haacute no entanto um trabalho a ser citado e discutido

como pioneiro na proposiccedilatildeo de conceitos que se firmaram posteriormente ndash como o de

ldquorecriaccedilatildeordquo palavra primeiramente usada por ele ndash entre noacutes refiro-me ao poeta

Guilherme de Almeida cujos textos de apresentaccedilatildeo e notas agraves ediccedilotildees de poesia

francesa por ele recriada se mostram precursores de ideias hoje bem conhecidas em sua

eacutepoca bem mais do que hoje ldquoafastar-se da letrardquo para preservar a intenccedilatildeo de recriaccedilatildeo

de relaccedilotildees sonoras ou riacutetmicas havia de ser um ato bem justificado125

Em ensaio de 2011 denominado ldquoGuilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como

formardquo126

Aacutelvaro Faleiros (motivado por artigo de Juacutelio Castantildeon Guimaratildees127

)

destaca ldquoo papel central de Guilherme de Almeida na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo da traduccedilatildeo como

formardquo (2012 2) em nosso paiacutes tradiccedilatildeo essa que teria sucedido aquela da traduccedilatildeo praticada

conforme o paradigma da aemulatio que seria a ldquoforma predominante de se tratar a traduccedilatildeo de

poemas desde o seacuteculo XVII [] ateacute o iniacutecio do seacuteculo XXrdquo (ib) assim entendidas as

traduccedilotildees ldquomuitas vezes livremente modificadasrdquo eram correntemente incluiacutedas ldquonos livros dos

proacuteprios autores [] pois o que importava era a qualidade e o alcance da emulaccedilatildeordquo (p 3) Este

125 A fim de registrar a ocorrecircncia desse importante capiacutetulo da teoria da traduccedilatildeo poeacutetica em nosso paiacutes

(antecedendo a exposiccedilatildeo da teoria da transcriaccedilatildeo de H de Campos) assinalo a existecircncia de trecircs artigos

meus escritos para acompanharem reediccedilotildees da obra tradutoacuteria de Guilherme que ademais realizou

diretamente do grego uma traduccedilatildeo da Antiacutegone de Soacutefocles considerada modelar por Campos Os

artigos satildeo prefaacutecios e posfaacutecio dos livros Verlaine Paul Trad G de Almeida A voz dos botequins e

outros poemas Satildeo Paulo Hedra 2009 Almeida G de Flores das ldquoFlores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 Almeida G de Poetas de Franccedila Satildeo Paulo 2011 126 FALEIROS A Guilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como forma Plaquete Satildeo Paulo Casa

Guilherme de Almeida 2012 127 GUIMARAtildeES J C ldquoPresenccedila de Mallarmeacute no Brasilrdquo In GUIMARAtildeES J C Reescritas e esboccedilos

Rio de Janeiro Topbooks 2010 pp 9-53

123

seria o caso de traduccedilotildees como as de Batista Cepelos (c 1900) e de Alphonsus de Guimaratildees

(realizadas no iniacutecio do seacuteculo XX) de poemas do francecircs Steacutephane Mallarmeacute que teriam ldquouma

funccedilatildeo de imitaccedilatildeo ou de paraacutefraserdquo (p 4) Faleiros desenvolve a ideia apresentada por

Guimaratildees de ser Guilherme de Almeida ldquoum dos primeiros a operar de modo mais completo

uma lsquomudanccedila da noccedilatildeo de traduccedilatildeorsquordquo (ib) reconhecendo na formulaccedilatildeo do poeta ldquoao longo

das deacutecadas de trinta e quarenta do seacuteculo XX parte dos princiacutepios que regem as concepccedilotildees

dominantes do traduzir poemas hoje no Brasilrdquo (ib) Estas seriam marcadas pela ldquotraduccedilatildeo

como formardquo que teria o propoacutesito de ldquoreproduzir no poema de chegada formas homoacutelogas agraves

do poema de partidardquo sendo constantes ldquoa retomada de padrotildees meacutetricos e riacutemicosrdquo e a

ldquopreocupaccedilatildeo com a retoacuterica e a imageacutetica do texto de partidardquo (p 2)

De minha parte destacaria um aspecto importante nas concepccedilotildees sobre

traduccedilatildeo (ou ldquore-produccedilatildeordquo ou ldquotransfusatildeordquo) de Guilherme de Almeida este expressava

que no seu ldquoprocesso de re-criaccedilatildeo natildeo haacute propriamente luta de poeta contra poeta de

um contra outro idioma e sim uma automaacutetica justaposiccedilatildeo passiva conformaccedilatildeo

espeacutecie de entente cordiale de taacutecita e reciacuteproca sujeiccedilatildeordquo128

Ainda que se afirme uma

ldquopassiva conformaccedilatildeordquo esta eacute anulada pela colocaccedilatildeo final se haacute ldquoreciacuteproca sujeiccedilatildeordquo

natildeo haacute sujeiccedilatildeo unilateral ou seja natildeo haacute relaccedilatildeo de subserviecircncia Este entendimento que

prevecirc o diaacutelogo da traduccedilatildeo com o original e portanto a relativa autonomia autoral do poema

recriado estaraacute em conformidade com a mais atual praacutetica tradutoacuteria de poesia e com a proacutepria

conceituaccedilatildeo buscada por este trabalho acerca da traduccedilatildeo poeacutetica e da anaacutelise de poemas

traduzidos como se poderaacute verificar

128 ALMEIDA G de Flores das ldquoflores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 p 97

124

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica

O poeta Haroldo de Campos eacute um caso raro de fertilidade natildeo soacute na produccedilatildeo de

criaccedilotildees originais e de traduccedilotildees referenciais em liacutengua portuguesa como tambeacutem de

escritos criacuteticos e teoacutericos sobre poesia e sobre traduccedilatildeo Sem duacutevida entre os poetas

que o Brasil jaacute teve eacute o exemplo maacuteximo de pensamento sobre traduccedilatildeo poeacutetica tendo

publicado um grande nuacutemero de textos que se somam num conjunto dos mais densos e

coerentes acerca do assunto Aleacutem dos artigos incluiacutedos em livros haacute outros que

apareceram apenas em perioacutedicos129

Dos escritos teoacutericos de Campos acerca da traduccedilatildeo de poesia emerge

centralmente um conceito que pode orientar a praacutetica do traduzir e assim considero daacute

conta de coadunar visotildees por vezes tomadas como diacutespares ou mesmo antagocircnicas por

quem as confronta O conceito a que me refiro eacute o do isomorfismo ao qual se dedica

esta breve apresentaccedilatildeo

Coerentemente o pensamento de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo130

considera como um de seus princiacutepios fundamentais a definiccedilatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem de Roman Jakobson ndash funccedilatildeo dominante da ldquoarte verbalrdquo (1973 128) ndash que

implica o ldquotratamento da palavra como objetordquo (Campos H 1976 22) e por

conseguinte o fato de que a palavra deixa de ser um mero mesma (coisificando-se

portanto) e a suas relaccedilotildees com outras palavras criando uma instrumento de

transmissatildeo de um conteuacutedo para chamar a atenccedilatildeo a si ldquoteia de significantesrdquo

caracteriacutestica do fenocircmeno poeacutetico Na linha de pensamento jakobsiana tal teia seria

irreproduziacutevel sendo possiacutevel apenas a ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (1973 72) Esta

transposiccedilatildeo se daria necessariamente conforme fica impliacutecito em tal concepccedilatildeo pela

via do ldquoprinciacutepio construtivo do textordquo (p 72) que assim atentaria agrave palavra e a suas

relaccedilotildees com outras do ponto de vista de sua existecircncia como objeto a qual

caracterizaria tais relaccedilotildees por uma dimensatildeo significante ou seja de forma

Outra ideia que fundamenta a concepccedilatildeo de Haroldo sobre traduccedilatildeo eacute a

definiccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max Bense caracterizada por elementos de

ldquoimprevisibilidaderdquo ldquosurpresardquo ldquoimprobabilidade da ordenaccedilatildeo de siacutembolosrdquo e

129 Tais artigos integraratildeo o volume a ser lanccedilado denominado Transcriaccedilatildeo 130 Seratildeo referidos e reiterados complementariamente de forma sucinta e um tanto diversa nesta parte do

trabalho alguns conceitos antes apresentados

125

marcada pela fragilidade uma vez que eacute ldquoinseparaacutevel de sua realizaccedilatildeordquo coincidente

com sua totalidade Daiacute decorreria igualmente no caso da informaccedilatildeo esteacutetica ldquopelo

menos em princiacutepio sua intraduzibilidaderdquo (1976 22-3) Como diz Haroldo ldquoadmitida

a tese da impossibilidade em princiacutepio da traduccedilatildeo de textos criativos parece-nos que

esta engendra o corolaacuterio da possibilidade tambeacutem em princiacutepio da recriaccedilatildeo desses

textosrdquo (p 24 grifo meu) Assim ldquoNa traduccedilatildeo de um poema o essencial natildeo eacute a

reconstituiccedilatildeo da mensagem [ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquoconteuacutedordquo] mas a

reconstituiccedilatildeo do sistema de signos em que estaacute incorporada esta mensagem a

reconstituiccedilatildeo portanto da informaccedilatildeo esteacutetica e natildeo ldquoda informaccedilatildeo meramente

semacircnticardquo (1975 100) Priorizar o significado a informaccedilatildeo semacircntica seria ndash para

utilizarmos um conceito tomado da quiacutemica ndash realizar uma provaacutevel alotropia

(fenocircmeno pelo qual pode a mesma substacircncia apresentar-se sob variados aspectos e

com propriedades diferentes) convertendo por exemplo um diamante em grafite ou

em carvatildeo Embora de nossa visatildeo dependa o brilho da pedra cristalina algo em sua

estrutura a distingue do carvatildeo ainda que sejam ambos estados alotroacutepicos do

carbono131

Como nos revela a poeta curitibana Helena Kolody (em seu poema

ldquoGestaccedilatildeordquo) ldquoDo longo sono secreto na entranha escura da terra o carbono acorda

diamanterdquo (1985 39)

Observe-se que a visatildeo de uma informaccedilatildeo esteacutetica ndash que coincide com a proacutepria

totalidade do poema implicando que qualquer mudanccedila de seus constituintes

transforma (ou ldquoperturbardquo) tal informaccedilatildeo ndash ou de um ldquoprinciacutepio construtivordquo que

privilegia a referecircncia ao significante natildeo acarreta necessariamente o conceito de que o

texto seja ldquoreceptaacuteculo de significados estaacuteveisrdquo conceito este passiacutevel de ser

depreendido da linguiacutestica estrutural ao qual se opotildee uma oacuteptica desconstrucionista De

meu ponto de vista a recriaccedilatildeo esteacutetica de um original natildeo exclui nem a mutabilidade

do signo (e particularmente de seu significado) nem a participaccedilatildeo da leitura como um

ldquoato de interpretaccedilatildeordquo que delineia os significados postuladas pela referida oacuteptica

Na concepccedilatildeo de Haroldo de Campos a ldquo[hellip] traduccedilatildeo de textos criativos seraacute

sempre recriaccedilatildeo ou criaccedilatildeo paralela autocircnoma poreacutem reciacuteproca [hellip] Numa traduccedilatildeo

dessa natureza natildeo se traduz apenas o significado traduz-se o proacuteprio signo ou seja

sua fisicalidade sua materialidade mesma (propriedades sonoras de imageacutetica visual

131 Valho-me de um recurso metafoacuterico para nova referecircncia agrave questatildeo da ldquomaterialidade siacutegnicardquo

126

enfim tudo aquilo que forma [] a iconicidade do signo esteacutetico [hellip] O significado o

paracircmetro semacircntico seraacute apenas e tatildeo-somente a baliza demarcatoacuteria do lugar da

empresa recriadora Estaacute-se pois no avesso da chamada traduccedilatildeo literalrdquo (1976 24) O

autor em seu artigo ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo refere-se agrave ldquoteoria do traduzirrdquo

de Walter Benjamin ndash outro dos fundamentos essenciais de sua concepccedilatildeo relativa agrave

traduccedilatildeo de poesia e agrave sua proacutepria atividade como tradutor ndash como um pensamento que

ldquoinverte a relaccedilatildeo de servitude que via de regra afeta as concepccedilotildees ingecircnuas da

traduccedilatildeo como tributo de fidelidade (a chamada traduccedilatildeo literal ao sentido ou

simplesmente traduccedilatildeo lsquoservilrsquo) concepccedilotildees segundo as quais a traduccedilatildeo estaacute

ancilarmente encadeada agrave transmissatildeo do conteuacutedo do originalrdquo (1981 179)

Enfatizando tratar-se ldquodo caso de traduccedilatildeo de mensagens esteacuteticas obras de arte

verbalrdquo ou seja afirmando a especificidade desse tipo de obra e consequentemente a

singularidade de uma abordagem tradutoacuteria a ela dirigida Haroldo considera que ldquona

perspectiva benjaminiana da lsquoliacutengua purarsquo o original eacute quem serve de certo modo agrave

traduccedilatildeo no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteuacutedo inessencial

da mensagem [hellip] e permite dedicar-se [hellip] [agrave] lsquofidelidade agrave reproduccedilatildeo da formarsquo que

arruiacutena aquela outra [hellip] estigmatizada por W B como o traccedilo distintivo da maacute

traduccedilatildeo lsquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrsquo rdquo Nesse sentido Haroldo

postula que a teoria benjaminiana eacute ldquoorientada pelo lema rebelionaacuteriordquo de uma

ldquotraduccedilatildeo luciferinardquo (p 180)

Podemos ver em tal concepccedilatildeo de recriaccedilatildeo que toma como referecircncia a

materialidade do signo linguiacutestico se natildeo um questionamento expliacutecito aos ditos

ldquosignificados estaacuteveisrdquo uma impliacutecita visatildeo de sua efemeridade ligada agrave secundaacuteria

importacircncia para o poema e consequentemente para a traduccedilatildeo da obra de arte verbal

Natildeo seria absurdo vincular o que Benjamin considera ldquoconteuacutedo inessencialrdquo com uma

qualidade que poderia ser uma das justificativas de sua inessencialidade seu aspecto

instaacutevel ou mutaacutevel Campos entende a traduccedilatildeo do ldquomodo de intencionalidaderdquo (Art

des Meinens) benjaminiano como a traduccedilatildeo da forma ldquouma forma significante

portanto intracoacutedigo semioacuteticordquo (ib) Para ele isso ldquoquer dizer em termos

operacionais de uma pragmaacutetica do traduzir re-correr o percurso configurador da

funccedilatildeo poeacutetica reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o enquanto

dispositivo de engendramento textual na liacutengua do tradutor para chegar ao poema

127

transcriado como re-projeto isomoacuterfico do poema originaacuteriordquo (p 181 grifo meu)

Segundo ele o ldquotradutor de poesia eacute um coreoacutegrafo da danccedila interna das liacutenguas tendo

o sentido [o ldquoconteuacutedordquo][hellip] [apenas] como bastidor semacircntico ou cenaacuterio

pluridesdobraacutevel dessa coreografia moacutevelrdquo (p 181 grifo meu) Fica creio evidente

neste ponto a natildeo-incompatibilidade entre uma visatildeo do ato de traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo

esteacutetica e uma oacuteptica ldquopoacutes-estruturalistardquo que preconize a inexistecircncia de significados

estaacuteveis originais Sobre a ldquocoreografia moacutevelrdquo que caracterizaria a traduccedilatildeo de poesia

Haroldo afirma tratar-se de ldquopulsatildeo dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea

do texto original jaacute preacute-formado numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo (p 181 grifo meu) Natildeo seria cabiacutevel vermos a afirmada

dissolvecircncia da ldquodiamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto originalrdquo ndash portanto uma

transformaccedilatildeo de uma estrutura que para tanto natildeo pode ser uma meta fixa a ser

atingida ndash como uma metaacutefora da inexistecircncia do original como objeto estaacutevel Ideia

compatiacutevel com o que o criador do desconstrucionismo Jacques Derrida enfatiza em

seu ensaio ldquoTorres de Babelrdquo dedicado a ldquoA tarefa do tradutorrdquo de W Benjamin ldquoO

original se daacute modificando-se esse dom natildeo eacute o de um objeto dado ele vive e sobrevive

em mutaccedilatildeo lsquoPois na sobrevida que natildeo mereceria esse nome se ela natildeo fosse mutaccedilatildeo

e renovaccedilatildeo do vivo o original se modifica Mesmo para as palavras modificadas existe

ainda uma poacutes-maturaccedilatildeorsquo [citaccedilatildeo de W B]rdquo (2002 38)

Valendo-se de noccedilotildees da cristalografia (ldquoCiecircncia da mateacuteria cristalizada das leis

que regem sua formaccedilatildeo de sua estrutura de suas propriedades geomeacutetricas fiacutesicas e

quiacutemicasrdquo) Campos propotildee como se mencionou o conceito de ldquoisomorfismordquo para a

designaccedilatildeo da operaccedilatildeo de traduzir poesia Para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra

liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a

da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo

diferentes enquanto linguagem mas como os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro

de um mesmo sistemardquo Segundo o Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa

ldquoisomorfismordquo pode ser definido como ldquofenocircmeno pelo qual duas ou mais substacircncias

de composiccedilatildeo quiacutemica diferente se apresentam com a mesma estrutura cristalinardquo

(2001 1656) conforme a Larousse satildeo isomorfas ldquoduas substacircncias quiacutemicas que

apresentam a mesma estrutura cristalinardquo sendo que tais substacircncias ldquogeralmente

possuem um grande parentesco de constituiccedilatildeo quiacutemica e tecircm a propriedade de poderem

substituir-se mutuamente na formaccedilatildeo de um mesmo cristal chamado lsquosoluccedilatildeo soacutelidarsquo rdquo

128

(p 3252) Substacircncias portanto diversas mas capazes de substituiccedilatildeo muacutetua por

analogia de estrutura

Em uma nota agrave ldquoNota de Haroldo de Campos agrave traduccedilatildeordquo do poema ldquoBlancordquo

de Octavio Paz o tradutor observa que jaacute procurara antes (no ensaio ldquoDa traduccedilatildeo

como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo escrito em 1962 e publicado originalmente em 1963)

ldquodefinir a traduccedilatildeo criativa (lsquorecriaccedilatildeorsquo lsquotranscriaccedilatildeorsquo) como uma praacutetica isomoacuterfica

(no sentido da cristalografia envolvendo a dialeacutetica do diferente e do mesmo) uma

praacutetica voltada para a iconicidade do signo para as qualidades materiais desterdquo (1986

89) E prossegue afirmando que mais tarde preferiria ldquousar o termo paramorfismo para

descrever a mesma operaccedilatildeo acentuando no vocaacutebulo (do sufixo grego paraacutendash lsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquo) o aspecto diferencial dialoacutegico do processo

[]rdquo132

Referindo-se em sua ldquoNotardquo agrave traduccedilatildeo que realizara do poema de Paz

Haroldo frisa que ldquoos lsquodesviosrsquo semacircnticos ou sintaacuteticos no texto em portuguecircs

responderam a precisas opccedilotildees transformadoras de natureza lsquoparamoacuterficarsquo rdquo (p 89)

Como se pode constatar tais observaccedilotildees enfatizam o aspecto da transformaccedilatildeo

do original realizada pela praacutetica da traduccedilatildeo o tradutor vecirc como tarefa sua natildeo o

resgate de significados originais mas sim a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em outra liacutengua da

ldquoentretrama das figuras fonossemacircnticasrdquo (p 89) ou seja da teia de ldquosignificantesrdquo

cujas relaccedilotildees internas caracterizariam mais o poema do que seus ldquosignificadosrdquo natildeo

priorizados na abordagem tradutoacuteria Busca-se a criaccedilatildeo em outro idioma de obra

esteticamente anaacuteloga agrave original com todas as possibilidades de transformaccedilatildeo de seus

elementos sejam estes vistos como signos em sua integridade ou de maneira

dicotomicamente parcial como seu ldquoconteuacutedordquo ou seja seu valor semacircntico no caso

de ldquoBlancordquo palavras iguais em ambas as liacutenguas (inclusive em seus aspectos

denotativo e conotativo) podem ser e satildeo mudadas tendo-se em vista criteacuterios de ordem

esteacutetica

Tal empresa luciferina eacute caracteriacutestica do tradutor como recriador ou (como o

denomina Haroldo) do ldquotradutor usurpadorrdquo que ldquopassa por seu turno a ameaccedilar o

original com a ruiacutena da origemrdquo sendo esta para ele ldquoa uacuteltima lsquohybrisrsquo do tradutor

luciferino [a palavra grega hybrisdiga-se refere-se a um orgulho desafiador que podia

132 A nota em questatildeo reproduz o paraacutegrafo inicial do jaacute referido artigo ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo

(1983)

129

provocar a necircmesis ou seja a indignaccedilatildeo dos deuses] transformar por um aacutetimo o

original na traduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo Reencenar a origem e a originalidade como

plagiotropia como lsquomovimento infinito da diferenccedilarsquo (Derrida) e a miacutemesis como

produccedilatildeo dessa diferenccedilardquo (1984 7 grifo meu)

A recriaccedilatildeo de um poema natildeo soacute natildeo seria por tais caminhos uma versatildeo fiel do

ldquoconteuacutedordquo do original como tambeacutem natildeo seria fiel nem agrave liacutengua de origem nem agrave

liacutengua de chegada em termos dos limites de uma ou de outra tanto relativamente a seus

ldquosignificadosrdquo como a sua sintaxe Assim ligando-se a uma tradiccedilatildeo do pensamento

romacircntico alematildeo que inclui as ideias de Schleiermacher de Rudolf Pannwitz e do

proacuteprio Benjamin a atividade da traduccedilatildeo poeacutetica poderia envolver a ampliaccedilatildeo dos

limites das liacutenguas como agente transformador de ambas as envolvidas no processo

Para Haroldo de Campos na traduccedilatildeo de poesia ldquocomo que se desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeo aquela fragiacutelima beleza aparentemente intangiacutevel que

nos oferece o produto acabado numa liacutengua estrangeira E que no entanto se revela

suscetiacutevel de uma vivissecccedilatildeo implacaacutevel que lhe revolve as entranhas para trazecirc-la

novamente agrave luz num corpo linguiacutestico diverso Por isso mesmo a traduccedilatildeo eacute criacuteticardquo

(1976 31)

Referindo-se ao procedimento que considera adequado agrave tarefa de traduccedilatildeo

Campos assim sintetiza suas etapas

Pedagogicamente o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor-poeta) seria o

seguinte descobrir (desocultar) [] o coacutedigo de ldquoformas significantesrdquo [pelo qual]

o poema representa a mensagem [] (qual a equaccedilatildeo de equivalecircncia de

comparaccedilatildeo eou contraste de constituintes levada a efeito pelo poeta para

construir o seu sintagma) em seguida reequacionar os constituintes assim

identificados de acordo com criteacuterios de relevacircncia estabelecidos ldquoin casurdquo e

regidos em princiacutepio por um isoformismo icocircnico que produza o mesmo sob a

espeacutecie da diferenccedila na liacutengua do tradutor (paramorfismo com a ideia de

paralelismo como em paraacutefrase em paroacutedia ou em paragrama seria um termo

mais preciso afastando a sugestatildeo de ldquoigualdaderdquo na transformaccedilatildeo contida no

130

prefixo grego ldquoiso-rdquo) Os mecanismos da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo instruiriam essa

ldquooperaccedilatildeo metalinguiacutesticardquo por assim dizer de segundo grau133

Numa visatildeo que considere a iconicidade do signo esteacutetico e portanto a

existecircncia de uma dimensatildeo fiacutesica ou material do signo o poema tambeacutem resulta da

ldquoleiturardquo de seu proacuteprio criador A ldquoleiturardquo do autor ndash concomitante a sua criaccedilatildeo ndash e a

leitura criacutetica satildeo (proponho que se considere este horizonte) poacutelos de uma mesma

realidade indissociaacutevel que assume diferentes configuraccedilotildees conforme as

peculiaridades com que se estabelecem

Vale enfatizar que o conceito de isomorfismo envolvido no processo de traduccedilatildeo

de um poema ndash o ldquoredesenhorsquo dele em outra liacutengua ndash inclui a criaccedilatildeo e a leitura tanto

do original (que se recria ao ser desvendado por vivissecccedilatildeo processo que envolve ndash e

aiacute estaacute o plano do horizonte a que me referi ndash natildeo soacute as descobertas de seus elementos

constituintes mas a criaccedilatildeo destes na medida em que somente se reconhece o que se

pode ver e o que se vecirc inclui a determinaccedilatildeo ndash limite seletividade e mesmo projeccedilatildeo ndash

de quem vecirc) como da traduccedilatildeo que por ser tambeacutem criada pode converter-se em

ldquooriginalrdquo transformando a obra anterior em sua ldquotraduccedilatildeordquo e portanto revelando sua

potencialidade de mutaccedilatildeo e seu aspecto de incompletude uma vez que o movimento a

transformaccedilatildeo funcionaraacute como acreacutescimo uma nova dimensatildeo de existecircncia ndash no

processo ambas as criaccedilotildees se transformam pela ldquoleiturardquo reciacuteproca que se fazem

(Abra-se aqui um parecircntese complementar a fim de se fazer referecircncia ao

conhecido conceito relativo agrave abordagem do texto literaacuterio a partir de uma perspectiva

funcionalista representado pela ideia de contraposiccedilatildeo entre o ldquocristalrdquo e a ldquochamardquo134

Em vez de se entender o ldquocristalrdquo tal como se pode fazecirc-lo a partir das afirmaccedilotildees de

Leacutevi-Strauss relativas agrave ceacutelebre anaacutelise que empreendera de ldquoLes chatsrdquo de Baudelaire

em parceria com Jakobson ndash segundo as quais a obra seria ldquoum objeto que uma vez

criado pelo autor possuiacutea a rigidez por assim dizer do cristalrdquo e a anaacutelise consistia em

explicitar ldquosuas propriedadesrdquo (Bellei 1986 188) ndash de que ele seja um ldquoobjeto isolado

do espectadorrdquo ldquocontrolado em sua essecircncia e portanto em todas as suas

133 CAMPOS H de ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo In OLIVEIRA Ana

Claacuteudia SANTAELLA Lucia (org) Semioacutetica da literatura Satildeo Paulo Educ 1987 pp 53-74

(Cadernos PUC vol 28) 134 Tal oposiccedilatildeo de teor metafoacuterico entre o cristal e a chama encontra-se em fontes tanto literaacuterias como

teoacuterico-criacuteticas Refiro-me aqui no entanto acerca do uso conceitual de tal metaacutefora agrave obra O cristal em

chamas de Seacutergio Bellei (1986)

131

manifestaccedilotildeesrdquo (ib) (inclusive deduz-se em seu plano de conteuacutedo ou seja em seus

ldquosignificadosrdquo) pode-se entendecirc-lo como estrutura de ldquosignificantesrdquo (ligados a

significados instaacuteveis) de relaccedilotildees sonoras ou imageacuteticas que seratildeo desveladas a partir

da leitura e mesmo modificadas por esta produzindo-se o sentido por meio das relaccedilotildees

estabelecidas entre o observador e o imposto pela leitura o resultado eacute a recriaccedilatildeo do

sentido que combina os aspectos estruturais identificados e os ldquosignificadosrdquo como satildeo

compreendidos Tal ideia seria compatiacutevel com aquela haroldiana de ldquocristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo o cristal natildeo eacute fixo e imutaacutevel mas passiacutevel de refluidificaccedilatildeo

(Neste sentido a tiacutetulo de curiosidade mencione-se uma recente experiecircncia cientiacutefica

que teria demonstrado que no interior do cristal em nanoescala materiais magneacuteticos

emitem uma espeacutecie de ldquochama magneacuteticardquo ldquoum processo muito semelhante ao

produzido por uma substacircncia inflamaacutevel pegando fogordquo135

Tal fato nos permitiria uma

nova metaacutefora a da ldquochama no cristalrdquo aludindo-se agrave ideia de que um texto

caracterizado pela informaccedilatildeo esteacutetica comparado a um cristal abrigaria em si mesmo

a chama de sua mutabilidade ou fluididade))

C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo

Poesia vem do substantivo grego poiacuteesis ligado ao verbo poieacuteo que significa

fazer produzir fabricar criar Assim transcriar um poema eacute fazecirc-lo de novo Mas

tambeacutem seraacute fazer de novo o novo renovar o poema de origem seguindo o lema make

it new proposto pelo poeta e tradutor norte-americano Ezra Pound Ao transcriar um

poema segundo a concepccedilatildeo de Haroldo de Campos seraacute preciso pensar em uma vez

conhecida sua ldquoformardquo fazer um novo poema inserido em novo lugar e novo tempo em

vez de se fazer uma ldquoarqueologiardquo de sua funccedilatildeo social cultural ou histoacuterica136

Assim

ao traduzir um haicai (modelo claacutessico japonecircs de poema breve) de Bashocirc em vez de

ser apenas ldquofielrdquo a seu conteuacutedo ou mesmo a certos aspectos ldquosociaisrdquo da praacutetica dessa

poesia na eacutepoca Haroldo procura recriar em portuguecircs um poema dotado de

visualidade (a escrita ideogracircmica eacute visual por natureza) e capaz de re-produzir a

135Referecircncia a uma experiecircncia realizada por Yoko Suzuki da Universidade City College inspirada no

trabalho de Eugene Chudnovsky (Lehman College) que em conjunto com Dmitry Garanin elaborou

uma teoria segundo a qual as chamas magneacuteticas satildeo possiacuteveis 136 A questatildeo se esclarece por meio de conceituaccedilatildeo de Campos baseada em proposiccedilotildees de Wolfgang

Iser o tema seraacute tratado em texto complementar a este toacutepico anunciado e incluiacutedo adiante

132

concisatildeo do original137

valendo-se por exemplo da criaccedilatildeo de uma palavra nova uma

ldquopalavra-valiserdquo agrave maneira de Lewis Carroll ou James Joyce o verbo saltombar

corresponderia ao verbo tobikomu composto de tobu saltar mais komeru entrar

furu ike ya kawasu tobikomu mizu no oto

o velho tanque

ratilde saltacute

tomba

rumor de aacutegua

Pode-se causar um certo ldquoestranhamentordquo no leitor deste novo tempo e espaccedilo

embora o poema a ele se dirija renovadoramente haacute uma tendecircncia na transcriaccedilatildeo de

ldquolevar o leitor (de uma liacutengua) ao autor (de outra)rdquo privilegiando um dos dois caminhos

identificados pelo pensador romacircntico alematildeo Schleiermacher para a traduccedilatildeo (o outro

seria ldquolevar o autor ao leitorrdquo)

Renomeaccedilatildeo ldquoadacircmicardquo

Para citar apenas mais um exemplo ligado agrave atividade recriadora (ou

ldquotranscriadorardquo como prefere o tradutor) de Haroldo de Campos capaz de ilustrar

(ainda que de forma limitada a um vocaacutebulo) o processo em que ldquose desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeordquo tomemos um elemento de sua traduccedilatildeo do Berersquoshit o

Gecircnese No iniacutecio do texto aparece a expressatildeo ldquofogoaacuteguardquo correspondente agrave palavra

hebraica shamaacuteyim normalmente traduzida por ldquoceacuteurdquo Comenta a respeito do motivo

de sua opccedilatildeo o tradutor ldquo[hellip] HM [Henri Meschonic] sugere que na palavra hebraica

pode-se entrever um composto de rsquoesh (lsquofogorsquo) e maacuteyim (lsquoaacuteguarsquo) embora ele proacuteprio

natildeo tire partido desse verdadeiro lsquopictogramarsquo etimoloacutegico Dentro da ideia de uma

traduccedilatildeo lsquolaicarsquo pareceu-me que a imagem coacutesmica de um magma de fogo e aacutegua

previne a projeccedilatildeo neste ponto de um lsquoceacuteursquo abstrato jaacute conceptualizado Tanto a

137 No mesmo complemento a este texto o exemplo da transcriaccedilatildeo do haicai ao portuguecircs eacute retomado

como paradigma explicitador de procedimentos tradutoacuterios de Campos

133

componente iacutegnea como a liacutequida pertencem por outro lado agrave imaginaccedilatildeo biacuteblica de

um cosmo supraterrestrerdquo (1993 27)

Ao usar o composto ldquofogoaacuteguardquo Haroldo fornece metaforicamente um

correspondente ldquoconcretordquo (feito de dois elementos) ao ldquoabstratordquo ldquoceacuteurdquo fundamentado

numa hipoacutetese de constituiccedilatildeo etimoloacutegica que natildeo soacute alarga ndash realizando o proposto

pelos teoacutericos do romantismo alematildeo ndash os limites de nossa liacutengua causando-lhe

estranheza ao incorporar um novo constructo vocabular cuja dimensatildeo de materialidade

aponta para um pictograma mas tambeacutem modifica o original pela leitura de seu

elemento de forma a desvesti-lo de sua conceptualizaccedilatildeo prosaica e normalizadora

chamando a atenccedilatildeo para sua proacutepria composiccedilatildeo e portanto para o aspecto de sua

fisicalidade ldquoiconicizanterdquo destituindo-a assim de sua dimensatildeo meramente simboacutelica

(para referir-me ao conceito de ldquosiacutembolordquo de Charles S Peirce)

De forma anaacuteloga em suas traduccedilotildees da eacutepica grega Haroldo de Campos vale-se

frequentemente de compostos inusitados em nossa liacutengua criados agrave semelhanccedila das

composiccedilotildees vocabulares do grego Para que se observe o procedimento ldquoisordquo ou ldquoparardquo

-moacuterfico de Haroldo em relaccedilatildeo agrave eacutepica grega veja-se a parte inicial do item ldquoardquo do

terceiro capiacutetulo deste trabalho

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos

De difiacutecil consenso interpretativo o ceacutelebre ensaio de Walter Benjamin sobre

traduccedilatildeo mereceu inuacutemeras anaacutelises e interpretaccedilotildees lembrem-se por exemplo o texto

de Paul de Man Sobre A Tarefa do Tradutor de Walter Benjamin138

e o de Jacques

Derrida (Torres de Babel) Haroldo de Campos faz do texto de Benjamin uma leitura

operacionalizadora que extrai dele apesar de suas ambiguidades e contradiccedilotildees e das

diferentes interpretaccedilotildees de sua obra (por vezes atribuiacuteda ao proacuteprio caraacuteter

contraditoacuterio do conceito de origem em ldquoA tarefardquo) liccedilotildees indicadoras de aspectos da

praacutetica da traduccedilatildeo fazendo correlaccedilotildees entre as ideias de Benjamin (qualificadas por

Campos como uma metafiacutesica do traduzir) e as de Roman Jakobson (qualificadas como

uma fiacutesica do traduzir)

138In MAN Paul de A Resistecircncia agrave Teoria Lisboa Ediccedilotildees 70 1979

134

Natildeo caberaacute neste estudo a apresentaccedilatildeo das tatildeo estudadas ideias de Benjamin

(uma vez que natildeo as utilizaremos como referecircncia direta mas apenas como elemento

fundamental das reflexotildees de H de Campos sobre traduccedilatildeo) incluirei apenas um

comentaacuterio de Campos sobre as ideias do autor precedido de algumas anotaccedilotildees suas

datiloscritas e manuscritas sobre ldquoA tarefa do tradutorrdquo trata-se de uma espeacutecie de

ldquofichamentordquo do texto ndash em que se podem identificar conceitos-chaves do filoacutesofo

alematildeo acompanhados de sua denominaccedilatildeo em portuguecircs ndash a servir-lhe de fonte

interpretativa das proposiccedilotildees benjamianas139

Veja-se a seguir portanto uma das

paacuteginas de conjunto de anotaccedilotildees do autor na qual eacute explorada a ideia central em

Benjamin da existecircncia de uma ldquoiacutentima relaccedilatildeo das liacutenguas umas com as outrasrdquo

(ldquoreciprocamente parentesrdquo) uma ldquorelaccedilatildeo ocultardquo que a traduccedilatildeo natildeo alcanccedila

ldquoproduzirrdquo podendo contudo ldquore-presentaacute-lardquo

139 A paacutegina reproduzida integra um conjunto a ser incluiacutedo no mencionado volume Transcriaccedilatildeo a sair

135

Campos assim se refere a sua compreensatildeo das proposiccedilotildees benjaminianas em

seu artigo ldquoA liacutengua pura na teoria de W Benjaminrdquo140

140 O artigo foi publicado em Revista da USP no 33 marccedilo-maio de 1997 pp 161-170

136

Sob a roupagem rabiacutenica midrashista da irocircnica ldquometafiacutesicardquo do traduzir

benjaminiana um poeta-tradutor longamente experimentado em seu ofiacutecio pode

sem dificuldade depreender uma ldquofiacutesicardquo (uma praacutexis) tradutoacuteria efetivamente

materializaacutevel Essa ldquofiacutesicardquo ― como venho sustentando de haacute muito (10) ― eacute

possiacutevel reconhececirc-la in nuce nos concisos teoremas de Roman Jakobson sobre a

ldquoauto-referencialidade da funccedilatildeo poeacuteticardquo e sobre a traduccedilatildeo de poesia como

creative transposition (ldquotransposiccedilatildeo criativardquo) (11) A esses teoremas

fundamentais da poeacutetica linguiacutestica os ldquoteologemasrdquo benjaminianos conferem por

sua vez uma perspectiva de vertigem

Para converter a ldquometafiacutesicardquo benjaminiana e ldquofiacutesicardquo jakobsoniana basta repensar

em termos laicos a ldquoliacutengua purardquo como o ldquolugar semioacuteticordquo ― o espaccedilo operatoacuterio

― da ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (Undichtung ldquotranspoetizaccedilatildeordquo para W Benjamin

ldquotranscriaccedilatildeordquo na terminologia que venho propondo) O ldquomodo de significarrdquo (Art

des Meinens) ou de ldquointencionarrdquo (Art der Intentio) passa a corresponder a um

ldquomodo de formarrdquo o plano siacutegnico e sua ldquolibertaccedilatildeordquo ou ldquo remissatildeordquo (Erloesung

no vocabulaacuterio salviacutefico de Benjamin) seraacute agora entendida como a operaccedilatildeo

metalinguiacutestica que aplicada sobre o original ou texto de partida nele desvela o

percurso da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo Essa funccedilatildeo por sua natureza opera sobre a

ldquomaterialidaderdquo dos signos linguiacutesticos sobre ldquoformas significantesrdquo (fono-

prosoacutedicas e gramaticais) e natildeo primacialmente sobre o ldquoconteuacutedo

comunicacional a ldquomensagem referencialrdquo As ldquoformas significantesrdquo por sua

vez constituem um ldquointracoacutedigo semioacuteticordquo virtual (outro nome para a ldquoliacutengua

purardquo de Benjamin) exportaacutevel de liacutengua a liacutengua ex-traditaacutevel de uma idioma

para outro quando se trata de poesia O tradutor-transcriador como que

ldquodesbabeliza o stratum semioacutetico das liacutenguas interiorizado nos poemas (neles

ldquoexiladordquo ou ldquocativordquo nos termos de Benjamin) promovendo assim a

reconvergecircncia das divergecircncias a harmonizaccedilatildeo do ldquomodo de formarrdquo do poema

de partida com aquele reconfigurado no poema de chegada Essa reconstruccedilatildeo (que

sucede a ldquodesconstruccedilatildeordquo metalinguiacutestica de primeira instacircncia) daacute-se natildeo por

Abbildung (afiguraccedilatildeo imitativa coacutepia) mas por Anbildung (ldquofiguraccedilatildeo juntordquo

ldquoparafiguraccedilatildeo) comportando a transgressatildeo o ldquoestranhamentordquo a irrupccedilatildeo da

diferenccedila do mesmo

137

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura

Em dois artigos seus de grande relevacircncia publicados em perioacutedicos (um deles

mais tarde integrou uma antologia de textos sobre traduccedilatildeo) ldquoTraduccedilatildeo ideologia e

histoacuteriardquo (1993) e ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficionalidaderdquo (1989) depois denominado

ldquoTraduccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo o tradutor como transfingidorrdquo Haroldo de Campos vale-

se de conceitos do teoacuterico alematildeo Wolfgang Iser para trazer nova dimensatildeo de

esclarecimento a respeito de suas concepccedilotildees sobre transcriaccedilatildeo Por meio do texto em

que se fundamenta Campos define os contornos de sua orientaccedilatildeo aos procedimentos

tradutoacuterios seu ponto de partida se daraacute segundo um modo de abordagem do texto

baseado em sua estrutura ou seja em sua dimensatildeo estrutural modo este que

corresponde ao primeiro entre outros dois identificados por Iser A este respeito incluo

os apontamentos que se seguem (originalmente integrantes de artigo criacutetico meu a

respeito de haicai ndash modelo de poesia tradicional japonesa ndash e recriaccedilatildeo141

) que contecircm

uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica dos pontos centrais da teoria de Iser e sua utilizaccedilatildeo por H

de Campos aleacutem de outras observaccedilotildees referentes a fontes e conceitos A escolha do

haicai como objeto em que se assenta a discussatildeo justifica-se por ser um exemplo breve

e claro de modos de abordagem do texto poeacutetico e da traduccedilatildeo colaborando para uma

interpretaccedilatildeo de alguns conceitos fundadores do pensamento de Campos

[]

A questatildeo central no entanto estaacute em se determinar quais aspectos relacionados a

uma poesia nascida em outra eacutepoca e em outra cultura seratildeo considerados

essenciais por quem a toma como objeto de estudo ou como referecircncia para a

criaccedilatildeo

Podemos ateacute em relaccedilatildeo ao posicionamento diante do haikai ndash e agrave maneira de

traduzi-lo ou criaacute-lo ndash distinguir dois modos fundamentais (da forma como os

vejo) ligados aos diferentes pontos de vista identificados que por sua vez

correspondem a diferentes visotildees de literatura e poesia de modo geral assim como

de traduccedilatildeo literaacuteria e poeacutetica Definamos tais modos de forma talvez demasiado

sucinta e redutora tendo-se em conta a complexidade do tema

141ldquoSuacutebitos de luzrdquo posfaacutecio ao livro Lumes antologia de haicais de Pedro Xisto (Satildeo Paulo Berlendis amp

Vertecchia 2008)

138

O primeiro modo seraacute aquele que prioriza a estrutura do poema e portanto os

ldquofatores intratextuaisrdquo142

(isto eacute fatores internos ao texto) Esta oacuteptica pode ser

representada pela conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos que ao considerar o poema

escrito atentaraacute fundamentalmente para as relaccedilotildees entre som sentido e

visualidade no texto (no caso do haikai como se disse a escrita ideogramaacutetica

seraacute para ele uma referecircncia fundamental) Sua abordagem prevecirc tambeacutem uma

apropriaccedilatildeo dos fatores histoacutericos relativos ao texto original com o objetivo de

construir uma ldquotradiccedilatildeo vivardquo Assim em vez de se concentrar na ldquotentativa de

lsquoreconstruccedilatildeo de um mundo passadorsquo e de lsquorecuperaccedilatildeo de uma experiecircncia

histoacutericarsquordquo143

(tentativa esta coerente com o outro ponto de vista que distinguimos)

o ato de traduzir seraacute regido ldquopelas necessidades do presente da criaccedilatildeordquo o novo

texto ldquopor desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo

reinventando-ardquo144

O outro modo privilegia a funccedilatildeo do texto um conceito que permite compreender

a ldquorelaccedilatildeo do texto com seu contextordquo145

e portanto atenta para sua historicidade

para as condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que o texto nasceu Este ponto de vista

poderaacute envolver o conceito de ldquofidelidaderdquo agrave funccedilatildeo levando agrave tentativa de

produzir um poema que corresponda agraves relaccedilotildees que estabelecia com seu contexto

original Assim por exemplo seraacute desejaacutevel que um haikai de Bashocirc concebido

para ser ldquopopularrdquo em sua origem seja traduzido ou recriado em nossa liacutengua de

modo que natildeo exiba um vocabulaacuterio pouco usual ou as marcas de uma elaboraccedilatildeo

mais sofisticada Se o poema era produzido oralmente e soacute depois transcrito seraacute

mais adequado priorizar sua dicccedilatildeo oral e natildeo seus atributos visuais decorrentes

da escrita ideogramaacutetica A partir da ideia de ldquoreconstruccedilatildeo de um mundo

passado tambeacutem se poderaacute fazer na interpretaccedilatildeo de um poema a ser traduzido

ldquoo esforccedilo para sentir ou experimentar de novo a emoccedilatildeo do poetardquo (no dizer de

Suzuki146

) numa atitude que parece buscar aleacutem do resgate do papel social do

haikai conforme proposto pela escola japonesa o da intencionalidade do proacuteprio

poeta De acordo com esses pressupostos portanto um haikai criado em nossa

liacutengua (ou traduzido para ela) deveraacute guardar relaccedilatildeo com a visatildeo de mundo da

142ISER W ldquoProblemas da teoria da literatura atual o imaginaacuterio e os conceitos-chaves da eacutepocardquo In

Costa Lima Luiz Teoria da literatura em suas fontes 2ordf ediccedilatildeo Rio de Janeiro Francisco Alves 1983

P 369 143As frases provecircm do jaacute mencionado ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) O trecho citado inclui por

sua vez citaccedilotildees de Iser (op cit) 144Id p 59 (Os grifos da citaccedilatildeo satildeo do original) 145ISER op cit p 371 146SUZUKI Teiiti ldquoImpressotildees da viagem agrave China Pequim ndash fevereiro de 1980rdquo In Estudos japoneses

III Satildeo Paulo Centro de Estudos Japoneses ndash USP 1983 p 95

139

cultura de origem corresponder ao ldquoespiacuterito do haikairdquo ser simples composto de

vocabulaacuterio popular (acessiacutevel a ldquocrianccedilas e incultosrdquo147

) e natildeo ser

ldquoostensivamente trabalhadordquo deveraacute apresentar as caracteriacutesticas consideradas

essenciais (segundo Shiki148

) agrave natureza do haikai ldquoexpressatildeo direta objetiva por

meio de imagens claras sem abstraccedilotildees ou sentimentalismordquo

Se este ponto de vista centrado no conceito de funccedilatildeo privilegia a origem a

ldquogecircnese do textordquo aquele visto primeiramente ao considerar a estrutura do texto e

sua inserccedilatildeo em outro tempo e lugar ressalta a ldquovalidade do textordquo (ou seja sua

ldquovidardquo apoacutes as condiccedilotildees histoacutericas em que nasceu) que prevecirc ldquoum modelo de

interaccedilatildeo entre texto e leitorrdquo149

Enfatizar portanto a estrutura do texto e sua

interaccedilatildeo com o leitor permitiraacute um desapego da ideia de reconstruir um mundo

passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato da leitura e da

recriaccedilatildeo) indo ao encontro do conceito ldquomake it newrdquo (tornar novo renovar) do

poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972)

Neste caso um texto ao ser traduzido sofreraacute a interferecircncia do contexto em que eacute

lido sua estrutura seraacute reconfigurada e a partir disso sua funccedilatildeo seraacute novamente

determinada De modo semelhante um poema criado a partir de um modelo

proveniente de outra eacutepoca outro lugar e outra cultura procuraraacute reinventar esse

modelo tal como o autor o vecirc no novo contexto150

Concentrando-se na linguagem e nas ldquonecessidades do presente da criaccedilatildeordquo seraacute

possiacutevel a um criador ou tradutor optar por outros paracircmetros formais que

considere adequados (com base em seus proacuteprios conceitos esteacuteticos) agrave produccedilatildeo

do poema em seu novo contexto No caso de Haroldo de Campos sua opccedilatildeo seraacute

em suas traduccedilotildees a de privilegiar a ldquocontinuidade visualrdquo do haikai adotando

para isso uma ldquodisposiccedilatildeo mais espacial que rompe o esquema usual do

tercetordquo151

tambeacutem natildeo usaraacute o padratildeo meacutetrico original preferindo adotar ldquoum

verso livre extremamente breve como moacutedulo de composiccedilatildeordquo descartaraacute ainda o

uso de rimas []

147FRANCHETTI op cit pp 46-47 148As caracteriacutesticas apontadas por Shiki satildeo mencionadas em Franchetti op cit p 28 149CAMPOS H ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficcionalidaderdquo In 34 letras nuacutemero 3 Rio de Janeiro 1989 P 90

Campos cita Iser para quem ldquoo modelo da interaccedilatildeo entre texto e leitor eacute fundamental para o conceito de

comunicaccedilatildeordquo (op cit p 365) (Ver nota seguinte) 150A abordagem de Campos que considera fundamentalmente a estrutura do texto (pois eacute nela que para

ele ldquoatua por excelecircncialdquo a recriaccedilatildeo ndash ou ldquotranscriaccedilatildeordquo como prefere denominar) aponta tambeacutem para

o terceiro daqueles que para Wolfgang Iser satildeo os ldquoconceitos-chaverdquo que ldquoconstituem os conceitos de

orientaccedilatildeo central na anaacutelise da literaturardquo ldquoestrutura funccedilatildeo e comunicaccedilatildeordquo 151CAMPOS H ldquoHaicai homenagem agrave siacutenteserdquo Op cit p 60 Veja-sea traduccedilatildeo que Campos realizou

de um poema de Buson e de outro de Bashocirc (o famoso ldquoum velho tanque []rdquo)

140

C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada

No livro Menis ndash a ira de Aquiles em que apresenta sua traduccedilatildeo do Canto I

da Iliacuteada Haroldo de Campos faz comentaacuterios sobre seus propoacutesitos tradutoacuterios

ausentes da ediccedilatildeo do poema completo (que conta com introduccedilatildeo no volume I de

Trajano Vieira) Esses comentaacuterios satildeo bastante esclarecedores sobre seus pontos de

vista acerca de traduccedilatildeo da eacutepica grega que complementam as informaccedilotildees jaacute

discutidas neste estudo Assim eacute importante que se incluam aqui trechos de sua

apresentaccedilatildeo ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo citados a seguir Apoacutes dizer de sua opccedilatildeo pelo

dodecassiacutelabo (em trecho jaacute antes citado) Campos afirma ldquo[] Busquei por um lado

preservar a melopeia homeacuterica (que Ezra Pound considerava inexcediacutevel) e por outro

estabelecer uma correspondecircncia verso a verso com o original (ou seja obter em

portuguecircs o mesmo nuacutemero de versos do texto grego)rdquo (1994 14) E prossegue

anunciando o que considerava entatildeo sua tarefa total

Estou empenhado em recriar em nossa liacutengua quanto possiacutevel a forma de

expressatildeo (no plano focircnico e riacutetmico-prosoacutedico) e a forma do conteuacutedo (a

logopeia o desenho sintaacutetico a poesia da gramaacutetica) do Canto I da Iliacuteada

Longe de mim a intenccedilatildeo excessiva para meus propoacutesitos de uma traduccedilatildeo

integral do poema Desejo tatildeo-somente constituir um modelo intensivo um

paradigma atual e atuante de transcriaccedilatildeo homeacuterica

Como sabemos Campos foi aleacutem do inicialmente pretendido traduzindo toda a

Iliacuteada e teria conforme se sabe de sua intenccedilatildeo posterior traduzido toda a Odisseia se

isso lhe tivesse sido possiacutevel (desse poema deixou-nos apenas fragmentos dos quais

tomaremos alguns para anaacutelise) Seu trabalho como revela dialoga com o de Mendes

Por um lado retomo o legado ateacute certo ponto arcaizado de Odorico com cujas

soluccedilotildees meu texto frequentemente dialoga por outro com o escopo de dar uma

nova vitalidade ao verso traduzido mobilizo todos os recursos do arsenal da

moderna poeacutetica nesse sentido (desde logo haacute a considerar em mateacuteria de

retomada eacutepica o exemplo de dicccedilatildeo dos Cantos de Ezra Pound []) Estou

persuadido pelo caminho ateacute aqui percorrido de que do transcriador da rapsoacutedia

homeacuterica se requer no plano da fatura poeacutetica uma atenccedilatildeo microloacutegica agrave

elaboraccedilatildeo poeacutetica de cada verso (paronomaacutesias aliteraccedilotildees ecos onomatopeias)

141

aliada a uma precisa teacutecnica de cortes remessas e encadeamentos fraacutesicos (o

tradutor no caso deveraacute comportar-se corno um coreoacutegrafo ou diagramador

sintaacutetico)

Aparece em seguida como proposta tradutoacuteria a ideia de ldquovivificaccedilatildeordquo do verso

traduzido que como se sabe associa-se ao conceito make it new de Pound e agrave

abordagem do texto de modo a considerar sua validade sua inserccedilatildeo em outro contexto

(acircmbito da comunicaccedilatildeo na conceituaccedilatildeo de Iser)

Recuperaccedilotildees etimoloacutegicas (por exemplo a que levei a efeito no verso 47

traduzindo nyktigrave eoikoacutes por iacutecone da noite em lugar de semelhante agrave noite

Odorico agrave noite semelha C A Nunes) podem estrategicamente aplicadas

vivificar o verso em portuguecircs Assim tambeacutem no caso dos epiacutetetos (liccedilatildeo

premonitoacuteria de Odorico que natildeo se deve descartar neste ponto mas aperfeiccediloar

criteriosamente) este efeito vitalizador pode ser obtido atraveacutes da cunhagem de

compostos isomorfos em relaccedilatildeo a essas virtuais ldquometaacuteforas fixasrdquo que brasonam

os heroacuteis gregos e seus deuses

O tradutor lanccedilaraacute matildeo muitas vezes da criaccedilatildeo de compostos embora de modo

diverso do de Odorico por fazer-se com frequecircncia pela simples justaposiccedilatildeo ldquopeacutes-

velozesrdquo (para Odorico ldquovelociacutepederdquo) ldquodoma-corceacuteisrdquo ldquobom-pugilistardquo etc Valoriza-

se como era de se esperar o trocadilho

Por vezes toda uma precisa carga retoacuterica pode estar encapsulada num simples

trocadilho que mobiliza som e sentido e que portanto ao inveacutes de rasura

desatenta demanda reconfiguraccedilatildeo no texto traduzido veja-se o v 231

demoboacuteros basileuacutes epeigrave outidanorsin anaacutesseis

Odorico traduz

Cobardes reges vorador do povo

recuperando o demoboacuteros com a foacutermula paronomaacutestica vorador do povo

C A Nunes menos feliz mais discursivo escreve

142

Devorador do teu povo Natildeo fosse imprestaacutevel Atrida toda esta gente

O tradutor fornece em seguida a sua versatildeo moldada pela ldquolei da

compensaccedilatildeordquo

[] procurei reconstituir sonora e semanticamente com o maacuteximo de economia o

jogo de palavras que nas traduccedilotildees consultadas [incluindo-se a de Robert

Fitzgerald e a de Robert Fagles] passou em branco

Devora-Povo Rei dos Dacircnaos Rei de nada

Observe-se que no texto portuguecircs o trocadilho expandiu-se em paronomaacutesia (dos

DAcircNAos de NADA) enquanto em grego outiDANoicircsin repercute sonoramente

no verbo ANAacutesseis (anaacutessein reinar sobre regendo um dativo no caso) Lei da

compensaccedilatildeo regra de ouro da traduccedilatildeo criativa

Como se vecirc Haroldo de Campos eacute um desses casos um tanto raros de poeta e

tradutor que se ocupou de conceituar e descrever procedimentos e expedientes seus

gerando uma ampla sustentaccedilatildeo para a leitura das traduccedilotildees que empreendeu Sobre a

compensaccedilatildeo diga-se que ocorrem com frequecircncia em suas traduccedilotildees o que seria

denominado por Joseacute Paulo Paes de ldquosobrecompensaccedilatildeordquo ndash uma soluccedilatildeo que

acrescenta recursos de linguagem poeacutetica norteado pela conceituaccedilatildeo de funccedilatildeo poeacutetica

da linguagem e de ldquoiconizaccedilatildeordquo do signo verbal Campos tende agrave concentraccedilatildeo de

efeitos que pode ultrapassar o que se depreende do original

Na convergecircncia de teoria e praacutetica revela-se uma amplitude de conduta que

permite a diversidade de resultados ditados pela identidade uacutenica de cada

empreendimento recriador natildeo haacute preceitos estritos a serem seguidos como ldquoreceitardquo

mas uma recomendaccedilatildeo fundamentada de hyacutebris criadora de ousadia na transposiccedilatildeo

criativa

A hyacutebris do tradutor ndash preceito indispensaacutevel desse ponto de vista para a

traduccedilatildeo desvinculada da tradiccedilatildeo de subserviecircncia ao original ndash jaacute encontra expressatildeo

na proacutepria apresentaccedilatildeo da Iliacuteada os volumes trazem como autor Haroldo de Campos

143

reservando-se ao tiacutetulo a forma Iliacuteada de Homero Trata-se da assunccedilatildeo pelo tradutor

do status de autor de criador de obra autocircnoma embora paramoacuterfica152

152 Esse modo de apresentaccedilatildeo decorrente de um conceito sobre a proacutepria tarefa do tradutor encontra ndash

mencione-se ndash antecedecircncia no paiacutes em livros de poesia traduzidos por Guilherme de Almeida Poetas

de Franccedila (1936) Paralelamente a Paul Verlaine (1944) (cujo tiacutetulo permite entrever o conceito de

ldquocanto paralelordquo) e Flores das ldquoFlores do malrdquo de Charles Baudelaire (1944) todos tendo como autor o

poeta paulista

144

Capiacutetulo III

A Vozes para Homero

A simple instance is the preservation of an object not only through the

meanings of the words which deal with it but also through their sound

as when Pope in his translation of a passage of the Iliad describing chariots rackering down a hillside

tries to put Homeracutes description into English words that shall not only correspond in meaning to the

meaning of Homeracutes words but shall also repeat in a different metrical structure and in the sound-system

of English the market onomatopoeia of the original

First march the heavy Mules securely slow

Orsquoer Hills orsquoer Dales orsquoer Crags orsquoer Rocks they go (XXIII 138-9)

Winifred Nowottny153

Este capiacutetulo teraacute por objetivo a anaacutelise de diferentes versotildees em portuguecircs de

fragmentos do Canto I e do Canto IX da Iliacuteada de Homero Do Canto I seratildeo extraiacutedos

apenas dois versos (33-34) considerando-se inicialmente trecircs traduccedilotildees (a de Odorico

Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de Campos) agraves quais se agrega depois uma

quarta (de Andreacute Malta154

) do Canto IX seratildeo tomados os versos 177 a 198

considerando-se as versotildees dos quatro tradutores referidos

Para tanto o ponto de partida seraacute a abordagem de caracteriacutesticas gerais da

poesia eacutepica grega observando-se depois aspectos dos mencionados fragmentos seratildeo

apresentados como referenciais teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica alguns conceitos

centrais relativos ao tema e os pontos de vista dos tradutores escolhidos considerando-

se seus fundamentos e propoacutesitos as soluccedilotildees encontradas nas diferentes traduccedilotildees

seratildeo estudadas essencialmente agrave luz de suas proacuteprias diretrizes e o cotejamento destas

serviraacute a alguma anaacutelise comparativa dos diversos resultados

153 NOWOTTNY Winifred The language poets use London The Athlone Press 1972 p 3 154 Andreacute Malta Campos eacute professor de liacutengua e literatura grega na FFLCH da USP estudioso e tradutor

da obra homeacuterica

145

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade

A poesia homeacuterica eacute entendida hoje como resultante de um processo oral de

composiccedilatildeo ligado agrave tradiccedilatildeo de uma cultura marcada pela oralidade Segundo

Havelock155

[] presume-se que o tipo de composiccedilatildeo oral no qual os gregos se comprazeram

e pode-se dizer que aperfeiccediloaram deve ter sido uma histoacuteria milenar recuando ao

fundo da experiecircncia de todas as sociedades preacute-letradas mas civilizadas e suas

regras fundamentais deitam raiacutezes nessa histoacuteria O estranho poder dos claacutessicos

gregos arcaicos deve-se em primeiro lugar natildeo agrave inspiraccedilatildeo mas ao que eles tecircm

de comum com a teacutecnica e com o propoacutesito desse modo preacute-histoacuterico de

composiccedilatildeordquo (1996 14)

Desde a famosa tese de Milman Parry e seus trabalhos posteriores156

ndash que

procuram estudar o estilo da obra homeacuterica identificando de modo ldquopraacuteticordquo os

elementos que o caracterizam ndash a ldquofoacutermulardquo eacute definitivamente vista como um

componente fundamental do meacutetodo oral de composiccedilatildeo podendo-se conceituaacute-la como

uma expressatildeo usada de forma regular sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas a fim de

expressar uma ideia essencial Como demonstra Parry seguindo a esteira de Duumlntzer

(1872) as foacutermulas apresentam um aspecto funcional no caso dos epiacutetetos sempre que

no poema se vincular um atributo a determinado heroacutei em determinada extensatildeo do

hexacircmetro dactiacutelico (padratildeo meacutetrico da eacutepica grega)157

seraacute usada a mesma expressatildeo

formular Como seu emprego eacute funcionalmente ligado agraves necessidades e agraves

peculiaridades da composiccedilatildeo oral a foacutermula integraraacute o aspecto ornamental do poema

sem que precise ter significado especiacutefico em certa passagem assim seratildeo relevantes

antes suas caracteriacutesticas esteacuteticas do que semacircnticas

155 HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Campinas Papirus 1996 156 Referecircncia ao texto ldquoLacuteacuteEpithegravete traditionelle dans Homerrdquo publicado originalmente em 1928 e os

demais estudos do autor recolhidos (numa versatildeo em liacutengua inglesa) por Adam Parry no volume The

making of homeric verse ndash collected papers of Milman Parry Oxford 1971 157 O hexacircmetro dactiacutelico (verso formado por cinco peacutes daacutectilos e um cataleacuteptico ou seja falto de uma siacutelaba) eacute o padratildeo utilizado na eacutepica grega pode ser representado basicamente com a silaba breve

simbolizada pela braacutequia (U) e a siacutelaba longa pelo maacutecron (ndash) da seguinte forma ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU

ndash UU ndashU Mencione-se que duas siacutelabas breves podem ser substituiacutedas por uma longa em todos os peacutes

com exceccedilatildeo do quinto (a substituiccedilatildeo neste peacute ocorre muito raramente este fato eacute relevante para a

proposta que faremos em capiacutetulo posterior de possiacutevel padratildeo meacutetrico para a traduccedilatildeo da eacutepica) a

uacuteltima siacutelaba do verso breve tambeacutem pode ser uma longa integrando assim um daacutectilo

146

Ainda que como sustenta Havelock o essencial para Homero fosse ldquosem

sombra de duacutevidardquo a narrativa (A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia 1996 79) e

(conforme esse autor empenhou-se em demonstrar) sua poesia tivesse tambeacutem um

niacutetido papel ldquoenciclopeacutedicordquo ndash fazendo parte dela elementos didaacuteticos e informativos ao

cidadatildeo que incluiacuteam padrotildees de comportamento ndash tecircm sido objeto constante de

estudos apoacutes as descobertas de Parry ldquoo modo como aquela poesia foi feitardquo passando

ldquoa interessar menosrdquo ldquoo que aquela poesia nos contardquo (Oliveira 2006 xi) Ainda que se

possa criticar este ponto de vista ndash por implicar a menor consideraccedilatildeo do ldquoconteuacutedordquo

narrativo dos poemas ndash eacute evidente que as observaccedilotildees e constataccedilotildees de ordem formal

(que diga-se podem ir aleacutem da identificaccedilatildeo dos ldquomecanismos de oralidaderdquo) lanccedilam

luz sobre a natureza dessa poeacutetica bem como explicitam uma forma de utilizaccedilatildeo de

elementos esteacuteticos que por sua vez poderaacute servir de referecircncia a possiacuteveis

comparaccedilotildees com paracircmetros proacuteprios da ldquocultura letradardquo e particularmente da

cultura ocidental moderna (com seus conceitos acerca de poesia)

Segundo Peabody citado por Havelock o estilo oral especiacutefico de composiccedilatildeo eacute

ldquodetectaacutevel atraveacutes de criteacuterios que definem cinco tipos de lsquoredundacircnciarsquo ou

lsquoregularidadersquo na linguagem Vecircm a ser eles padrotildees fonecircmicos como rima ou

assonacircncia padrotildees formulares constatados em lsquofeixes morfecircmicosrsquo recorrentes

padrotildees perioacutedicos ou sintaacuteticos padrotildees temaacuteticos [] e lsquoindicador de cantorsquordquo (1996

150) Peabody examina a estrutura do hexacircmetro (como se refere Havelock) em termos

de coacutelon (ldquocombinaccedilatildeo de peacutes [] formando uma unidaderdquo158

) e de foacutermula Sobre esta

diz Havelock159

As foacutermulas (tornadas familiares [] pela obra de Milman Parry) satildeo examinadas

do ponto de vista da configuraccedilatildeo desses membros meacutetricos como constituiacutedas por

cola [plural de coacutelon] simples ou agregados de cola Os mais longos usualmente

formam hemistiacutequios [] Esses vaacuterios componentes do verso permite ao cantador

entoaacute-los apoiado no fato de que expressotildees e ritmos da fala ordinaacuteria [] se

refletem na sua composiccedilatildeo (1996 152)

158 MOISEacuteS Massaud Dicionaacuterio de termos literaacuterios Satildeo Paulo Cultrix 1978 159 HAVELOCK Eric A A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturais Satildeo Paulo

Unesp Rio de Janeiro Paz e Terra 1996

147

Para Havelock Peabody ldquose ateacutem com firmeza agraves realidades fonecircmicas

subjacentes ao processo de composiccedilatildeo genuinamente oralrdquo

Ele ouve o cantador que compotildee cola articulados em foacutermulas articula foacutermulas

em aglomerados temaacuteticos encerrando-os em hexacircmetros a aos hexacircmetros em

estacircncias a seguir o comando das formas foneacuteticas das palavras por uma espeacutecie

de automatismo psicoloacutegico (p 161)

Havelock observa que ldquoeacute nisso e natildeo na formaccedilatildeo ou busca de lsquoideiasrsquo como

enfatiza corretamente Peabody [para este a histoacuteria contada na epopeia eacute um traccedilo

secundaacuterio] que reside o segredo da composiccedilatildeo oralrdquo (p 161)

(Sendo assim a importacircncia da ldquoforma foneacutetica das palavrasrdquo e do esquema

riacutetmico-meacutetrico seraacute considerada neste estudo posteriormente em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees

escolhidas para discussatildeo)

Referindo-se agrave pesquisa de Parry e de Albert Lord com os cantadores

iugoslavos160

Havelock afirma que

A teoria da oralidade aplicada a Homero com analogias derivadas da poesia oral

balcacircnica estimulou o haacutebito de considerar a praacutetica oral e a letrada como

mutuamente exclusivas A escrita presume-se toma de assalto o espiacuterito da

composiccedilatildeo oral e corrompe-o de maneira que a originalidade dele daacute lugar agrave

repeticcedilatildeo mecacircnica (p 17)

Discordando desta visatildeo o autor considera que ldquoa Iliacuteada e a Odisseia satildeo

construccedilotildees complexas as quais refletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o

escrito parceria que se mostrou fecundardquo (ib) E esclarece que ldquoo espiacuterito integral da

literatura e da filosofiardquo por ele considerados mostra-se como uma ldquotensatildeo dinacircmicardquo

entre o oral e o letrado sendo tal ldquoo processo que nele a linguagem tratada de forma

acuacutestica segundo princiacutepios de ressonacircncia (eco) entra em competiccedilatildeo com a

linguagem tratada segundo princiacutepios arquitetocircnicosrdquo (procedimento que teria se

firmado depois de Platatildeo) (ib)

160 PARRY ldquoGreek and southslavic heroic songrdquo in op cit e Lord The Singer of TalesCambridge

Harvard University Press 1960

148

(Estas consideraccedilotildees tambeacutem poderatildeo servir de referecircncia agrave anaacutelise que se

pretende desenvolver aqui das diferentes versotildees de fragmentos da Iliacuteada eacute este

tambeacutem o caso das citaccedilotildees seguintes)

Acerca da modernidade e da maneira como esta concebe a poesia e referindo-se

agrave questatildeo da narrativa o mesmo autor afirma que

[] eacute caracteriacutestico de toda a tendecircncia da criacutetica moderna que o componente do

relato seja ignorado e o componente do artifiacutecio seja exagerado Nossa concepccedilatildeo

de poesia natildeo tem lugar para o ato oral de relatar e portanto natildeo leva em conta as

complexidades da tarefa de Homero A criaccedilatildeo artiacutestica no sentido que damos ao

termo eacute algo muito mais simples do que a declamaccedilatildeo eacutepica e implica o

afastamento do artista com relaccedilatildeo agrave accedilatildeo poliacutetica e social (Prefaacutecio 1996 108)

(Havelock refere-se no final do trecho diga-se ao papel social das informaccedilotildees

ldquoenciclopeacutedicasrdquo que a poesia eacutepica encerra) Em que pese a possibilidade de

divergecircncia acerca das colocaccedilotildees quanto ao niacutevel de complexidade da criaccedilatildeo oral e da

natildeo-oral eacute interessante registrar-se a diferenccedila entre ambos os modos em termos de

concepccedilatildeo e procedimento vinculada agrave sua proacutepria funccedilatildeo na comunidade em que se

insere

Em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre as culturas oral e letrada afirma Havelock que

numa obra escrita busca-se um miacutenimo de repeticcedilatildeo enquanto ldquoo registro oral requer

exatamente o processo opostordquo sendo que

os inteacuterpretes letrados que natildeo treinaram sua imaginaccedilatildeo para entender a psicologia

da conservaccedilatildeo oral iratildeo [] dividir recortar e amputar as repeticcedilotildees e variantes de

um texto de Homero ou de Hesiacuteodo para conformar o texto a procedimentos

letrados nos quais as exigecircncias da memoacuteria viva natildeo mais satildeo importantes (pp

109-110)

Como diz ainda Havelock ldquono campo circunscrito pela repeticcedilatildeo poderia haver

variaccedilatildeordquo161

e ldquoo tiacutepico pode ser reafirmado dentro de um acircmbito bastante extenso de

161 Eacute oportuno mencionar que por meio das gravaccedilotildees realizadas por Lord com cantores iugoslavos

constatou-se que estes variavam seu canto ainda que dissessem mantecirc-lo sempre igual

149

foacutermulas verbaisrdquo para ele o ldquohaacutebito de lsquovariaccedilatildeo do mesmorsquo eacute fundamental agrave poesia

de Homerordquo (p 110) Tal haacutebito integra o procedimento do poeta descrito nesta

passagem

A teacutecnica oral de composiccedilatildeo em verso pode ser vista como a que se constroacutei

mediante os seguintes recursos haacute um padratildeo puramente riacutetmico que permite que

versos sucessivos de poesia de extensatildeo temporal padronizada sejam compostos de

partes meacutetricas intercambiaacuteveis em segundo um enorme suprimento de

combinaccedilotildees de vocaacutebulos ou foacutermulas de extensatildeo e sintaxe variaacuteveis compostas

ritmicamente para que se ajustem a partes do verso meacutetrico mas que por sua vez

sejam tambeacutem compostas de partes meacutetricas intercambiaacuteveis dispostas de modo a

que tanto pela combinaccedilatildeo de diferentes foacutermulas quanto pela combinaccedilatildeo de

partes de diferentes foacutermulas o poeta possa alterar sua sintaxe sem alterar seu

ritmo Seu talento artiacutestico como um todo consiste desse modo numa distribuiccedilatildeo

infinita de variaacuteveis nas quais todavia a variaccedilatildeo eacute mantida dentro de limites

estritos e as possibilidades verbais embora extensas satildeo em uacuteltima anaacutelise

finitas (ib)

Considere-se ainda que para Havelock a teacutecnica formular teria nascido como

um artifiacutecio de memorizaccedilatildeo e de registro natildeo devendo ser considerada como um

simples auxiacutelio agrave improvisaccedilatildeo poeacutetica elemento este secundaacuterio ldquoassim como a

invenccedilatildeo pessoal do menestrel eacute secundaacuteria para a cultura e costumes populares que ele

relata e conservardquo (p 111) Natildeo eacute pertinente de seu ponto de vista a comparaccedilatildeo com

cantores de comunidades como as da Iugoslaacutevia e da Ruacutessia nas quais a teacutecnica oral

natildeo eacute mais essencial agrave cultura e o cantor ldquotorna-se primordialmente um homem de

espetaacuteculos e similarmente suas foacutermulas estatildeo destinadas agrave improvisaccedilatildeo faacutecil e natildeo agrave

conservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo magisterialrdquo (p 112) Desse ponto de vista o mesmo se

poderia dizer em relaccedilatildeo aos cantadores nordestinos do Brasil que se valem de padrotildees

riacutetmicos e de ldquofoacutermulasrdquo memorizadas em seus improvisos e ldquodesafiosrdquo executados em

apresentaccedilotildees populares

As colocaccedilotildees referidas apontam para diferenccedilas fundamentais existentes entre a

poesia oral tradicional e a poesia tal como a entendemos hoje com propoacutesitos esteacuteticos

No entanto eacute preciso ter em conta que ainda que a funccedilatildeo do aedo e de sua poesia

150

fossem prioritariamente ldquomagisterial e enciclopeacutedicardquo seu modo de concepccedilatildeo

composiccedilatildeo e execuccedilatildeo envolviam padrotildees esteacuteticos nitidamente definidos o que a

aproxima essencialmente por esta via da poesia conforme nossa cultura letrada a

entende O ritmo ndash um componente de ordem esteacutetica ndash eacute apontado da antiguidade agrave

contemporaneidade como um elemento essencial e caracteriacutestico da poesia

prevalecente na composiccedilatildeo poeacutetica desde suas origens ateacute o presente o que pelo

ldquoplano da expressatildeordquo assemelha toda e qualquer poesia independentemente da situaccedilatildeo

histoacuterico-cultural e dos conceitos compartilhados pelos indiviacuteduos inseridos no mesmo

contexto quanto ao que seja poesia e qual seja sua funccedilatildeo na comunidade Sobre o

ritmo lembremos a visatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica162

Por serem naturais em noacutes a tendecircncia para a imitaccedilatildeo a melodia e o ritmo ndash que

os metros satildeo parte dos ritmos eacute fato evidente ndash primitivamente os mais bem

dotados para eles progredindo a pouco e pouco fizeram nascer de suas

improvisaccedilotildees a poesia (1990 22)

Contemporaneamente Segismundo Spina163

afirma

O homem por natureza natildeo eacute somente um animal poliacutetico como diz Aristoacuteteles

[] eacute tambeacutem e sobretudo um animal riacutetmico [] Dentre todos os caracteres

geneacuteticos das artes foneacuteticas e da coreografia estaacute em primeira linha o ritmo []

O conto a narraccedilatildeo miacutetica primitiva foi foi-se desvencilhando gradativamente do

elemento riacutetmico tatildeo dominante na literatura primitiva Mas permaneceu na poesia

ateacute os nossos tempos A Poesia deve agrave Muacutesica em seu periacuteodo ancilar as suas leis

constitutivas (2002 127)

Considerando-se novamente uma concepccedilatildeo provinda da linguiacutestica estrutural a

de ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo tal como definida por Roman Jakobson poderemos

estender o que se observou em relaccedilatildeo ao ritmo para todos os aspectos natildeo-verbais que

integrem a estrutura linguiacutestica do poema (Revejam-se ndash agora relacionadas agrave poesia

oral ndash as proposiccedilotildees de Jakobson jaacute abordadas neste trabalho)

162 ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 2002

163 SPINA S Na madrugada das formas poeacuteticas Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2002

151

Jakobson procura descrever o que lhe parece caracterizar a poesia

independentemente de circunscriccedilotildees temporais situacionais ou culturais e note-se o

que ele aponta parece adequar-se tatildeo bem agrave poesia oral da antiguidade quanto agrave poesia

como a concebemos e praticamos hoje Isto exatamente porque ele reconhece elementos

constitutivos que independem da funccedilatildeo da arte na comunidade e da intencionalidade

de seu ldquoconteuacutedordquo Enfatiza ele sim a ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo o que se manteacutem

mesmo no caso das foacutermulas cuja funccedilatildeo no metro muitas vezes parece atribuir-lhes ndash

como demonstrou Parry ndash apenas funccedilatildeo formal associada ao esvaziamento de

significado na concepccedilatildeo jakobsoniana a tensatildeo entre som e sentido eacute o que promove o

alcance do poema como um todo significante (pleno de significado pois as duas ldquofacesrdquo

do signo satildeo indissociaacuteveis) Sobre isto diz Maacuterio Laranjeira ldquo[] as palavras os sons

as formas e a sua organizaccedilatildeo enquanto tais assumem a dianteira na expressatildeo poeacutetica

trocando o seu estatuto subalterno de veiacuteculo do sentido mero suporte ndash liacutengua natildeo-

poeacutetica ndash pelo de princiacutepio ativo gerador de sentidos nunca suspeitados porque

desvinculados do mundo exterior como referente diretordquo (2003 52)

As repeticcedilotildees e as correspondecircncias de posiccedilotildees (caso das foacutermulas) das

palavras acentos pausas etc como afirma Jakobson satildeo avaliadas em termos de

equivalecircncia participando portanto da criaccedilatildeo de sentido a projeccedilatildeo paradigmaacutetica

pode-se dizer amplia o sentido denotativo gerando a ambiguidade que muitos

consideram tambeacutem proacutepria da poesia Para Michael Riffaterre citado por Laranjeira

ldquoa poesia exprime os conceitos de maneira obliacutequa Em suma um poema diz-nos uma

coisa e significa outrardquo (2003 48)

Tendo-se em conta que como se disse os sons e o modo como as formas se

organizam geram sentidos ldquodesvinculados do mundo exterior como referente diretordquo

pode-se pensar nas foacutermulas homeacutericas (dada sua funcionalidade sonora e formal) como

produtoras de sentido apontado ao acircmbito interno do poema (ou seja da linguagem)164

desvinculado do referente o que as torna ldquodescompromissadasrdquo com a ldquoverdaderdquo

(considerada em relaccedilatildeo ao referente) (Esta abordagem diga-se redimensiona a

questatildeo da funccedilatildeo apenas de ldquoembelezamentordquo165

que uma visatildeo simplificadora atribui

164 ldquoNa funccedilatildeo poeacutetica [da linguagem] a mensagem se volta sobre si mesma para o seu aspecto sensiacutevel

para a sua configuraccedilatildeordquo (Campos 1975 41) 165 Referecircncia a uma das maneiras pelas quais os alexandrinos explicavam o uso das

adjetivaccedilotildees formulares Note-se que tambeacutem Parry (e antes dele Duumlntzer) ao atribuir aos epiacutetetos um

esvaziamento de sentido consideram o significado apenas em termos do referente de certa forma

desvinculando a funcionalidade sonora e riacutetmica da geraccedilatildeo de sentido

152

agraves foacutermulas para explicar o fato de que seu sentido muitas vezes parece natildeo se ajustar

ao contexto especiacutefico em que eacute empregado)

Uma vez abordadas certas caracteriacutesticas baacutesicas da composiccedilatildeo oral e uma vez

observado que estas embora possam ser peculiares mantecircm um canal amplo de contato

com o que se concebe genericamente como poesia eacute possiacutevel antever que a eacutepica

permitiraacute tambeacutem uma ampla faixa de leituras e interpretaccedilotildees possiacuteveis em

conformidade com ideias particulares que se possam ter sobre poesia e sobre poesia

grega arcaica bem como sobre a forma adequada de traduzi-la a diversidade existente

entre as diferentes versotildees seraacute teoricamente justificaacutevel e neste sentido os resultados

poderatildeo ser considerados em princiacutepio (ainda que isto seja discutiacutevel) igualmente

ldquovaacutelidosrdquo166

Entre tais leituras portanto a consideraccedilatildeo dos procedimentos proacuteprios de

composiccedilatildeo oral como fundamento do meacutetodo de traduccedilatildeo da poesia arcaica seraacute no

plano teoacuterico apenas uma das opccedilotildees possiacuteveis Mas deixemos para mais adiante a

questatildeo da diversidade e dos fundamentos que norteiam cada uma das versotildees aqui

focalizadas

A2 Iliacuteada fragmentos

Sinopse do poema

Antes de apresentarmos os fragmentos escolhidos para discussatildeo inserindo-os

no contexto do canto e tecendo um breve comentaacuterio sobre seus elementos e

caracteriacutesticas eacute conveniente incluir-se uma sinopse do argumento da Iliacuteada (composta

de XXIV cantos) A accedilatildeo se passa em torno de 1200 aC na planiacutecie de Troacuteia na Aacutesia

Menor transcorre entre o final do nono e o iniacutecio do deacutecimo ano da Guerra de Troacuteia

Agamecircmnon liacuteder do exeacutercito grego toma a escrava de Aquiles Briseida desonrando-

o o heroacutei entatildeo afasta-se dos combates Apoacutes uma seacuteria derrota (no Canto VIII)

Agamecircmnon admite seu erro e envia mensageiros a Aquiles oferecendo-lhe por

166 Acerca da diversidade de caracteriacutesticas das diferentes traduccedilotildees lembre-se o jaacute discutido conceito desconstrucionista hoje indispensaacutevel relativamente agrave atividade tradutoacuteria de que cada tradutor chega a

resultados proacuteprios a partir de suas convicccedilotildees de ordem esteacutetica e de seu ponto de vista sobre o que seja

a tarefa do tradutor (embora isto no meu modo de ver natildeo impeccedila discussotildees comparativas no plano

esteacutetico de realizaccedilatildeo ainda que relativizadas) Revejam-se os comentaacuterios de Rosemary Arrojo e sob

outra perspectiva os de Joatildeo Angelo Oliva Neto

153

intermeacutedio deles muitos bens como reparaccedilatildeo por seu ato a fim de convencer o heroacutei a

retornar ao campo de batalha Aquiles natildeo atende ao pedido mas cede mais tarde agrave

suacuteplica de seu mais proacuteximo e querido amigo Paacutetroclo que desejava lutar no lugar de

Aquiles com as armas do heroacutei para livrar o acampamento grego da proximidade

ameaccediladora dos troianos Paacutetroclo eacute morto em combate pelo filho do rei Priacuteamo Heitor

que se apodera das armas de Aquiles Este tomado pela ideia de vingar a morte de

Paacutetroclo retorna agrave luta (com novas armas feitas pelo deus Hefesto a pedido da matildee do

heroacutei Teacutetis) matando Heitor e ultrajando seu cadaacutever Por intervenccedilatildeo dos deuses

Aquiles concede a Priacuteamo mediante pagamento de resgate que este leve o cadaacutever de

seu filho de volta a Troacuteia para seus funerais

Em linhas muito gerais eacute este o assunto da Iliacuteada

Canto I

Embora nos proponhamos a analisar neste toacutepico apenas dois versos do Canto

I faccedilamos antes um resumo de seu argumento

Crises sacerdote de Apolo suplica a Agamecircmnon que lhe devolva a filha

Criseida mas este o afronta e se nega a devolvecirc-la Apolo em resposta agrave invocaccedilatildeo de

Crises envia como castigo uma peste que se apodera do exeacutercito grego matando muitos

dos seus integrantes O adivinho Calcas revela em assembleia convocada por Aquiles

que a devoluccedilatildeo de Criseida eacute o uacutenico remeacutedio para o mal Agamecircmnon a devolve mas

toma Briseida cativa de Aquiles Aquiles revoltado abandona a luta a conselho de sua

matildee Teacutetis que lhe promete vinganccedila Teacutetis pede a Zeus vantagem aos troianos e o deus

promete atender a seu pedido ateacute Aquiles obter reparaccedilatildeo Hera esposa de Zeus

ameaccedila-o Hefesto filho de Teacutetis e Zeus restabelece a harmonia entre os deuses

Os dois versos escolhidos do iniacutecio do canto referem-se ao momento em o

sacerdote Crises manifesta temor apoacutes a fala ultrajante de Agamecircmnon e se vai pela

praia antes de orar a Apolo

Iliacuteada I vv 33-34

154

(Hos ephatacute edeisen dacuteho geacuteron kai epeiacuteteto myacutethoi

be dacuteakeacuteon paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses)

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

Taciturno o anciatildeo treme e obedece

Busca as do mar fluctissonantes praias

(2003 27)167

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes

Isso disse ele medroso o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilas

e taciturno se foi pela praia do mar ressoante

(Sd 48)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Findou a fala e o anciatildeo retrocedeu medroso

mudo ao longo do mar de poliacutessonas praias

(2002 33)

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem

Passemos entatildeo a uma anaacutelise um tanto detida das diferentes traduccedilotildees de tal

fragmento que embora restringindo-se a dois versos pode nos dar subsiacutedios para

consideraccedilotildees que por sua vez tambeacutem se aplicaratildeo agrave anaacutelise do fragmento do Canto

IX a ser estudado posteriormente Teratildeo lugar nesta anaacutelise inicial e nas posteriores

referecircncias teoacutericas acerca de cada um dos tradutores de modo a se construir

paulatinamente um conjunto significativo de informaccedilotildees acerca das diretrizes e dos

procedimentos que lhes satildeo proacuteprios

167Obs a numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego

155

Observe-se relativamente agraves diversas traduccedilotildees que a proacutepria imposiccedilatildeo de

regularidade meacutetrica ndash um dos elementos que integram o conjunto de caracteriacutesticas de

teor esteacutetico do poema original considerado por todos os tradutores independentemente

de sua oacuteptica diferenciada a respeito do traduzir ndash seraacute evidentemente um fator

determinante para que nenhum dos textos em portuguecircs se oriente de modo imperativo

pela ldquoliteralidaderdquo168

(jaacute dificultada no caso em princiacutepio pela grande distacircncia

existente no plano morfossintaacutetico entre as liacutenguas envolvidas) Cada um desses

tradutores agrave sua maneira procura recriar os versos em conformidade com o padratildeo

formal adotado cuja regularidade busca corresponder agrave uniformidade meacutetrica do

original isto jaacute representa uma opccedilatildeo comum por natildeo priorizar radicalmente uma

suposta ldquofidelidade de sentidordquo centrada na ideia de uma ldquoliteralidade semacircnticardquo

embora esta ideia se revele em niacuteveis diversos de intencionalidade entre esses

tradutores

No caso de Carlos Alberto Nunes a escolha por versos de dezesseis siacutelabas

tenderia a favorecer de certa forma devido agrave sua extensatildeo se natildeo a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo

possibilidades de correspondecircncia maior de sentido que poderia ser buscada por meio

de soluccedilotildees como a ldquotransposiccedilatildeordquo169

e a ldquomodulaccedilatildeordquo170

Observe-se ainda em relaccedilatildeo

a esse tradutor que a extensatildeo do verso natildeo se origina de um criteacuterio voltado ao aspecto

semacircntico mas sim obedece a uma transferecircncia matemaacutetica do hexacircmetro dactiacutelico

para o sistema silaacutebico-tocircnico de nossa liacutengua resultando portanto em seis segmentos

sendo cinco formados por uma siacutelaba tocircnica seguida de duas aacutetonas (correspondendo agraves

siacutelabas longas e breves do peacute grego) e um uacuteltimo por uma tocircnica seguida de uma aacutetona

(agrave semelhanccedila do uacuteltimo peacute do hexacircmetro) Podemos representar da seguinte maneira o

modelo meacutetrico adotado por Nunes utilizando-se os siacutembolos relativos a siacutelabas longas

e breves para representar as tocircnicas e aacutetonas

168 Entende-se aqui o termo ldquoliteralidaderdquo como relativo agrave ldquotraduccedilatildeo palavra-por-palavrardquo 169 A transposiccedilatildeo conforme a entende Francis Aubert acontece ldquo[] sempre que ocorrerem rearranjos

morfossintaacuteticosrdquo que podem envolver o desdobramento de uma palavra em duas ou a condensaccedilatildeo de

duas palavras numa soacute alteraccedilotildees na ordem das palavras (inversotildees e deslocamentos) A transposiccedilatildeo eacute

um dos desdobramentos da literalidade que segundo esse autor ldquomanifesta-se como um conjunto de

soluccedilotildees tradutoacuterias [] em que a passagem do texto original para o traduzido faz-se [] de forma direta valendo-se de soluccedilotildees configuradoras de uma certa sinoniacutemia interlinguiacutestica e interculturalrdquo AUBERT

Francis Henrik ldquoEm busca das refraccedilotildees na literatura brasileira traduzida ndash revendo a ferramenta de

anaacuteliserdquo In Literatura e sociedade no 9 Satildeo Paulo USP 2006 170 ldquoRegistra-se como modulaccedilatildeo a soluccedilatildeo tradutoacuteria que resulta em uma alteraccedilatildeo perceptiacutevel na

estrutura semacircntica de superfiacutecie embora retenha fundamentalmente o mesmo efeito geral de sentido

denotativo no contexto em questatildeordquo (AUBERT 2006)

156

ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashU

Sobre o hexacircmetro dactiacutelico e sobre sua opccedilatildeo meacutetrica ao traduzir a eacutepica

homeacuterica diz o proacuteprio Carlos A Nunes ldquo[] [a] medida exclusiva da epopeia grega o

hexacircmetro [] iria impor-se depois na literatura latina e em parte nas modernas

como o verso mais adequado para esse gecircnero de poesia (1962 38)rdquo Conforme o autor

explicita (revejam-se as citaccedilotildees do autor incluiacutedas na paacutegina 112 deste estudo) para ele

a caracteriacutestica riacutetmico-meacutetrica da eacutepica grega lhe eacute essencial e como tal deve ser

tomada como referecircncia para a traduccedilatildeo dos poemas gregos No entanto note-se que a

transposiccedilatildeo do hexacircmetro operada por Nunes pode corresponder ao metro grego em

medida mas natildeo poderaacute equivaler a este plenamente devido agrave proacutepria diferenccedila

fundamental entre as siacutelabas longas e breves por um lado e tocircnicas e aacutetonas por outro

A ldquomonotoniardquo a que o tradutor se refere como proacutepria do hexacircmetro aplica-se antes ao

verso correspondente em nossa liacutengua uma vez que as possibilidades de combinaccedilatildeo

entre as siacutelabas longas e breves satildeo muacuteltiplas no verso grego (devido agrave usual

substituiccedilatildeo de duas breves por uma longa) o que incluiacutea a diversidade no padratildeo fixo

aleacutem disso a proacutepria melopeia caracteriacutestica do verso grego (decorrente das elevaccedilotildees e

descensos determinados pela acentuaccedilatildeo) estabelecia uma dinacircmica que natildeo encontra

equivalecircncia no verso em portuguecircs

Observe-se a escansatildeo dos versos tomados para referecircncia marcando-se a

divisatildeo das siacutelabas com barra ( ) e as siacutelabas tocircnicas com sublinhas ( _ )

Is so dis se e le me dro so o an ci atildeo se cur vou agraves a mea ccedilas

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

e ta ci tur no se foi pe la prai a do mar res so nan te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

Diz Nunes que ldquouma traduccedilatildeo deve apresentar-se como criaccedilatildeo nova quando

natildeo for apreciada como obra original eacute porque falhou na finalidade de nacionalizar o

157

modelordquo (s d 143) Tal afirmaccedilatildeo aproxima sua oacuteptica em relaccedilatildeo ao traduzir daquela

que concebe a traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo (a ser apresentada quando abordar-se aqui a

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos) e ao mesmo tempo define-a como uma visatildeo que

encara o trabalho tradutoacuterio como associado agrave ideia de ldquonacionalizaccedilatildeordquo o que

suponho equivaleria a dizer que se busca inserir uma obra estrangeira na cultura local

de modo a fazer com que pareccedila escrita na liacutengua de chegada (neste aspecto como

veremos distingue-se da visatildeo de H de Campos acerca de recriaccedilatildeo poeacutetica) Eacute nesse

sentido pode-se entender que Nunes fala de ldquoobra originalrdquo embora este conceito

tambeacutem possa estender-se a uma ideia que desobriga o texto traduzido de ldquofidelidaderdquo

semacircntica absoluta em relaccedilatildeo ao original e isto se confirma pela prioridade que ele

estabelece ao padratildeo meacutetrico que como se disse impotildee inevitaacuteveis distanciamentos da

ldquoliteralidaderdquo

O verso longo de Nunes se por um lado facilita o arranjo semacircntico para dar

conta de todos os elementos envolvidos pela narrativa por outro tende a aproximaacute-lo da

prosa No entanto natildeo impede a ocorrecircncia de momentos de densidade sonora que

aleacutem do mais podem contrapor-se agrave monotonia que se costuma atribuir a suas

traduccedilotildees eacute o caso do verso ldquoe taciturno se foi pela praia do mar ressoanterdquo cujas

aliteraccedilotildees em p e em t atribuem-lhe uma concentraccedilatildeo sonora desejaacutevel ao verso

(considerando-se a do original) ainda que ldquomar ressoanterdquo enfraqueccedila a sonoridade da

expressatildeo formular

Na traduccedilatildeo do preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes o emprego

de versos decassiacutelabos (considerado desde o classicismo ndash eacute o modelo usado por

Camotildees em Os lusiacuteadas uma espeacutecie de ldquoreescriturardquo da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem

composta em hexacircmetros dactiacutelicos ndash um correspondente do verso heroacuteico capaz da

mesma dicccedilatildeo elevada) obriga a uma busca de siacutentese (e eacute como veremos tambeacutem

adotado por esta procura) que em princiacutepio pode levar a ldquoomissotildeesrdquo171

e que

ocasionou uma significativa diminuiccedilatildeo do nuacutemero de versos dos poemas eacutepicos por ele

traduzidos (no caso da Iliacuteada o nuacutemero de versos do original 804 desceu para 652) eacute

por isso a traduccedilatildeo que tende agrave menor ldquoliteralidaderdquo (correspondecircncia ldquopalavra-a-

palavrardquo ndash embora como se poderaacute ver nos fragmentos analisados costume manter toda

171 ldquoOcorre omissatildeo sempre que um dado segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo

podem ser recuperados no texto metardquo (AUBERT 2006)

158

a ldquoinformaccedilatildeo essencialrdquo ndash e sendo marcada por uma niacutetida procura de recriaccedilatildeo

esteacutetica conforme os padrotildees vigentes em sua eacutepoca isto natildeo impediu ndash como observa

de um ponto de vista criacutetico Haroldo de Campos ndash que obtivesse soluccedilotildees poeticamente

referenciais (como eacute o caso da sequecircncia ldquofluctissonantes praiasrdquo presente nos versos

aqui abordados) e no conjunto conserve hoje o atrativo de um texto com qualidade

esteacutetica inegaacutevel sobrevivente na modernidade

Mostra-se a seguir a escansatildeo dos versos de Odorico apresentados um heroacuteico

(com tocircnica principal na sexta siacutelaba) e outro saacutefico (com tocircnicas principais da quarta e

oitava siacutelabas) que ilustram a variabilidade do decassiacutelabo por ele utilizado ao modo

camoniano

O primeiro deles permite trecircs formas de escansatildeo conforme se opte ou natildeo

pelas diferentes elisotildees172

possiacuteveis

(Primeira possibilidade)

Ta ci tur no o an ci atildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Segunda possibilidade com sineacuterese ndash passagem de hiato a ditongo ndash em

ldquociatildeordquo natildeo se elidindo o e e o o de ldquoobedecerdquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Terceira possibilidade natildeo se elidindo o o e o an (de ldquoanciatildeordquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

O outro verso pode ser assim escandido

172 Elisatildeo ldquomodificaccedilatildeo foneacutetica decorrente do desaparecimento da vogal final aacutetona diante da inicial

vocaacutelica da palavra seguinterdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001

159

Bus ca as do mar fluc tis so nan tes prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Sobre Odorico diz tambeacutem Campos

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares173

[]

Odorico [] soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente

onde os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese [] seja para demonstrar que o portuguecircs era capaz de tanta ou

mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para acomodar em decassiacutelabos

heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para evitar as repeticcedilotildees e a

monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar com as terminaccedilotildees

diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas palavras ofereceria

na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado (1976 27)

O proacuteprio Odorico Mendes (citado por Campos) diz que ldquoSe vertecircssemos

servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a

pior das infidelidadesrdquo (ib) Como se pode notar o que outro tradutor poderia

considerar como caracteriacutestica essencial da obra homeacuterica a ser preservada numa

traduccedilatildeo eacute vista por Odorico ndash e por Haroldo de Campos que mostra compartilhar da

mesma visatildeo quanto a este aspecto ndash como indesejada devido agrave natureza diversa das

liacutenguas envolvidas de novo o aspecto da diversidade incorporada ao padratildeo repetitivo

natildeo encontra correspondente em nossa liacutengua e esta constataccedilatildeo orienta Odorico (e

tambeacutem ainda que com diferenciaccedilatildeo Campos) no sentido de recriar a eacutepica de modo a

173 Campos refere-se agrave criacutetica negativa em relaccedilatildeo a Odorico que prevaleceu desde Silvio Romero Este

diz em sua Histoacuteria da literatura brasileira ldquoQuanto agraves traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo

poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante

impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidadesrdquo (1949 35) O criacutetico qualifica de ldquoaacutesperas prosaicas

obscurasrdquo as traduccedilotildees do maranhense e chama de ldquopuerilrdquo sua ideia de ldquoprovar ser a liacutengua portuguesa

tatildeo concisa quanto o latim e o gregordquo aponta ainda outros defeitos da iniciativa do tradutor ldquoinventou

termosrdquo ldquolatinizou e grecificou termos o diabordquo ldquonum portuguecircs macarrocircnico abafou evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo Deve-se ressaltar que diversos dos defeitos apontados por Romero seriam

mais tarde considerados como suas principais virtudes por H de Campos coerentemente a pressupostos

seus como a concepccedilatildeo na natureza sinteacutetica da poesia provinda de Ezra Pound ou a ideia de ampliar os

limites da liacutengua de chegada por meio de criaccedilotildees lexicais realizadas a partir de elementos da liacutengua do

original Apoacutes a ldquorecuperaccedilatildeordquo criacutetica de Odorico a que se empenhou H de Campos sua obra tradutoacuteria

tem sido objeto de muitos estudos e referecircncias inclusive no acircmbito acadecircmico

160

natildeo envolver o que seria uma monotonia inexistente no original (para ele uma

ldquoinfidelidaderdquo) Neste sentido sua visatildeo ndash e a de Campos ndash opotildeem-se agravequela de Carlos

A Nunes quanto ao simples transporte de um padratildeo no caso o meacutetrico

Quanto agrave traduccedilatildeo de H de Campos os versos dodecassiacutelabos se natildeo permitem

um ldquoespaccedilo de manobrardquo tatildeo amplo como o possibilitado pela medida adotada por

Nunes (para o exerciacutecio de soluccedilotildees dadas pela transposiccedilatildeo e pela modulaccedilatildeo)

tampouco determinam uma restriccedilatildeo tatildeo grande quanto aquela imposta pelos

decassiacutelabos (mencione-se contudo que Campos lanccedilaraacute matildeo muitas vezes ndash agrave

semelhanccedila de O Mendes ndash de um procedimento sinteacutetico de criaccedilatildeo de neologismos

formando palavras correspondentes a compoacutesitos gregos) Espera-se portanto um

menor nuacutemero de omissotildees em seus versos que embora privilegiem o aspecto esteacutetico

ndash decorrentes que satildeo de uma concepccedilatildeo transcriadora ndash tambeacutem procuraratildeo

corresponder agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo caracteriacutesticas da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem na concepccedilatildeo jakobsoniana a qual natildeo seraacute perdida de vista pelo tradutor

ainda que este natildeo busque a ldquoliteralidaderdquo da equivalecircncia

Ficam assim os versos de Campos escandidos

Fin dou a fa la e o an ciatildeo re tro ce deu me dro so

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

mu do ao lon go do mar de po liacutes so nas prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Em seus versos (no caso ambos alexandrinos pela cesura na sexta siacutelaba)

Campos adota procedimentos regulares de elisatildeo e sineacuterese (caso de anciatildeo) que

permitem (principalmente a uacuteltima) um certo ganho quantitativo relativo ao nuacutemero de

siacutelabas (ou seja com a providecircncia das sinalefas174

amplia-se um pouco o espaccedilo dos

versos) Seraacute possiacutevel conferir os procedimentos em exemplos futuros

Acerca da visatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica considere-se a

apresentaccedilatildeo de seu pensamento no segundo capiacutetulo deste trabalho

174 Sinalefa ldquofenocircmeno de transformaccedilatildeo de duas siacutelabas em uma por elisatildeo crase ou sineacutereserdquo

(Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001)

161

Voltemos a considerar as caracteriacutesticas das traduccedilotildees apresentadas a partir de

uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo (ldquopalavra-por-palavrardquo) dos citados versos gregos que pode ser a

seguinte

Quanto ao primeiro verso observamos que o primeiro segmento hos

eacutephatrsquo(assim ndash ou dessa maneira ndash dizia) um elemento formular muitas vezes repetido

ao longo dos poemas homeacutericos ndash natildeo encontra correspondecircncia literal em nenhuma das

trecircs traduccedilotildees consideradas pode-se apontar a versatildeo de Nunes (ldquoIsso disse elerdquo) como

a menos distante da literalidade por se referir ao que foi expresso antes (ldquoissordquo) e

conservar o verbo ldquodizerrdquo provavelmente a substituiccedilatildeo de ldquoassimrdquo (adveacuterbio) por

ldquoissordquo (pronome) tenha decorrido da necessidade de se iniciar o verso sempre com uma

siacutelaba tocircnica e de fato essa eacute a forma empregada pelo tradutor como correspondente a

tal foacutermula No caso de Odorico o segmento eacute omitido e no de Campos transforma-se

em ldquofindou a falardquo soluccedilatildeo que sugere a intenccedilatildeo antes de se criar um efeito aliterante

do que corresponder agrave foacutermula sob um ponto de vista da literalidade de sentido ndash e que eacute

coerente com a perspectiva da recriaccedilatildeo que visa as relaccedilotildees esteacuteticas internas aos

versos na liacutengua de chegada podendo corresponder isomorficamente agrave densidade de

relaccedilotildees do original sem no entanto a obrigatoriedade do cumprimento de regras fixas

advindas deste (como as foacutermulas em seu aspecto fixo e repetitivo) uma vez que o

ldquocorpo isomoacuterficordquo tambeacutem se estruturaraacute a partir de caracteriacutesticas que lhe satildeo

intriacutensecas Em relaccedilatildeo ao restante do verso embora tambeacutem natildeo se encontre

correspondecircncia literal em nenhuma das traduccedilotildees novamente eacute a de Nunes (ldquomedroso

o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilasrdquo) que conserva mais correspondecircncias de posiccedilotildees

relativas de seus elementos ldquoanciatildeordquo que no original aparece logo apoacutes o verbo ali

aparece apoacutes o adjetivo relativo a esse verbo ldquoagraves ameaccedilasrdquo aparece correspondendo a

(myacutethoi) (palavra discurso ordem) que estando no caso dativo envolve a

atribuiccedilatildeo representada em portuguecircs por ldquoagraverdquo e ldquose curvourdquo corresponde a

(epeyacutetheto) (imperfeito do indicativo voz meacutedia do verbo peitoacute persuadir

162

significando que o anciatildeo deixou-se persuadir pela ordem ou seja cedeu a ela usamos

ldquocedeurdquo na traduccedilatildeo referida como ldquoliteralrdquo o que pode ser considerado sinocircnimo)

Odorico inclui nesse verso um elemento que se encontra no verso seguinte

(recorrendo portanto a uma transposiccedilatildeo de palavra de um verso a outro) ldquotaciturnordquo

(relativo a (akeacuteon) calado mudo) e substitui metonimicamente o verbo

ldquotemeurdquo por ldquotremerdquo fazendo corresponder ldquoobedecerdquo ao sentido relativo a

(peitoacute) e omitindo seu complemento a ordem () (myacutethoi) H de Campos

utiliza como verbo do segmento ldquoretrocedeurdquo sugerindo com ele ao mesmo tempo a

desistecircncia o voltar atraacutes do anciatildeo (que alude portanto a seu cedimento) e o andar de

volta pela praia adota tambeacutem em lugar do verbo ldquotemerrdquo a mesma palavra

ldquomedrosordquo (usada por Nunes) encadeando-a com outro adjetivo que inicia o verso

seguinte ldquomudordquo o que permite natildeo soacute a associaccedilatildeo imediata de qualificativos

(concentrando e reforccedilando a imagem do estado do anciatildeo) como traccedilar uma sequecircncia

aliterante que envolveraacute tambeacutem a palavra ldquomarrdquo mais agrave frente

Sobre o segundo verso pode-se observar que a traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

tambeacutem eacute a que mais se aproxima da literalidade apenas recorrendo agrave mudanccedila de

ordem (transposiccedilatildeo) ldquofoi-serdquo corresponde a aoristo do verbo (andar

caminhar ir-se) ldquotaciturnordquo refere-se a ldquordquo (mudo calado taciturno) ldquopela praia

do mar ressoanterdquo pode-se considerar que corresponde integralmente a

(paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses) tendo-

se optado por uma palavra corrente na liacutengua (ressoante) em lugar de um possiacutevel

neologismo correspondente a invertendo-se a ordem do adjetivo e do

substantivo A traduccedilatildeo de Odorico Mendes emprega ldquobuscardquo para referir-se a (o

que permite dizer que se manteacutem no campo semacircntico de correspondecircncias) e altera a

sintaxe do segmento seguinte atribuindo o adjetivo ldquofluctissonanterdquo (de inegaacutevel

qualidade esteacutetica tendo-se em conta o composto grego) agraves praias e natildeo ao mar como

ocorre no grego (no original e ambos no genitivo estatildeo

associados) a sequecircncia ldquoas do mar fluctissonantes praiasrdquo em vez da mais esperada

em portuguecircs (as praias fluctissonantes do mar) provavelmente se tenha definido pela

questatildeo do metro bem como por outras razotildees de ordem riacutetmico-esteacutetica Haroldo de

Campos recorre agrave mesma alteraccedilatildeo sintaacutetica realizada por Odorico atribuindo o adjetivo

(ldquopoliacutessonasrdquo) a ldquopraiasrdquo e natildeo a ldquomarrdquo o que sugere mais uma vez o seu desapego (e

tambeacutem de Odorico) em relaccedilatildeo agrave literalidade eacute evidente neste caso como jaacute se

163

apontou antes a opccedilatildeo pela escolha de palavras e sequecircncias que atendam ao propoacutesito

central de (re)criaccedilatildeo de um verso que ofereccedila paramorficamente uma densidade

sonora compatiacutevel com a melopeia grega (isso natildeo impede obviamente que natildeo ocorra

por vezes o uso de elementos de correspondecircncia direta como eacute o caso de ldquoao longo derdquo

em relaccedilatildeo a que ao mesmo tempo se conforma perfeitamente ao encadeamento

de sons nasais ocasionando o efeito particularmente bem-sucedido de sua associaccedilatildeo

com ldquopoliacutessonasrdquo (on ndash on) Devido aos objetivos do tradutor e agrave sua competecircncia

poeacutetica obteacutem-se um verso plenamente realizado em termos esteacuteticos que permitiraacute a

visatildeo de sua superioridade (relativa agraves demais versotildees apresentadas) quando a avaliaccedilatildeo

for pelo criteacuterio (ou pela percepccedilatildeo) da ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo e da proacutepria

construccedilatildeo sonora que encerra

Em relaccedilatildeo agrave natureza oral da composiccedilatildeo homeacuterica a traduccedilatildeo que mais se

afina com seus elementos formulares eacute a de Nunes pois como se viu a soluccedilatildeo por ele

empregada inclui neste fragmento a repeticcedilatildeo da foacutermula na mesma posiccedilatildeo eacute o caso

de ldquoIsso disse elerdquo no iniacutecio dos versos O tradutor contudo variaraacute a posiccedilatildeo de

foacutermulas ndash caso de como se veraacute no fragmento do Canto

IX ndash visando a adequaccedilatildeo aos paracircmetros de seu proacuteprio verso Os demais tradutores

conforme esperado natildeo consideram a necessidade de manter repeticcedilotildees formulares

proacuteprias da eacutepica (independentemente de sua visatildeo acerca da natureza ndash oral ou escrita ndash

da composiccedilatildeo) voltados que satildeo antes (como jaacute se disse) agraves qualidades intriacutensecas de

seus proacuteprios versos

Tratando-se da assunccedilatildeo de paracircmetros da proacutepria eacutepica e da consideraccedilatildeo de

sua oralidade eacute interessante acrescentar-se ao conjunto de traduccedilotildees ateacute agora estudadas

a publicada mais recentemente por Andreacute Malta (que se dedicou a traduzir os cantos I

IX XVI e XXIV da Iliacuteada)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

Assim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceu

Partiu mudo pela praia do murmurejante mar

(2006 310)

164

Note-se primeiramente nesta traduccedilatildeo o padratildeo meacutetrico adotado segundo o

tradutor o metro proposto

corresponde no Brasil junto com o decassiacutelabo de Odorico Mendes o hexacircmetro

de Carlos Alberto Nunes o verso livre de Jaa Torrano e o dodecassiacutelabo de

Haroldo de Campos a mais uma tentativa de encontrar em nossa liacutengua um

equivalente para o hexacircmetro grego tatildeo estranho agraves nossas medidas de poesia

escrita Trata-se de uma linha elaacutestica e maleaacutevel de 14 a 17 siacutelabas em cuja base

estatildeo duas redondilhas maiores metrificadas com matildeo leve muitas vezes

imprecisa sem a cesura de praxe A validade do recurso a esse metro baacutesico de

sete siacutelabas ndash sem tradiccedilatildeo heroacuteica entre noacutes ndash reside no fato de ser largamente

verificado na poesia popular e oral e dessa forma se aparentar de algum modo agrave

eacutepica grega ndash aleacutem de servir ao nosso propoacutesito de buscar o simples e andar nos

arredores da prosa (2006 6)

O ponto de vista do tradutor considera como se pode ver as diversas propostas

tradutoacuterias como diferentes tentativas de equivalecircncia ao hexacircmetro grego por ser esta

sua oacuteptica relaciona traduccedilotildees como as de Odorico e de Campos a uma

intencionalidade estranha ao propoacutesito que lhes eacute inerente (como vimos estes tradutores

natildeo propotildeem propriamente equivalecircncia meacutetrica mas sim a recriaccedilatildeo no metro que

sob seu proacuteprio ponto de vista permite a realizaccedilatildeo esteacutetica mais satisfatoacuteria do poema

eacutepico dentro dos paracircmetros da poesia em sua proacutepria liacutengua ao mesmo tempo que

anaacuteloga ao original sob um certo ponto de vista esteacutetico) (Eacute a perspectiva desta

relatividade ndash jaacute referida neste estudo ndash que se mostra indispensaacutevel quando se aborda a

produccedilatildeo de um tradutor jaacute que coexistem diferentes visotildees acerca do que deve ser

considerado e priorizado em traduccedilatildeo poeacutetica e no caso na traduccedilatildeo da poesia eacutepica

arcaica em particular)

A realizaccedilatildeo de Malta utiliza como base um metro popular em nossa liacutengua a

redondilha maior por ser este caracteriacutestico das produccedilotildees orais em portuguecircs

revelando assim que considera essencial para a traduccedilatildeo da obra homeacuterica a

equivalecircncia agrave sua natureza oral adota portanto como princiacutepio ndash agrave semelhanccedila de

Carlos Alberto Nunes ndash um valor de referecircncia externo agrave proacutepria necessidade do verso

eacutepico em liacutengua portuguesa se pensada intrinsecamente agrave sua elaboraccedilatildeo Usa no

entanto por necessidade ligada agrave dimensatildeo semacircntica do longo verso grego um duplo

165

da redondilha aproximando-se em extensatildeo do verso nunesiano mas eacute soacute neste

aspecto que se pode assemelhar seu trabalho ao de Nunes uma vez que a maleabilidade

do verso (referida pelo tradutor) ocasionada pela variaccedilatildeo meacutetrica decorrente da

existecircncia ou natildeo de elisatildeo entre um verso e outro traz um dinamismo que praticamente

inexiste na recriaccedilatildeo de Nunes (restringe-se nesta apenas agrave alternacircncia das cesuras)

Note-se ainda que coerentemente agrave busca de equivalecircncia aos padrotildees da

epopeia grega a traduccedilatildeo de Malta eacute a uacutenica a trazer ldquoliteralmenterdquo a foacutermula ldquoAssim

disserdquo que eacute sempre repetida ndash assim como outras expressotildees formulares ndash da mesma

forma nos versos em que aparece

Sobre os versos pode-se constatar devido agrave sua coloquialidade a coerecircncia

entre o resultado e o propoacutesito do ldquosimplesrdquo e de ldquoandar nos arredores da prosardquo

ldquoAssim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceurdquo a natildeo ser pela inversatildeo do iniacutecio

aproxima-se de uma frase prosaica e mesmo oral pela repeticcedilatildeo sequencial dos verbos

e conjunccedilotildees o outro verso embora tambeacutem encerre uma inversatildeo mais marcante que

a anterior (as inversotildees parecem coexistir com o aspecto prosaico em funccedilatildeo de

imposiccedilatildeo meacutetrica) natildeo chega a perder o tom coloquial ditado por seu iniacutecio

apresentando uma sequecircncia aliterante que pode indicar a preocupaccedilatildeo do tradutor

tambeacutem com este aspecto ldquopartiu ndash praiardquo e ldquomudo ndash murmurejante ndash marrdquo tal

encadeamento ainda que se possa questionar sua adequaccedilatildeo no plano da relaccedilatildeo entre

som e sentido ao teor do verso (pela cadeia mu ndash mu ndash mu) constroacutei uma frase dotada

de densidade sonora

Canto IX

Siacutentese do argumento

Os gregos obrigados no Canto VIII a recuar a suas fortificaccedilotildees pelos troianos

estatildeo com o acircnimo dilacerado Setecentos homens posicionam-se entre a muralha e o

fosso para proteger o exeacutercito Nestor propotildee que se tente amainar a ira de Aquiles

com o objetivo de trazecirc-lo de volta agrave luta Agamecircmnon concorda dispondo-se a

devolver Briseida ao heroacutei aleacutem de lhe dar muitas e valiosas daacutedivas como reparaccedilatildeo

Nestor designa Fecircnix Aacutejax e Odisseu para irem ateacute Aquiles e realizarem a suacuteplica Os

visitantes encontram Aquiles e Paacutetroclo com a lira nas matildeos Aquiles canta Bem

166

recebidos pelo heroacutei Odisseu Fecircnix e Aacutejax discursam sempre seguidos de resposta de

Aquiles que natildeo aceita a retrataccedilatildeo recusando-se a lutar contra Heitor Odisseu e Aacutejax

retornam agrave tenda de Agamecircmnon e comunicam que Aquiles natildeo soacute natildeo lutaraacute como

ameaccedila voltar a Ftia sua terra natal Diomedes diz que natildeo deveriam ter suplicado a

Aquiles pois isto o tornou ainda mais insolente e incita os chefes agrave luta no dia seguinte

Veja-se a seguir o fragmento escolhido no original e nas quatro traduccedilotildees

(inclui-se agora entre elas a de Andreacute Malta)

IX 162-198

167

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

(A numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego)

130 Inda o Gereacutenio Soberano egreacutegio

Dons natildeo despiciendos lhe destinas

Legados sus ao pavilhatildeo de Aquiles

Aqui mesmo os nomeio e natildeo recusem

135 Feacutenix guie de Juacutepiter privado

O magno Ajax o sapiente Ulisses

E arautos Hoacutedio e Euribates com eles

Aacuteguas agraves matildeos freio agraves liacutenguas deprequemos

De noacutes se comisere o deus supremo

140 O aviltre aceitam linfa arautos vertem

E de urnas coroadas vertem servos

Dos auspicantes pelos copos vinho

Fartos de libaccedilotildees iam saindo

168

Nestor a cada um lanccedilando os olhos

145 E ao Laeacuterticles mais no empenho os firma

De abrandar o magnacircnimo Pelides

Pelas do mar fluctissonantes praias

Ao padre Enosigeu vatildeo suplicando

Que as entranhas do Eaacutecida comova

150 Jaacute no arraial dos Mirmidotildees o encontram

A recrear-se na artefacta lira

Que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros dEtion faccedilanhas

De valentes cantava e soacute Patroclo

155 Taacutecito agrave espera estaacute que finde o canto

Chegam-se agrave testa Ulisses e o Pelejo

Em peacute na sestra a lira estupefato

Com seu fido consoacutecio as destras cerra

Que urge a que vindes Bem que irado amigos

160 Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezo

(2003 216-217)

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes (1897 ndash 1990)

Disse-lhe tudo o Gerecircnio Nestor condutor de cavalos

Filho glorioso de Atreu Agameacutemnone rei poderoso

o que ofereces a Aquiles de fato natildeo eacute despiciendo

Ora sem perda de tempo emissaacuterios a jeito escolhamos

para os enviar com recados agrave tenda de Aquiles Peleio

Deixa que eu proacuteprio os nomeie ningueacutem objeccedilotildees anteponha

A direccedilatildeo tome o heroacutei predileto dos deuses Fenice

o grande Ajaz depois venha e Odisseu o divino guerreiro

Sigam tambeacutem como arautos Odio e o impecaacutevel Euriacutebates

As matildeos lavemos observe-se em tudo completo silecircncio

quando imploramos a Zeus que haacute de ter de noacutes todos piedaderdquo

Foi o discurso do velho Nestor agradaacutevel a todos

Fazem vir aacutegua e os arautos por cima das matildeos a despejam

Teacute pelas bordas escravos as taccedilas encheram de vinho

distribuindo por todos os copos as sacras primiacutecias

169

Logo que todos haviam comido e bebido agrave vontade

os emissaacuterios deixaram a tenda do Atrida Agameacutemnone

Observaccedilotildees a ecircles todos o velho Nestor faz ainda

acompanhadas de olhar expressivo a Odisseu com mais ecircnfase

socircbre a maneira melhor de suadir o divino Pelida

Ambos entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

preces alccedilando a Posido que os muros da terra sacode

para que focircsse possiacutevel dobrar o Pelida altanado

Quando chegaram agraves tendas e naves dos fortes Mirmiacutedones

aiacute enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora

de cavalete de prata tocircda ela de bela feitura

que ecircle do espoacutelio do burgo de Eeciatildeo para si separara

O coraccedilatildeo deleitava faccedilanhas de heroacuteis decantando

Em frente decircle sogravemente calado encontrava-se Paacutetroclo

Pacientemente a esperar que o Pelida concluiacutesse o seu canto

Ambos entatildeo avanccedilaram servia Odisseu como guia

Param defronte do heroacutei Espantado de vecirc-los Aquiles

sem que o instrumento soltasse a cadeira de um salto abandona

O mesmo Paacutetroclo fecircz ao notar a presenccedila de estranhos

A ambos Aquiles veloz cumprimenta dizendo o seguinte

Salve Bem grave eacute sem duacutevida a causa de aqui terdes vindo

Ainda que muito agastado sois ambos os que eu mais distingo

(S d 208)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Neacutestor entatildeo ginete exiacutemio redarguiu

Glorioso Atreide rei-dos-homens Agamecircmnon

natildeo despreziacuteveis dons ofereces a Aquiles

Mas raacutepido emissaacuterios de escol para a tenda 165

do filho de Peleu se dirijam Avante

Aqueles para os quais acene me obedeccedilam

Fecircnix seja o primeiro em comando cariacutessimo

a Zeus Entatildeo o grande Aacutejax Odisseu divo

e os arautos Odio e Euriacutebates os dois 170

Que se lavem as matildeos em silecircncio augurai

170

Roguemos a Zeus Pai piedade para os Gregos

Falou Palavras gratas aos ouvintes todos

Os arautos de pronto versam aacutegua agraves matildeos

e os mais jovens coroaram de vinho as crateras 175

ateacute as bordas e a todos encheram as copas

Feitas as libaccedilotildees aos deuses todos bebem

de coraccedilatildeo agrave larga e da tenda do Atreide

Agamecircmnon se vatildeo Neacutestor Gerenio exiacutemio

ginete faz apelos de olhar a eles todos 180

sobretudo a Odisseu encarece persuada

Aquiles o Peleide imaacuteculo Entatildeo eles

pelas praias do mar polissonoras marcham

muitas preces erguendo ao deus circum-terrestre

a Posecircidon Tremor-de-terra que movesse 185

o coraccedilatildeo de Aquiles Junto agraves naus e tendas

dos Mirmidotildees o encontram Tangia uma lira

mdash cordas presas em trave de prata mdash artefato

dedaacuteleo que o enlevava do espoacutelio de Eeciatildeo

e a cujos sons cantava gestas de heroacuteis Paacutetroclo 190

soacute silencioso senta-lhe defronte e espera

que ele termine o canto Odisseu guiando os nuacutenciacuteos

chegam agrave frente dele e param O Peleide

sustendo a lira salta abismado do soacutelio

onde sentava Paacutetroclo ao vecirc-los levanta-se 195

Aquiles peacutes-velozes daacute-lhes as boas-vindas

Salve Eis aqui guerreiros amigos Algum

motivo urgente grave eacute que vos traz a mim

Ainda que irado sois-me entre os Gregos cariacutessimos

(2002 339)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

E respondeu-lhe em seguida Nestor velho cavaleiro

Atrida assinaladiacutessimo senhor de homens Agamecircnon

daacutedivas natildeo indevidas daacutes ao soberano Aquiles

Mas vamos seletos homens incitemos que depressa 165

171

se dirijam agrave cabana dele do Pelida Aquiles

anda aqueles em quem eu puser os olhos acatem

que primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frente

e entatildeo em seguida Max grande e o divino Odisseu

dentre os arautos que Odio e Euriacutebato os acompanhem 170

Trazei aacutegua para as matildeos e solicitai silecircncio

para que oremos a Zeus Cronida a ver se tem pena

Disse assim e proferiu fala grata a todos eles

Os arautos de imediato vertem aacutegua sobre as matildeos

os jovens enchem entatildeo as crateras de bebida 175

e as distribuem a todos mdash libando antes com os caacutelices

Apoacutes libar e beber quanto o acircnimo queria

se apressaram da cabana dele do Atrida Agamecircnon

E a eles muito ordenou Nestor velho cavaleiro

(olhando pra cada uni) sobretudo a Odisseu 180

que tentassem convencer ao ilibado Pelida

E partiram pela praia do murmurejante mar

ambos clamando muitiacutessimo ao Terra-tem Treme-terra

por convencer facilmente o grande acircnimo do Eaacutecida

E chegaram logo agraves naus e agraves cabanas dos mirmiacutedones 185

o encontraram deliciando o acircnimo com lira liacutempida

bela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)

que apanhara dos despojos destruiacuteda a polis de Eeacutecion

Com ela se deliciava cantando as gloacuterias dos homens

Sozinho com ele Paacutetroclo sentava em frente em silecircncio 190

aguardando quando o Eaacutecida terminasse de cantar

Os dois avanccedilam mdash agrave frente vai o divino Odisseu mdash

e param diante dele atocircnito Aquiles se ergue

a lira ainda nas matildeos deixando o assento em que estava

Paacutetroclo do mesmo modo ao ver os heroacuteis levanta-se 195

E saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquiles

Salve Entrai sim como amigos (sim eacute grande a precisatildeo)

voacutes que a mim sois mdash mesmo irado mdash os mais caros dos acaiosrdquo

(2006 334)

172

Comentaacuterios sobre o fragmento

Passemos ao largo de algumas questotildees importantes relativas ao episoacutedio para

nos atermos agravequelas ligadas a esse breve fragmento (e particularmente como as vecircem

alguns dos tradutores escolhidos) antes de procedermos agrave anaacutelise das traduccedilotildees

Um aspecto do fragmento a se ressaltar jaacute muito discutido por estudiosos da

obra homeacuterica eacute a questatildeo do uso repetido de verbos na forma dual (proacutepria para a

dupla) a partir do verso 182 uma vez que foram trecircs os enviados agrave tenda de Aquiles

(Fecircnix Aacutejax e Odisseu) Sobre este tema (compartilhando em sua explicaccedilatildeo da visatildeo

de Denys Page manifestada no apecircndice agrave sua obra History and the homeric Iliad

1959) diz Carlos Alberto Nunes

O que importa eacute chegarmos ao verso 182 no ponto em que se diz que como os

componentes da embaixada se puseram a caminho depois de ouvidas as uacuteltimas

recomendaccedilotildees de Nestor ldquoAmbosrdquo entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

Como se eram trecircs os embaixadores Dez linhas adiante encontramos novamente

o dual quando os emissaacuterios chegam agrave tenda de Aquiles e tambeacutem na saudaccedilatildeo

com que este os recebe num misto de surpresa e alegria ainda que muito agastado

ldquosois ambosrdquo os que eu mais distingo

Os partidaacuterios da unidade a todo custo dos poemas de Homero recorrem a

subterfuacutegios para explicar a irregularidade mas o fato eacute que o Canto IX da Iliacuteada

tal como nos foi transmitido deixa perceber as suturas por que passou o episoacutedio

da embaixada ao ser incorporado na trama do poema [] No primitivo traccedilado os

embaixadores eram apenas dois Ajaz e Odisseu [] Aleacutem do mais as falas dos

dois primeiros se diferenciam estilisticamente da de Fenice []

Mas natildeo eacute tudo dizer-se que o canto da embaixada sofreu retoques todo ele soacute mui

tardiamente foi incorporado agrave Iliacuteada

Ao abordar esta questatildeo Andreacute Malta considerando outras hipoacuteteses relativas a

ela175

observa que ldquoFecircnix natildeo segue com eles [Aacutejax e Odisseu] pois fora na frente o

que explica a repetida conjugaccedilatildeo dos verbos no dual a partir desse pontordquo

esclarecendo que ldquodevemos [] simplesmente entender que no texto (v 168

hegesaacutestho) estaacute indicado que Fecircnix foi na frente (e natildeo agrave frente) e natildeo avisou Aquiles

175O referido autor menciona a ediccedilatildeo de Jasper Griffin do Canto IX ndash Homer Iliad IX Oxford 1995 e a

obra de Pierre Chantraine Grammaire homeacuterique Paris 19481953

173

da vinda dos companheirosrdquo (2006 295) Para o autor assim a duacutevida se resolve

mediante a atribuiccedilatildeo do significado de ldquoir na frenterdquo equivalente a ldquoir antesrdquoagrave forma

verbal (hegesaacutestho) (imperativo aoristo voz meacutedia do verbo

egeacuteomai)) sentido considerado em sua traduccedilatildeo Escapa ao foco de interesse

deste estudo a discussatildeo acerca de tal hipoacutetese sendo-nos pertinente apenas consideraacute-

la como uma interpretaccedilatildeo determinante176

no caso de um aspecto da soluccedilatildeo

tradutoacuteria comparando-a com aquelas dadas pelos demais tradutores relativamente a

esta questatildeo (o que seraacute feito adiante)

Outro aspecto a ser apontado eacute o uso da mesma expressatildeo formular encontrada

no verso 34 do Canto I (paragrave thicircna

polyphloiacutesboio thalaacutesses) tal emprego possibilitaraacute tambeacutem a observaccedilatildeo comparativa

do procedimento adotado pelos tradutores em relaccedilatildeo agraves foacutermulas homeacutericas

Encontra-se neste fragmento a significativa passagem de Aquiles cantando ao

som de sua lira177

cena cuja descriccedilatildeo permitiraacute especialmente observar

procedimentos dos tradutores escolhidos Mas eacute a diversidade relativa aos dois versos

finais do fragmento que nos traraacute uma possibilidade clara de anaacutelise das soluccedilotildees

tradutoacuterias agrave luz da interpretaccedilatildeo em termos semacircnticos norteadora de cada uma dessas

soluccedilotildees inserida na oacuteptica ldquogeralrdquo de cada tradutor Sobre esses versos comenta Malta

acerca do uso da palavra (khreoacute) ldquoprecisatildeordquo (na afirmaccedilatildeo (eacute

ti mala khreoacute) traduzida por ele como ldquosim eacute grande a precisatildeordquo) que tal substantivo

176 Diga-se apenas que a possibilidade de tal interpretaccedilatildeo pode se dar a partir da definiccedilatildeo do verbo

encontrada em Lidell amp Scott ldquoto go before lead the wayrdquo ainda que ldquobeforerdquo tambeacutem possa

ter o sentido de ldquoagrave frente na dianteirardquo ou ldquona vanguardardquo encerra o significado de ldquoantesrdquo (Houaiss

1982) ldquolead awayrdquo (ldquolevar (conduzindo)rdquo id) eacute o outro sentido possivelmente atribuiacutedo agrave mesma

expressatildeo tomado por Page e outros 177 Dada sua relevacircncia inclua-se um comentaacuterio acerca de seus possiacuteveis sentidos a partir das

observaccedilotildees de Malta (2006) Este autor parte da colocaccedilatildeo de Bryan Hainsworth ndash segundo a qual a

motivaccedilatildeo para o canto de Aquiles seria ldquorealizar pela palavrardquo o que natildeo podia ldquorealizar em atosrdquo uma

vez que desonrado havia se afastado da luta ndash para estender a motivaccedilatildeo a um apego do heroacutei ao

ldquomecanismo de ordenaccedilatildeo e significaccedilatildeo do mundo que satildeo as palavras das Musas mecanismo

oportunamente reclamado diante de sua posiccedilatildeo de heroacutei desonradordquo tal canto consistiria num ldquocanto

pronunciado por um heroacutei que busca exatamente na glorificaccedilatildeo de feitos humanos uma sustentaccedilatildeo para

sirdquo reafirmando assim o proacuteprio ldquovalor do canto da Iliacuteada por que apontaria para o fato de que na iminecircncia da des-significaccedilatildeo eacute o canto divino que traz orientaccedilotildees (claras ou obscuras) para a vida

humanardquo Para Malta (cuja obra aqui referida tem por tema central a (aacutete) ndash definida por ele como

ldquoperdiccedilatildeordquo ndash na Iliacuteada) esse ato de Aquiles encerra um paradoxo ldquo[] a entoaccedilatildeo de um eacutepico por parte

de Aquiles aleacutem de se identificar com a afirmaccedilatildeo de seu eacutepico e de seu significado identifica-se

tambeacutem contrariamente com a negaccedilatildeo de seu eacutepico ou com a afirmaccedilatildeo de sua falta (para ele Aquiles)

de sentido por lhe surgir como grande farsa e soacute pode lhe surgir de tal modo porque o heroacutei no

momento passa a ser incapaz de perceber o alcance de seus atosrdquo (2006 150-153)

174

ldquonos remete a seu emprego pelo mesmo Aquiles no Canto I quando entatildeo afirmou aos

arautos de Agamecircnon que um dia haveria ldquoprecisatildeordquo (v 341) de que ele afastasse a

ruiacutena ultrajante dos acaios A precisatildeo de agora seria portanto a precisatildeo jaacute prevista

pelo Pelida atraacutesrdquo a presenccedila dos heroacuteis que lhe foram enviados permitiria a ele

ldquoafirmar com indisfarccedilaacutevel satisfaccedilatildeo que era chegado o momento de os acaios

reconhecerem seu valorrdquo Segundo Malta o mesmo verso no entanto tambeacutem pode

referir-se agrave ldquoprecisatildeo que o proacuteprio Aquiles tinha dos amigosrdquo ldquotanto os acaios

precisam vir a ele e lhe suplicar porque dele precisam quanto ele precisa que os acaios

a ele venham e lhe supliquem porque a suacuteplica eacute uma oportunidade de reconhecimento

do seu valorrdquo (2006 143-155) (Cabe relembrar aqui que a poesia considerada

genericamente do ponto de vista da linguagem e independentemente das

especificidades de determinada poeacutetica tem na ambiguidade uma de suas

caracteriacutesticas por este acircngulo a soluccedilatildeo da duacutevida sobre a quem se refere a palavra

ldquoprecisatildeordquo natildeo soacute natildeo eacute obrigatoacuteria como eacute indesejada pela possibilidade de ampliaccedilatildeo

de sentido que a ambiguidade proporciona (como se vecirc pela citaccedilatildeo acima))

Feitas tais consideraccedilotildees realizemos a seguir uma breve anaacutelise das traduccedilotildees

do fragmento localizada em alguns de seus pontos e caracteriacutesticas

De maneira geral a traduccedilatildeo menos voltada agrave literalidade eacute a de Manuel Odorico

Mendes No caso deste trecho seu compromisso com a siacutentese eacute particularmente

visiacutevel e se torna mesmo um caso notaacutevel de realizaccedilatildeo nesse plano usando de

transposiccedilotildees e modulaccedilotildees (notadamente inversotildees caracteriacutestica de sua dicccedilatildeo) e

evidentemente de omissotildees ndash sem contudo suprimir o que parece ldquoessencialrdquo ao

sentido e nem mesmo o detalhe em prata da lira ndash obteacutem uma descriccedilatildeo breve

dinacircmica e concentrada para a cena de Aquiles tocando seu instrumento ldquo[] o

encontram A recrear-se na artefacta lira que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros drsquoEtion faccedilanhas De valentes cantava e soacute Paacutetroclo Taacutecito agrave espera

estaacute que finde o cantordquo Note-se na passagem a alta concentraccedilatildeo tambeacutem sonora

urdida principalmente de aliteraccedilotildees que aceleram o ritmo dos versos agrave densidade do

sentido soma-se a densidade focircnica compondo uma relaccedilatildeo peculiar entre ambos que

introduz um clima contraditoriamente vibrante e tenso a uma situaccedilatildeo anunciada como

deleitosa mas ao mesmo tempo coerente com a intensidade de um canto feito de fatos

heroacuteicos a tensatildeo pode tambeacutem prenunciar a chegada abrupta dos mensageiros numa

sequecircncia igualmente admiraacutevel pela concisatildeo ldquoChegam-se agrave testa Ulisses e o Peleio

175

Em peacute na sestra a lira estupefacto com seu fido consoacutecio as destras cerra ldquoQue

urge a que vindes Bem que irado amigos Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezordquo

As aliteraccedilotildees (principalmente em t p e c aleacutem da trilha de fricativas) associadas agraves

assonacircncias e panonomaacutesias (como entre testa e sestra) perpassam tambeacutem esses

versos engendrando nesse niacutevel a continuidade das cenas e conservando sua tensatildeo

esta de certo modo culmina com o cerramento da matildeo direita (inexistente no original

um acreacutescimo portanto) e este por sua vez liga-se agrave ira pelo heroacutei referida subjacente

agrave alegria que manifesta pela chegada dos amigos natildeo me parece absurda a leitura de

que pela associaccedilatildeo som-sentido esta traduccedilatildeo arma (independentemente da

intencionalidade de seu autor) um quadro de conflito adequado ao momento paradoxal

vivido por Aquiles e agrave ldquocegueirardquo (ou ldquoperdiccedilatildeordquo) ndash (aacutete) ndash em relaccedilatildeo agraves

consequecircncias de seus atos (Sobre o original ainda que natildeo se possa afirmar que haja

neste trecho uma especial concentraccedilatildeo de aliteraccedilotildees elas estatildeo presentes de forma

clara e ateacute onde me eacute dado perceber a tensatildeo sonora estaacute presente na passagem ainda

que de forma inerentemente menos compacta que a dos decassiacutelabos de Odorico)

Tensatildeo sonora semelhante se pode perceber nos versos de Haroldo de Campos

densos envolvendo tambeacutem sequecircncias aliterantes que aceleram seu ritmo como em

ldquo[] Tangia uma lira ndash cordas presas em trave de prata ndash artefactordquo ou ldquosustendo a lira

salta abismado do soacutelio onde sentavardquo A siacutentese eacute igualmente caracteriacutestica desta

versatildeo coerentemente aos pressupostos que a orientam Quanto a este aspecto as

demais traduccedilotildees tambeacutem de modo coerente aos pressupostos de seu meacutetodo satildeo mais

analiacuteticas tendendo agrave literalidade Embora a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes possa

ser como jaacute se viu em relaccedilatildeo ao fragmento do Canto I considerada proacutexima da

literalidade eacute na traduccedilatildeo de Andreacute Malta que esta mais se realiza como no

versokalecirc daidaleacutee epigrave drsquoargyrion

zygoacuten een) traduzido como ldquobela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)rdquo em que

apenas com o recurso da transposiccedilatildeo e do acreacutescimo de uma pontuaccedilatildeo conservam-se

todas as palavras do original (ainda que com alguma modulaccedilatildeo)

Como jaacute se disse a medida dos versos usados por Malta e por Nunes tende a

favorecer a literalidade mas o primeiro parece ater-se mais a este propoacutesito associado agrave

priorizaccedilatildeo do sentido baseando-se para tanto principalmente em sua leitura

interpretativa do original fundamentada por sua vez em questotildees apontadas por

especialistas na obra homeacuterica este ponto de vista (que inclui a preocupaccedilatildeo com a

176

natureza oral da eacutepica e seu aspecto ldquopopularrdquo) eacute determinante de seu meacutetodo e do

consequente resultado distinguindo-a claramente das demais quanto ao modo de

abordagem de duacutevidas em relaccedilatildeo ao significado do original e suas ambiguidades

Vejamos este aspecto ao tratar de pontos levantados anteriormente sobre o fragmento

No caso das foacutermulas evidencia-se mais uma vez a preocupaccedilatildeo de Malta em

mantecirc-las inalteradas a cada ocorrecircncia o que natildeo sucede sempre nas demais traduccedilotildees

Campos conserva a forma de epiacutetetos (no caso ldquoAquiles peacutes-velozesrdquo ndash

correspondente a (poacutedas okys Akhilleuacutes) como estaacute no verso

196 constante do fragmento aparece por exemplo no verso 48 do Canto XVI pode

surgir no entanto em posiccedilotildees diversas e mesmo independentemente de figurar no

original como no caso do verso 166 do mesmo canto) mas natildeo de outras expressotildees

formulares como se pode constatar na foacutermula relativa ao mar se nos versos do Canto I

aparecia para (paragrave thicircna polyphloiacutesboio

thalaacutesses) ao longo do mar de poliacutessonas praias no verso 183 do Canto XIX aparece

ldquopelas praias do mar polissonorasrdquo (mesmo que se considere como foacutermula apenas a

expressatildeo (polyphloiacutesboio thalaacutesses) haacute portanto

mudanccedila) Opccedilotildees como esta que evidenciam a natildeo-obrigatoriedade da perspectiva

deste tradutor de correspondecircncia com o aspecto imutaacutevel da foacutermula tambeacutem podem

indicar o compartilhamento da visatildeo de Odorico Mendes de ldquoevitar as repeticcedilotildees e a

monotoniardquo (agrave qual estaria mais sujeita uma liacutengua natildeo-flexionaacutevel) A mesma foacutermula

tambeacutem eacute modificada por Odorico neste fragmento conservando-se no entanto em sua

principal parte em vez de ldquoBusca as do mar fluctissonantes praiasrdquo presente no Canto

I encontra-se agora ldquopelas do mar fluctissonantes praiasrdquo (fica mantida assim a

sonoridade apontada anteriormente acrescida de uma aliteraccedilatildeo entre ldquopelasrdquo e

ldquopraiasrdquo) na versatildeo de Nunes a foacutermula ldquopela praia do mar ressoanterdquo se conserva

variando apenas sua colocaccedilatildeo na frase (a mesma expressatildeo eacute usada por ele contudo

para a construccedilatildeo (regmini thalaacutesses) no verso 67 do Canto XVI o

que revela o desapego agrave repeticcedilatildeo exata do sintagma original indicando um criteacuterio de

escolha e coerecircncia interno agrave traduccedilatildeo) Quanto ao epiacuteteto atribuiacutedo a Aquiles ele

sequer aparece na traduccedilatildeo de Odorico em Nunes surge a forma ldquoAquiles velozrdquo no

verso 196 do Canto IX enquanto no verso 48 do Canto XVI estaacute ldquoAquiles de peacutes muito

raacutepidosrdquo evidenciando a flexibilidade com que satildeo trabalhados os epiacutetetos pelo

177

tradutor No caso de Malta coerentemente a suas diretrizes conserva-se a forma e a

posiccedilatildeo da foacutermula ldquoo peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo nos versos em que ela acontece nos

fragmentos que traduziu

A respeito do uso da forma dual nos versos gregos vinculado aos embaixadores

de Agamecircmnon a soluccedilatildeo apontada por Malta (relativa ao entendimento de

(hegesaacutestho) como ldquona frenterdquo) eacute exclusiva de sua traduccedilatildeo que conteacutem a

sequecircncia ldquoque primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frenterdquo ldquoE partiram []

ambos clamando []rdquo ldquoOs dois avanccedilam ndash agrave frente vai o divino Odisseu ndashldquo ldquoE

saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo Nunes manteacutem a contradiccedilatildeo gerada

pela compreensatildeo da referida palavra como ldquoagrave frenterdquo ldquona dianteirardquo ldquono comandordquo

utilizando ldquoambosrdquo para corresponder ao dual quando este surge ldquoA direccedilatildeo tome o

heroacutei predileto dos deuses Fenicerdquo ldquoAmbos entatildeo pela praia [] ldquoAmbos entatildeo

avanccedilaram servia Odisseu como guiardquo A ambos Aquiles veloz cumprimentardquo

Odorico passa ao largo do conflito desconsiderando a existecircncia do dual ldquoFecircnix guie

de Juacutepiter privadordquo ldquovatildeo suplicandordquo Chegam-se agrave testa Ulisses [] ldquoE o peleio []

com seu fido consoacuteciordquo Campos agrave semelhanccedila de Odorico elimina a contradiccedilatildeo ao

natildeo levar em conta a forma dual ldquo[] Entatildeo eles pelas praias do mar []rdquo []

Odisseu guiando os nuacutencios chegam agrave frente dele e paramrdquo Aquiles peacutes-velozes daacute-

lhes as boas vindasrdquo

Eacute de se supor no caso da soluccedilatildeo adotada por Nunes que sua intenccedilatildeo eacute manter

o que para ele representa uma evidecircncia da agregaccedilatildeo posterior de elementos a um texto

mais antigo no caso daquelas adotadas por Odorico e Campos a questatildeo pode-se

tambeacutem supor passa a ser secundaacuteria diante de seus objetivos mais voltados agrave recriaccedilatildeo

de um poema de modo a considerar sua dimensatildeo estrutural proacutepria ainda que como

afirma Campos ndash e talvez por isto mesmo ndash sua configuraccedilatildeo se defina

paramorficamente em relaccedilatildeo ao original (este aspecto seraacute tratado ainda de modo

mais detido adiante)

Quanto agrave questatildeo relativa ao emprego da palavra (khreoacute) (ldquonecessidade

falta desejo saudaderdquo ndash Isidro Pereira) no verso 197 apenas Malta manteacutem utilizando

o vocaacutebulo ldquoprecisatildeordquo a ambiguidade por ele apontada em relaccedilatildeo ao sujeito da

necessidade ldquo[] (sim eacute grande a precisatildeo)rdquo Odorico emprega a noccedilatildeo de necessidade

encerrando-a na forma de pergunta soluccedilatildeo que lhe permite uma construccedilatildeo sinteacutetica

ldquoQue urge A que vindes []rdquo tal soluccedilatildeo claramente opta pela atribuiccedilatildeo da urgecircncia

178

aos visitantes e natildeo a ele proacuteprio Eacute num sentido tambeacutem ligado a ldquourgirrdquo ldquourgecircnciardquo

(ldquosituaccedilatildeo criacutetica ou muito grave que tem prioridade sobre outrasrdquo ndash Dicionaacuterio

Houaiss 2001) que Nunes constroacutei seu verso ldquo[] Bem grave eacute sem duacutevida a causa

de aqui terdes vindordquo a soluccedilatildeo de Campos aproxima-se semanticamente das de Nunes

e Odorico ldquoAlgum motivo urgente grave eacute que voz traz a mimrdquo

Feita esta raacutepida anaacutelise comparativa das traduccedilotildees do fragmento do Canto IX

voltemos a questotildees fundamentais acerca de sua diversidade O que as distingue

essencialmente eacute a opccedilatildeo por considerar ndash ou natildeo ndash suas caracteriacutesticas ditadas pela

cultura e pela liacutengua gregas como absolutas no sentido da referecircncia formal agrave

composiccedilatildeo Tais caracteriacutesticas ligadas agrave natureza oral da poesia eacutepica satildeo ndash ou natildeo ndash

tomadas como padratildeo composicional pelos tradutores (independentemente inclusive da

convicccedilatildeo acerca de tal oralidade) Inseridos na cultura letrada que deteacutem conceitos

proacuteprios acerca de arte literatura e poesia o tradutor pode guiar-se por conceitos que

lhe satildeo externos ndash no caso advindos da cultura oral ndash ou orientar-se pelos padrotildees de

sua proacutepria cultura acerca da composiccedilatildeo poeacutetica recriando dentro destes padrotildees o que

seria anaacutelogo ao original provindo de cultura diversa naquilo que ele considera

essencial a este do ponto de vista esteacutetico

Se como vimos a partir de Havelock a praacutetica oral e a letrada natildeo satildeo

mutuamente exclusivas e os poemas homeacutericos satildeo ldquoconstruccedilotildees complexasrdquo que

ldquorefletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o escritordquo a tensatildeo entre estes dois

ldquopoacutelos opostosrdquo permitiraacute do ponto de vista da leitura (entendida em seu sentido amplo)

do original e de sua traduccedilatildeo ou uma diretriz a partir de suas caracteriacutesticas que satildeo

proacuteprias do mundo oral ou outra na qual a consideraccedilatildeo dos elementos do poema se daacute

a partir da cultura letrada e de sua visatildeo acerca do fenocircmeno poeacutetico que inclui como

vimos aquilo de comum que haacute ndash do ponto de vista da linguagem ndash entre as

composiccedilotildees de eacutepocas tatildeo distantes como a antiguidade e a nossa Evidentemente

ambas as diretrizes encontram-se no plano de intersecccedilatildeo entre a oralidade e a escrita

(entre os aludidos ldquopoacutelosrdquo) o que as distinguiria basicamente seria a adoccedilatildeo de um ou

outro referente para a definiccedilatildeo das regras orientadoras de sua recriaccedilatildeo o que envolve

inevitavelmente a funccedilatildeo da poesia numa ou noutra cultura (oral ou letrada)

Neste sentido traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (principalmente pela

transposiccedilatildeo direta do metro grego) e Andreacute Malta (pela adoccedilatildeo de metro considerado

179

anaacutelogo ao original por suas caracteriacutesticas ligadas agrave oralidade) adviriam de um ponto

de vista que parte de padrotildees caracteriacutesticos da poesia na cultura arcaica ligados agrave sua

funccedilatildeo em sua cultura (jaacute que independentemente das convicccedilotildees de Nunes acerca da

natureza oral ou natildeo autoral ou natildeo da eacutepica grega ele incorporou um padratildeo fiacutesico

caracteriacutestico da poesia homeacuterica178

) Contudo mesmo que orientados por uma oacuteptica

que se pode considerar intriacutenseca aos padrotildees da composiccedilatildeo oral eacute inevitaacutevel que a

visatildeo da cultura em que se insere o tradutor e a maneira como concebe o fenocircmeno

poeacutetico bem como sua concepccedilatildeo acerca das criaccedilotildees de outras eacutepocas propiciada pelo

uso de instrumentos de anaacutelise e interpretaccedilatildeo de que dispotildee exerccedilam papel decisivo na

atividade tradutoacuteria no caso de Malta as hipoacuteteses voltadas ao esclarecimento de

contradiccedilotildees e ambiguidades do original grego satildeo ainda que investigativas fruto da

cultura contemporacircnea e do modo com esta pode ldquorefazerrdquo a loacutegica e a coerecircncia de

sentido onde elas natildeo se datildeo sem que se construa uma tentativa de explicaacute-las embora

tenha o objetivo de resgate de significados estes seratildeo sempre tambeacutem resultantes da

leitura que poderaacute envolver formulaccedilotildees hipoteacuteticas produtoras de sentido (uma vez

que o campo da incerteza e mesmo da mutabilidade do significado eacute intransponiacutevel)

Na teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash que considera o poema e a traduccedilatildeo

deste como ligados ldquoentre si por uma relaccedilatildeo de isomorfiardquo sendo ldquodiferentes enquanto

linguagemrdquo (a obra traduzida eacute uma ldquooutra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnomardquo) mas que

ldquocomo os corpos isomorfosrdquo cristalizam-se ldquodentro do mesmo sistemardquo ndash o original

natildeo eacute tomado como estrutura fixa o ato de traduzir eacute visto como uma ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto original jaacute preacute-formado

numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em reebuliccedilatildeo de lavardquo Como jaacute se disse

antes a dissolvecircncia de tal ldquodiamantizaccedilatildeordquo implica transformaccedilatildeo estrutural o sentido

do isomorfismo (ou do paramorfismo) envolve a noccedilatildeo de substacircncias diferentes e a

analogia de estrutura se daacute natildeo por paracircmetros fixos impostos externamente ao que se

recria mas ndash conforme entendo ndash pela reconstruccedilatildeo estrutural que se sustente como

178 C A Nunes dizia-se em relaccedilatildeo aos estudos da eacutepica grega filiado agrave corrente analiacutetica (para quem

nas palavras do tradutor ldquoeacute apenas aparente a unidade dos dois poemas [Iliacuteada e Odisseia] que se

formaram pela uniatildeo mal ajeitada de composiccedilotildees menoresrdquo (sd 10) Alertava no entanto que suas

conclusotildees pareceriam paradoxais uma vez que defendia ldquoa unidade de concepccedilatildeo da Iliacuteada e a pluralidade da Odisseiardquo atribuindo-lhes autoria diversa Para ele ldquoa Iliacuteada e a Odisseia representam a

fase uacuteltima do movimento eacutepico na Greacutecia firmando-se os dois poemas em copioso material preacute-

existente isto eacute em poemas de proporccedilotildees menores em sagas lendas mitos de origem variada que iam

sendo incorporados a conjuntos cada vez mais complexos Mas no caso da Iliacuteada um grande poeta ndash que

poderaacute ser o tatildeo discutido Homero histoacuterico ndash conseguiu uma siacutentese admiraacutevel com esse material

heterogecircneo a que imprimiu o cunho de seu grande gecircniordquo (id 11)

180

corpo autocircnomo paralelo e ao mesmo tempo anaacutelogo em suas relaccedilotildees constituintes

consideradas essenciais aquelas decorrentes da iconicidade do signo ou seja a teia de

relaccedilotildees sonoras e imageacuteticas que formam o conjunto cuja funcionalidade decorreraacute de

uma nova criaccedilatildeo de um novo cristal que ldquobrilherdquo (ou para usar outra analogia de

ldquoorganismordquo que funcione) independentemente no contexto em que surge (ou

ldquonascerdquo) Na oacuteptica de Campos portanto ndash que leva em conta tambeacutem o conceito

poundiano make it new (tornar novo) ndash o corpo isomoacuterfico teraacute um metro e outras

caracteriacutesticas proacuteprias da cultura em que a traduccedilatildeo se insere dentro das quais se recria

o conjunto de relaccedilotildees essenciais que tornam o conjunto uma informaccedilatildeo esteacutetica Isto

natildeo impede no entanto como jaacute se viu que se busque alargar os limites da proacutepria

liacutengua com criaccedilotildees vocabulares ou sintaacuteticas baseadas na liacutengua do original mas eacute

dentro da funcionalidade da obra na proacutepria cultura que se buscaraacute estender seus

paracircmetros Assim no caso particular do verso hexacircmetro dada a natureza diversa das

substacircncias sua consideraccedilatildeo como referecircncia fixa e sua simples transposiccedilatildeo

implicariam a perda de algo isto sim tido como essencial para o tradutor a dinacircmica

associada agrave siacutentese que do ponto de vista de Campos natildeo eacute estranha ao original a

concisatildeo nesta forma de pensar se daacute pela concentraccedilatildeo de efeitos pela densidade

poeacutetica pela relaccedilatildeo cerrada entre seus elementos (natildeo eacute difiacutecil perceber numa simples

leitura quatildeo densa eacute a relaccedilatildeo sonora presente nos versos gregos) Se em nossa liacutengua o

verso excessivamente longo pode levar agrave perda da musicalidade e agrave aproximaccedilatildeo com a

prosa outros valores se elevaratildeo para a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em vez da medida

original por exemplo a escolha baacutesica de um metro fixo sendo este metro adequado

aos padrotildees de sensibilidade do contexto da traduccedilatildeo ainda que este possa ser

ldquoalargadordquo em seus lindes

No caso de Odorico Mendes como vimos eacute niacutetida sua opccedilatildeo por guiar-se pelos

valores esteacuteticos de sua eacutepoca e de sua cultura tomando entatildeo o verso ldquoheroacuteicordquo como

padratildeo o que lhe permitiu levar a cabo seu objetivo de siacutentese radical para ele

tambeacutem a narrativa natildeo eacute priorizada em relaccedilatildeo agrave urdidura poeacutetica marcada pela

extrema densidade de efeitos

Para concluir este exerciacutecio reflexivo reafirme-se que nas diferentes traduccedilotildees

prevalece sobre a (por vezes buscada) ldquofidelidaderdquo ao original uma ldquofidelidaderdquo agraves

convicccedilotildees do tradutor a respeito da obra que traduz da proacutepria poesia e do que vem a

181

ser uma traduccedilatildeo Neste sentido recorde-se tambeacutem ainda que se possam distinguir ndash

sempre a partir de um ponto de vista criacutetico que tambeacutem relativiza seus julgamentos ndash

realizaccedilotildees mais plenas no plano esteacutetico todas as traduccedilotildees aqui consideradas satildeo

resultados vaacutelidos e proacuteprios de abordagens competentes embora diversas da eacutepica

grega Todas envolvem noccedilotildees de equivalecircncia mas compatiacuteveis com seus pontos de

vista a anaacutelise descritiva permanece por isso mais adequada como procedimento para

comparaccedilatildeo e estabelecimento de semelhanccedilas e diferenccedilas

A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise

Seratildeo abordados a seguir outros versos isolados e fragmentos de cantos da

Iliacuteada e da Odisseia Buscaremos introduzir alguns elementos agraves anaacutelises de modo a

caminhar no esboccedilo de possibilidades de desvendamento dos processos empregados

pelos diversos tradutores Incluiremos a traduccedilatildeo ldquopalavra-a-palavrardquo do grego como

iacutendice de sentido

Considerem-se os seguintes versos em grego dotados de particular sonoridade

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο (Iliacuteada I 46)

Ressoaram as flechas do ombro do furioso

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

terriacutevel ruiacutedo surgiu do prateado arco

Fazemos mais uma vez acompanhar os versos do que seria uma ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo (palavra-a-palavra) do grego tais palavras podem ser vistas como iacutendices da

construccedilatildeo das frases naquele idioma dando conta das informaccedilotildees delas apreensiacuteveis

ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquosentidordquo179

no entanto ao se ouvirem esses versos180

certamente algo do sentido pareceraacute perdido pela escolha das palavras

179 Se se quiser utilizar o referencial semioacutetico estariacuteamos no plano do siacutembolo da terceiridade (da qual

emergiram hipoiacutecones no processo de iconizaccedilatildeo do siacutembolo que buscaremos identificar tambeacutem nos

demais fragmentos estudados) 180 As observaccedilotildees feitas neste trabalho sobre a sonoridade dos versos e palavras em grego baseiam-se

na pronuacutencia mais habitual empregada nos cursos de formaccedilatildeo em liacutengua e literatura grega antiga

182

independentemente de sua ordem em portuguecircs Seguem-se novamente os versos

acompanhados de sua transliteraccedilatildeo

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Marquemos as repeticcedilotildees aliterativas (consoantes ou grupos consonantais

similares)

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemonkhoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Associadas agraves evidentes assonacircncias (repeticcedilotildees de vogais) as aliteraccedilotildees e

tambeacutem as semelhanccedilas de algumas palavras entre si colaboram para que se perceba

um efeito dos ruiacutedos referidos no plano do conteuacutedo segundo diferentes pontos de vista

teoacutericos diriacuteamos que a projeccedilatildeo paradigmaacutetica se realiza (funccedilatildeo poeacutetica) as palavras

parecem motivar-se os siacutembolos181

convertem-se em iacutecones (ou a rigor hipoiacutecones182

)

Nestes uacuteltimos termos advindos da semioacutetica de Peirce poderiacuteamos nos referir

a aspectos de primeiridade que emergeriam do contexto de terceiridade os sons que

ecoam reverberam nos versos aproximam-se por relaccedilotildees de contiguidade focircnica

formando-se uma tessitura sonora que sugere um caraacuteter qualitativo imageacutetico183

a

contiacutenua emissatildeo de flechas por Apolo em movimento Falariacuteamos inicialmente em

181 Observe-se que neste contexto adota-se o conceito de ldquosiacutembolordquo (e portanto de ldquosimboacutelicordquo)

proveniente da semioacutetica de Peirce diverso daquele empregado na semioacutetica oriunda da linguiacutestica isto eacute de Greimas e colaboradores (jaacute mencionado em capiacutetulo anterior em que se tratou de ldquorelaccedilotildees semi-

simboacutelicasrdquo) 182 Ver breve referecircncia agrave classificaccedilatildeo de signos por Peirce no primeiro capiacutetulo deste estudo 183 Seraacute utilizada como referecircncia para um possiacutevel exerciacutecio de anaacutelise a classificaccedilatildeo de trecircs tipos de

hipoiacutecones conforme apresentada por Santaella em Teoria geral dos signos (2000 119-120) a imagem

propriamente dita o diagrama e a metaacutefora

183

Aspectos de primeiridade ndash

Hipoiconicidade imageacutetica (contiacutenuo de sons sugerindo a accedilatildeo de Apolo)

1 Aliteraccedilatildeo

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras portanto relacionam-se pela hipo-iconicidade)

2 Assonacircncia

eacuteklangxan drsquoaacuteroiumlstoigrave errsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras se ligam tambeacutem pelas assonacircncias claro estaacute que as aliteraccedilotildees e

assonacircncias se ligam interpenetrando-se ndash a ldquoseparaccedilatildeordquo eacute feita apenas para

evidenciaccedilatildeo)

3 Paronomaacutesia (repeticcedilatildeo de conjuntos de sons semelhantes)

oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegravegeacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

4 Onomatopeia a sequecircncia de consoantes oclusivas (k d t g b) em ambos os

versos ocasionam o efeito de som forte imitativo de golpes batidas accedilotildees que

percutem

Quanto a aspectos de secundidade ndash hipoiconicidade anagramaacutetica (ver nota

177) ndash pode-se entrever um ldquodiagramardquo das posiccedilotildees das ldquofontes sonorasrdquo envolvidas na

accedilatildeo por meio das palavras posicionadas em cada linha na primeira na qual haacute

referecircncia ao ressoar das flechas as palavras se alongam proacuteprias da posiccedilatildeo relativa a

essa fonte de ressonacircncia na segunda em que a referecircncia se faz ao estridente arco haacute

palavras mais breves secas raacutepidas contundentes a indicarem a posiccedilatildeo relativa ao

arco como emissor do som Uma leitura possiacutevel demonstrando-se as possibilidades de

184

reconhecimento de inter-relaccedilotildees produtoras de sentido ainda que este se crie (ou se

recrie) pela observaccedilatildeo

Sobre os aspectos da terceiridade (para completarmos nossa leitura com base

nessa referecircncia) dada a brevidade do fragmento temos a identificar a construccedilatildeo da

relaccedilatildeo entre o estado de fuacuteria do deus o ato de emissatildeo de flechas e seu ressoar

ecoando a proacutepria fuacuteria assim como a estridecircncia ou retumbacircncia do arco que a

representam em maacutexima intensidade Neste plano o sentido pelo niacutevel simboacutelico

estabelecem-se na ldquomente interpretanterdquo (para usar terminologia da semioacutetica) as

relaccedilotildees de analogia entre a fuacuteria e os ruiacutedos contruiacuteda num crescendo de intensidade

Voltando agrave dimensatildeo da primeiridade note-se que a sonoridade desses versos

portanto participa da composiccedilatildeo do ldquosignificadordquo Resultam da percepccedilatildeo das

qualidades focircnicas que por diferenccedila e semelhanccedila chamam nossa atenccedilatildeo para sua

ldquomaterialidaderdquo a leitura atenta poderaacute ldquodesvelaacute-losrdquo agrave primeira audiccedilatildeo A ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo portanto ainda que do ponto de vista da ldquoequivalecircncia semacircnticardquo esteja a

contento deixa muito a desejar como recriaccedilatildeo dos versos uma vez que o sentido pleno

se faz exatamente da associaccedilatildeo entre o som e o chamado ldquosentidordquo ou seja o

ldquosignificadordquo Em que medida se deveria priorizar a equivalecircncia (ou correspondecircncia

palavra a palavra) no caso de versos cujo alcance de sentido ultrapassa a prerrogativa da

literalidade

Vejamos as soluccedilotildees obtidas pelos tradutores que temos focalizado

Odorico Mendes

Tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota (45 = 46)

Terriacutevel o arco argecircnteo estala e zune (47 = 49)

Carlos Alberto Nunes

A cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechas (46)

[nos ombros largos ]

185

Do arco de prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso (49)

Haroldo de Campos

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas (46)

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo (49)

Comecemos por Odorico

Tratando-se da informaccedilatildeo semacircntica ndash ldquoRessoaram as flechas ao ombro do

furiosordquo ndash o verso ldquotinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frotardquo omite o significado de

ldquofuriosordquo (ldquoiradordquo ldquocoleacutericordquo etc) no mais corresponde ao sentido com o acreacutescimo

de conteuacutedo relativo aos versos seguintes Contudo natildeo se trata neste caso

propriamente de omissatildeo (relembre-se o conceito ldquoocorre omissatildeo sempre que um dado

segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo podem ser recuperados

no texto metardquo ndash Aubert 2006) ocorre sim falta de repeticcedilatildeo do adjetivo epiacuteteto de

Apolo o verso 44 (βῆ δὲ κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ) eacute traduzido por

Odorico para ldquoDo veacutertice do ceacuteu baixa iracundordquo A palavra ldquoiracundordquo corresponde no

caso a χωόμενος (khooacutemenos encolerizado) particiacutepio presente (voz meacutedia) do verbo

χωoμaι (khoomai ldquoestar irritado enfadar-serdquo ndash Isidro Pereira) que apareceraacute

novamente (com a variaccedilatildeo no modo que permite no grego a repeticcedilatildeo associada agrave

mudanccedila) no verso 46 (χωoμενοιo khoomenoio ndash optativo aoristo voz meacutedia) Odorico

procura evitar a repeticcedilatildeo como jaacute se viu conforme o procedimento que adotou

vinculado agrave ideia de concisatildeo e de natildeo tornar a obra pouco ldquoapraziacutevelrdquo A informaccedilatildeo

portanto fora dada dentro do conjunto dos versos proacuteximos Quanto ao aspecto da

sonoridade o verso nada deixa a desejar pela alta concentraccedilatildeo de efeitos aliterantes e

assonantes

tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota

186

A escolha do verbo ldquotinirrdquo (palavra que parece motivada) permite associar o som

agudo das vogais agrave consoante oclusiva estabelecendo uma perfeita relaccedilatildeo som-sentido

que inclui as demais aliteraccedilotildees e semelhanccedilas uma sequecircncia de cinco consoantes

grupos consonantais que podem ser associados com o ruiacutedo das flechas lanccediladas por

Apolo concentraccedilatildeo correspondente agrave das consoantes oclusivas no verso grego

Especialmente concentrado de efeito portanto uma vez que o verso decassiacutelabo

(heroacuteico no caso de ambos os versos) eacute bem menor que o hexacircmetro pode-se pensar

em proporcionalidade quantitativa pois as ocorrecircncias tendem a se aglutinar mais no

menor verso em si mais concentrado Claro que os versos em sequecircncia com uso de

enjambement tecircm seus limites relativizados mas num caso como o de Odorico (como

se viu e veraacute com outros exemplos) o niacutevel de reuniatildeo de efeitos costuma ser alto A

ideia de proporccedilatildeo associada agrave simples observaccedilatildeo (percepccedilatildeo) do efeito produzido

num verso envolve a flexibilidade da ldquoequivalecircnciardquo como categoria natildeo-absoluta mas

apenas referecircncia do comportamento do texto recriado sob determinado aspecto O

verso 45 de Odorico (correspondente ao 46 em Homero jaacute que o procedimento do

tradutor envolve a diminuiccedilatildeo do nuacutemero de palavras e de versos em relaccedilatildeo ao texto

grego) apresenta ocorrecircncia anaacuteloga de primeiridade ou seja de hipoiconicidade

imageacutetica

Sobre o outro verso em questatildeo ldquoTerriacutevel o arco argecircnteo estala e zunerdquo eacute

evidente a cadeia de consoantes oclusivas assim como de constritivas (fricativas e

vibrantes) entre outras associaccedilotildees possiacuteveis (como a seguida repeticcedilatildeo de ldquoarrdquo aleacutem

de efeitos mais sutis como a inversatildeo entre ldquoecircnrdquo e ldquonecircrdquo) A presenccedila da iconicidade eacute

flagrante sem que a mediccedilatildeo seja necessaacuteria para o convencimento pelo efeito Dentro

de seus propoacutesitos e procedimentos estes versos isolados satildeo um indicador da fatura

(ainda que possa ser um momento especialmente dotado de eficiecircncia) de Odorico

poderiam ser exemplos de uso da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem de relaccedilatildeo som-sentido

hibridismo iacutecone-siacutembolo etc

Prossigamos com Carlos Alberto Nunes

Por vezes como eacute de se esperar ndash e nesse sentido veremos uma breve

amostragem natildeo calcada em criteacuterios estatiacutesticos mas apenas em busca de alguns

paradigmas ou padrotildees que componham o modo composicional do tradutor ndash Nunes

187

parece ter de preencher o verso longo com palavras adicionais a fim de manter a

paridade de versos com o texto grego Certas adjetivaccedilotildees que poderiam consistir numa

uacutenica palavra desdobram-se outras natildeo presentes no poema homeacuterico atrelam-se agrave

sequecircncia A escolha pela manutenccedilatildeo do ritmo uniforme em esquema ternaacuterio

descendente impotildee necessidades de distribuiccedilatildeo agrave qual a palavra deve adequar-se o que

amplia o nuacutemero de exigecircncias para a escolha semacircntica e vocabular Assim os versos

ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo e ldquoDo arco de prata comeccedila

a irradiar-se um clangor pavorosordquo assumem um caraacuteter mais descritivo pela variedade

de palavras usada coerentemente com a colocaccedilatildeo das tocircnicas na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e

16ordf siacutelabas sendo niacutetida a superioridade da configuraccedilatildeo do segundo verso em relaccedilatildeo

ao primeiro a comeccedilar pela tocircnica naturalmente posta na primeira siacutelaba Do arco de

prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso Certamente a concisatildeo natildeo eacute uma das

precondiccedilotildees de Nunes a favor desta opccedilatildeo pode-se dizer que o verso grego natildeo tem

igualmente o propoacutesito de siacutentese e que a concisatildeo eacute uma procura proacutepria de uma

eacutepoca de um contexto e de um autor No entanto como se poderaacute observar e concluir a

partir de poucos exemplos de trechos e muito melhor com a leitura geral das obras os

versos gregos apresentam uma certa ldquocondensaccedilatildeordquo de efeitos que os torna densos

ainda que natildeo necessariamente sucintos por suas funccedilotildees narrativa e descritiva No

plano do conteuacutedo ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo deixa de

de fora ou melhor para depois a informaccedilatildeo ldquonos ombrosrdquo (levada ao verso seguinte ndash

a omissatildeo tambeacutem no caso deste verso eacute relativa de modo diferente pois natildeo visa a

evitar a repeticcedilatildeo) que passaraacute a contar com o adjetivo ldquolargosrdquo inexistente no verso

grego Haacute um detalhe de sentido a observar ldquoomonrdquo correspondente a ldquoombrosrdquo estaacute

no genitivo-ablativo (com ideia de origem) e portanto indicando que deles partem o

retinir da flechas ldquonos ombrosrdquo (soluccedilatildeo que seria coerente com a forma do caso

dativo-locativo) traz uma ambiguidade (a ideia de os ombros receberem as flechas) que

no entanto se resolve pela compreensatildeo do relato ldquoA cada passo querdquo eacute uma expressatildeo

para indicar movimento ldquodesdobradardquo em forma de peacutes daacutectilos acentuando-se o ldquoArdquo

(A ca da pas so que) O verso traz a informaccedilatildeo de ldquoiradordquo por meio da sequecircncia

tambeacutem natildeo sinteacutetica ldquocheio de irardquo assim como da informaccedilatildeo relativa ao ruiacutedo das

flechas Sob o aspecto da sonoridade o verso soa de outro modo reservando o uso de

siacutelabas iniciadas por consoantes oclusivas na associaccedilatildeo com o movimento aacutegil brusco

de Apolo que pode ser entrevisto pela sequecircncia aliterante ndash A cada passo que daacute ndash

188

enquanto emprega as fricativas quando a informaccedilatildeo semacircntica refere-se ao som das

fechas que passam a soar como um zumbido os objetos a produzirem sons ao passar

pelo ar ldquocheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo Uma possiacutevel sensaccedilatildeo de frouxidatildeo do

verso deve advir do efeito mais tecircnue menos contundente em relaccedilatildeo ao texto grego e a

uma soluccedilatildeo como a de Odorico Mendes Os versos no entanto ainda que tambeacutem

possam parecer desequilibrados nos agrupamentos de iacutecones sonoros e incertos no

sentido respondem a exigecircncias baacutesicas que podemos atribuir a Nunes da informaccedilatildeo

relevante agrave narrativa e ao padratildeo riacutetmico-meacutetrico

Vejamos em seguida a versatildeo de Haroldo de Campos

Entre os tradutores estudados Campos eacute o uacutenico cuja trajetoacuteria reflexiva

vincula-se agraves teorizaccedilotildees acerca dos signos da linguagem poeacutetica e da traduccedilatildeo de

poesia Assim seus pressupostos expliacutecitos permitem antever a valorizaccedilatildeo das relaccedilotildees

som-sentido ou da ldquoiconicidade do signordquo184

Haacute criacuteticas como uma recentemente

manifesta em livro185

que atribuem equivocadamente ao poeta e tradutor a convicccedilatildeo

de que para a traduccedilatildeo ser criativa eacute necessaacuterio e desejaacutevel que o ldquoconteuacutedordquo seja

desconsiderado ou modificado valorizando-se as traduccedilotildees que assim procedem A

criacutetica pueril revela desconhecimento do trabalho teoacuterico e tradutoacuterio de Haroldo que se

dedicou a demonstrar a inadequaccedilatildeo em traduccedilatildeo poeacutetica de se conferir a primazia a

uma suposta ldquofidelidade ao sentidordquo como jaacute se abordou neste estudo sem entretanto ndash

e evidentemente ndash deixaacute-lo de lado Vejamos as caracteriacutesticas destas soluccedilotildees do

tradutor considerando seu arcabouccedilo teoacuterico e convicccedilotildees sobre a praacutetica do traduzir

ldquoAgrave espaacutedua do iracundo retiniam flechasrdquo incorpora todas as informaccedilotildees do

verso grego (do ombro de Apolo irado ressoaram as flechas) e neste caso apenas elas

(embora Haroldo se valha frequentemente de enjambement) O uso do verbo no

passado embora no imperfeito guarda relaccedilatildeo com o uso homeacuterico que natildeo adota

verbos no presente como o fez neste caso Odorico Mendes chama a atenccedilatildeo a escolha

de verbo derivado daquele que Odorico empregou (tinir retinir) indicando a referecircncia

agrave traduccedilatildeo anterior considerada ldquotranscriadorardquo por Campos Tambeacutem se pode notar o

184ldquoA traduccedilatildeo criativa [] uma praacutetica voltada para a iconicidade do signordquo CAMPOS H ldquoTraduccedilatildeo

ideologia e histoacuteriardquo (1984) 185ABRAMO C W O Corvo ndash Gecircnese Referecircncias e Traduccedilotildees do Poema de Edgar Allan Poe Satildeo

Paulo Hedra 2011

189

uso da preposiccedilatildeo ldquoagraverdquo ligada a ldquoespaacuteduardquo soluccedilatildeo conveniente para dar a entender que

as flechas partiam do ombro apoliacuteneo recurso de que se valera tambeacutem Mendes (ldquoao

ombrordquo) O dodecassiacutelabo parece acomodar perfeitamente os elementos que dando

conta plena do sentido satildeo palavras que podem atender ao referencial do paramorfismo

relativo agrave dimensatildeo icocircnica do verso note-se a sucessatildeo de cinco oclusivas

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas

A reiteraccedilatildeo atende em quase todo o verso agrave necessidade de presenccedila

onomatopaica com niacutetida presenccedila icocircnica as ocorrecircncias se dividem em dois grupos

se considerarmos a cesura na sexta siacutelaba trecircs antes desta e duas apoacutes sendo que

ademais a vogal aberta em ldquoflechasrdquo reverbera a vogal aberta em ldquoespaacuteduardquo

finalizando o verso com a ecircnfase desejada que sugere a ampliaccedilatildeo da accedilatildeo de Apolo A

escolha de ldquoespaacuteduardquo em vez de ombros chama a atenccedilatildeo embora o relativo

preciosismo vocabular natildeo seja estranho agrave assumida tendecircncia ldquobarroquizanterdquo da obra

do poeta e tradutor a opccedilatildeo pelo vocaacutebulo claramente sugere a preocupaccedilatildeo com as

ocorrecircncias aliterantes e assonantes aleacutem do mais o fonema a atribui forccedila agrave

ldquoexplosatildeordquo do p na segunda siacutelaba do verso promovendo a intensidade do iniacutecio da

accedilatildeo

Por sua vez o verso ldquoHorriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteordquo tambeacutem

encerra toda a informaccedilatildeo comunicada pelo verso homeacuterico (o ruiacutedo ou estrondo ou

estreacutepito que nasceu ou brotou ou surgiu do arco prateado) A escolha de ldquoclangorrdquo

enfatiza no plano semacircntico a natureza metaacutelica estridente do som envolvido na accedilatildeo

ao mesmo tempo em que o ldquosignificanterdquo traz a dimensatildeo grave ressoante das vogais

fechadas associadas agraves consoantes explosivas (ou oclusivas) O verso constitui um

verdadeiro modelo dificilmente superaacutevel de relaccedilatildeo som-sentido ou para

relembrarmos o referencial jakobsoniano de projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma

observem-se as notaccedilotildees (feitas com diferentes marcas) de correspondecircncias internas agrave

linha que procuram assinalar as reiteraccedilotildees de vogais consoantes fricativas e

explosivas e dos segmentos paronomaacutesticos

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo

190

Novamente o uso de vocabulaacuterio ldquopreciosordquo sugestivo do veio barroco do

escritor serve para trazer elevaccedilatildeo ao verso adequada ao contexto eacutepico

Verifiquemos ainda com objetivo de complementaccedilatildeo a traduccedilatildeo de Andreacute

Malta Campos aqui incluiacuteda pelo interesse de sua especificidade meacutetrica e pela

preocupaccedilatildeo (jaacute referida) do tradutor em manter na recriaccedilatildeo as ocorrecircncias dos

epiacutetetos empregando para eles as mesmas palavras a cada apariccedilatildeo

[E jaacute dos cimos do Olimpo baixou encolerizado (44)]

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado (46)

[deus]

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado) (49)

Um elemento a se destacar nesta versatildeo eacute o uso do epiacuteteto ldquoencolerizadordquo

correspondente nesse verso agrave palavra grega χωoμενοιo (khoomenoio) Conforme jaacute foi

mencionado ocorre no verso 46 do poema homeacuterico a repeticcedilatildeo da palavra integrante do verso

44 χωόμενος (khooacutemenos) mas como se pode ver com mudanccedila de sua terminaccedilatildeo Fiel a

sua proposta de conservar em sua traduccedilatildeo a mesma palavra relativa agravequela que define um

epiacuteteto no texto grego o tradutor usa o mesmo adjetivo (forma do particiacutepio do verbo em

portuguecircs) nos dois versos em questatildeo como se pode ver nas citaccedilotildees O verso de Malta feito

de duas redondilhas maiores (conforme se comentou antes) apresenta uma cesura niacutetida apoacutes o

primeiro segmento que mais concentra o efeito sonoro referente ao clangor ou seja o aspecto

icocircnico do verso

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado

A escolha da palavra ldquoestrepitaramrdquo permite por si soacute a recriaccedilatildeo de efeito

anaacutelogo ao do texto grego a seguinte repeticcedilatildeo de t (pela providecircncia da opccedilatildeo por

ldquosetasrdquo) e a ocorrecircncia de br que ecoa tr completam a sonoridade no entanto esta

perde forccedila com o uso do adjetivo resultando em desequiliacutebrio esteacutetico perceptiacutevel da

audiccedilatildeo atenta do verso O mesmo natildeo acontece com o verso 49

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

191

Como se pode ver o efeito do ruiacutedo distribui-se por todo o verso atribuindo

forccedila maior ao conjunto e maior equiliacutebrio que resulta em melhor resultado esteacutetico O

uso de ldquoterriacutevelrdquo cuja vogal tocircnica marca a cesura dos hemistiacutequios permite o efeito de

ecircnfase e agudeza sugerido pelo fonema i O tradutor adotou a soluccedilatildeo dos parecircnteses

ao que parece pela questatildeo sintaacutetica de independecircncia do verso de modo a evitar o

ponto final no proacuteprio verso e no anterior no grego os versos 48 e 49 terminam em

ldquoponto em cimardquo equivalente aos dois pontos em portuguecircs

ἕζετ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπάνευθε νεῶν μετὰ δ᾽ ἰὸν ἕηκε

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

Os dois pontos envolvem o prenuacutencio a soluccedilatildeo de Malta manteacutem a

ldquoautonomiardquo do verso 49 e ao mesmo tempo a expectativa ligada ao conjunto de dois

versos (48 e 49)

E entatildeo pondo-se bem longe das naus lanccedilou uma flecha

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

Esse procedimento ilustra a caracteriacutestica de apego agrave literalidade manifesta na

traduccedilatildeo de Malta coerentemente aos seus pressupostos de equivalecircncia (inclusive

quanto agrave versificaccedilatildeo) ao verso grego Como eacute faacutecil verificar os versos do tradutor

atendem ao criteacuterio de correspondecircncia de sentido com o original

Observemos em seguida os primeiros sete versos tambeacutem do Canto I da Iliacuteada

Mas antes eacute oportuno fazer-se uma observaccedilatildeo importante sobre o processo de anaacutelise

que estaacute em andamento

Natildeo eacute minha pretensatildeo exatamente propor um modelo de anaacutelise em meu

modo de ver anaacutelise tambeacutem eacute criaccedilatildeo ou re-criaccedilatildeo ainda que baseada em aspectos

intratextuais pois eacute um modo de leitura e esta sempre seraacute tambeacutem re-criadora O

objetivo pretendido aqui eacute tatildeo-somente indicar possibilidades (perseguidas de modo

um tanto erraacutetico sem a formulaccedilatildeo de procedimentos-padratildeo ou metodologia fixa) de

leitura analiacutetica que colaborem para o re-conhecimento de caracteriacutesticas do texto

192

poeacutetico original ou traduzido na dimensatildeo interna a uma estrutura tal como

identificada e na dimensatildeo comparativa entre estruturas de textos diversos

Iliacuteada I 1-7

ΜῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

A ira (duradoura) canta Deusa do Pelida Aquiles

οὐλομένην ἣ μυρί ᾽Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε

funesta que dez mil (miriacuteade) aos aqueus dores fez

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

muitas valentes almas no Hades lanccedilou precocemente

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν

de heroacuteis e a eles mesmos presa produziu para os catildees

οἰωνοῖσί τε πᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

e para as aves todas de Zeus cumpria-se a decisatildeo

ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε

desde que primeiro apartaram-se em discoacuterdia

Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

O Atrida chefe de homens e o divino Aquiles

E agora as traduccedilotildees de Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de

Campos

Odorico Mendes (I 1-6)

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

193

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Carlos Alberto Nunes

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Haroldo de Campos

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles (7)

Pensemos primeiramente na traduccedilatildeo de Odorico apenas para conferecircncia

faccedilamos a escansatildeo dos versos do fragmento assinalando-se suas siacutelabas tocircnicas

Can ta- me oacute deu sa do Pe lei o A qui les

A i ra te naz que lu tu o sa aos Gre gos

Ver des no Or co lan ccedilou mil for tes al mas

Cor pos de He roacuteis a catildees e a bu tres pas to

Lei foi de Jo ve em ri xa ao dis cor da rem

O de ho mens che fe e o Mir mi don di vi no

194

Os versos se dividem entre aqueles com tocircnicas predominantes na quarta e

oitava siacutelabas (saacuteficos) e aqueles com tocircnica predominante na sexta siacutelaba (heroacuteico)

contudo dois deles (quarto e quinto) permitem a leitura com acentos nas posiccedilotildees pares

o que ocasiona certa indefiniccedilatildeo em seu esquema meacutetrico-riacutetmico que favorece certa

aceleraccedilatildeo e ritmo mais marcado pelos reiterados acentos que ocasionam sequecircncias

binaacuterias (jacircmbicas) nos segundos hemistiacutequios caso este tambeacutem do terceiro verso

Note-se tambeacutem a sequecircncia ternaacuteria decrescente (dactiacutelica) no iniacutecio de todos os versos

do fragmento com exceccedilatildeo do terceiro com ceacutelula binaacuteria descendente (trocaico)

todos tecircm em comum portanto o acento na primeira siacutelaba (o uacuteltimo permite a leitura

do acento em ldquoordquo) Quanto agraves sinalefas elas se datildeo de maneira usual com elisotildees entre

vogais aacutetonas ou entre aacutetona e tocircnica ou semitocircnica (caso de ldquoA irardquo seria possiacutevel a

leitura sem a elisatildeo mas isso ocasionaria um esquema atiacutepico ndash acentuado na quinta

siacutelaba ndash do decassiacutelabo claacutessico usado por Odorico nas variantes de saacutefico e heroacuteico)

Tratemos agora do acircmbito semacircntico do trecho O iniacutecio da Iliacuteada eacute jaacute

revelador da concisatildeo do tradutor da eficiecircncia com que procura re-produzir o

ldquosentidordquo depreendido do texto grego186

exercitando uma espeacutecie de paraacutefrase187

poeacutetica com grande acuidade na escolha das palavras e com um engendramento

sintaacutetico que resulta em tom ao mesmo tempo elevado e contundente pela densidade Eacute

mesmo impressionante verificar-se que em apenas seis versos sem basear-se na noccedilatildeo

estrita de equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo Odorico alcance sugerir todo o sentido

essencial188

do que o texto grego comunica Fazendo-se outra paraacutefrase desta vez

apenas referencial ou seja no acircmbito da funccedilatildeo cognitiva da linguagem seraacute possiacutevel

evidenciar o que da informaccedilatildeo ldquooriginalrdquo se pode obter pelos versos concisos de

186 Relembrem-se as palavras de Nienkoumltter antes citadas 187Paraacutefrase ldquointerpretaccedilatildeo ou traduccedilatildeo em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua

letra metaacutefraserdquo (Houaiss) A palavra se origina do grego composta de (paraacute)ndash ao lado junto a

cerca de e (phraacutesis) ndash linguagem discurso frase Eacute nesse sentido natildeo vinculado a um

referencial teoacuterico especiacutefico que o termo eacute aqui empregado Mencione-se a diferenccedila em relaccedilatildeo ao

conceito de Newmark para quem a paraacutefrase escaparia a qualquer viacutenculo com o texto na liacutengua de

partida consistindo em ldquouma ampliaccedilatildeo ou re-escritura livre do significado de um periacuteodordquo (1981 apud

Barbosa 1990 54) 188 Sobre esse aspecto do ldquosentido essencialrdquo desapegado da literalidade cabe mencionar guardadas as devidas diferenccedilas de contexto e proposta a primeira etapa do modelo operacional proposto por Nida que

prevecirc trecircs etapas no processo tradutoacuterio ldquoreduccedilatildeo do texto original a seus nuacutecleos mais simples e

semanticamente evidentes transferecircncia do significado da liacutengua original para a liacutengua da traduccedilatildeo em

um niacutevel estruturalmente simples geraccedilatildeo de uma expressatildeo etiliacutestica e semanticamente equivalente na

liacutengua da traduccedilatildeordquo Para Nida ldquoo tradutor realmente competente traduz lsquounidades de significadorsquordquo em

vez de reproduzir ldquounidades estruturaisrdquo (1964 apud Barbosa 1990 33)

195

Mendes A paraacutefrase seraacute uma providecircncia de auxiacutelio agrave anaacutelise seu uso me parece um

modo de se verificar a presenccedila do sentido geral ou seja das informaccedilotildees ldquoessenciaisrdquo

na traduccedilatildeo cuja proposta natildeo eacute a ldquofidelidaderdquo em termos de equivalecircncia ldquopela letrardquo

isto eacute pela ldquoliteralidaderdquo (palavra-a-palavra) mas sim (como jaacute foi apontado) por um

processo de ldquoconstruccedilatildeo paralelardquo do conjunto de informaccedilotildees depreendido do texto-

fonte que se vale do uso de sinoniacutemia afim com o objetivo manifesto de siacutentese ou

concisatildeo e com o objetivo (dedutiacutevel pela observaccedilatildeo dos versos) de ldquodensidade

sonorardquo Diremos entatildeo parafraseando as notaccedilotildees ldquoliteraisrdquo (essas palavras consistem

apenas em algumas primeiras escolhas comuns usuais nos dicionaacuterios entre outras

possibilidades) que eacute feito o pedido agrave Deusa de que ela cante a ira funesta de Aquiles

Pelida (filho de Peleu) que dez mil dores trouxe aos aqueus (gregos) e que lanccedilou

prematuramente ao Hades muitas almas valentes de heroacuteis e as presas aos catildees e agraves

aves cumprindo-se a lei de Zeus desde que em discoacuterdia se separaram o chefe dos

homens o Atrida e o divino Aquiles

Segue-se nova paraacutefrase desta vez da traduccedilatildeo de Mendes o primeiro verso

saacutefico expressa perfeitamente a mensagem conativa agrave Deusa introduzindo o nome do

heroacutei para em seguida atribuir-lhe a ira tenaz (persistente) lutuosa aos gregos e informar

que ela lanccedilou verdes (jovens) no Orco (o reino dos mortos o Hades) mil almas fortes

corpos que satildeo pasto a catildees e abutres anuncia entatildeo que a Lei (cumprida) foi de Jove

(Juacutepiter versatildeo latina de Zeus) e aponta que estatildeo em rixa por terem discordado o chefe

dos homens e o Mirmidon (epocircnimo do heroacutei Aquiles)

Jaacute se pode perceber que o sentido geral estaacute mantido as informaccedilotildees relevantes

estatildeo todas presentes Ao menos o que podemos apreender hoje dos significados do

texto grego lido sob nosso ponto de vista189

Montemos contudo ndash para evidenciar as

relaccedilotildees entre um conjunto de informaccedilotildees e outro ndash uma relaccedilatildeo de correspondecircncias

entre as palavras ou grupo de palavras postos como traduccedilotildees ldquoliteraisrdquo junto aos

versos gregos (apenas uma escolha ldquoimediatardquo frise-se) e as palavras que a eles

correspondem usadas por Odorico

189 A observaccedilatildeo procura explicitar um ponto de vista sobre a problemaacutetica jaacute discutida Ainda que o

significado seja mutaacutevel como jaacute se comentou largamente o processo histoacuterico envolve a ldquofixaccedilatildeordquo de

significados de referecircncia que permitem o acesso sob a oacuteptica proacutepria de quem lecirc e do contexto ao qual

pertence

196

Notemos alguns pontos na primeira linha da ldquotabelardquo aparece de um lado a

palavra ldquoirardquo correspondente a (meacutenis) esta palavra pode ser traduzida

simplesmente por ldquofuacuteriardquo ldquoirardquo ldquocoacutelerardquo etc (no Greek-English lexicon de Liddell and

Scott190

μῆνις [] mdash ldquowrathrdquo) Em Odorico vemos ldquoira tenazrdquo Diga-se no entanto

que o significado eacute previsto no Dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira191

ldquoira

190 LIDDELL amp SCOTT Greek-English lexicon Londres Clarendon Press ndash Oxford s d (O dicionaacuterio

passaraacute a ser referido neste estudo como Liddell amp Scott) 191 PEREIRA ISIDRO S J Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego Porto Livraria Apostolado

da Imprensa 1984 (Ao longo do texto o Dicionaacuterio seraacute referido pela forma usual que toma o nome do

autor Isidro Pereira)

197

duradoira ressentimentordquo192

entre os significados de ldquotenazrdquo no Dicionaacuterio Houaiss

constam ldquodifiacutecil de acabarrdquo e ldquopersistenterdquo um caso em que o tradutor se vale de duas

palavras para abranger com ecircnfase o sentido de persistecircncia resistecircncia da ira do

heroacutei

Na segunda linha haacute ldquolutuosardquo correspondendo a ldquofunestardquo por οὐλομένην

(oulomeacutenen) acusativo feminino singular de οὐλoacuteμν no Liddell amp Scott

ldquodestructive banefulrdquo (segundo o Houaiss193

ldquodestrutivo mortiacutefero pernicioso

nocivordquo) no Isidro Pereira e no Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquopernicioso funestordquo

ldquoLutuosordquo segundo o Houaiss194

eacute o ldquoque evoca ou simboliza a ideia de morte

fuacutenebre luacutegubrerdquo a palavra eacute um dos sinocircnimos relacionados no Dicionaacuterio para

ldquofunestordquo (ldquoque causa a morte fatal mortalrdquo) Natildeo passa despercebida entretanto a

semelhanccedila parcial da palavra oulomeacutenen com lutuoso um possiacutevel iacutendice da razatildeo da

escolha do tradutor Aleacutem disso a escolha explicita o luto pela morte dos gregos

motivo das ldquodez mil doresrdquo (uma quantidade a sugerir o nuacutemero ldquosimboacutelicordquo

indefinido de ldquomuitasrdquo) que a ira provocou nos aqueus (ldquodez milrdquo mortes portanto)

passagem transformada ou concentrada por Odorico diretamente na afirmaccedilatildeo de ldquomil

fortes almasrdquo lanccediladas ao ldquoOrcordquo (ldquoo infernordquo segundo o Houaiss) ldquoVerdes no Orco

lanccedilourdquo ademais daacute conta da informaccedilatildeo correspondente a προΐαψεν (proiapsen)

verdes eacute soluccedilatildeo relativa a pro indicativo da precocidade prematuridade do

lanccedilamento ao Hades dos heroacuteis (mortos jovens portanto) O tradutor inclui a palavra

ldquocorposrdquo que associada a ldquopastordquo cumpre o sentido de que os heroacuteis almas atiradas ao

Hades tornaram-se presas dos catildees e aves embora em grego aluda-se a ldquotodas as avesrdquo

a opccedilatildeo por ldquoabutresrdquo permanece com o ganho de uma imagem intensa no mesmo

acircmbito semacircntico

Quanto agrave sonoridade observemos inicialmente correspondecircncias focircnicas nos

versos gregos transliterados

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Aquileos

192 A mesma definiccedilatildeo (ldquoira duradoura ressentimentordquo) eacute encontrada no recente Dicionaacuterio grego-

portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc vol 3 2008) Ambas as definiccedilotildees reportam ao Bailly ndash Dictionaire Grec-

Franccedilais ldquoμήνις [] colegravere durable ressentimentrdquo (Bailly Anatole Dictionaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2005 (1ordf ediccedilatildeo 1895) 193 HOUAISS A (editor) Dicionaacuterio inglecircs-portuguecircs Rio de Janeiro Record 1982 194Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001

198

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

ἐξοὗδὴ τὰ πρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave ta procirc tadiasteacute tem epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

Seguem-se os versos com as unidades de correspondecircncia assinaladas com

diferentes notaccedilotildees de destaque

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Akhileos

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

199

ἐξοὗδὴ τὰπρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave tagraveprocirc tadiasteacute ten epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

As marcaccedilotildees ainda que limitadas e um tanto imprecisas podem indicar a

intrincada teia de correspondecircncias sonoras do texto grego Haacute como se pode ver

muitos aspectos de iconicidade que se sobressaem do signo verbal simboacutelico Para

efeito ilustrativo isolemos algumas das unidades demarcadas por exemplo a de

consoantes oclusivas sonoras surdas e aspiradas195

(satildeo incluiacutedas tambeacutem consoantes

duplas por envolverem dois sons consonacircnticos consecutivos o primeiro deles

oclusivo)

de Th P d kh

kh ge th k

p drsquo th os kh d pr ps

t t khek

t p D t t B

ks d t pr t d t t p t

tr d t ks dr k d kh

195 Haacute divergecircncias no acircmbito das hipoacuteteses acerca dos fonemas do grego antigo Para efeito praacutetico de

referecircncia adota-se aqui uma categorizaccedilatildeo usualmente aceita nos atuais cursos de liacutengua e literatura

grega antigas que pode ser assim representada (relativa agraves consoantes) (ver paacutegina seguinte)

Fonte Ribeiro Juacutenior W A Didascalia Portal Graecia Antiqua Satildeo Carlos Disponiacutevel em

wwwgreciantigaorg

200

Ira discoacuterdia morte os fonemas oclusivos sugerem uma batida belicosa uma imagem

de tensatildeo e conflito (primeiridade) Vejamos sob este aspecto restrito o que podemos

perceber do texto de Mendes mas antes assinalando tambeacutem algumas das diferentes

relaccedilotildees de semelhanccedila focircnica que se urdem no texto

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Repeticcedilotildees de consoantes oclusivas de constritivas fricativas ocorrecircncias de

primeiridade a sugerirem tensatildeo embate divergecircncia paronomaacuterias como ldquoirardquo e

ldquorixardquo ldquopeleiordquo e ldquoleirdquo a sugerirem tambeacutem oposiccedilatildeo De secundidade podemos

notar posiccedilotildees de palavras que indicariam correspondecircncias com a situaccedilatildeo a que o

texto se refere ldquoverdesrdquo no iniacutecio do verso em correspondecircncia exata com a palavra

ldquocorposrdquo inicial do verso seguinte a indicar a presenccedila prematura dos corpos lanccedilados

ao Hades como almas (palavra que ocupa posiccedilatildeo de final de verso oposta a ldquoverdesrdquo)

a palavra ldquorixardquo no meio do verso podendo indicar a intervenccedilatildeo de Zeus a pedido de

Teacutetis na guerra que assim teria se posto em meio agrave disputa de Agamemnon e Aquiles

posicionados de um lado e outro no verso seguinte (ldquorixardquo tem penso referecircncia

ambiacutegua no verso tanto pode referir-se agravequela entre os guerreiros como agrave participaccedilatildeo

do deus)

No texto grego chama a atenccedilatildeo a posiccedilatildeo intermediaacuteria de ldquoDiogravesrdquo no quinto

verso (para dizer de uma possiacutevel atribuiccedilatildeo de secundidade) centro do poder e

interventor nos destinos dos guerreiros e da guerra

Mas o deus que se intrometera antes e ocasionara a situaccedilatildeo que levaria agrave

discoacuterdia entre o ldquochefe de homensrdquo e o pelida fora Apolo filho de Zeus e Latona Seraacute

feito adiante algum comentaacuterio tambeacutem acerca dos dois versos seguintes aos

propostos para anaacutelise que se referem a Phebo

201

Prossigamos observando a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes conferindo o

esquema riacutetmico por ele adotado por meio da marcaccedilatildeo das tocircnicas do verso

Can ta- me a coacute le ra ndash oacute deu sa ndash funes ta de Aqui les Pe li da

cau sa que foi de os A qui vos so fre rem tra ba lhos sem

[ con ta

e de bai xa rem pa ra o Ha des as al mas de he roacuteis nu me ro

[sos

e es cla re ci dos fi can do e les proacute prios aos catildees a ti ra dos

e co mo pas to das a ves Cum priu-se de Zeus o de siacuteg nio

des de o prin ciacute pio em que os dois em dis coacuter dia fi ca ram

[cin di dos

o de A treu fi lho se nhor dos guer rei ros e A qui les di vi no

O primeiro verso eacute modelar por diversas razotildees Primeiro pela perfeita

prosoacutedia com coincidecircncia entre as posiccedilotildees das tocircnicas exigidas pelo esquema

hexameacutetrico (ternaacuterio descendente) e as siacutelabas tocircnicas das palavras Embora esta seja

uma condiccedilatildeo baacutesica que se repetiraacute em todos os versos em muitos deles na traduccedilatildeo

de Nunes a primeira siacutelaba meacutetrica tocircnica prevista pelo modelo do verso corresponde a

siacutelabas gramaticais aacutetonas caso dos versos 3 4 5 e 7 aqui apresentados iniciados pelos

conectivos ldquoerdquo ou pelo artigo ldquoordquo Este expediente no entanto eacute frequente em

adaptaccedilotildees do antigo sistema quantitativo para o sistema qualitativo a proacutepria

sequecircncia de versos marcados pelas tocircnicas poeacuteticas impotildee a leitura de modo a tornar

tocircnica a primeira siacutelaba de cada verso ainda que a ela natildeo corresponda uma tocircnica

gramatical veremos isso adiante quando tratarmos mais detidamente da questatildeo da

adaptaccedilatildeo do sistema quantitativo ao qualitativo e do hexacircmetro portuguecircs no toacutepico

relativo ao estudo para proposiccedilatildeo de um formato riacutetmico para a traduccedilatildeo da eacutepica

A que pese a apontada monotonia dos versos hexacircmetros de Nunes agrave

semelhanccedila dos versos baseados em peacutes nas liacutenguas anglo-saxocircnicas196

eacute como jaacute se

196 Diz Wolfgang Kayser sobre o assunto ldquoA analogia fez parecer possiacutevel a reproduccedilatildeo do verso antigo

nas liacutenguas germacircnicas as longas substituiacuteram-se pelas tocircnicas as breves pelas aacutetonas [] Na verdade o

encontro com a meacutetrica antiga foi de fatiacutedico significado para a meacutetrica germacircnica [] [Ele] levou agrave

restriccedilatildeo [] [da] liberdade [antes existente na meacutetrica germacircnica] e [] agrave construccedilatildeo com peacutes iguaisrdquo

202

disse notaacutevel a sua difiacutecil empreitada e a competecircncia com que a realizou Talvez este

seja o aspecto mais importante a se assinalar em sua recriaccedilatildeo da eacutepica por ser um

criteacuterio fundamental de correspondecircncia ao verso antigo que o distingue dos demais

tradutores estudados neste trabalho Sua noccedilatildeo de manter a organizaccedilatildeo do verso em peacutes

anaacutelogos aos do texto grego eacute fator determinante das caracteriacutesticas dos resultados por

ele obtidos

Sobre isso observe-se preliminarmente que de fato a medida em siacutelabas natildeo

deve ser vista como a referecircncia primeira em seus versos conforme observou J A

Oliva Neto (em trecho jaacute citado) em vez dela o fundamento de sua versificaccedilatildeo eacute a

ldquoceacutelula dactiacutelicardquo jaacute que estas se sucedem ininterruptamente pouco importando o ponto

em que cada verso termina ndash quanto a esse aspecto haacute a considerar tambeacutem os

enjambements frequentes na eacutepica que pela via semacircntico-sintaacutetica relativizam a

delimitaccedilatildeo dos versos Embora assim seja o alongamento decorrente da obrigatoacuteria

sequecircncia de seis daacutectilos em cada linha leva a um procedimento analiacutetico (termo

entendido aqui como oposto a ldquosinteacuteticordquo197

) na busca de correspondecircncia com o

original que envolve a inclusatildeo de acreacutescimos de significados em relaccedilatildeo a esse

Faccedilamos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo adotada como referecircncia e os elementos que a eles correspondem na versatildeo de

C A Nunes

KAYSER W Anaacutelise e interpretaccedilatildeo da obra literaacuteria Coimbra Armeacutenio Amado Editor Satildeo Paulo

Livraria Martins Fontes 1976 p 84 Este tema seraacute novamente abordado em outro toacutepico deste estudo 197 Conforme jaacute foi referido neste estudo e assinalou tambeacutem Oliva Neto a eacutepica grega de teor

narrativo natildeo se faz com base no valor da siacutentese natildeo sendo o procedimento de Nunes portanto avesso

aos poemas que traduz

203

_________________________________________________________________________

Embora natildeo tenhamos o propoacutesito geral de quantificaccedilatildeo mas sim de

identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas e de sua significaccedilatildeo para o resultado o uso que temos

feito das relaccedilotildees de correspondecircncia baseiam-se no procedimento de ldquotabelasrdquo agrave

semelhanccedila do que eacute proposto por P H Britto Natildeo se considera de interesse no

entanto propriamente enumerar todas as ocorrecircncias de aspectos identificados com

determinado referencial teoacuterico visando a um julgamento O reconhecimento de

aspectos qualitativos de procedimento pode contudo dar-nos alguma identificaccedilatildeo de

melhor realizaccedilatildeo tendo em vista como base de referecircncia a proposta de traduccedilatildeo e

sua coerecircncia interna

As traduccedilotildees ateacute agora vistas apresentam ndash para lembrarmos conceitos da

linguiacutestica contrastiva ndash transposiccedilatildeo e modulaccedilatildeo (ver notas 125 126 e 128) com

diversas ocorrecircncias Um caminho a seguir seria enumeraacute-las em cada uma das

204

traduccedilotildees mas essa perspectiva natildeo me parece promissora natildeo levaria a constataccedilotildees

frutiacuteferas para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo adotado a ocorrecircncia generalizada no entanto

ainda que em poucos exemplos atesta a importante obviedade (nem sempre

reconhecida) de que a traduccedilatildeo poeacutetica envolve a transformaccedilatildeo independentemente

dos procedimentos e criteacuterios de traduccedilatildeo adotados Aleacutem dos paracircmetros ldquoformaisrdquo que

determinam adequaccedilotildees e das soluccedilotildees semacircnticas e esteacuteticas definidas pela oacuteptica do

tradutor haacute a se considerar a proacutepria distacircncia entre as liacutenguas que ocasiona a

necessidade de abundantes ocorrecircncias como essas (duas palavras em vez de uma e

vice-versa inversotildees e deslocamentos ndash transposiccedilatildeo aparentes alteraccedilotildees na estrutura

semacircntica mas com o mesmo ldquoefeito geral de sentido denotativordquo ndash modulaccedilatildeo) Como

foi antes apontado o verso mais longo permite maior ldquoespaccedilo de manobrardquo ao uso

desses recursos visando agrave realizaccedilatildeo de seus objetivos de traduccedilatildeo seja no plano de

expressatildeo ou de conteuacutedo

A identificaccedilatildeo de omissotildees por sua vez ndash importante por dizer respeito agrave

presenccedila ou ausecircncia de informaccedilatildeo potencialmente relevante agrave narrativa ndash pode indicar

que estas tambeacutem ocorrem de modo independente da extensatildeo dos versos observemos

sua existecircncia nos hexacircmetros de Nunes Chama a atenccedilatildeo de imediato a ausecircncia da

informaccedilatildeo relativa a (pro) (de προΐαψεν proiapsen) ou seja da prematuridade do

lanccedilamento dos heroacuteis ao Hades ou da juventude desses heroacuteis (no verso de Nunes haacute

apenas a afirmaccedilatildeo ldquoe de baixarem ao Hadesrdquo) Haacute outro evento a se destacar a

informaccedilatildeo relativa a ἰφθίμους (iphthiacutemous) foi substituiacuteda por uma informaccedilatildeo diversa

ndash o sentido denotativo foi modificado portanto O adjetivo ἰφθμος (iphthimos) (que no

verso aparece no acusativo plural) eacute assim definido pelo Liddell amp Scott ldquostout strong

stal wartrdquo (palavras agraves quais se atribuem no Houaiss os significados de forte resoluto

corajoso decidido etc) assim eacute pelo Isidro Pereira ldquoforte robusto generoso

valenterdquo e pelo Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquovigoroso forte robusto valente

corajoso valorosordquo O sentido predominante de ldquovalenterdquo tratando-se de jovens heroacuteis

natildeo pode ser apreendido dos versos de Nunes em seu lugar aparece a palavra

ldquoesclarecidordquo que para o Houaiss significa ldquodotado de saber de conhecimentos que

possui nobreza ilustrerdquo Embora se possa aproximar o conceito de ldquopossuidor de

nobrezardquo agrave valentia do heroacutei o sentido denotativo imediato da palavra eacute bem diverso

daquele do adjetivo grego Estes dois eventos demonstram que embora com maior

ldquoespaccedilo de manobrardquo estes versos de Nunes trazem omissatildeo relativamente importante

205

(tendo-se em conta o conceito grego de heroacutei) e uma substituiccedilatildeo que tambeacutem o eacute (pela

mesma razatildeo)

Se haacute a possibilidade de se identificar uma omissatildeo nos versos de Odorico

Mendes (relativa a ldquodesde que primeirordquo [apartaram-se em discoacuterdia]) natildeo se pode

atribuir a ela a mesma importacircncia pelo teor quase redundante da informaccedilatildeo

Vejamos agora o que se pode observar de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem ou de

iconicidade perceptiacutevel nos versos

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Na linha de leitura que percorremos com a traduccedilatildeo anteriormente vista

destacamos inicialmente as consoantes que vislumbramos como potenciais participantes

das relaccedilotildees entre som e sentido Marcamos tambeacutem com as sublinhas as tocircnicas do

hexacircmetro

Embora este natildeo seja o foco do procedimento adotado recorramos a alguma

quantificaccedilatildeo a fim de buscar possiacuteveis explicaccedilotildees para um dado de percepccedilatildeo de que

falaremos pouco adiante As repeticcedilotildees prosseguem em todos os versos somando 52

ocorrecircncias de oclusivas no total com presenccedila predominante do d (20 ocorrecircncias)

seguida da do k (15 ocorrecircncias) da do p (7 ocorrecircncias) etc A versatildeo de Odorico

por sua vez apresenta o total de 28 ocorrecircncias de oclusivas sendo 9 de d 6 de k 6

de t 3 de p etc Considerando-se a proporcionalidade de ocorrecircncias com o nuacutemero

de siacutelabas poeacuteticas de cada um dos conjuntos de versos observados (no caso de Odorico

6 versos com 10 siacutelabas cada = 60 siacutelabas no caso de Nunes 7 versos com 16 siacutelabas

cada) chegamos ao resultado de que para os versos de Nunes terem a mesma proporccedilatildeo

de ocorrecircncia de fricativas que a dos versos de Odorico deveratildeo contar com 522

siacutelabas Como vimos os versos de Nunes contam com 52 siacutelabas ou seja uma

206

ocorrecircncia de oclusivas proporcional agravequela apresentada pelos versos de Odorico

Tambeacutem os fonemas predominantes satildeo na ordem decrescente d e k com a

diferenccedila de que o t aparece na mesma quantidade do k

Havendo a mesma proporccedilatildeo de ocorrecircncia dessas consoantes entre ambas as

traduccedilotildees seraacute considerada pelo criteacuterio da quantidade a mesma possibilidade de efeito

aliterativo ligado agrave ideia de embate conforme a nossa atribuiccedilatildeo interpretativa No

entanto o efeito parece menos niacutetido natildeo obstante a subjetividade da percepccedilatildeo a

distribuiccedilatildeo das oclusivas parece tornaacute-las menos marcantes e assim a citada relaccedilatildeo

som-sentido parece mais remota como perspectiva de leitura Algumas hipoacuteteses podem

ser consideradas mencionamos trecircs a maior quantidade de palavras natildeo possibilita

efeito anaacutelogo ao daquele ocasionado por uma quantidade menor delas ainda que na

mesma proporccedilatildeo a presenccedila marcante dos acentos uniformemente distribuiacutedos faz

recair a atenccedilatildeo auditiva agraves proacuteprias tocircnicas e a fonemas outros em que as tocircnicas

recaem a narrativa mais extensa favorece conforme a suposiccedilatildeo jaacute mencionada a

aproximaccedilatildeo dos versos longos agrave prosa deslocando a atenccedilatildeo agrave narrativa em si e

dificultando a apreensatildeo de efeitos sonoros Estamos num terreno em que a tentativa de

objetividade para avaliaccedilatildeo de resultados pouco pode colaborar ao menos ateacute onde

posso entrever suas possibilidades a afericcedilatildeo de qualidades esteacuteticas escapa agrave

mensuraccedilatildeo inevitavelmente recaindo em constataccedilotildees de ordem subjetiva

compartilhadas ou natildeo por outros leitores

De todo modo alguns efeitos satildeo ressaltados pela leitura atenta a paronomaacutesia

em ldquode Zeus o desiacutegniordquo quase anagramaacutetica a sucessatildeo dos d na sequencia ldquoos dois

em discoacuterdia ficaram cindidosrdquo em que as posiccedilotildees do fonema parecem indicar a

proacutepria separaccedilatildeo convertendo-se suas ocorrecircncias em iacutendices da posiccedilatildeo dos

discordantes Efeitos poeacuteticos que resistem ao fluxo narrativo e agrave aparente diluiccedilatildeo das

reiteraccedilotildees focircnicas

Passemos a examinar a traduccedilatildeo de Haroldo de Campos com a relaccedilatildeo de

correspondecircncias entre as palavras usadas por Campos e as da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo que

temos adotado como referecircncia

207

__________________________________________________________________________

De imediato sobressai no plano do conteuacutedo a variante relativa ao significado

de imperativo presente do verbo ndash(aeido ado) ao qual eacute

atribuiacutedo em primeiro lugar o sentido denotativo de ldquocantarrdquo ndash no entanto o Liddell amp

Scott registra aleacutem de ldquosingrdquo o significado de ldquochantrdquo que segundo o Houaiss pode

significar ldquocelebrar em versos ou cantordquo o Isidro Pereira por sua vez traz os

significados ldquocantar celebrar elogiarrdquo e o Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquocantar

celebrar cantar repetindo cantar refratildeo [etc]rdquo A opccedilatildeo de Campos eacute por ldquocelebrarrdquo

que permite ndash seratildeo feitas aqui diga-se observaccedilotildees de relaccedilotildees formais que podem

hipoteticamente ser determinantes nas escolhas do tradutor ndash dois tipos de ocorrecircncia

que seriam de interesse para o resultado de recriaccedilatildeo o primeiro a adequaccedilatildeo da

palavra ao esquema meacutetrico dodecassilaacutebico com a tocircnica da palavra ldquocelebrardquo

localizando-se na sexta siacutelaba do verso ou seja na posiccedilatildeo intermediaacuteria usual de pausa

(ou cesura) no dodecassiacutelabo segundo a repeticcedilatildeo de le (celebra do Peleio Aquiles)

208

em variantes aberta e fechadas Tambeacutem se nota a variaccedilatildeo dos significados comumente

atribuiacutedos a (oulomenen ndash conforme jaacute dito ldquoperdido arruinado

pernicioso funestordquo ndash Isidro Pereira) o tradutor prefere ldquoo irado desvariordquo

aparentemente ldquoafastando-se da letrardquo Entretanto eacute preciso considerar que o Liddell amp

Scott traz como referecircncia preliminar a seguinte indicaccedilatildeo para

(oulomenos) ldquoused as a term of abuserdquo (ldquousado como um termo de

abusordquo) o que sugere o ldquodesvariordquo na soluccedilatildeo de Campos (O adjetivo deriva-se do

verbo (ollumi ldquoto destroy make an end ofrdquo)) Uma hipoacutetese para a opccedilatildeo do

tradutor eacute a de que a palavra (oulomenen)manteacutem uma relaccedilatildeo

paronomaacutestica com (menin) lembrando que e

correspondem ambos a e em portuguecircs Ao utilizar ldquoo irado desvariordquo Campos inclui

a palavra ldquoirardquo por meio do adjetivo e a faz reverberar no substantivo numa disposiccedilatildeo

anagramaacutetica (desvario) criando uma dupla paronomaacutesia que pode associar-se na

leitura ao sentido de insistente persistente Um ganho portanto de iconizaccedilatildeo do

siacutembolo (na classificaccedilatildeo de Peirce um ldquolegissigno icocircnico remaacuteticordquo assim como

outros exemplos aqui dados) que permite a perspectiva de uma relaccedilatildeo som-sentido

Deve-se considerar ademais que a soluccedilatildeo adotada se adeacutequa agraves exigecircncias do padratildeo

meacutetrico com a tocircnica da palavra ldquodesvariordquo na posiccedilatildeo da cesura

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem a ausecircncia (omissatildeo) do sentido de ldquojovemrdquo tal

como na traduccedilatildeo de Nunes A despreocupaccedilatildeo de manter presente esse significado

talvez se deva em ambos os casos agrave relativa obviedade da informaccedilatildeo pelas

caracteriacutesticas da cultura grega no caso de Odorico no entanto essa informaccedilatildeo eacute

mantida e portanto escolhida para permanecer Se poreacutem haacute tal omissatildeo na versatildeo de

Campos natildeo haacute aquela de Mendes ldquodesde que por primeiro a discoacuterdia []rdquo manteacutem a

ideia de ldquoprimeirordquo de anterioridade do desentendimento que o uacuteltimo desprezou O

verso seguinte por sua vez eacute traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do verso grego ldquoO Atreide chefe de

homens e o divino Aquilesrdquo por ldquoAtreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutesrdquo

Algumas preacutevias suposiccedilotildees satildeo portanto relativizadas neste breve conjunto de

versos todas as traduccedilotildees apresentam omissatildeo a versatildeo de Odorico natildeo apresenta mais

omissotildees que as demais Campos acomoda diante dessa possibilidade uma

correspondecircncia palavra-a-palavra em seu dodecassiacutelabo mantendo aleacutem do mais

proximidade sonora com o original (como na opccedilatildeo por ldquoatreiderdquo) As ideias de

concisatildeo e concentraccedilatildeo de efeitos em Odorico e em Campos correspondem ao que

209

ocorre neste trecho em Nunes os ldquoefeitosrdquo tecircm presenccedila anaacuteloga agraves versotildees dos demais

(embora natildeo se associem agrave siacutentese e possivelmente por isso natildeo parecem causar a

mesma impressatildeo de concentraccedilatildeo) Mas para se afirmar isso devemos conferir a

ocorrecircncia das consoantes (oclusivas) tomadas como referecircncia potencial da poeticidade

pela repeticcedilatildeo

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles

De novo quantificando para estabelecer referecircncias as opccedilotildees do tradutor

parecem coerentes com o referencial por ele expliacutecito da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

a frequecircncia das oclusivas eacute ligeiramente maior que a das demais versotildees (39

ocorrecircncias 15 a mais que as outras) como nos outros casos sua ocorrecircncia permite

engendramento de relaccedilotildees paradigmaacuteticas que compotildeem na leitura associaccedilotildees entre

som e sentido A destacar tambeacutem entre outros caminhos de identificaccedilatildeo

semelhanccedilas como a entre ldquopastordquo e ldquorapacesrdquo (que restringe o sentido como ldquoabutresrdquo

em Odorico) e toda a sequecircncia sonora desse verso

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

E ainda a observar ldquoa irardquo ldquopeleiordquo e ldquopastordquo satildeo escolhas tambeacutem de

Odorico possiacutevel ldquocitaccedilatildeordquo do trabalho considerado referencial pelo tradutor

Faccedila-se a seguir a escansatildeo dos dodecassiacutelabos marcando-se as tocircnicas e a

pausa na sexta siacutelaba e registrando-se as tocircnicas e semitocircnicas de modo a evidenciar as

variaccedilotildees no esquema riacutetmico dos versos

A i ra Deu sa ce le bra do Pe lei o A qui les

210

o i ra do des va rio que aos A queus tan tas pe nas

trou xe e in con taacute veis al mas ar ro jou no Ha des

de va len tes de he roacuteis es poacute lio pa ra os catildees

pas to de a ves ra pa ces fez- se a lei de Zeus

des de que por pri mei ro a dis coacuter dia a par tou

o A trei de che fe de ho mens e o di vi no A qui les

Com o mesmo iniacutecio de Odorico o verso tambeacutem faz elisatildeo em ldquoA irardquo

encontro entre uma vogal aacutetona e uma tocircnica esse tipo de elisatildeo seraacute um recurso

comum em Campos assim como em Odorico um modo (jaacute referido) de ldquoganharrdquo

elementos por meio de sinalefa Eacute (como jaacute se mencionou) frequente na Iliacuteada de

Campos o uso de sineacuterese (ldquopassagem de um hiato no interior da palavra a ditongordquo ndash

Houaiss) como em ldquoDes pre zo es sa tua coacute le ra ca ni na As simrdquo (VIII

484) e de sineacutereses associadas a elisotildees como em ldquoNatildeo me im por ta tua coacute le

ra ain da que te lan cesrdquo (VIII 478) A esse respeito vejam-se como referecircncia

ilustrativa duas paacuteginas manuscritas por Haroldo de Campos contendo a escansatildeo de

versos do Canto XXIV da Iliacuteada198

198 Estas paacuteginas integraratildeo tambeacutem o mencionado livro Transcriaccedilatildeo em preparo

211

212

Os manuscritos permitem constatar que poeta de longa experiecircncia Haroldo de

Campos natildeo desprezou a escansatildeo anotada de versos talvez um registro de seus

criteacuterios de metrificaccedilatildeo como se pode ver a cesura na sexta siacutelaba eacute um deles Fica

evidente tambeacutem a flexibilidade no uso dos diferentes modos de sinalefa como se tem

213

observado vejam-se por exemplo os versos (nos quais anoto tocircnicas e semitocircnicas

evidenciando-se mais uma vez a variaccedilatildeo riacutetmica)

e a Heacutector um mortal [] (XXIV 58)199

que eacute ho ra de res ga tar seu fi lho ao cam po a queu (XXIV 146)

e troi a nas seios fun dos sem te mor e sem

Nesses versos destacam-se a elisatildeo em ldquoe a Heacutectorrdquo e em ldquoque eacute ho (ra)rdquo e a

sineacuterese em ldquoseiosrdquo exemplos da referida flexibilidade incorporada aos criteacuterios do

tradutor200

Sobre o dodecassiacutelabo de Campos diga-se que natildeo corresponde ao padratildeo do

alexandrino claacutessico tatildeo utilizado pelos poetas parnasianos embora o tradutor tenha

optado por manter preferencialmente a pausa na sexta siacutelaba201

(um dos criteacuterios

relativos ao referido alexandrino natildeo seguido pela escola romacircntica que reagia ldquocontra

o rigorismo antigo deslocando muitas vezes a cesura central para outro ponto e fazendo

largo emprego do cavalgamentordquo202

) Campos coerentemente agrave composiccedilatildeo eacutepica (que

envolve a narrativa) emprega com frequecircncia o cavalgamento sem contudo abdicar da

cesura claacutessica Sobre os demais criteacuterios que definiriam o padratildeo claacutessico leia-se a

seguinte citaccedilatildeo do parnasiano Olavo Bilac sobre o verso ldquode doze siacutelabas ou

alexandrinordquo

Este verso compotildee-se geralmente de dois versos de seis siacutelabas poreacutem eacute

indispensaacutevel observar que dois simples versos de seis siacutelabas sem sempre fazem

um alexandrino perfeito [] A lei orgacircnica do alexandrino pode ser expressa em

dois artigos 1o quando a uacuteltima palavra do primeiro verso de seis siacutelabas eacute grave a

199 O verso que consta no manuscrito foi posteriormente modificado pelo tradutor aparece assim na

ediccedilatildeo da Iliacuteada de Homero ldquoe a Heacutector Mortal em peito de mulher mamourdquo Op cit vol II p 443 200

Faccedila-se tambeacutem uma observaccedilatildeo de outro teor o tradutor indica a repeticcedilatildeo para o verso 186 do

verso 157 do mesmo canto tais versos satildeo tambeacutem iguais no texto grego 201 Relembre-se a seguinte afirmaccedilatildeo do tradutor ldquo[] recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na

sexta siacutelaba ou mais raramente na quarta oitava e deacutecima-segunda)rdquo (1994 13) 202 ALI Said Versificaccedilatildeo portuguesa Satildeo Paulo Edusp 2006 p 108

214

primeira palavra do segundo deve comeccedilar por uma vogal ou por um h 2o a uacuteltima

palavra do primeiro verso nunca pode ser esdruacutexula (1910 68)

Bilac segue preceitos definidos por A F de Castilho em seu jaacute citado Tratado

de metrificaccedilatildeo sobre tais regras leia-se o que dizem Adriano L Drummond e J

Ameacuterico Miranda

Na concepccedilatildeo de Antocircnio Feliciano de Castilho soacute eacute alexandrino o verso que

conta doze siacutelabas de ponta a ponta ateacute a uacuteltima tocircnica O poeta portuguecircs

considerava ainda pelo padratildeo agudo de contagem que propunha verso de doze

siacutelabas apenas aquele que se compusesse de dois versos de seis siacutelabas Entretanto

havia restriccedilotildees a essa foacutermula o primeiro hemistiacutequio deveria ser agudo no caso

de ser grave o primeiro hemistiacutequio deveria terminar por vogal e o segundo

iniciar-se por vogal ou por ldquohrdquo de modo que a siacutelaba final do primeiro hemistiacutequio

se absorvesse por sinalefa na primeira siacutelaba do segundo Preenchidas essas

exigecircncias conforme os moldes da prescriccedilatildeo castilhiana a medida do verso

resulta invariavelmente em doze siacutelabas Denomina-se esse verso de doze siacutelabas

de alexandrino francecircs203

Afirma sobre o alexandrino e em defesa de seu uso o proacuteprio Castilho

Ao verso de doze siacutelabas chamam alexandrino e tambeacutem francecircs [] entre os

franceses eacute ele o heroacuteico como o de dez siacutelabas o tem sido em Portugal Castela e

Itaacutelia como entre os Latinos e os Gregos o fora o hexacircmetro [] Surda e

antimusical a sua lingua mas necessitando em poesia de uma medida que por sua

extensatildeo abrangesse maior suma de ideacuteas somaram dois versos de pausas assaz

constantes para a conseguirem se o verso heroacuteico se partisse como o nosso em

porccedilotildees deseguais deixaria de ser reconheciacutevel sem passar a ser prosa deixaria de

ser verso

Natildeo seraacute faacutecil atinar com a razatildeo porque um verso mais espaccediloso que todos os

outros por consequecircncia mais capaz de pensamento e com uma particcedilatildeo simeacutetrica

203 O trecho integra o artigo ldquoO alexandrino portuguecircsrdquo de Adriano Lima Drummond e Joseacute Ameacuterico

Miranda in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira vol 14 ndash Dossiecirc Literatura Brasileira do

final do seacuteculo XIX Belo Horizonte UFMG 2007 pp 15-28

215

o que para o espiacuterito de quem os faz e para o agrado de quem os lecirc eacute ainda uma

vantagem tem sido ateacute hoje tatildeo escassamente cultivado em nossa liacutengua204

Acerca do tema diz ainda Castilho

Depois que noacutes por inteiramente convictos do preacutestimo e das excelecircncias dos

alexandrinos nos entregamos desenganada e abertamente ao seu granjeio e

sucessivo aperfeiccediloamento em portuguecircs muitos dos nossos mais bem nascidos

poetas o tomaram tambeacutem a si e o tecircm jaacute na verdade subido a grande apuro sendo

jaacute hoje faacutecil prever que dentro em pouco este metro que tanto se aconchega agrave

elegacircncia da frase e do estilo haacute de pleitear ousadamente preferecircncias ao nosso

velho heroacuteico apesar da prescriccedilatildeo da sua posse ateacute o deixar afinal natildeo dizemos

destruiacutedo nem o desejamos mas quando menos suplantado205

Como se pode verificar nos versos de Haroldo de Campos aqui citados uma das

regras relativas ao alexandrino (o primeiro dos ldquoartigosrdquo mencionados por Bilac) nem

sempre eacute seguida ou seja natildeo haacute neles a preocupaccedilatildeo de que a siacutelaba seguinte a uma

palavra paroxiacutetona no final do primeiro hemistiacutequio ser sucedida por uma vogal ou h ldquoe

troi a nas seios fun dos sem te mor e semrdquo ou ldquoA i ra Deu sa ce

le bra do Pe lei o A qui lesrdquo

Como se apontou os versos de Campos transitam por diferentes esquemas

permitidos pelo dodecassiacutelabo Sobre os esquemas baacutesicos do alexandrino afirma Said

Ali que ldquoo movimento riacutetmico ateacute a uacuteltima tocircnica obedece em qualquer dos

hemistiacutequios a um destes quatro esquemasrdquo

Forma-se o alexandrino quer pela repeticcedilatildeo de um destes tipos quer pela

combinaccedilatildeo de dois diferentes206

204 CASTILHO A F op cit 1874 p 50 205 Id p 52 206 ALI Said op cit p 108

216

Rogeacuterio Chociay identifica as seguintes ldquopossibilidades acentuais do

alexandrino claacutessicordquo ldquoconsiderando-se a contiguidade dos hemistiacutequiosrdquo207

1-3-6-8-12 2-4-6-8-12 3-6-8-12

1-3-6-9-12 2-4-6-9-12 3-6-9-12

1-3-6-10-12 2-4-6-10-12 3-6-10-12

1-3-6-8-10-12 2-4-6-8-10-12 3-6-8-10-12

1-4-6-8-12 2-6-8-12 4-6-8-12

1-4-6-9-12 2-6-9-12 4-6-9-12

1-4-6-10-12 2-6-10-12 4-6-10-12

1-4-6-8-10-12 2-6-8-10-12 4-6-8-10-12

Como pudemos constatar nos poucos exemplos considerando-se tocircnicas e

semitocircnicas ocorrem em Campos esquemas como 1-4-6-8-10-12 1-3-6-8-10-12 etc

Algo a comentar complementariamente o verso seguinte aos vistos ou seja o

oitavo da Iliacuteada

Satildeo as seguintes as soluccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Nume haacute que os malquistasse O que o Supremo

[]

Carlos Alberto Nunes

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Haroldo de Campos

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

207 CHOCIAY Rogeacuterio Teoria do verso Rio de Janeiro Satildeo Paulo McGraw-Hill 1974 p 128

217

A registrar a extrema concisatildeo de Odorico com a comunicaccedilatildeo do sentido geral

do verso grego no primeiro segmento do decassiacutelabo heroacuteico ou seja ateacute a sexta siacutelaba

tocircnica a coerecircncia de Nunes com seu propoacutesito narrativo afim com a extensatildeo e a

explicitaccedilatildeo e especialmente a providecircncia de Campos em valer-se da disposiccedilatildeo dos

elementos do verso de maneira a criar a indicialidade da posiccedilatildeo da sequecircncia de

palavras referentes agrave divindade entre viacutergulas e entre dois extremos do verso de modo

anaacutelogo ao que seria a posiccedilatildeo no espaccedilo extriacutenseco ao poema ldquoposto entre ambosrdquo

passa a funcionar tambeacutem como um hipoiacutecone da divindade

Tomaremos como objeto de estudo agora fragmentos da Odisseia Antes no

entanto de abordarmos os poucos versos escolhidos apresentemos sucintamente o

argumento do poema

A Odisseia composta de 24 cantos eacute dedicada ao retorno de Odisseu a sua terra

Iacutetaca apoacutes sua participaccedilatildeo na guerra de Troacuteia Durante dez anos (apoacutes ter estado

tambeacutem por uma deacutecada na guerra) o heroacutei astucioso afrontou perigos na terra e no

mar antes de poder chegar a seu reino O poema compotildee-se de trecircs partes

1 A ldquoTelemaquiardquo (cantos I-IV) Telecircmaco parte agrave procura do pai diante

da situaccedilatildeo em que se encontra sua matildee Peneacutelope devido agrave ausecircncia de seu pai

pretendentes a sua matildeo usurpam o palaacutecio real

2 A ldquovolta de Odisseurdquo (cantos V-VIII) recolhido apoacutes um naufraacutegio pelo

rei dos feaacutecios Alciacutenoo ele relata suas peregrinaccedilotildees (cantos IX-XIII) que o levaram

ateacute os Lotoacutefagos os Ciclopes a feiticeira Circe o Hades o mar das Sereias e por fim a

ninfa Calipso

3 A ldquovinganccedila de Odisseurdquo (cantos XIV-XXIV) de volta a Iacutetaca o heroacutei se

disfarccedila de mendigo e chega ao palaacutecio invadido pelos pretendentes agrave matildeo de sua

esposa ela poreacutem declara que soacute se casaraacute com aquele que conseguir manejar o arco

de Odisseu ele entatildeo se revela e massacra os pretendentes auxiliado por Telecircmaco

Tambeacutem eacute apresentada a seguir uma adaptaccedilatildeo do resumo claacutessico do Canto I

a partir da ediccedilatildeo da Odisseia de Victor Berard (Les Belles Lettres)208

208 A mesma observaccedilatildeo se aplica a outras sinopses de cantos incluiacutedas neste trabalho

218

Canto I

Assembleia dos Deuses Conselhos de Atena a Telecircmaco Festim dos

Pretendentes

A Assembleia dos Deuses reuacutene-se e decide pelo o envio de Odisseu a Iacutetacaa

partirda ilha de Calipso Atena vai para Iacutetaca onde se apresenta a Telecircmaco

fazendo-se semelhante a Mentes rei dos Taacutefios Haacute uma conversa em que Atena

aconselha Telecircmaco a procurar por seu pai primeiramente em Pilo cidade de

Nestor depois em Esparta cidade de Menelau Ao partir ela daacute sinais de que eacute a

deusa Atena Acontece nesse iacutenterim a Festa dos Pretendentes

Segue-se o texto grego dos primeiros cinco versos do canto acompanhado de uma

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo agrave semelhanccedila das apresentadas anteriormente

Odisseia I 1-5

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

homem cantai-me Musa multiacutevioastuto que muitiacutessimas vezes

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

vagou porque de Troia sagrado baluarte destruiu

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

de muitos homens viu cidades e soube pensamento

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

e muitas ele no mar sofreu dores seu no acircnimo

(e no mar muitas dores sofreu ele em seu acircnimo)

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

tentando salvar sua vida e retorno de companheiros

219

Leiamos as recriaccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Canta oacute Musa o varatildeo que astucioso

Rasa Iacutelion santa errou de clima em clima

Viu de muitas naccedilotildees costumes vaacuterios

Mil transes padeceu no equoacutereo ponto

Por segurar a vida e aos seus a volta

[]

Carlos Alberto Nunes

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros da alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

Haroldo de Campos

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus209

Verifiquemos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo e os da traduccedilatildeo de Odorico Mendes com o referencial do acircmbito semacircntico

209 Fragmentos de cantos da Odisseia traduzidos por Haroldo de Campos foram reunidos no livro Campos H de Odisseia de Homero ndash Fragmentos Organizaccedilatildeo Ivan de Campos e Marcelo Taacutepia

Apresentaccedilatildeo Trajano Vieira Satildeo Paulo Olavobraacutes 2006 Na ediccedilatildeo consta relativamente ao fragmento

do Canto I (versos 1-37) a seguinte nota dos organizadores ldquoProvavelmente Haroldo de Campos natildeo

considerasse esta uma versatildeo definitiva de sua traduccedilatildeo da abertura da Odisseia a julgar pelos

manuscritos que deixou em que os versos iniciais do poema homeacuterico recebem outras formulaccedilotildees Feito

o registro consideramos mesmo assim interessante a publicaccedilatildeo do texto nesta oportunidaderdquo (p 9)

220

____________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Valendo-se basicamente do recurso da modulaccedilatildeo como se pode ver ndash e natildeo eacute

penso necessaacuterio explicitar detalhes do procedimento ndash o texto de Odorico daacute conta do

plano do conteuacutedo entendido como a comunicaccedilatildeo ldquoessencialrdquo do sentido depreendido

dos versos gregos Com suas habituais paraacutefrases atua de modo a recriar a mensagem

coerentemente a suas convicccedilotildees esteacuteticas e agravequelas que orientam sua escolha

vocabular inseridas em sua eacutepoca e em seu contexto esteacutetico-literaacuterio permanecendo

no campo semacircntico do original Diversos elementos podem ser destacados como a

opccedilatildeo por ldquotranserdquo para designar as ldquodores em seu acircnimordquo para a palavra escolhida o

Houaiss traz inicialmente os significados de ldquoestado de afliccedilatildeo anguacutestiardquo ou a

utilizaccedilatildeo de ldquocostumesrdquo para fazer corresponder a lugares (cidades) e a pensamentos

simultaneamente ou ldquorasa Iacutelion santardquo referindo-se agrave destruiccedilatildeo (rasa ldquoarrasardquo ndash

Houaiss) do sagrado baluarte (fortaleza praccedila forte) de Troacuteia (Iacutelion ldquoantigo nome de

Troacuteia []rdquo ndash Isidro Pereira) Siacutentese radical em parte ditada pelo metro adotado

associada agrave procura de manutenccedilatildeo do que se pode considerar o conjunto ldquofundamentalrdquo

de informaccedilotildees propiciadas pelos versos Nestes cinco primeiros versos Odorico

manteacutem a correspondecircncia quase verso a verso e portanto a mesma quantidade de

221

linhas diminuiraacute contudo um verso jaacute no conjunto dos dez primeiros versos do texto

grego fazendo corresponder a sua nona linha agrave deacutecima de Homero A fim apenas de

propiciar esta verificaccedilatildeo incluirei a seguir os versos de nuacutemeros 6 a 10 no original

(acompanhados da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo) e os que a ele correspondem de Odorico de

nuacutemeros 6 a 9 evidenciando o processo de siacutentese que decorria do posicionamento do

tradutor e que como jaacute se mencionou o torna ndash embora circunscrito a periacuteodo que vai

do iniacutecio a pouco aleacutem de meados do seacuteculo XIX ndash identificaacutevel com as postulaccedilotildees

modernas da condensaccedilatildeo como uma das propriedades da linguagem poeacutetica

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

mas nem assim companheiros resgatou desejando emboraainda que

αὐτῶν γὰρ σφετέρῃσιν ἀτασθαλίῃσιν ὄλοντο

deles mesmos (pois) proacutepria por loucuraestultiacutecia pereceram

(pois pereceram por sua proacutepria loucura)

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

neacutescios que vacas de Hiperiocircnio Sol (Heacutelio)

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

devoravam e ele lhes arrebatou do retorno dia

(e ele lhes arrebatou o dia do retorno)

τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν (10)

disso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutes

Baldo afatilde Pereceram tendo insanos

Ao claro Hiperiocircnio os bois comido

Que natildeo quis para a paacutetria alumiaacute-los

Tudo oacute prole Dial me aponta e lembra (9)

222

ldquoProle dialrdquo comente-se alude agrave Deusa agrave Musa descendente de Zeus provindo

a palavra ldquodialrdquo do vocaacutebulo (Di) ldquoZeusrdquo em grego

Vejamos em semelhante estabelecimento de correspondecircncias a traduccedilatildeo de

Carlos Alberto Nunes

______________________________________________________________________

Como se pode constatar a simples leitura comparativa a recriaccedilatildeo de Nunes

pode ser encarada como uma possiacutevel traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do texto grego natildeo omitindo

na passagem qualquer de seus elementos As soluccedilotildees vocabulares se datildeo de modo

coerente a seus procedimentos mais afeitos agrave anaacutelise ao resultado explicitador do que agrave

siacutentese adequando-se agraves necessidades ditada pelo esquema riacutetmico-meacutetrico do

hexacircmetro Natildeo se observa neste fragmento tambeacutem qualquer acreacutescimo

223

Apresente-se por fim a relaccedilatildeo de correspondecircncias estabelecidas pela traduccedilatildeo

de Haroldo de Campos

______________________________________________________________________

Conforme se pode verificar o texto de Campos permanece como os demais no

campo de sentido do texto grego empregando o recurso da modulaccedilatildeo nota-se a

transformaccedilatildeo da referecircncia homeacuterica agrave destruiccedilatildeo do ldquosagrado baluarterdquo ou sagrada

fortaleza de Troacuteia em saque a ldquoTroacuteia urbe sagradardquo coerente agrave visatildeo do tradutor como

sendo o plano semacircntico uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a tarefa da traduccedilatildeo neste

caso inclui-se um sentido explicitador do teor da destruiccedilatildeo referida nos versos de

Homero Os dodecassiacutelabos da recriaccedilatildeo natildeo trazem nesta passagem omissotildees ou

acreacutescimos A destacar a recriaccedilatildeo (por modo usual nos procedimentos do tradutor agrave

semelhanccedila daqueles praticados por Odorico Mendes) do epiacuteteto de Odisseu que

consiste em palavra criada a partir do termo grego utilizando-se para tanto neste caso

o mesmo antepositivo ldquopolirdquo ldquopoliengenhosordquo por ldquopolyacutetroponrdquo

Diga-se que curiosamente a traduccedilatildeo de Campos relativa aos cinco primeiros

versos do texto homeacuterico vale-se de seis versos para abranger o campo de sentido

224

daqueles como se pode ver no conjunto antes apresentado Contudo no conjunto dos

dez primeiros versos do Canto I a ldquotranscriaccedilatildeordquo realizada faraacute manter-se a

correspondecircncia numeacuterica conforme mostra a leitura de seus versos de nuacutemeros 7 a 10

incluiacutedos a seguir

Aos companheiros natildeo logrou poupaacute-los mesmo

querendo Por si proacuteprios perderam-se Loucos

predando os bois do Sol do retorno privaram-se

Comeccedila de onde queiras Deusa a nos contar (10)

Note-se que o deacutecimo verso corresponde de modo quase ldquoliteralrdquo ao verso grego

de mesmo nuacutemero (ldquodisso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutesrdquo)

eliminando-se apenas a informaccedilatildeo (com valor de epiacuteteto) referente agrave Musa (ldquofilha de

Zeusrdquo)

Antes de prosseguirmos a anaacutelise com observaccedilotildees de ordem formal relativas a

repeticcedilotildees identificaacuteveis no fragmento vejamos ndash para que natildeo seja excluiacuteda esta

referecircncia ndash os versos de nuacutemeros 6 a 10 na traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

Os companheiros poreacutem natildeo salvou muito embora o tentasse

pois pereceram por culpa das proacuteprias accedilotildees insensatas

Loucos que as vacas sagradas do Sol hiperiocircnio comeram

Ele por isso do dia feliz os privou do retorno

Deusa nascida de Zeus de algum ponto nos conta o que queiras

Manteacutem-se na sequecircncia conforme eacute possiacutevel verificar a relaccedilatildeo praticamente

literal com o texto grego o deacutecimo inclui a informaccedilatildeo referente agrave Deusa embora

transformada Haacute a informaccedilatildeo cabiacutevel por deduccedilatildeo a partir do verso homeacuterico relativa

agrave vontada da Musa (agrave semelhanccedila do que escreveu Haroldo de Campos) permanecendo

portanto no campo semacircntico do original

Continuemos com breves comentaacuterios acerca do plano esteacutetico dos versos Para

tanto segue-se inicialmente o conjunto de versos gregos acompanhados de sua

transliteraccedilatildeo

225

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

Localizaremos nossa anaacutelise num acircmbito decorrente de uma hipoacutetese de leitura

sustentada pela observaccedilatildeo de repeticcedilotildees focircnicas nos cinco primeiros versos homeacutericos

(por vezes aproximadas por semelhanccedila agrave maneira do que jaacute se fez neste estudo)

Destaquem-se com grifos as ocorrecircncias (entre outras de possiacutevel identificaccedilatildeo) que

tomaremos por base para a discussatildeo

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

A hipoacutetese de leitura fundamentada na projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o

sintagma eacute de que se constroacutei no texto uma teia de correspondecircncias entre elementos

contidos no epiacuteteto do heroacutei tecendo-se sua erracircncia por entre os versos As

manifestaccedilotildees de primeiridade efeitos sugestivos de marcaccedilatildeo riacutetmico-sonora

permitem a composiccedilatildeo da figura da erracircncia que em niacutevel de secundidade pode

226

corresponder a lugares pelos quais Odisseu teria peregrinado no anuacutencio de sua

muacuteltipla aventura

Relendo-se as traduccedilotildees em questatildeo agrave luz desta hipoacutetese conclui-se que a

ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos permite a observaccedilatildeo de teia comparaacutevel de

elementos icocircnicos assim como da indicialidade das posiccedilotildees do heroacutei errante

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

Se aleacutem das ocorrecircncias (aproximativas) no plano focircnico destacarmos as

ocorrecircncias de notaccedilatildeo ou seja pela semelhanccedila graacutefica ampliaremos a teia de

correspondecircncias

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

227

Isoladas assim ficam as ocorrecircncias nas duas versotildees de destaque

Tomaremos como objeto de anaacutelise por fim um fragmento do Canto XI da

Odisseia Vejamos preambularmente uma sinopse do canto

Canto XI

Consulta aos mortos

[Apoacutes a morte de Elpenor (que cai do terraccedilo na casa de Circe) relatada no final

do Canto X] Odisseu conta como a conselho de Circe desce ao Hades a fim de

consultar o adivinho tebano Tireacutesias Encontra primeiro a alma de Elpenor que

reclama a proacutepria sepultura ouve depois de Tireacutesias o modo de salvar a si

mesmo e a seus companheiros Conversa com diversos heroacuteis e heroiacutenas com a

matildee que lhe daacute notiacutecias de Iacutetaca e com alguns da guerra de Troacuteia aleacutem de alguns

criminosos

228

Seguem-se os primeiros oito versos do canto em grego acompanhados de sua

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ao portuguecircs

Odisseia XI 1-8

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Depois quando ateacute o navio descemos e o mar

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

o navio primeiro puxamos ao mar divino

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

no mastro pusemos e velas navio negro

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

dentro as ovelhas tendo pegado fomos e noacutes mesmos

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

fomos (subimos) aflitos abundantes laacutegrimas vertendo

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

nosso agrave popa de navio de escura proa

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Circe de belas tranccedilas terriacutevel Deusa de voz harmoniosa (canora)

229

Leiam-se consecutivamente as traduccedilotildees do fragmento ao portuguecircs por

Odorico Nunes e Campos

Odorico Mendes

Deitado ao mar divino o fresco lenho

Dentro as hoacutestias o mastro e o pano armados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

Que invoca a deusa de anelado Crino (8)

Carlos Alberto Nunes

Quando chegamos agrave beira do mar e ao navio ligeiro

antes de tudo arrastando-o o metemos nas ondas divinas

mastro depois levantamos e velas no negro navio

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

Por traacutes de nosso navio de proa anegrada mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha (8)

Haroldo de Campos

Foi assim que baixamos para a nau mirando

o mar antes poreacutem lanccedilamos o navio

ao sacro sal aquoso o mastro e as velas todas

fazendo arborescer no barco escuro entatildeo

embarcamos carneiros e ovelhas Subimos

a bordo coraccedilotildees-cortados todo-laacutegrimas

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

230

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

de proa azul-cianuro Apoacutes os faticosos (10)

[]

Observemos a relaccedilatildeo de correspondecircncias entre a recriaccedilatildeo de Odorico e a

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do grego

O texto de Odorico relativo agrave sequecircncia inicial do Canto XI eacute um exemplo

niacutetido de sua orientaccedilatildeo para a siacutentese as informaccedilotildees contidas nos oito primeiros

versos gregos satildeo trabalhadas pelo tradutor em apenas cinco O modo de composiccedilatildeo

evidencia pela radicalidade o teor paroacutedico da recriaccedilatildeo o objetivo parece mesmo ser

o de comunicar a informaccedilatildeo ldquoessencialrdquo agrave narrativa com a maior economia possiacutevel de

elementos Ao adotar por exemplo o particiacutepio para referir-se a uma accedilatildeo jaacute executada

ndash ldquodeitado o fresco lenhordquo ndash o tradutor vale-se de um recurso para dispensar a accedilatildeo

inicial descrita no poema homeacuterico meio para colocar o navio ao mar de modo

anaacutelogo utiliza a sequecircncia ldquodentro as hoacutestiasrdquo para comunicar que as ovelhas ou reses

231

(ldquohoacutestiardquo tem o significado de ldquoviacutetima expiatoacuteriardquo) foram levadas a bordo (incluindo

assim a denotaccedilatildeo da finalidade de uso das reses) Omitem-se a referecircncia agrave cor escura

do barco a qualificaccedilatildeo de ldquofavoraacutevelrdquo ao vento (informaccedilatildeo que se pode considerar

impliacutecita na seguinte ou seja de que o vento ldquoenfuna e soprardquo) o nome de Circe (que

apareceraacute no 17ordm verso) e parte de seus epiacutetetos (terriacutevel canora) Embora seja sempre

relativa a secundarizaccedilatildeo da importacircncia de sentidos atribuiacuteveis ao texto pode-se

considerar que tais informaccedilotildees natildeo sejam indispensaacuteveis ao plano de conteuacutedo do

poema Sobre a fatura poeacutetica a evidente e notaacutevel autonomia do conjunto com sua

coerecircncia condensante assentada sobre os decassiacutelabos e sua forte sonoridade como

seraacute referido adiante

Vejamos as correspondecircncias relativas agrave traduccedilatildeo de C A Nunes

Marcado por algum acreacutescimo associado agrave modulaccedilatildeo o texto de Nunes inclui

possiacuteveis composiccedilotildees semacircnticas de elementos decorrentes do sentido depreendido do

texto grego como ldquoentre suspiros magoadosrdquo referecircncia contiacutegua a ldquoaflitosrdquo A mesma

232

soluccedilatildeo diga-se encontra-se em sua traduccedilatildeo do final do Canto X no qual haacute verso

quase idecircntico no poema grego alterando-se apenas o verbo de sentido anaacutelogo

(baiacuteno210

no Canto XI eicircmi no canto X) do verso 572 desse canto mencione-se

tambeacutem Nunes colheraacute uma informaccedilatildeo que seraacute incluiacuteda na traduccedilatildeo do iniacutecio do

canto XI (vejam-se em seguida o referido trecho homeacuterico com a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo de

apenas dois versos em questatildeo)

A traduccedilatildeo de Nunes para os versos 570 e 572 eacute ldquoa derramar quentes laacutegrimas

entre suspiros magoadosrdquo e ldquotinha amarrado um carneiro e tambeacutem uma ovelha bem

negrardquo (2001 188) O tradutor segue a repeticcedilatildeo do verso em grego repetindo

igualmente o seu e utiliza a informaccedilatildeo das duas reses na composiccedilatildeo do verso 4 do

Canto XI ldquoe ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimosrdquo ndash a inclusatildeo da

palavra ldquoambasrdquo ndash que natildeo se apoacuteia no proacuteprio verso traduzido pois este traz em grego

o artigo e o substantivo no plural) permitiu aleacutem da referecircncia ao canto anterior211

a

perfeita acomodaccedilatildeo do hexacircmetro

Coerentemente a um projeto mais afeito agrave anaacutelise que agrave siacutentese a traduccedilatildeo natildeo

traz omissotildees

Segue-se o quadro de correspondecircncias referentes agrave traduccedilatildeo de H de Campos

210O Dicionaacuterio grego-portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc 2006-2010 5 volumes) traz para (baiacuteno) os

sentidos de ldquodar um passo andar colocar o peacute colocar-se ir descer subir colocar os peacutes para

avanccedilar ir embora partir morrer passar etcrdquo E para (eicircmi) ldquoir [] ir a dirigir-se a ir por

percorrer seguir o caminho percorrer etcrdquo 211 O tradutor supotildee serem as reses deixadas presas por Circe as uacutenicas a serem embarcadas cria-se uma

coerecircncia natildeo necessariamente presente no poema homeacuterico

233

______________________________________________________________________

Tambeacutem de maneira coerente com sua concepccedilatildeo de ldquocanto paralelordquo H de

Campos compotildee versos que envolvem o sentido geral ou ldquoessencialrdquo (para a narrativa)

do texto grego sem que se mostre pretensatildeo de correspondecircncia semacircntica direta Nesta

sequecircncia o ldquoconteuacutedordquo dos oito primeiros versos homeacutericos eacute trabalhado em dez

versos pelo tradutor natildeo havendo portanto correspondecircncia verso a verso ao longo do

fragmento do Canto XI traduzido por Campos no entanto ndash que vai ateacute o verso 137 ndash a

sequecircncia ajusta-se de modo a reinstalar a correspondecircncia

O primeiro verso introduz de outro modo a narraccedilatildeo com eficiecircncia anaacuteloga (em

vez de ldquodepois quandordquo usa-se ldquofoi assim querdquo) acresce-se a palavra ldquoaquosordquo a

ldquosacro marrdquo (als em grego ndash que aparece na forma do acusativo ala ndash designa o mar

assim como ldquoonda salgadardquo212

) um modo de distinguir da primeira referecircncia a mar

(thaacutelassa) cria-se uma imagem sugestiva ldquofazendo arborescer no barco escurordquo (a

212Dicionaacuterio grego-portuguecircs (2006-2010)

234

expressatildeo aleacutem do mais como veremos logo adiante teria funccedilatildeo sonora) O uso de

ldquocarneiros e ovelhasrdquo desmembra o sentido de ldquoovelhasrdquo ou ldquoresesrdquo em informaccedilatildeo

que diferentemente de C A Nunes natildeo supotildee os dois animais presenteados por Circe

como os uacutenicos a embarcarem ou natildeo considera o final do canto anterior ou natildeo se

baseia em suposta coerecircncia do texto grego o ldquofuncionamentordquo do conjunto de versos

sua elaboraccedilatildeo esteacutetica com base nas repeticcedilotildees focircnicas parece nortear as escolhas

como se prevecirc pela proposiccedilatildeo da ldquofidelidade agrave formardquo conceito integrante da teoria da

transcriaccedilatildeo A assinalar quanto agrave coerecircncia de procedimentos internos agrave traduccedilatildeo dos

fragmentos da Odisseia e de toda a Iliacuteada a criaccedilatildeo de adjetivos compostos por

simples justaposiccedilatildeo ldquocoraccedilotildees-cortadosrdquo ldquotodo-laacutegrimasrdquo ldquoazul-cianurordquo ldquoenfuna-

velasrdquo ldquobelas-tranccedilasrdquo ldquoclaravozrdquo

Antes de observarmos certos aspectos formais das traduccedilotildees vejamos algo dos

versos gregos Para tanto segue-se o fragmento acompanhado de sua transliteraccedilatildeo

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Autagraver epeiacute rrsquo epigrave necirca katheacutelthomen edegrave thaacutelassan

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

necirca megraven ar pamproton eryacutesamen eis aacutela diacutean

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

em drsquo istograven titheacutemestha kaigrave istiacutea neigrave melaiacutene

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

em degrave ta mela laboacutentes ebeacutesamen an degrave kaigrave autoi

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

hemin drsquoaucirc katoacutepisthe neograves kyanoproacuteroio

235

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Kiacuterke euploacutekamos deinegrave theograves audeacuteessa

Dada a alta concentraccedilatildeo de repeticcedilotildees (de fonemas de siacutelabas de palavras) o

fragmento apresenta particular densidade sonora no contexto sempre denso da eacutepica de

Homero Pode-se falar pelas sequecircncias aliterantes e reincidecircncias proacuteximas numa

aceleraccedilatildeo tensiva dos versos tensatildeo ligada ao momento aflitivo aceleraccedilatildeo ligada ao

movimento agrave accedilatildeo que se executa A leitura pode incluir a percepccedilatildeo de obstaacuteculos

reiterantes associados agrave marcaccedilatildeo dos passos da movimentaccedilatildeo Tatildeo abundante de

efeitos eacute o conjunto que me parece dispensaacutevel seu difiacutecil destaque Mas podemos

indicar como um verso de quase-cimo tensivo aquele referente agrave subida dos homens

aflitos tristes a bordo observe-se sua escansatildeo (evidenciando portanto o esquema do

hexacircmetro dactiacutelico213

)

(baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes)

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες (5)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U U _ U

(Subimos aflitos abundantes laacutegrimas vertendo)

A alternacircncia padratildeo de longas e breves neste caso parece associar-se

perfeitamente agrave reincidecircncia dos sons e no plano semacircntico ao movimento referido no

verso mantendo-se a marcha a velocidade constante no conjunto de vogais

particularmente o repetido tal como se apresenta na sequecircncia pode colaborar na

sugestatildeo do aspecto sombrio depressivo da cena

O verso 7 no entanto apresenta outra configuraccedilatildeo ao dizer do vento favoraacutevel

213 Como jaacute se disse o hexacircmetro eacute composto por seis peacutes daacutectiacutelicos _UU (uma siacutelaba longa e duas

breves podendo as breves ser substituiacutedas por uma longa resultando num peacute espondaico)

236

(iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon)

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

_ U U _ U U_ _ _ UU _ U U _ U

(favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro)

Apesar de aparecerem as aliteraccedilotildees de oclusivas agrave semelhanccedila do anterior

surge a repeticcedilatildeo do fonema s que ameniza a sonoridade da frase e potencialmente

sugere iconicamente a passagem do vento o ritmo desacelera estende-se pela

sucessatildeo de siacutelabas longas entre o terceiro e o quarto peacutes transformando-se tambeacutem

num iacutecone de mudanccedila aliada agrave suavizaccedilatildeo variaccedilatildeo de tom de ritmo associada agrave

alteraccedilatildeo de perspectiva no relato

Abordemos sinteticamente a dimensatildeo formal das traduccedilotildees apresentadas

Em Odorico satildeo perceptiacuteveis relaccedilotildees entre som e sentido observemos como se

apresentam nos versos relacionados aos dois versos homeacutericos receacutem-destacados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

O movimento do verso heroacuteico com tocircnica na terceira e sexta siacutelabas instaura

um ritmo ternaacuterio ascendente inicial a ser complementado pela ceacutelula quaternaacuteria

subsequente214

compondo uma sequecircncia adequada ao que se diz com a posiccedilatildeo das

tocircnicas a reforccedilar o significado de cada palavra

Em tris tiacutes si mas laacute gri mas par ti mos

214Pela tendecircncia paroxiacutetona e dos padrotildees riacutetmicos de nossa liacutengua ndash binaacuterio e ternaacuterio ndash um verso

acentuado na terceira sexta e deacutecima siacutelabas como eacute o caso pode) encaminha-se agrave subdivisatildeo binaacuteria agrave

maneira do martelo agalopado forccedilando-se uma tocircnica

237

As repeticcedilotildees das consoantes oclusivas e particularmente dos encontros

consonantais tr e gr marcam o passo e a dificuldade compatiacutevel com a situaccedilatildeo

aflitiva O verso seguinte (diferentemente do grego em que o ritmo parece desacelerar)

tambeacutem heroacuteico traz o padratildeo mais veloz do pentacircmetro jacircmbico ou seja composto de

uma sucessatildeo de cinco unidades binaacuterias ascendentes como que a reiterar o impulso do

vento

Bom soacute cio en fu na e so pra o ven to em po pa

A tecitura sonora reforccedila a accedilatildeo associando agrave sequecircncia a sucessatildeo aliterante de

fricativas tambeacutem a sugerir como primeiridades (hipoiacutecones sonoros) o efeito da

passagem do vento que amaina o ldquoclimardquo funesto movimento constante reiterativo da

accedilatildeo e sopro uma conjunccedilatildeo entre ritmo sonoridade e sentido que traz unidade ao

verso e consistecircncia ao conjunto

A traduccedilatildeo de C A Nunes por sua vez se natildeo pode valer-se de variaccedilotildees do

ritmo pelo padratildeo fixo utilizado pode dar a ilusatildeo de mudanccedila como no verso

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

Embora em padratildeo ternaacuterio descendente (dactiacutelico) o verso ndash pela cesura na

deacutecima siacutelaba coincidente com a final da oraccedilatildeo ou seja com a pausa sintaacutetica

marcada pelo ponto-e-viacutergula ndash parece inverter o sentido para o padratildeo ascendente ao

mesmo tempo em que eacute dito ldquoem seguida subimosrdquo accedilatildeo que ganha paulatinidade com

a repeticcedilatildeo uniforme Um momento feliz no processo composicional de Nunes que

mostra uma certa (ainda que diminuta) relatividade na fixidez do padratildeo Vejam-se

ainda os versos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

[] mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha

238

No primeiro ainda que se possa ter a sensaccedilatildeo de ldquolassidatildeordquo do verso como

frequentemente ocorre nos versos analiacuteticos e alongados do tradutor ndash a impressatildeo de

arrastar-se extensivamente com perda de forccedila e diluiccedilatildeo de efeitos ndash as repeticcedilotildees

colaboram para uma unidade em que se entrevecircem relaccedilotildees som-sentido a reiteraccedilatildeo do

fonema m da siacutelaba ldquomardquo repetida sugere murmuacuterio lamento os s sucessivos

reverberam a ideia de suspiro na palavra ldquomagoadosrdquo insinua-se a figura sonora da

ldquoaacuteguardquo (fazendo lembrar a proposiccedilatildeo de Jakobson quanto agrave sugestatildeo de proximidade

semacircntica a partir da semelhanccedila sonora) que por sua vez liga-se conceitualmente a

ldquolaacutegrimasrdquo O verso seguinte eacute feliz na distribuiccedilatildeo das tocircnicas entre vogais diferentes

que se sucedem (ẽ i eacute u ẽ atilde) marcando-se a repeticcedilatildeo do ẽ na palavra

referente a ldquoventordquo e traccedilando-se assim uma relaccedilatildeo sonora entre o iniacutecio e o fim do

verso No uacuteltimo podem-se reconhecer as aliteraccedilotildees nas fricativas v s e f que

como os demais casos convertem-se em iacutecones sugestivos do sopro do vento

Examinemos sob os aspectos da informaccedilatildeo esteacutetica alguns elementos da

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Procurarei isolar alguns efeitos marcantes dos versos

O primeiro verso traz a tocircnica da palavra ldquobaixamosrdquo na sexta siacutelaba do

dodecassiacutelabo ou seja da cesura acentuando-se com o componente riacutetmico a accedilatildeo

principal enunciada Desde o iniacutecio pode-se perceber o criteacuterio de engendramento de

repeticcedilotildees de correspondecircncias internas ao texto entre o primeiro e o segundo a

paronomaacutesia mirando ndash mar em seguida outras semelhanccedilas entre palavras ou

segmentos sacro ndash sal arbo ndash barco ndash barca ndash bor car ndash cor ndash cor etc Pode-se assim

supor a tentativa de re-produccedilatildeo de uma densidade sonora anaacuteloga aos versos gregos A

sequecircncia ldquofazendo arborescer no barco escurordquo encontra proximidade na

concentraccedilatildeo com certas sucessotildees no texto homeacuterico provaacutevel razatildeo da escolha que

embora distante ldquoda letrardquo sugere fonicamente um reiniacutecio um tempo feacutertil a iniciar-se

a crescer no momento ateacute entatildeo sombrio definido pelo ldquobarco escurordquo ligado pelo

som a ldquoarborescerrdquo Nos versos

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

239

de proa azul-cianuro [Apoacutes os faticosos] (10)

eacute apreensiacutevel de imediato a sucessatildeo de fricativas (de novo iacutecones do vento) que

participam da ressonacircncia vocal de Circe (poderosa claravoz) e do efeito escurecedor

da expressatildeo ldquoazul-cianurordquo com sua duplicaccedilatildeo de u Mais uma vez eacute dedutiacutevel em

Campos a priorizaccedilatildeo da teia sonora como meio de composiccedilatildeo do sentido geral do

conjunto de versos

240

Capiacutetulo IV

A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs

O propoacutesito central deste capiacutetulo seraacute apresentar uma proposta de possiacutevel

opccedilatildeo riacutetmico-meacutetrica a se adotar em uma recriaccedilatildeo da eacutepica homeacuterica e por extensatildeo

da eacutepica greco-latina

Baseia-se primeiramente na ideia oacutebvia de que sempre os versos em portuguecircs

apresentaratildeo medidas sejam regulares ou natildeo assim como conteratildeo siacutelabas tocircnicas

quer haja ou natildeo algum propoacutesito em sua existecircncia e no modo pelo qual satildeo

distribuiacutedas nos versos Natildeo penso na necessidade de correspondecircncia exata com o

hexacircmetro dactiacutelico porque creio natildeo se justificar ndash pelo fato de que a traduccedilatildeo seraacute

sempre recriaccedilatildeo com outros elementos e em outro contexto ndash a predefiniccedilatildeo da

equivalecircncia ldquoabsolutardquo (seja no plano de conteuacutedo ou no caso no plano de expressatildeo)

em relaccedilatildeo aos poemas traduzidos A autonomia do texto recriado ainda que relativa

envolveraacute inevitavelmente suas proacuteprias regras internas que natildeo seratildeo as mesmas do

original ainda que se tenha tal propoacutesito

Satildeo diversas as possibilidades como se pocircde constatar neste trabalho de

adaptaccedilatildeo meacutetrica e prosoacutedica da eacutepica ao portuguecircs variando da transposiccedilatildeo

adaptativa de C A Nunes ao decassiacutelabo de O Mendes A escolha do dodecassiacutelabo

por H de Campos eacute muito bem sucedida do ponto de vista formal por manter-se dentro

do paracircmetro da poesia tradicional de liacutengua portuguesa (sem portanto aproximar-se de

uma extensatildeo que sugere ilimitaccedilatildeo como a da prosa) e por apresentar variaccedilatildeo

prosoacutedica associada agrave quase fixa presenccedila da cesura emulando de certa forma a

regularidade e a mutabilidade do verso grego Eacute bastante eficiente tambeacutem a soluccedilatildeo

de A Malta Campos tambeacutem por associar ainda mais nitidamente a regularidade e a

mutabilidade aleacutem de fazer corresponder ao verso grego subunidades de metro popular

em portuguecircs estabelecendo a relaccedilatildeo em niacutevel tambeacutem extratextual com a funccedilatildeo do

poema eacutepico se considerada sua contextualizaccedilatildeo de origem Uma possibilidade a ser

testada eacute a do verso hendecassiacutelabo por sua dinacircmica normalmente formada por uma

ceacutelula binaacuteria seguida de trecircs ternaacuterias de perfil dinacircmico e marcado ao mesmo tempo

a pesar contra essa medida a restriccedilatildeo de seu tamanho (com uma siacutelaba apenas a mais

241

do que o metro escolhido por Mendes uma das razotildees para sua praacutetica de contorccedilotildees

sintaacuteticas) e portanto de ldquoespaccedilo de manobrardquo do tradutor a menos que se aumente a

quantidade de versos

Por necessidade de escolha entre outras possiacuteveis parece-me interessante e

adequada a opccedilatildeo que exporei adiante Ela seraacute baseada antes no elemento mais

caracterizador do ritmo as tocircnicas do que na medida do verso Isto para valorizar-se

exatamente o aspecto riacutetmico e tambeacutem meloacutedico do verso (compartilhando desse

modo da ldquoessencialidaderdquo do verso grego) uma vez que pelo teor narrativo a medida

tende a dissociar-se das unidades de sentido que se completam amiuacutede nos versos em

sequecircncia

Embora o verso grego fundamente-se na distribuiccedilatildeo de siacutelabas longas e breves

e tenhamos em portuguecircs de considerar a tonicidade das siacutelabas podem-se entender

com certa liberdade os procedimentos como anaacutelogos215

Mesmo porque ainda que os

criteacuterios sejam de natureza diversa (uma quantitativa216

outra qualitativa) haacute

possibilidade de entrever-se a duraccedilatildeo diferenciada entre as siacutelabas tocircnicas e aacutetonas

como queriam Olavo Bilac e Guimaratildees Passos em seu Tratado de versificaccedilatildeo (1910)

que chegam a utilizar a terminologia ldquolongardquo e ldquobreverdquo para se referirem agraves siacutelabas do

verso em portuguecircs Diz o texto

O acento predominante ou a pausa numa palavra eacute aquela siacutelaba em que parecemos

insistir assinalando-a []

O som mais ou menos aberto da vogal natildeo influi sobre o acento a demora eacute na

pronunciaccedilatildeo o que o caracteriza []

A siacutelaba longa eacute que daacute agrave palavra o nome de aguda grave ou exdruacutexula []

Bilac e Passos assim como outros teoacutericos da versificaccedilatildeo encontram apoio na

liccedilatildeo de Antoacutenio Feliciano de Castilho (1800-1875) que em seu Tratado de

Metrificaccedilatildeo (1851) reconhecia siacutelabas longas e breves nas palavras

215Verdade eacute que os versos greco-latinos tambeacutem encerram acentos como eacute inevitaacutevel essa natildeo era

entretanto ndash conforme se considera ndash a base para a composiccedilatildeo riacutetmica 216 Ou seja relativa agrave duraccedilatildeo das siacutelabas (a longa dura duas vezes a breve) Os diferentes arranjos entre

os dois tipos de siacutelabas compunham alguns tipos baacutesicos de peacutes usados na poesia greco-latina Os

principais (aqui anotados a partir dos siacutembolos da braquia U relativo agrave siacutelaba breve e o maacutecron _

relativo agrave siacutelaba longa) satildeo o jambo ou iambo (U_) o troquseu (_U) o espondeu (_ _) o daacutectilo (_UU)

o anapesto (UU_) e o peocircnio (_UUU UUU_)

242

Acento predominante ou pausa num vocaacutebulo se chama aquela siacutelaba em que

parecemos insistir ou deter-nos mais v g em louvo a primeira em louvado a

segunda [etc]

Toda a palavra tem necessariamente uma pausa nem mais nem menos []

Levantamos tem a terceira siacutelaba longa seguindo-se-lhe por consequecircncia uma soacute

breve se juntando-lhe o complemento mdash nos mdash disserdes levantamo-nos sentireis

depois daquela siacutelaba longa natildeo jaacute uma soacute breve mas duas breves []217

Reforccedilam a ideia de duraccedilatildeo das siacutelabas os modos de abordagem do verso com

base na notaccedilatildeo musical conforme proposta de Geoffrey N Leech218

de M Cavalcanti

Proenccedila219

(que por sua vez menciona Spinelli e Echarri) e de Paulo Henriques Britto

em comum a esses autores a indicaccedilatildeo por meio de siacutembolos musicais convencionais

da ldquoduraccedilatildeo relativa das siacutelabas e [d]as pausas e [d]as separaccedilotildees entre compassosrdquo220

Veja-se como exemplo uma notaccedilatildeo apresentada por Leech (1969 108)

E tambeacutem a notaccedilatildeo por Cavalcanti Proenccedila de versos do ldquoHino ao sonordquo de

Castro Alves

217CASTILHO A F de Op cit pp 14-15

218 Leech G A linguistic guide to English Poetry London Longman 1969 219 Proenccedila M Cavalcanti Ritmo e poesia Rio de Janeiro Organizaccedilatildeo Simotildees 1955 220 BRITTO P H ldquoO conceito do contraponto meacutetrico em versificaccedilatildeordquo p 6

243

Antes de prosseguirmos com uma sugestatildeo de uso meacutetrico para a eacutepica ndash que

ademais seraacute mais uma alternativa entre as existentes ndash vejamos referecircncias agraves diversas

possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro em liacutenguas modernas Jaacute mencionamos a

adaptaccedilatildeo realizada nas liacutenguas anglo-saxocircnicas (inglecircs e alematildeo) que fazem

corresponder as siacutelabas tocircnicas do verso agraves siacutelabas longas das composiccedilotildees gregas e

latinas e as aacutetonas agraves siacutelabas breves221

Seguem-se alguns exemplos colhidos de

Kayser (1976)222

relativos (na ordem) a jambos troqueus daacutectilos e anapestos

221 O mesmo sistema foi usado como vimos por C A Nunes mas haacute antecedentes do procedimento nas

liacutenguas latinas como veremos adiante 222 Op cit pp 84-85

244

Sobre a conversatildeo do metro a liacutenguas neolatinas ndash que devo abordar para

fundamentaccedilatildeo do que seraacute proposto por fim ndash recorrerei a um esclarecedor artigo

publicado na revista espanhola Estudios clasicos (1971)223

de autoria de Francisco

Pejenaute que traz um panorama dos modos com que se adapta ou se adaptou o

hexacircmetro ao espanhol terei como uma das principais fontes tambeacutem comentaacuterio de

Castilho sobre o hexacircmetro portuguecircs

Pejenaute categoriza modos de adaptaccedilatildeo do metro identificando quatro

sistemas diversos de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

a) adaptacioacuten ldquoa la grecolatinardquo la de aquellos que despueacutes de admitir que la

cantidad puede ser tambieacuten en espantildeol elemento esencial em el verso y constitutivo

de ritmo y tras formular las leyes por las que se rige la cantidad en espantildeol han

intentado demostrar praacutecticamente su teoriacutea con alguacuten ejemplo b) sistema que

nosotros denominamos de yuxtaposicioacuten y que parte del deseo de imitar los

acentos del verso latino leiacutedo a la espantildeola [] los adaptadores por yuxtaposicioacuten

se han dado cuenta de que los acentos del hexaacutemetro latino [] formaban las maacutes

de las veces esquemas acentuales que divididos en dos hemistiquios teniacutean

parangoacuten acentual con determinados versos castellanos [] su sistema ha

desembocado finalmente em yuxtaponer dos versos castellanos dotando al segundo

de claacuteusula acentual hexameacutetrica c) sistema denominado legere por

L Alonso Schokel y ldquoriacutetmico-acentual intensivordquo por Huidobro [] simple

imitacioacuten de los acentos del verso claacutesico de modo que en el hexaacutemetro [] no

aparecen fijos maacutes que los dos uacuteltimos acentos mientras que los otros (dos tres o

cuatro) se distribuyen en el resto del verso caprichosamente [] d) sistema ldquopor

223 PEJENAUOTE F ldquoLa adaptacioacuten de los metros clasicos em castellanordquo In Estudios clasicos no 63

Madri 1971

245

ictusrdquo que Huidobro denomina ldquopor arsis y tesisrdquo y Schoumlkel scandere y que

intenta reconstruir el ritmo del hexacircmetro claacutesico tratando de reproducir [] los

ictus o tiempos marcados Aquiacute habraacute que hacer tres divisiones hexaacutemetro

dactiacutelico puro hexaacutemetro anacruacutestico y hexaacutemetro con sustituciones

A classificaccedilatildeo revela o quadro complexo de possibilidades adaptativas do

hexacircmetro conforme os referenciais que se adotam para a definiccedilatildeo do procedimento

fundamental relativo agrave composiccedilatildeo do ritmo do poema Mais uma vez instala-se a

multiplicidade de sistemas decorrentes de uma pluralidade de visotildees que buscam

coerecircncia do produto com seus propoacutesitos Nenhum dos sistemas como se sabe e se

veraacute poderaacute almejar a equivalecircncia ou a correspondecircncia completa entre os metros pela

ldquonaturezardquo diversa dos sistemas associados agraves diferentes liacutenguas por esta via de

constataccedilatildeo pode-se concluir da necessidade de soluccedilatildeo intriacutenseca agrave traduccedilatildeo que

busque diferentes niacuteveis de analogia com os esquemas proacuteprios dos modelos traduzidos

e natildeo o paradigma da correspondecircncia ldquofielrdquo a tais modelos Voltando agraves categorias

distinguidas por Pejenaute segue alguma explicitaccedilatildeo e alguma exemplificaccedilatildeo

(necessaacuteria para o que discutiremos)

a) Adaptacioacuten a la greco-latina

[] no hay maacutes ejemplo claro queel hexaacutemetro cuantitativo de D Sinibaldo de

Mas [] [Eacutel] defiende no soacutelo que existenlargas y breves en castellano sino que

esa cantidad [] es o puede ser [] um elemento constitutivo de ritmo []

Siguieacutendo [reglas de la cantidad en castellano] nos ofrece ldquohexaacutemetrosrdquo

cuantitativos como los siguientes

A tentativa eacute portanto de fazer valer a diferenccedila de duraccedilatildeo entre siacutelabas do

espanhol o comentaacuterio do ensaiacutesta aponta o que natildeo eacute difiacutecil antever ndash a natildeo-

246

funcionalidade do sistema diante de um padratildeo instalado de leitura com base em

tocircnicas

Si alguacuten ritmo tienen versos de este tipo proviene delos acentos que al final

aparecen seguacuten la foacutermula de laclaacuteusula hexameacutetrica []

Aqui uma questatildeo fundamental a assinalar a permanecircncia da ldquoclaacuteusulardquo224

seraacute

comum aos diversos sistemas o padratildeo de constacircncia ndash definido pela distribuiccedilatildeo de

tocircnicas proacutepria do sistema qualitativo portanto ndash conviveraacute em geral com variaccedilotildees

diversas de esquema acentual (mesmo que o criteacuterio natildeo seja o acento) No caso receacutem-

visto eacute apontado o papel determinante das siacutelabas tocircnicas (e natildeo das ldquolongasrdquo e

ldquobrevesrdquo) para a configuraccedilatildeo do ritmo Seguem-se informaccedilotildees referentes agrave categoria

seguinte

b) Adaptacioacuten por yuxtaposicioacuten

Para [Juan Gualberto Gonzaacutelez] en el exaacutemetro latino se encierran [] todas

nuestras combinaciones meacutetricas [] Toda su teoriacutea de la adaptacioacuten de los metros

claacutesicos tiene sus raiacuteces en este principio [] todo hexaacutemetro latino puede

descomponerse en alguacuten verso castellano maacutes algo (praacutecticamente en dos versos

castellanos) []

Los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola resultan ser una yuxtaposicioacuten de dos

versos ya conocidos del castellano []

Para adaptar en castellano el hexaacutemetro latino no hay maacutes que yuxtaponer dos

versos castellanos []

Incluem-se em seguida como exemplo versos do tradutor mencionado (nos quais

assinalo as siacutelabas tocircnicas finais para evidenciar a presenccedila do ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo)

El pastor Coridoacuten al bello Alexis amaba

delicias de su duentildeo mas esperar no teniacutea

En la espesura solo de unas altiacutesimas hayas

andaba de continuo dando a los montes y selvas

224 A sequecircncia _UU _U no final do verso (um peacute daacutectilo e outro interrompido) como jaacute se viu eacute

caracteriacutestica do metro utilizado nos poemas eacutepicos o denominado ldquohexacircmetro dactiacutelico cataleacutecticordquo (ou

seja ao qual suprimiu-se uma siacutelaba em seu final) Chamarei de ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo a sequecircncia (a

que Pejenaute chama ldquoclaacuteusula hexameacutetricardquo)

247

Sobre o terceiro e o quarto tipos de adaptaccedilatildeo diz o autor

c) Adaptacioacuten por el sistema ldquolegererdquo

[] se trata de [mediante este sistema] reproducir acuacutesticamente la sensacioacuten que

producen en nosotros los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola un ritmo

indefinido vago impreciso en la mayor parte del verso que se canaliza y encauza

al llegar al final mediante la dipodia dactiacutelico-espondaica claacuteusula del hexaacutemetro

claacutesico donde la mayor parte de las veces el acento veniacutea a caer en tiempo

marcado

d) Adaptacioacuten por el sistema ldquoscandererdquo

Intenta reproducir mediante el acento los ictus o tiempos marcados del hexaacutemetro

claacutesico [] Tenemos [las variantes] []

1Hexaacutemetro dacti l i co puro que seriacutea [] la imitacioacuten mediante el acento

del hexaacutemetro ldquoholodaacutectilordquo esto es un verso de 17 siacutelabas225

con acento riacutetmico

en las siacutelabas 1ordf 4ordf 7ordf10ordf 13ordf y 16ordf o lo que es lo mismo una serie formada por

cinco grupos prosoacutedicos ternarios seguidos de uno binario todos ellos acentuados

en la primera siacutelaba

Como se pode notar o verso utilizado por Carlos Alberto Nunes em portuguecircs

corresponde a este modelo a equiparaccedilatildeo exata do sistema qualitativo com o

quantitativo tambeacutem a ele corresponde o sistema usado na tradicional metrificaccedilatildeo

inglesa e alematilde Segue-se um exemplo de verso da Iliacuteada em espanhol de Pedro-Luis

Heller

Esta pues fue hacia eacutel y la criada seguia sus pasos

sobre su seno llevando al caacutendido tierno infante

hijo querido de Heacutector igual a un astro hermoso

al que su padre llamaba Escamandrio en cambio los otros

laquoRey-de-ciudadraquo porque soacutelo aqueacutel amparaba a Troya

225 Observe-se que o sistema meacutetrico espanhol adota o padratildeo do verso grave (paroxiacutetono) para contagem

isto eacute considera uma siacutelaba aleacutem da uacuteltima tocircnica para estabelecer o nuacutemero de siacutelabas do verso (o

sistema que era praticado no portuguecircs antes da proposiccedilatildeo por Castilho do padratildeo do verso agudo ndash

oxiacutetono ndash prevecirc a natildeo contagem da uacuteltima siacutelada de uma palavra esdruacutexula no fim do verso e o acreacutescimo

de uma no caso de o verso terminar com palavra oxiacutetona) Assim as 17 siacutelabas mencionadas equivalem a

16 siacutelabas na contagem praticada em liacutengua portuguesa

248

2 Hexaacutemet ro dactiacute l i co anacruacutestico Aquiacute los grupos prosoacutedicos ternarios no

son cinco sino cuatro seguidos tambieacuten por uno binario todos igualmente com

acento en la primera siacutelaba y al frente de dichos grupos abriendo verso una o dos

siacutelabas en anacrusis226

que forman una especie de pie volado imprescindible para

totalizar los seis pies de los que necesariamente se compone esteverso

El adaptador maacutes consciente y maacutes convincente decuantos han seguido este

sistema es sin lugar a dudas D Joseacute Manuel Paboacuten y Suaacuterez de Urbina

A respeito da traduccedilatildeo de Paboacuten diz o apresentador de ediccedilatildeo de cantos da

Odisseia227

En vez de largas y breves una siacutelaba toacutenica seguida de dos aacutetonas en vez

de seis pies solamente cinco evitando asiacute la monoacutetona divisioacuten en

hemistiquios de tres pies [] Este ritmo resulta es cierto producto de uma

caprichosa convencioacuten pero es la maacutes perfecta imitacioacuten del hexacircmetro que

puede darse en nuestra lengua iquestQue a la larga resulta monoacutetono

Naturalmente Pero iquestno ocurre lo mismo con todos los metros y ritmos

[] los ensayos previos admitiacutean lo que el autor llama una anacrusis al

principio es decir los inicios de versos podiacutean ofrecer bien una o bien dos

siacutelabas aacutetonas [] e nesta versioacuten que ahora ofrecemos [] ha sido

eliminado este tipo de versos con una sola aacutetona para que no surja un

encabalgamiento con el cual la recitacioacuten se hariacutea maacutes monoacutetona y confusa

al empalmar unos versos con otros Se trata en general [] de pequentildeos

recursos para compensar la inevitable tendencia a la monotoniacutea que corre el

riesgo de producir la rigidez del sistema frentea la libertad del original con

sus daacutectilos y espondeos

O tradutor utiliza portanto a anacruse para instalar um componente de

variabilidade ao verso Conheccedilam-se algumas linhas de sua Odisseia marco as

anacruses e os hexacircmetros dos primeiros versos

226Anacruse ldquosiacutelaba (ou siacutelabas) inicial de um verso anteposta agrave aacutersis que natildeo eacute levada em conta para

que se tenha convencionalmente o mesmo nuacutemero de peacutes dos demais versosrdquo ndash Houaiss 227HOMERO Cuatro cantos de la ldquoOdiseardquo (IX XIII XIV XXII) Trad de Joseacute Manuel Paboacuten Com

introd de M F G Suplementos de Estudios Claacutesicos no 7 Madri 1969

249

Canto IX

Contestando a su vez dijo Ulises el rico en ingenios

Prez y honor de tus hombres Alciacutenoo sentildeor poderoso

halaguumlentildeo es sin duda escuchar a un cantor como eacuteste

semejante en su voz a los dioses Yo pienso de cierto

que el extremo de toda ventura se da soacutelo cuando

la alegriacutea se extiende en las gentes y estaacuten los que comen

Veja-se o tipo seguinte

3 Hexaacutemet ro dactiacute l i co con susti tuciones Al igual que en el hexaacutemetro

claacutesico los grupos silaacutebicos no van fijos maacutes que en 5ordf y en 6ordf posicioacuten

pudieacutendose dar alternancia de ternarios y binarios en loscuatro primeros pies De

cuantos sistemas se han seguido eacuteste nos parece el maacutes acertado y el que mejor se

amolda al modelo claacutesico El nuacutemero de siacutelabas oscila entre 13 y 17 los acentos

van formando grupos riacutetmicos de tres o de dos siacutelabas y terminan con la claacuteusula

hexameacutetrica

Como exemplo versos do colombiano Joseacute Eusebio Caro nos quais assinalo as

tocircnicas

Ceacutefiro rdpido laacutenzate Raacutepido empuacutejame y vivo

Maacutes redondas mis velas pon del proscrito a los lados

haz que tus silbos susurren dulces y dulces suspiren

[]

Na liacutengua portuguesa diversos tradutores praticaram a adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

greco-latino Tem-se notiacutecia do ldquohexacircmetro portuguecircsrdquo por meio do escritor Antoacutenio

Feliciano de Castilho (1800-1875) no seu jaacute mencionado Tratado de metrificaccedilatildeo

portuguesa (1851) Nessa e em trecircs ediccedilotildees seguintes do livro assim expressa Castilho

sua opiniatildeo acerca do tema

250

[] A tentativa natildeo jaacute moderna mas em que tanto insistiu modernamente o nosso

aliaacutes bom engenho Vicente Pedro Nolasco de fazer versos portugueses

hexacircmetros e pentacircmetros eacute uma quimera sem o miacutenimo vislumbre de

possibilidade Carecendo de quantidades condiccedilatildeo indispensaacutevel para os onze peacutes

do diacutestico o portuguecircs nada mais pode que arremedaacute-lo [] insistir em tatildeo

evidente mateacuteria [] fora malbaratar o tempo que as satildes doutrinas estatildeo pedindo

No entanto em texto posteriormente escrito ndash destacado mencione-se pela

ensaiacutesta portuguesa Maria Leonor C Buescu em livro seu228

ndash o autor emenda outro

comentaacuterio reconsiderando seu pensamento sobre o assunto229

a complementaccedilatildeo eacute

publicada na ediccedilatildeo de 1874230

do Tratado constando a data de 1871 como aquela em

que o trecho foi escrito

Entretanto agora quatro anos depois da quarta ediccedilatildeo refletindo novamente

na mateacuteria confessamos que a exclusatildeo absoluta que faziacuteamos da metrifiacutecaccedilatildeo

latina para o portuguecircs jaacute nos natildeo parece tatildeo bem fundada Subsiste sim a objeccedilatildeo

de natildeo haver em nossa liacutengua as quantidades como havia no latim mas a essa

pode-se responder que os entendedores desse belo idioma dado o natildeo saibam

pronunciar nem por consequecircncia lhe possam conhecer as longas e as breves natildeo

deixam contudo de reconhecer a harmonia dos versos de Virgiacutelio ou de Oviacutedio

tanto assim que na leitura embora raacutepida estremam logo como quer que seja um

metro que por ventura escapasse mal medido Esta soacute ponderaccedilatildeo jaacute persuade que

o nosso ouvido que assim aprecia esses metros pronunciados sem a respectiva

prosoacutedia antiga e agrave portuguesa bem pode por analogia achar muacutesica aceitaacutevel nos

que em portuguecircs se lhes assemelharem

228 O referido texto estaacute incluiacutedo quase na iacutentegra ndash com o tiacutetulo ldquoMuacutesica aceitaacutevelrdquo ndash na seccedilatildeo

ldquoDocumentaacuterio antoloacutegicordquo do volume Buescu Maria Leonor Carvalhatildeo Aspectos da heranccedila claacutessica

na cultura portuguesa Biblioteca Breve Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1979 229 Sugeriu-me uma vereda de pesquisa relativa ao tema um alerta para a mudanccedila de opiniatildeo de Castilho

feita durante palestra por Joatildeo Acircngelo de Oliva Neto que desenvolve pesquisa na aacuterea 230 O trecho acrescentado consta de ediccedilatildeo revista e aumentada do Tratado

Castilho A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Seguido de consideraccedilotildees sobre a declamaccedilatildeo e

a poeacutetica 4ordf ediccedilatildeo revista e aumentada Lisboa Livraria Moreacute-Editora 1874 No entanto nesse fragmento cuja escrita eacute datada de 1871 Castilho refere-se a terem se passado quatro

anos desde a quarta ediccedilatildeo o que mostra tratar-se de ediccedilatildeo nova ainda que permanecesse como

ldquoquartardquo

Trechos do volume em questatildeo em formato ldquoPDFrdquo estatildeo disponiacuteveis mediante consulta por palavras na

internet o texto integral do livro encontra-se acessiacutevel por meio de coacutepia digital (ldquofull textrdquo em formato

ldquotxtrdquo) as ediccedilotildees anteriores da obra tambeacutem podem ser lidas na iacutentegra

251

Uma vantagem grande e grandiacutessima poderia ter esta introduccedilatildeo se por uma parte

os hexacircmetros e pentacircmetros natildeo fossem feitos senatildeo por quem andasse bem

enfrascado na liacutengua do Laacutecio e possuiacutesse assaz de engenho para os imitar com

felicidade e por outra parte os leitores natildeo tivessem negaccedilatildeo ou completa falta de

conhecimentos para os apreciarem a vantagem repetimo-lo seria o muito maior

acircmbito que assim adquiriria a emissatildeo do pensamento poeacutetico O alexandrino tatildeo

guerreado jaacute afinal pegou e estaacute generalisadiacutessimo e por quecirc natildeo tanto pela sua

muita muacutesica como pela sua extensatildeo logo a mediccedilatildeo latina por inda mais

extensa muito melhor se acomodaria agrave ambiccedilatildeo de espaccedilo em que os poetas tantas

vezes laboram

Outra consideraccedilatildeo natildeo despicienda ao mesmo tempo que todos os nossos outros

metros satildeo obrigados a nuacutemero invariaacutevel de siacutelabas estes novos pela liberdade de

entremear ad libitum arremedos de daacutetilos e espondeus satildeo susceptiacuteveis de muito

maior focirclego O hexacircmetro pode constar de treze quatorze quinze dezesseis ou

dezessete siacutelabas isto eacute quatro siacutelabas mais que o opulento alexandrino e o

pentacircmetro de doze ateacute treze ou quatorze siacutelabas Mas deixando explicaccedilotildees

teoacutericas vejamos um fragmento de uma tentativa feita por poeta devidamente

versado no latim

Hexacircmetro

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrazada no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entreas sombras da tarde

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

ampc ampc ampc

252

Observemos os hexacircmetros (de autoria de Juacutelio de Castilho filho do autor)

citados como exemplo Primeiramente seraacute feita uma possiacutevel notaccedilatildeo dos peacutes daacutectilos

com base na ideia do sistema agrave maneira greco-latina (ldquoadaptacioacuten a la greco-latinardquo na

classificaccedilatildeo de Pejenaute) considerando a menccedilatildeo de Castilho a ldquodaacutectilos e

espondeusrdquo pode-se entender a variaccedilatildeo dos peacutes nos versos agrave possibilidade de

atribuiccedilatildeo do valor de ldquolongardquo ou ldquobreverdquo agraves siacutelabas o que implicaria a ocorrecircncia

potencial da sucessatildeo de duas longas Veja-se como ficariam os versos escandidos

conforme uma hipoacutetese baseada na configuraccedilatildeo dos peacutes pelo aspecto quantitativo

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

_ U U _ U U _ _ _ U U _ UU_ U

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U U_ U

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

_ U U _ _ _ U U _ U U _ UU_ U

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

_ _ _ U U _ U U_ U U_ U U _ U

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

_ U U _ _ _ U U _ U U_ U U _ U

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

_ _ _ U U _ U U_ U U _ U U _ U

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

_ UU _ _ _ U U _ U U _ U U_ U

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

_ _ _ U U_ U U _ U U _ U U _ U

253

Todos os versos seriam assim hexacircmetros (isto eacute com seis peacutes daacutectilos cada)

um padratildeo adaptativo fundado no uso das siacutelabas do portuguecircs de modo anaacutelogo agraves

siacutelabas do grego ou do latim atribuindo-lhes portanto diferentes duraccedilotildees (longa

breve) independentemente de sua tonicidade No entanto considerando a leitura

tradicional e habitual dos versos das liacutenguas modernas baseada nos acentos (e no

nuacutemero de siacutelabas) realizemos uma escansatildeo ldquoconvencionalrdquo dos mesmos versos231

Antes poreacutem faccedila-se a ressalva de que haveraacute certamente diferentes possibilidades de

leitura interpretativa das configuraccedilotildees meacutetricas232

opto por aquela que me parece mais

efetiva na configuraccedilatildeo riacutetmica em portuguecircs e atende aos propoacutesitos deste estudo a

busca de um possiacutevel padratildeo adaptativo (ou seja anaacutelogo) para o hexacircmetro Tais

versos todos com 15 siacutelabas podem ser entendidos como formados por justaposiccedilatildeo de

dois hemistiacutequios um de seis siacutelabas233

e outro de nove contudo desde a pausa da sexta

siacutelada faz-se uma sequecircncia de trecircs daacutectilos234

e um uacuteltimo falto de uma siacutelaba

(incluindo-se no final portanto o ldquomoacutedulo dactiacutelicordquo _UU_U)

A bru ma do alto marsome ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias bri lha soacute tris te Dido o teu mundo era Eneias

E Eneacuteias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

231 A razatildeo a ser logo reiterada eacute a provaacutevel inadequaccedilatildeo de um sistema quantitativo imposto no

contexto de nossa tradiccedilatildeo literaacuteria que natildeo inclui a referecircncia a padrotildees baseados em duraccedilatildeo silaacutebica 232 A definiccedilatildeo dos modos de composiccedilatildeo hexameacutetrica utilizados pode causar disparidades faccedilo uma

possiacutevel leitura do procedimento com base na observaccedilatildeo e na tipologia descrita para o espanhol ainda

que natildeo seja a considerada pelo autor dos versos Tratando-se de possibilidades de leitura Pejenaute

assim se refere agraves diferentes interpretaccedilotildees dos hexacircmetros de certo poeta

ldquoLa eacutegloga de Villegas Licidas Coridoacuten Poeta ha sido muy diversamente valorada en cuanto a sus

aspectos literaacuterio y formal Por lo que se refiere a la interpretacioacuten de los ldquohexaacutemetrosrdquo en que estaacute

compuesta las opiniones pueden alinearse en alguno de los apartados siguientes

1 Interpretacioacuten acentual Martiacutenez de la Rosa Narciso Alonso Corteacutes J M Pemaacuten T Navarro Tomaacutes

etc 2 Por yuxtaposicioacuten Huidobro 3 Acentualpor yuxtaposicioacuten Diacuteez-Echarri 4 Por largas y breves

Luzaacuten Saavedra Molina Garciacutea Calvo

La interpretacioacuten que maacutes nos satisface es la de Diacuteez-Echarri [] La repeticioacuten de octosiacutelabos por

ejemplo (de los dieciocho primeiros versos doce comienzan con tal grupo) maacutes el nuacutemero de acentos

que suele aparecer en el hexaacutemetro latino rematado todo ello con la claacuteusula final - - - es maacutes que

suficiente para explicar la laquocadenciaraquo que Alonso Corteacutes editor de Villegas encontraba en su poetardquo

Opcit p 226-227 233 O segmento inicial eacute semelhante ao praticado no verso alexandrino claacutessico 234 Pelo que se vecirc o moacutedulo dactiacutelico final pode ser identificado numa leitura com base nos acentos

porque haacute neste como nos demais casos (conforme se viu e veraacute) uma coincidecircncia com o padratildeo

acentual eacute cabiacutevel a hipoacutetese de que a opccedilatildeo pelo criteacuterio qualitativo no final dos versos se decirc com a

finalidade de definir a marcaccedilatildeo riacutetmica (lembre-se da observaccedilatildeo de Pejenaute sobre os versos com base

no criteacuterio qualitativo)

254

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

O ma ru lho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Cartago a sumir-se enter as sombras da tarde

em gemidos exala as profundas saudades em que arde

Pode-se constatar nos versos a irregularidade da distribuiccedilatildeo das tocircnicas

iniciais e a regularizaccedilatildeo dos acentos a partir da sexta siacutelaba Como tambeacutem se vecirc

predomina a existecircncia de seis tocircnicas em cada um deles quantidade que varia para

cinco (mas com a possibilidade de se contar uma semitocircnica)235

A frequecircncia de tocircnicas nos exemplos ateacute agora vistos pode constituir uma

referecircncia na procura de analogia com o hexacircmetro quantitativo pois ainda que fosse

possiacutevel considerar duraccedilotildees independentemente dos acentos na praacutetica de liacutenguas

neolatinas como o portuguecircs e o espanhol as siacutelabas tocircnicas eacute que constituem o

principal determinante do ritmo (como jaacute foi apontado em citaccedilatildeo de Piejenaute) A

sucessatildeo de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ndash que ocasiona portanto a

definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias e ternaacuterias (conforme o padratildeo riacutetmico da liacutengua

portuguesa) ndash permite apesar das variaccedilotildees o estabelecimento da expectativa de

repeticcedilatildeo (condiccedilatildeo fundamental ao ritmo marcado) em versos mais longos Como

qualidade baacutesica comum a diversas das adaptaccedilotildees apresentadas a desejaacutevel (de meu

ponto de vista) associaccedilatildeo entre a constacircncia e a variabilidade que natildeo ocasiona a

criticada monotonia resultante da marcaccedilatildeo exclusivamente ternaacuteria no sistema

qualitativo

Mas retornemos a Castilho ele apresenta em seguida236

exemplo (do mesmo

autor) de outra possibilidade de composiccedilatildeo que consistiria em diacutesticos de hexacircmetros

e pentacircmetros

235Notem-se os acentos secundaacuterios assinalados com pontilhado (menor intensidade) ou linha

interrompida (maior intensidade) numa leitura possiacutevel 236

Op cit pp 31-32

255

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido

No rude turbilhatildeo que lhe agita as turbadas idecircas

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneas

E Eneas vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

matildeo superna lhe aponta as regiotildees latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e o uivar do largo vento imita a labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

em gemidos exala o acerbo amor em que arde

ampc ampc ampc 237

De iniacutecio examinemos uma possibilidade de escansatildeo238

baseada no criteacuterio

quantitativo ou seja de cinco peacutes (daacutectilos e espondeus) formados de siacutelabas longas e

breves

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias(1-3-6-9-(10)-12)

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U

matildeo superna lhe a ponta as regiotildees latinas(1-3-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

237 Castilho encerra seu comentaacuterio com uma exortaccedilatildeo ao trabalho em ldquoamplas formasrdquo ldquoSe as amostras

que deixamos transcritas lograrem a fortuna de persuadir aos espiacuteritos natildeo-hoacutespedes no latim que a

novidade pode ser prestadia a esses rogamos que ponderem que imensa facilitaccedilatildeo natildeo encontraria para o seu trabalho nestas amplas formas quem empreendesse dar agrave nossa literatura os grandiosos poetas

romanos Eacute ponto que vale a pena de ser meditado 30 de julho de 1871rdquo 238 A escansatildeo envolve a incerteza considerando-se a existecircncia de diversos modos de adaptaccedilatildeo do

hexacircmetro e o fato de eu natildeo ter obtido fonte explicitadora das possibilidades ou maneiras de aplicaccedilatildeo

de regras da metrificaccedilatildeo latina para a configuraccedilatildeo dos peacutes em portuguecircs conforme a praacutetica da eacutepoca

256

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Eacute evidente a coerecircncia da configuraccedilatildeo que reforccedila a hipoacutetese do sistema

empreendido pelo autor Mas adotando-se novamente a ideia de busca de

correspondecircncias identificaacuteveis nos padrotildees de metrificaccedilatildeo qualitativa vejamos como

poderiam ser ldquolidosrdquo deste modo os versos

Pode-se reconhecer tambeacutem nos pentacircmetros (a seguir isolados) a justaposiccedilatildeo

de dois segmentos desta vez hexassiacutelabos ambos entre parecircnteses ao lado de cada

linha as posiccedilotildees das tocircnicas e semitocircnicas (entre parecircnteses internos) evidenciando-se

padrotildees do dodecassiacutelabo em portuguecircs

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias (1-3-6-9-(10)-12)

matildeo superna lhe a ponta as regiotildeeslatinas (1-3-6-(8)-10-12)

seinquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

Todos os versos terminam com uma sucessatildeo de duas ceacutelulas binaacuterias

descendentes ou seja dois troqueus ldquoacentuaisrdquo (uma relativa exceccedilatildeo eacute o quinto verso

com acento secundaacuterio definindo a sequecircncia) e totalizam doze siacutelabas (Do ponto de

vista acentual haacute predominacircncia de versos nesse peacute uma vez que embora haja igual

nuacutemero de versos que se iniciam por ceacutelulas jacircmbicas e trocaicas os primeiros natildeo

prosseguem com um conjunto uniforme desse padratildeo) A soluccedilatildeo pentameacutetrica

257

portanto (que tambeacutem permite outras possibilidades de leitura) vista deste modo

(baseado em sistema qualitativo) parece definir-se pela variaccedilatildeo da posiccedilatildeo das tocircnicas

(cinco com possiacutevel adiccedilatildeo de semitocircnica) e pela presenccedila constante de uma sequecircncia

trocaica final

Vejamos mais alguns exemplos de adaptaccedilotildees do hexacircmetro ao portuguecircs

citando-se versos do jaacute mencionado ldquoantecessorrdquo de Odorico Mendes em versatildeo

decassilaacutebica da Iliacuteada (embora apenas do primeiro canto) Joseacute da Costa e Silva autor

tambeacutem de epiacutestolas239

Destas quase todas satildeo feitas em decassiacutelabos como no breve

exemplo seguinte (de versos heroacuteicos) dedicado ao tradutor da Eneida Barreto Feio240

Epiacutestola I (Epiacutestolas Livro V)

Da sepultada ineacutercia e do oacutecio rude

Diferenccedila natildeo faz Barreto amigo

Quando esconde seus raios a virtude

Disse ldquoquaserdquo porque a Epiacutestola VIII241

eacute composta em versos adaptados do

hexacircmetro e dedicados ao praticante dessa modalidade Vicente Pedro Nolasco da

Cunha citado como referecircncia por Castilho

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma242

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe 243

239 Veja-se Livro V ndash Epiacutestolas In Poesias de Joseacute Maria da Costa e Silva ndash Tomo III Lisboa

Typographia de Antoacutenio Joseacute da Rocha 1844 240 Assim eacute a dedicatoacuteria que antecede a epiacutestola ldquoAo Sr Joseacute Vigtorino Barreto Feio (Capitatildeo do

Regimento de Cavalaria n 3 e mais correcto Poeta que se dava a traduzir a Eneida em verso solto)rdquo Op cit p 112 241

Do mesmo livro IV das Poesias pp 232-237 242 Este verso e o seguinte aparecem assim no corpo do poema ldquoOh tu que do Tejo Cisne de cacircndida

plumardquo ao Tames voaste onde o teu canto divinordquo no entanto constam da ldquoErrata do terceiro volumerdquo

na qual se indica a forma que aqui consta como sendo a correta Op cit p 292

258

De ti inda folgo quando teus versos escuto

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)244

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recursos

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)245

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)246

Faccedilo a seguir possiacutevel escansatildeo de alguns versos com base em criteacuterio

quantitativo247

observe-se a invariaacutevel presenccedila do moacutedulo definidor do hexacircmetro

dactiacutelico no quinto e sexto peacutes

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

_ _ _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

[]

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

243 Consta na ediccedilatildeo original a seguinte nota referente a esse verso ldquoAlusatildeo ao beliacutessimo Poema

Filosoacutefico de Darwin intitulado o Jardim Britacircnico que o Doutor Nolasco traduziu em verso e imprimiu

quando ainda estava em Lisboardquo Id p 232 244 Id p 233 Note-se na sequecircncia de versos o elogio do sistema praticado por Nolasco 245 Consta no livro relativa a esse verso a seguinte nota ldquoVerso do Doutor Nolasco no seu poema = O

Incendio de Moscourdquo 246 Corresponde a esse verso a seguinte nota na ediccedilatildeo ldquoO Incecircndio de Moscou foi o primeiro Poema Hexameacutetrico que em Portuguecircs se imprimiu Eacute de esperar que os amadores da verdadeira Poesia se natildeo

neguem a aperfeiccediloar e moldar ao Gecircnio da liacutengua uma tatildeo vantajosa metrificaccedilatildeordquo 247 Aqui como no caso anterior a escansatildeo traz incerteza Do modo como vejo resulta um nuacutemero

aparentemente excessivo de espondeus o que potildee em duacutevida a correccedilatildeo da leitura Seja como for

interessa-nos a diversidade da distribuiccedilatildeo e a presenccedila fixa da sequecircncia final de dois daacutectilos como

paracircmetro de identificaccedilatildeo do verso

259

De ti inda folgo quando teus versos escuto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Prosseguindo a busca de um caminho que se depreenda da transmigraccedilatildeo do

sistema quantitativo ao qualitativo como oacuteptica de interpretaccedilatildeo riacutetmica vejamos

agora como ficaria a escansatildeo dos versos com base nas tocircnicas

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

De ti inda folgo quando teus versos escuto

Amor das Artes Gecircnio Febeia coroa

Peito que natildeo turbam drsquoalheia gloacuteria Luzes

Contigo me enlaccedilam fique a Tersites infame

Iacutenvido morder-se quando a Virtude se eleva

Na voz deprimindo o que imitar desejava

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recurSOS

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

260

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)

Pode-se verificar da relativamente longa amostra que todos os versos

apresentam com o criteacuterio acentual (com apenas dois pontos que poderiam suscitar

duacutevida pela leitura em hiato de ldquogloacuteriardquo e ldquogecircniordquo) o dito moacutedulo hexameacutetrico Haacute

tambeacutem padrotildees da distribuiccedilatildeo das tocircnicas que se repetem (como U_ U_ U_ UU

_UU _U ou _ UU_U_UU _U U_U)248

com ocorrecircncia em quase todos os casos de

cinco tocircnicas no verso Desta como de outras observaccedilotildees acerca do comportamento e

possibilidades dos versos proporei a anunciada opccedilatildeo meacutetrica para um breve exerciacutecio

tradutoacuterio de fragmentos da Odisseia

248 Lembro para evitar confusotildees de leitura que temos usado a mesma notaccedilatildeo para distinguir as siacutelabas

no sistema quantitativo (breves e longas) e qualitativo (tocircnicas e aacutetonas)

261

A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio

A partir de tudo o que se considerou passo a fazer breve apresentaccedilatildeo de um

modo de conceber a traduccedilatildeo de poesia voltado a um exerciacutecio tradutoacuterio de fragmento

da eacutepica homeacuterica

Como conceito fundamental compartilho da visatildeo de traduccedilatildeo de poesia como

recriaccedilatildeo ldquoparalela poreacutem autocircnomardquo do texto de referecircncia Isso significaraacute reconhecer

os elementos que compotildeem o texto nos planos de conteuacutedo e de expressatildeo no entanto

considerando-se o que se buscou definir como referecircncias definidoras da linguagem

poeacutetica seratildeo observadas no texto as caracteriacutesticas que seratildeo tomadas

prioritariamente como fontes de recriaccedilatildeo Relativamente ao campo do sentido seraacute

buscada a reconstruccedilatildeo de informaccedilotildees com os elementos com que se trabalha visando

a abranger o maacuteximo possiacutevel das informaccedilotildees consideradas essenciais pelo tradutor

em decorrecircncia da leitura Para se ter esse paracircmetro ainda que se leve em conta a

mutabilidade do sentido e sua associaccedilatildeo inevitaacutevel com a sonoridade e outros

componentes icocircnicos da composiccedilatildeo seraacute feita inicialmente uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do

texto grego que serviraacute de base no plano de conteuacutedo agrave elaboraccedilatildeo do ldquocanto

paralelordquo Este por sua vez teraacute suas proacuteprias regras e qualidades internas de

composiccedilatildeo com a busca de estabelecimento de correlaccedilotildees analoacutegicas vistas num

amplo espectro de possibilidades quanto a isso nada de novo uma vez que

intencionalmente ou natildeo o que se faz seraacute sempre uma obra correlata mas com

identidade proacutepria definida pelo conjunto de referecircncias e de opccedilotildees de configuraccedilatildeo

do labor poeacutetico Seratildeo buscadas neste caso a dinacircmica e a densidade sonora que de

meu ponto de vista atendem agrave opccedilatildeo de analogia com qualidades do texto grego e

tambeacutem agrave proacutepria concepccedilatildeo de poesia voltada ao uso de repeticcedilotildees (focircnicas

semacircnticas riacutetmico-acentuais icocircnico-visuais) integrantes da pretendida teia de

relaccedilotildees entre som e sentido natildeo se teraacute como pressuposto a ideia de siacutentese ldquoradicalrdquo

que traz inconveniecircncias ao teor tambeacutem narrativo da composiccedilatildeo Diga-se

especificamente que natildeo seraacute considerada a obrigatoriedade de manutenccedilatildeo da mesma

forma de epiacutetetos e foacutermulas ao longo dos versos nem da posiccedilatildeo em que ocorrem

pensando-se na variabilidade como um conceito adequado agrave tradiccedilatildeo e agrave atualidade da

poesia de liacutengua portuguesa Adoto como os trecircs tradutores aqui estudados a opccedilatildeo

262

pelo tom elevado da composiccedilatildeo coerente segundo certos pontos de vista com o teor

heroacuteico do poema

O primeiro passo diante da tarefa de recriar o texto grego seraacute de meu ponto de

vista estabelecer o paracircmetro meacutetrico com que se iraacute trabalhar E neste aspecto

concentraremos nossa proposiccedilatildeo uma vez que o processo tradutoacuterio geral

compartilharaacute de accedilotildees comparaacuteveis agraves accedilotildees de leitura empreendidas durante as

anaacutelises feitas neste trabalho

Com base no que se discutiu no toacutepico anterior escolho um modelo de metro

para orientaccedilatildeo do exerciacutecio que poderaacute constituir-se num paracircmetro feacutertil para futuras

traduccedilotildees Natildeo penso diga-se jaacute no uso de modelo baseado em sistema que natildeo o

qualitativo pela profunda introjeccedilatildeo desse paradigma de leitura na cultura literaacuteria

moderna mas da observaccedilatildeo de possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas

como a nossa proponho o seguinte esquema riacutetmico-meacutetrico

Os versos natildeo teratildeo quantidade fixa de siacutelabas pois esta natildeo eacute uma condiccedilatildeo

fundamental na definiccedilatildeo do ritmo em versos que se sucedem em grande quantidade

envolvendo o fluxo de uma narrativa que contaraacute frequentemente com o enjambement

Mas teratildeo cinco ou seis acentos considerando a necessidade de marcaccedilatildeo que reforce a

expectativa constante como marcaccedilatildeo riacutetmica ao longo dos sucessivos versos

ldquonarrativosrdquo A constacircncia poreacutem se aliaraacute agrave diversidade como jaacute se disse a sucessatildeo

de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ocasionaraacute a definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias

e ternaacuterias em conformidade com o padratildeo riacutetmico da liacutengua portuguesa Mas seraacute

tambeacutem regra baacutesica a presenccedila em cada verso do que denominei ldquomoacutedulo

hexameacutetricordquo ou seja (em termos acentuais) de um daacutectilo e um troqueu ndash ou de uma

ceacutelula ternaacuteria descendente e uma binaacuteria descendente ndash finalizando o verso

(considerando-se a relaccedilatildeo entre tonicidade e duraccedilatildeo pode-se entender que a uacuteltima

siacutelaba da ceacutelula binaacuteria poderaacute se prolongar exercendo tambeacutem o papel de pausa

realizando analogamente um espondeu) Todos os versos seratildeo portanto graves haacute

no entanto a possibilidade (natildeo praticada no exerciacutecio que apresento249

) da admissatildeo do

verso agudo cuja siacutelaba tocircnica final teria de ser seguida por siacutelaba aacutetona no proacuteximo

verso no fluxo dos versos o moacutedulo se manteria presente na impressatildeo propiciada pela

leitura Um modo de associar o mutaacutevel ao constante garantindo-se a identificaccedilatildeo do

249 Haacute uma uacutenica exceccedilatildeo um verso agudo terminado por reticecircncias a sugerir um ldquotempordquo adicional

compensador da siacutelaba faltante de todo modo o verso eacute seguido por siacutelaba aacutetona do verso contiacuteguo

263

paracircmetro ternaacuterio sem que se recorra a sua aplicaccedilatildeo invariaacutevel O esquema permite

frequentemente que se faccedilam versos dodecassiacutelabos de modo a compor um padratildeo de

meacutetrica irregular em torno de medida usual em nossa liacutengua aleacutem de ser escolha

defendida com propriedade para a recriaccedilatildeo da eacutepica (caso de H de Campos entre

outros)

Veja-se em seguida como resulta o exerciacutecio desenvolvido conforme o modelo

exposto250

Primeiramente eacute apresentada a traduccedilatildeo acompanhada do texto grego

depois inclui-se novamente a traduccedilatildeo desta vez assinalando-se as siacutelabas tocircnicas ( _ )

e por vezes tocircnicas secundaacuterias ()251

e anotando-se ao lado de cada verso o nuacutemero

de siacutelabas que a ele corresponde

250 Trata-se de work in progress passiacutevel de modificaccedilotildees e aperfeiccediloamento 251 Quando duas siacutelabas se juntam por elisatildeo e uma delas eacute tocircnica assinalam-se ambas para evidenciar a

contagem de uma uacutenica siacutelaba uma vez que natildeo se anota neste caso a separaccedilatildeo das siacutelabas a fim de

natildeo prejudicar a leitura Embora natildeo se indique ldquocom ardquo seraacute lido com ectlipse (ldquocorsquoardquo)

264

Odisseia XI

(1-83 180-208)

265

266

267

Odisseia

(XI 1- 83)

Quando depois descemos ao mar e ao navio (12)

primeiro ao mar divino o navio empurramos (12)

e da negra nau o mastro e as velas erguemos (12)

levadas a bordo as ovelhas pegas seguimos (13)

5 tristes aflitos vertendo laacutegrimas fartas (12)

Por traacutes da nau de escura proa Circe a terriacutevel (13)

deusa canora de belos cachos envia-nos vento (14)

propiacutecio a inflar as velas oacutetimo soacutecio (11-12 siacutelabas)

Cansados demais por cuidar de apetrechos do barco (14)

10 sentamos o vento e o piloto o navio guiavam (13)

Por todo o dia singramos velas infladas (12)

Pocircsto o sol cobriram-se de sombra os caminhos (12)

a nau atinge o limite do oceano profundo (13)

Laacute estatildeo a cidade e o paiacutes dos cimeacuterios (12)

15 pelo veacuteu das nuvens e das brumas envoltos (12)

Heacutelio raios-brilhantes nunca sob si os vislumbra (14)

nem ao subir ao alto do ceacuteu estelante (12)

nem ao baixar de novo do paacuteramo agrave terra (12)

estira-se a noite fatal sobre os pobres humanos (14)

20 Aportado o navio dele tiramos as reses (14)

retomamos entatildeo as ondas do oceano bravio (14)

ateacute chegar ao local predito por Circe (12)

Periacutemedes e Euriacuteloco nossas cabras pegaram (14)

e eu sacando da coxa a aguda lacircmina um fosso

268

25 cavei um cocircvado de lado a lado medindo (13)

e em volta verti libaccedilotildees a todos os mortos (13)

leite-mel a primeira um doce vinho a segunda (13)

e aacutegua a terceira espargi entatildeo alva farinha (13)

Jurei agraves muitas cabeccedilas ocas dos mortos (12)

30 que indo a Iacutetaca em sacrifiacutecio daria (13)

o melhor novilho fartando de bens nossa pira (14)

mataria uma recircs apenas para Tireacutesias (13)

negra de todo distinta entre nossas ovelhas (13)

Depois de preces e votos enviados aos mortos (13)

35 agarrei os dois animais degolando-os por sobre (14)

o fosso seu sangue quente ensombrado escorria (13)

almas subidas do Eacuterebo em torno se uniram (12)

jovens esposas e anciatildeos por demais padecidos (13)

virgens tenras de coraccedilotildees receacutem-magoados (13)

40 muitos feridos por lanccedilas brocircnzeas homens (12)

mortos por Ares as armas tintas de sangue (12)

tantos por todo lado a correr ante o fosso (12)

com muito rumor fui tomado por liacutevido medo (14)

Eu entatildeo depois de incitar os parceiros (11)

45 mandei que esfolassem as reses por mim degoladas (14)

e ambas logo queimassem rogando agraves deidades (13)

ao poderoso Hades e a Perseacutefone torva (13)

tomando da coxa a aguda espada sentei-me (12)

e natildeo deixei que as cabeccedilas ocas dos mortos (12)

50 o sangue alcanccedilassem antes que ouvisse Tireacutesias (13)

Veio primeiro a alma de Elpenor meu amigo (12)

ele natildeo estava ainda sob a terra tatildeo vasta (13)

por termos deixado seu corpo no paccedilo de Circe (14)

insepulto e natildeo-pranteado novas dores urgiam (14)

55 Ao vecirc-lo irrompi em pranto e apiedando-me dele (13)

passei a dizer-lhe as seguintes palavras aladas (14)

ldquoElpenor como vieste agrave treva brumosa (12)

269

Chegaste a peacute antes de mim que vim com a nau negrardquo (13)

Assim falei ele lamentando-se disse (12)

60 ldquoFilho de Laertes oh Odisseu astucioso (13)

afetou-me um mau nume aleacutem do vinho inebriante (13)

deitado no quarto de Circe natildeo cogitei em (14)

usar a grande escada para descer (11)

caiacute direto do eirado quebrei o pescoccedilo (13)

65 e minha alma entatildeo buscou o caminho do Hades (13)

Suplico-te pelos ausentes que vivem no alto (14)

por tua esposa e por teu pai que com zelo criou-te (13)

e por Telecircmaco filho que em casa deixaste (13)

sei que para ires da morada de Hades (12)

70 agrave ilha Eeia teraacutes um navio bem feito (12)

imploro senhor que te lembres de mim ao chegares (14)

Natildeo me deixes assim natildeo-pranteado e insepulto (12)

ao partires para que os deuses natildeo se ressintam (13)

mas queima-me junto a meus pertences e armas (12)

75 e ergue-me um sepulcro na praia do mar pardacento (14)

lembranccedila deste infeliz aos que viratildeo algum dia (14)

ao fim de tudo finca sobre a tumba o meu remo (13)

aquele que usava junto a meus companheirosrdquo (12)

Assim me falou e eu em resposta lhe disse (12)

80 ldquoTais coisas oh infeliz farei como queresrdquo (12)

Nos sentamos trocando palavras muito doiacutedas (14)

De parte eu mantinha a espada sobre o sangue das reses (14)

O espectro do outro lado lamentava deveras (13)

(XI 180 ndash 208)

[hellip]

180 Disse-me entatildeo em resposta minha matildee veneranda (14)

ldquoEla resignado coraccedilatildeo ainda persiste (14)

em teu palaacutecio satildeo-lhe sempre penosos (11)

270

os dias e as noites que passam laacutegrimas verte (13)

Ningueacutem tomou ainda o teu nobre domiacutenio (12)

185 Telecircmaco o comanda e tambeacutem frequenta as festas (13)

tal como conveacutem a quem reparte justiccedila (12)

Muitos o convidam Teu pai ainda se encontra (13)

no campo e nunca desce agrave poacutelis jamais utiliza (14)

cama nem cobertores ou mantos macios (12)

190 no inverno dorme com os escravos em casa (11)

na cinza junto ao fogo soacute veste farrapos (12)

Mas se vecircm o veratildeo e o outono abundante (12)

ali sobre o inclinado terreno da vinha (12)

deita em seu leito feito de folhas caiacutedas (12)

195 Vive sofrendo com sua grande dor progressiva (13)

agrave tua espera chega-lhe a dura velhice (12)

Foi assim que morri o meu destino seguindo (13)

a haacutebil arqueira252

natildeo me matou no palaacutecio (12)

jaacute que natildeo me atacou com suas flechas amenas (12)

200 nem de fato atingiu-me a doenccedila que tanto (12)

sofrimento horriacutevel faz e os membros definha (12)

tua falta o anseio por ti Odisseu grandioso (13)

e teu afeto levaram-me a vida meliacuteflua (13)

Assim dizia inquietando-me quis a meu peito (13)

205 estreitar a alma triste de minha matildee morta (12)

Trecircs vezes lancei-me pelo peito impelido (12)

trecircs vezes ela voou-me das matildeos como sombra (13)

e sonho Uma dor atroz o coraccedilatildeo machucou-me (13)

[]

Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia

252 Referecircncia a Aacutertemis (Odisseu tambeacutem perguntara a sua matildee se esta teria morrido por accedilatildeo das

flechas da deusa)

271

Conclusatildeo

Iniciemos esta parte conclusiva com a rememoraccedilatildeo dos ldquodois sentidosrdquo

existentes segundo Haroldo de Campos (conforme exposto na Introduccedilatildeo deste

trabalho) no que seria a operaccedilatildeo semioacutetica envolvida na traduccedilatildeo a fim de refletirmos

brevemente sobre eles agrave luz do que aqui se desenvolveu Sobre o primeiro o de que a

traduccedilatildeo poeacutetica ldquovisa ao intracoacutedigo que opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo diga-se

que como se procurou demonstrar o chamado ldquointracoacutedigordquo sempre seraacute observado

ainda que se questione a existecircncia de propriedades intriacutensecas ao texto ou

independentes da leitura se de fato a leitura eacute determinante do coacutedigo ela se apoacuteia em

elementos por ela identificados ou seja existentes por seu desvelamento Eacute evidente

contudo que o ldquointracoacutedigordquo observado o seraacute conforme o ponto de vista da

observaccedilatildeo eacute inevitaacutevel a adoccedilatildeo de referenciais norteadores da escolha durante a

leitura e portanto durante a traduccedilatildeo Campos refere-se a um referencial (de que

compartilhamos) para identificaccedilatildeo do intracoacutedigo a funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson (cujo

ldquoespaccedilo operatoacuteriordquo seria o proacuteprio intracoacutedigo) que permite a identificaccedilatildeo de

componentes das relaccedilotildees icocircnicas (para valer-me de outro aporte teoacuterico aqui referido

uacutetil nas operaccedilotildees de leitura e de recriaccedilatildeo) perceptiacuteveis no texto as quais conforme

concepccedilotildees que permanecem frutiacuteferas para as operaccedilotildees de leitura anaacutelise e recriaccedilatildeo

ndash como aqui se pretendeu re-demonstrar ndash caracterizariam a linguagem poeacutetica

Pelas razotildees exploradas neste estudo relativas agrave diferenccedila das liacutenguas agrave

transitoriedade do sentido agrave impossibilidade da traduccedilatildeo como processo simplesmente

de ldquopassagemrdquo de uma liacutengua a outra ou da inviabilidade da equivalecircncia ldquoliteralrdquo

absoluta entre conjuntos de informaccedilatildeo esteacutetica etc a traduccedilatildeo de poesia seraacute como

define o outro sentido previsto por Campos da operaccedilatildeo semioacutetica um ldquocanto

paralelordquo O teor de ldquomovimento paroacutedicordquo da traduccedilatildeo poeacutetica eacute evidente na leitura

comparativa das diferentes versotildees da eacutepica em portuguecircs cada uma eacute obra diversa

autocircnoma que suscita discrepantes impressotildees ndash e compreensotildees ndash pela leitura Mais

uma vez constata-se o oacutebvio que ainda por vezes eacute questionado a inexistecircncia da

traduccedilatildeo ldquoneutrardquo da qual o tradutor estaria ldquoausenterdquo por submeter-se ao original de

modo a apenas transpocirc-lo fiel a seu sentido e a seu estilo a outro idioma a proacutepria

traduccedilatildeo revela desde a origem de sua realizaccedilatildeo as escolhas do tradutor que por sua

272

vez satildeo indicadoras de seus pressupostos de leitura e compreensatildeo do fenocircmeno

poeacutetico Reitere-se portanto que os diferentes cantos paralelos seratildeo tatildeo diversos (ainda

que apresentem caracteriacutesticas homoacutelogas aos poemas de partida) quanto o satildeo os

criteacuterios adotados por cada tradutor conforme se mostra neste estudo e conforme

postulou inapelavelmente a teoria desconstrucionista

A relatividade dos procedimentos tradutoacuterios contudo natildeo seraacute suficiente para a

total relativizaccedilatildeo das traduccedilotildees como igualmente vaacutelidas por precondiccedilatildeo a anaacutelise

descritiva e comparativa poderaacute servir agrave observaccedilatildeo dos resultados obtidos dentro de

determinada proposiccedilatildeo e perspectiva tradutoacuteria e da coerecircncia entre estes e objetivos

sugeridos pelos procedimentos identificados Seraacute de pouca valia no entanto segundo a

perspectiva que aqui se procurou defender a busca de estabelecimento de um criteacuterio de

superioridade ou inferioridade de traduccedilotildees com base numa avaliaccedilatildeo quantitativa de

equivalecircncias devido propriamente agrave incondicional natureza paroacutedica (no sentido

etimoloacutegico)253

da recriaccedilatildeo poeacutetica

Quanto agrave possibilidade de anaacutelise objetiva de resultados esteacuteticos os elementos

considerados por referencial anterior como ldquoefeitosrdquo ou recursos esteacutetico-sonoros

podem ser percebidos e mesmo quantificados resta no entanto como problema a

possibilidade de demonstrar objetivamente a superiodidade esteacutetica de uma obra sobre

outra sem se considerarem os referenciais ou criteacuterios previamente estabelecidos do que

deveraacute ser considerado esteticamente superior Isso natildeo elimina o fato de que ao se

ouvirem obras diversas por exemplo se possa (independentemente de anaacutelise) ter a

niacutetida sensaccedilatildeo de melhores soluccedilotildees sonoras em uma do que em outra versatildeo por

pessoas de diferentes repertoacuterios inseridas num mesmo contexto linguiacutestico-cultural

etc sobre isso relembrem-se as tatildeo exploradas regras de composiccedilatildeo para que versos

resultem ldquoagradaacuteveisrdquo ao ouvido254

Talvez a dificuldade ndash ou mesmo impossibilidade

ndash de se dar conta de processos quantificadores da qualidade esteacutetica se possa explicar

pela natureza impressiva da arte verbal (como das demais artes) dotada de

potencialidade ilimitada para a produccedilatildeo de sugestotildees podemos entender a questatildeo agrave

luz do conceito (do qual me vali repetidas vezes) de primeiridade relativa ao iacutecone

253 Gr paroidiacutea [] do gr paraacute ao lado de + oacuteidecircecircs ode pelo lat parodigraveaae id (Houaiss)

254 Sobre o assunto evoque-se Castilho em cujo Tratado de metrificaccedilatildeo consta o seguinte

ldquoInvestiguemos pois quais sejam os principais requisitos para o agrado do verso abstraindo da ideia do

afeto do estilo e da linguagem De todos estes requisitos o primeiro eacute que o verso natildeo seja duro nem

frouxo []rdquo Op cit 1874 p 66 (Ao trecho seguem-se as definiccedilotildees de ldquoverso durordquo e ldquoverso frouxordquo e

a identificaccedilatildeo dos fatores que os determinam)

273

segundo a teoria de Peirce tal plano semioacutetico refere-se agrave qualidade que nada

representa mas se apresenta (releiam-se os apontamentos sobre o conceito de iacutecone na

paacutegina 27 deste estudo255

) Sendo os aspectos esteacuteticos do poema ligados a formas

sonoras riacutetmicas visuais etc (a iacutecones portanto) considere-se (como jaacute se viu na

referida paacutegina) que o objeto do iacutecone eacute uma simples possibilidade do efeito que poderaacute

ldquoproduzir ao excitar nossos sentidosrdquo (Santaella 1983 86) e que ldquoo interpretante que o

iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera possibilidaderdquo (p 87) Assim

considerando-se o caraacuteter de primeiridade de iconicidade das formas e das relaccedilotildees

entre as formas que compotildeem o poema (e estabelecem as ditas relaccedilotildees com o sentido

num processo de hibridismo siacutegnico) e portanto a sua natureza eminentemente

sugestiva poderaacute ser compreensiacutevel a dificuldade de estabelecimento de processos

voltados agrave mediccedilatildeo objetiva universalizante de propriedades esteacuteticas de uma obra de

arte verbal Por essa mesma razatildeo atribuiccedilotildees de representaccedilatildeo que se fazem a

elementos utilizados em poesia como por exemplo a mencionada definiccedilatildeo de

sentimentos propiciados pelas vogais (em Castilho e Grammont) seraacute sempre incerta

ainda que seu caraacuteter sugestivo no plano perceptivo e emocional seja inegaacutevel

Sobre as competentes traduccedilotildees escolhidas como objeto de estudo pudemos

observar suas especificidades principais e desse modo os caminhos proacuteprios

percorridos no processo tradutoacuterio depreendendo-se de cada uma um paradigma

metodoloacutegico ora afeito agrave siacutentese mais radical vinculada a um verso mais breve ora agrave

explicitaccedilatildeo narrativa relacionada agrave cadecircncia fixa de um verso longo ora agrave preocupaccedilatildeo

evidente (e expliacutecita pela abordagem teoacuterica) de ldquotranscriaccedilatildeordquo pautada pela densidade

de efeitos sonoros associados ao campo do sentido em siacutentese semacircntica menos

draacutestica Paradigmas bastante diversos que ilustram modelarmente a grande e niacutetida

heterogeneidade que pode existir entre diferentes recriaccedilotildees do mesmo texto

exatamente por serem recriaccedilotildees a convergir entre as trecircs obras portanto o ponto

comum da criaccedilatildeo paralela que busca ainda que de modos distintos o estabelecimento

de construccedilotildees anaacutelogas aos poemas gregos em sentido e em forma (todas apresentam

em maior ou menor concentraccedilatildeo nos diversos fragmentos vistos resultados afeitos agrave

relaccedilatildeo entre sonoridade e significaccedilatildeo) Nenhum dos tradutores pelo que se pode

255 Nessa mesma paacutegina em nota haacute preliminarmente um breve comentaacuterio acerca da natureza incerta

da avaliaccedilatildeo de ordem esteacutetica

274

depreender de suas realizaccedilotildees buscou apenas a correspondecircncia de significados ou a

ldquoliteralidaderdquo do sentido

De minha parte a proposiccedilatildeo de mais um paracircmetro meacutetrico-riacutetmico de traduccedilatildeo

da poesia eacutepica veio a resolver ndash ou encaminhou a resoluccedilatildeo ndash de um antigo anseio

pessoal pela compatibilizaccedilatildeo do aspecto dinacircmico necessaacuterio aos versos e do aspecto

de repeticcedilatildeo de referecircncia fixa desejaacutevel a uma longa sequecircncia deles No caso do

metro diga-se parece-me infrutiacutefera (assim como o eacute a busca de equivalecircncia literal no

plano do conteuacutedo) a procura de correspondecircncia mais ldquofielrdquo ao metro greco-latino

dada a distacircncia entre idiomas poesias sistemas meacutetricos e por fim entre as culturas

envolvidas O interessantiacutessimo esquema proposto por Andreacute Malta (do qual aqui se

tratou ainda que marginalmente por sua importacircncia) apresenta qualidades riacutetmicas e

poeacuteticas independentes dos criteacuterios que nortearam fundamentalmente sua escolha

(voltados agrave tentativa de equivalecircncia funcional que consideraria fatores como a

popularidade do metro a natureza oral das composiccedilotildees etc) O que me levou agrave busca

de um esquema riacutetmico diferenciado foi antes uma soluccedilatildeo que conjuminasse meus

interesses de ordem esteacutetica considerados no plano interno ao poema resultante da

traduccedilatildeo que ele emerja de tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas modernas eacute

esperado uma vez que muito se fez nessa aacuterea e muito se pensou a respeito do assunto

Ainda que guarde analogias desejaacuteveis com o metro antigo natildeo seraacute o princiacutepio

puramente de equivalecircncia sua motivaccedilatildeo mas o seratildeo sim pelo proacuteprio criteacuterio da

analogia (e de analogia ldquoflexiacutevelrdquo ndash assim como deveraacute ser penso a referente ao campo

semacircntico) as qualidades comuns de junccedilatildeo do instaacutevel com o estaacutevel do imprevisto

com o previsiacutevel

275

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APEcircNDICES

Trecircs accedilotildees criativas

1 Referente agrave discussatildeo sobre a especificidade da poesia

ldquoAo som de duas insocircniasrdquo conto que encerra a anguacutestia pela incerteza entre o

existente e o imaginado

2 Referente ao conceito de traduccedilatildeo como accedilatildeo paroacutedica

Traduccedilatildeo do poema ldquoCeasefirerdquo do poeta irlandecircs Michael Longley que faz uma

recriaccedilatildeo adaptada agrave forma de soneto inglecircs (em procedimento portanto radicalmente

paroacutedico) de episoacutedio particularmente marcante do canto XXIV da Iliacuteada no qual o rei

Priacuteamo de Troacuteia suplica a Aquiles que lhe entregue o cadaacutever (ultrajado) de seu filho

Heitor

3 Referente agrave proposiccedilatildeo riacutetmica associada ao meacutetodo tradutoacuterio

Aacuteudio da traduccedilatildeo por mim apresentada do fragmento do Canto XI da Odisseia (CD)

para evidenciar pela leitura o resultado do modelo meacutetrico proposto

283

AO SOM DE DUAS INSOcircNIAS

Je sentis ma gorge serreacutee par la main terrible de lacutehysteacuterie

Charles Baudelaire

Eis que coloquei minhas palavras em tua boca

Jeremias 19

Soacute sobrevivo se rio do que eacute seacuterio

Anocircnimo

Naquele dia do mecircs de marccedilo de 1909 Giovanni Pascoli havia recebido pela

manhatilde uma carta que o deixara inquieto Datada do dia 19 trazia um conteuacutedo

inesperado e a resposta a dar suscitava reflexatildeo embora natildeo pudesse tardar

Olhando a paisagem quieta do entardecer em peacute no poacutertico de sua bela casa em

Castelvecchio o poeta sentia um rebuliccedilo interior que o impedia de pensar com

clareza natildeo sabia se deveria responder agrave carta ou caso respondesse se deveria

fazecirc-lo de modo indefinido ou com decididas afirmaccedilotildees Optou por respondecirc-la

com evasivas cuidando contudo de natildeo alimentar esperanccedilas A despeito da

decisatildeo natildeo se tranquilizou por inteiro restando-lhe uma espeacutecie de tremor sutil na

matildeo direita suficiente para dificultar sua escrita restou-lhe tambeacutem um fio muito

fino e frio no abdome apesar da bebida quente que ingerira antes de se deitar A

estranha sensaccedilatildeo acabou permanecendo em sua noite insone povoada por

imagens de letras que se embaralhavam formando nomes a soar em sua mente

imersos em versos que natildeo conseguia delimitar e dos quais logo se esquecia numa

sucessatildeo de apariccedilotildees e perdas

Longe dali Ferdinand de Saussure depois de mais um dia dedicado agrave preparaccedilatildeo

da segunda seacuterie de conferecircncias sobre linguiacutestica geral que ministrava na

Universidade de Genebra tambeacutem natildeo pudera dormir e se dedicava a continuar

seus cadernos de estudo sobre anagramas sistematicamente preenchidos durante as

noites ateacute a hora em que o sono o impedia de prosseguir Nessa ocasiatildeo com a

insocircnia o trabalho avanccedilava ateacute um ponto em que sua vista se turvava e seu

pensamento se aturdia num misto de sonho e realidade que o tornava ainda mais

aflito quanto agrave veracidade de suas descobertas vinham-lhe agrave mente entatildeo a partir

de direccedilotildees difusas inauditos sons guturais enquanto sentia pouco a pouco a

garganta apertar-se Uma breve pausa e alguns goles de aacutegua sorvidos em silecircncio

num canto escuro eram suficientes para que se percebesse parcialmente refeito

retornando agrave sua longa tarefa

284

Apoacutes alguns anos de pesquisa incansaacutevel permanecia a duacutevida primaacuteria quanto agrave

proacutepria existecircncia do objeto de sua busca apesar do deslumbramento a que se

entregara por reconhecer tantos anagramas evidentes nas obras que examinava e

conseguir formular as regras que deveriam ter orientado os autores na realizaccedilatildeo

daqueles feitos poeacuteticos persistia nele um duro foco de incerteza imanente ao seu

estudo que se contrapunha ao encanto como um gume aguccedilado impiedoso a

introduzir-se cada vez mais fundo em seu espiacuterito Durante a madrugada aleacutem do

trabalho ocupava-lhe a imaginaccedilatildeo uma possiacutevel segunda carta dirigida a Pascoli

na qual formularia de maneira sucinta mas suficiente a questatildeo crucial que o

aliviaria pela resposta que obtivesse mesmo que negativa Lia e relia a primeira

carta enviada agravequele poeta um dos poucos a cultivar ainda a poesia latina e tantas

vezes premiado no Certamen Hoeufftianum da Academia de Amsterdatilde

Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propoacutesito da versificaccedilatildeo latina em

geral encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema ndash Certos

pormenores teacutecnicos que parecem observados na versificaccedilatildeo de alguns modernos

satildeo puramente fortuitos ou satildeo desejados e aplicados de maneira consciente

Entre todos aqueles que se distinguiram em nossos dias por obras de poesia latina e

que poderiam por conseguinte esclarecer-me satildeo poucos os que se poderia

considerar ter dado modelos tatildeo perfeitos como os seus e onde se sentisse tatildeo

nitidamente a continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo muito pura Eacute a razatildeo que me leva a natildeo

hesitar em dirigir-me particularmente ao senhor e que deve servir-me de justificativa

pela grande liberdade que tomo

Caso o senhor estivesse disposto a receber em pormenor minhas perguntas eu teria

a honra de enviaacute-las numa proacutexima carta

Saussure iniciara sua pesquisa sobre os anagramas em 1906 e a esta altura jaacute

havia preenchido seu 1170 caderno aleacutem de papeacuteis avulsos no momento fazia

anotaccedilotildees nas grandes folhas em que tratava dos poemas latinos de Pascoli e de

outro autor tambeacutem italiano e tambeacutem Giovanni Rosati Seus cadernos continham

essencialmente exerciacutecios de decifraccedilatildeo por meio dos quais buscava encontrar os

anagramas foneacuteticos que teriam sido incluiacutedos pelos versificadores um ou mais

versos comporiam uma certa palavra geralmente o nome de um deus ou de um

heroacutei ao escutar versos latinos Saussure ouvia levantarem-se pouco a pouco os

fonemas principais de um nome proacuteprio distribuiacutedos ndash acreditava ndash

intencionalmente e conforme normas definiacuteveis A cada lance de dados do olhar

surgia um premeditado arranjo anagramaacutetico a evidenciar a intervenccedilatildeo do

demiurgo uma inteligecircncia organizadora do caos que a sua proacutepria desvendava

285

divisados em toda parte os nomes insuflavam o seu acircnimo nunca serenado

todavia pela convicccedilatildeo

Pascoli professor da Universidade de Bolonha e portanto seu colega de ensino

acadecircmico seria seu salvador o deus vivo a revelar-lhe a proacutepria intenccedilatildeo

criadora a dar-lhe sustentaccedilatildeo agraves asas do seu vocirco a confirmar-lhe a determinaccedilatildeo

dos gestos por ele desvelados a dar-lhe a paz necessaacuteria agrave sua excitaccedilatildeo chatildeo a sua

descoberta sem limites

Ao raiar a aurora entrevendo por uma fresta um tecircnue raio de sol Saussure

adormeceu E teve um sonho curioso com estantes e estantes de livros numa delas

(onde seus olhos captaram de relance a palavra Ficccedilatildeo encerrada numa etiqueta)

apareceu-lhe num close a meia-luz ndash detalhe sobressaiacutedo em meio agraves contiacuteguas

ediccedilotildees na linha da prateleira ndash o tiacutetulo Sobre a psicopatologia da vida cotidiana

A inscriccedilatildeo o fez despertar lembrou-se logo de jaacute ter visto tal volume numa

livraria de Genebra sem chegar a folheaacute-lo ndash era sabia ele outra obra de Sigmund

Freud autor de A interpretaccedilatildeo dos sonhos que tambeacutem natildeo lera Tratava-se

aquele vislumbre de algo estranho e mero acaso como lhe pareciam ser quase

sempre os sonhos apoacutes deixar de lado os signos esvanecidos na memoacuteria voltou

ao seu mundo presente focalizando a resposta que receberia do poeta italiano

Maria irmatilde de Pascoli notou na manhatilde seguinte sua inquietude estava liacutevido

com as feiccedilotildees contraiacutedas visivelmente maldormido trazia uma expressatildeo rude

grave interrogativa aleacutem do habitual ar sombrio que se instalara nele desde o

assassinato nunca aclarado de seu pai Ruggero quando tinha apenas 12 anos Ela

ofereceu-lhe entatildeo um revigorante desjejum que ele mal tocou Ainda na mesa o

escritor relia versos seus de Ultima linea ndash Ergo Vergilius cecinit nova saecula

frustra frustra ego praedixi frustraque effata Sybilla est ndash de Senex Coricius ndash

Spectabat mare caeruleum de vertice collis mente Cilix tota Prope falx et marra

iacebant ndash e de Nestor na paacutegina casualmente aberta de Catullocalvos ndash sub

arbore umbra Nestoris sedet senis depois debruccedilou-se sobre versos de seus

familiares poetas latinos buscando neles tambeacutem possiacuteveis pormenores

teacutecnicos a que o linguista aludia Seriam procedimentos por ele ignorados E se

apareciam em seus proacuteprios poemas seriam fruto de uma consciecircncia misteriosa

que guiara sua pena uma consciecircncia alheia que o tornara um simples instrumento

de sua vontade Ou estaria tatildeo imbuiacutedo da poesia no idioma do Laacutecio que a criaria

em seus moldes como um meio transmissor de uma tradiccedilatildeo sem que isto se

286

limitasse agrave sua iniciativa Afinal ele Iohannis recebera medalhas de ouro do

concurso holandecircs o que revelava que aos olhos dos criacuteticos assim como aos do

proacuteprio Saussure seus versos eram legiacutetimos e destacados representantes da

poeacutetica latina Natildeo lhe agradava a ideia de natildeo saber coisas importantes acerca de

sua proacutepria obra composta com o maacuteximo de atenccedilatildeo labor dedicaccedilatildeo e controle

que podia oferecer a si mesmo naquilo que mais lhe importava conhecia e

estimava eacute claro os momentos em que lhe vinham soluccedilotildees sem que as

perseguisse as fases mais feacuterteis a inspiraccedilatildeo especial de alguns momentos sem

os quais acreditava ele natildeo seria um poeta mas a simples sugestatildeo de algo que

fizesse sem ter plena ciecircncia de que o fazia fincava-lhe novamente no abdome

um frio e fino fio como se a ponta delgadiacutessima de uma seta ou mesmo uma

agulha geacutelida estivesse cravando-se em suas entranhas Desencorajando o

interlocutor sobre a existecircncia de algo que natildeo identificava foi cortecircs o suficiente

em sua resposta para propiciar a nova e esperada carta com a questatildeo mais

definida acerca dos tais pormenores a mensagem natildeo categoacuterica dava-lhe a

alternativa de estar escondendo o que natildeo queria revelar em vez de atestar o

possiacutevel desconhecimento de algo que pudesse ser real

Ao receber a resposta de Pascoli Saussure inicialmente prostrou-se por natildeo lhe

indicar ela qualquer identificaccedilatildeo com suas sugestotildees Anteviu portanto a

negativa quanto agrave realidade de seus achados talvez apenas uma miragem uma

projeccedilatildeo de sua mente excitada sobre uma massa ou mancha que se prestava a

qualquer molde que a ela se impusesse Mas a chama de uma possiacutevel revelaccedilatildeo

vista a cada passo de seu empenho natildeo se apagava com mais uma incerteza e sua

iniciativa de escrever a segunda carta deu-se logo sem rodeios Era o dia 6 de

abril

Dois ou trecircs exemplos bastaratildeo para colocar o senhor no centro da questatildeo que se colocou

ao meu espiacuterito e ao mesmo tempo permitir-lhe uma resposta geral pois se eacute somente o

acaso que estaacute em jogo nesses poucos exemplos disso decorre certamente que o mesmo

acontece em todos os outros De antematildeo creio bastante provaacutevel a julgar por algumas

palavras de sua carta que tudo natildeo deve passar de simples coincidecircncias fortuitas

1 Eacute por acaso ou intencional que numa passagem como Catullocalvos p 16 o nome Falerni se

encontre rodeado de palavras que reproduzem as siacutelabas desse nome

facundi caacutelices hausere ndash alterni

FA AL ER AL ERNI

287

2 Ibidem p 18 eacute ainda por acaso que as siacutelabas de Ulixes parecem procuradas numa sequecircncia

de palavras como

Urbium simul Undique pepulit lux umbras resides

U UL U ULI X S S ES

assim como as de Circe em

Cicuresque

CI R CE

ou Comes est itineris illi cerva pede

A carta continuaria mas o essencial estava dito Se isto natildeo fosse como deixara

expliacutecito um procedimento consciente nada o seria e seu esforccedilo teria sido em

vatildeo A anguacutestia instalou-se nele com um suspiro indefiniacutevel pelo tempo que

durasse a espera de uma resposta que previa deseacutertica aacuterida vazia a consumir-lhe

o acircnimo

Sem prestar muita atenccedilatildeo agrave correspondecircncia Maria passou-a ao irmatildeo que

apanhou imediatamente dentre as diversas cartas a do mestre suiacuteccedilo Ela notou

mais uma vez que o desassossego tomava conta do poeta alccedilando-se pela

premecircncia de algo oculto a um niacutevel bem mais elevado do que aquele que percebia

nele desde os dias finais do uacuteltimo mecircs

Pascoli leu-a rapidamente e dirigiu-se como em busca de ar aos arredores de sua

residecircncia Uma neacutevoa discreta tomava conta do lugar fundindo-se a seu

pensamento curiosamente vago Natildeo pensara considerava-se certo disso em

espargir elementos de nomes nos poemas mas eles estavam ali e o remetente da

carta tinha razatildeo Desconhecia de fato algo que ele proacuteprio fizera Ou seu

conhecimento era maior do que supunha Por um instante pareceu-lhe natural que

tivesse engendrado tais palavras nos versos Seu devaneio ingressou numa

dimensatildeo mais interna a olhar para dentro buscando enxergar em meio agrave neacutevoa

que espelhava o exterior agora natildeo visto e viu um possiacutevel outro de si a rir de sua

ignoracircncia a ironizar sua cegueira Voltando novamente o olhar para o lado de

fora dominado por uma superfiacutecie vaporosa amena continuou a ver uma face de si

mesmo no eacuteter como um reflexo que natildeo obedecendo a seu gesto ria enquanto ele

franzia o cenho Seria este outro o autor daqueles gestos precisos de siacutelabas de

sons entremeando-se em seu ofiacutecio como uma linha que costura no tecido alheio

mas cede agrave fusatildeo de seu feitio Ou seu riso denunciava a natildeo-autoria de quem quer

que natildeo fosse a proacutepria escritura a gerar em seus meandros suas proacuteprias leis

288

dotada de um ceacuterebro motor da linguagem criador de urdiduras independentes do

veiacuteculo de sua concretizaccedilatildeo esta matildeo trecircmula

Natildeo havia resposta a dar sem partir-se sem negar a sua consciecircncia ou exaurir a

do outro ou afirmar o inexistente ou cegar-se diante da evidecircncia ou admitir que

sua poesia lhe era transcendente ou que se natildeo o era talvez fosse algo que natildeo

conhecia bem e se natildeo conhecia bem talvez natildeo existisse assim como sua

consciecircncia que agora lhe parecia demente com um teor indistinto de mentira a

roer-lhe desde dentro ndash e desde fora

Nada a responder A decisatildeo amainou-lhe a alma que clareava em seu centro

enquanto a neacutevoa se dissipava permitindo contornos mais niacutetidos O ar frio entrou

mais livremente em seus pulmotildees acalentando-lhe o peito revolto parecia

delimitar-se em raros traccedilos de vapor a face transluacutecida de seu pai sugerindo-lhe

com voz paacutelida e longiacutenqua que deixasse os misteacuterios se diluiacuterem nos vatildeos do

intelecto

No iniacutecio a ausecircncia de resposta intensificou a agrura de Saussure que febril jaacute

natildeo conseguia prosseguir a escrita em seus papeacuteis grandes As noites tornaram-se

vazias porque povoadas apenas de fantasmas Fantasmas satildeo nada vecircm e vatildeo agrave

mercecirc dos ventos de nossa fantasia emergem e retornam ao infinito das

possibilidades amorfas ao vazio das formas Soacute a intenccedilatildeo soacute o ato atento

determina a existecircncia do que se identifica o que apenas surge e some nada eacute

desprovido da determinaccedilatildeo da vigiacutelia Assim os sonhos incertos das noites em

Genebra quando a elas retornou o sono soacute reaparecido no momento em que os

cadernos foram definitivamente ocultados dos olhos exangues de seu autor num

moacutevel de soacutelida madeira

Marcelo Taacutepia novembro-dezembro de 2007

Nota Este conto foi motivado pelas informaccedilotildees contidas na obra As palavras sob as

palavras ndash os anagramas de Ferdinand de Saussure de Jean Starobinski (traduccedilatildeo de

Carlos Vogt) publicada em Satildeo Paulo pela editora Perspectiva em 1974 Os trechos das

cartas de Saussure foram retirados dessa ediccedilatildeo com alteraccedilotildees miacutenimas assim como dela

proveacutem alguma frase incorporada ao texto

289

POEMA DE MICHAEL LONGLEY256

Ceasefire

I

Put in mind of his own father and moved to tears

Achilles took him by hand and pushed the old king

Gently away but Priam curled up at his feet and

Wept with him until their sadness filled the building

II

Taking Hectorrsquos corpse into his hands Achilles

Made sure it was washed and for the old kingrsquos sake

Laid out in uniform ready for Priam to carry

Wrapped like a present home to Troy at daybreak

III

When they had eaten together it pleased them both

To stare at each otherrsquos beauty as lovers might ndash

Achilles built like a god Priam good-looking still

And full of conversation who earlier had sighed

IV

lsquoI get down on my knees and to what must be done

And kiss Achillesrsquo hand the killer of my sonrsquo

256 Nascido em Belfast em 1939 Michael Longley publicou entre outros os livros de poemas No

continuing city (1969) Man lying on a wall (1976) Poems 1963-1983 (1984) The ghost orchid (1995) e

Broken dishes (1998) Eacute membro da Royal Society of Literature

290

CESSAR-FOGO

I

Relembrando o proacuteprio pai lacrimoso Aquiles

Tomou a matildeo do velho rei com gentileza

Afastou-o mas Priacuteamo abraccedilou-lhe os peacutes

Choraram e a tenda inundou-se de tristeza

II

Tendo nas matildeos o corpo lavado de Heitor

Aquiles que respeito pelo rei nutria

Embrulhou-o numa tuacutenica qual presente

A ser ofertado a Troacuteia ao raiar do dia

III

Cearam juntos e entatildeo admiraram a

Beleza um do outro como o fariam amantes ndash

Aquiles qual um deus Priacuteamo ainda belo

E pleno de prosa ele que suspirara antes

IV

ldquoFaccedilo o que devo posto de joelhos me humilho

Beijo a matildeo de Aquiles que aniquilou meu filhordquo

(Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia)

Nota do trad ldquoCeasefirerdquo foi escrito segundo o autor quando ldquose rezava em seu paiacutes por

um cessar-fogo do Irardquo

  • DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUCcedilAtildeO DA EacutePICA HOMEacuteRICA COMO PARADIGMAS METODOLOacuteGICOSDE RECRIACcedilAtildeO POEacuteTICA
  • Resumo
  • Abstract
  • Sumaacuterio
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo I
    • 1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica
      • A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica
      • B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade
        • B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia
        • B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica
        • B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo
          • B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo
            • B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees
            • B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise
              • Capiacutetulo II
                • A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudoapresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo
                  • A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
                  • A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
                  • A3 Haroldo de Campos
                    • B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasilum trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais
                    • C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Camposa traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica
                      • C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo
                      • C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos
                      • C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura
                      • C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada
                          • Capiacutetulo III
                            • A Vozes para Homero
                              • A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade
                              • A2 Iliacuteada fragmentos
                              • A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem
                              • A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise
                                  • Capiacutetulo IV
                                    • A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio o hexacircmetro em portuguecircs
                                      • A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio
                                          • Conclusatildeo
                                          • Bibliografia
                                          • APEcircNDICES
Page 2: DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUÇÃO DA ÉPICA HOMÉRICA …

2

Resumo A tese discute inicialmente a conceituaccedilatildeo de poesia a especificidade da

traduccedilatildeo poeacutetica e as possibilidades de anaacutelise de poemas para com base nessas

consideraccedilotildees analisar fragmentos das traduccedilotildees da eacutepica de Homero agrave liacutengua

portuguesa realizadas por Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de

Campos considerando-se as respectivas concepccedilotildees acerca da atividade tradutoacuteria A

partir das obras estudadas busca-se a identificaccedilatildeo de diferentes paradigmas

metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica apresentando-se por fim uma proposta de meacutetodo

tradutoacuterio da poesia eacutepica que envolve uma concepccedilatildeo riacutetmica baseada em

possibilidades de adaptaccedilatildeo em portuguecircs do padratildeo hexameacutetrico da poesia greco-

latina

Palavras-chaves Poesia traduccedilatildeo poeacutetica recriaccedilatildeo poeacutetica eacutepica grega Homero

Abstract

Firstly the present thesis discusses the conceptualization of Poetry the specificity of

poetry translation and possible ways of analysing poems and bearing these aspects in

mind the aim is to analyse some excerpts of Homerrsquos Epic translated into Portuguese

by Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes and Haroldo de Campos taking into

consideration their respective views on translation work next by using the works

analysed different methodological paradigms applied to poetic recreation are identified

and finally a proposal for a translational method deemed suitable to Epic poetry is

presented envolving a rhythmic conception based on possibilities of adaptation to Portuguese

of the Greek and Latin hexameter patterns

Keywords Poetry poetic translation poetic recriation Greek epic Homer

3

Este trabalho eacute dedicado agrave memoacuteria de minha matildee

Maria Aparecida Belli Taacutepia e ao meu pai Acircngelo Taacutepia Fernandes

Agradeccedilo agrave minha mulher Peacuterola Wajnsztejn Taacutepia e ao meu filho Daniel Taacutepia pela

cooperaccedilatildeo e pelo estiacutemulo agrave minha filha Ana Luiza Taacutepia de modo especial por sua decisiva

influecircncia em minha iniciativa de formar-me ainda que tardiamente em Letras

Agradeccedilo tambeacutem a Aurora Bernardini por ter-me concedido o privileacutegio de me acolher

como seu orientando e a Jaa Torrano por seus tatildeo proveitosos conselhos

4

Sumaacuterio

Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip5

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica9

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica9

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade50 B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia50

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica 68

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo71 B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo77

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees81

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise 88

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo95 A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)95

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)107

A3 Haroldo de Campos (1929-2003)114 B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais122

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica 124 C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo131

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos133

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura137 C4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada140

Capiacutetulo III Vozes para Homero144

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade145

A2 Iliacuteada fragmentos152

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem154 A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise181

Capiacutetulo IV Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs240

1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio261

Conclusatildeo271

Bibliografia275

Apecircndices282

5

Introduccedilatildeo

A traduccedilatildeo de poesia eacute um terreno movediccedilo Chatildeo deslizante sobre o qual se

atua feito de elementos errantes como as rochas mencionadas no canto XII da Odisseacuteia

Mas natildeo soacute pelos obstaacuteculos tambeacutem pela incerteza pela mutabilidade do sentido pela

multiplicidade de opccedilotildees potencialmente vaacutelidas

Admitindo-se que a poesia exista pela especificidade de sua linguagem e que a

traduccedilatildeo de poesia seja possiacutevel ndash eacute o que se admite e se busca discutir neste estudo ndash

seraacute na diversidade que se poderatildeo obter talvez (como aqui se quer demonstrar)

indicativos de pontos de convergecircncia de processos de criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo

Este trabalho ndash elaborado com a perspectiva de entendimento da teoria literaacuteria

como um amplo campo no qual se pode recorrer a fundamentos provenientes de uma

abordagem interdisciplinar ndash se iniciaraacute com uma discussatildeo sobre a natureza da poesia

tendo-se como referecircncia diferentes esforccedilos teoacutericos voltados agrave identificaccedilatildeo e agrave

definiccedilatildeo do que se entende por ldquopoeacuteticordquo Argumentos contraacuterios a essa possibilidade

de identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas imanentes agrave linguagem poeacutetica (e que envolvem

portanto a sua distinccedilatildeo da prosa) seratildeo tambeacutem considerados procurando-se algum

pensamento norteador para a tarefa empreendida que incluiraacute anaacutelise de trechos da

poesia homeacuterica e de suas recriaccedilotildees em nossa liacutengua Assim faraacute parte de nossos

propoacutesitos a reflexatildeo sobre procedimentos de anaacutelise assim como a proposiccedilatildeo de

certos procedimentos que se consideraratildeo adequados aos objetivos gerais do estudo

Como natildeo poderia deixar de ser tambeacutem se discutiratildeo oacutepticas diversas e conceitos

referentes agrave traduccedilatildeo e particularmente agrave traduccedilatildeo de poesia aplicando-se nas anaacutelises

e nas propostas que seratildeo feitas relativamente agrave tarefa tradutoacuteria as conclusotildees

consideradas pertinentes como fundamentaccedilatildeo para as formulaccedilotildees introduzidas

Noacutes leitores de liacutengua portuguesa somos privilegiados pela oferta generosa de

traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica ao nosso idioma E isso mesmo desconsiderando-se as

diversas versotildees em prosa que escaparatildeo ao campo de interesse deste trabalho

dedicado essencialmente a questotildees sobre traduccedilatildeo de poesia a partir de um objeto de

interesse tomado como fonte para identificaccedilatildeo de modos e procedimentos tradutoacuterios

Para cumprir sua finalidade o estudo se valeraacute de obras que se pretendem ndash guardadas

as diferenccedilas de eacutepoca de princiacutepios e de resultados ndash produtos do que poderiacuteamos

6

chamar de traduccedilatildeo poeacutetica dos poemas gregos ou seja de um processo tradutoacuterio que

busca atender agraves expectativas de realizaccedilatildeo de poemas eacutepicos em nossa liacutengua a partir

das composiccedilotildees originais Hoje apenas no Brasil dispomos de trecircs versotildees integrais da

Iliacuteada ndash a de Manuel Odorico Mendes (em versos decassiacutelabos) publicada em 1874 a

de Carlos Alberto Nunes (em hexacircmetros dactiacutelicos) publicada em 1962 e a de

Haroldo de Campos (em dodecassiacutelabos) publicada em dois volumes 2000-2002 aleacutem

de traduccedilotildees parciais significativas caso da apresentada em 2000 por Andreacute Malta

Campos (em versos compostos pela junccedilatildeo de dois heptassiacutelabos) Dispomos tambeacutem

de quatro versotildees da Odisseacuteia ndash a de Manuel Odorico Mendes (tambeacutem em

decassiacutelabos) a de Carlos Alberto Nunes (tambeacutem em hexacircmetros) a de Donaldo

Schuumller (em versos livres) e a de Trajano Vieira (em dodecassiacutelabos) aleacutem de uma

quinta a sair de Christian Werner (em versos livres) tambeacutem haacute traduccedilotildees

significativas de excertos da obra caso das realizadas por Haroldo de Campos (em

dodecassiacutelabos) que vieram a lume postumamente em 2006

Este estudo se concentraraacute na obra dos dois primeiros tradutores da obra integral

de Homero no paiacutes Odorico e Nunes e no trabalho de Haroldo de Campos que aleacutem

de particularmente importante como realizaccedilatildeo esteacutetica associa-se ao mais

desenvolvido e influente constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica levado a termo por

um poeta brasileiro Por essa razatildeo e por representar sua versatildeo da Iliacuteada a

contribuiccedilatildeo da maturidade de um tradutor-pensador da recriaccedilatildeo de poesia a produccedilatildeo

teoacuterico-criacutetica de Campos constituiraacute uma dimensatildeo relativamente privilegiada deste

trabalho

As demais traduccedilotildees mencionadas dos poemas homeacutericos natildeo seratildeo

investigadas por necessidade de delimitaccedilatildeo do jaacute vasto objeto dadas sua riqueza e sua

significaccedilatildeo talvez venham a constituir futuramente o foco de algum novo trabalho

que eu venha a empreender

Uma abordagem referencial a ser demonstrada

A argumentaccedilatildeo que deveraacute ser construiacuteda ao longo deste estudo teraacute de certo

modo como ponto de partida e de chegada a referecircncia norteadora (preacutevia portanto ao

pensamento a ser elaborado e alvo da conclusatildeo de seus objetivos) de uma

7

conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica brevemente apresentada a

seguir

Em anotaccedilotildees manuscritas para uma apresentaccedilatildeo realizada em 13 de dezembro

de 1979 Campos esquematiza pensamentos seus que se encontram de diversas formas

expostos no conjunto de seus textos teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica os quais visam a

construir o conceito do que denomina ldquotranscriaccedilatildeordquo Elabora contudo um esquema

que encontra particularidade em sua configuraccedilatildeo teoacuterica pelo enfoque que traz

relativamente agrave definiccedilatildeo da traduccedilatildeo de poesia Em vez de se ater ao conceito fundador

de sua teorizaccedilatildeo manifesto em diversos ensaios ndash a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica

ou paramoacuterfica ndash nestas anotaccedilotildees ele a entende como uma ldquooperaccedilatildeo semioacutetica em

dois sentidosrdquo O primeiro desses constitui-se no sentido ldquoestritordquo o de que a traduccedilatildeo

poeacutetica eacute uma ldquopraacutetica semioacuteticardquo especial ldquona medida em que visa ao intracoacutedigo que

opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo Para o autor

esse intracoacutedigo definido de um ponto de vista linguiacutestico seria o espaccedilo

operatoacuterio da funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson ou na expressatildeo alegoacuterica de Walter

Benjamin die Reine Sprache a liacutengua pura a ser desocultada resgatada pela

operaccedilatildeo tradutora no cerne do original (ao inveacutes do conteuacutedo cuja transmissatildeo eacute

afeita agrave traduccedilatildeo referencial)

O segundo o sentido ldquolatordquo diz respeito agrave traduccedilatildeo como um ldquoprocesso semioacuteticordquo de

ldquosemiose ilimitadardquo Afirma Campos

A traduccedilatildeo eacute o capiacutetulo por excelecircncia de toda teoria literaacuteria na medida em que a

literatura eacute um imenso canto paralelo um movimento paroacutedico em que uma dada

tradiccedilatildeo eacute sempre reproposta e reformulada na traduccedilatildeo [] Processo de semiose

ilimitada agrave maneira de Peirce

Assim a traduccedilatildeo seria correlata da proacutepria literatura e do processo essencial de

sua realizaccedilatildeo como campo abrangente de produccedilatildeo parodiacutestica

Pelo teor sinteacutetico e consistente da abordagem por seu amplo alcance e pelas

questotildees que desperta ndash incluindo-se a da proacutepria noccedilatildeo de ldquointracoacutedigordquo ou da

dimensatildeo intratextual ndash estas breves anotaccedilotildees podem consistir num marco preacutevio e

8

posterior a minha proacutepria tentativa de contribuiccedilatildeo ao pensamento sobre traduccedilatildeo

poeacutetica em geral e sobre a recriaccedilatildeo da eacutepica de Homero em particular

A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo veja-se uma coacutepia da referida paacutegina manuscrita1 por

Haroldo de Campos da qual resultaram as observaccedilotildees aqui inseridas

1A coacutepia do manuscrito de Haroldo de Campos (assim como de outras paacuteginas reproduzidas neste

trabalho) foi-me gentilmente cedida pelos herdeiros do autor durante processo de pesquisa de sua obra e

de seus originais do qual participei a fim de organizar em colaboraccedilatildeo com Thelma Noacutebrega uma

ediccedilatildeo contendo artigos de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica quase todos originalmente publicados em

perioacutedicos e natildeo recolhidos em livro (o volume seraacute publicado em 2012 pela Editora Perspectiva com o

tiacutetulo de Transcriaccedilatildeo e conteraacute reproduccedilatildeo de originais do autor)

9

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica

Ao considerar as versotildees da eacutepica grega ao portuguecircs como trabalhos de

traduccedilatildeo poeacutetica de modo a associaacute-los ao pensamento sobre traduccedilatildeo proacuteprio dos

diversos tradutores abordados neste estudo e a vislumbrar neles diferentes percursos

tradutoacuterios que podem constituir paradigmas metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo torna-se

necessaacuteria a formulaccedilatildeo acerca do que se entenderaacute por poesia para em seguida

conceituar-se preliminarmente a traduccedilatildeo poeacutetica como atividade recriadora

A poesia existe Esta questatildeo revela a natureza da reflexatildeo relativizadora que

marcou as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX por influecircncia da obra de pensadores como

Jacques Derrida2 Roland Barthes e Stanley Fish entre outros que propiciaram a

formaccedilatildeo do que seria a conceituaccedilatildeo poacutes-estruturalista acerca da linguagem Para situar

o problema numa breve abordagem geral que serviraacute como referecircncia a

complementaccedilotildees menos ligeiras opto3 por valer-me da quase totalidade de um artigo ndash

cujo tiacutetulo consiste na pergunta com a qual se inicia este paraacutegrafo ndash por mim escrito

com a finalidade de apresentaccedilatildeo do problema a um puacuteblico indiferenciado4

procurando-se adequar a linguagem a seus objetivos gerais

[] Ao questionarmos a existecircncia da poesia teremos dois caminhos ou

responder de imediato com um simples e indignado ldquosimrdquo (eu mesmo dedico

grande parte de minha vida a ela direta ou indiretamente e natildeo creio devotar-me a

algo inexistente) ou principiar uma discussatildeo que certamente natildeo cabe nos limites

de um texto de uma coluna como esta Mas o assunto surgiu porque penso que

talvez seja interessante relatar duas breves experiecircncias vividas durante os cursos

que tenho dado [] em torno do tema ldquoPoesia leitura anaacutelise e interpretaccedilatildeordquo A

2 Obras dos autores referidos relacionadas ao tema constam das Referecircncias Bibliograacuteficas 3 De modo atiacutepico num trabalho desta natureza uma vez que o artigo poderia integrar os anexos tal

expediente se deve agrave minha visatildeo de que as reflexotildees e experiecircncias nele relatadas seratildeo uacuteteis como

introduccedilatildeo agraves discussotildees posteriores 4 Trata-se de uma coluna em site literaacuterio (Cronopios wwwcronopioscombr) consultado em

24112011

10

primeira aconteceu jaacute haacute algum tempo [] e foi uma proposta inspirada no

conhecido estudo do teoacuterico e professor norte-americano Stanley Fish (autor de Is

there a text in the class The authority of interpretive communities [1980]) que

pediu a um grupo de alunos dedicados ao estudo da poesia religiosa do seacutec XVII

que analisassem o ldquopoemardquo escrito na lousa na verdade o que havia no quadro era

uma relaccedilatildeo de nomes de autores que integravam uma bibliografia sugerida Os

estudantes ndash habituados agrave anaacutelise e dotados de repertoacuterio para tanto ndash realizaram a

tarefa a contento estabelecendo correlaccedilotildees entre os nomes isso levou o autor a

considerar a literariedade um constructo motivado para ele a interpretaccedilatildeo natildeo eacute a

arte de entender mas a arte de construir afirma tambeacutem que o que eacute reconhecido

como literatura resulta de uma decisatildeo da ldquocomunidade interpretativardquo acerca do

que eacute literaacuterio ou natildeo Eacute faacutecil encontrar exemplos que ilustrem esta uacuteltima

proposiccedilatildeo alguns poemas hoje considerados como tal natildeo o seriam um seacuteculo

atraacutes Mas voltemos agrave experiecircncia agrave qual me referi tomei dois trechos de textos

que natildeo foram escritos como poemas ndash um fragmento de um dos Ensaios de

Montaigne e outro da coluna assinada por Contardo Calligaris no jornal Folha de

Satildeo Paulo ndash e os apresentei (divididos em ldquoversosrdquo) como poemas aos alunos

pedindo que discutissem suas caracteriacutesticas Conforme esperava os grupos

assinalaram diversos aspectos considerados interessantes nos ldquopoemasrdquo levando-

os a seacuterio como poesia ndash de fato nossa leitura eacute decisiva na qualificaccedilatildeo de um

texto Mas ocorreu algo que daacute subsiacutedio para outra questatildeo um dos alunos

observou que os poemas seriam ldquologopeiasrdquo Referia-se agrave classificaccedilatildeo de Pound

sobre as modalidades de poesia enquadrando os textos analisados naquela

categoria em que prevalece a ldquodanccedila do intelecto entre as palavrasrdquo ou seja em

que o engendramento loacutegico prevalece sobre outros aspectos como a musicalidade

(quando esta prepondera trata-se de ldquomelopeacuteiardquo) ou a forccedila de imagens (o

prevalecimento desta caracteriza a ldquofanopeiardquo) Ou seja notou que embora

aqueles textos fossem poesia ndash pois assim lhe foram apresentados ndash natildeo se podia

destacar neles por exemplo a melodia dos versos eram conforme lhe parecia

poemas de um tipo mais semelhante agrave prosa Quero discutir com isto a questatildeo de

que se a leitura pode atribuir a um texto um teor qualquer desde que haja ldquodecisatildeo

comunitaacuteriardquo acerca de sua qualificaccedilatildeo isto natildeo quer dizer que natildeo existam

elementos que lhe satildeo intriacutensecos e que permitem sua observaccedilatildeo diante da leitura

adequada Isto pode parecer oacutebvio mas natildeo eacute bem assim pois com base na ideia

da leitura como uma ldquoarte de construirrdquo pode-se dizer ndash como o faz Rosemary

Arrojo em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo Oficina de traduccedilatildeo ndash que ldquoo poeacutetico eacute na verdade

11

uma estrateacutegia de leitura uma maneira de ler e natildeo [] um conjunto de

propriedades estaacuteveis que objetivamente encontramos em certos textosrdquo Quando

se diz ldquopropriedades estaacuteveisrdquo estaacute-se pensando nos sentidos do poema que

conforme tal visatildeo ndash afinada com as proposiccedilotildees poacutes-estruturalistas e

particularmente com o desconstrucionismo de Jacques Derrida ndash decorrem da

leitura ldquocomo leitores do poemardquo ndash diz Arrojo ndash ldquoaceitamos o desafio impliacutecito de

interpretaacute-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para elerdquo

tal sentido contribuiraacute para ldquoa construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeordquo De acordo com

essa concepccedilatildeo quando lemos um texto ldquopoeticamenterdquo passamos a buscar

dimensotildees de sentido compatiacuteveis com a proacutepria ideia de poema que pode ser a de

um texto capaz de dizer muitas coisas ao mesmo tempo e que tenha na

ambiguidade muitas vezes um instrumento gerador de sentido inesperado

insoacutelito um texto em que todos os seus elementos devam ser considerados numa

teia de associaccedilotildees no processo interpretativo que pode resultar em conclusotildees

diversas e igualmente ldquoverdadeirasrdquo (considerando-se que natildeo haacute do ponto de

vista da desconstruccedilatildeo ldquoverdaderdquo original ou estaacutevel) Se pensarmos em termos de

sentido natildeo haveraacute mesmo propriedades ou elementos fixos no texto a leitura

cria ldquosignificadosrdquo ndash mesmo porque estes natildeo existem como uacutenicos e estaacuteveis

dentro de uma liacutengua Mas ndash e sem querer levar muito longe esta discussatildeo que

pode ser infindaacutevel e infinita ndash natildeo se pode negar sob outro ponto de vista que

uma leitura ao envolver muacuteltiplas possibilidades interpretativas teraacute de atentar

para aqueles elementos que laacute estatildeo inclusive com suas caracteriacutesticas sonoras e

visuais (quando for o caso) que por sinal contribuem para a construccedilatildeo do

sentido Mesmo que eu possa ler como poema um texto que natildeo foi criado como

tal isto natildeo quer dizer que natildeo possa distinguir nele caracteriacutesticas que me

permitam por exemplo afirmar que natildeo apresenta musicalidade ou imagens ou

que a sonoridade produzida por seus constituintes eacute pobre e embora eu possa

ldquojustificaacute-lordquo como poema a partir de outras qualidades que nele encontre ele natildeo

seraacute visto como uma melopeacuteia mesmo que eu me esforce para tanto (Antes de

prosseguir um parecircntese eacute claro que a ideia sobre o que eacute poesia mudou e muda

com o tempo e o contexto e que hoje haacute uma pluralidade indefinida do que se

considera poesia inclusive a jaacute usual ldquopoesia em prosardquo mas pensando no

experimento de Fish quanto de sua autoridade sobre os alunos natildeo restringiu uma

afirmaccedilatildeo do tipo ldquoo rei estaacute nurdquo ou seja ldquoisto natildeo eacute um poemardquo No meu caso

guardadas as devidas desproporccedilotildees o caso seria semelhante em que uma simples

autoridade de professor pode dificultar ou impedir uma questatildeo aleacutem do proposto

12

e ademais no meu caso particular devo admitir que a escolha teraacute envolvido de

certa forma uma preacute-leitura do que poderia dar margem a uma discussatildeo

estimulante) Claro que se pode dizer mas o que eacute considerado ldquomusicalrdquo tambeacutem

o eacute por decisatildeo da comunidade cultural assim como o que vem a ser muacutesica satildeo

muitos os exemplos que corroborariam esta afirmaccedilatildeo como o caso das

composiccedilotildees atonais (que sofreram grande resistecircncia no proacuteprio meio em que

foram criadas) e outras experimentais que muitos natildeo reconhecem como muacutesica

Nestes termos natildeo haacute qualquer possibilidade de definiccedilatildeo do que seja muacutesica

pintura ou literatura ou poesia nada disso existe a natildeo ser a partir do ldquoacordordquo

que cria sua identificaccedilatildeo Mas de novo a partir de outro ponto de vista uma

composiccedilatildeo feita de ruiacutedos e sons ldquoestranhosrdquo com base num sistema natildeo

convencional teraacute em si um esquema de relaccedilotildees ditado por suas proacuteprias regras

que podem ser ou natildeo percebidas conhecidas Um poema independentemente de

sua qualificaccedilatildeo como ldquomusicalrdquo traz em si por exemplo fonemas que se repetem

ou natildeo palavras que trazem a mesma terminaccedilatildeo ou natildeo vogais fechadas que

sucedem outras abertas ou vice-versa apresenta sons que escorrem fluidos ou que

se seguem em solavancos obstaacuteculos haacute a distribuiccedilatildeo de siacutelabas tocircnicas e pausas

que impotildeem um ritmo ao conjunto haacute sim ndash e de novo o oacutebvio pode natildeo o ser ndash

uma dimensatildeo fiacutesica do signo (poderiacuteamos dizer que considero aqui em termos da

semioacutetica de Charles Peirce o ldquoobjeto imediatordquo do signo isto eacute sua aparecircncia

graacutefica ou acuacutestica) que eacute uma espeacutecie de mateacuteria-prima do artista e que mesmo

natildeo se dissociando da produccedilatildeo de sentido pela leitura permite o estabelecimento

de regras internas de composiccedilatildeo e a sua identificaccedilatildeo por diferenccedila relativamente

a outras obras Assim da mesma forma como natildeo se pode atribuir musicalidade a

um determinado texto ndash nascido crocircnica por exemplo ndash que ao priorizar a ldquofunccedilatildeo

cognitivardquo (na classificaccedilatildeo de Jakobson) empregando as palavras como ldquosignos-

parardquo e natildeo como ldquosignos-derdquo (conforme a distinccedilatildeo de Charles Morris) isto eacute ao

usaacute-las como ldquoveiacuteculosrdquo que conduzem a algo natildeo apresenta relaccedilotildees que

sobressaiam no plano sonoro tambeacutem natildeo se pode negar musicalidade a um texto

que nascido poema ndash vale dizer tambeacutem ldquolidordquo como um poema por seu autor ndash

manifeste uma elaboraccedilatildeo discerniacutevel da tessitura dos sons Claro eacute no entanto

que mesmo um poema feito como tal e dotado de caracteriacutesticas consideradas

poeacuteticas ndash inclusive no campo da sonoridade ndash pode ser lido de maneira a natildeo se

perceberem seus elementos tudo pode ldquopassar batidordquo pelo leitor desavisado que

lecirc um poema como se leria uma notiacutecia de jornal ou uma narrativa qualquer ou

seja que natildeo se dispotildee a uma leitura que possibilite natildeo soacute a dita ldquoproduccedilatildeo de

13

sentidordquo como tambeacutem a simples percepccedilatildeo dos aspectos sonoro e visual das

palavras O reconhecimento portanto de certas caracteriacutesticas do texto observadas

a partir dos sons que se relacionam entre si por diferenccedilas e semelhanccedilas ndash

poderiacuteamos dizer que estamos focalizando em termos da teoria linguiacutestica de

Hjelmslev (para quem o signo eacute a junccedilatildeo de um ldquoplano de expressatildeordquo e um ldquoplano

de conteuacutedordquo cada plano compreendendo os niacuteveis da ldquoformardquo e da ldquosubstacircnciardquo)

a forma da expressatildeo dada pelas diferenccedilas focircnicas (lembrando que as oposiccedilotildees

se constroem sobre identidades) ndash tambeacutem depende de uma atitude de leitura que

envolve inclusive um repertoacuterio voltado agrave percepccedilatildeo de formas Muitas vezes o

leitor natildeo estaacute preparado para observar os elementos natildeo-verbais (embora

associados ao signo verbal ou integrantes deste) que se apresentam no texto

compondo sua identidade riacutetmica e sonora e buscaraacute num poema apenas o que

este ldquoquer dizerrdquo podemos dizer que neste caso o poema se perde porque a leitura

natildeo se faz ldquopoeticamenterdquo ou seja natildeo visa agrave percepccedilatildeo do acircmbito relativo ao que

Jakobson denominou ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo ndash caracterizada conforme

observa Deacutecio Pignatari em seu O que eacute comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquopela projeccedilatildeo de

coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo esta

pode ser uma maneira de compreendecirc-la Como diz ainda Deacutecio ldquoA maioria das

pessoas lecirc poesia como se fosse prosa A maioria quer lsquoconteuacutedosrsquo ndash mas natildeo

percebe formasrdquo Se lermos poesia como poesia ela existiraacute para noacutes com tudo

aquilo que a identifica em maior ou menor grau conforme seu niacutevel de realizaccedilatildeo

esteacutetica alcanccedila e assim desempenharaacute a funccedilatildeo que lhe cabe diferente da de um

texto natildeo poeacutetico

Mas voltando a questotildees iniciais o que deveraacute fazer com que leiamos um texto

como poesia Seraacute acaso a sua simples disposiccedilatildeo em versos Natildeo poderaacute ser

pois haacute poemas que natildeo satildeo em versos e haacute textos assim dispostos que

dificilmente poderemos chamar de poesia Ou seraacute sua qualificaccedilatildeo anterior como

um poema Isto nos levaraacute a lecirc-lo como tal mas eacute preciso considerar que os

criteacuterios para tanto satildeo variaacuteveis e mesmo que a informaccedilatildeo pode ser falsa Ou

ainda outras caracteriacutesticas ldquoformaisrdquo Natildeo pois podem ser considerados poemas

textos de caracteriacutesticas muito diversas O que entatildeo Resta-nos atentar para as

estruturas que nos permitam a percepccedilatildeo ndash e consequente apreciaccedilatildeo esteacutetica ndash de

elementos que se associam daquele modo peculiar que possibilitou a formulaccedilatildeo de

um conceito como ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo de nos abrirmos

aprioristicamente agrave leitura esteacutetica de um texto que se insinue como dotado de

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algo mais do que a simples funccedilatildeo de ldquotransmissatildeo de mensagensrdquo de o vermos e

ouvirmos com olhos e ouvidos o mais possiacutevel libertos do sistema loacutegico-

discursivo facultando-nos o pensamento analoacutegico Se o texto nos eacute dado como

poesia seja qual for o ldquotipordquo de poema eacute claro que esta atitude seraacute ativa e

predeterminada ainda que natildeo o reconheccedilamos de imediato como poesia

conforme os padrotildees que adotamos se natildeo nos for dado como tal tambeacutem

poderemos nos surpreender ao encontrarmos pela frente por exemplo no meio de

um romance trechos que parecem emergir do contexto como um ser que salta do

plano da prosa para o da poesia Eacute o caso entre tantos outros de alguns fragmentos

de romances do autor cubano Alejo Carpentier ndash e eacute a partir de um deles que se deu

a segunda experiecircncia a que me referi no iniacutecio deste artigo mas como este jaacute se

alongou muito aleacutem de sua apropriada medida deixemos este tema para outra vez

Muitas satildeo as referecircncias feitas de passagem nesse artigo aqui evocado para

explicitar as concepccedilotildees envolvidas no suporte dessa abordagem precisaremos de

acreacutescimos significativos aleacutem de algumas reiteraccedilotildees No entanto esse texto pode dar

conta de apresentar a complexidade da discussatildeo pela tentativa mais ou menos bem

sucedida de formulaccedilatildeo de um ponto de vista Consideraremos neste trabalho para a

proacutepria presenccedila de um objeto de estudo no modo em que eacute proposto que a poesia

existe e possui caracteriacutesticas distinguiacuteveis que podemos buscar independentemente da

diversidade do que se chama ou chamou de poesia (da antiguidade ocidental ateacute nossos

dias)

Mencionou-se no artigo a teoacuterica brasileira Rosemary Arrojo sua leitura e sua

sistematizaccedilatildeo acerca das concepccedilotildees desconstrucionistas e sua aplicaccedilatildeo na

(in)definiccedilatildeo e na leitura de poesia assim como no entendimento da atividade de

traduccedilatildeo seratildeo frequentemente citados por tudo o que possibilitam de discussatildeo e

reflexatildeo Mas antes focalizemos da maneira mais breve possiacutevel (poreacutem mais detida

que o artigo apresentado) algo do principal arcabouccedilo teoacuterico da linguiacutestica estrutural

(fundamentada nas noccedilotildees de Ferdinand de Saussure5) sobre poesia

Natildeo cabe apresentar aqui a histoacuteria do estruturalismo na linguiacutestica pela

limitaccedilatildeo naturalmente imposta a explanaccedilotildees de fundamentaccedilatildeo ao tema central e pelo

fato de ser esse um tema amplamente difundido e explorado no seacuteculo XX apenas

5 SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Traduccedilatildeo de Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro

Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 1977

15

como indicaccedilatildeo contudo e para se manter alguma ilusatildeo de autonomia deste trabalho

leia-se uma abordagem sinteacutetica de Michael Peters a respeito do assunto conforme

afirma o estruturalismo

[] tem sua origem na linguiacutestica estrutural tal como desenvolvida por Ferdinand

de Saussure e por Roman Jakobson na virada do seacuteculo Saussure ministrou um

curso sobre linguiacutestica geral de 1907 a 1911 morreu em 1913 Seus alunos

publicaram em 1916 o livro Cours de linguistique reconstituiacutedo a partir de suas

anotaccedilotildees de aula O Cours de linguistique concebia a linguagem como um sistema

de significaccedilatildeo vendo seus elementos de uma forma relacional []6

Conheccedilam-se tambeacutem os esclarecimentos de Margarita Petter acerca do tema

Para o mestre genebrino a Linguiacutestica tem por uacutenico e verdadeiro objeto a liacutengua

considerada em si mesma e por si mesma Os seguidores dos princiacutepios

saussureanos esforccedilaram-se por explicar a liacutengua por ela proacutepria examinando as

relaccedilotildees que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor

funcional desses diferentes tipos de relaccedilotildees A liacutengua eacute considerada uma estrutura

constituiacuteda por uma rede de elementos em que cada elemento tem um valor

funcional determinado A teoria de anaacutelise linguiacutestica que desenvolveram herdeira

das ideias de Saussure foi denominada estruturalismo Os princiacutepios teoacuterico-

metodoloacutegicos dessa teoria ultrapassaram as fronteiras da Linguiacutestica e a tomaram

ciecircncia piloto entre as demais ciecircncias humanas [] (Fiorin 2002 14)7

Eacute importante que haja aqui ndash para que se tornem fundamentos a discussotildees

posteriores ndash uma referecircncia breve a conceituaccedilotildees e princiacutepios estabelecidos pelo

linguista suiacuteccedilo Ferdinand de Saussure (1857-1913) Sobre a linguagem e o conceito de

signo diz sinteticamente Haroldo de Campos8

6PETERS M Poacutes-estruturalismo e filosofia da diferenccedila ndash Uma introduccedilatildeo Belo Horizonte Autecircntica

2000 7 FIORIN Joseacute Luiz (org) Introduccedilatildeo agrave Linguiacutestica I Objetos teoacutericos Satildeo Paulo Contexto 2002 8 Citaccedilatildeo do artigo ldquoA comunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo In CAMPOS H de A arte no horizonte

do provaacutevel Satildeo Paulo Perspectiva 1975 pp 131-154

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A linguagem eacute um sistema de signos O signo entatildeo eacute a unidade linguiacutestica Para

Saussure cujas concepccedilotildees pioneiras ainda estatildeo impregnadas de psicologismo9 o

signo linguiacutestico eacute uma entidade psiacutequica de duas faces unindo natildeo uma coisa e

um nome mas um conceito e uma imagem acuacutestica10

o significante eacute a imagem

sensorial psiacutequica (natildeo a pura materialidade fiacutesica do som) da forma focircnica e o

significado eacute a imagem mental da coisa (que pode estar ligada a outro significante

conforme o idioma) (1975 134)

Por sua vez Joseacute Luiz Fiorin observa que

A definiccedilatildeo de signo dada por Saussure eacute substancialista pois ele trata do signo em

si como uniatildeo de um significante e um significado No entanto no Curso de

linguiacutestica geral ele insiste no fato de que na liacutengua natildeo haacute senatildeo diferenccedilas ou

seja de que cada elemento linguiacutestico deve ser diferente dos outros elementos com

os quais contrai relaccedilatildeo Por isso eacute preciso considerar o signo natildeo mais em sua

composiccedilatildeo mas em seus contornos dados por suas relaccedilotildees com os outros signos

Por isso Saussure cria a noccedilatildeo de valor [] Com ela daacute-se uma definiccedilatildeo

negativa do signo um signo eacute o que os outros natildeo satildeo O valor proveacutem da situaccedilatildeo

reciacuteproca das peccedilas na liacutengua pois importa menos o que existe de conceito e de

mateacuteria focircnica num signo do que o que haacute ao seu redor A significaccedilatildeo eacute entatildeo

uma diferenccedila entre um signo e outro signo pois o que existe na liacutengua satildeo a

produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo de diferenccedilas (2002 58)

Eacute pertinente ndash por questotildees terminoloacutegicas e conceituais ndash incluir-se aqui a

ideia de signo para Hjelmslev11

Hjelmslev [] Comeccedila por dizer que o signo eacute a uniatildeo de um plano de conteuacutedo a

um plano de expressatildeo[] Para Hjelmslev cada plano compreende dois niacuteveis a

9 A observaccedilatildeo criacutetica de Campos eacute reveladora de sua posiccedilatildeo teoacuterica como se poderaacute verificar

posteriormente Agrave apresentaccedilatildeo do que seria o signo para Saussure o autor faz suceder a conceituaccedilatildeo de

signo segundo Jakobson ldquoJakobson deixando de lado o mentalismo saussuriano prefere distinguir entre

signans o aspecto sensualmente perceptiacutevel do signo e signatum o seu aspecto inteligiacutevel traduziacutevel

para concluir lsquoToda entidade linguiacutestica da maior agrave menor eacute uma conjunccedilatildeo necessaacuteria de signans e signatum Assim se define o traccedilo distintivo na base do signans como uma propriedade socircnica opositiva

aliada ao seu signatum que eacute a funccedilatildeo distintiva do traccedilo ndash a sua capacidade de diferenciar significaccedilotildeesrdquo 10 Campos usa aqui a mesma definiccedilatildeo que aparece no Curso de linguiacutestica geral de Saussure ldquoO signo

linguiacutestico une natildeo uma coisa e uma palavra mas um conceito e uma imagem acuacutesticardquo (1977 80) 11HJELMSLEV H Capiacutetulo ldquoExpressatildeo e conteuacutedordquo integrante de Hjelmslev H Prolegocircmenos a uma

teoria da linguagem Satildeo Paulo Perspectiva 1975

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forma e a substacircncia Assim haacute uma forma do conteuacutedo e uma substacircncia do

conteuacutedo uma forma da expressatildeo e uma substacircncia da expressatildeo

[] A forma corresponde ao que Saussure chama valor ou seja eacute um conjunto de

diferenccedilas Para estabelecer uma definiccedilatildeo formal de um som ou de um sentido eacute

preciso estabelecer oposiccedilotildees entre eles por traccedilos pois os sons e os sentidos natildeo

se opotildeem em bloco [] A mesma coisa ocorre no acircmbito do sentido []

Assim o signo para Hjelmslev une uma forma da expressatildeo a uma forma de

conteuacutedo Essas duas formas geram duas substacircncias uma da expressatildeo e uma do

conteuacutedo A forma da expressatildeo satildeo diferenccedilas tocircnicas e suas regras

combinatoacuterias a forma do conteuacutedo satildeo diferenccedilas semacircnticas e suas regras

combinatoacuterias a substacircncia da expressatildeo satildeo os sons a substacircncia do conteuacutedo os

conceitos (2002 59)

Satildeo as seguintes as caracteriacutesticas do signo linguiacutestico assim apresentadas (aqui

em citaccedilotildees sucessivas) por J L Fiorin

Para Saussure o signo linguiacutestico tem duas caracteriacutesticas principais a

arbitrariedade do signo e a linearidade do significante []

[] o signo linguiacutestico eacute arbitraacuterio e portanto cultural Arbitraacuterio eacute o contraacuterio de

motivado[] ou seja [] natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o som e o

sentido [] natildeo haacute qualquer necessidade natural que determine a uniatildeo de um

significante e de um significado Isso eacute comprovado pela diversidade das liacutenguas

[] Algumas pessoas criticaram a concepccedilatildeo da arbitrariedade do signo

mostrando que as onomatopeacuteias [] satildeo motivadas No entanto eacute preciso dizer

que em [] as onomatopeacuteias ocupam um lugar marginal na liacutengua e [] elas satildeo

submetidas agraves coerccedilotildees fonoloacutegicas de cada liacutengua []

O corolaacuterio da arbitrariedade eacute a convenccedilatildeo[]

Como diz Jakobson12

ldquoo proacuteprio Saussure atenuou seu lsquoprinciacutepio fundamental

do arbitraacuteriorsquo distinguindo em cada liacutengua aquilo que eacute lsquoradicalmentersquo arbitraacuterio

daquilo que soacute o eacute lsquorelativamentersquo (1973 109) Explica Fiorin

[] Jakobson (196998-117)13

mostra que embora estivesse correta a afirmaccedilatildeo

saussurreana de que os signos linguiacutesticos satildeo arbitraacuterios ela deveria ser matizada

12 JAKOBSON Roman Em traduccedilatildeo de Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo

Satildeo Paulo Clutrix 1973 6ordf ediccedilatildeo

18

pois em muitos casos em todos os niacuteveis da liacutengua aparecem motivaccedilotildees Os sons

parecem ter um simbolismo universal A oposiccedilatildeo de fonemas graves como o a

e agudos como o i eacute capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro do pontudo

e do arredondado do fino e do grosso do ligeiro e do maciccedilo Por isso quando se

vai indicar nas histoacuterias em quadrinho o riso dos homens e das mulheres usam-

se respectivamente ha ha ha e hi hi hi Ainda nas histoacuterias em quadrinho as

onomatopeacuteias que indicam ruiacutedo sons brutais e repentinos como pancadas

comeccedilam sempre por consoantes oclusivas que satildeo momentacircneas como um golpe

(pb td kg) pum paacute taacute Isso natildeo ocorre segundo Jakobson apenas nas

onomatopeacuteias Haacute regiotildees do leacutexico em que conjuntos de palavras apresentam

sentidos similares associados a sons similares Em inglecircs temos bash golpe

mash mistura smash golpe duro crash fragor desmoronamento dash

choque lash chicotada hash confusatildeo rash erupccedilatildeo brash ruiacutenas

clash choque violento trash repelente plash marulho splash salpico

flash relacircmpago[] (2002 62)

Ressaltem-se as observaccedilotildees que se seguem acerca da ldquomotivaccedilatildeordquo na poesia

Eacute na poesia no entanto que a motivaccedilatildeo do signo aparece em toda sua forccedila O

poeta busca motivar a relaccedilatildeo entre o significante e o significado Essa motivaccedilatildeo

natildeo aparece no niacutevel do signo miacutenimo mas no do signo-texto Por isso no texto

poeacutetico o plano da expressatildeo serve natildeo apenas para veicular conteuacutedos mas para

recriaacute-los em sua organizaccedilatildeo O material sonoro contribui para produzir

significaccedilatildeo o plano da expressatildeo eacute colocado em funccedilatildeo do conteuacutedo Os

elementos da cadeia sonora lembram de algum modo o significado presente no

plano do conteuacutedo As aliteraccedilotildees as assonacircncias os ritmos imitam aquilo de que

fala o poema pois ele eacute na frase do poeta Valeacutery um hesitaccedilatildeo prolongada entre

o som e o sentido Os sons na poesia satildeo escolhidos em razatildeo de seu poder

imitativo Nos versos abaixo de Os Lusiacuteadas a repeticcedilatildeo de consoantes oclusivas

especialmente do t imita as explosotildees que a tempestade produzia

Em tempo de tormenta e vento esquivo

De tempestade escura e triste pranto (V 18 3-4) (2002 63-64)

13 ID Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo em sua primeira ediccedilatildeo (1969) especificamente ao capiacutetulo ldquoAgrave procura

da essecircncia da linguagemrdquo que trata da motivaccedilatildeo de signos linguiacutesticos

19

A respeito da contribuiccedilatildeo do material sonoro para a significaccedilatildeo evoque-se a

teoria de Maurice Grammont citada por Antonio Candido em seu Estudo analiacutetico do

poema14

Candido refere-se ao que eacute exposto na segunda parte (ldquoLes sons consideres

comme moyens dexpressionrdquo p 193-375) do livro Le vers franccedilais como ldquoexemplo de

uma teoria que afirma a existecircncia de correspondecircncias entre a sonoridade e o

sentimentordquo15

Ponto de partida [da teoria de Grammont] Pode-se pintar uma ideia por meio de

sons todos sabem que isto eacute praticaacutevel na muacutesica e a poesia sem ser muacutesica eacute

() em certa medida uma muacutesica as vogais satildeo espeacutecies de notas []

Todavia Grammont eacute bastante prudente para observar e em seguida insistir

repetidas vezes que o som por si soacute natildeo produz efeitos se natildeo estiver ligado ao

sentido Em resumo todos os sons da linguagem vogais ou consoantes podem

assumir valores precisos quando isto eacute possibilitado pelo sentido da palavra em que

ocorrem se o sentido natildeo for suscetiacutevel de os realccedilar permanecem inexpressivos

[]

Distingue os seguintes casos 1 Repeticcedilatildeo de fonemas quaisquer 2 Vogais 3

Consoantes 4 Hiato 5 Rima

Destaquem-se as afirmaccedilotildees referentes agrave necessidade de associaccedilatildeo entre o som

e o sentido para a produccedilatildeo de efeitos e tambeacutem a distinccedilatildeo em sua teoria dos

diferentes casos de repeticcedilatildeo Grammont assim se refere agrave repeticcedilatildeo de consoantes e

vogais

Vogais 1 Agudas dor desespero alegria coacutelera ironia e desprezo aacutecido troccedila

2 Claras leveza doccedilura3 Brilhantes barulhos rumorosos 4 Sombrias barulhos

surdos raiva peso gravidade ideias sombrias 5 Nasais repetem os efeitos das

baacutesicas modificando-as

Consoantes 1 Momentacircneas Satildeo as explosivas proacuteprias a qualquer ideia de

choque oclusivas surdas e sonoras As primeiras mais fortes produzem mais

14 CANDIDO Antonio O estudo analiacutetico do poema Satildeo Paulo Humanitas 1996 pp 31-37 O

conteuacutedo do livro proveacutem de cursos ministrados pelo autor na USP em 1963 e 1964 15 Seraacute feito na Conclusatildeo deste trabalho breve comentaacuterio relativo agrave teoria de Grammont (assim como agrave

concepccedilatildeo de Castilho mencionada na proacutexima paacutegina) agrave luz de conceitos da semioacutetica de C S Peirce

20

efeito (T C P) que as segundas (DG B) Exprimem ou ajudam a dar ideia de um

ruiacutedo seco repetido [] (1996 31-37)

No seacuteculo XIX o escritor e teoacuterico da versificaccedilatildeo Antoacutenio Feliciano de

Castilho (1800-1875) jaacute se referia agrave potencialidade expressiva das vogais

Se a vogal A [] expressa a grandeza e a alegria o I [] parece conviraacute com as

ideias de pequenez e de tristeza O E parece incapaz de algum valor onomatoacutepico

ou representativo a natildeo ser para expressar languidez tibieza quietaccedilatildeo e ainda os

gozos serenos [] O O eacute [] som franco rasgado eneacutergico eacute como que uma

explosatildeo da alma [] O U [] sumido e soturno parece convir agrave desanimaccedilatildeo agrave

tristeza profunda aos assuntos lutuosos sepulcro tuacutemulo fuacutenebre funeacutereo etc16

Retornando agrave discussatildeo sobre a arbitrariedade do signo mencione-se a

referecircncia que faz Haroldo de Campos agrave objeccedilatildeo de Jakobson relativamente a tal

princiacutepio da linguiacutestica

Como observa Mattoso Cacircmara17

Jakobson nega a arbitrariedade absoluta do

signo fonoloacutegico sustentando que toda liacutengua que toda liacutengua necessariamente

procede a uma seleccedilatildeo entre um limitado nuacutemero de tipos de sons vocais e suas

combinaccedilotildees inclusive por uma injunccedilatildeo biopsicoloacutegica de que resulta a presenccedila

constante de certos tipos baacutesicos A tese do linguista russo encontra respaldo nas

posiccedilotildees de E Benveniste18

para quem haacute uma relaccedilatildeo de necessidade e

consubstancialidade entre os dois componentes do signo linguiacutestico (significante e

significado) ldquoSe a liacutengua eacute algo diverso de um conglomerado fortuito de noccedilotildees

erraacuteticas e de sons emitidos ao acaso isto se daacute porque haacute uma necessidade

imanente agrave sua estrutura como a toda estruturardquo afirma Benveniste Em todo caso

o que se poderaacute desde logo sustentar de maneira incontrastaacutevel eacute que na poesia

(onde como proclama Jakobson reina o jogo de palavras a paronomaacutesia figura

16 CASTILHO A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Para em pouco tempo e ateacute sem mestre

se aprenderem a fazer versos de todoas as medidas e composiccedilotildees Lisboa Imprensa Nacional 1851 pp 65-70 17 Referecircncia ao conceituado linguista brasileiro Joaquim Mattoso Cacircmara Juacutenior (1904-1970) ndash que foi

aluno de Jakobson nos Estados Unidos ndash autor de Histoacuteria da linguiacutestica entre outras obras 18 Referecircncia ao linguista estruturalista francecircs Eacutemile Benveniste (1902-1976) conhecido por seus

estudos sobre as liacutenguas indo-europeias e pela expansatildeo do paradigma linguiacutestico estabelecido por

Saussure Em portuguecircs eacute referecircncia a obra Problemas de Linguiacutestica Geral publicada em dois volumes

21

esta entendida num sentido amplo de correlaccedilatildeo de som e sentido) esta

arbitrariedade natildeo existe (1975 143)

Resta apresentar a outra caracteriacutestica essencial do signo na proposiccedilatildeo de

Saussure a ldquolinearidade do significanterdquo

O caraacuteter auditivo do significante linguiacutestico faz com que ele se desenvolva no

tempo Ele representa uma extensatildeo e essa extensatildeo eacute mensuraacutevel numa soacute

dimensatildeo eacute uma linha A escrita ao representar a fala representa essa linearidade

no espaccedilo [] (FIORIN 2002 65)

Roman Jakobson diga-se questionou tambeacutem esse outro postulado baacutesico da

linguiacutestica Saussuriana diz ele em seu estudo ldquoDois aspectos da linguagem e dois tipos

de afasiardquo ldquoPode-se dizer que a concorrecircncia de entidades simultacircneas e a concatenaccedilatildeo

de entidades sucessivas satildeo os dois modos segundo os quais noacutes que falamos

combinamos os constituintes linguiacutesticosrdquo (1973 38)19

Referecircncias que persistem em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo e agrave anaacutelise da linguagem

poeacutetica contemporaneamente apesar das relativizaccedilotildees ocasionadas pelas concepccedilotildees

poacutes-estruturalistas20

nas anaacutelises de poesia satildeo exatamente as ideias de Roman

Jakobson21

(1896-1982) (e persistem tambeacutem como se poderaacute ver relativamente agrave

traduccedilatildeo poeacutetica)22

Sobre elas leia-se inicialmente um esclarecimento sinteacutetico sobre

poesia do proacuteprio Jakobson expresso no artigo ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Em poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de princiacutepio construtivo

do texto As categorias sintaacuteticas e morfoloacutegicas os fonemas e seus componentes

19 Em seu trabalho sobre os afaacutesicos Jakobson aponta as duas formas para ele existentes de arranjo dos

signos combinaccedilatildeo e seleccedilatildeo esta postulaccedilatildeo seraacute fundamental para a compreensatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem (caracterizada pela projeccedilatildeo do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de combinaccedilatildeo como seraacute visto

adiante) 20 Mais adiante seratildeo mencionados por meio de citaccedilotildees alguns aspectos baacutesicos do denominado ldquopoacutes-

estruturalismordquo 21 Cabe que se incluam em nota como menccedilatildeo geral observaccedilotildees de Michael Peters

[] Roman Jakobson eacute uma figura central no desenvolvimento histoacuterico da linguiacutestica estrutural

Ele foi instrumental no estabelecimento do Formalismo Russo ajudando a fundar tanto o Ciacuterculo Linguiacutestico de Moscou quanto a Sociedade para o Estudo da Linguagem Poeacutetica (OPOJAZ) em

Satildeo Petersburgo antes de se mudar para a Checoslovaacutequia em 1920 para fundar o Ciacuterculo

Linguiacutestico de Praga []Opcit 2000 22 Veja-se por exemplo no livro O que eacute poesia (Rio de Janeiro 2009) a referecircncia presente entre poetas

brasileiros que expressam definiccedilotildees de caraacuteter mais teacutecnico ou que adotam referecircncias diretas a

conceitos de ordem linguiacutestica

22

(traccedilos distintivos) ndash em suma todos os constituintes do coacutedigo verbal ndash satildeo

confrontados justapostos colocados em relaccedilatildeo de contiguidade de acordo com o

princiacutepio de similaridade e de contraste e transmitem assim uma significaccedilatildeo

proacutepria A semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um parentesco semacircntico O

trocadilho ou para empregar um termo mais erudito e mais preciso a

paronomaacutesia reina na arte poeacuteticardquo (1973 72)

Ressalte-se a afirmaccedilatildeo ldquoA semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um

parentesco semacircnticordquo particularmente relevante para indicar a participaccedilatildeo das

relaccedilotildees focircnicas na construccedilatildeo do sentido de um poema entendimento que teremos em

vista na abordagem de certas passagens das traduccedilotildees que satildeo nosso objeto de estudo

Seraacute de interesse prioritaacuterio para este trabalho a formulaccedilatildeo de Jakobson sobre

as ldquofunccedilotildees da linguagemrdquo com base em sistema elaborado pelo linguista e psicoacutelogo

austriacuteaco Karl Buumlhler (1869-1963)23

Este identificou em 1934 a existecircncia de trecircs

dessas funccedilotildees Darstellungsfunktion a funccedilatildeo propriamente comunicativa que informa

sobre o conteuacutedo objetivo factual da realidade extralinguiacutestica Kundgabefunktion

(ldquofunccedilatildeo de exteriorizaccedilatildeordquo ou de ldquoexpressatildeordquo) Appelfunktion (ldquofunccedilatildeo de apelordquo ou

ldquoconativardquo) (Campos 1975 136-137) Para Jakobson seriam seis as funccedilotildees da

linguagem associadas respectivamente a cada um dos elementos que compotildeem o

esquema relativo agrave comunicaccedilatildeo verbal por ele proposto

23 ldquo[Buumlhler] [] participou em 1930 da Conferecircncia Fonoloacutegica Internacional convocada pelo Ciacuterculo de

Praga em 1930 e [] desenvolveu atividades na Universidade de Viena nos anos 30rdquo (Campos 1975

136)

23

Em raacutepida passagem cite-se a apresentaccedilatildeo do primeiro quadro por Diana

Pessoa de Barros

Para Jakobson na esteira dos estudos sobre a informaccedilatildeo haacute na comunicaccedilatildeo um

remetente que envia uma mensagem a um destinataacuterio e essa mensagem para ser

eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere apreensiacutevel pelo

remetente e pelo destinataacuterio um coacutedigo total ou parcialmente comum a ambos e

um contato isto eacute um canal fiacutesico e uma conexatildeo psicoloacutegica entre o remetente e o

destinataacuterio que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicaccedilatildeo (FIORIN

2002 28)

E de modo tambeacutem breve diga-se sobre as funccedilotildees que

1 A Emotiva centrada no remetente funda-se no ldquoeurdquo ou seja na primeira

pessoa do singular sendo-lhe afim a classe gramatical das interjeiccedilotildees uma vez que

ldquovida a suscitar reaccedilotildees de tipo emotivordquo (Campos 1975 137) Sobre esta funccedilatildeo diz

Haroldo de Campos ldquoEacute importante natildeo confundir esta funccedilatildeo com a funccedilatildeo poeacutetica O

Romantismo privilegiando a poesia do EU eacute o grande responsaacutevel por este equiacutevoco

que se perpetua na ideia vulgar que se tem de poesiardquo (1975 138)

2 A Referencial ou Cognitiva eacute aquela fulcrada no referente correspondente agrave

terceira pessoa do singular ldquoA mensagem denota coisas reais ou transmite

conhecimentos de ordem loacutegico-discursiva sobre determinado objeto [] Eacute a funccedilatildeo por

excelecircncia do conviacutevio diaacuteriordquo (CAMPOS 1975 138)

3 A Conativa centrada no destinataacuterio corresponde ao ldquoturdquo a segunda pessoa

do singular a ela se ligam as categorias gramaticais do imperativo e do vocativo ldquoA

mensagem representa uma ordem exortaccedilatildeo ou suacuteplica [] No acircmbito desta mesma

funccedilatildeo se enquadra a funccedilatildeo maacutegica ou encantatoacuteria expressa em foacutermulas optativas

[] como lsquoDeus te guardersquo ou em conjuros []rdquo (ib)

4 A Faacutetica centra-se no contato da comunicaccedilatildeo seu nome proveacutem do grego

phaacutetis (ruiacutedo rumor) As mensagens faacuteticas servem para ldquoestabelecer prolongar ou

interromper a comunicaccedilatildeordquo (p 139) consistindo em expressotildees como ldquoolaacuterdquo ldquoalocircrdquo

ldquoclarordquo ldquocomo vairdquo ldquonatildeo eacuterdquo etc

5 A Metalinguiacutestica centrada no coacutedigo eacute aquela em cujo exerciacutecio a

ldquomensagem se dirige para uma outra mensagem tomada como linguagem-objetordquo []

Os verbetes do dicionaacuterio exprimem tambeacutem esta funccedilatildeordquo (p 140)

24

6 A Poeacutetica eacute aquela funccedilatildeo em que a mensagem se volta sobre si mesma (ib

141) Sobre ela diz o proacuteprio Jakobson (as citaccedilotildees que se seguem ndash na versatildeo ao

portuguecircs dos tradutores jaacute mencionados ndash tornaratildeo o item relativo a esta funccedilatildeo maior

que os demais dada a sua importacircncia para a conceituaccedilatildeo de ldquopoesiardquo)

O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal o enfoque da mensagem por

ela proacutepria eis a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem []

A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo-somente a funccedilatildeo

dominante determinante ao passo que em todas as outras atividades verbais ela

funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (JAKOBSON 1973 127-

128)

[] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funccedilatildeo poeacutetica agrave poesia ou de

confinar a poesia agrave funccedilatildeo poeacutetica seria uma simplificaccedilatildeo excessiva e

enganadora A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo

somente a funccedilatildeo dominante ao passo que em todas as outras atividades

verbais ela funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (128)

[] qual eacute o caracteriacutestico indispensaacutevel inerente a toda obra poeacutetica Para

responder a esta pergunta devemos recordar os dois modos baacutesicos de arranjo

utilizados no comportamento verbal seleccedilatildeo e combinaccedilatildeo [] A seleccedilatildeo eacute feita

em base de equivalecircncia semelhanccedila e dessemelhanccedila sinoniacutemia e antoniacutemia ao

passo que a combinaccedilatildeo a construccedilatildeo da sequecircncia se baseia na contiguidade

(129)

[] A funccedilatildeo poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre

o eixo de combinaccedilatildeo (130) []

Os versos mnemocircnicos citados por Hopkins [] os modernos jungles de

propaganda e as leis medievais versificadas [] ou finalmente os tratados

cientiacuteficos sacircnscritos em verso [] ndash todos esses textos meacutetricos fazem uso da

funccedilatildeo poeacutetica sem contudo atribuir-lhe o papel coercitivo determinante que ela

tem na poesiardquo (131)

Sobre a funccedilatildeo poeacutetica e a poesia eacute importante ressaltar-se o seguinte

comentaacuterio do linguista que menciona a associaccedilatildeo de funccedilotildees nos diferentes gecircneros

poeacuteticos

25

Conforme dissemos o estudo linguiacutestico da funccedilatildeo poeacutetica deve ultrapassar os

limites da poesia e por outro lado o escrutiacutenio linguiacutestico da poesia natildeo se pode

limitar agrave funccedilatildeo poeacutetica As particularidades dos diversos gecircneros poeacuteticos

implicam uma participaccedilatildeo em ordem hieraacuterquica variaacutevel das outras funccedilotildees

verbais a par da funccedilatildeo poeacutetica dominante A poesia eacutepica centrada na terceira

pessoa potildee intensamente em destaque a funccedilatildeo referencial da linguagem a liacuterica

orientada para a primeira pessoa estaacute intimamente vinculada agrave funccedilatildeo emotiva a

poesia da segunda pessoa estaacute imbuiacuteda de funccedilatildeo conativa e eacute ou suacuteplice ou

exortativa dependendo de a primeira pessoa estar subordinada agrave segunda ou esta agrave

primeira (1973 129)

No caso da eacutepica portanto devido a seu teor narrativo prevaleceria aleacutem da

funccedilatildeo poeacutetica ndash comum aos gecircneros ndash a funccedilatildeo cognitiva mas isto natildeo excluiraacute as

demais funccedilotildees (lembre-se por exemplo de momentos de fala em primeira pessoa de

Odisseu)

Acerca das funccedilotildees da linguagem nos diversos gecircneros poeacuteticos diz Haroldo de

Campos

Na poesia o determinante eacute o exerciacutecio da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem aquela

que se volta sobre o lado sensiacutevel palpaacutevel dos signos linguiacutesticos [] Mas o

poeta usa concorrentemente outras funccedilotildees em caraacuteter acessoacuterio A maneira como

ele hierarquiza as funccedilotildees dentro de sua mensagem decide da natureza desta

Assim na poesia claacutessica caracterizada pela eacutepica a funccedilatildeo cognitiva ou

referencial eacute associada preferentemente agrave poeacutetica produzindo-se uma poesia da 3ordf

pessoa impessoal objetiva descritiva (na epopeacuteia haacute a representaccedilatildeo do objeto em

sua objetividade mesma Hegel) Na poesia romacircntica eacute a funccedilatildeo emotiva a

poesia do eu-liacuterico que ganha a palma sobre as remanescentes associando-se agrave

funccedilatildeo poeacutetica (tambeacutem a funccedilatildeo maacutegica eacute enfatizada pelo poeta romacircntico) Surge

assim uma poesia biograacutefico-emocional exortativa suplicatoacuteria encantatoacuteria uma

poesia do soluccedilo em que rebenta o sentimento pessoal na foacutermula de Musset

lembrada por Antocircnio Cacircndido Mas tanto na poesia claacutessica como na poesia

romacircntica se as funccedilotildees acessoacuterias determinantes do motivo primeiro do poetar

em cada uma dessas escolas natildeo forem por seu turno determinadas pela funccedilatildeo

poeacutetica ou configuradora da mensagem a informaccedilatildeo esteacutetica natildeo se realiza o

poema claacutessico ficaraacute entatildeo mero enunciado prosaico de ideias de descriccedilotildees de

informaccedilotildees documentaacuterias uma retoacuterica do pensamento cognitivo e o poema

26

romacircntico natildeo assumiraacute o estado esteacutetico do poema mas permaneceraacute no grito na

laacutegrima na explosatildeo emotiva na retoacuterica do coraccedilatildeo A fraqueza de boa parte do

Romantismo poeacutetico no Brasil e fora dele estaacute nesse dissiacutedio entre a motivaccedilatildeo

emocional e a capacidade de exerciacutecio da funccedilatildeo propriamente poeacutetica

(diagramadora configuradora) por parte de alguns de seus nomes mais conhecidos

[] A grandeza de um Camotildees de outro lado estaacute na sua capacidade de

equacionar na materialidade dos signos atraveacutes de operaccedilotildees de seleccedilatildeo e

combinaccedilatildeo de palavras o seu ideal classicista e no aporte de novidade que sua

poesia traz nesse sentido em relaccedilatildeo ao repertoacuterio da poesia portuguesa precedente

(1975 147-148)

Campos prossegue numa breve anaacutelise exemplo (entre tantos outros que

poderiam ser aqui incluiacutedos) ilustrativo de possibilidades de leitura ndash a partir da noccedilatildeo

de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (e conceitos correlatos) ndash que apontam para o exerciacutecio

a ser feito neste trabalho ao se abordar a eacutepica homeacuterica

Camotildees eacute um soberbo ldquodesignerrdquo da linguagem como se poderaacute ver pela anaacutelise

do exemplo seguinte

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas onde o mar se esconde

Laacute donde as ondas saem furibundas

Quando agraves iras do vento o mar responde

Netuno mora e moram as jocundas

Nereidas e outros deuses do mar onde

As aacuteguas campo deixam agraves cidades

Que habitam estas uacutemidas deidades

(Os Lusiacuteadas C VI n VIII)

Pode-se dizer para limitar nosso exame a este ponto fundamental que o efeito

poeacutetico desta descriccedilatildeo do reino marinho estaacute na habilidade com que o autor

estabelece um encadeamento de som e sentido fazendo com a palavra onda (seja

diretamente seja na sua forma latina unda por associaccedilatildeo etimoloacutegica) engaste-se

ou ressoe em outras palavras fundo profundas jocundas onde esconde donde

responde fonemas de unda podem ser vislumbrados ainda redistribuidamente em

ldquouacutemidasrdquo e ldquoNetunordquo aleacutem disto entre Nereidas e o epiacuteteto que lhes daacute Camotildees ndash

ldquouacutemidas deidadesrdquo haacute uma espeacutecie de apelo cruzado pois os fonemas finais da

27

primeira palavra se repetem no comeccedilo da segunda Toda esta oitava eacute percorrida

pela imagem semacircntica da agitaccedilatildeo das ondas atraveacutes de uma sucessatildeo de

projeccedilotildees focircnicas (Ib 148)

O poeta tradutor e semioticista brasileiro Deacutecio Pignatari estabelece uma

relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo jakobsoniana de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem e o pensamento

do criador da semioacutetica norte-americana contemporacircneo de Saussure o filoacutesofo

cientista e matemaacutetico Charles Sanders Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo eacute inadequada

embora se possa considerar que haja resistecircncia entre os estudiosos da linguiacutestica e da

semioacutetica de relacionarem os dois sistemas de estudo da linguagem (da linguiacutestica de

Saussure dedicada exclusivamente ao signo verbal emerge uma ldquosemiologiardquo mais

geral de reflexatildeo baseada no trabalho de Jakobson emergiria uma ldquosemioacutetica poeacuteticardquo

desenvolvida por A J Greimas e seguidores24

) pois o proacuteprio Jakobson aborda a

semioacutetica peirciana estabelecendo relaccedilotildees com a teorizaccedilatildeo de Saussure em seu

estudo ldquoAgrave procura da essecircncia da linguagemrdquo Citem-se as explicaccedilotildees de Pignatari

(ademais esclarecedoras acerca das proposiccedilotildees de Jakobson) nas quais se estabelece a

referida relaccedilatildeo (no trecho inicial o autor baseia-se no artigo do linguista sobre a

afasia)

Dois satildeo os processos de associaccedilatildeo ou organizaccedilatildeo das coisas por contiguidade

(proximidade) e por similaridade (semelhanccedila) Esses dois processos formam dois

eixos um eacute o eixo de seleccedilatildeo (por similaridade) chamado paradigma ou eixo

paradigmaacutetico o outro eacute o eixo de combinaccedilatildeo (por contiguidade)25

chamado

sintagma ou eixo sintagmaacutetico [] (2005 13)

Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce funccedilatildeo poeacutetica quando o

eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade Quando o paradigma

se projeta sobre o sintagma Em termos da semioacutetica de Peirce podemos dizer que

a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem se marca pela projeccedilatildeo do iacutecone sobre o siacutembolo ndash

ou seja ndash pela projeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc)

sobre o coacutedigo verbal Fazer poesia eacute transformar o siacutembolo (palavra) em iacutecone

24 Veja-se o livro Ensaios de semioacutetica poeacutetica (Satildeo Paulo Cultrix Ed da Univers de S Paulo 1976) Uma breve referecircncia a proposiccedilotildees da semioacutetica greimasiana seraacute feita adiante 25 A respeito de tais conceitos diz Pignatari em Semioacutetica e literatura (referindo-se agrave teoria de Peirce)

ldquoAs sugestotildees associativas satildeo inferecircncias segundo Peirce e as inferecircncias podem ser de dois tipos por

Contiguidade (Contiguity) e por Semelhanccedila (Resemblance) expressotildees cunhadas por David Hume

(1711-76) e que tiveram o mais amplo curso no pensamento moderno como o demonstram os exemplos

da psicologia da gestalt e da linguiacutestica estruturalrdquo (1979 35)

28

(figura) Figura eacute soacute desenho visual Natildeo Os sons de uma tosse e de uma melodia

tambeacutem satildeo figuras sonoras

Em poesia vocecirc observa a projeccedilatildeo de uma analoacutegica sobre a loacutegica da linguagem

a projeccedilatildeo de uma ldquogramaacuteticardquo analoacutegica sobre a gramaacutetica loacutegicardquo (p 17-18)

Para que seja elucidadas as concepccedilotildees de Charles Peirce (que serviratildeo para

referecircncias posteriores de anaacutelise) incluem-se a seguir esquemas e citaccedilotildees que

permitiratildeo do modo mais sinteacutetico possiacutevel uma compreensatildeo ligeira do assunto

Considere-se inicialmente uma das definiccedilotildees de signo propostas pelo ldquopai da

semioacuteticardquo

Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um

objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto) de modo idecircntico transformando-

se o interpretante por sua vez em signo e assim sucessivamente ad infinitum

(1977 74)26

Veja-se acerca do conceito expresso em tal definiccedilatildeo a representaccedilatildeo do

modelo triaacutedico peirciano27

por meio de esquema incluiacutedo por Pignatari em Semioacutetica amp

literatura

E em seguida a apresentaccedilatildeo que faz Pignatari iniciando-se com outra das

definiccedilotildees de signo propostas por Peirce

26 PEIRCE Charles S Semioacutetica Trad Joseacute Teixeira Coelho Neto Satildeo Paulo Perspectiva 1997 27 Sobre o esquema diz Pignatari ldquoJaacute se tornou bem conhecido o diagrama triangular com que C K

Ogden e I A Richards procuraram traduzir a relaccedilatildeo triaacutedica baacutesica de Peirce relativa ao problema do

significado envolvendo os termos de Signo ou Representame Objeto ou Referente Interpretanterdquo

(1979 25)

29

ldquoSigno ou Representame eacute um Primeiro que estaacute em tal genuiacutena relaccedilatildeo com o

Segundo chamado seu Objeto de forma a ser capaz de determinar que um

Terceiro chamado seu Interpretante assuma a mesma relaccedilatildeo triaacutedica (com o

Objeto) que ele signo manteacutem em relaccedilatildeo ao mesmo objetordquo []

Superando a relaccedilatildeo didaacutetica tipo signifiant signifieacute ndash que causa diga-se as

maiores dificuldades ao desenvolvimento de uma semiologia de extraccedilatildeo

saussuriana ndash Pierce cria um terceiro veacutertice chamado Interpretante que eacute o signo

de um signo ou como tentei definir em outra oportunidade um supersigno cujo

Objeto natildeo eacute o mesmo do signo primeiro pois que engloba natildeo somente Objeto e

Signo como a ele proacuteprio num contiacutenuo jogo de espelhos []

Um dos postulados baacutesicos ndash melhor dizendo ndash uma das descobertas fundamentais

de Peirce eacute a de que o significado de um signo eacute sempre outro signo (um dicionaacuterio

eacute o exemplo que ocorre imediatamente) portanto o significado eacute um processo

significante que se desenvolve por relaccedilotildees triaacutedicas ndash e o Interpretante eacute o signo-

resultado contiacutenuo que resulta desse processo

Acerca da classificaccedilatildeo dos signos segundo a semioacutetica norte-americana

observa Lucia Santaella que ldquoPeirce estabeleceu uma rede de classificaccedilotildees sempre

triaacutediacutecas (isto eacute trecircs a trecircs) dos tipos possiacuteveis de signordquo28

Antes que se prossiga no

entanto com excertos de texto de Santaella referentes ao tema leia-se o sinteacutetico e

esclarecedor escrito de Lucreacutecia DacuteAleacutessio Ferrara

Charles Sanders Peirce salienta trecircs tipos de representaccedilatildeo que satildeo de extrema

importacircncia porque apresentam de modo jaacute bem organizado a classificaccedilatildeo do

signo em iacutecone iacutendice e siacutembolo O iacutecone apresenta-se como uma representaccedilatildeo

que se manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo de qualidade o iacutendice

se apresenta como uma representaccedilatildeo que manteacutem com o objeto ao qual se refere

uma correspondecircncia de fato o siacutembolo se apresenta como uma representaccedilatildeo que

manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo imposta (A estrateacutegia os

signos 1981 67)

Seguem-se as colocaccedilotildees de Santaella acerca da tipologia siacutegnica de Peirce

28 SANTAELLA L O que eacute semioacutetica Satildeo Paulo Brasiliense 1983 p 83

30

Tomando como base as relaccedilotildees que se apresentam no signo por exemplo de

acordo com o modo de apreensatildeo do signo em si mesmo ou de acordo com o

modo de apresentaccedilatildeo do objeto imediato ou de acordo com o modo de ser do

objeto dinacircmico etc foram estabelecidas 10 tricotomias isto eacute 10 divisotildees

triaacutedicas do signo de cuja combinatoacuteria resultam 64 classes de signos e a

possibilidade loacutegica de 59049 tipos de signos

[] um exame mais minucioso dessas classificaccedilotildees pode nos habilitar para a

leitura de todo e qualquer processo siacutegnico []

Dentre todas essas tricotomias haacute trecircs as mais gerais agraves quais Peirce dedicou

exploraccedilotildees minuciosas Satildeo as que ficaram mais conhecidas e que tecircm sido mais

divulgadas Tomando-se a relaccedilatildeo do signo consigo mesmo (1ordm) a relaccedilatildeo do signo

com seu objeto dinacircmico (2ordm) e a relaccedilatildeo do signo com seu interpretante (3ordm)

tem-se

[] na relaccedilatildeo do signo consigo mesmo no seu modo de ser aspecto ou aparecircncia

(isto eacute a maneira como aparece) o signo pode ser uma mera qualidade um

existente (sin-signo singular) ou uma lei

Lembremos se algo aparece como pura qualidade este algo eacute primeiro Eacute claro

que uma qualidade natildeo pode aparecer e portanto natildeo pode funcionar como signo

sem estar encarnada em algum objeto Contudo o quali-signo diz respeito tatildeo-soacute e

apenas agrave pura qualidade

[] se o signo aparece como simples qualidade na sua relaccedilatildeo com seu objeto ele

soacute pode ser um iacutecone Isso porque qualidades natildeo representam nada Elas se

apresentam Ora se natildeo representam natildeo podem funcionar como signo Daiacute que o

iacutecone seja sempre um quase-signo algo que se daacute agrave contemplaccedilatildeo []

[] porque natildeo representam efetivamente nada senatildeo formas e sentimentos

(visuais sonoros taacuteteis viscerais) os iacutecones tecircm um alto poder de sugestatildeo []

Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas de criaccedilatildeo na arte e as descobertas

na ciecircncia tecircm a ver com iacutecones examinemos agora as modalidades de hipoiacutecones

31

ou melhor dos signos que representam seus objetos por semelhanccedila Assim uma

imagem eacute um hipoiacutecone porque a qualidade de sua aparecircncia eacute semelhante agrave

qualidade da aparecircncia do objeto que a imagem representa Todas as formas de

desenhos e pinturas figurativas satildeo imagens []

[] o interpretante que o iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera

possibilidade (qualidade ou impressatildeo) ou no maacuteximo no niacutevel do raciociacutenio um

rema isto eacute uma conjectura ou hipoacutetese Daiacute que diante de iacutecones costumamos

dizer ldquoParece uma escadardquo ldquoNatildeo parece uma cachoeirardquo [] e assim por diante

sempre no niacutevel do parecer29

[] Qualquer coisa que se apresente diante de vocecirc como um existente singular

material aqui e agora eacute um sin-signo

Isso em termos amplos e vastos Concretizando poreacutem em termos particulares o

iacutendice como seu proacuteprio nome diz eacute um signo que como tal funciona porque

indica uma outra coisa com a qual ele estaacute atualmente ligado Haacute entre ambos

uma conexatildeo de fato Assim o girassol eacute um iacutendice isto eacute aponta para o lugar do

sol no ceacuteu []

Rastros pegadas resiacuteduos remanecircncias satildeo todos iacutendices de alguma coisa que por

laacute passou deixando suas marcas []

Quanto agraves triacuteades ao niacutevel de terceiridade elas comparecem quando em si mesmo

o signo eacute de lei (legi-signo) Sendo uma lei em relaccedilatildeo ao seu objeto o signo eacute um

siacutembolo Isto porque ele natildeo representa seu objeto em virtude do caraacuteter de sua

qualidade (hipoiacutecone) nem por manter em relaccedilatildeo ao seu objeto uma conexatildeo de

fato (iacutendice) mas extrai seu poder de representaccedilatildeo porque eacute portador de uma lei

que por convenccedilatildeo ou pacto coletivo determina que aquele signo represente seu

objeto []

[Os siacutembolos satildeo] signos triaacutedicos genuiacutenos pois produziratildeo como interpretante

um outro tipo geral ou interpretante em si que para ser interpretado exigiraacute um

outro signo e assim ad infinitum Siacutembolos crescem e se disseminam mas eles

trazem embutidos em si caracteres icocircnicos e indiciais30

(1983 83-94)

29 Haacute algo importante a se observar ligado agraves conceituaccedilotildees apresentadas por vezes as anaacutelises de fragmentos da eacutepica homeacuterica realizadas neste trabalho enfrentaratildeo o limite da incomensurabilidade da

inviabilidade de avaliaccedilatildeo objetiva exatamente porque lidando-se com o plano esteacutetico ndash no acircmbito

portanto da iconicidade ndash muito do que se poderaacute dizer a respeito do objeto estudado seraacute apenas

impressatildeo percepccedilatildeo diante do sugerido 30 Estas observaccedilotildees finais do trecho satildeo especialmente relevantes para este trabalho a oacuteptica da

semioacutetica peirceana prevecirc a existecircncia ldquomaterialrdquo do signo que ainda que verbal convencionado traz em

32

Mencionem-se as dez classes de signo31

formuladas por Peirce assim

relacionadas por Santaella em A teoria geral dos signos (2000) com base em C

Hardwick32

I Quali-signo icocircnico remaacutetico Por exemplo um sentimento de

vermelhidatildeo

II Sin-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama individual

III Sin-signo indicativo remaacutetico Um grito espontacircneo

IV Sin-signo indicativo dicente Um catavento

V Legi-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama abstraindo-se sua

individualidade

VI Legi-signo indicativo remaacutetico Um pronome demonstrativo

VII Legi-signo indicativo dicente Um pregatildeo de rua

VIII Legi-signo simboacutelico remaacutetico Um substantivo comum

IX Legi-signo simboacutelico dicente Uma proposiccedilatildeo

X Legi-signo simboacutelico argumental Um soligismo

Eacute possiacutevel fazer-se tambeacutem uma relaccedilatildeo aparentemente imprevista entre

funccedilatildeo poeacutetica ldquoiconicidade verbalrdquo e o pensamento de um ldquooutro Saussurerdquo aquele

que se dedicou intensamente a identificar principalmente em versos latinos

ldquosaturninosrdquo a presenccedila de anagramas descobertos de certo modo como uma

determinaccedilatildeo interna ao signo arbitraacuterio arranjo simultacircneo natildeo-linear de fonemas o

pesquisador e anotador incansaacutevel dos cadernos deixados de lado ateacute a iniciativa de seu

disciacutepulo Jean Starobinski de apresentaacute-los e publicaacute-los O conceito que emerge dessas

anotaccedilotildees permite uma visatildeo da poeticidade ou da linguagem poeacutetica por um caminho

proacuteprio que pode ser considerado anaacutelogo e complementar agraves duas visotildees jaacute

relacionadas

Jakobson assim se refere ao trabalho de Saussure em entrevista concedida em

1966 ldquoquando indagado sobre a unidade da linguiacutestica e da poeacuteticardquo

si a presenccedila icocircnica ou indicial Com base nesta concepccedilatildeo podem ser feitas anaacutelises identificadoras da

iconicidade e da indicialidade manifestas nos textos poeacuteticos estudados 31 A identificaccedilatildeo das classes serviraacute de subsiacutedio para algum apontamento integrante deste estudo 32 HARDWICK C Semiotics and significs Bloomington Indiana University Press 1977 p 161

33

Uma tal unidade pode jaacute pode ser extraiacuteda dos ensinamentos de Saussure Veja os

seus ldquoAnnagrammesrdquo Acabo justamente de examinar os seus manuscritos em

Genebra graccedilas a Starobinski Trata-se sua obra mais genial que chegou a assustar

ateacute mesmo seus disciacutepulos Daiacute a tentativa destes uacuteltimos de manter essa parte da

obra saussuriana em segredo tanto tempo quanto possiacutevel Saussure todavia em

carta a Meillet dizia considerar esse trabalho como sendo sua obra-prima

(CAMPOS H 1976 106-107)33

Sobre o propoacutesito de Saussure diz Haroldo de Campos

O anagrama propriamente dito noacutes o sabemos lida com as letras os sinais

graacuteficos os diacutegitos do alfabeto foneacutetico [] Assim EVA eacute anagrama de AVE

ROMA de AMOR e reciprocamente

Saussure poreacutem interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos

fonemas pelo anagrama enquanto ldquofigura focircnicardquo como diria Jakobson

constituiacutedo pela repeticcedilatildeo de certos sons cuja combinaccedilatildeo imitaria uma dada

palavra []

As observaccedilotildees de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino

caracterizado pela aliteraccedilatildeo Ao cabo do exame que empreendeu a praacutetica

aliterativa pareceu-lhe neste verso a manifestaccedilatildeo particular e menos significativa

de determinadas leis focircnicas cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na

afonia Assim no exemplo

Taurasia Cisauna samnio cepit

Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipiatildeo) convocando para esta reconstruccedilatildeo

fonoloacutegica as siacutelabas Ci (de Cisauna) pi (de cepit) e io (de Samnio) aleacutem de

vislumbrar uma outra repeticcedilatildeo quase-perfeita do mesmo nome-tema em

fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra

os quatro primeiros fonemas da segunda) [] (A operaccedilatildeo do texto 1976 107)

O ponto nodal das reflexotildees de Saussure sobre os fenocircmenos anagramaacuteticos estaacute

justamente naquilo em que elas tocam a questatildeo da lienaridade da liacutengua []

Como eacute sabido um dos postulados fundamentais da linguiacutestica saussuriana eacute o da

linearidade do significante do signo linguiacutestico [] Jakobson contestou a validade

33 CAMPOS H de A operaccedilatildeo do texto Satildeo Paulo Perspectiva 1976

34

desta assertiva invocando para infirmaacute-la o caraacuteter natildeo-linear mas simultacircneo

dos traccedilos distintivos que constituem o fonema (Ib 110)

Repeticcedilatildeo aliada agrave simultaneidade talvez seja esta (ressalte-se como referencial

proposto) a resposta mais evidente agrave necessidade de se identificar uma condiccedilatildeo de

leitura dada pela reincidecircncia que permita a identificaccedilatildeo do que caracterizaria ateacute

onde a generalizaccedilatildeo pudesse propiciar a linguagem poeacutetica Neste sentido um fator

miacutenimo ndash e muacuteltiplo ndash comum (formado pelos dois fatores associados ou seja pela

possibilidade de se ldquolerrdquo ou perceber uma unidade por meio de elementos que se

juntam pela repeticcedilatildeo) serviraacute de base a uma aproximaccedilatildeo dos objetos escolhidos para

este trabalho

Retornando ao empenho do pesquisador genebrino citem-se comentaacuterios

relevantes de Jakobson sobre ele no artigo ldquoA primeira carta de Ferdinand de Saussure

a A Meillet sobre os Anagramasrdquo (em traduccedilatildeo de Joatildeo Alexandre Barbosa)

Eacute muito surpreendente que os noventa e nove cadernos manuscritos de Saussure

consagrados agrave ldquopoeacutetica fonizanterdquo e em particular ao ldquoprinciacutepio do anagramardquo

tenham podido permanecer ocultados aos leitores por mais de meio seacuteculo ateacute que

Jean Starobinski tivera a feliz ideia de publicar vaacuterias amostras cuidadosamente

escolhidas e comentadas (1990 9)34

[]

A anaacutelise linguiacutestica dos versos latinos gregos veacutedicos e germacircnicos esboccedilada

por Saussure eacute sem nenhuma duacutevida salutar natildeo somente para a poeacutetica mas

tambeacutem segundo a expressatildeo do autor ldquopara a proacutepria linguiacutesticardquo ldquoA genialidade

da intuiccedilatildeordquo do pesquisador potildee agrave luz a natureza essencial e eacute preciso acrescentar

universalmente polifocircnica e polissecircmica da linguagem poeacutetica e desafia como

Meillet bem observou a concepccedilatildeo corrente ldquode uma arte racionalistardquo em outras

palavras a ideia oca e importuna de uma poesia infalivelmente racional (p 12)

Talvez a atitude de disciacutepulos do linguista de ocultarem seu trabalho sobre

anagramas natildeo seja surpreendente o proacuteprio Saussure manifestava duacutevidas acerca da

pertinecircncia de sua pesquisa e da proacutepria existecircncia real de seu objeto de estudo como

34 JAKOBSON Roman Poeacutetica em accedilatildeo Seleccedilatildeo prefaacutecio e org de Joatildeo Alexandre Barbosa Satildeo

Paulo Perspectiva Ed da Univers de S Paulo 1990

35

revela a carta referida no tiacutetulo do artigo de Jakobson a primeira das por ele enviadas ao

linguista francecircs Paul Jules Antoine Meillet (1866-1936)

Poderia o senhor por amizade fazer-me o favor de ler as notas sobre o annagrame

dans les poegravemes homeacuteriques que reuni entre outros estudos no decorrer das

pesquisas sobre o verso saturnino e a respeito dos quais eu o consulto

confidencialmente porque eacute quase impossiacutevel agravequele que teve a ideia saber se eacute

viacutetima de uma ilusatildeo ou se alguma coisa de verdadeiro estaacute na base de sua ideia

ou se a verdade existe apenas parcialmente (1990 4)

A duacutevida de Saussure quanto agrave existecircncia dos anagramas que distinguia eacute para

este toacutepico do presente estudo de particular importacircncia primeiro porque reflete a

questatildeo da existecircncia de caracteriacutesticas inerentes agrave linguagem poeacutetica segundo porque

evidencia os limites incertos entre o que seria de fato integrante de um texto e o que

seria originado pela proacutepria leitura terceiro porque a questatildeo da ldquoveracidaderdquo das

descobertas esbarra no questionamento da intencionalidade do produtor do texto assim

como da do leitor intencionalidade esta que poderaacute depender da postura teoacuterica dos

objetivos e do repertoacuterio de quem exerce a leitura Estes aspectos seratildeo aqui discutidos

com base na contraposiccedilatildeo entre as oacutepticas estruturalista e poacutes-estruturalista

desconstrucionista35

(Neste ponto da exposiccedilatildeo cabe referir-me a um texto meu que acredito poderaacute

cumprir um papel de informaccedilatildeo (ou de expressatildeo) adicional ao que tem sido exposto36

e por isso encontra-se anexo a este trabalho Trata-se de um texto ficcional sobre o

Saussure dos anagramas (e sobre os anagramas de Saussure) ilustrativo do trabalho do

linguista e de seu contexto (e auto-referido pela inserccedilatildeo de anagramas desvendaacuteveis

conscientes ou inconscientes para o autor) o conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo que

apresenta uma imaginada situaccedilatildeo referente agrave derradeira tentativa do pesquisador em

35 Os focos teoacutericos escolhidos para discussatildeo integram possiacuteveis categorias em que se podem agrupar as

teorias sobre traduccedilatildeo Na classificaccedilatildeo de Anthony Pym (2011) ndash que seraacute abordada em outro toacutepico ndash

teorias advindas do estruturalismo baseado em Saussure como as de Catford e Nida (que creem na possibilidade de ldquotransporterdquo dos significados de uma liacutengua a outra e de equivalecircncia de sentido entre

palavras de liacutenguas diversas) satildeo enquadradas na categoria de ldquoTeorias da equivalecircnciardquo enquanto que a

teorizaccedilatildeo estruturalista de Jakobson integra a categoria ldquoTeorias descritivistasrdquo o desconstrucionismo

por sua vez pertence agrave categoria de ldquoteorias indeterministasrdquo 36 O conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo estaacute publicado na revista eletrocircnica Zunaacutei (wwwrevistazunaicom)

consultado em 24112011

36

obter confirmaccedilatildeo quanto agrave pertinecircncia de sua pesquisa suscitando reflexotildees sobre o

existente e o imaginado desejaacuteveis aos objetivos gerais deste estudo)

Mas retornemos agrave discussatildeo sobre linguagem poeacutetica por meio de postulaccedilotildees a

serem consideradas complementarmente Entre as inuacutemeras reflexotildees baseadas nas

proposiccedilotildees de ordem estrutural sobre poesia ndash cuja amplitude e diversidade

ultrapassariam em muito os limites deste estudo ndash escolho algumas que particularmente

satildeo de interesse por adicionarem alguns aspectos apontados sobre a especificidade da

linguagem poeacutetica visando agrave disponibilizaccedilatildeo de referecircncias internas ao trabalho

Apresentemos inicialmente neste toacutepico complementar a visatildeo expressa em

hipoacutetese do linguista Jean Cohen37

sobre a caracterizaccedilatildeo da poesia

[] O fato inicial em que se basearaacute nossa anaacutelise eacute que o poeta natildeo fala como

todo mundo Sua linguagem eacute anormal e tal anormalidade confere-lhe um estilo A

poeacutetica eacute a ciecircncia do estilo poeacutetico (1978 16)

admitimos pelo menos a tiacutetulo de hipoacutetese de trabalho a existecircncia na linguagem

de todos os poetas de uma invariante que permanece atraveacutes das variaccedilotildees

individuais ou seja uma maneira idecircntica de desviar da norma uma regra

imanente ao proacuteprio desvio (ib)

O verso natildeo eacute simplesmente diferente da prosa Opotildee-se a ela natildeo eacute natildeo-prosa

mas antiprosa [] (p 80)

Como a prosa a poesia compotildee um discurso isto eacute alinha seacuteries de termos

foneticamente diferentes Todavia na linha das diferenccedilas semacircnticas o verso

adapta toda uma seacuterie de semelhanccedilas focircnicas eacute como tal que ele eacute verso (p 81)

[] temos o direito de concluir que a redundacircncia eacute um processo que caracteriza

como tal a linguagem poeacutetica (p 121)

[] A diferenccedila entre prosa e poesia eacute de natureza linguiacutestica38

vale dizer formal

Natildeo se acha nem na substacircncia sonora nem na substacircncia ideoloacutegica mas no tipo

particular de relaccedilotildees que o poema institui entre o significante e o significado de

um lado e os significados entre si de outro

37 Os excertos de textos do autor satildeo colhidos de Estrutura da linguagem poeacutetica (Struture du langage poeacutetique) publicado originalmente em 1966 e de A plenitude da linguagem ndash teoria da poeticidade (Le

haut langage ndash theorie de la poeticite) publicado originalmente em 1979 38 Explicitamente (de modo anaacutelogo agraves demais procuras e definiccedilotildees estruturalistas) o autor atribui

caracteriacutesticas e diferenccedilas da poesia agrave proacutepria linguagem a contraposiccedilatildeo desta oacuteptica com a concepccedilatildeo

poacutes-estruturalista (que atribui agrave leitura o papel preponderante na identificaccedilatildeo dos ldquogecircnerosrdquo) seraacute

novamente discutida adiante

37

[] Esse tipo particular de relaccedilotildees caracteriza-se pela sua negatividade jaacute que

cada um dos processos ou ldquofigurasrdquo que constituem a linguagem poeacutetica em sua

especificidade eacute uma maneira diferente segundo os niacuteveis de violar o coacutedigo da

linguagem normal39

(1978 161)

[] A funccedilatildeo da prosa eacute denotativa a funccedilatildeo da poesia eacute conotativa A teoria

conotativa da linguagem poeacutetica natildeo eacute nova [] Valeacutery jaacute distinguia ldquodois efeitos

de expressatildeo pela linguagem transmitir um fato ndash produzir uma emoccedilatildeo A poesia

eacute um compromisso ou certa proporccedilatildeo destas duas funccedilotildeesrdquo (p 165)

Em A plenitude da linguagem Cohen comeccedila por afirmar a existecircncia da poesia

como objeto de estudo de uma ciecircncia e como tal deveraacute apresentar invariantes que a

definam (conforme jaacute anunciara em sua obra anterior)

A poesia eacute uma segunda potecircncia da linguagem um poder de magia e de

encantamento cujos segredos a poeacutetica tem por objetivo descobrir []

O primeiro postulado da presente pesquisa eacute o postulado da existecircncia de seu

objeto Se a palavra ldquopoesiardquo tem um sentido [] eacute necessaacuterio que em todos os

objetos designados por esta palavra exista alguma coisa de idecircntico uma ou

algumas invariantes subjacentes que transcendam a variedade infinita dos textos

individuais [] Pode-se dar um nome a essa variacircncia Platatildeo dizia que o belo eacute

ldquoaquilo por que satildeo belas todas as coisas belasrdquo [Hiacutepias maior] Definiccedilatildeo que soacute eacute

tautoloacutegica na aparecircncia pois postulando uma essecircncia comum a todos os objetos

belos faz escapar a beleza ao relativismo e fornece um objeto especiacutefico agrave esteacutetica

como ciecircncia [] (1987 7)

O autor prossegue propondo (em continuidade ao que propusera em seu estudo

anteriormente publicado) uma anaacutelise que em vez de considerar a poesia como algo

mais do que a prosa a considere um ldquoanticoacutedigordquo (de passagem critica a teoria de

Jakobson e a teoria dos anagramas de Saussure40

)

39 Embora o autor utilize uma terminologia em parte diferenciada relativa a aspectos definidos ao longo

de seu amplo estudo Estrutura da linguagem poeacutetica pode-se compreender esta siacutentese por seu sentido

geral 40 Sobre a primeira diz Cohen ldquoo princiacutepio de lsquoprojeccedilatildeo do eixo das equivalecircncias no eixo das

combinaccedilotildees lsquogeneraliza aos trecircs niacuteveis da linguagem as recorrecircncias formais que a versificaccedilatildeo reserva

em exclusivo ao niacutevel sonoro O que podemos chamar sentido natildeo eacute em princiacutepio afetado pela adiccedilatildeo

das regras de equivalecircncia e permanece parafraseaacutevel em prosardquo [O autor parece desconsiderar que

Jakobson prevecirc uma associaccedilatildeo entre som e sentido (relativo ao plano semacircntico) que comporia como se

pode deduzir um ldquosentidordquo mais amplo integrado] Sobre a segunda afirma ldquoA perspectiva

38

O conjunto das teorias poeacuteticas conhecidas ateacute aqui assenta num postulado comum

[] convergem para aceitar como traccedilo pertinente da diferenccedila poesianatildeo poesia

(ou prosa) um caraacuteter propriamente quantitativo A poesia natildeo eacute coisa diferente da

prosa ela eacute mais [] (p 10)

Ao inveacutes das teorias precedentes [a anaacutelise proposta] constitui a linguagem poeacutetica

natildeo como hipercoacutedigo mas como anticoacutedigo [] (p 14)41

Para destacar uma proposiccedilatildeo que particularmente interessaraacute a este estudo

mencione-se que no texto ldquoPoesia e redundacircnciardquo integrante da obra O discurso da

poesia42

Cohen reafirma com novo alcance o conceito expresso em frase jaacute aqui

transcrita

A redundacircncia eacute a lei constitutiva do discurso poeacutetico (1982 17)

No livro mencionado acrescente-se o autor ndash que sustenta que a ldquocoerecircncia [nos

poemas] eacute obtida no niacutevel da sinoniacutemia pateacuteticardquo distingue a existecircncia em poesia de

trecircs espeacutecies de redundacircncia do signo (repeticcedilatildeo de palavra a estrofe) do significante

(total ndash homoniacutemia ou parcial ndash rimas etc) e do significado (total ndash sinoniacutemia ou

parcial ndash pleonasmo) (pp 54-57)

Passemos a apresentar aspectos da proposiccedilatildeo do linguista Samuel R Levin por

meio da citaccedilatildeo de postulaccedilotildees suas

Vaacuterias satildeo as teacutecnicas empregadas em criacutetica literaacuteria mas um dos resultados a que

todas chegam parece ser o de evidenciar que em oposiccedilatildeo agrave prosa a poesia se

distingue por uma singular unidade de estrutura []

A anaacutelise revela certas estruturas que satildeo peculiares agrave linguagem da poesia [] A

tais estruturas chamamos ACOPLAMENTOS (couplings) [] o conceito de

acoplamento alcanccedila explicar uma experiecircncia generalizada a saber a de que a

contemporacircnea herdada da teoria dos anagramas de Saussure [] natildeo vecirc na poesia mais que um traccedilo

suplementar Se num texto em que se trata de Cipiatildeo se deve (re)constituir o nome lsquoCipiatildeorsquo disperso na

cadeia sintagmaacutetica teremos aiacute um signo adicional que faz do texto [] qualquer coisa lsquomaisrsquordquo (1979 12-13) 41 As citaccedilotildees servem para exemplificar o esforccedilo na concepccedilatildeo estruturalista de identificaccedilatildeo de

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave linguagem poeacutetica e em primeira e uacuteltima anaacutelise a afirmaccedilatildeo da existecircncia

da poesia 42 COHEN Jean ldquoPoesia e redundacircnciardquo In O discurso da poesia Coimbra [Poeacutetique 28] Almedina

1982

39

poesia tende a permanecer na memoacuteria do leitor Possui ela uma qualidade

duradoura [] (1975 13-14)

Um poema combina no eixo sintagmaacutetico elementos que na base de suas

equivalecircncias naturais constituem classes ou paradigmas de equivalecircncia []

Ademais a exploraccedilatildeo dessas equivalecircncias que podem derivar de traccedilos focircnicos

eou semacircnticos natildeo eacute fortuita mas processa-se sistematicamente num poema Tal

exploraccedilatildeo sistemaacutetica assume a forma de colocaccedilatildeo de elementos linguiacutesticos

naturalmente equivalentes em posiccedilotildees equivalentes ou para dizecirc-lo de outro

modo de uso de posiccedilotildees equivalentes como engastes para elementos focircnicos eou

semacircnticos equivalentes (pp 51-52)

Neste ponto da apresentaccedilatildeo de uma questatildeo primeira para os objetivos de nosso

estudo cabe observar a possibilidade (simplificadora) de identificaccedilatildeo de um fator

comum agraves principais teorias mencionadas seja pela associaccedilatildeo de signos por

semelhanccedila seja pela detecccedilatildeo de anagramas subjacentes conforme regras de reiteraccedilatildeo

seja pela visatildeo de unidade a partir de redundacircncias isto eacute pela identificaccedilatildeo de

elementos em posiccedilotildees equivalentes haacute inerentemente agraves configuraccedilotildees vislumbradas

a ocorrecircncia de repeticcedilatildeo De modos diversos e em diferentes planos da linguagem a

reincidecircncia de elementos permite que se perceba a repeticcedilatildeo ainda que esta seja

aproximativa isto eacute guarde algum niacutevel de variaccedilatildeo (que natildeo impeccedila o seu

reconhecimento) e dependa de certo grau interpretativo Em um de seus textos

referenciais sobre poesia do qual transcrevemos a seguir alguns excertos Jakobson

afirma a importacircncia da repeticcedilatildeo nos versos antes de expressar ndash com base na lapidar e

famosa frase de Paul Valeacutery (Le poegraveme mdash cette hesitation prolongeacutee entre le son et le

sens)43

ndash sua visatildeo relativa agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo

A poesia eacute um facto inelutaacutevel Dizem os antropoacutelogos que natildeo haacute um soacute grupo

eacutetnico desprovido de poesia mesmo na sociedades denominadas primitivas

Trata-se pois dum fenocircmeno universal exactamente como a linguagem em certos

grupos eacutetnicos apenas existe a par da linguagem quotidiana a linguagem poeacutetica

desconhecem-se poreacutem sociedades em que aleacutem da linguagem corrente se

cultive exclusivamente a prosa artiacutestica [] Note-se por outro lado que em certas

43 VALEacuteRY Paul Varieacuteteacute II Œuvres II (1941) Paris Gallimard col Bibliothegraveque de la Pleiade 1960

p 636

40

sociedades soacute existe poesia sob a forma de poesia cantada eacute o sincretismo

primitivo da palavra poeacutetica e da muacutesica Mais em certas tribos que natildeo possuem

muacutesica instrumental opotildeem-se o conjunto poesia-muacutesica dum lado e a linguagem

corrente do outro Nas tribos que possuem muacutesica vocal e muacutesica instrumental

observa-se por via de regra uma estreita ligaccedilatildeo entre a muacutesica instrumental e a

danccedila Logo dois sincretismos muacutesica instrumental-danccedila e muacutesica vocal-poesia

[] Como se sabe a palavra poesia que eacute de origem grega prende-se a um verbo

que significa criar e na verdade a poesia natildeo sendo o uacutenico aspecto criador eacute o

domiacutenio mais criador da linguagem[] versus quer dizer ldquoretorno um discurso

que comporta regressos ndash e penso ser este um fenocircmeno fundamental [] no verso

a repeticcedilatildeo desempenha um papel de que estamos conscientes Projeta-se na

linguagem poeacutetica o princiacutepio da equivalecircncia na sequecircncia as siacutelabas Os acentos

tornam-se unidades equivalentes Donde vem a importacircncia da repeticcedilatildeo Cumpre

natildeo esquecer que as frases satildeo feitas de palavras e grupos de palavras e se por

assim dizer ldquovivemos a repeticcedilatildeo das silabas dos acentos das entoaccedilotildees as

palavras que se correspondem pela sua posiccedilatildeo avaliamo-las subconscientemente

do ponto de vista de sua equivalecircncia []

A questatildeo fundamental reside em poesia nas relaccedilotildees entre som e sentido []

Fala-se de estruturas ritmicas fala-se de aliteraccedilatildeo ou de rima satildeo sem duacutevida

realidades mas natildeo se trata soacute de muacutesica estaacute sempre em jogo a relaccedilatildeo entre som

e sentido [] (JAKOBSON R ldquoO que fazem os poetas com as palavrasrdquo revista

Coloacutequio Letras nordm 12 Marccedilo de 1973 5-9)

Uma das consequecircncias previsiacuteveis da repeticcedilatildeo eacute a criaccedilatildeo de expectativas que

podem incluir a proacutepria expectativa de coerecircncia ou unidade capaz de influir na

apreensatildeo do objeto de linguagem favorecendo por exemplo a memorizaccedilatildeo Mas a

expectativa de repeticcedilatildeo eacute a prerrogativa do ritmo como diz Dubois

Ritmo e expectativa estatildeo sempre ligados Eacute a repeticcedilatildeo regular isoacutecrona de um

evento que estabelecendo forte correlaccedilatildeo leva agrave percepccedilatildeo do ritmo cria a

previsibilidade e provoca a expectativa [] a experiecircncia demonstra que as

condiccedilotildees de percepccedilatildeo do ritmo correspondem a regras flutuantes [] O

isocronismo antes de tudo pode ser muito aproximativo satildeo necessaacuterios

intervalos [] que variem do simples ao duplo para destruir a percepccedilatildeo do ritmo

[] (DUBOIS Jacques et al Retoacuterica da poesia 1980 134)rlm

41

Assim sendo natildeo seraacute despropositada a opiniatildeo ateacute certo ponto generalizada

entre poetas e estudiosos de arte poeacutetica de que a poesia envolve sempre ritmo tambeacutem

natildeo o seraacute a visatildeo de alguns de que a poesia nasceria da percepccedilatildeo dele em diferentes

niacuteveis em que se possa denominar ritmo a associaccedilatildeo de elementos reincidentes44

Para prosseguir com a menccedilatildeo de esforccedilos para a caracterizaccedilatildeo da linguagem

poeacutetica cite-se no acircmbito sinteacutetico de nosso estudo que o contato com referecircncias

importantes natildeo tocadas aqui podem ser obtidas por meio do trabalho do teoacuterico

brasileiro da traduccedilatildeo Maacuterio Laranjeira45

Apoacutes apresentar em seu estudo proposiccedilotildees

estruturalistas e gerativistas46

o referido autor observa o que considera serem limitaccedilotildees

proacuteprias de tais ldquogramaacuteticasrdquo (cujos recursos natildeo bastariam para caracterizar o texto

como poema) propotildee logo a utilizaccedilatildeo do conceito de ldquoautotelicidaderdquo (funccedilatildeo interior

ao texto este se portador dessa funccedilatildeo natildeo teria objetivos externos a si mesmo) com

base em J M Adam (Pour lire le poegraveme) Apoacutes considerar que a contribuiccedilatildeo da

linguiacutestica eacute ldquoincontestavelmente preciosa e insubstituiacutevelrdquo afirma ser ela ldquonecessaacuteria

mas natildeo suficienterdquo Para ele a ldquoPoeacutetica transcende os estritos limites da linguiacutesticardquo e

para ldquocobrir pelo menos parcialmente essa lacunardquo opta por lanccedilar matildeo

principalmente da semanaacutelise desenvolvida pela filoacutesofa semioticista e criacutetica buacutelgaro-

francesa Julia Kristeva (1941) Apoiando-se em conceitos como o de significacircncia

(ldquoComo o poema sempre nos diz uma coisa e significa outra a sua marca identificadora

estaacute nessa maneira obliacutequa de gerar o seu proacuteprio sentidordquo ldquoa essa lsquounidade formal e

semacircntica que conteacutem todos os sinais de obliquidadersquo Riffaterre chama significacircnciardquo)

Laranjeira encaminha sua importante contribuiccedilatildeo para o entendimento da traduccedilatildeo

poeacutetica como sendo uma tarefa que deve considerar a ldquounidade de significacircnciardquo ldquoa

unidade de significacircncia eacute o texto inteirordquo ldquo[] se eacute o poema todo que constitui a

unidade de significacircncia tambeacutem seraacute o poema todo a unidade da traduccedilatildeo poeacuteticardquo

Este ponto de vista diga-se de passagem relaciona-se com a conclusatildeo desde cedo

manifesta por Haroldo de Campos com base no conceito de informaccedilatildeo esteacutetica de

44 Para o poeta e tradutor brasileiro Guilherme de Almeida ldquoDo paralelismo da ideia com a expressatildeo ndash

brotadas a um mesmo tempo de um mesmo ritmo ndash vem esse misteacuterio do verso puro Ideia expressatildeo e

ritmo satildeo necessariamente inseparaacuteveisrdquo Almeida Guilherme de Ritmo elemento de expressatildeo (tese de

concurso) Satildeo Paulo 1926 45 LARANJEIRA Maacuterio Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp Fapesp 2003 46 Natildeo consideradas neste trabalho devido ao recorte escolhido tendo-se em conta os propoacutesitos e

encaminhamento das proposiccedilotildees que o integraratildeo (ldquoGerativismo teoria linguiacutestica desenvolvida por

Noam Chomsky (1928-) desde 1957 que representa a capacidade linguiacutestica humana por meio de um

sistema formalizado de regras de aplicaccedilatildeo mecacircnica (gramaacutetica gerativa) baseadas em princiacutepios de

caraacuteter universalrdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001)

42

Max Bense Mas natildeo se deve ainda iniciar a discussatildeo relativa agrave traduccedilatildeo poeacutetica

propriamente dita reservada para outro capiacutetulo deste trabalho Comente-se no entanto

em relaccedilatildeo agraves consideraccedilotildees de Laranjeira que embora sejam relevantes as referidas

fundamentaccedilotildees sobre as quais constroacutei o proacuteprio pensamento natildeo nos deteremos nelas

por considerarmos que as postulaccedilotildees aqui adotadas como suporte agrave discussatildeo sejam

suficientes e as mais adequadas aos objetivos imediatos relativos agrave afirmaccedilatildeo da

existecircncia da linguagem poeacutetica (e portanto da proacutepria poesia) para contraposiccedilatildeo agrave

visatildeo desconstrucionista que abordaremos adiante assim como aos objetivos gerais de

apreciaccedilatildeo das traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica como paracircmetros de diferentes condutas de

recriaccedilatildeo textual

Resta-nos ainda incluir referecircncia ao jaacute mencionado instrumental propiciado

pela semioacutetica poeacutetica desenvolvida por Greimas e colaboradores Para tanto dadas as

delimitaccedilotildees deste estudo contarei com elementos de percuciente artigo de J L Fiorin

(2003)47

que traz proposiccedilatildeo para superar o que ele considera ser insuficiente na

semioacutetica greimasiana para a anaacutelise de textos poeacuteticos seu artigo que eacute esclarecedor

sobre os proacuteprios conceitos e propoacutesitos dessa semioacutetica interessa-nos pela abordagem

analiacutetica apresentada Devido agrave siacutentese que nos propicia seraacute uma oportunidade para se

elucidar um modo de ver questotildees baacutesicas da linguagem poeacutetica e por isso ocasionaraacute

alguma breve reflexatildeo de minha parte Um parecircntese inicial a anaacutelise realizada penso

parte de um pressuposto como as demais possibilidades que temos visto de que o texto

apresenta caracteriacutesticas que o distinguem em relaccedilatildeo a outro que a ele se contrapotildee

sendo um ldquotexto com funccedilatildeo esteacuteticardquo (caso da poesia) seu oposto seraacute um ldquotexto com

funccedilatildeo utilitaacuteriardquo O que torna distinto o texto poeacutetico eacute o objeto de partida de toda

anaacutelise mesmo quando as caracteriacutesticas que o distinguem satildeo atribuiacutedas agrave leitura e natildeo

agrave dimensatildeo intratextual (como se buscaraacute discutir adiante) Mas uma questatildeo como essa

natildeo faria parte de uma abordagem como a do referido texto cujo pressuposto da

existecircncia de caracteriacutesticas distintivas da poesia satildeo a base de sua execuccedilatildeo

Na parte inicial do artigo conceituam-se os dois tipos de texto mencionados

47 FIORIN Joseacute Luiz ldquoTrecircs questotildees sobre a relaccedilatildeo entre expressatildeo e conteuacutedordquo In Revista Itineraacuterios

no especial pp 77-89 Araraquara Unesp Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios 2003

43

Do ponto de vista da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e expressatildeo haacute dois tipos de texto

aqueles que tecircm funccedilatildeo utilitaacuteria (informar convencer explicar documentar etc)

e os que tecircm funccedilatildeo esteacutetica Se algueacutem ouve ou lecirc um texto com funccedilatildeo utilitaacuteria

natildeo se importa com o plano de expressatildeo Ao contraacuterio atravessa-o e vai

diretamente ao conteuacutedo para entender a informaccedilatildeo No texto com funccedilatildeo

esteacutetica a expressatildeo ganha relevacircncia pois o escritor procura natildeo apenas dizer o

mundo mas recriaacute-lo nas palavras de tal sorte que importa natildeo apenas o que se

diz mas o modo como se diz Como o poeta recria o conteuacutedo na expressatildeo a

articulaccedilatildeo entre os dois planos contribui para a significaccedilatildeo global do texto A

compreensatildeo de um texto com funccedilatildeo esteacutetica exige que se entenda natildeo somente o

conteuacutedo mas tambeacutem o significado dos elementos da expressatildeo (2003 77-78)

Segundo o autor a fim de ldquoexplicar essa relaccedilatildeo a semioacutetica acolheu [] a

diferenccedila entre sistemas simboacutelicos e sistemas semioacuteticosrdquo nos primeiros haveria uma

conformidade total entre os planos de conteuacutedo e de expressatildeo (por exemplo ldquoa foice

simboliza sempre o campesinato o martelo o proletariado e o cruzamento dos dois a

uniatildeo dessas duas classesrdquo) enquanto nos ldquosemioacuteticosrdquo ldquoNatildeo haacute uma conformidade

entre o planos de expressatildeo e o do conteuacutedordquo Para lidar com a falta de correspondecircncia

entre unidades dos dois planos ldquoa Semioacutetica cria o conceito de sistemas semi-

simboacutelicosrdquo nos quais a correspondecircncia se daria por categorias em vez de unidades

(por exemplo ldquona gestualidade a categoria da expressatildeo verticalidade vs

horizontalidade correlaciona-se agrave categoria do conteuacutedo afirmaccedilatildeo vs negaccedilatildeordquo) Na

conceituaccedilatildeo de Greimas tais sistemas constituiriam a base dos textos poeacuteticos no

entanto Fiorin considera que ldquona anaacutelise de textos poeacuteticos essa definiccedilatildeo eacute claramente

insuficienterdquo Ocorre que a semioacutetica distingue diferentes niacuteveis do chamado ldquopercurso

gerativo de sentidordquo do mais ao menos profundo segundo o autor as categorias do

conteuacutedo que se correlacionam (realizam ldquohomologaccedilotildeesrdquo) com as categorias da

expressatildeo satildeo abstratas e ldquoremetem aos niacuteveis mais profundosrdquo do dito percurso

enquanto em poesia os ldquoefeitos de sentidordquo gerados por recursos do poema (como

aliteraccedilotildees e rimas) manteriam correlaccedilatildeo ldquoem todos os niacuteveis do percurso gerativo de

sentidordquo e por isso deve-se propor que seja ampliada ldquoa definiccedilatildeo de sistema semi-

simboacutelico eacute o que estabelece correlaccedilotildees entre categorias situadas em todos os niacuteveis

do percurso gerativo de sentidordquo Como se vecirc o esforccedilo eacute para modificar um conceito a

fim de que um constructo teoacuterico e metodoloacutegico possa dar conta da anaacutelise de poesia eacute

44

de nosso interesse sobretudo a condiccedilatildeo praacutetica da proposta o autor passaraacute a buscar

as diversas ldquohomologaccedilotildeesrdquo entre categorias da expressatildeo e do conteuacutedo em poemas

mostrando-nos exemplos de sua anaacutelise Um dos textos analisados eacute o poema

ldquoDebussyrdquo de Manuel Bandeira

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Um novelozinho de linha

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila

(Vem e vai)

Que delicadamente e quase a adormecer o balanccedila

ndash Psio ndash

Para caacute para laacute

Para caacute e

ndash O novelozinho caiu

(BANDEIRA 1973 p 64)48

Comenta o autor

O poeta vai acompanhando o movimento pendular de alguma coisa Os versos

como um metrocircnomo tecircm um ritmo que acompanha o movimento ldquopara caacute para

laacuterdquo Esse ritmo eacute interrompido e explica-se o que estava oscilando um novelozinho

de linha [] as reticecircncias interrompem a comunicaccedilatildeo Eacute como se o poeta

estivesse a contemplar a crianccedila que estava para adormecer e parasse o que ia dizer

para contemplar novamente o novelozinho na matildeo da crianccedila ldquopara caacute para laacuterdquo

Ele diz que o novelozinho ldquooscila no ar pela matildeo de uma crianccedila () que

delicadamente e quase a adormecer o balanccedilardquo Entre os dois versos da fala do

poeta haacute um verso que aparece entre parecircnteses a indicar que enquanto o poeta

fala o movimento do novelo continua Ele mostra que seu vaiveacutem prossegue

sempre igual primeiro para caacute (vem) e depois para laacute (vai) As reticecircncias revelam

que o movimento eacute contiacutenuo

48 BANDEIRA M Estrela da vida inteira 4ordf ed Rio de Janeiro J Olympio 1973 (Fonte do autor do

artigo)

45

Depois de ter-nos informado que esse ldquopara caacute para laacuterdquo [] eacute o movimento de um

novelozinho de linha que oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila que delicadamente

e quase a adormecer o balanccedila o poeta impede nossa manifestaccedilatildeo com um psio

para natildeo acordarmos a crianccedila quase adormecida

O ritmo do verso continua a recriar o ritmo do balanccedilo A interrupccedilatildeo do verso

seguinte que mostra o movimento apenas numa direccedilatildeo significa que a crianccedila

dormiu e portanto derrubou o novelo O uacuteltimo verso reitera esse significado para

noacutes

Temos aqui a homologaccedilatildeo de uma categoria da expressatildeo riacutetmico vs arritmico

a uma categoria figurativa balanccedilo vs natildeo balanccedilo [] temos tambeacutem quando

se observa a interrupccedilatildeo riacutetmica do penuacuteltimo verso em contraste com os outros

versos que indicam o balanccedilo uma homologaccedilatildeo a uma categoria narrativa

disjunccedilatildeo com o sono vs conjunccedilatildeo com o sono

O tiacutetulo do poema eacute o nome do compositor francecircs Debussy cuja obra Childrenrsquos

corner [] possui uma peccedila intitulada ldquoA menina dos cabelos de linhordquo composta

de movimentos ascendentes (vem) e descendentes (vai) e terminada com uma

cadecircncia harmocircnica com movimento meloacutedico descendente (caiu)

Para um ponto de vista que natildeo pretende circunscrever-se no meacutetodo de anaacutelise

no acircmbito da semioacutetica greimasiana o mais importante nesse rico estudo eacute a busca bem

sucedida de demonstrar as diferentes correlaccedilotildees entre os planos de conteuacutedo e de

expressatildeo Isso comeccedila com a escolha desse exemplo (e dos demais) cuja coesatildeo entre

os planos eacute particularmente clara o ritmo e os recursos de sequecircncia corte e pontuaccedilatildeo

dos versos se relacionam com o que se diz o poeta ldquorecria o mundo com palavrasrdquo na

conceituaccedilatildeo dita inicialmente (Faccedila-se aqui um comentaacuterio em terreno adjascente a

visatildeo da poesia como recriaccedilatildeo do mundo estaacute expressa no proacuteprio discurso de anaacutelise

cria-se uma cena cujo protagonista eacute o poeta ldquoo poeta vai acompanhando o

movimentordquo se depreendemos o movimento este eacute uma recriaccedilatildeo do que o poeta vecirc

ou viu O ldquomundordquo do poema seria portanto um correlato da realidade (com elementos

associados entre si) que se revela por meio das relaccedilotildees percebidas Um modo de

interpretar o que poderia ser visto como simples criaccedilatildeo de uma realidade com os

elementos que lhe satildeo proacuteprios mas dependeraacute sempre da leitura para sua re-criaccedilatildeo

Esse modo de abordagem vecirc de maneira geral ndash e aqui num ldquolivre pensamentordquo natildeo

uso terminologia ldquoteacutecnicardquo ndash o poema como uma ldquofiguraccedilatildeordquo uma representaccedilatildeo

figurativa da realidade No caso do poema de Bandeira o ldquodesenhordquo eacute niacutetido as

46

sugestotildees satildeo delineadas delimitadas de modo a se perceber com nitidez a ldquofigurardquo

nem sempre seraacute assim no entanto em poesia as sugestotildees poderatildeo ser mais vagas as

relaccedilotildees mais difusas por exemplo quando inseridas no contexto vasto de um poema

extenso e ao se considerarem elementos impressivos com associaccedilatildeo menos imediata agrave

dimensatildeo do sentido49

(anaacutelogos talvez aos de uma obra de arte abstrata por exemplo)

Mais uma vez no artigo em questatildeo evidencia-se o caminho da anaacutelise de

poesia pela criaccedilatildeo de modos de identificaccedilatildeo das ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo e pelo

esforccedilo em recriar a adequaccedilatildeo de modelo e meacutetodo a um objeto que poderaacute talvez

sempre escapar de sua proacutepria definiccedilatildeo por meio de um constructo especiacutefico Mas

diante de esforccedilos como esse dificilmente se poderaacute atribuir apenas agrave leitura o que se

demonstra de existente na dimensatildeo intratextual ainda que se ponham em questatildeo

elementos interpretativos como sendo criados pela leitura O movimento no sentido de

se ampliarem conceitos de maneira a estender o alcance da anaacutelise e da demonstraccedilatildeo

do modo como se realiza e se aprecia o texto esteacutetico eacute considero o caminho para a

proacutepria noccedilatildeo de existecircncia da poesia como linguagem diferenciada por mais extensa

que sejam suas possibilidades e por mais difiacutecil que seja abrangecirc-la num modelo

teoacuterico

Mas retornemos ao texto discutido Fiorin anuncia uma segunda questatildeo relativa

ao tema da relaccedilatildeo entre os dois referidos planos postulando que embora geralmente se

pense ldquoque as categorias [de expressatildeo e de conteuacutedo] precisam estar efetivamente

manifestadas com seus dois termos em oposiccedilatildeordquo haveria na verdade ldquoduas maneiras

de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas presenccedila vs presenccedila dos elementos

correlacionados ou presenccedila vs ausecircncia dos elementos correlacionadosrdquo Para o autor

ldquona anaacutelise de uma categoria do plano da expressatildeo e de sua correlaccedilatildeo com uma

categoria do plano do conteuacutedo natildeo eacute preciso que os dois termos estejam manifestados

porque a manifestaccedilatildeo de um pressupotildee a presenccedila do outrordquo O exemplo tomado para a

primeira das maneiras apontadas eacute o poema ldquoA ondardquo de Manuel Bandeira

a onda anda

aonde anda

a onda

49 Nas partes posteriores deste trabalho ao se tratar de possibilidades de anaacutelise seraacute feita uma tentativa

de discussatildeo da ldquoobjetividaderdquo no estudo da poesia como limitada agrave natureza qualitativa do signo icocircnico

tendo-se como referecircncia (num esfoccedilo desapegado de um ou outro constructo teoacuterico) a semioacutetica de

Peirce

47

a onda ainda

ainda onda

ainda anda

aonde

aonde

a onda a onda

(1973 p 286)

O autor apoacutes assinalar diversos aspectos da composiccedilatildeo (o poema eacute ldquoconstituiacutedo

de uma oposiccedilatildeo entre vogal oral e vogal nasalrdquo ldquoeacute constituiacutedo basicamente com

vogais que do ponto de vista acuacutestico satildeo ondas perioacutedicasrdquo ldquoa uacutenica consoante que

ocorre no texto eacute o d que por ser oclusiva eacute momentacircnea e explosiva e por ser sonora

conteacutem uma certa periodicidaderdquo etc) afirma que todos os ldquoelementos focircnicos (ritmo

assonacircncia alternacircncia de orais e nasais etc) recriam no plano da expressatildeo o

movimento ondulatoacuterio ininterrupto das ondas do marrdquo e conclui que ldquoo poema eacute

constituiacutedo por oposiccedilotildees da expressatildeo que se correlacionam com oposiccedilotildees do

conteuacutedo para recriar sensivelmente o movimento ondulatoacuterio das ondasrdquo A segunda

maneira (de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas) eacute ilustrada por um fragmento

do poema ldquoA valsardquo de Casimiro de Abreu

Tu ontem

Na danccedila

Que cansa

Voavas

Coas faces

Em rosas

Formosas

De vivo

Lascivo

Carmim

Na valsa

Corrias

Fugias

Ardente

Contente

48

Tranquila

Serena

Sem pena

De mim

(ABREU 1974 p 49-50)50

Sobre ele afirma o autor que ldquoeacute feito com versos dissiacutelabos com acento na

segunda siacutelaba o que cria o ritmo raacutepido da valsa Natildeo temos o contraste entre dois

ritmos mas entre a presenccedila do ritmo e sua ausecircncia pressupostardquo

Haacute ainda como o tiacutetulo do artigo indica uma terceira questatildeo a se considerar

que ldquodiz respeito agrave utilizaccedilatildeo das formas fixas em poesiardquo O autor observa que ldquoa

especificidade da semioacutetica poeacutetica caracteriza-se pela correlaccedilatildeo entre expressatildeo e

conteuacutedo ou seja que o discurso poeacutetico eacute um discurso duplo pois projeta suas

articulaccedilotildees simultaneamente no plano da expressatildeo e no do conteuacutedo (GREIMAS

1976 p 12)51

rdquo e comenta que o plano de conteuacutedo (ao qual o de expressatildeo deve

articular-se) possibilitaraacute vaacuterias leituras por caracterizar-se pela densidade Segundo

Fiorin ldquoesses postulados natildeo permitem confundir versificaccedilatildeo com poesiardquo no entanto

para o autor no caso dos ldquograndes poetasrdquo ldquoas formas fixas constituem uma maneira

codificada de segmentar o discurso poeacutetico em unidadesrdquo haveria ldquono plano de

expressatildeo da poesiardquo ldquocategorias topoloacutegicas que se relacionam com as categorias do

conteuacutedordquo Para Fiorin essa eacute uma sugestatildeo que precisa ser resgatada ldquopara verificar

que a distribuiccedilatildeo do conteuacutedo eacute homoacuteloga a sua estruturaccedilatildeordquo (tal verificaccedilatildeo

exemplificada no artigo por meio de dois sonetos natildeo seraacute aqui incluiacuteda)

Numa observaccedilatildeo um tanto externa ao foco da discussatildeo caberia perguntar se a

produccedilatildeo de ldquograndes poetasrdquo (uma categoria vaga e relativa) seria a referecircncia para a

verificaccedilatildeo das correlaccedilotildees entre estruturaccedilatildeo meacutetrica e conteuacutedo ou se seria o proacuteprio

modo de produccedilatildeo que pode envolver tais correlaccedilotildees mesmo sem alto desempenho

esteacutetico

Como se vecirc mais uma vez a procura desse ponto de vista eacute sempre de se

possibilitar a identificaccedilatildeo das correlaccedilotildees identificaacuteveis num texto poeacutetico No caso das

traduccedilotildees da eacutepica grega o aspecto meacutetrico teraacute papel importante na proacutepria

50 ABREU C Poesia 4ordf ed Rio de Janeiro Agir 1974 (Fonte do autor do artigo) 51

GREIMASS A J (org) Ensaios de semioacutetica poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1976 (Fonte do autor do artigo)

49

configuraccedilatildeo do conteuacutedo ainda que nem sempre se possam estabelecer relaccedilotildees semi-

simboacutelicas entre tais dimensotildees do poema

Jaacute se apontou de passagem que mesmo a oacuteptica questionadora da existecircncia do

ldquotexto de partida como um objeto definidordquo pode recorrer agrave anaacutelise de poesia baseada em

estabelecimento de relaccedilotildees entre elementos do poema Eacute o que se poderaacute constatar durante a

discussatildeo exposta no proacuteximo toacutepico

50

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade

B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia

A discussatildeo em torno de conceituaccedilotildees linguiacutestico-estruturalistas de um lado e

desconstrucionistas de outro alusivas agrave existecircncia ndash ou natildeo ndash de aspectos intriacutensecos ao

texto poeacutetico seraacute fundamental para a discussatildeo que se seguiraacute sobre a tarefa do

tradutor de poesia que por sua vez serviraacute de suporte agraves posteriores colocaccedilotildees e

anaacutelises relativas agrave eacutepica grega que este trabalho abrangeraacute Natildeo se pretende aqui

evidentemente tratar de modo amplo das controveacutersias que tecircm alimentado nas uacuteltimas

deacutecadas um debate inesgotaacutevel tampouco se tem a intenccedilatildeo de expor com mais

profundidade as conceituaccedilotildees desconstrucionistas52

baseadas em Jacques Derrida este

assunto seria por si soacute suficiente para um estudo de grande focirclego a limitaccedilatildeo

decorrente de nossos objetivos impotildee que apenas se identifiquem os pontos de vista em

conflito (ou natildeo) a fim de se propor um modo de ver as fundamentaccedilotildees e caminhos

para a traduccedilatildeo de poesia

Em ensaio53

de importacircncia particular para a discussatildeo da traduccedilatildeo neste estudo

(e que por isso seraacute evocado repetidas vezes) Rosemary Arrojo afirma

Em linhas muito gerais as teorias da linguagem que emergem da tradiccedilatildeo

intelectual do Ocidente alicerccediladas no logocentrismo e na crenccedila no que Jacques

Derrida chama de ldquosignificado transcendentalrdquo tecircm considerado o texto de partida

como um objeto definido congelado receptaacuteculo de significados estaacuteveis

geralmente identificados com as intenccedilotildees de seu autor Obviamente esse conceito

de texto traz consigo uma concepccedilatildeo de leitura que atribui ao leitor a tarefa de

ldquodescobrirrdquo os significados ldquooriginaisrdquo do texto (ou de seu autor) Ler seria em

uacuteltima anaacutelise uma atividade que propotildee a ldquoproteccedilatildeordquo dos significados

originalmente depositados no texto por seu autor (1993 16)

52 Sobre a ldquodesconstruccedilatildeordquo diz Edwin Gentzler ldquoDerrida lsquobasesrsquo his lsquotheoryrsquo of desconstruction on non-

identity on non-presence on unrepresentability What does exist according to Derrida are different chains of signification ndash including the lsquooriginalrsquo and its translations in a symbiotic relationship ndash mutually

supplementing each other defining and redefining a phantasm of sameness which never has existed nor

will exist as something fixed graspable known or understoodrdquo GENTZLER E Contemporary

translation theories New York Routledge 1993 p 147 53 ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo In ARROJO R Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo e

psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago 1993

51

Sobre a ldquotradiccedilatildeo intelectual do Ocidenterdquo baseada na ldquocrenccedila no Logosrdquo

afirma Arrojo em outro artigo seu54

Nessa tradiccedilatildeo cultural que crecirc na possibilidade de uma distinccedilatildeo intriacutenseca entre

sujeito e objeto a origem do significado eacute necessariamente localizada no

significante (no texto na mensagem na palavra) nas intenccedilotildees (conscientes) do

emissorautor ou numa combinaccedilatildeo ou alternacircncia dessas duas possibilidades A

primeira delas se reflete por exemplo na noccedilatildeo de literalidade que autoriza a

possibilidade de um significado subordinado agrave letra anterior a qualquer

interpretaccedilatildeo e independente de qualquer contexto Reflete-se tambeacutem na

concepccedilatildeo de literariedade que ainda domina a tradiccedilatildeo dos estudos literaacuterios entre

noacutes a noccedilatildeo de que o literaacuterio eo poeacutetico se encontram no texto como

propriedades intriacutensecas que o marcam indelevelmente e o distinguem dos textos

natildeo-literaacuterios Segundo essa visatildeo o leitor [] deve poder encontrar os

significados [] no texto e em suas marcas que teriam portanto a propriedade de

preservar seus conteuacutedos []

A segunda possibilidade como vimos projeta no emissorautor a origem

dosignificado [] Compreender ouler envolveria [] a descoberta e o resgate

daquilo que o emissor ou o autor quis dizer [] (2003 37-38)

Como veremos mais agrave frente ideias sobre traduccedilatildeo baseadas em conceitos que

incluem destacadamente os constructos teoacutericos de Jakobson ndash refiro-me centralmente

agrave teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash podem compatibilizar-se embora por outro vieacutes

de compreensatildeo com a postura de natildeo-submissatildeo a desejos autorais ou de descrenccedila na

preservaccedilatildeo de ldquoconteuacutedosrdquo nos textos Aponte-se jaacute contudo que a accedilatildeo de atribuir a

elementos do texto ndash perceptiacuteveis na leitura que busca caracteriacutesticas do poema ou da

proacutepria poesia como tais ndash a dimensatildeo de ldquosignificadosrdquo ou de preservaccedilatildeo de

ldquoconteuacutedosrdquo parece reducionista e desvirtuadora dos propoacutesitos de investigaccedilatildeo das

especificidades da linguagem poeacutetica os elementos que possivelmente a caracterizam

podem ser vistos como figuras iacutecones passiacuteveis de apreensatildeo pela leitura que os busca e

encontra em poemas de diversas eacutepocas ldquogecircnerosrdquo e tendecircncias construindo ou

reconstruindo (ainda que a ldquointenccedilatildeordquo possa ser de descoberta de elementos presentes

no texto) uma configuraccedilatildeo que comporaacute a trama de ldquosentidordquo Observar a existecircncia de

54 ldquoA desconstruccedilatildeo do logocentrismo e a origem do significadordquo In ARROJO R (org) O signo

desconstruiacutedo Campinas Pontes 2003

52

repeticcedilotildees (em diferentes planos) semelhanccedilas focircnicas aspectos visuais e outros

elementos que permitam a formulaccedilatildeo (na leitura) de relaccedilotildees entre som e sentido

permitidas pelo texto eacute um ato que natildeo pode ser desqualificado pela pressuposiccedilatildeo de

que ele resulta da busca de significados preservados ou intriacutensecos ainda que a maneira

de aproximaccedilatildeo ou de discurso feita pelo investigador possa ser enquadrada no que seria

a revelaccedilatildeo de elementos intriacutensecos (e natildeo propriamente ldquosignificadosrdquo) ao texto O

exemplo de Saussure permanentemente em duacutevida com a existecircncia ou natildeo do que via

nos versos latinos (e outros) atribui por si soacute a consideraccedilatildeo da leitura como

participante do processo de produccedilatildeo ou construccedilatildeo de sentido os diversos exemplos de

anaacutelise de Jakobson como a que realizou do poema ldquoThe ravenrdquo de E A Poe mostra a

importacircncia de leituras analiacuteticas que ao buscar desvelar relaccedilotildees paradigmaacuteticas entre

elementos do texto edificam suas particularidades linguiacutesticas e esteacuteticas (admitindo-se

o entendimento do poema como obra de arte verbal) independentemente de

corresponderem as ldquodescobertasrdquo a intenccedilotildees do autor do poema Mesmo que Poe natildeo

tenha pretendido ao menos conscientemente articular a relaccedilatildeo fonicamente especular

entre ldquoravenrdquo e ldquoneverrdquo esta observaccedilatildeo de Jakobson revela uma qualidade que

associada ao conjunto de elementos passiacuteveis de depreensatildeo no poema (incluindo-se os

assinalados por seu autor no texto ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo) colabora para a

compreensatildeo de seu ldquofuncionamentordquo como objeto de linguagem e de arte Ainda que

os conceitos referentes ao que seja poesia ao que seja arte ao que seja esteticamente

desejaacutevel ou indesejaacutevel estejam ndash como postulam os desconstrucionistas ndash vinculados

ao repertoacuterio e ao modo de ver do apreciador (veja-se por exemplo o referido texto ldquoA

que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo) identidades e fatores que as compotildeem

sempre teratildeo seu lugar como agentes da produccedilatildeo de cultura Mas voltemos por ora

aos argumentos da desconstruccedilatildeo por meio do trabalho especialmente esclarecedor e

consistente de Rosemary Arrojo

Em outros estudos seus a autora ndash com base em comentaacuterios de George Steiner

sobre um conto de Jorge Luis Borges ldquoPierre Menard o autor do Quixoterdquo (1939) ndash

vale-se dessa obra para o objetivo de elucidar a ideia de inexistecircncia do significado fixo

ou ldquodepositadordquo no texto O personagem (fictiacutecio) dessa obra-prima de Borges o receacutem-

falecido escritor Menard (ldquohomem de letras que viveu na primeira metade do seacuteculo

XX) produzira aleacutem de suas obras ldquovisiacuteveisrdquo uma outra ldquoinvisiacutevelrdquo que seria sua obra

mais significativa Esta seria uma reescritura de capiacutetulos do romance Dom Quixote de

53

Cervantes feita de modo a que Menard sendo ele mesmo conseguisse reproduzir (natildeo

copiar) o mesmo texto repetindo-o na iacutentegra O ldquonarradorrdquo do conto um criacutetico

literaacuterio que comenta as obras do escritor faz um cotejo de um trecho de Cervantes com

o mesmo trecho escrito por Menard

Constitui uma revelaccedilatildeo cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes

Este por exemplo escreveu (Dom Quixote primeira parte nono capiacutetulo)

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

Redigida no seacuteculo XVII redigida pelo ldquoengenho leigordquo Cervantes essa

enumeraccedilatildeo eacute mero elogio retoacuterico da histoacuteria Menard em compensaccedilatildeo escreve

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

A histoacuteria matildee da verdade a ideia eacute assombrosa Menard contemporacircneo de

William James natildeo define a histoacuteria como indagaccedilatildeo da realidade mas como sua

origem A verdade histoacuterica para ele natildeo eacute o que aconteceu eacute o que julgamos que

aconteceu As claacuteusulas finais ndash exemplo e aviso do presente advertecircncia do

futuro ndash satildeo descaradamente pragmaacuteticas

Diz Arrojo

Menard tenta recuperar o significado ldquooriginalrdquo de Cervantes mas somente

consegue reproduzir suas palavras O que Menard lecirc e reproduz como sendo o

verdadeiro Quixote (e portanto de acordo com Menard imutaacutevel e evidente) eacute

interpretado pelo narradorcriacutetico como algo diferente Paradoxalmente ao

ldquorepetirrdquo a totalidade do texto de Cervantes Menard ilustra a impossibilidade da

repeticcedilatildeo total exatamente porque as palavras do texto de Cervantes natildeo

conseguem delimitar ou petrificar seu significado ldquooriginalrdquo independentemente

de um contexto ou de uma interpretaccedilatildeo (2003 21-22)55

55 ARROJO R Oficina de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

54

Considerado por George Steiner ldquoo mais perspicaz o mais condensado

comentaacuterio que algueacutem jaacute ofereceu sobre a atividade de traduccedilatildeordquo56

o conto de Borges

eacute um instrumento da constataccedilatildeo da impermanecircncia do significado e por extensatildeo da

existecircncia de qualquer atributo ldquofiacutesicordquo ldquoconcretordquo ldquomaterialrdquo ao texto Essa ideia

diga-se afina-se com um encaminhamento radical do conceito de signo arbitraacuterio

proposto por Saussure que o define como uma instacircncia psicoloacutegica ldquoimaterialrdquo Sobre

a radicalizaccedilatildeo desconstrutivista do signo saussuriano por seus aspectos de

arbitrariedade e convenccedilatildeo diz Arrojo

Ao levar agraves uacuteltimas consequecircncias a concepccedilatildeo do signo arbitraacuterio econvencional

proposta por Saussure a reflexatildeo desconstrutivista necessariamente revisae

redimensiona as noccedilotildees tradicionais de significado Se o signo eacute resultado de

umaconvenccedilatildeo de um pacto a origem do significado eacute necessariamente remetida

para esse pacto e em uacuteltima anaacutelise para a necessidade de organizaccedilatildeo e de

domiacutenio quedesemboca nesse pacto Se aceitarmos a tese da convencionalidade do

signo ou seja anoccedilatildeo de que todo significado eacute necessariamente construiacutedo e

atribuiacutedo a partir de umtaacutecito acordo comunitaacuterio natildeo poderemos portanto eximir

a leitura e a compreensatildeo ou qualquer outro processo de utilizaccedilatildeo de signos de

uma origem atrelada agrave construccedilatildeoe agrave produccedilatildeo de significados (2003 37)

Mas ldquolevar agraves uacuteltimas consequecircnciasrdquo as ideias de Saussure envolve considerar

como referecircncia absoluta a incorporeidade do significante Afirma o proacuteprio Saussure

Todos os valores convencionais apresentam esse caraacuteter de natildeo se confundir com o

elemento tangiacutevel que lhe serve de suporte Assim natildeo eacute o metal da moeda que lhe

fixa o valor Isso eacute ainda mais verdadeiro no que respeita ao significante

linguiacutestico em sua essecircncia este natildeo eacute de modo algum focircnico eacute incorpoacutereo

constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas que

separam sua imagem acuacutestica de todas as outras

Leiam-se acerca da ecircnfase derridiana quanto agrave imaterialidade do significante as

observaccedilotildees de Cristina Carneiro Rodrigues

56 STEINER G Depois de Babel Trad C A Faraco Curitiba Editora da UFPR 2005 p 96

55

Ao salientar o caraacuteter diferencial e formal do funcionamento dos signos Saussure

mostrou que o som natildeo pode pertencer agrave liacutengua e que o significante natildeo eacute uma

entidade puramente material Na medida em que para Saussure o significado natildeo

eacute puramente focircnico a substacircncia de expressatildeo eacute de alguma maneira considerada

abstrata e natildeo puramente fiacutesica [] caso se levassem as ideias de Saussure agraves

uacuteltimas consequecircncias seria rejeitada qualquer noccedilatildeo de materialidade do

significante e do signo em geral Efetivamente apenas pela materialidade focircnica

natildeo seria possiacutevel identificar um signo repetido como se fosse o mesmo pois cada

repeticcedilatildeo dele natildeo eacute idecircntica Essa concepccedilatildeo deveria se estender ao significado

que tambeacutem seria marcado pela alteridade pela diferenccedila concepccedilatildeo que natildeo

conduziria agrave noccedilatildeo de equivalecircncia [em traduccedilatildeo ndash ou seja agrave ideia de que os

significados de uma liacutengua encontram equivalentes aos de outra e que a traduccedilatildeo

seria um processo de reproduccedilatildeo de sentidos equivalentes agravequeles fornecidos pelo

texto ldquooriginalrdquo]

Eacute importante discutirmos neste ponto a noccedilatildeo de (i)materialidade do

significante ou do signo com alguma tentativa de raciociacutenio que contribua para

ultrapassar o que eu veria como um ldquoconfinamentordquo ao modelo relacional do signo

convencionado O modelo binaacuterio de Saussure enfatiza uma unidade intriacutenseca do

processo psicoloacutegico de transmissatildeo de mensagens que permitiu o modo de

investigaccedilatildeo e compreensatildeo propiciador dos frutos notoacuterios do desenvolvimento da

ciecircncia linguiacutestica no uacuteltimo seacuteculo mas eacute um modelo voltado ao signo verbal

arbitraacuterio ndash ainda que o modelo possa ser frutiacutefero para a anaacutelise de objetos de outra

natureza como por exemplo um poema graacutefico-visual57

ele eacute um modelo fundado no

espaccedilo mental em que opera a comunicaccedilatildeo O fato de isolar a concepccedilatildeo ou a

ldquonaturezardquo do signo em sua relaccedilatildeo entre uma imagem acuacutestica e um conceito natildeo

significa entretanto que deixem de existir o estiacutemulo focircnico em sua dimensatildeo

material assim como o objeto relacionado ao conceito integrante do signo Trata-se

evidentemente de uma constataccedilatildeo oacutebvia mas que pode ter implicaccedilotildees na visatildeo sobre

um poema por exemplo logo voltaremos a isso Mas considere-se outro aspecto oacutebvio

a identidade do proacuteprio som como fenocircmeno fiacutesico participa da definiccedilatildeo do modo

57 Veja-se a anaacutelise desenvolvida por Antocircnio Vicente Pietroforte do poema ldquoCoacutedigordquo de Augusto de

Campos com base na diferenccedila entre a linha e o ciacuterculo mostrando que o poema ilustraria a proacutepria

natureza relacional do coacutedigo) Em Pietroforte Antocircnio Vicente O discurso da poesia concreta ndash uma

abordagem semioacutetica Satildeo Paulo AnnaBlume 2011 p 47-50

56

como eacute percebido para que se forme uma ldquoimagem acuacutesticardquo eacute preciso que a emissatildeo

do som ou dos fonemas permita sua percepccedilatildeo adequada os sons agudos seratildeo assim

percebidos ainda que possam ocasionar diferentes sensaccedilotildees ou mesmo participar da

formaccedilatildeo de diferentes significados pense-se ainda a tiacutetulo digressivo-ilustrativo no

caso particular de uma gravaccedilatildeo de sons por exemplo de muacutesica na qual o tratamento

teacutecnico da sonoridade de um instrumento ou de uma voz pode interferir na percepccedilatildeo

esteacutetica e na emoccedilatildeo que a ela pode associar-se influindo no ldquosentidordquo da composiccedilatildeo

em termos amplos

Se a linguiacutestica saussuriana considera o signo como um processo

exclusivamente mental ndash o que permite estabelecer as identidades apenas pelas

diferenccedilas que estabelecem entre si e portanto relativizar as ldquoverdadesrdquo em cuja

crenccedila se depositaria a tradiccedilatildeo do logocentrismo ndash isto natildeo quer dizer que a

consideraccedilatildeo da realidade fiacutesica material seja necessariamente fixadora de verdades ou

significados ou de atributos que lhe sejam perenes Considere-se o modelo (triaacutedico) da

semioacutetica de Peirce representado anteriormente em um dos veacutertices do triacircngulo estaacute o

objeto em outro oposto o signo e no terceiro o interpretante o interpretante origina

outro signo e assim sucessivamente Num exerciacutecio de livre pensamento comparativo

poderiacuteamos atribuir uma correspondecircncia possiacutevel entre a funccedilatildeo do interpretante (que

realiza a relaccedilatildeo entre signo e objeto) e a concepccedilatildeo da dualidade imagem-acuacutestica ndash

conceito de Saussure que opera no campo mental das relaccedilotildees O modelo de Peirce

destinado a abranger os diferentes tipos de signo por ele identificados ndash e natildeo apenas o

verbal arbitraacuterio que ele denominaria de ldquosiacutembolordquo um ldquolegissignordquo (porque resultante

de lei ou convenccedilatildeo) ndash permite a natildeo-exclusatildeo da dimensatildeo material dos estiacutemulos

envolvidos na produccedilatildeo da linguagem em suas diferentes manifestaccedilotildees

Como jaacute se mencionou Deacutecio Pignatari fala da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

como sendo marcada pela ldquoprojeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais

etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo Elementos sonoros e visuais se vistos como existentes em

si (ou seja positivamente) embora participantes do signo verbal e existentes nele

apenas em termos relacionais ou pela negatividade poderatildeo tambeacutem compor uma teia

adicional engendradora de um coacutedigo de natureza diversa que se projeta sobre o campo

verbal ou semacircntico (do significado) Quando Saussure buscava anagramas enquanto

ldquofiguras focircnicasrdquo (no dizer de Jakobson) rastreava os elementos isolados do contexto do

proacuteprio signo a que pertenciam destacando-os da relaccedilatildeo interna significante-

57

significado que compotildee a sua noccedilatildeo abstratizante de signo se tomados apenas como

fonemas em sua representaccedilatildeo por letras natildeo seratildeo esses elementos vistos em sua

materialidade ainda que possam originar diferenccedilas em sua audiccedilatildeo ou emissatildeo Nos

exerciacutecios de Jakobson em que relaciona unidades focircnicas para revelar sentidos

adjacentes ou subjacentes ou suprajacentes (como fizera por exemplo na jaacute

mencionada anaacutelise de ldquoThe ravenrdquo entre tantas outras) e em sua proacutepria noccedilatildeo de

projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma natildeo haacute a identificaccedilatildeo de ldquoformasrdquo

ldquoexternasrdquo a cada signo verbal que consistem em elementos integrantes de coacutedigos

sonoros visuais etc

Veja-se esta breve reflexatildeo natildeo como uma proposiccedilatildeo ambiciosamente

resolutoacuteria mas apenas como um exerciacutecio voltado agrave superaccedilatildeo de importantes entraves

de compreensatildeo ou operacionalizaccedilatildeo no trabalho com a linguagem por conflitos

supostamente insuperaacuteveis Em seu constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica Haroldo

de Campos vale-se muitas vezes da ideia de ldquomaterialidade siacutegnicardquo contudo como se

poderaacute ver seu pensamento natildeo se volta ao ldquoresgate de significados estaacuteveisrdquo e

tampouco considera o ldquooriginalrdquo como autoridade dotada de uma intenccedilatildeo a ser

respeitada ou seguida ancilarmente agrave semelhanccedila dele outros poetas e tradutores de

poesia encaram sua tarefa de traduzir de modo bem diverso do que seria o modus

operandi da traduccedilatildeo ldquofiel ao sentido que o autor quis transmitirrdquo etc

Num novo livre pensamento com alguma possiacutevel utilidade reflexiva

admitindo-se que seja na ldquodiferenccedilardquo (conforme preconizou Saussure) que a

significaccedilatildeo se decirc no processo relacional dos signos e ainda que se considere o signo

natildeo ldquoem sua composiccedilatildeo mas em seus contornosrdquo talvez se possa supor que no

ldquoconfrontordquo entre contornos focircnicos estes tambeacutem recuperem na leitura sua

ldquoidentidade materialrdquo ou se faccedilam notar em sua especificidade ldquomaterializandordquo o

corpo que envolvem seria na comparaccedilatildeo que a ldquomaterialidaderdquo tambeacutem se afirmaria

ldquoconsolidando-serdquo pelo ldquoembaterdquo entre contornos58

58 Em outra oportunidade referi-me agrave questatildeo geral da materialidade do signo desta forma um tanto

diversa e mais sinteacutetica ldquoAinda que se considere a postulaccedilatildeo de Saussure de que o lsquosignificante

linguiacutesticorsquo eacute lsquoincorpoacutereo constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas

que separam sua imagem acuacutestica de todas as outras (1972 137-8) [] eacute inegaacutevel a existecircncia da materialidade siacutegnica que permite o estabelecimento das diferenccedilas pelas quais o lsquosignificantersquo se define

Assim ainda que o lsquosignificantersquo natildeo seja lsquouma entidade puramente materialrsquo (Rodrigues 1999 189) (o

grifo eacute meu) tambeacutem o eacute (material) e as diferenccedilas que o delimitam ainda que de teor lsquoabstratorsquo

integram a cadeia de relaccedilotildees entre signos identificadas numa obra de arte verbal relaccedilotildees estas

marcadas exatamente por semelhanccedilas e diferenccedilas (considerando-se a projeccedilatildeo do eixo de similaridade

sobre o de contiguidade caracteriacutestico da lsquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrsquo) []rdquo

58

O poeta tradutor e ensaiacutesta Joseacute Paulo Paes tambeacutem fala em ldquomaterialidaderdquo

Apoacutes discutir a traduccedilatildeo de poesia em sua obra Traduccedilatildeo a ponte necessaacuteria (1990)

considerando-a ldquoo caso-limite da problemaacutetica geral da traduccedilatildeordquo (devido

principalmente para ele por ser a poesia ldquoa forma mais condensada de linguagemrdquo

conceito colhido do poeta e criacutetico norte-americano Ezra Pound) assim se refere agrave

atividade do poeta evocando o ldquoprinciacutepio miacutetico do mundo aquele jardim do Eacuteden a

cujos seres Adatildeo deu o nome inauguralrdquo

Ao perturbar constantemente o primado do sentido loacutegico do discurso por via de

operadores diversivos como a metaacutefora a aliteraccedilatildeo a assonacircncia o jogo

paronomaacutestico etc busca o poeta com isso chamar a atenccedilatildeo do leitor menos para

o significado abstrato dos signos do que para a materialidade deles ndash o seu som a

sua forma ndash que eacute o penhor de serem congeniais das coisas Precisamente porque

aspira ao ideoleto imaginaacuterio [(o ldquoprimeiro ideoletordquo a liacutengua privativa de Adatildeo

teria se transformado por meio de seus descendentes em socioleto uma liacutengua

grupal instaurando-se a partir de entatildeo o ldquoreino da vicariedade ou

intermediaccedilatildeo)] o poeta estaacute sempre redescobrindo o mundo vendo-o como nunca

ningueacutem o tivesse visto antes como se fosse ele o primeiro homem sobre a face da

Terra (1990 47)

A recorrecircncia agrave noccedilatildeo natildeo-saussuriana das palavras como ldquocongeniais das

coisasrdquo (ideia que pode ser vista como manifestaccedilatildeo logocecircntrica) serve para enfatizar o

que seria a busca da poesia pela ldquomaterializaccedilatildeordquo da palavra que ansiaria a ser ldquocoisardquo

no poema A esse respeito leia-se ndash por sua sugestatildeo materializante ndash o seguinte poema

de Joatildeo Cabral de Melo Neto criador de uma ldquopoesia com coisasrdquo (no dizer de Marta

Peixoto59

) feita de ldquopalavras-coisasrdquo contendo uma interessante metaacutefora

(materializadora) da criaccedilatildeo poeacutetica

59 PEIXOTO Marta Poesia com coisas Satildeo Paulo Perspectiva 1983

59

Catar feijatildeo

1

Catar feijatildeo se limita com escrever

joga-se os gratildeos na aacutegua do alguidar

e as palavras na folha de papel

e depois joga-se fora o que boiar

Certo toda palavra boiaraacute no papel

aacutegua congelada por chumbo seu verbo

pois para catar esse feijatildeo soprar nele

e jogar fora o leve e oco palha e eco

2

Ora nesse catar feijatildeo entra um risco

o de que entre os gratildeos pesados entre

um gratildeo qualquer pedra ou indigesto

um gratildeo imastigaacutevel de quebrar dente

Certo natildeo quando ao catar palavras

a pedra daacute agrave frase seu gratildeo mais vivo

obstrui a leitura fluviante flutual

accedilula a atenccedilatildeo isca-a como o risco60

Antes de encerrar este toacutepico preparatoacuterio a nossas abordagens centrais com

alguns comentaacuterios criacuteticos agrave postura radicalmente relativizadora proacutepria do

desconstrucionismo escolho referir-me a um interessante exerciacutecio realizado por

Rosemary Arrojo em que analisa o poema ldquoAacuteporordquo de Carlos Drummond de Andrade

Aleacutem do proveito que o exerciacutecio traz como exemplificaccedilatildeo de possibilidades de anaacutelise

de um poema haacute tambeacutem o aspecto de ainda que convicta da inexistecircncia de qualquer

caracteriacutestica intriacutenseca aos poemas que os distingam como tais a autora recorrer a

procedimento muito semelhante ao empregado em uma anaacutelise estrutural como se veraacute

nesta breve referecircncia Comenta Arrojo ldquolsquoAacutepororsquo [] eacute o texto escolhido pois apesar

de sua brevidade pode nos dar um bom exemplo do que seria ler lsquopoeticamentersquo um

textordquo Ainda que a ecircnfase seja na ldquoleiturardquo na praacutetica natildeo haacute mudanccedila significativa de

procedimento em relaccedilatildeo agravequele adotado nas anaacutelises usualmente desenvolvidas por

60 De A educaccedilatildeo pela pedra (1965)

60

linguistas semioticistas ou criacuteticos de poesia a diferenccedila reside essencialmente no

modo de referir-se ao ato de anaacutelise como ldquoleiturardquo ldquoA leitura de Aacuteporo que proponho

a seguir se assemelha agrave construccedilatildeo de um quebra-cabeccedilardquo (p 47) Independentemente

do referencial teoacuterico e da oacuteptica de abordagem do objeto o que se realizaraacute seraacute um

conjunto de observaccedilotildees elaboradas a partir do que o objeto de anaacutelise ldquopode nos darrdquo

por suas qualidades de possibilidades de identificaccedilatildeo do ldquoquebra-cabeccedilardquo que

pressupotildee a existecircncia de peccedilas identificaacuteveis ainda que associadas a um processo

sempre interpretativo Assim os procedimentos de anaacutelise efetuados por estruturalistas

como Jakobson61

ou entre noacutes por teoacutericos da poesia como Haroldo de Campos e

Deacutecio Pignatari permanecem sendo o meio para reconhecimento de aspectos e

possibilidades da linguagem poeacutetica ainda que a postura desconstrucionista utilize um

discurso enfatizador do aspecto de ldquoconstruccedilatildeordquo da leitura analiacutetica ldquoVamos tentar

construir melhor esse enredo quebra-cabeccedilardquo Mas o que eacute construiacutedo natildeo vem do

nada procede natildeo soacute da dimensatildeo psicoloacutegica (que inclui a percepccedilatildeo) mas tambeacutem de

elementos e relaccedilotildees que podem ser identificados e aos quais podem ser atribuiacutedos

aspectos de organizaccedilatildeo da linguagem do poema ou de interpretaccedilatildeo a partir das

relaccedilotildees estabelecidas Tais elementos podem ser observados pela ldquoleitura poeacuteticardquo do

texto que diga-se sempre foi a leitura desejaacutevel para uma obra que se propotildee como um

poema tenha ela a funccedilatildeo que tiver em determinado contexto soacutecio-cultural Assim

ainda que se opte por coerecircncia teoacuterico-ideoloacutegica pela referecircncia enfaacutetica de que se

trata de ldquoleiturardquo e natildeo de algo inerente ao texto permanece viva a escolha pela anaacutelise

voltada a mostrar o alcance das intrincadas relaccedilotildees entre som e sentido encontraacuteveis

num poema

Previamente agraves observaccedilotildees sobre a anaacutelise de Arrojo leia-se o poema de

Drummond

61 Vejam-se como exemplos entre tantos estudos do linguista os relativos a poemas de Dante Bellay

Shakespeare Blake Yeats Houmllderlin Baudelaire e Poe (jaacute mencionado) enfeixados na antologia

(tambeacutem jaacute referida) Poeacutetica em accedilatildeo (1990)

61

Aacuteporo

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape

Que fazer exausto

em paiacutes bloqueado

enlace de noite

raiz e mineacuterio

Eis que o labirinto

(oh razatildeo misteacuterio)

presto se desata

em verde sozinha

antieuclidiana

uma orquiacutedea forma-se

A respeito do poema Arrojo observa (apoacutes decorrida grande parte de sua longa

anaacutelise)

O jogo da leitura poeacutetica natildeo deve descartar nenhum fragmento que possa ser

empregado na construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo [] No ldquoAacuteporordquo um destes

elementos eacute o nuacutemero de siacutelabas do uacuteltimo verso ldquouma orquiacutedea forma-serdquo que se

destaca dos demais por ser o uacutenico a contar som seis siacutelabas Portanto exatamente

o verso em que se forma a orquiacutedeaaacuteporo62

eacute tambeacutem ldquoantieuclidianordquo na medida

em que subverte a organizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoAacuteporordquo

Sobre a observaccedilatildeo um comentaacuterio a interpretaccedilatildeo ainda que interessante

encerra um erro de leitura evidenciando-se que as caracteriacutesticas do texto exigem

62 A autora usa as combinaccedilotildees ldquoorquiacutedeaaacuteporordquo e ldquoinsetoaacuteporordquo em decorrecircncia dos muacuteltiplos sentidos

do termo ldquoaacuteporordquo (do grego aacuteporos ldquointransponiacutevel sem saiacuteda difiacutecil inelutaacutevelrdquo) que tanto pode

significar ldquosituaccedilatildeo sem saiacutedardquo como ldquoinseto himenoacutepterordquo e ainda (como observa Arrojo com base no

Dicionaacuterio contemporacircneo da liacutengua portuguesa de Caldas Aulete (Lisboa 1948) referir-se a ldquoum tipo

de planta da famiacutelia das orquiacutedeas solitaacuteria geralmente esverdeadardquo

62

atenccedilatildeo cuidado e propriedade na ldquoleitura poeacuteticardquo O verso apontado como

apresentando seis siacutelabas pode perfeitamente ser lido como sendo uma redondilha

menor agrave semelhanccedila dos demais versos do poema

U ma or quiacute dea for ma-se

1 2 3 4 5

Contamos portanto ateacute a uacuteltima tocircnica do verso cinco siacutelabas considerando-se

a esperada elisatildeo entre as vogais aacutetonas de ldquoma orrdquo e a habitual leitura de ldquodeardquo como

ditongo Dada a normalidade da leitura e da contagem dela decorrente natildeo haacute nenhuma

razatildeo para que se veja tal verso como hexassiacutelabo mesmo porque a leitura do conjunto

de heptassiacutelabos sugere (para natildeo dizer ldquodeterminardquo) pela sequecircncia riacutetmica que esse

verso tambeacutem seja lido como tal Haacute muitos casos em que a regularidade meacutetrica

empregada pelo poeta exige mais flexibilidade na leitura para que se mantenha e isso eacute

um procedimento usual em composiccedilatildeo de poesia expedientes de ditongaccedilatildeo de hiatos

e elisotildees por vezes forccediladas satildeo aceitas em funccedilatildeo da percepccedilatildeo do conjunto riacutetmico-

meacutetrico articulado (e observado) no poema Uma evidenciaccedilatildeo assim entendo de que

as anaacutelises envolvem a observaccedilatildeo de aspectos intratextuais ainda que estes sejam

ldquorecriadosrdquo por meio da leitura

Acerca do mesmo verso diz ainda Arrojo

Outro fragmento que se destaca nesse verso eacute o pronome se que encerra o poema

[] o que chama a atenccedilatildeo eacute sua posiccedilatildeo encliacutetica numa situaccedilatildeo em que a

proacuteclise [] seria mais natural [] Visualmente o hiacutefen que separa o ldquoserdquo do

verbo (e do verso) pode enfatizar a sugestatildeo do extravazar O ldquoserdquo poderia

representar a relaccedilatildeo estabelecida entre criador e objeto criado entre o insetoaacuteporo

e a orquiacutedeaaacuteporo Relaccedilatildeo essa que sugere quase um expelir um parto o

momento mesmo em que a orquiacutedea sai da terra

E com uma sequecircncia analiacutetica que apresenta pontos em comum com aquela

realizada por Pignatari em seu ensaio criacutetico ldquoAacuteporordquo (iniciado com o subtiacutetulo ldquoUm

inseto semioacuteticordquo (Contracomunicaccedilatildeo 1973 131) Arrojo prossegue

63

Tal interpretaccedilatildeo pode ser ainda enriquecida pela observaccedilatildeo de que a siacutelaba ldquoserdquo

se encontra tambeacutem no centro do substantivo ldquoinsetordquo o inseto ldquoconteacutemrdquo aquilo

que se transforma em orquiacutedea e que nasce depois de um processo quase doloroso

Se prestarmos atenccedilatildeo aos demais versos do poema podemos observar que a siacutelaba

ldquoserdquo ou variaccedilotildees dela (ieacute sibilante + vogal e) satildeo constantes no poema No

primeiro quarteto o ldquoserdquo de ldquoinsetordquo se repete em ldquosemrdquo nos versos 2 e 4 e surge

a variaccedilatildeo ldquoesrdquo em ldquoescaperdquo No segundo quarteto concentram-se diversas

variaccedilotildees em que o s desaparece e eacute substituiacutedo por outras sibilantes ldquofazerrdquo

ldquoexaustordquo ldquoenlacerdquo ldquoraiz erdquo No primeiro terceto ldquoserdquo volta a ocorrer em sua

forma original aleacutem da variaccedilatildeo ldquoesrdquo ldquopresto se desatardquo Em seguida a siacutelaba ldquoserdquo

volta a se repetir somente no uacuteltimo verso Tais ocorrecircncias poderiam sugerir os

vaacuterios caminhos percorridos pelo insetocriador em sua tentativa de chegar agrave forma

ideal da orquiacutedeaaacuteporo []

Afirmaccedilotildees como ldquosiacutelaba ou variaccedilotildees dela constantes no poemardquo ldquoa siacutelaba

volta a se repetir volta a ocorrerrdquo ou ldquotais ocorrecircncias poderiam sugerirrdquo revelam que

natildeo obstante o esforccedilo para que tudo seja visto como criado pela leitura as referecircncias a

ocorrecircncias no texto integram o processo de anaacutelise e de ldquoproduccedilatildeo de sentidordquo Poder-

se-ia dizer que as referecircncias satildeo inevitaacuteveis porque a linguagem que usamos estaacute

imbuiacuteda do logocentrismo que pressupotildee os existentes independentes fixos etc Mas

creio natildeo leva a nada a permanecircncia ciacuteclica interminaacutevel na sustentaccedilatildeo de

inexistecircncias antes satildeo bastante interessantes do ponto de vista de operacionalidade no

labor e na criacutetica de poesia as decorrecircncias (possivelmente generalizantes) dos

resultados obtidos pelas anaacutelises de poemas assim como a simples apreciaccedilatildeo

propiciada pela ldquoleitura poeacuteticardquo envolvendo a observaccedilatildeo de padrotildees de relaccedilatildeo entre

som e sentido e outros identificaacuteveis como recorrentes em poesia

De todo modo a iniciativa da anaacutelise exemplifica a necessidade ou

inevitabilidade de superar o imobilismo que a total relativizaccedilatildeo das identidades textuais

poderia ocasionar ao natildeo deixar de buscar num poema as possibilidades que o texto

mesmo revela agrave leitura ainda que as noccedilotildees a respeito de poesia ou literatura sejam

mutaacuteveis atraveacutes dos tempos e variaacuteveis atraveacutes dos espaccedilos e contextos culturais

vale o que vemos em nosso meio e com nosso modo de ver a universalidade ou

64

imutabilidade de conceitos natildeo satildeo penso imprescindiacuteveis para que exista um ldquogecircnerordquo

ou um modo de ser da linguagem ainda que mutante

A intenccedilatildeo foi fazer nesta parte do trabalho certo esforccedilo para a discussatildeo

acerca da linguagem poeacutetica visando agrave compreensatildeo de princiacutepios de traduccedilatildeo de

poesia e agrave aplicaccedilatildeo de algumas referecircncias para tanto Entre as muitas teorias sobre a

linguagem e sobre a traduccedilatildeo (na proacutexima etapa deste capiacutetulo seraacute abordado

brevemente o amplo panorama teoacuterico relativo agrave atividade tradutoacuteria) elegeu-se certo

estruturalismo e para estabelecimento de um confronto criacutetico com algumas concepccedilotildees

que dele advecircm e seratildeo utilizadas neste estudo foram apresentados alguns aspectos do

pensamento poacutes-estruturalista desconstrucionista Com o intuito de refletir sobre o

impacto do desconstrucionismo na teoria na praacutetica e na avaliaccedilatildeo da tarefa de traduccedilatildeo

poeacutetica seratildeo apontadas a seguir duas colocaccedilotildees de especial pertinecircncia tendo-se em

conta nossos propoacutesitos gerais

Leia-se primeiro o ldquoAbstractrdquo que acompanha o artigo ldquoDoubts about

deconstruction as a general theory of translationrdquo do teoacuterico da traduccedilatildeo Anthony Pym

apresentado aqui em traduccedilatildeo integrante da publicaccedilatildeo do artigo em inglecircs pela revista

brasileira TradTerm (1995)

A comparaccedilatildeo de quatro versotildees de uma frase de Derrida coloca a questatildeo da

redaccedilatildeo da filosofia desconstrutivista com a teoria da traduccedilatildeo Levantam-se

duacutevidas acerca da pertinecircncia geral da desconstruccedilatildeo da possibilidade de expandir

o alcance de seus insights para aleacutem da anaacutelise do texto-fonte e das razotildees de

uma certa inferiorizaccedilatildeo residual da traduccedilatildeo Sugere-se no espiacuterito de uma

discordacircncia paciacutefica que a teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute seriamente abalada pelo

fato dos textos-fonte constituiacuterem pontos de partida semanticamente instaacuteveis

(1995 11)

Sem que se pretenda alongar demais a referecircncia ao artigo e a seu conteuacutedo eacute

uacutetil que se destaque a frase final desse Resumo ldquoa teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute

seriamente abalada []rdquo e que sejam citados alguns fragmentos do ensaio

65

There is some irony in the way that the critique of origins tends to invest all its

efforts on the level of origins to the detriment of efficient formal or final purposes

[hellip] A critique of origins is inevitably locked into a backward vision to the

detriment of present action or future agreements In its psychoanalytic metaphors

this critique focuses on the imaginary status of initial causes but forgets that the

analysts final cause is to help cure someone Deconstruction might perhaps be able

to say something about how a translator should accept semantic plurality [hellip] or

how a user should assess a translation in terms of this plurality But as soon as the

specific problem of anterior origins becomes the problem of translation

deconstruction reduces translation to a form of source-text analysis In fact it turns

translation into what could only be an inferior form of the kind of readings

undertaken by deconstruction itself [hellip]

The problem with deconstructionist propositions like those based on the obverse

dominance of target-side or final causes is that they are decidedly unhelpful once

agreed to One eventually has to ask So what and then get on with solving

concrete problems [hellip]

In a world where everything is to constructed deconstructionist theory can and

should raise passing doubts on the way to concrete action But translation theory

has a lot of other work to do awaiting the philosopheracutes return from Derridean

islands (1995 15-17)

Em suma o tradutor em seu aacuterduo ofiacutecio teria problemas mais ldquoconcretosrdquo com

que lidar aleacutem das questotildees da pluralidade semacircntica63

ou da instabilidade do

significado que teriam reduzido a traduccedilatildeo a uma forma de anaacutelise do texto-fonte

Sobre a questatildeo da utilidade ou das contribuiccedilotildees da desconstruccedilatildeo e considerando a

argumentaccedilatildeo de Pym Paulo Henriques Britto ndash autor da talvez mais perspicaz criacutetica agrave

visatildeo desconstrucionista no Brasil ndash diz em seu artigo ldquoDesconstruir para quecircrdquo64

[] O grande meacuterito da desconstruccedilatildeo portanto eacute ter levantado discussotildees que nos

tornou a todos ndash independentemente da posiccedilatildeo que adotemos ndash mais conscientes

da diferenccedila entre o que devem ser as metas da atividade tradutoacuteria e o que na

praacutetica se pode exigir de uma traduccedilatildeo real Hoje por exemplo afirmar que uma

63 Sobre esta fundamental postulaccedilatildeo de Derrida ver seu ensaio ldquoDes tours de Babelrdquo em Psycheacute

(19871998) Haacute ediccedilatildeo brasileira em traduccedilatildeo de Junia Barreto DERRIDA J Torres de Babel Belo

Horizonte UFMG 2006 64 In Cadernos de traduccedilatildeo vol 2 Florianoacutepolis UFSC 2001

66

determinada traduccedilatildeo de um determinado texto eacute a uacutenica correta ou a uacutenica

possiacutevel eacute uma demonstraccedilatildeo de absoluta ingenuidade teoacuterica Talvez a melhor

maneira de ver a desconstruccedilatildeo seja encaraacute-la como uma vertente de pensamento

de valor puramente negativo boa para apontar para as limitaccedilotildees de conceitos

correntes poreacutem incapaz de propor alternativas viaacuteveis []

Sem duacutevida a criacutetica desconstrutivista nos leva a relativizar vaacuterios conceitos ndash ou

seja encaraacute-los tais como satildeo como ficccedilotildees e natildeo realidades Poreacutem natildeo podemos

abrir matildeo dessas ficccedilotildees ndash e ldquonatildeo podemosrdquo aqui natildeo tem o sentido deocircntico de

ldquonatildeo devemosrdquo trata-se de uma impossibilidade praacutetica Conceitos como

ldquosignificadordquo ldquooriginalrdquo e ldquoequivalecircnciardquo satildeo pressupostos incontornaacuteveis das

praacuteticas textuais por mais problemaacuteticos que sejam Devemos criticaacute-los estar

sempre atentos para seu caraacuteter construiacutedo mas deles natildeo podemos abrir matildeo O

jogo do logocentrismo eacute em uacuteltima anaacutelise o jogo da linguagem Recusar-se a

jogaacute-lo eacute condenar-se ao silecircncio

Para chegar a essas conclusotildees ndash com as quais mantenho certo grau de

concordacircncia ndash Britto mostrou em seu artigo a divergecircncia entre a criacutetica feita por R

Arrojo (que ele considera ldquotalvez a mais destacada defensora da desconstruccedilatildeo na aacuterea

da teoria da traduccedilatildeo no Brasilrdquo) a pressupostos ldquoestigmatizados como lsquologocecircntricosrsquordquo

e o proacuteprio discurso tradutoloacutegico realizado por ela no artigo ldquoAs questotildees teoacutericas da

traduccedilatildeo e a desconstruccedilatildeo do logocentrismo algumas reflexotildeesrdquo65

Nele Arrojo cita

em portuguecircs vaacuterios trechos de obras de F Nietzche e G Mounin referindo-se a eles

como se fossem os textos dos proacuteprios autores sem mencionar quem realizou as

traduccedilotildees utilizadas Diante disso Brito considera que

[] para Arrojo a traduccedilatildeo de um texto pode ser considerada equivalente ao

original [] o que lhe interessa no momento satildeo os significados as ideias que

Nietzsche e Mounin exprimiram em seus textos e ela considera que esses

significados ou ideias foram transpostos para o portuguecircs nas traduccedilotildees de modo

razoavelmente confiaacutevel Ao tratar traduccedilotildees como originais e atribuiacute-las aos

autores dos originais Arrojo assume plenamente a visatildeo logocecircntrica [] ndash

traduccedilotildees satildeo textos equivalentes a originais

65 In ARROJO R (org) O signo desconstruiacutedo implicaccedilotildees para a traduccedilatildeo a leitura e o ensino

Campinas Pontes 2003 p 71-79

67

Em segundo lugar vemos que Arrojo utiliza expressotildees como ldquoMounin crecircrdquo e

ldquopara Mouninrdquo Ora se Arrojo pode atribuir crenccedilas e opiniotildees a Mounin com

base na sua leitura do texto de Mounin eacute porque a seu ver o texto de Mounin

reflete as intenccedilotildees conscientes de Mounin

[] na sua praacutetica textual Arrojo segue o pressuposto [de que] o significado eacute uma

propriedade estaacutevel do texto que pode ser identificada com a intenccedilatildeo consciente

do autor ao escrevecirc-lo e que independe das circunstacircncias do leitor Por fim

constatamos tambeacutem que para Rosemary Arrojo o significado pode ser

considerado um objeto distinto do estilo do texto em que ele aparece Caso

contraacuterio ela teria citado Nietzsche e outros autores no original []

Vemos portanto que para os fins de um artigo cujo tema eacute a desconstruccedilatildeo do

logocentrismo Arrojo subscreve justamente aqueles aspectos da visatildeo logocecircntrica

que segundo ela devem ser desconstruiacutedos A autora naturalmente poderia

argumentar que se trata de uma aproximaccedilatildeo apenas que na verdade ela sabe que

a traduccedilatildeo de Mounin feita pelo tradutor brasileiro natildeo eacute a mesma coisa que o texto

de Mounin tal como sabe que o texto de Mounin natildeo eacute uma representaccedilatildeo estaacutevel

dos significados e intenccedilotildees conscientes de Mounin mas que para os fins a que se

propotildee no artigo em questatildeo ela pode perfeitamente admitir essas ficccedilotildees ndash a

ficccedilatildeo do original estaacutevel e consciente e a ficccedilatildeo da traduccedilatildeo equivalente Pois esta

hipoteacutetica defesa de Arrojo eacute justamente o ponto a que quero chegar Todas as

criacuteticas ao logocentrismo apontam para fatos inegaacuteveis Tem razatildeo Arrojo quando

chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de traduccedilotildees perfeitamente literais em que

a figura do tradutor eacute de todo invisiacutevel Tambeacutem eacute verdade que natildeo eacute possiacutevel

determinar com exatidatildeo qual o significado uacutenico e preciso de um determinado

texto nem tampouco identificar um tal significado com a intenccedilatildeo consciente do

autor E eacute evidente que eacute ingenuidade acreditar que o significado eacute uma entidade

abstrata que pode ser destacada dos outros elementos do texto como o estilo O

problema poreacutem eacute que para a grande maioria dos fins praacuteticos que envolvem a

utilizaccedilatildeo de textos soacute podemos agir se adotarmos certos pressupostos

aproximaccedilotildees que embora natildeo correspondam agrave realidade dos fatos satildeo

imprescindiacuteveis (2001 42-48)

Mais uma vez a longa citaccedilatildeo se justifica pela acuidade dos argumentos e por

sua total conveniecircncia para o encerramento desta parte de nosso estudo Outros textos

do mesmo autor seratildeo evocados nos proacuteximos toacutepicos ao tratarmos propriamente da

traduccedilatildeo poeacutetica

68

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica

The death of Irish

The tide gone out for good

Thirty-one words for seaweed

Whiten on the foreshore

Aidan Carl Mathews

A morte do Irlandecircs

A mareacute vazia de vez

Trinta e uma palavras para alga

Empalidecem na praia

(Trad Marcelo Taacutepia66

)

ldquoSegundo Jakobson a estrateacutegia do traduzir impotildee [] um ldquomodus operandirdquo []

distinto a este ldquomodus operandirdquo Jakobson denomina ldquotransposiccedilatildeo criativardquo

(caso em que eu falo de lsquore-criaccedilatildeorsquo ou lsquotranscriaccedilatildeorsquo e

Meschonnic de lsquotraduccedilatildeo-textorsquo) []

Haroldo de Campos67

Jaacute se fez referecircncia neste trabalho agrave hipoacutetese proposta nos anos 1930 pelos

linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf tese que se tornou durante muito

tempo referecircncia para o relativismo linguiacutestico Segundo a tatildeo conhecida hipoacutetese

Sapir-Whorf as diferentes culturas caracterizam-se por universos mentais muito

distintos natildeo soacute expressos mas tambeacutem determinados pelas diferentes liacutenguas que lhes

satildeo proacuteprias Assim o estudo das estruturas de uma liacutengua pode levar agrave elucidaccedilatildeo das

concepccedilotildees de mundo a que ela se liga Esta proposiccedilatildeo suscitou o entusiasmo de uma

geraccedilatildeo inteira de antropoacutelogos psicoacutelogos e linguistas nas deacutecadas que se seguiram

Do entendimento que ela implica deduz-se a natildeo-correspondecircncia entre os diferentes

idiomas e as consequentes visotildees diacutespares de mundo condenando-se a ideia da traduccedilatildeo

agrave impossibilidade por princiacutepio

66 O poema refere-se ao processo de ldquomorterdquo do idioma irlandecircs que conta com 31 palavras para designar

variedades de alga coerentemente com a cultura da ilha In A forja ndash alguma poesia irlandesa Ed

biliacutengue trad M Taacutepia Satildeo Paulo Olavobraacutes 2003 67 CAMPOS H ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo Conferecircncia apresentada

no II Congresso Brasileiro de Semioacutetica Satildeo Paulo 1985

69

Jakobson como jaacute se aludiu esforccedilou-se por introduzir uma visatildeo menos

pessimista expressa em seu referencial ensaio ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Diz ele

A praacutetica e a teoria da traduccedilatildeo abundam em problemas complexos de quando em

quando fazem-se tentativas de cortar o noacute goacuterdio proclamando o dogma da

impossibilidade da traduccedilatildeo ldquoO Sr Todo-Mundo esse loacutegico naturalrdquo tatildeo

vivamente imaginado por B L Whorf teria supostamente de raciocinar da

seguinte maneira ldquoOs fatos satildeo diferentes para pessoas cuja formaccedilatildeo linguiacutestica

lhes fornece uma formulaccedilatildeo diferente para expressar tais fatosrdquo68

Nos primeiros

anos da revoluccedilatildeo russa existiam visionaacuterios fanaacuteticos que advogaram[] uma

revisatildeo radical da linguagem tradicional e em particular a supressatildeo de expressotildees

enganosas como o ldquonascerrdquo ou ldquopocircrrdquo do Sol Entretanto [] eacute faacutecil para noacutes

passar de nossas conversaccedilotildees costumeiras sobre o Sol nascente ou poente agrave

representaccedilatildeo da rotaccedilatildeo da Terra [] porque qualquer signo pode ser traduzido

num outro signo em que ele se nos apresenta mais plenamente desenvolvido e mais

exato []

Toda experiecircncia cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer liacutengua

existente Onde houver uma deficiecircncia a terminologia poderaacute ser modificada por

empreacutestimos calccedilos neologismos transferecircncias semacircnticas e finalmente por

circunloacutequios [] (1973 66-67)

Sobre a questatildeo da equivalecircncia Jakobson afirma que

[] no niacutevel da traduccedilatildeo interlingual69

natildeo haacute comumente equivalecircncia completa

entre as unidades de coacutedigo ao passo que as mensagens podem servir como

interpretaccedilotildees adequadas das unidades de coacutedigo ou mensagens estrangeiras []

No caso da traduccedilatildeo poeacutetica apoacutes sustentar (conforme citaccedilatildeo jaacute incluiacuteda no

iniacutecio deste estudo) que ldquoem poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de

princiacutepio construtivo do textordquo e de que ldquoo trocadilho ou [] a paronomaacutesia reina na

68 Referecircncia a Benjamin Lee Whorf Language thought and reality Massachusetts Cambridge 1956

p 235 69 O linguista distingue trecircs espeacutecies de traduccedilatildeo intralingual ou reformulaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo dos signos

verbais por meio de outros signos da mesma liacutengua) interlingual ou traduccedilatildeo propriamente dita

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de alguma outra liacutengua) e traduccedilatildeo intersemioacutetica

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de sistemas de signos natildeo-verbais)

70

arte poeacuteticardquo o linguista considera que ldquoquer esta dominaccedilatildeo seja absoluta ou limitada

a poesia por definiccedilatildeo eacute intraduziacutevelrdquo Sendo assim para ele ldquosoacute eacute possiacutevel a

transposiccedilatildeo criativardquo (1973 72)

A expressatildeo ldquotransposiccedilatildeo criativardquo daria origem agrave palavra ldquotranscriaccedilatildeordquo

designadora do conceito de traduccedilatildeo poeacutetica segundo Haroldo de Campos que

examinou a questatildeo da ldquofragilidaderdquo de uma ldquoobra de arte verbalrdquo e propotildee do mesmo

modo o caminho de transcriaacute-lo Veja-se oportunamente a teoria da transcriaccedilatildeo de

Campos em toacutepico a ela dedicado neste estudo

71

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo

George Steiner em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo livro sobre traduccedilatildeo After Babel (1973)

diz70

que ldquoA traduccedilatildeo eacute necessaacuteria em razatildeo de os seres humanos falarem diferentes

liacutenguasrdquo (2005 77) A afirmaccedilatildeo aparentemente oacutebvia implica a noccedilatildeo de que sendo

necessaacuteria seraacute realizada independentemente de suas dificuldades ou mesmo de ser

ldquopossiacutevelrdquo ou ldquoimpossiacutevelrdquo Desde a Antiguidade haacute a praacutetica da traduccedilatildeo assim como

a reflexatildeo sobre ela Ao longo da histoacuteria diferentes modos de visatildeo da atividade se

sobrepotildeem se contradizem se complementam sem que haja qualquer perspectiva de

uma teoria uacutenica que venha a se converter em referencial universal para a praacutetica da

traduccedilatildeo Embora cada uma das teorias existentes possa reivindicar a superioridade

sobre as demais o que permanece eacute um conjunto intrincado e muito amplo de

formulaccedilotildees e consequentemente de possibilidades de metodologia para a atividade

tradutoacuteria Enquanto se pode ter a ideia de que sempre a transposiccedilatildeo de um sentido de

um idioma a outro seraacute possiacutevel pela ldquosubstituiccedilatildeo do material textual de uma liacutengua

pelo material textual equivalente em outra liacutenguardquo (J C Catford)71

agrave semelhanccedila de

vagotildees de um trem de carga que rearranjados da forma que for necessaacuteria conduziratildeo

todo o ldquoconteuacutedordquo da mensagem do ponto de partida ao ponto de chegada (Eugene

Nida)72

pode-se concluir pela impossibilidade da traduccedilatildeo (hipoacutetese Humboldt ndash Sapir-

Whorf73

) ou por uma oacuteptica menos ldquopessimistardquo (mesmo incorporando a ideia de

impossibilidade) que ofereceraacute saiacuteda (Jakobson) tambeacutem se pode questionar a ideia de

traduccedilatildeo relativizando o significado como algo absolutamente incorpoacutereo e inacessiacutevel

(Derrida) Com a permanecircncia num conjunto de historicidade complexa de uma

extensa pluralidade de teorias mais antigas e mais novas seraacute sempre necessaacuterio eleger

aquela ou aquelas que melhor se prestem a determinadas perspectivas de realizaccedilatildeo

70 Utilizaremos para as citaccedilotildees de Steiner a ediccedilatildeo brasileira de seu livro Depois de Babel questotildees de

linguagem e traduccedilatildeo (Curitiba UFPR 2005) em traduccedilatildeo de Carlos Alberto Faraco 71 CATFORD J C A linguistic theory of translation Oxford Oxford University Press 1965 Traduccedilatildeo

brasileira Uma teoria linguiacutestica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1980 72 NIDA E Language structure and translation California Stanford University Press 1975 73

Wilhelm von Humboldt argumentou que as diferentes liacutenguas determinam constroem ldquovisotildees de

mundordquo (Weltanschauungen) diversas a ideia foi desenvolvida posteriormente pelos linguistas norte-

americanos Edward Sapir e Benjamin Whorf

72

Steiner considera que a ldquobibliografia sobre teoria praacutetica e histoacuteria da traduccedilatildeo

[] pode ser distribuiacuteda por quatro periacuteodosrdquo (259) embora natildeo haja linhas divisoacuterias

niacutetidas O primeiro por ele delimitado corresponde a um periacuteodo de dezenove seacuteculos

estende-se

[] do famoso preceito de Ciacutecero que recomenda em seu Libellus de optimo

genere oratorum de 46 a C que natildeo se traduza verbum pro verbo (ldquopalavra por

palavrardquo) e de sua reiteraccedilatildeo por Horaacutecio na Ars Poetica aproximadamente 20

anos mais tarde ateacute o enigmaacutetico comentaacuterio de Houmllderlin sobre suas proacuteprias

traduccedilotildees de Soacutefocles (1804)

O autor baseia-se para sua definiccedilatildeo desse imenso intervalo no fato de que

nele ldquoanaacutelises e pronunciamentos seminais brotam diretamente do empreendimento do

tradutorrdquo e destaca no periacuteodo

as observaccedilotildees e polecircmicas de Satildeo Jerocircnimo o magistral Sendbrief vom

Dolmetschen de Lutero (1530) os comentaacuterios de Du Bellay Montaigne e

Chapman os de Jacques Amyot para os leitores de sua traduccedilatildeo de Plutarco [] as

elaboraccedilotildees de Dryden sobre Horaacutecio Quintiliano e Jonson as de Pope sobre

Homero as de Rochefort sobre a Iliacuteada A teoria de Floacuterio [] os pontos de vista

gerais de Cowley [] o De interpretatione recta de Leonardo Bruni [] O tratado

de Huet [] (259-260)

Algumas notaccedilotildees que faccedilo de marcos (entre outros possiacuteveis) nessa histoacuteria

Ciacutecero inicia a histoacuteria da tradutologia distingue entre ut interpres (mero

tradutor) e ut orator (orador escritor) rechaccedilando a traduccedilatildeo literal (pro verbo

uerbum) Nec verbum verbo reddere fidus interpres (ldquonatildeo se preocupe em verter

palavra por palavra como um fiel inteacuterpreterdquo) Mas antes no seacutec VI a C quando a

liacutengua persa dominava o oriente os targumistas (targum traduccedilatildeo interpretaccedilatildeo)

ajudavam o puacuteblico a entender os versos biacuteblicos traduzindo-os oralmente e

comentando-os ndash cite-se o lema de Judaacute bem Ilai ldquoo que traduz literalmente eacute um

falsaacuterio o que acrescenta algo eacute um blasfemordquo No seacuteculo III a C judeus integrados agrave

cultura heleniacutestica do Mediterracircneo centro-oriental ocasionam a necessidade de

73

traduccedilatildeo de textos sagrados para o grego por dificuldade de leitura do hebraico surge o

primeiro caso histoacuterico de traduccedilatildeo bem-sucedida ndash a Biacuteblia na ldquoversatildeo dos setentardquo

ldquo72 anciatildeos traduzem em 72 dias inspirados pela divindaderdquo No final do seacuteculo IV

aparece a Vulgata Satildeo Jerocircnimo procede agrave revisatildeo dos textos biacuteblicos latinos existentes

a partir do grego e realiza a traduccedilatildeo do velho testamento com base no texto hebraico

propotildee que ldquoEadem igitur interpretandi sequenda est regula quam saepe diximus ut

ubi non sit damnum in sensu linguae in quam transferimus εὐφωνία et proprietas

conserveturrdquo74

(ldquoAssim pois deve-se seguir a regra de traduccedilatildeo que jaacute indicamos vaacuterias

vezes quando natildeo redunde em detrimento do sentido haacute que se conservar a eufonia e as

caracteriacutesticas proacuteprias da liacutengua que se traduzrdquo) Na Idade Meacutedia Maimocircnides formula

concepccedilotildees acerca de procedimentos de traduccedilatildeo que ainda correspondem a uma visatildeo

pragmaacutetica de equivalecircncia adotada por tradutores

O tradutor que pretenda verter literalmente cada vocaacutebulo e apegar-se servilmente

agrave ordem das palavras e frases do original depararaacute com muitas dificuldades e o

resultado apresentaraacute reparos e corruptelas O tradutor teraacute de apreender primeiro

todo o alcance da ideia e reproduzir depois seu conteuacutedo com maacutexima clareza em

outro idioma Mas isto natildeo pode ser realizado sem alterar a disposiccedilatildeo sintaacutetica

sem usar de muitos vocaacutebulos onde soacute havia um ou vice-versa e sem acrescentar

ou suprimir palavras de tal maneira que a mateacuteria resulte perfeitamente inteligiacutevel

na liacutengua para a qual se traduz75

Na Idade Moderna durante o Renascimento destaca-se o problema da traduccedilatildeo

de textos sagrados Lutero e Frei Luis de Leoacuten satildeo partidaacuterios da ldquoliteralidaderdquo (ldquose

pudesse ater-me agrave letra o fariardquo ndash Lutero) haacute preocupaccedilatildeo com a ldquonaturalidaderdquo no

idioma de chegada que levaria a acusaccedilotildees de uso de linguagem profana nos textos

biacuteblicos Em 1533 surge a obra De ratione dicendi de Juan Luis Vives que traz

ldquoquestotildees certamente muito sugestivas para a moderna teoria moderna da traduccedilatildeordquo

(Torre 1994 35) o linguista romeno Coseriu o considera ldquoprecursor da teoria moderna

do traduzirrdquo pelo fato de ele propor o problema da traduccedilatildeo como uma atividade

74 Hieronymus Epistolae 4 106 55 75 A partir da versatildeo ao espanhol de Santoyo (Santoyo J C Teoriacutea y criacutetica de La traduccioacuten Antologiacutea

Barcelona Bellaterra 1987) que por sua vez traduziu da versatildeo inglesa de Stitskin (Stitskin L D

Letters of Maimonides New York Yeshiva University Press 1977) Apud Torre E Teoria de La

traduccioacuten literaacuteria Madri Sintesis 1994 p 24

74

diferenciada para cada tipo de texto suas colocaccedilotildees centrais vatildeo ao encontro de

proposiccedilotildees como as de Nida (Theory and Practice of Translation 1969) para ele a

traduccedilatildeo eacute ldquouma transferecircncia de palavras de uma liacutengua a outra conservando-se o

sentidordquo76

Distingue trecircs tipos de traduccedilatildeo

Em algumas versotildees atende-se somente ao sentido (solus spectatur sensus) em

outras somente agrave construccedilatildeo e ao estilo [] como se por exemplo algueacutem

tentasse trasladar a outras liacutenguas os discursos de Demoacutestenes ou de Ciacutecero ou os

poemas de Homero ou de Virgiacutelio respeitando fielmente todas as suas

caracteriacutesticas e nuanccedilas [] Um terceiro tipo de versatildeo eacute aquele em que se tecircm

em conta tanto os conteuacutedos 77

como as palavras (et res et verba) isto eacute quando as

palavras vecircm a adicionar forccedila e graccedila agraves ideias seja isoladamente ou em grupos

ou na totalidade do discurso78

Mencione-se tambeacutem como referecircncia especialmente marcante a proposiccedilatildeo de

Alexander Fraser Tytler (1792) comumente citadas como a manifestaccedilatildeo modelar da

concepccedilatildeo logocecircntrica da traduccedilatildeo79

1 A traduccedilatildeo deve reproduzir em sua totalidade a ideia do texto original

2 O estilo da traduccedilatildeo deve ser o mesmo do original

3 A traduccedilatildeo deve ter toda a fluecircncia e a naturalidade do texto original

E ainda o ldquodecisivo ensaiordquo (Steiner 2005 260) de Friedrich Schleirmacher80

ldquoUeber die verschiedenen Methoden des Uebersetzensrdquo (ldquoSobre os diferentes meacutetodos

de traduccedilatildeordquo conforme traduccedilatildeo brasileira)81

de 1813 Schleiermacher distingue

primeiramente ldquoduas formasrdquo que teriam sido inventadas de ldquotravar conhecimento com

as obras de liacutenguas desconhecidasrdquo ndash a ldquoimitaccedilatildeordquo e a ldquoparaacutefraserdquo

76 Apud TORRE 1994 p35 77 Apud ARROJO R 2003 A partir de The principles of translation (1791) apud Bassnet-McGuire

Susan Translation studies p 63 78 Id ib 79 Vejam-se as referecircncias agraves concepccedilotildees desconstrucionistas neste trabalho Outras observaccedilotildees sobre o assunto seratildeo incluiacutedas adiante 80 O filoacutesofo Shleiermacher (1768-1834) foi um dos criadores do Romantismo alematildeo ao lado dos irmatildeos

August e Friedrich Schlegel do poeta Novalis do autor de obras dramaacuteticas Ludwig Tieck e do tambeacutem

filoacutesofo Schelling todos unidos em torno da revista ldquoAtheanumrdquo em 1797 81 SCHLEIRMACHER F Traduccedilatildeo de Margarete Von Muumlhlen Poll In Claacutessicos da teoria da traduccedilatildeo

vol I ndash Alematildeo-portuguecircs Florianoacutepolis UFSC 2001 p 27

75

A paraacutefrase quer dominar a irracionalidade das liacutenguas mas somente de forma

mecacircnica [] O parafraseador lida com os elementos de ambas as liacutenguas como se

fossem sinais matemaacuteticos que se deixam levar aos mesmos valores por adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo e nem o espiacuterito da liacutengua traduzida nem o da liacutengua original

conseguem aparecer nesse procedimento [] Em contrapartida a imitaccedilatildeo se

curva ante a irracionalidade das liacutenguas [] natildeo restaria outra coisa com a

diversidade das liacutenguas com a qual tantas outras diversidades estatildeo ligadas a natildeo

ser esboccedilar uma imitaccedilatildeo um todo composto de elementos visivelmente diferentes

dos do original que contudo aproximasse o seu efeito daquele tanto quanto as

diferenccedilas de material ainda lhe permitissem (2005 41-43)

Mas a contribuiccedilatildeo mais importante do pensador alematildeo foi a distinccedilatildeo entre

caminhos a serem seguidos pelo ldquoverdadeiro tradutorrdquo (ldquoaquele que realmente pretende

levar as encontro essas duas pessoas tatildeo separadas seu autor e seu leitor []rdquo) ldquo[] que

caminhos ele [o verdadeiro tradutor] pode tomar A meu ver soacute existem dois Ou o

tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor ateacute ele ou deixa o leitor em paz e leva o

autor ateacute elerdquo (2001 43)

Com a obra de Tytler e a de Schleiermacher encerra-se segundo Steiner o

primeiro periacuteodo da histoacuteria bibliograacutefica da traduccedilatildeo caracterizada essencialmente por

uma orientaccedilatildeo empiacuterica de ldquoasserccedilotildees e notaccedilotildees teacutecnicas primaacuteriasrdquo iniciando-se

entatildeo o segundo periacuteodo eminentemente teoacuterico e voltado agrave investigaccedilatildeo

hermenecircutica ldquoA questatildeo da natureza da traduccedilatildeo eacute posicionada no interior das teorias

mais gerais da linguagem e da mente [] A abordagem hermenecircutica [] foi iniciada

por Schleiermacher e adotada por A W Schlegel e Humboldtrdquo Steiner atribui a ldquoesse

intercacircmbiordquo relatos dos mais reveladores sobre traduccedilatildeo como os de Goethe

Schopenhauer Matthew Arnold Paul Valeacutery Ezra Pound Walter Benjamin e Ortega y

Gasset entre outros Sobre Arnold mencione-se que em seu ensaio On translating

Homer (1861) ldquosustenta a tese de que toda boa traduccedilatildeo haveria de produzir no leitor de

liacutengua receptora a mesma impressatildeo que produziu o original em sua eacutepoca em seus

primeiros leitoresrdquo enquanto F W Newman (tambeacutem em 1861) ldquodefendia exatamente

o contraacuterio a traduccedilatildeo deveria seguir fielmente as caracteriacutesticas formais do texto

original e o leitor da traduccedilatildeo haveria de ter sempre a impressatildeo de que se encontrava

76

precisamente diante de uma traduccedilatildeo e natildeo diante do texto originalrdquo (Torre 1994 47)

O ldquoperiacuteodo de teorizaccedilatildeo e definiccedilatildeo poeacutetico-filosoacuteficardquo termina para Steiner com Sous

lrsquonvocation de Saint Jeacuterome (1946) de Valery Larbaud

O terceiro periacuteodo eacute marcado pela aplicaccedilatildeo por estudiosos russos e tchecos ndash

ldquoherdeiros do movimento formalistardquo de teorias linguiacutesticas e estatiacutesticas no estudo da

traduccedilatildeo Quine (1960) e Andrej Fedorov (1953) estatildeo entre os autores representativos

do contexto

Um novo periacuteodo se configura para Steiner a partir das proximidades da deacutecada

de 1970 surge um novo interesse na hermenecircutica da traduccedilatildeo despertado pela

redescoberta do texto ldquoDie Aufgabe decircs Uumlbersetzersrdquo (ldquoA tarefa do tradutorrdquo) de

Walter Benjamin (1923) e pela influecircncia de Heidegger e Hans-George Gadamer a

reflexatildeo sobre teoria e praacutetica da traduccedilatildeo se transforma num ponto de contato entre

diferentes disciplinas Quanto agraves ideias de Walter Benjamin dadas a sua complexidade

e a sua importacircncia para a discussatildeo da atividade tradutoacuteria ndash e em especial para a

teorizaccedilatildeo sobre traduccedilatildeo poeacutetica por Haroldo de Campos ndash elas seratildeo referidas

oportunamente ao tratarmos das reflexotildees do brasileiro

77

B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo

Eacute recente ndash de 2011 ndash a publicaccedilatildeo de Teorias contemporaneas de la traduccioacuten

de A Pym82

Para uma raacutepida referecircncia ao panorama teoacuterico geral sobre traduccedilatildeo creio

que essa seja a fonte mais conveniente pela proposta de categorizaccedilatildeo e pela

abrangecircncia que encerra

O autor afirma que estruturou seu estudo ldquoem torno de paradigmas e natildeo de

teorias teoacutericos ou escolas individuaisrdquo Propotildee-se a examinar os paradigmas baseados

em ldquoequivalecircnciardquo ldquofinalidaderdquo ldquodescriccedilatildeordquo ldquoindeterminaccedilatildeordquo e ldquolocalizaccedilatildeordquo os

paradigmas aparecem em parte por ordem cronoloacutegica dos anos 1960 agrave atualidade

Quanto agraves teorias anteriores diz Pym ldquoAs teorias novas substituiacuteram as teorias

precedentes Em absoluto Todos os paradigmas continuam funcionando ateacute certo

ponto en contextos profissionais ou acadecircmicos atuais Todos merecem ser objeto de

um estudo geralrdquo

Sobre as teorias enquadradas no primeiro paradigma diz Pym ao apresentar

suas bases conceituais

En el aacutembito de la linguiacutestica se prestoacute atencioacuten al problema del ldquosentidordquo

Saussure habiacutea establecido una distincioacuten entre el ldquovalorrdquo que tiene una palabra

(con relacioacuten al sistema del lenguaje) y su ldquosignificacioacutenrdquo (que tiene en el uso

concreto) Consideremos el ejemplo famoso del ajedrez el valor del caballo es la

suma de todos los movimientos que puede hacer mientras que la significacioacuten de

un caballo en concreto depende de la posicioacuten que ocupe en el tablero en un

momento dado Por tanto el valor depende del sistema que Saussure denominoacute

langue (lengua) mientras que la significacioacuten depende del uso concreto que

Saussure denominoacute parole (habla) Para algunos teoacutericos como Coseriu podriacutea

trazarse una correspondencia entre esos teacuterminos y la distincioacuten en alemaacuten entre

Sinn (significado estable) y Bedeutung (significado momentaacuteneo significacioacuten) Si

una traduccioacuten no puede reproducir el primero podriacutea tal vez transmitir el

segundo En espantildeol por ejemplo no hay palabra equivalente al vocablo ingleacutes

shallow tal como aparece en la expresioacuten shallow water No obstante su

82 Anthony Pym que eacute professor de Traduccedilatildeo e Estudos Interculturais na Universitat Rovira i Virgili em

Tarragona (Catalunha Espanha) publicou o trabalho em liacutengua espanhola O livro encontra-se

disponiacutevel pela internet em site da referida Universidade

78

significacioacuten se puede transmitir empleando dos palabras poco profundo (cf

Coseriu 1978) Asiacute queda demostrado que aunque las estructuras de ambos

idiomas sean diferentes es posible establecer cierta equivalencia

E cita posteriormente algumas das primeiras definiccedilotildees de ldquoequivalecircnciardquo

La traduccioacuten entre lenguas puede definirse como la sustitucioacuten de los elementos

de un idioma el campo [domain] traductivo por elementos equivalentes de otro

idioma la gama [range] traductiva (A G Oettinger 1960 110)

La traduccioacuten podriacutea definirse de la siguiente manera la sustitucioacuten del material

textual en un idioma por material equivalente en otro idioma (Catford 1965 20)

Traducir consiste en reproducir en la lengua meta el equivalente natural maacutes

proacuteximo al mensaje de la lengua de origen (Nida and Taber 1969 12 cf Nida

1959 33)

[La traduccioacuten] lleva de un texto de origen a un texto de destino que es el

equivalente lo maacutes proacuteximo posible y presupone una comprensioacuten del contenido y

el estilo del original (Wilss 1982 62)

Sobre as teorias agrupadas com base no paradigma da finalidade diz o autor

[] es frecuente encontrar referencias a la Skopostheorie la llamada teoriacutea del

Skopos que es la palabra griega para lo que denominaremos ldquofinalidadrdquo Este

teacutermino forma el nuacutecleo de la ldquoteoriacutea generalrdquo de Reiss y Vermeer gracias sobre

todo a la proposicioacuten siguiente

Una accioacuten viene determinada por su finalidad (o sea es una funcioacuten de su

finalidad) (Reiss y Vermeer 1984 101[])

Esta ldquoregla del Skoposrdquo implica que el acto de traducir considerado como una

accioacuten obedece en uacuteltima instancia a las razones por las cuales alguien ha

encargado la traduccioacuten []

[] tenemos el mismo texto de origen varias posibles traducciones y un factor

dominante el Skopos

O paradigma seguinte o das teorias descritivas nasceria da noccedilatildeo de que ldquoa

equivalecircncia eacute uma caracteriacutestica de todas as traduccedilotildees sem importar sua qualidade

linguiacutestica ou esteacuteticardquo de modo a que o conceito natildeo poderia servir para a formaccedilatildeo

79

prescritiva de tradutores O que se propotildee dentro desse paradigma eacute descrever o que

satildeo na realidade as traduccedilotildees ou como satildeo efetivamente feitas e natildeo apenas

prescrever como elas deveriam ser Por essa razatildeo a mudanccedila da prescriccedilatildeo para a

descriccedilatildeo representou como diz Pym um claro desafio ao paradigma da equivalecircncia

Enquadram-se nesta categoria entre outros constructos teoacutericos o do formalismo russo

e do estruturalismo do Ciacuterculo Liacutenguiacutestico de Praga

Para abordar as teorias referentes ao paradigma do indeterminismo Pym se vale

inicialmente de um comentaacuterio sobre a permanecircncia em certa medida do paradigma da

equivalecircncia em traduccedilatildeo para ele as diferentes versotildees desse paradigma ainda

ldquosubjazem na maior parte do trabalho realizado em tradutologiardquo O autor constata que

a equivalecircncia natildeo morreu ainda que tenha sido questionada De seu ponto de vista haacute

duas ldquorazotildees profundasrdquo para as duacutevidas teoacutericas relativas agrave equivalecircncia e que natildeo

provecircm dos dois paradigmas jaacute mencionados a ldquoinstabilidade da lsquoorigemrsquordquo (ldquoa

investigaccedilatildeo descritiva mostra que as tarefas dos tradutores variam consideravelmente

em funccedilatildeo de seu posicionamento cultural e histoacutericordquo) e o ldquoceticismo epistemoloacutegicordquo

Faz tempo como observa Pym que os filoacutesofos da proacutepria ciecircncia e mais tarde os das

humanidades puseram em duacutevida a ldquocertezardquo proacutepria das diversas formas de

estruturalismo ao assumirem que o estudo cientiacutefico poderia produzir conhecimentos

estaacuteveis num mundo de relaccedilotildees puras ndash ldquoas relaccedilotildees entre coisas natildeo podem ser

separadas das relaccedilotildees entre pessoasrdquo e por isso o estruturalismo deu origem ao poacutes-

estruturalismo e agrave desconstruccedilatildeo nos estudos literaacuterios e culturais Segundo Pym uma

teoria ldquodeterministardquo pressupotildee um tipo de relaccedilatildeo em que um fator X impotildee a natureza

de um fator Y e assim a determina enquanto uma teoria ldquoindeterministardquo admite que a

relaccedilatildeo ldquonatildeo eacute tatildeo direta tatildeo unidirecional tatildeo binaacuteria ou tatildeo faacutecil de observarrdquo (113)

Entre as teorias estudadas sob este paradigma encontra-se evidentemente a

desconstruccedilatildeo

As ideias e praacuteticas reunidas sob o uacuteltimo dos paradigmas identificados por

Pym o da localizaccedilatildeo ldquoprovavelmente natildeo formamrdquo segundo ele ldquouma teoria da

traduccedilatildeo do estrito ponto de vista acadecircmicordquo Nascidas para atender a necessidades de

mercado ndash ldquoa localizaccedilatildeo implica fazer com que um produto seja apropriado linguiacutestica

e culturalmente ao mercado local de destino onde seraacute utilizado e vendidordquo (segundo

uma Associaccedilatildeo norte-americana dedicada agrave aacuterea) ndash ldquonatildeo satildeo mais que um conjunto de

nomes e ideias desenvolvido dentro de alguns setores da induacutestria da linguagemrdquo O

80

autor comenta que ldquose os idiomas e as culturas satildeo tatildeo incertos e instaacuteveis que ningueacutem

pode estar seguro sobre o que eacute a equivalecircncia entatildeo uma soluccedilatildeo poderia ser criar-se

um conjunto de idiomas e culturas artificiais onde a certeza fosse possiacutevelrdquo

Uma vez apresentado ligeiramente este breve panorama pode-se deduzir que a

grande questatildeo remanescente no campo da teoria da traduccedilatildeo e portanto em relaccedilatildeo agraves

possibilidades de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees diz respeito ao conceito de equivalecircncia

sua utilizaccedilatildeo (ou natildeo) como fundamento para a atividade tradutoacuteria e as possiacuteveis

formas de seu emprego caso seja ele considerado Assim seraacute aproveitada esta

constataccedilatildeo para que se apresente uma breve reflexatildeo sobre as possibilidades de um

estudo comparativo de traduccedilotildees a ser aqui realizado

O construto teoacuterico da ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos deve enquadrar-

se ainda que imprecisamente (pelas limitaccedilotildees da categorizaccedilatildeo apresentada presentes

em qualquer categorizaccedilatildeo) entre as teorias descritivas pelo niacutevel geneacuterico de suas

ldquoprescriccedilotildeesrdquo (voltadas apenas ao posicionamento de iniciativa criadora incluindo-se a

ousadia criativa e agrave noccedilatildeo de ldquoconstruccedilatildeo paramoacuterficardquo que permite um amplo campo

de accedilotildees diacutespares conforme a leitura) e pela concepccedilatildeo dessacralizante do ldquooriginalrdquo a

ser recriado diante do qual se prevecirc a atitude rebelionaacuteria

81

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre

traduccedilotildees

No ensaio ldquoFidelidade em traduccedilatildeo poeacutetica o caso Donnerdquo Paulo Henriques

Britto assim sintetiza de iniacutecio a questatildeo sobre a possibilidade de se compararem

traduccedilotildees tendo em conta a visatildeo desconstrucionista

Na aacuterea de Estudos da Traduccedilatildeo no Brasil tem certa influecircncia o ideaacuterio poacutes-

estruturalista que pode ser encarado como uma versatildeo contemporacircnea do

ceticismo em sua versatildeo mais radical mdash natildeo o ceticismo de Hume mas o de Sexto

Empiacuterico A posiccedilatildeo poacutes-estruturalista pode ser resumida aproximadamente como

se segue os textos natildeo possuem significados estaacuteveis que correspondam a

intenccedilotildees que seus autores tivessem em mente ao escrevecirc-los (se eacute que os autores

tecircm controle total sobre suas intenccedilotildees) soacute temos acesso a nossas proacuteprias leituras

dos textos Assim quando dizemos que uma dada traduccedilatildeo eacute fiel ao original

estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traduccedilatildeo eacute fiel agrave nossa leitura do

original nada podemos afirmar sobre os textos em si Entende-se pois que natildeo

haja consenso absoluto a respeito dos meacuteritos relativos de duas traduccedilotildees de um

dado texto se achamos a traduccedilatildeo de um texto feita por A melhor que a feita por

B isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais agrave do

tradutor A do que a de B e nada mais haacute a se dizer (2006 239) 83

Britto parte para uma contribuiccedilatildeo sua agrave comparaccedilatildeo de traduccedilotildees do artigo (jaacute

mencionado neste trabalho) ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo de R

Arrojo sobre uma polecircmica ocorrida entre os criacuteticos e tradutores Nelson Ascher e

Paulo Vizioli relativa a traduccedilotildees da poesia de John Donne realizadas por Augusto de

Campos e por Vizioli Ele cita um trecho do referido artigo

[] a traduccedilatildeo de um poema e a avaliaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo natildeo poderatildeo realizar-se

fora de um ponto de vista ou de uma perspectiva ou sem a mediaccedilatildeo de uma

ldquointerpretaccedilatildeordquo Portanto a traduccedilatildeo de um poema ou de qualquer outro texto

inevitavelmente seraacute fiel agrave visatildeo que o tradutor tem desse poema e tambeacutem aos

objetivos de sua traduccedilatildeo [] Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos satildeo

83 Publicado na revista Terceira margem nuacutemero 15 Rio de Janeiro julho-dezembro de 2006 pp 239-

253

82

ldquofieacuteisrdquo agraves suas concepccedilotildees teoacutericas acerca de traduccedilatildeo e acerca da poesia de

Donne e nesse sentido tanto as traduccedilotildees de um como de outro satildeo legiacutetimas e

competentes Inevitavelmente as traduccedilotildees de cada um deles agradaratildeo aos

leitores que consciente ou inconscientemente compartilharem de seus

pressupostos e desagradaratildeo agravequeles que como Ascher jaacute foram seduzidos por

pressupostos diferentes

Apoacutes comentar que ldquonum primeiro momentordquo essa argumentaccedilatildeo (de que natildeo

temos jamais acesso agrave coisa-em-si mas somente agrave nossa percepccedilatildeo dela) parece

inatacaacutevel Britto aponta a existecircncia de um problema esse argumento natildeo se aplicaria

apenas agrave traduccedilatildeo e deveria valer aos outros campos do saber Evoca entatildeo o fato de

os cientistas dedicados agraves questotildees da fiacutesica contemporacircnea (aacuterea de conhecimento na

qual tambeacutem natildeo se teria acesso agrave realidade-em-si) ao natildeo serem unacircnimes em relaccedilatildeo

agrave teoria das cordas (uma das tentativas de teoria unificada) prosseguirem com

experimentos publicaccedilotildees e debates em vez de se contentarem com a constataccedilatildeo de

que as discordacircncias se devam somente aos diferentes pressupostos de cada fiacutesico para

concluir que ldquoo ponto de partida de Arrojo procede mas a conclusatildeo a que ela chega

natildeo se sustentardquo

Eacute verdade que natildeo temos acesso direto ao real e que todas nossas opiniotildees satildeo

qualificadas pelosnossos pressupostos mas essa constataccedilatildeo natildeo leva agrave conclusatildeo

de que todas as traduccedilotildees ou todas as teorias satildeo igualmente ldquolegiacutetimas e

competentesrdquo Pelo contraacuterio eacute precisamente porque natildeo temos esse acesso direto

ao real que eacute necessaacuterio analisar discutir e tentar estabelecer consensos ainda que

parciais ndash pois se o real se oferecesse diretamente como evidecircncia agrave inteligecircncia

humana o que haveria para discutir

Depois de contestar diversos argumentos possiacuteveis a favor da noccedilatildeo

desconstrucionista o autor propotildee um procedimento de anaacutelise comparativa cujas

providecircncias satildeo primeiramente assinalar em negrito no ldquotexto originalrdquo ldquotoda

palavra ou expressatildeo cujo significado pareccedila natildeo ter sido transposto na traduccedilatildeordquo

depois marcar em itaacutelico no ldquooriginalrdquo e nas traduccedilotildees ldquotoda passagem cujo sentido

tenha sido alterado de forma significativardquo e ainda sublinhar nas traduccedilotildees ldquoas

palavras e expressotildees que no plano do sentido parecem natildeo corresponder a nada que

conste no originalrdquo

83

Veja-se como exemplo um pequeno fragmento do poema analisado em ambas

as versotildees ao portuguecircs

Antes da anaacutelise o autor observa que sendo o texto em inglecircs composto em

pares de pentacircmetros jacircmbicos84

as duas traduccedilotildees utilizaram medidas diferentes

Vizioli o dodecassiacutelabo Campos o decassiacutelabo E comenta que embora ldquoa maioria dos

tradutoresrdquo tendesse a considerar o decassiacutelabo como o verso portuguecircs mais proacuteximo

do pentacircmetro jacircmbico poderia ser vantajoso usar o verso de doze siacutelabas pois sendo

as palavras inglesas mais curtas do que as portuguesas haveria menor chance de cortes

visando agrave manutenccedilatildeo do nuacutemero de siacuteladas

Na etapa seguinte Britto exibe um quadro com a quantificaccedilatildeo das marcaccedilotildees

em negrito itaacutelico e sublinhas

84Versos de cinco jambos ou seja cinco peacutes binaacuterios com a tocircnica na segunda siacutelaba

84

Faz ele entatildeo algumas constataccedilotildees

No que diz respeito agraves perdas de significado e agraves alteraccedilotildees de elementos

semacircnticos as duas traduccedilotildees se equivalem com ligeira vantagem para V por

outro lado V apresenta muito mais acreacutescimos do que C Ou seja ao queparece a

adoccedilatildeo de um metro mais longo em V embora permitisse diminuir um pouco as

perdas e alteraccedilotildees semacircnticas teve o efeito contraproducente de obrigar o tradutor

a acrescentar um grande nuacutemero de palavras e expressotildees que natildeo correspondem a

nada que se encontre no original a fim de preencher as doze siacutelabas de cada verso

Examinando a primeira tabela mais detidamente chegamos a uma outra

constataccedilatildeo importante dos 15 acreacutescimos em V nada menos que 11 ocorrem em

posiccedilatildeo final o que parece indicar que as palavras em questatildeo foram acrescentadas

com o duplo objetivo de preencher espaccedilo e tambeacutem forccedilar uma rima Quando

verificamos que em C haacute apenas um acreacutescimo em posiccedilatildeo final somos levados a

concluir que em C muito mais do que em V as rimas se datildeo entre termos que

correspondem semanticamente ao original ao passo que em V em 11 versos

traduziu-se o sentido do original e em seguida acrescentaram-se uma ou mais

palavras ao verso para que houvesse rima Ou seja em V o metro mais longo foi a

soluccedilatildeo encontrada pelo tradutor para compensar sua dificuldade em encontrar

soluccedilotildees que funcionassem ao mesmo tempo no plano do significado e no da rima

Este fato se comprovado por si soacute jaacute constitui um forte argumento em favor da

superioridade de C (245)

Britto passa a examinar ldquoos 11 diacutesticos em cujas traduccedilotildees houve acreacutescimos na

posiccedilatildeo final dos versosrdquo para comprovar a sua hipoacutetese Apoacutes a anaacutelise enumera

verificaccedilotildees a respeito dos aspectos observados nas traduccedilotildees para concluir por fim

que ldquoeacute possiacutevel argumentar que C eacute superior a V quanto ao quesito fidelidade

utilizando argumentos razoavelmente objetivos Dizer que as pessoas que preferem a de

Campos agrave de Vizioli o fazem apenas por compartilharem os pressupostos de Campos e

natildeo os de Vizioli natildeo resolve o problema []rdquo

O esforccedilo de Britto eacute de grande relevacircncia procura um meio de natildeo se

permanecer na relativizaccedilatildeo total em que tudo poderia ser igualmente ldquovaacutelidordquo (e

portanto tendente a despir-se de atrativos para a busca das qualidades proacuteprias de cada

criaccedilatildeo responsaacuteveis pela fruiccedilatildeo e pelo conhecimento que os textos proporcionam)

para distinguir caracteriacutesticas ndash e com elas vantagens ou desvantagens ndash de cada uma

85

das traduccedilotildees concluindo pela ldquosuperioridaderdquo de uma sobre a outra No entanto eacute

nesta parte que continua a residir em meu modo de ver uma duacutevida quais as vantagens

de se constatar por um meacutetodo de anaacutelise ndash entre outros certamente possiacuteveis ndash a

superioridade de um trabalho sobre o outro Pode-se argumentar que a escolha dos

procedimentos jaacute seraacute compatiacutevel com um ponto de vista e coerente com a hipoacutetese

preconcebida Nesse sentido uma reafirmaccedilatildeo do foco descritivo que manteacutem a noccedilatildeo

da relatividade de avaliaccedilotildees permite observar por meio da constataccedilatildeo de diferenccedilas

o modo como realizaccedilotildees distintas operam em suas escolhas natildeo necessariamente se

dando um passo conclusivo sobre a inferioridade ou natildeo de um resultado sobre outro

No caso em questatildeo a superioridade eacute depreendida em relaccedilatildeo ao quesito ldquofidelidaderdquo

sendo esta vinculada ao aspecto semacircntico ou ao ldquoplano do conteuacutedordquo poderia ser

outro o quesito e poderiam ser outras portanto as conclusotildees natildeo se pode esquecer

que a ldquofidelidade ao sentidordquo eacute como outras condiccedilotildees predefinidas discutiacutevel como

referecircncia essencial e se fundamenta inevitavelmente no conceito de equivalecircncia

Embora este pareccedila ser um conceito que tende a resistir aos questionamentos e

relativizaccedilotildees da noccedilatildeo de origem natildeo deveraacute penso ser visto como mais do que um

dos possiacuteveis princiacutepios sobre os quais se poderaacute buscar correspondecircncias para

verificaccedilatildeo de resultados num processo geral de ldquodesvendamentordquo das caracteriacutesticas

que compotildeem os textos como fontes de leitura e de recriaccedilatildeo O que eacute importante

admitir para a viabilizaccedilatildeo de qualquer passo de anaacutelise ou compreensatildeo eacute que o texto

eacute um objeto que pode ser lido e ldquocriadordquo pela leitura de modos diversos mas que

tambeacutem apresenta caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias que vatildeo aleacutem do significado e

sua permanecircncia do mesmo modo que um poema traduzido as teraacute e natildeo

necessariamente as ldquomesmasrdquo do texto do qual partiu uma vez que tambeacutem seja visto

como criaccedilatildeo como um poema autocircnomo A questatildeo eacute que um poema que ldquofuncione

bemrdquo ainda que em determinado contexto poderaacute ser considerado uma boa traduccedilatildeo

mesmo que pouco ldquofielrdquo sob certos aspectos ao texto do qual partiu Lembre-se por

exemplo entre tantas outras referecircncias possiacuteveis a traduccedilatildeo de Fitzgerald do Rubayat

de Omar Khayam tatildeo ldquodiferenterdquo do original persa no aspecto da ldquofidelidaderdquo

semacircntica e que se tornou ele mesmo um claacutessico da poesia universal

Haroldo de Campos fala em ldquovivissecccedilatildeo implacaacutevelrdquo do poema ldquooriginalrdquo

pressupondo sua materialidade necessaacuteria para um exame particular que pode originar

um novo ser uma criaccedilatildeo ldquoparamoacuterficardquo de ldquoestrutura anaacutelogardquo (construiacuteda com base

86

no reconhecimento propiciado por referenciais linguiacutestico-esteacuteticos como a funccedilatildeo

poeacutetica da linguagem ou a iconicidade do signo) nascida ao lado do outro que a

antecedeu Mas a proposta de Campos central neste estudo seraacute vista em outro

capiacutetulo

Voltando ao ensaio de Britto ele eacute tatildeo relevante para a poesia e para a traduccedilatildeo

de poesia como o ensaio de Arrojo que o motivou Ainda que se discorde do autor (que

prevecirc em seu texto as inevitaacuteveis discordacircncias) por exemplo em relaccedilatildeo a sua crenccedila

no valor da equivalecircncia e nos ldquofatosrdquo ndash manifesta na ideia de se cotejarem duas

traduccedilotildees e original ldquolinha a linha siacutelaba a siacutelaba examinando e pesando as diferenccedilas

para se chegar a uma conclusatildeo baseada em fatos [] e expressa em argumentos loacutegicos

(natildeo por exemplo em trocadilhos)rdquo ndash seu empreendimento vai contra a imobilidade e a

resignaccedilatildeo

Atualmente nos estudos da traduccedilatildeo como na aacuterea dos estudos literaacuterios eacute

frequente o argumento de que como natildeo podemos ter acesso direto a um

significado essencial absolutamente estaacutevel devemos adotar um relativismo

absoluto ndash todas as soluccedilotildees satildeo igualmente vaacutelidas e competentes cada uma em

relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos e nada mais haacute a dizer Como natildeo pode

haver uma avaliaccedilatildeo de traduccedilatildeo absolutamente objetiva e universalmente aceita

avaliar traduccedilotildees seria uma atividade ociosa A alternativa que proponho eacute esta

ainda que natildeo haja um consenso absoluto e ainda que cada um de noacutes faccedila seus

julgamentos com base em seus proacuteprios pressupostos eacute possiacutevel utilizar o discurso

racional para fazer avaliaccedilotildees e tecer consideraccedilotildees em torno de traduccedilotildees fazendo

referecircncia a certas propriedades dos textos traduzidos com relaccedilatildeo agraves quais haacute um

certo grau de acordo entre um bom nuacutemero de pessoas envolvidas nas atividade de

traduzir

Se concordamos com a accedilatildeo e com a contraposiccedilatildeo a um relativismo absoluto

(inclusive sobre poesia ou qualquer existecircncia) temos de considerar contudo que

mesmo quando se consideram diferentes soluccedilotildees como igualmente vaacutelidas em

princiacutepio isso natildeo impede necessariamente que se proceda a uma anaacutelise visando agrave

revelaccedilatildeo ao mesmo tempo das diferenccedilas entre os textos e da coerecircncia interna de

cada um e em relaccedilatildeo a seus possiacuteveis pressupostos ndash um modo talvez de concluir

87

sobre sua eficiecircncia intriacutenseca ndash extraindo-se ateacute aspectos comuns num substrato mais

ldquofundamentalrdquo do poeacutetico

A breve discussatildeo realizada neste toacutepico prosseguiraacute no seguinte de modo um

pouco mais aprofundado e amplo valendo-me para tanto de outro artigo de P H

Britto como referecircncia para reflexatildeo

88

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise

Como se veraacute iniciaremos nossos comentaacuterios e anaacutelises de breves fragmentos

da obra homeacuterica apontando primeiramente aspectos fundamentais da poesia eacutepica

grega e caracteriacutesticas gerais das traduccedilotildees dos poemas ao portuguecircs Consideraremos o

plano de conteuacutedo e algumas correspondecircncias principais de sentido para

prosseguirmos tambeacutem com apontamentos de ordem formal assim como de relaccedilotildees

entre conteuacutedo e expressatildeo Nenhuma novidade nesse procedimento que entretanto

adotaraacute modos de descriccedilatildeo e avaliaccedilatildeo natildeo baseados centralmente na quantificaccedilatildeo

esta escolha natildeo representa apenas o natildeo-uso de um recurso possiacutevel mas uma

diferenccedila de concepccedilatildeo e procedimento em relaccedilatildeo a anaacutelises como as propostas por

Paulo H Britto tomadas como referecircncia imediata Pode-se depreender de iniacutecio que o

referencial da estrita equivalecircncia como o meio para se avaliarem traduccedilotildees natildeo se

mostra o mais adequado agrave traduccedilatildeo da poesia homeacuterica que de certo modo serve para

demonstrar as dificuldades e para mim a inadequabilidade de se permanecer no uso da

equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo seja semacircntica seja formal Trata-se eacute claro de

discutir a proacutepria conceituaccedilatildeo de traduccedilatildeo poeacutetica e do que seja a ldquofidelidaderdquo na accedilatildeo

tradutoacuteria

Um ponto de vista como aquele elaborado por Haroldo de Campos com base

em conceitos que seratildeo apresentados oportunamente permite ver a traduccedilatildeo de um

poema como uma criaccedilatildeo de algo novo com suas proacuteprias ldquoregrasrdquo internas ainda que

resulte propriamente de um processo de recriaccedilatildeo e ainda que seja construiacutedo de modo a

guardar relaccedilotildees de paramorfismo com o texto-fonte As prescriccedilotildees tradutoacuterias de uma

teorizaccedilatildeo como essa natildeo determinam procedimentos sempre idecircnticos ou uniformes

nem soluccedilotildees encaminhadas pelas mesmas diretrizes sendo um processo de criaccedilatildeo

envolveraacute as escolhas do tradutor-criador a cada etapa de seu trabalho iniciando-se com

a eleiccedilatildeo pela leitura do que considera relevante da ldquoestruturardquo do poema a ser ldquore-

produzidordquo85

e prosseguindo com suas opccedilotildees de composiccedilatildeo e modo de

ldquocorrespondecircnciardquo com o texto de que parte Existiraacute potencialmente permitida por uma

abordagem como essa grande flexibilidade no processo de escolhas que levaratildeo a

resultados diferentes abolindo-se uma relaccedilatildeo de ldquoservituderdquo em relaccedilatildeo ao ldquooriginalrdquo ndash

85 Relembre-se neste ponto a explicitaccedilatildeo deste termo pelo poeta e tradutor Guilherme de Almeida em

sua apresentaccedilatildeo ao livro Poetas de Franccedila (1ordf ediccedilatildeo 1936 5ordf ediccedilatildeo ndash Satildeo Paulo Babel 2011) o

autor sugere a palavra ldquolsquore-produzirrsquo quer dizer produzir de novordquo como o que seria traduzir poesia

89

que deixa de ter o peso impliacutecito agrave noccedilatildeo de equivalecircncia completa e com o qual o

poema traduzido deseja ombrear-se podendo ser visto como ldquooriginal do originalrdquo ndash o

poema resultante da traduccedilatildeo seraacute antes construiacutedo a partir de princiacutepios e de processos

considerados anaacutelogos ou correspondentes do que de obrigaccedilotildees de equivalecircncia

palavra a palavra ou efeito a efeito (sonoro ou imageacutetico) Do ponto de vista de uma

recriaccedilatildeo de fato ndash ou transcriaccedilatildeo conforme propotildee H de Campos ndash o poema poderaacute

dar conta da eficiecircncia construtiva e comunicativa (ou anticomunicativa se pensarmos

na exigecircncia pelo poema de uma leitura apropriada para sua apreensatildeo86

) daquele ao

qual se refere de modos diversos seguindo-se por exemplo o conceito de ldquomake it

newrdquo (ldquorenovarrdquo) proposto por Ezra Pound e buscando-se elementos (inclusive

referecircncias) na proacutepria cultura poderatildeo ocorrer alteraccedilotildees semacircnticas significativas

assim como a ldquomodernizaccedilatildeordquo e a ldquocontextualizaccedilatildeordquo do poema (como na traduccedilatildeo de

Augusto de Campos de fragmento do Rubayat na versatildeo de Fitzgerald defendida em

artigo por Haroldo87

) ao passo que ao seguir-se uma ideia de recriaccedilatildeo que possa ser

inserida em contexto histoacuterico correspondente seraacute obtido um texto ldquoanacrocircnicordquo como

na traduccedilatildeo de Guilherme de Almeida do poema ldquoBallade des dames du temps jadisrdquo

de Franccedilois Villon considerada modelar por H de Campos88

No caso da eacutepica grega (e latina) em portuguecircs temos no trabalho de Odorico

Mendes o exemplo niacutetido da conceituaccedilatildeo da traduccedilatildeo como natildeo vinculada agrave

obrigatoriedade de correspondecircncia ldquopalavra a palavrardquo Ao optar pelo uso do verso

camoniano ou seja do decassiacutelabo para recriar poemas originalmente produzidos em

hexacircmetros dactiacutelicos e ao propor-se a realizar uma obra marcada pela concisatildeo (na

qual natildeo haveria lugar para o aumento da quantidade de versos por serem mais breves)

o tradutor baseia-se na ideia de correspondecircncias menos restritas de sentido

dispensando por vezes detalhes inessenciais agrave narrativa e repeticcedilotildees de foacutermulas e

epiacutetetos inadequados para ele a um poema produzido e lido em seu tempo Se

analisada com base num modelo como o proposto por P H Brito em que se

quantificam as palavras e suas estritas correspondecircncias na traduccedilatildeo a fim de se

86 Pelos usos que faz de recursos sonoros riacutetmicos e de repeticcedilatildeo (conforme jaacute se viu neste estudo) ou

seja da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma) e dos denominados ldquodesvios de linguagemrdquo pelas construccedilotildees semacircntico-sintaacuteticas inabituais e ambiacuteguas e essencialmente

por ser visto como um poema (e portanto gerar expectativa de leitura diversa daquela dedicada a um

texto de raacutepida comunicaccedilatildeo) a poesia suscitaraacute um modo apropriado de leitura 87 ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) In Cadernos do MAM no 1 R de Janeiro dezembro de 1983 88 ldquoMemoraacutevel e virtuosiacutestica recriaccedilatildeordquo assim se refere Campos agrave versatildeo de G de Almeida em texto de

orelha para o livro ALMEIDA G de VIEIRA T Trecircs trageacutedias gregas S Paulo Perspectiva 1997

90

estabelecer um juiacutezo de valor para a traduccedilatildeo a obra de Odorico estaria previamente

condenada a uma avaliaccedilatildeo de inferioridade em relaccedilatildeo a outras de verso mais longo ou

feitas em prosa embora estas tambeacutem contenham omissotildees89

este resultado seria

inadequado tendo-se em conta as qualidades e a importacircncia histoacuterico-literaacuteria da

traduccedilatildeo (e do pensamento) de Mendes que como veremos prevecirc a utilizaccedilatildeo de

paraacutefrases muitas vezes mais ldquoeconocircmicasrdquo (ou seja com emprego de menor quantidade

de palavras) e portanto sem correspondecircncia ldquoliteralrdquo para compor sentidos similares

aos do texto-fonte Embora talvez se pudesse usar esse criteacuterio por exemplo para

traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (em versos de dezesseis siacutelabas) de Andreacute

Malta (em versos compostos por duas redondilhas) de Donaldo Schuumller (em versos

livres) e a portuguesa de Frederico Lourenccedilo (tambeacutem em versos livres)90

o criteacuterio natildeo

daria conta creio de uma comparaccedilatildeo mais abrangente Mas o que se precisa

considerar fundamentalmente eacute a proacutepria inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo quantitativa de

correspondecircncia seja semacircntica ou formal e a ideia de avaliaccedilatildeo como estabelecimento

de superioridade entre traduccedilotildees ainda que se possam evidenciar suas qualidades

intriacutensecas ndash numa anaacutelise com propoacutesito predominantemente descritivo ndash permitindo-

se assim que se faccedilam juiacutezos de valor baseados na coerecircncia interna do trabalho e em

aspectos determinados (como por exemplo a ldquodensidaderdquo sonora em segmentos

correspondentes) conforme os princiacutepios e os propoacutesitos adotados pela criacutetica

Assim a anaacutelise natildeo se basearaacute em conceitos fundamentados (ao menos

exclusivamente) na noccedilatildeo de equivalecircncia91

como os de correspondecircncia e de perda

(quando natildeo haacute correspondecircncia plena) propostos por Britto no texto que citaremos em

seguida para esclarecimento da referecircncia antes de prosseguirmos com a apresentaccedilatildeo

dos propoacutesitos desta tarefa seratildeo marcadas em negrito passagens que serviratildeo de base

a minhas observaccedilotildees posteriores

A avaliaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo de poesia eacute uma tarefa complexa e delicada Temos

consciecircncia de que o texto poeacutetico trabalha com a linguagem em todos os seus

niacuteveis mdash semacircnticos sintaacuteticos foneacuteticos riacutetmicos entre outros Idealmente o

89 Como se veraacute nas anaacutelises no entanto ndash em algum momento quantificador ndash ocorre de o texto de Odorico Mendes apresentar menos omissotildees que as traduccedilotildees feitas em verso mais longo 90 Supondo-se que a opccedilatildeo por versos mais longos inclui alguma noccedilatildeo de ldquoliteralidaderdquo na

correspondecircncia ao sentido 91 Isso natildeo quer dizer que natildeo seraacute usada nas anaacutelises desenvolvidas neste trabalho uma avaliaccedilatildeo de

correspondecircncias e mesmo uma quantificaccedilatildeo de elementos recorrerei sim a dados comparativos e a

quantidades Os dados serviratildeo contudo de um modo proacuteprio relativo agrave anaacutelise e agraves conclusotildees

91

poema deve articular todos esses niacuteveis ou pelo menos vaacuterios deles no sentido de

chegar a um determinado conjunto harmocircnico de efeitos poeacuteticos A tarefa do

tradutor de poesia seraacute pois a de recriar utilizando os recursos da liacutengua-meta os

efeitos de sentido e forma do original mdash ou ao menos uma boa parte deles []

Podemos entender o conceito de ldquocorrespondecircnciardquo em diversos niacuteveis de

exatidatildeo Vejamos um exemplo meacutetrico Digamos que eu queria traduzir para o

portuguecircs um determinado verso inglecircs com uma pauta acentual que podemos

representar como se segue (onde ldquoˇrdquo representa uma siacutelaba aacutetona e ldquo rdquo uma siacutelaba

com acento primaacuterio e ldquo|rdquo eacute o separador de peacutes)

ˇ | ˇ | ˇ | ˇ ˇ |

[] Numa primeira acepccedilatildeo da expressatildeo ldquocorresponderrdquo um verso portuguecircs

correspondente a esse verso inglecircs teria de ser precisamente um decassiacutelabo com

acento na 2a 4

a 5

a 6

a 9

a e 10

a siacutelabas Esta seria a acepccedilatildeo mais ldquoforterdquo da

expressatildeo ldquoo verso A corresponde ao verso Brdquo porque se daria no niacutevel mais

proacuteximo da realidade focircnica do verso Se enfraquecermos um pouco a acepccedilatildeo de

ldquocorresponderrdquo diriacuteamos que qualquer decassiacutelabo de ritmo predominantemente

jacircmbico no portuguecircs corresponde a qualquer decassiacutelabo predominantemente

jacircmbico no inglecircs Saltando para um niacutevel ainda mais alto de generalidade

qualquer decassiacutelabo do portuguecircs corresponderia a qualquer pentacircmetro do inglecircs

Mas podemos ter uma correspondecircncia ainda mais fraca se considerarmos que o

pentacircmetro eacute um metro relativamente longo no inglecircs mdash em oposiccedilatildeo ao triacutemetro

por exemplo mdash e que o decassiacutelabo e o alexandrino no portuguecircs satildeo metros

relativamente longos mdash em comparaccedilatildeo com os hexassiacutelabos e heptassiacutelabos mdash

poderiacuteamos dizer que um alexandrino em portuguecircs corresponde a um pentacircmetro

inglecircs na medida em que ambos satildeo ldquoversos longosrdquo []

Podemos agora entender de modo mais preciso a noccedilatildeo de perda na traduccedilatildeo

poeacutetica quanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia mdash ou seja quanto

mais alto o niacutevel de generalidade em que ela se daacute mdash maior a perda No exemplo

acima haveraacute mais perda se eu traduzir o verso original por um alexandrino do que

se eu traduzi-lo por um decassiacutelabo qualquer por exemplo

Na avaliaccedilatildeo do grau de perda poreacutem o niacutevel de generalidade natildeo eacute o uacutenico fator

a ser levado em conta No caso de uma traduccedilatildeo de letra de muacutesica a prosoacutedia

musical pede uma correspondecircncia quase exata entre a configuraccedilatildeo acentual do

original e a da traduccedilatildeo []

92

Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros elementos da forma e tambeacutem do

conteuacutedo semacircntico do poema

[]

O meacutetodo proposto eacute ainda um esboccedilo em que muitos detalhes ainda precisam ser

elaborados Mas creio que temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar

a uma avaliaccedilatildeo menos subjetivista das traduccedilotildees poeacuteticas que trabalhe com dados

mais objetivos e permita quantificar os juiacutezos de valor expressos atraveacutes de

conceitos como ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoperdardquo 92

O autor baseia-se na ideia de que eacute possiacutevel a correspondecircncia total entre as

caracteriacutesticas do plano de conteuacutedo e do plano de expressatildeo entre uma traduccedilatildeo e o

texto de que ela parte Embora natildeo se possam levar em conta os argumentos da

intraduzibilidade de poesia superados pela proacutepria praacutetica tambeacutem natildeo se podem

desconsiderar as diferenccedilas de ldquonaturezardquo entre obras elaboradas natildeo soacute em idiomas

como em sistemas distintos sob diversos aspectos para ficarmos com a dimensatildeo

apontada no artigo a do esquema meacutetrico-riacutetmico considere-se que embora possa

parecer que o sistema em peacutes praticado nas liacutenguas anglo-saxocircnicas encontraraacute esquema

exatamente correspondente em portuguecircs essa crenccedila na equivalecircncia absoluta ficaraacute

abalada quando se pensar na ldquoorigemrdquo do sistema greco-latino baseado em siacutelabas

longas e breves e natildeo em siacutelabas tocircnicas e aacutetonas O aproveitamento do antigo sistema

exigiu uma adaptaccedilatildeo decorrente da caracteriacutestica essencialmente diversa entre os

idiomas envolvidos ou seja a inexistecircncia de fonemas longos e breves nas liacutenguas para

as quais o sistema foi adaptado o que era nos peacutes gregos e latinos uma composiccedilatildeo

entre siacutelabas longas e breves passou a ser uma composiccedilatildeo entre siacutelabas tocircnicas e

aacutetonas determinando-se desse modo uma alteraccedilatildeo de identidade93

Se considerarmos

portanto a traduccedilatildeo direta ao portuguecircs de um poema grego depararemos com a

diferenccedila ldquoem primeira instacircnciardquo entre os sistemas quantitativo (quantidade de

duraccedilatildeo das siacutelabas breves ou longas) e qualitativo (siacutelabas acentuadas ou natildeo)94

92 BRITTO PH ldquoPara uma avaliaccedilatildeo mais objetiva das traduccedilotildees de poesiardquo In Krause Gustavo B As

margens da traduccedilatildeo Rio de Janeiro FAPERJCaeteacutesUERJ 2002 93 Como se veraacute mais adiante houve tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro greco-latino baseadas na

atribuiccedilatildeo de duraccedilatildeo agraves siacutelabas em liacutenguas neolatinas (ou seja buscando-se fazer corresponderem

sistemas semelhantes quantitativos) As referidas tentativas natildeo satildeo referecircncias presentes em nosso atual

contexto lieraacuterio 94 A afirmaccedilatildeo se baseia no aspecto eminentemente praacutetico do uso dos idiomas da leitura de poemas e da

tradiccedilatildeo poeacutetica das liacutenguas ocidentais modernas No entanto eacute possiacutevel relativar a inexistecircncia de siacutelabas

93

diversamente do que ocorre entre os idiomas inglecircs e portuguecircs (uma diferenccedila

diriacuteamos em ldquosegunda instacircnciardquo) pelo fato de os poemas compostos no primeiro jaacute

trazerem embora num sistema meacutetrico diverso do utilizado como referecircncia baacutesica em

liacutengua portuguesa (quantidade de siacutelabas e natildeo distribuiccedilatildeo de tocircnicas ainda que a

quantidade fixa ocasione esquemas ndash comumente irregulares ndash de colocaccedilatildeo dos

acentos) a caracteriacutestica semelhante de natildeo se construiacuterem com base na duraccedilatildeo das

siacutelabas A ilusatildeo de correspondecircncia absoluta mascararaacute as diferenccedilas entre os idiomas e

as culturas poeacuteticas (para natildeo dizer dos contextos culturais gerais a que pertencem) as

aproximaccedilotildees envolveratildeo com caraacuteter mais ou menos acentuado uma diversidade que

sugere aleacutem de tudo o mais (ver as referecircncias aos argumentos da inviabilidade da

traduccedilatildeo) a inexistecircncia de equivalecircncia completa Por conseguinte estabelecer valores

de correspondecircncia (no caso referido de padratildeo meacutetrico-riacutetmico) como criteacuterio de

avaliaccedilatildeo eacute a priori incerto afirmaccedilotildees como ldquo[o verso em pentacircmetro jacircmbico] teria

de ser precisamente [um decassiacutelabo em portuguecircs]rdquo natildeo seriam sob o ponto de vista

apresentado desejaacuteveis

Assim sendo a vinculaccedilatildeo da ideia de ldquoperdardquo e sua quantificaccedilatildeo a diferentes

niacuteveis de correspondecircncia (ldquoquanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia []

maior a perdardquo) tambeacutem careceraacute de propriedade E natildeo seraacute adequada por outra razatildeo

fundamental agrave qual jaacute se aludiu a noccedilatildeo de ldquoperdardquo vincula-se a uma ideia do texto

traduzido como subordinado ao original e portanto como devendo resultar de uma

obrigatoacuteria equivalecircncia cujos niacuteveis de ausecircncia determinaratildeo o valor da perda De

outro ponto de vista que rompa a relaccedilatildeo ancilar entre original e traduccedilatildeo a relativa

independecircncia de um texto recriado como poema o desobrigaraacute da suposta fidelidade

nos seus diversos planos possiacuteveis Para Haroldo de Campos (com base em postulaccedilotildees

de Walter Benjamin que como se veraacute consideraria a priorizaccedilatildeo da ldquomensagemrdquo

como uma ldquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrdquo) o ldquosignificadordquo do texto

de partida seraacute apenas uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a configuraccedilatildeo do sentido no

texto traduzido que envolveraacute diferenccedilas em relaccedilatildeo ao anterior decorrentes do

proacuteprio processo de re(ou trans)criaccedilatildeo A anunciada ldquofidelidade agrave formardquo tambeacutem

envolve noccedilotildees relativizadoras das equivalecircncias dissociadas da ideia de

correspondecircncia ldquoliteralrdquo

longas e breves nessas liacutenguas e houve jaacute propostas de composiccedilatildeo quantitativa em idiomas modernos

Leia-se sobre este assunto referecircncias agraves adaptaccedilotildees do hexacircmetro no capiacutetulo IV deste trabalho

94

As anaacutelises que se faratildeo neste estudo embora possam considerar o ldquoconteuacutedo

literalrdquo (sabendo-se claro da inadequaccedilatildeo desse conceito pela mutabilidade do

significado conforme jaacute se abordou extensamente) dos textos-fonte para evidenciar o

que eacute suprimido ou acrescentado nas traduccedilotildees natildeo o utilizaraacute como ponto de partida

para qualquer avaliaccedilatildeo A noccedilatildeo de equivalecircncia embora natildeo desapareccedila seraacute tratada

com a relatividade que o processo tradutoacuterio impotildee vista como equivalecircncia relativa

consistiraacute em aproximaccedilotildees referentes agraves informaccedilotildees mais relevantes para o acircmbito

ldquoconteudiacutesticordquo e na proporcionalidade quanto agrave concentraccedilatildeo de efeitos e relaccedilotildees

entre som e sentido (que envolvem como se viu a ocorrecircncia de repeticcedilotildees de variado

teor)

Seraacute feita uma tentativa de mostrar diferentes possibilidades de anaacutelise com base

em aspectos presentes em cada traduccedilatildeo (e portanto na configuraccedilatildeo que lhe eacute proacutepria)

reservando-se possiacuteveis atribuiccedilotildees de valor a observaccedilotildees referentes a categorias

construiacutedas pela oacuteptica do observador (maior ou menor quantidade de efeitos e mais ou

menos informaccedilotildees por exemplo) lidando-se com a relatividade das correspondecircncias

existentes entre poemas natildeo colocados em posiccedilatildeo hieraacuterquica Sem o estabelecimento

aprioriacutestico de meacutetodo de anaacutelise avanccedilaremos agregando alternativas de referencial

sempre como se disse com a finalidade antes de tudo descritiva por vezes

comparativa dos textos estudados

95

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo

A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Em 1854 saiacutea o primeiro poema eacutepico traduzido no paiacutes a Eneida brasileira

por obra do poeta e tradutor maranhense Manuel Odorico Mendes Precedido pelas

traduccedilotildees ao nosso idioma da obra de Virgiacutelio pelos portugueses Leonel da Costa

(seacuteculo XVII) Joatildeo Franco Barreto (seacuteculo XVII) Francisco Joseacute Freire (ldquoCacircndido

Lusitano seacuteculo XVIII) e Barreto Feio Odorico seria no entanto pioneiro na traduccedilatildeo

completa da Iliacuteada de Homero publicada postumamente em 1874 a que se seguiu sua

versatildeo da Odisseia publicada em 1928

Sobre seu pioneirismo diz Silveira Bueno autor do Prefaacutecio da ediccedilatildeo da Iliacuteada

de 1956

Na Ameacuterica do Sul estaacute o Brasil em primeira plana levando nisto a palma ao

proacuteprio Portugal apresentando em liacutedimo vernaacuteculo natildeo soacute a Iliacuteada mas tambeacutem

a Odisseia completadas ambas pela Eneida de Virgilio Ao ilustre maranhense

Manuel Odorico Mendes ficamos a dever esta homenagem esta gratidatildeo porque

da sua pena saiacuteram essas traduccedilotildees que os anos apenas fazem avultar e agigantar

Em 1874 na tipografia ldquoGuttenbergrdquo aparecia [] a obra-prima de Odorico

Mendes Quase contemporaneamente em Portugal o Conselheiro Antocircnio Joseacute

Viale publicava esparsamente alguns episoacutedios da Iliacuteada [] Natildeo eacute soacute

cronologicamente o primeiro mas tambeacutem o primeiro pelo valor literaacuterio de sua

traduccedilatildeo Que natildeo conhecesse os versos de Viale provam negativamente as notas

que apocircs a cada livro traduzido []rdquo95

Abra-se aqui um parecircntese Odorico seraacute de fato pioneiro na traduccedilatildeo da Iliacuteada

se considerarmos (como jaacute se indicou) o poema completo uma vez que surgira em

1811 a traduccedilatildeo do Canto I realizada pelo portuguecircs Joseacute Maria da Costa e Silva Essa

95 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio do Prof Silveira Bueno Satildeo Paulo Atena

Editora 1956 P 10

96

traduccedilatildeo emprega a mesma escolha decassilaacutebica de Odorico ou seja o verso heroacuteico

camoniano (essa caracteriacutestica da obra do brasileiro seraacute estudada aqui

posteriormente) tambeacutem adianta a opccedilatildeo de Odorico pela utilizaccedilatildeo de versotildees latinas

dos nomes dos deuses gregos Leia-se o iniacutecio do uacutenico canto traduzido precedido pela

apresentaccedilatildeo de seu argumento tambeacutem apresentado em versos decassiacutelabos

Iliacuteada de Homero ndash Livro I

Argumento

De Febo o Sacerdote venerando

Vem a filha remir que lhe eacute negada

Recorre ao Deus que as setas disparando

Fere de mortal peste a Grega Armada

Aquiles de Agameacutemnon discordando

Quer mataacute-lo susteacutem Minerva a espada

Teacutetis queixa-se ao Padre nrsquoalta Corte

aos Aquivos impetra estrago e morte

Coacutelera funesta oacute Deusa canta

Do Peacuteleo Aquiles dolorosa aos Gregos

Que ao Inferno baixar de Heroacuteis valentes

Mil Espiacuteritos fez e deu seus corpos

A catildees e aves em pasto assim de Jove

Se cumpriu o Decreto des qu em oacutedio

Inimizara suacutebita contenda

Atrides dHomens Rei e o divo Aquiles96

Embora guarde semelhanccedila com a traduccedilatildeo do brasileiro (conforme se poderaacute

constatar adiante) a versatildeo de Costa e Silva eacute menos afeita agrave siacutentese (nessa sequecircncia

ultrapassa em um verso o nuacutemero de versos gregos traduzidos e em dois o nuacutemero de

versos da versatildeo de Odorico para o mesmo fragmento grego) Haacute no entanto certa

relaccedilatildeo entre as construccedilotildees sintaacuteticas ldquocomplexasrdquo de ambos os tradutores mesmo que

Costa e Silva pareccedila valer-se menos de ldquopreciosismo vocabularrdquo comumente atribuiacutedo

96 HOMERO Iliacuteada de Homero ndash traduzida do grego em verso portuguecircs por Joseacute Maria da Costa e

Silva Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1811

97

agrave obra de Odorico embora isso seja discutiacutevel considerando-se os possiacuteveis criteacuterios do

tradutor e o contexto em que seu trabalho foi produzido97

Mas retornando ao prefaacutecio de Silveira Bueno diga-se que embora o

prefaciador enalteccedila o trabalho de Odorico na verdade eacute mais recente o reconhecimento

da importacircncia e da qualidade de sua obra tradutoacuteria principalmente pelo empenho por

sua reavaliaccedilatildeo criacutetica empreendido pelo poeta Haroldo de Campos (1923-2003) a

partir de um ensaio seu de 1962 Hoje muitas vozes se juntam para a celebraccedilatildeo das

traduccedilotildees de Odorico considerado por Campos ldquoo patriarca da traduccedilatildeo criativa no

Brasilrdquo98

Diz o criacutetico sobre Odorico Mendes no referido artigo99

em que propotildee uma

revisatildeo de sua obra

ldquoNo Brasil natildeo nos parece que se possa falar no problema da traduccedilatildeo criativa sem

invocar os manes daquele que entre noacutes foi o primeiro a propor e a praticar com

empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da traduccedilatildeo

Referimo-nos ao preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares

Realmente fazer um negative approach em relaccedilatildeo a suas traduccedilotildees eacute empresa

faacutecil de primeiro impulso e desde Siacutelvio Romero (que as considerava

lsquomonstruosidadesrsquo escritas em lsquoportuguecircs macarrocircnicorsquo)100

quase natildeo se tem feito

97 Conheccedila-se o comentaacuterio que pode ser lido na Wikipedia (site de divulgaccedilatildeo popular) acerca da

traduccedilatildeo de Odorico ldquoDas [traduccedilotildees] brasileiras [da Iliacuteada] a mais antiga eacute a de Odorico Mendes feita

no seacuteculo XIX (1874) que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus

arqueacutetipos equivalentes latinos Ou seja em vez de Zeus Juacutepiter de Posiacutedon Netuno etc A traduccedilatildeo de

Odorico Mendes toda em decassiacutelabos se notabiliza pela escolha lexical preciosa e a estrutura sintaacutetica amiuacutede incomum de feiccedilatildeo muitas vezes arcaizante e com farto recurso ao neologismordquo 98Haroldo de Campos (1991-92 144) ldquoOdorico com efeito eacute o patriarca da traduccedilatildeo criativa no Brasil

no seu intuito pioneiro de conceber um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar o

portuguecircs em lugar de neutralizar a diferenccedila do original rasurando-lhe as arestas sintaacuteticas e lexicais em

nossa liacutenguardquo 99 CAMPOS Haroldo de ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo In Metalinguagem ndash ensaios de

teoria e criacutetica literaacuteria 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1976 100 Escreveu Siacutelvio Romero no capiacutetulo ldquoPoetas de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo de sua Histoacuteria

da Literatura apoacutes incluir o ldquoHino agrave tarderdquo de Odorico e de comentaacute-lo favoravelmente ldquoQuanto agraves

traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-

las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidades [] A traduccedilatildeo deve revelar-se na leitura como trabalho autocircnomo e independente como se fora produto

original e assim primitivamente escrito Eacute o que natildeo se nota nas traduccedilotildees de Odorico Aacutesperas prosaicas

obscuras assaltam o leitor aquelas paacuteginas como flagelos O tradutor atirou-se agrave faina sem emoccedilatildeo sem

entusiasmo e munido de um sistema preconcebido O preconceito era a monomania de natildeo exceder o

nuacutemero de versos feitos por Virgiacutelio e Homero para provar a ideia pueril de ser a liacutengua portuguesa tatildeo

concisa quanto o latim e o grego Para obter este resultado esdruacutexulo e extravagante o maranhense

98

outra coisa Mas difiacutecil seria poreacutem reconhecer que Odorico Mendes admiraacutevel

humanista soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente onde

os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese (reduziu por exemplo os 12106 versos da Odisseia a 9302

segundo taacutebua comparativa que acompanha a ediccedilatildeo) seja para demonstrar que o

portuguecircs era capaz de tanta ou mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para

acomodar em decassiacutelabos heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para

evitar as repeticcedilotildees e a monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar

com as terminaccedilotildees diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas

palavras ofereceria na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado

Sobre este uacuteltimo aspecto diz ele lsquoSe vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de

Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a pior das infidelidadesrsquo

Procurou tambeacutem reproduzir as lsquometaacuteforas fixasrsquo os caracteriacutesticos epiacutetetos

homeacutericos inventando compoacutesitos em portuguecircs animado pelo exemplo dos

tradutores italianos de Homero minus Monti e Pindemonte minus e muitas vezes

extremando o paradigma pois entendia a nossa liacutengua lsquoainda mais afeita agraves

palavras compostas e ainda mais ousadarsquo do que o italianordquo (1976 27)

A citaccedilatildeo apresenta ainda que sob a visatildeo particular do criacutetico uma siacutentese de

aspectos relacionados agrave produccedilatildeo tradutoacuteria de Odorico aspectos estes que

mencionados nessas observaccedilotildees seratildeo de novo abordados logo adiante com base em

comentaacuterios do proacuteprio Haroldo de Campos e de outros autores a fim de apresentarmos

um quadro da recepccedilatildeo criacutetica do trabalho do tradutor especialmente relevante em seu

caso pela divergecircncia que tem suscitado ao longo do tempo de julgamentos quanto a

seus resultados

Mas leiamos a seguir na iacutentegra a nota de Odorico ao Canto I de sua Iliacuteada ndash

assinale-se que eacute do conjunto de notas presente em sua obra que se pode depreender o

pensamento do tradutor sobre seu trabalho ndash na qual apresenta claramente a sua visatildeo

torturou frases inventou termos fez transposiccedilotildees baacuterbaras e periacuteodos obscuros jungiu arcaiacutesmos e

neologismos latinizou e grecificou palavras e proposiccedilotildees o diabo Num portuguecircs macarrocircnico abafou

evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora 1949 4ordf ediccedilatildeo tomo terceiro p 35 (Primeira ediccedilatildeo Rio de

Janeiro Garnier 1902 Vol I)

Diga-se que eacute curioso como exatamente a qualidade apontada por criacuteticos posteriores como H de

Campos e A Medina Rodrigues de ser a de Odorico obra marcada pela recriaccedilatildeo e por consequente

autonomia eacute tida como inexistente por Romero teremos oportunidade neste estudo de apreciar a

identidade recriadora de Odorico Mendes

99

acerca do que seria ser ldquofielrdquo a Homero recriar a obra de acordo com os padrotildees de

percepccedilatildeo criacutetica do tradutor renovada em seu tempo e lugar segundo os paracircmetros

entatildeo tidos como desejaacuteveis Odorico manifesta opccedilotildees coerentes com a determinaccedilatildeo

de concisatildeo ideia esta comum ao entendimento moderno de poesia (lembrem-se os

comentaacuterios de Ezra Pound sobre a correspondecircncia anotada em dicionaacuterio alematildeo-

italiano entre a palavra dichten (poesia) e a palavra condensare101

As repeticcedilotildees de Homero se reduzem a duas classes ora por exemplo manda

Juacutepiter um recado que o mensageiro daacute pelos mesmos ou quase pelos mesmos

termos ora juntam-se epiacutetetos que por continuados agraves vezes podem enfastiar

Conservo as primeiras como proacuteprias da singeleza do autor e porque nelas se

assemelha aos antigos da Biacuteblia Quanto agraves segundas procedo assim trato do

verter os epiacutetetos com exatidatildeo e nos lugares mais apropriados isto feito omito as

repeticcedilotildees onde seriam enfadonhas Ainda mais vario a forma de cada epiacuteteto ou

me sirvo de um equivalente em vez de Aquiles velociacutepede digo tambeacutem

impetuoso raacutepido fogoso e assim no demais Note-se que os adjetivos gregos

terminando em casos diversos natildeo tecircm a monotonia dos nossos que soacute variam nos

dois gecircneros e nos dois nuacutemeros mdash Rochefort apoda do pueril o empenho de

variar natildeo sei como quem andava sempre agarrado ao rabicho da cabeleira de

Boileau e de Racine se levantou contra a variedade no estilo que um recomenda e

pratica o outro Se vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixava a

obra de ser apraziacutevel como eacute a dele a pior das infidelidades Com isto natildeo quero

fazer a apologia das paraacutefrases aspiro a ser tradutor (2008 873)

Em sua apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada organizada por Antocircnio Medina

Rodrigues102

Campos refere-se novamente agrave criacutetica de Silvio Romero (1851-1914)

associando a ela o julgamento posterior de Antonio Candido

Em ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo [] tive a ocasiatildeo haacute exatamente

30 anos de rebater a criacutetica preconceituosa de Siacutelvio Romero [] Esse juiacutezo

depreciativo natildeo obstante o ponto de vista em contraacuterio de filoacutelogos [] como

Joatildeo Ribeiro Silveira Bueno e Martins de Aguiar [] acabou por prevalecer e dar

101 POUND E ABC da literatura Satildeo Paulo Cultrix 1977 p 86 102 HOMERO Odisseia Org Antonio Medina Rodrigues Satildeo Paulo Ars Poetica Ateliecirc 2000

100

o tom [] Importa sim destacar neste contexto que a sentenccedila condenatoacuteria de

Siacutelvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido

(1918) O autor da Formaccedilatildeo da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na

tinta usando expressotildees como ldquobestialoacutegicordquo ldquopreciosismo do pior gostordquo

ldquopedantismo arqueoloacutegicordquo e ldquoaacutepice de tolicerdquo para se referir ao legado tradutoacuterio

do maranhense [] A propoacutesito do conceito ldquomacarrocircnicordquo usado

pejorativamente por Siacutelvio Romero lembrei que ldquoo preconceito contra o

maneirismo natildeo pode ter mais vez para a sensibilidade moderna configurada por

escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimaratildees Rosa das

inesgotaacuteveis invenccedilotildees vocabularesrdquo [] (2000 11-12)

Mas antes de prosseguirmos com a questatildeo das traduccedilotildees de Odorico e sua

recepccedilatildeo criacutetica tratemos brevemente do proacuteprio escritor e de seu tempo Sobre ele diz

Antonio Medina Rodrigues

[Manuel Odorico Mendes viveu] no periacuteodo que abrange os uacuteltimos momentos do

neoclassicismo e o iniacutecio do romantismo Foi de corpo e alma um humanista um

claacutessico empenhado na traduccedilatildeo dos poemas de Virgiacutelio e Homero Mas foi

tambeacutem homem inclinado agrave singeleza que agrave margem das traduccedilotildees escreveu

poemas um pouco afinados com a sensibilidade romacircntica e que chegaram a ter

alguma repercussatildeo (2000 21)

Silvio Romero enquadra em sua Histoacuteria Odorico na classe dos ldquoPoetas

de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo Diz ele

A rotina criacutetica entre noacutes estabeleceu que o romantismo surgiu no Brasil em 1836

com a publicaccedilatildeo dos Suspiros Poeacuteticos de Magalhatildees [] A verdade eacute que antes

de Magalhatildees diversos poetas haviam abraccedilado os princiacutepios da nova escola

especialmente entre os estudantes de Olinda e Satildeo-Paulo desde 1829 Maciel

Monteiro Cacircndido de Arauacutejo Viana Odorico Mendes Moniz Barreto Barros

Falcatildeo [] (1949 tomo terceiro 12)

101

Por ter Odorico perdido sua produccedilatildeo em uma de suas ldquofrequentes viagens do

Maranhatildeo para o Riordquo103

restaram de sua produccedilatildeo poeacutetica (como relata Rodrigues)

apenas

[] o ldquoHino agrave Tarderdquo impresso em 1861 no Parnaso Maranhense depois de ter

aparecido em 1844 na Minerva Brasiliense com sua versatildeo mais precisa no

BreacutesilLitteacuteraire (1863) de Ferdinand Wolf poema de que Siacutelvio Romero dizia

sempre lembrar-se natildeo ldquosem boa e saudosa emoccedilatildeordquo tendo seus versos ldquoum natildeo

sei quecirc de vago e tristerdquo que bem pareciam ser ldquoa essecircncia mesma da poesiardquo ldquoO

sonhordquo (ou ldquoA morterdquo como se acha no Parnaso Maranhense) impresso em vaacuterias

coletacircneas e ldquoO Meu Retirordquo publicado na Minerva Brasiliense mais alguns

poemas de circunstacircncia fecham esse diminuto espoacutelio literaacuterio que Odorico natildeo

quis aumentar Seu interesse estava de fato voltado para a traduccedilatildeo (2000 22)

Incluam-se aqui os versos iniciais do ldquoHino agrave tarderdquo poema em versos

decassiacutelabos como referecircncia agrave criaccedilatildeo poeacutetica do tradutor

Que amaacutevel hora Expiram os favocircnios

Transmonta o Sol o rio se espreguiccedila

E a cinzenta alcatifa desdobrando

Pelas azuis diaacutefanas campinas

Na carroccedila de chumbo assoma a tarde

Salve moccedila tatildeo meiga e sossegada

Salve formosa virgem pudibunda

Que insinuas cos olhos doce afeto

Natildeo criminosa abrasadora chama

Em ti repousa a triste humana prole

Do trabalho do dia nem jaacute lavra

Juiz severo a baacuterbara sentenccedila

Que haacute de a fraqueza conduzir ao tuacutemulo

Lasso o colono mal avista ao longe

A irmatilde da noite coa-lhe nos membros

Plaacutecido aliacutevio mdash posta a dura enxada

Limpa o suor que em bagas vai caindo

103 Citaccedilatildeo (incluiacuteda por A Medina Rodrigues) de Antonio Henriques Leal in Pantheon maranhense

ensaio biograacutefico dos maranhenses ilustres jaacute falecidos Lisboa Imprensa nacional 1873 p36

102

Que ventura A mulher o espera ansiosa

Cos filhinhos em braccedilo e jaacute deslembra

O homem dos campos a diurna lida

Com entranhas de pai ledo abenccediloa

A progecircnie gentil que a olho pula

Natildeo vecircs como o fantasma do silecircncio

Erra e paacutera o buliacutecio dos viventes

Soacute quebra esta mudez o pastor simples

Que trazendo o rebanho dos pastios

Coa suspirosa frauta ameiga os bosques

Feliz que nunca o ruiacutedo dos banquetes

Do estrangeiro escutou nem alta noite

Foi agrave porta bater de alheio alvergue

Acha no humilde colmo os seus penates

Como acha o grande em soberbotildees palaacutecios

[]

No contexto preacute-romacircntico o uso do decassiacutelabo classicizante associa-se como

se pode constatar agrave mencionada ldquosensibilidade romacircnticardquo104

Como se veraacute

detalhadamente depois (ao analisarmos a produccedilatildeo do tradutor) o verso camoniano seraacute

ndash conforme se poderia esperar sabendo-se que esta era em seu tempo a medida de

escolha para a dicccedilatildeo elevada da narrativa heroacuteica ndash o metro escolhido por Odorico (agrave

semelhanccedila de seus antecessores na traduccedilatildeo da Eneida) para suas versotildees das eacutepicas

latina e grega dotadas contudo de aspectos maneiristas (como observou Campos) e

mais ousadia vocabular incluindo-se a formulaccedilatildeo de compostos agrave semelhanccedila dos

termos greco-latinos A opccedilatildeo pelos decassiacutelabos eacute assim comentada por Saacutelvio

Nienkoumltter em seu Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada105

por ele anotada ldquoverso a versordquo

104 Confira-se em termos da associaccedilatildeo do classicismo agrave ldquosensibilidade romacircnticardquo o teor um tanto

semelhante (embora menos ldquoclaacutessicordquo pela diversidade temaacutetica e de perceptiacutevel menor competecircncia

esteacutetica) em relaccedilatildeo aos de Odorico dos decassiacutelabos (heroacuteicos estes) de um dos representantes da

ldquoTerceira fase do romantismordquo (segundo Romero ndash id 265-331) Joseacute Bonifacio ldquo[] O desdenhoso

passo o gesto ousado A descuidosa matildeo que a tranccedila alisa Na triacutepode infernal a pitonisardquo (Romero

1949 317) 105 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio e notas verso a verso Saacutelvio Nienkoumltter

Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da Unicamp 2008

103

[Odorico] Conseguiu com esta escolha imprimir ao verso a velocidade que

Homero imprimiu Sendo a liacutengua portuguesa mais lenta que a grega o verso

decassiacutelabo acaba imprimindo a velocidade que eacute proacutepria do hexacircmetro grego

contudo o decassiacutelabo portuguecircs eacute notadamente mais acelerado (2008 28)

Sobre a adoccedilatildeo do decassiacutelabo pelo tradutor diz Silveira Bueno

Maior efeito teria [Odorico Mendes] alcanccedilado se tivesse tido a coragem de

romper com a praxe do Renascimento e houvesse empregado o alexandrino mais

amplo o uacutenico metro moderno que se aproxima do hexacircmetro dactiacutelico de

Homero Natildeo foi seu o pecado mas da sua eacutepoca (1946 10)106

(A questatildeo dos metros seraacute tratada neste estudo diga-se ao longo das referecircncias aos

procedimentos utilizados pelos diversos tradutores focalizados)

Sobre as caracteriacutesticas da linguagem de Odorico comenta Rodrigues ao refutar

a observaccedilatildeo de Siacutelvio Romero de que ldquoEm literatura e arte o maranhense era um

claacutessico um espiacuterito conservadorrdquo107

Nem poliacutetica nem literariamente Odorico Mendes teria sido conservador e natildeo o

foi sobretudo quando comparamos o trabalho de seus textos tanto com a

textualidade do classicismo em que ele se formara quanto com a do romantismo

que de certa forma ele quis evitar Odorico Mendes levou a liacutengua portuguesa aos

limites que pocircde e explorou vaacuterios tipos de recurso desde o tenso claacutessico ateacute o

oral cotidiano [] E Odorico natildeo fez o que fez para ldquoser modernordquo mas por

necessidade interna de seu trabalho [] (2000 24)

Quanto ainda agrave relaccedilatildeo de Odorico com a eacutepoca em que se insere diz o mesmo

autor

A eacutepoca em que se publica o Virgiacutelio Brasileiro (1854) era francamente romacircntica

sobretudo realccedilada pela vertente popular de Macedo Alencar Gonccedilalves Dias

homens que praticamente constituiacuteram o primeiro ldquogostordquo da era nacional Natildeo

obstante o ideal algo nostaacutelgico e elitizante da epopeia ainda perdurava A

106 O comentaacuterio seraacute referecircncia para H de Campos ao justificar sua proacutepria opccedilatildeo pelo metro

dodecassiacutelabo para a traduccedilatildeo da Iliacuteada 107 ROMERO S Op cit

104

Confederaccedilatildeo dos Tamoios ndash de que O Guarani pode ser considerado uma espeacutecie

de antiacutepoda mais popular e mais feliz ndash eacute de 1856 Os Timbiras [] eacute de 1857[]

Pode-se dizer [] que o experimentalismo da eacutepica na fase romacircntica fazia com

que o antigo vernaacuteculo camoniano desse um salto sobre si proacuteprio na acircnsia de

fazer o gecircnero sobreviver agraves novas modalidades literaacuterias do tempo [] O romance

e boa parte da poesia se vatildeo orientar pela construccedilatildeo de uma personalidade

brasileira []

Odorico era um dos que resistiam Achava que se podia ser original ldquoimitando os

antigosrdquo e explorando as esferas mais tenebrosas da linguagem coisa que por

sinal o nacionalismo abominava Daiacute que ele veraacute o gecircnero eacutepico como uma

estrutura trans-histoacuterica internamente dinamizaacutevel e dinamizaacutevel sobretudo pela

infinita possibilidade criadora das liacutenguas Este racionalismo linguiacutestico []

somado agrave obsessiva concisatildeo ao gosto pelas literaturas eacutepicas e agrave aversatildeo aos

iacutempetos emolientes do nacionalismo literaacuterio acabou fazendo com que Odorico

Mendes compusesse obra homogecircnea e coerente [] (2000 26-27)

Tambeacutem a respeito da linguagem de Odorico sob os aspectos do vocabulaacuterio e

da sintaxe Nienkoumltter atribui-lhe um ldquoamor agrave precisatildeordquo que seria a verdadeira razatildeo

para o uso que faz de ldquovocabulaacuterio raro e contorccedilotildees sintaacuteticasrdquo em vez da ldquoprimeira

impressatildeordquo que se pode ter de que o motivo seja ldquodemonstrar erudiccedilatildeordquo Apesar da

suposiccedilatildeo das intenccedilotildees do autor algo pouco uacutetil ou desejaacutevel (ldquoOdorico natildeo usa por

demonstrarrdquo o propoacutesito de Odorico natildeo erardquo) haacute nesse e nos comentaacuterios que se

seguem afirmaccedilotildees que correspondem ao que se pode constatar por meio da observaccedilatildeo

do texto de Mendes

[] O propoacutesito de Odorico Mendes natildeo era traduzir todas as palavras do original

mas construir periacuteodos que denotassem todo o sentido contido neste original

mantendo deste a forccedila expressiva e riacutetmica Este preceito o leva agrave economia

verbal e agrave frase composta [] As frases invertidas se datildeo pelo mesmo motivo

concatenadas duas frases podem encerrar contexto mais abrangente e produzir um

estilo mais elegante e inteligente (2008 31-32)

O mesmo criacutetico assim se refere de modo geral agraves opccedilotildees tradutoacuterias de

Odorico

105

Odorico Mendes trabalha com o texto de Homero em plena maturidade

especialmente na maturidade poeacutetica e literaacuteria Ao planejar o trabalho o poeta

teve de fazer escolhas preacutevias como o metro o estilo o vocabulaacuterio etc suas

escolhas foram sempre fundadas na tradiccedilatildeo Tradiccedilatildeo da liacutengua que o fez preferir

o verso camoniano que julgava mais apropriado agraves epopeias a nomenclatura dos

deuses de Virgiacutelio jaacute que nossa liacutengua eacute latina o vocabulaacuterio dos grandes claacutessicos

da liacutengua portuguesa etc Produz assim uma espeacutecie de interliacutengua em que nas

palavras de Octaacutevio Camargo ldquopotildee a conversar Homero Virgiacutelio e Camotildeesrdquo

(2008 31-32)

Acerca da criaccedilatildeo de palavras com base na combinaccedilatildeo de termos marcante no

texto do tradutor jaacute assim se referia Silveira Bueno antecipando a valoraccedilatildeo por H de

Campos desse procedimento

Esta eacute outra qualidade de Odorico Mendes preceito que recebeu de Homero a

formaccedilatildeo de termos novos pela adjunccedilatildeo de outros jaacute conhecidos Para dar uma

simples amostra da sua fecunda invenccedilatildeo notamos somente no primeiro livro

todas estas formaccedilotildees segundo os moldes do grande mestre grego infrugiacutefero mar

altipotente Jove celeriacutepede Aquiles [] arciargecircnteo Febo [] dedirroacutesea Aurora

[] (1956 11-12)

Sobre a recepccedilatildeo criacutetica da obra de Odorico citem-se nesta breve apresentaccedilatildeo

geral do tradutor e sua obra comentaacuterios que dela faz em artigo publicado em 2007 e

em resenha criacutetica publicada em 2008 Paulo Seacutergio de Vasconcellos

[] A obra de Odorico Mendes foi alvo frequente de incompreensotildees sobretudo

suas traduccedilotildees de Homero [] Eacute que difiacutecil e desafiador por vezes natildeo eacute lido

com o cuidado e a exigecircncia que merece []

Odorico Mendes foi um desses tradutores que deixaram o discurso da estrita e

suposta fidelidade ao sentido literal por alegaccedilatildeo de que a poesia em seu aspecto

formal eacute mesmo intraduziacutevel [] no tiacutetulo mesmo de sua Eneida se lecirc ldquotraduccedilatildeo

poeacuteticardquo condensando todo um projeto de traduccedilatildeo que jaacute se revela na escolha de

uma focircrma meacutetrica riacutegida o decassiacutelabo heroacuteico []108

108 VASCONCELLOS P S ldquoDuas traduccedilotildees poeacuteticas da Eneida Barreto Feio e Odorico Mendesrdquo In

Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo

Humanitas 2007 pp 9597

106

Independentemente do que entendamos por traduccedilatildeo natildeo haacute como negar que nessa

traduccedilatildeo [da Iliacuteada por Odorico Mendes] extremamente concisa (por vezes talvez

excessivamente concisa) atenta agrave palavra exata (agraves raias da obsessatildeo vejam-se as

notas do tradutor sobre os nomes das diversas peccedilas de uma roda) latinizante ([]

o vocabulaacuterio eacute repleto de latinismos) e ao mesmo tempo helenizante (nos

compostos agrave moda grega []) haacute inuacutemeros versos dignos de figurar em antologia

de literatura pelas qualidades esteacuteticas prodiacutegios de som ritmo e expressividade

[]109

Inclua-se ainda o comentaacuterio relativo agraves traduccedilotildees de Odorico por Joatildeo Acircngelo

Oliva Neto110

como tendo se convertido hoje (apoacutes portanto a reavaliaccedilatildeo de seu

trabalho incitada por Haroldo de Campos) em uma referecircncia quanto a seus

procedimentos para criacutetica de outras traduccedilotildees (evidenciando-se assim a importacircncia

que tal obra adquiriu como paracircmetro de recriaccedilatildeo poeacutetica em nosso tempo no paiacutes)

[] mercecirc da importacircncia que a traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes auferiu entre

noacutes apoacutes as reflexotildees de Haroldo de Campos os criteacuterios da teoria tradutoacuteria do

maranhense estatildeo a tornar-se equivocadamente criteacuterio de avaliaccedilatildeo de todas as

traduccedilotildees ateacute mesmo daquelas tributaacuterias das dominantes poeacuteticas anteriores agrave

teoria de Odorico e daquelas cujo criteacuterio deliberadamente natildeo eacute o mesmo de

Odorico e de Haroldo de Campos caso evidente de Leonel da Costa Franco

Barreto Cacircndido Lusitano por ser anteriores e de Carlos Alberto Nunes e

Agostinho da Silva Tomemos a concisatildeo ou siacutentese ingrediente necessaacuterio de

alguns gecircneros antigos como o epigrama grego e o latino jaacute era procedimento

valorizado por certos autores [] ateacute mesmo em outros gecircneros de poesia como a

proacutepria eacutepica e bem sabemos que eacute pedra de toque por exemplo de manifestaccedilotildees

da poesia modernista e da contemporacircnea Era-o tambeacutem na teoria de Odorico

Mendes que por lograr concisatildeo suprimiu a repeticcedilatildeo de discursos proacutepria da

oralidade homeacuterica [] Mas o Homero que hoje lemos escrito em grego eacute

tributaacuterio da tradiccedilatildeo oral em que sobejam aquelas repeticcedilotildees pelo que se deve

109Idem ldquoHomero Iliacuteada Traduccedilatildeo de O Mendes Satildeo Paulo Campinas ateliecirc Editorial Unicamp

2008rdquo (resenha criacutetica) In Nuntius Antiquus nordm 3 Belo Horizonte agosto de 2009 (ISSN 19833636) 110 OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo ldquoA Eneida em bom portuguecircs consideraccedilotildees sobre teoria e praacutetica da

traduccedilatildeo poeacuteticardquo In Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da

USP Satildeo Paulo Humanitas 2007 pp 77-78

107

lembrar que natildeo eacute conciso natildeo eacute sinteacutetico porque natildeo havia este criteacuterio entre os

aedos [] (2007 77-78)

A importante relativizaccedilatildeo (conceituada no artigo acima citado tendo-se em

conta a adoccedilatildeo da obra de Odorico como referecircncia da traduccedilatildeo criativa) dos

procedimentos e resultados de traduccedilotildees com base na existecircncia de pontos de vista

proacuteprios que os norteiam e a consequente proposiccedilatildeo de Oliva Neto de que uma

traduccedilatildeo seja avaliada ldquoa partir de sua proacutepria teoria e eventualmente das doutrinas

retoacuterico-poeacuteticas em que se insere essa teoria em seu tempo evitando-se generalizar

criteacuterios de um dado tradutor para outros em outros temposrdquo (2007 65) constituem-se

em referecircncia particularmente uacutetil a este trabalho

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)

Responsaacutevel por traduccedilotildees da Odisseia e da Iliacuteada (publicadas respectivamente

em 1960 e 1962) o meacutedico poeta e tradutor (tambeacutem maranhense) Carlos Alberto

Nunes (que entretanto morou no interior e na capital de Satildeo Paulo a maior parte de sua

vida) eacute dono de vasta obra tradutoacuteria incluindo-se a Eneida de Virgiacutelio vertida do

latim os Diaacutelogos de Platatildeo vertidos (assim como as eacutepicas homeacutericas) do grego o

teatro completo de Shakespeare e peccedilas teatrais de J W Goethe e de Friedrich Hebbel

traduzidas do alematildeo Escreveu tambeacutem diversas obras originais de poesia e drama

entre elas a epopeia (em versos decassiacutelabos) Os brasileidas publicada em 1938 da

qual citamos em seguida os versos iniciais (a fim de que se perceba que embora em

decassiacutelabos o poema se faz com constante uso de enjambement aparentemente sem

compromisso com a siacutentese)

Musa canta-me a reacutegia poranduba

das bandeiras os feitos sublimados

dos heroacuteis que o Brasil plasmar souberam

traveacutes do Pindorama demarcando

nos sertotildees a conquista e as esperanccedilas111

111 NUNES C A Os brasileidas (Epopeia nacional em nove cantos e um epiacutelogo) Satildeo Paulo

Melhoramentos s d

108

Cite-se pela pertinecircncia em se incluir o ponto de vista do autor acerca da poesia

eacutepica agrave qual dedicou grande parte de seu empenho criador e recriador algo de seu

pensamento sobre ldquoo lugar da poesia eacutepica na literatura modernardquo exposto em ensaio

publicado na ediccedilatildeo de Os brasileidas

A epopeia como gecircnero literaacuterio natildeo estaacute morta nem pertence aos museus da

literatura O exemplo do escritor cretense [Nikos Kazantzakis autor de nova

Odisseia] eacute decisivo para demonstrar a possibilidade da criaccedilatildeo em nossos dias de

uma epopeia heroacuteica ao mesmo tempo claacutessica e revolucionaacuteria tendo se revelado

como carecente de base a tentativa dos teoacutericos e doutrinadores de fechar caminhos

para a atividade da imaginaccedilatildeo criadora [] 112

E inclua-se tambeacutem uma apreciaccedilatildeo sua integrante das ldquoNotas de um tradutor

de Homerordquo a respeito da poesia homeacuterica como um meio de se observar sua crenccedila de

que a traduccedilatildeo pode aproximar eacutepocas e culturas diversas pela poesia ldquoinfusa dos

poemas de Homerordquo

Sempre fui de parecer que ateacute para os menos iniciados os poemas de Homero

podem constituir ocasiatildeo de deleite natildeo foi por acaso que esses dois monumentos

inigualaacuteveis atravessaram milecircnios sem perder o frescor dos primeiros tempos []

Atrever-me-ei a dizer que ateacute mesmo as pessoas mais imbuiacutedas de prevenccedilatildeo

contra a literatura claacutessica natildeo poderatildeo deixar de sentir a poesia infusa dos poemas

de Homero se se entregarem agrave leitura honesta dessas criaccedilotildees sem par em pouco

tempo se sentiratildeo empolgadas pela verdade eterna que se irradia daquele mundo de

poesia Onde quer que abramos Homero o sol bate sempre em cheio A sua poesia

natildeo eacute de ontem nem de hoje poreacutem eterna agrave medida que se afasta que se afasta no

tempo liberta-se dos liames da contingecircncia humana para refletir em sua estrutura

liacutempida os traccedilos das criaccedilotildees universais []113

112 NUNES C A ldquoEnsaio sobre a poesia eacutepicardquo In Os brasileidas ndash epopeia nacional Satildeo Paulo

Melhoramentos 1962 p 14 113 Idem ldquoNotas de um tradutor de Homerordquo In Revista da Academia Paulista de Letras Satildeo Paulo s

d p 142

109

Algo importante acerca de suas concepccedilotildees relativas agrave tarefa da traduccedilatildeo pode

ser depreendido do seguinte trecho de suas referidas ldquoNotasrdquo114

[] ateacute mesmo as divergecircncias remanescentes que tanto acirram os acircnimos nos

arraiais da Filologia redundam em vantagem para o tradutor pela variedade daiacute

decorrente que lhe proporciona maior amplitude de movimentos Um exemplo

entre muitos diante do epiacuteteto Argeiphontes em referecircncia a Hermes encontrado

na Odisseia teraacute o tradutor que optar rapidamente entre vaacuterias interpretaccedilotildees

ldquomatador de Argosrdquo ndash numa etimologia forccedilada mas que vem da antiguidade ndash

ldquobrilhanterdquo e vaacuterias outras Se se resolver pela primeira empregaraacute com toda

certeza o neologismo ldquoArgicidardquo o que o obrigaraacute a uma nota para elucidaccedilatildeo de

um mito tardio e de pouca ou de nenhuma significaccedilatildeo no mundo helecircnico na

segunda hipoacutetese falaraacute linguagem simples mas por isso mesmo mais de acordo

com as caracteriacutesticas do estilo homeacuterico o leitor natildeo perceberaacute o obstaacuteculo e

prosseguiraacute empolgado pela beleza dos poemas imortais (p 145)

Como se pode notar Nunes antepotildee-se a formulaccedilotildees que possam dificultar a

leitura fluente da traduccedilatildeo de Homero abolindo o uso de notas (ldquoAo publicar o texto da

traduccedilatildeo portuguesa daqueles poemas deixei-o desacompanhado de notas jaacute por afagar

a esperanccedila de que conseguiria infundir-lhe uma parcela da beleza original []) (pp

141-142) A dicccedilatildeo de sua obra tradutoacuteria aponta portanto para uma pretendida

oposiccedilatildeo ao modo como Odorico realizara seu intento ao optar por ldquouma linguagem

simplesrdquo (opccedilatildeo baseada tambeacutem em sua visatildeo do texto homeacuterico como dotado de

simplicidade) busca favorecer a fruiccedilatildeo da obra pelo leitor a que se dirige Diz ele ldquoem

geral as notas que acompanham as traduccedilotildees valem como trabalho agrave parte que servem

para revelar os fundamentos filoloacutegicos de seus autores Natildeo eacute um trabalho dessa

natureza que me proponho nesse momentordquo (p 144)

Sobre sua versatildeo da obra teatral de Shakespeare e a recepccedilatildeo criacutetica por ela

obtida diz Marcia A P Martins115

114 Outras observaccedilotildees de C A Nunes sobre traduccedilatildeo seratildeo citadas oportunamente durante as primeiras

iniciativas de anaacutelise de fragmentos da obra homeacuterica 115 ldquoA Traduccedilatildeo do drama shakespeariano por poetas brasileirosrdquo In revista Ipotesi v 13 n 1 janjul

Juiz de Fora 2009 pp 27-40

110

[Carlos Alberto Nunes] dedicou-se durante a deacutecada de 1950 a um projeto

grandioso a traduccedilatildeo de todas as comeacutedias trageacutedias e dramas histoacutericos de

Shakespeare para o portuguecircs

[] A recepccedilatildeo criacutetica do trabalho de Nunes pode ser avaliada pelos comentaacuterios

de alguns tradutores e criacuteticos Eugecircnio Gomes elogiou o trabalho de Nunes que

considerou de grande envergadura e de modo geral consciencioso e seguro

ldquocapaz de impor-se como verdadeiro modecirclo do que deveraacute ser uma traduccedilatildeo

brasileira de Shakespearerdquo (GOMES 1961 p 68) []

Para Nelson Ascher tradutor e criacutetico Nunes eacute um tradutor erudito e rigoroso com

sua busca por manter o esquema meacutetrico do original enquanto que na avaliaccedilatildeo da

especialista em estudos shakespearianos Margarida Rauen (1993) as traduccedilotildees de

Nunes satildeo difiacuteceis de ler por causa do seu estilo ornamentado e grandiloquente e

por observarem as normas da linguagem escrita tatildeo diferentes daquelas da

linguagem oral Barbara Heliodora por sua vez criticou-lhe o excesso de

inversotildees que inviabilizam o uso da sua traduccedilatildeo no palco (1997)

Eacute possiacutevel observar que enquanto o comentaacuterio de Ascher deixa transparecer uma

concepccedilatildeo de traduccedilotildees shakespearianas que valoriza a manutenccedilatildeo das

caracteriacutesticas formais observadas no texto de partida as duas apreciaccedilotildees

seguintes evidenciam uma concepccedilatildeo de ldquofidelidaderdquo a Shakespeare que pressupotildee

a preservaccedilatildeo da sua funccedilatildeo teatral para a qual contribuem uma dicccedilatildeo e uma

sintaxe adequadas a um texto que se destina primordialmente agrave fala e natildeo agrave

leitura

Por fim em seu artigo ldquoFigura em minha liacutengua da traduccedilatildeo em verso do verso

dramaacutetico de William Shakespeare um projeto para Ricardo IIIrdquo (2007) o

dramaturgo e tradutor de textos teatrais Marcos Barbosa de Albuquerque considera

Nunes um tradutor brilhante embora ldquobastante particular em sua escolha de

palavras e vasto no emprego de inversotildees e de malabarismos sintaacuteticosrdquo estilo que

tem sido recorrentemente tachado de arcaizante pela criacutetica (2009 35)

Tendo alcanccedilado relativa popularidade suas traduccedilotildees da eacutepica greco-latina

foram publicadas com significativa tiragem em ediccedilotildees de bolso Sobre essas

traduccedilotildees diz Haroldo de Campos

No que respeita agrave traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes embora natildeo se possa

enquadrar na categoria da lsquotranscriaccedilatildeorsquo (termo que eacute liacutecito aplicar sem exagero a

Odorico natildeo obstante os eventuais lsquodesniacuteveisrsquo que possam afetar o resultado

111

esteacutetico de seu projeto tradutoacuterio) estamos diante de uma empreitada incomum

que merece como tal respeito e admiraccedilatildeo Desde logo pelo focirclego do tradutor

que levou a cabo a transposiccedilatildeo integral em versos para o portuguecircs de ambos os

extensos poemas Num outro plano o prosoacutedico pela interessante soluccedilatildeo

(louvada por Maacuterio Faustino se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis

siacutelabas o equivalente em meacutetrica vernaacutecula do hexacircmetro (verso de seis peacutes)

homeacuterico O resultado para o nosso ouvido embora relente um pouco o passo do

verso aproximando-o da prosa ritmada eacute uma boa demonstraccedilatildeo de que natildeo

assistia razatildeo a Mattoso Cacircmara Jr quando impugnava a ac1imataccedilatildeo do verso de

medida longa em portuguecircs considerando-o lsquointeiramente anocircmalorsquo em nossa

liacutengua (Mattoso referia-se agrave adoccedilatildeo de um verso de quinze siacutelabas por Fernando

Pessoa em sua traduccedilatildeo de The Raven de E A Poe) A praacutetica de Carlos Alberto

Nunes sustentando com brio por centenas de versos essa medida contesta

eloquentemente aquela restriccedilatildeo normativa No que se refere agrave linguagem todavia

natildeo eacute um empreendimento voltado para soluccedilotildees novas com a estampa da

modernidade Trata-se antes de uma traduccedilatildeo acadecircmica de pendor

lsquoclassicizantersquo que retroage estilisticamente no tempo116

Um aspecto da obra tradutoacuteria de Nunes ndash jaacute mencionado na referecircncia a

avaliaccedilatildeo de Nelson Ascher relativa a suas traduccedilotildees de Shakespeare ndash eacute a preocupaccedilatildeo

de correspondecircncia riacutetmico-meacutetrica com o original e portanto a importacircncia por ele

atribuiacuteda aos padrotildees formais do texto que se traduz Frequentemente assinalada por

seus criacuteticos a caracteriacutestica de recriaccedilatildeo do aspecto meacutetrico costuma ser contraposta ndash

como o fez Campos ndash ao que seria um conservadorismo da linguagem Para Martins

referindo-se a sua versatildeo da obra shakespeariana suas traduccedilotildees satildeo

conservadoras no que diz respeito tanto agraves poeacuteticas que vinham surgindo no

sistema literaacuterio brasileiro [agrave eacutepoca em que realizou o trabalho quando se

desenvolvia o movimento da vanguarda concretista na poesia] como agrave maneira de

se traduzir Shakespeare como um autor de linguagem elevada que exigiria

rebuscamento sintaacutetico e lexical (2009 35)

116 CAMPOS H ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo Revista USP no 12 dez-jan- fev 1991-1992 pp 143-161

112

Parece-me bastante discutiacutevel a noccedilatildeo de que a opccedilatildeo tradutoacuteria teria de estar

vinculada agraves ldquopoeacuteticas que vinham surgindo []rdquo e tambeacutem de que a ideia da obra de

Shakespeare como dotada de linguagem elevada implique necessariamente

conservadorismo

A importacircncia atribuiacuteda por Nunes no plano formal agrave observacircncia do esquema

meacutetrico em traduccedilatildeo evidencia-se nesta sua referecircncia agrave eacutepica grega

Firmemos portanto mais uma caracteriacutestica do estilo eacutepico a uniformidade do

verso ldquoHomero emerge da corrente da vidardquo diz Staiger ldquoe se conserva imoacutevel

em face do mundo exterior contempla as coisas de um certo ponto de vista por

uma determinada perspectiva Esta eacute condicionada pelo ritmo de seus versos sendo

ela que lhe assegura a identidade o ponto fixo no fluxo permanente das coisasrdquo Eacute

essa condiccedilatildeo que permite ao poeta conservar a serenidade em face dos

acontecimentos relatados Interpretando o hexacircmetro em termos da meacutetrica

portuguesa veremos que se trata de um verso longo de dezesseis siacutelabas

paroxiacutetono com acento predominante na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e 16ordf siacutelabas e discreta

cesura depois do terceiro peacute

Ouve-me Atena tambeacutem nobre filha de Zeus poderoso

Quando o poeta se afasta desse paradigma para introduzir duas pausas no verso

que o dividem em trecircs porccedilotildees quase iguais de regra volta no verso subsequente a

cair no ritmo inicial que eacute o predominante em todo o recitativo

Daacute que possamos cobertos de gloacuteria voltar para as naves

poacutes grande feito acabarmos que haacute de lembrar sempre aos Teucros

Nas traduccedilotildees esse esquema natildeo eacute observado com rigor notando-se ainda a

tendecircncia para variar de ritmo pelo deslocamento das pausas dentro do verso com

o que se evita a monotonia de possiacutevel desagrado para o ouvido moderno Mas

com isso padece o estilo eacutepico em uma de suas caracteriacutesticas essenciais []

(1962 38-39)

Haacute no entanto em relaccedilatildeo agrave opccedilatildeo de Nunes de ldquofidelidaderdquo ao esquema

riacutetmico-meacutetrico do texto-fonte discussotildees acerca da qualidade de seu resultado esteacutetico

113

Sobre o sistema praticado pelo tradutor em suas versotildees da eacutepica virgiliana defende-o

Oliva Neto (que no entanto tambeacutem aponta no aspecto da linguagem o ldquodefeitordquo do

ldquoleacutexico beletristardquo empregado por Nunes)

[] Carlos Alberto Nunes quis reproduzir o hexacircmetro datiacutelico [] A bem dizer

quando se diz ldquo16 siacutelabasrdquo [quantidade que se atribui ao verso usado por Nunes]

estaacute-se de fato a contaacute-las ateacute a uacuteltima siacutelaba tocircnica como se faz na meacutetrica

portuguesa hoje o que revela que se levou em conta a dimensatildeo do verso que eacute

entatildeo muito longo em vez privilegiar-se a ceacutelula datiacutelica que sendo o que

ritmicamente se impotildee era o que o tradutor tinha em mente Na leitura riacutetmica eacute

secundaacuteria a dimensatildeo do verso jaacute que os daacutetilos se sucedem verso apoacutes verso natildeo

tendo tanta importacircncia aqui a quebra deles ou seja onde terminam isto eacute a

dimensatildeo Estaacute-se a criticar a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes natildeo pelos defeitos

intriacutensecos que decerto possui como a meu ver entre outros o leacutexico beletrista

mas porque natildeo fez segundo cada criacutetico ou o que Odorico Mendes ou que

Barreto Feio fizeram o que eacute extriacutenseco [] (2007 82-83)

O esquema meacutetrico adotado por Nunes eacute objeto de comentaacuterio de Medina

Rodrigues que questiona sua pertinecircncia embora em referecircncia geneacuterica a seu

trabalho reforce o juiacutezo aparentemente consensual de ser ele um ldquomeritoso tradutorrdquo

O hexacircmetro de Homero tem seis peacutes com predomiacutenio do daacutectilo como em nossas

proparoxiacutetonas Carlos Alberto Nunes incansaacutevel e meritoso tradutor levou isso a

seacuterio Em suas versotildees da Iliacuteada e da Odisseia procurou ajeitar o portuguecircs em

compassos ternaacuterios para imitar o original []

Certamente o tradutor sabia que os compassos ou peacutes de Homero natildeo privilegiam

siacutelabas tocircnicas e aacutetonas mas longas e breves que aliaacutes natildeo existem em liacutenguas

que falamos Privilegiando a estrutura silaacutebica naquilo que pocircde o tradutor imitou

uma teacutecnica sem levar-lhe em conta o efeito a saber aquela velocidade colorida

que Homero consegue com o hexacircmetro grego e que a traduccedilatildeo de Carlos Alberto

Nunes natildeo consegue com o hexacircmetro portuguecircs por ser este muito pesado lento

Eacute a ilusatildeo aritmeacutetica da semelhanccedila formal que natildeo percebe que teacutecnicas idecircnticas

levam a efeitos distintos

[] enquanto Odorico estava preocupado em traduzir efeitos ou sentidos Carlos

Alberto Nunes se preocupou em traduzir basicamente a forma ou mais

114

precisamente como querem alguns a focircrma os esquemas retoacutericos prosoacutedicos os

epiacutetetos a frase oralizada etc (2000 50-51)

O aspecto particular ndash e tatildeo relevante ndash da tarefa empreendida por Nunes em

manter a dinacircmica fixa de acentuaccedilatildeo dos versos assim como suas peculiaridades

esteacuteticas gerais seratildeo assim como as obras dos demais tradutores analisadas

oportunamente

A3 Haroldo de Campos

Apresenta-se a seguir de modo sucinto a trajetoacuteria do poeta tradutor e ensaiacutesta

Haroldo de Campos ndash que como jaacute se disse seraacute objeto relativamente privilegiado deste

trabalho devido ao alcance e agrave importacircncia de sua obra tradutoacuteria e ensaiacutestica sobre

traduccedilatildeo poeacutetica Para uma certa independecircncia desta apresentaccedilatildeo natildeo seratildeo evitadas

algumas informaccedilotildees sobre aspectos de seu pensamento e de suas fontes presentes

tambeacutem em outros toacutepicos deste estudo

Estabelecer relaccedilotildees nexos transitar entre tempos espaccedilos culturas liacutenguas

formas ligar fundir elementos aparentemente diacutespares distantes realizar o hibridismo

a atitude que permeia estes objetivos parece-me determinante na obra e no pensamento

de Haroldo de Campos

Vejamos brevemente algumas manifestaccedilotildees da focalizaccedilatildeo do entremeio do

espaccedilo em que se podem traccedilar conexotildees entre dois pontos referenciais

Sobre sua obra Galaacutexias diz Haroldo em entrevista concedida a Carlos Rennoacute e

publicada em 23 de outubro de 1984117

A poesia concreta respondeu a uma das vertentes da minha personalidade as

Galaacutexias respondem a outra Que elas tenham podido coexistir eacute algo que me

demonstrou a inexistecircncia de uma oposiccedilatildeo antagocircnica entre barroquismo e

construtivismo [] Natildeo teria sido possiacutevel por outro lado sem a experiecircncia de

rigor e controle do acaso da poesia concreta disciplinar o turbilhatildeo barroquizante

que a escritura galaacutetica desencadeia

117 A referida entrevista foi publicada nessa data no caderno Folha Ilustrada do jornal Folha de SPaulo

115

Coexistecircncia entre ldquoconstrutivismo e barroquismordquo entre a poesia concreta e o

ldquoturbilhatildeo barroquizanterdquo da ldquoescritura galaacuteticardquo a fusatildeo desenvolve-se como

instrumento como caminho para o autor de encontro entre diferentes tendecircncias que

criaraacute um espaccedilo manifesto natildeo soacute na ldquoproesiardquo de Galaacutexias como em sua obra

propriamente poeacutetica (lembre-se por exemplo a poesia de Signacircncia quase ceacuteu ou a de

Finismundo a uacuteltima viagem agraves quais voltaremos mais adiante) A linguagem de

Galaacutexias em seu ldquohibridismo textualrdquo jaacute conteria em si o ldquofusionismordquo do proacuteprio

barroco

[Em um ensaio] referia-me ao Barroco pelo fusionismo que lhe eacute proacuteprio pelo

hibridismo de liacutenguas e culturas que o caracteriza como o momento embrionaacuterio

em nossa Ameacuterica dessa rebeliatildeo contra a normatividade claacutessica dos gecircneros

Tambeacutem a proacutepria ideia de ldquoruptura dos gecircnerosrdquo ou seja fusatildeo de seus limites

estaria na base da escritura da obra

Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos

gecircneros na literatura contemporacircnea da rarefaccedilatildeo dos limites entre poesia e prosa

e tambeacutem entre ficccedilatildeo e ensaio criacutetico entre o exerciacutecio ficcional e o exerciacutecio

metalinguiacutestico da escritura

Teria sido ainda um tracircnsito uma passagem que leva a outro hibridismo a

concepccedilatildeo de que ldquoA escritura galaacutetica foi [] um gesto eacutepico que se resolveu numa

epifacircnicardquo ndash ldquoo narrar deixou-se levar de roldatildeo pela proliferaccedilatildeo de imagens pela

voracidade focircnica pelas fosforescecircncias de uma semacircntica moacutevel que o contaacutegio de

significantes eacute capaz de suscitar e sustar []rdquo

Vista rapidamente a presenccedila de passagem de ligaccedilatildeo ndash que leva agrave fusatildeo ndash em

Galaacutexias prossigamos o itineraacuterio erraacutetico de referecircncias abordando sob a mesma

perspectiva a sua atividade de recriaccedilatildeo e mais exatamente o seu pensamento sobre

traduccedilatildeo poeacutetica

Em seu primeiro ensaio de focirclego sobre o assunto ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e

como criacuteticardquo118

Haroldo buscou fundamentar-se em duas referecircncias principais a

118 Op cit

116

noccedilatildeo de ldquosentenccedila absolutardquo de Albrecht Fabri e de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max

Bense traccedilando por meio de sua proacutepria concepccedilatildeo de poesia e de traduccedilatildeo uma

conexatildeo entre as duas formulaccedilotildees que serviram a uma forma de ldquounificaccedilatildeordquo expressa

em seu pensamento Mas essa junccedilatildeo seria apenas o iniacutecio de um processo de agregaccedilatildeo

de fundamentos num esforccedilo de leitura que buscaria pontos de convergecircncia em fontes

de diferente teor Nesse mesmo texto de 1962 o autor propotildee valendo-se de noccedilotildees da

cristalografia o conceito de ldquoisomorfismordquo para designar a operaccedilatildeo de traduzir poesia

para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica

autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas

entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo diferentes enquanto linguagem mas como

os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro de um mesmo sistemardquo (1976 24) uma

ldquodialeacutetica do diferente e do mesmordquo (Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria) Em primeiro

lugar haacute a evidente aproximaccedilatildeo de dois campos distintos de conhecimento a quiacutemica

e a poesia em segundo a proacutepria natureza do conceito de isomorfismo cuja ecircnfase eacute na

analogia correspondecircncia de forma que seraacute um exerciacutecio de passagem O termo

ldquoisomoacuterficordquo cederaacute lugar mais tarde a ldquoparamoacuterficordquo no pensamento de Haroldo para

que fosse enfatizada a relaccedilatildeo de paralelismo sugerida pelo prefixo ldquopara-rdquo ldquolsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquordquo) Observando-se a obra do tradutor natildeo se

encontraratildeo no entanto regras precisas ou absolutas de como se deve construir o corpo

paramoacuterfico ndash as relaccedilotildees de correspondecircncia a serem estabelecidas seratildeo de certa

forma uacutenicas como eacute cada poema e como eacute cada recriaccedilatildeo autocircnomos cada

transposiccedilatildeo uma viagem com seu proacuteprio percurso sua proacutepria paisagem

Seraacute na descoberta do trabalho do linguista russo Roman Jakobson no entanto

que Haroldo teraacute uma dos principais sustentaccedilotildees de seu pensamento sobre poesia e

sobre traduccedilatildeo poeacutetica As proposiccedilotildees desse autor iratildeo ao encontro das ideias que

acompanhavam o grupo concretista paulistano desde sua origem permitindo uma

referecircncia desenvolvida e precisa sobre aspectos natildeo-verbais da linguagem a

materialidade do signo linguiacutestico tal como pode ser vista na linguagem poeacutetica ideia

que encontra respaldo em Jakobson seraacute um ponto essencial na concepccedilatildeo de Haroldo

Centralmente a formulaccedilatildeo do linguista relativa agraves funccedilotildees da linguagem entre as quais

se inclui a funccedilatildeo poeacutetica passaraacute a ser para os poetas construtivistas uma referecircncia

absoluta porque capaz de definir a especificidade da linguagem da poesia Por essa

117

razatildeo Haroldo incluiraacute em longo ensaio de A arte no horizonte do provaacutevel119

uma

abordagem dos conceitos jakobsonianos relacionando-os com o trabalho de outros

autores como o criador da semioacutetica norte-americana Charles Peirce outra das

referecircncias principais dos concretistas e seu disciacutepulo Charles Morris

A ideia central de Jakobson sobre a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem poderaacute ser

associada por Haroldo agraves outras fontes jaacute por ele utilizadas como fundamentaccedilatildeo de

seu pensamento eacute perfeitamente compatiacutevel com a noccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de

Bense ou de ldquosentenccedila absolutardquo de Fabri Se para Bense a informaccedilatildeo esteacutetica de um

poema eacute coincidente com a totalidade de sua realizaccedilatildeo para Jakobson a ldquoequaccedilatildeo

verbalrdquo tambeacutem eacute irredutiacutevel Daiacute sobreviria ndash para ambos os pensadores ndash a

impossibilidade de uma ldquotraduccedilatildeordquo de poesia Se Haroldo jaacute falava em recriaccedilatildeo em

criaccedilatildeo de um corpo anaacutelogo iso- ou paramoacuterfico a proposiccedilatildeo de Jakobson de que

(ao mesmo tempo em que a traduccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel) seraacute possiacutevel a transposiccedilatildeo

criativa integraraacute perfeitamente o constructo em curso de seu pensamento que se

articularaacute progressiva e crescentemente em torno do conceito nominado transcriaccedilatildeo

Mas o ponto mais importante da concepccedilatildeo de Haroldo sobre transcriaccedilatildeo ndash que

se define e se arma no conjunto de seus textos sobre o assunto publicados tambeacutem em

perioacutedicos ao longo de uacuteltimas deacutecadas de sua vida e que recolhidos integraratildeo um

volume a ser publicado ndash eacute no meu modo de ver a explicitaccedilatildeo de que seu caminho

como transcriador parte de criteacuterios originados da observaccedilatildeo de elementos

intratextuais para chegar a um novo texto que por desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da

histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo reinventando-a (1983 60)120

Para tanto o ato de

construccedilatildeo de uma traduccedilatildeo viva seraacute um ato ateacute certo ponto usurpatoacuterio que se rege

pelas necessidades do presente de criaccedilatildeo (ib) Em vez de buscar reconstruir um

mundo passado a visatildeo haroldiana decide pela reinvenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo inserida em

novo contexto o texto portanto transforma-se na viagem e seu ponto de chegada

acolhe-o de modo a participar de sua reestruturaccedilatildeo para a qual o presente a releitura e

a comunicaccedilatildeo em novo espaccedilo e em novo tempo satildeo determinantes Resultado de

tracircnsito de trans-historicizaccedilatildeo o texto tambeacutem seraacute objeto de viagem para o leitor e

119 ldquoComunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo op cit (1975)

120 Esta citaccedilatildeo e as duas seguintes provecircm do artigo Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria in Cadernos do

MAM nuacutemero 1 Rio de Janeiro dezembro de 1983

118

seraacute objeto e sujeito de transformaccedilatildeo no dizer de Joatildeo Alexandre Barbosa121

[] a

compreensatildeo [por parte do leitor] estaacute na busca que eacute o iniacutecio de uma viagem [] o

leitor do poema recorta o seu espaccedilo de reflexatildeo e pensa a viagem e Transformando

pela leitura o poema que lecirc o leitor eacute transformado pela leitura

Recriaccedilatildeo reescritura um ponto de vista que abarca um amplo horizonte capaz

de revelar sincronicamente poeacuteticas de diversas eacutepocas espaccedilos e culturas este seria um

modo de se entender a posiccedilatildeo de Haroldo como leitor-criador Sigamos a ecircnfase no

foco extensivo de seu olhar e de seu pensamento amplamente dirigido agrave passagem

evocando (conforme anunciado) duas de suas escrituras palimpseacutesticas Signacircncia

quase ceacuteu e Finismundo a uacuteltima viagem

Sobre o primeiro lembre-se muito brevemente que o texto rastreia

reinscrevendo iacutendices da passagem textual da criaccedilatildeo dantesca num percurso inverso ao

da Divina Comeacutedia iniciando-se no paraiacuteso o livro-poema finda no fundo do inferno

atravessando os acircmbitos e lindes desde o iniacutecio com palavras pendentes desde as

alturas por um fio invisiacutevel que as susteacutem ateacute o derradeiro niacutevel uma queda evidenciada

na Coda em que a visatildeo dos uacuteltimos lecircmures configuram o ecircxito ao reveacutes a

viagem se daacute na amplitude do alcance de cada plano e tambeacutem na dimensatildeo da

profundidade como que colhendo fragmentos desvelados pela releitura Uma

reescrituraindicial-icocircnica pois ao indicar elementos de uma tradiccedilatildeo evocada reinstala

paradigmas ndash qualidade transformada na passagem de um a outro tempo de um a outro

espaccedilo ndash novos estiacutemulos agrave percepccedilatildeo em novo contexto em que se insere a nova

dimensatildeo poeacutetica

Sobre o segundo trata-se de um poema que no dizer de Haroldo envolve o

risco da criaccedilatildeo pensado como um problema de viagem e como um problema de

enfrentamento com o impossiacutevel uma empresa que se por um lado eacute punida com um

naufraacutegio por outro eacute recompensada com os destroccedilos do naufraacutegio que constituem o

proacuteprio poema Um desafio encarado pelo poeta que encontrou em estudo

semioloacutegico do italiano DacuteArco Silvio Avalle o embriatildeo de seu proacuteprio texto no

estudo eacute analisado o canto XXVI do Inferno no qual Dante propotildee a soluccedilatildeo para um

enigma que vinha da tradiccedilatildeo claacutessica o enigma do fim de Ulisses O enigma referido

121 As citaccedilotildees satildeo excertos do ensaio Um cosmonauta do significante navegar eacute preciso que introduz

o livro Signantia quase coelum Signacircncia quase ceacuteu de Haroldo de Campos (Satildeo Paulo Perspectiva

1979)

119

diz respeito a um segmento de verso do canto XI da Odisseia thaacutenatosekshaloacutes que

como diz Haroldo (na esteira de Avalle) pode ser entendidocomo uma morte para

longe do mar salino ou como uma morte que procede do mar salino (ou seja se

Odisseu teria morrido no mar ou longe dele em paz em Iacutetaca) No canto dantesco o

velho Odisseu (Ulisses) teria ousado uma nova aventura a travessia das fronteiras

permitidas do mundo ndash uma atitude provinda da hyacutebris (definida por Haroldo como

essa desmesura orgulhosa com que o ser humano intenta [] confrontar-se com o

impossiacutevel) Se haacute hyacutebris na accedilatildeo de Ulisses esta encontra paralelo no proacuteprio

enfrentamento do desafio do poema pelo poeta de Finismundo a travessia desde a

tradiccedilatildeo ndash a situaccedilatildeo do heroacutei homeacuterico Odisseu focalizada no primeiro tempo do

texto ndash ateacute a contemporaneidade em que o agora renomeado Ulisses (tambeacutem evocador

do anti-heroacutei criado parodicamente por James Joyce um paradigma do homem na

cidade contemporacircnea ou seja um Ulisses da banalidade do mundo como diria

Lukaacutecz abandonado pelos deuses) transforma-se num factotum Transmutaccedilatildeo

confronto passagem viagem ousadia no tracircnsito e na superaccedilatildeo de limites a jornada

de Haroldo em toda a sua obra eacute emblematicamente representada por Finismundo

talvez seu poema maacuteximo nele o poeta chega ao cume de seu processo interespaccedilos

navega destemida e firmemente no mar encarnado avermelhado multitudinoso cor de

vinho (tema de uma passagem de Galaacutexias) com a sensibilidade de quem sorve o

aroma desfruta das notas do paladar e deglute antropofagicamente toda a

humanidade e sua histoacuteria criadora reinventando-a

Terminemos com uma breve menccedilatildeo a uma iniciativa ndash emblemaacutetica ndash do poeta-

criacutetico-transcriador movida pela circunstacircncia em 1991 apoacutes diversos anos de

colaboraccedilatildeo com o livreto (por vezes livro) feito anualmente para o Bloomsday (data

em que se celebra internacionalmente a obra de James Joyce) paulistano Haroldo

propocircs e organizou o volume Ulisses a travessia textual122

que traccedilava por meio de

traduccedilotildees suas e alheias um percurso iniciado com o proacuteprio Odisseu homeacuterico (a

Odisseia aparece representada por fragmento do canto VI em que Nausiacutecaa depara-se

com o heroacutei naacuteufrago nu sujo de marugem salina) e que prosseguia com o tema

odisseico relido e recriado por Jorge Guilleacuten e por Derek Walcott aleacutem de ligar-se

entre outras referecircncias multiliacutengues agrave versatildeo em grego moderno do texto homeacuterico

122 Satildeo Paulo Olavobraacutes ABEI 2001

120

(realizada por Kazantzaacutekis) e agrave paroacutedica reimaginaccedilatildeo do episoacutedio em Ulysses de

Joyce ligava-se ainda ao poema evocador do retorno do heroacutei a sua terra Iacutetaca de

Kavaacutefis O sintagma travessia textual representa bem o mar siacutegnico que eacute objeto do

poeta a assumir em sua autocircnoma materialidade sonora e visual uma realidade

equivalente ndash espelho com vida proacutepria e independente tramado com seus proacuteprios

constituintes geradores de significaccedilatildeo ndash agrave dos elementos da vida e da histoacuteria

transitadas transpostas transcriadas Mar em que se viaja sempre com o olhar largo

extensivo da passagem

Complemente-se a apresentaccedilatildeo da obra de Haroldo de Campos com citaccedilotildees

que a discutem Sobre a Iliacuteada e a traduccedilatildeo do poema realizada por Campos foco de

interesse deste estudo diz Trajano Vieira

[] a linguagem da Iliacuteada eacute elaboradiacutessima ao contraacuterio do que ateacute pouco tempo

atraacutes entendiam alguns comentadores [] Se eacute verdade que a Iliacuteada apresenta

caracteriacutesticas formais que indicam sua natureza oral ndash retomada de expressotildees

fixas ao longo do texto repeticcedilatildeo de cenas tiacutepicas predomiacutenio da sintaxe parataacutetica

ndash isso natildeo implica que no plano esteacutetico sua linguagem seja simples ou despojada

[]

Desconheccedilo outra traduccedilatildeo tatildeo fiel agrave complexidade formal da Iliacuteada quanto esta

[]123

A fim de introduzir jaacute a referecircncia ao metro adotado por Campos em sua

recriaccedilatildeo da Iliacuteada visando ao dado comparativo em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees jaacute referidas e

agraves posteriores discussotildees sobre o tema cite-se o proacuteprio tradutor

De minha parte em lugar do decassiacutelabo de molde camoniano que mais de uma

vez obrigou Odorico a prodiacutegios de compressatildeo semacircntica e contorccedilatildeo sintaacutetica

recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na sexta siacutelaba ou mais raramente na

quarta oitava e deacutecima-segunda) Evitei assim o risco do prosaiacutesmo decorrente

123 VIEIRA T ldquoIntroduccedilatildeordquo In CAMPOS H Odisseia de Homero Satildeo Paulo Mandarim 2002 pp 20-

21

121

de um verso mais alongado e sua contrapartida a constriccedilatildeo derivada de um metro

demasiadamente conciso []124

Em nota referente agrave sua opccedilatildeo pelo metro dodecassiacutelabo Campos cita opiniatildeo de

Said Ali e o jaacute mencionado comentaacuterio de Silveira Bueno

M Said Ali estudando o hexacircmetro latino refere que a ldquoideia primitiva de

construir verso de seis peacutes uniformemente dactiacutelicosrdquo teve de ser modificada na

praacutetica jaacute que ldquoo predomiacutenio dos hexacircmetros de 15 e 14 siacutelabas se observa em

qualquer poeta latinordquo (Acentuaccedilatildeo e versificaccedilatildeo latinas Rio de Janeiro

Organizaccedilatildeo Simotildees 1957) Silveira Bueno por sua vez considera o

dodecassiacutelabo (alexandrino) ldquoo uacutenico metro moderno que se aproxima do

hexacircmetro dactiacutelicordquo (prefaacutecio de 1956 da ediccedilatildeo da Iliacuteada traduzida por M

Odorico Mendes)

124 CAMPOS H VIEIRA T ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo In Mecircnis ndash A ira de Aquiles Satildeo Paulo Nova

Alexandria 1994 pp 13-14

122

B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais

Se temos do seacuteculo XIX a teorizaccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes proveniente

das notas a suas traduccedilotildees da eacutepica e indiretamente da proacutepria metodologia tradutoacuteria

por ele empregada no seacuteculo XX alguns poetas se destacam quanto agrave produccedilatildeo de um

pensamento sobre traduccedilatildeo entre eles inegavelmente Haroldo de Campos ocupa

posiccedilatildeo mais elevada como se tem visto e seraacute reiterado adiante seu irmatildeo Augusto de

Campos referecircncia quase unacircnime pela excelecircncia de suas traduccedilotildees natildeo se dedicou

tanto quanto Haroldo a teorizar o que denomina ldquotraduccedilatildeo-arterdquo em conceito

semelhante ao de ldquotranscriaccedilatildeordquo outros seriam dignos de nota mas nos alongariacuteamos

para aleacutem dos destaques centrais Haacute no entanto um trabalho a ser citado e discutido

como pioneiro na proposiccedilatildeo de conceitos que se firmaram posteriormente ndash como o de

ldquorecriaccedilatildeordquo palavra primeiramente usada por ele ndash entre noacutes refiro-me ao poeta

Guilherme de Almeida cujos textos de apresentaccedilatildeo e notas agraves ediccedilotildees de poesia

francesa por ele recriada se mostram precursores de ideias hoje bem conhecidas em sua

eacutepoca bem mais do que hoje ldquoafastar-se da letrardquo para preservar a intenccedilatildeo de recriaccedilatildeo

de relaccedilotildees sonoras ou riacutetmicas havia de ser um ato bem justificado125

Em ensaio de 2011 denominado ldquoGuilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como

formardquo126

Aacutelvaro Faleiros (motivado por artigo de Juacutelio Castantildeon Guimaratildees127

)

destaca ldquoo papel central de Guilherme de Almeida na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo da traduccedilatildeo como

formardquo (2012 2) em nosso paiacutes tradiccedilatildeo essa que teria sucedido aquela da traduccedilatildeo praticada

conforme o paradigma da aemulatio que seria a ldquoforma predominante de se tratar a traduccedilatildeo de

poemas desde o seacuteculo XVII [] ateacute o iniacutecio do seacuteculo XXrdquo (ib) assim entendidas as

traduccedilotildees ldquomuitas vezes livremente modificadasrdquo eram correntemente incluiacutedas ldquonos livros dos

proacuteprios autores [] pois o que importava era a qualidade e o alcance da emulaccedilatildeordquo (p 3) Este

125 A fim de registrar a ocorrecircncia desse importante capiacutetulo da teoria da traduccedilatildeo poeacutetica em nosso paiacutes

(antecedendo a exposiccedilatildeo da teoria da transcriaccedilatildeo de H de Campos) assinalo a existecircncia de trecircs artigos

meus escritos para acompanharem reediccedilotildees da obra tradutoacuteria de Guilherme que ademais realizou

diretamente do grego uma traduccedilatildeo da Antiacutegone de Soacutefocles considerada modelar por Campos Os

artigos satildeo prefaacutecios e posfaacutecio dos livros Verlaine Paul Trad G de Almeida A voz dos botequins e

outros poemas Satildeo Paulo Hedra 2009 Almeida G de Flores das ldquoFlores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 Almeida G de Poetas de Franccedila Satildeo Paulo 2011 126 FALEIROS A Guilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como forma Plaquete Satildeo Paulo Casa

Guilherme de Almeida 2012 127 GUIMARAtildeES J C ldquoPresenccedila de Mallarmeacute no Brasilrdquo In GUIMARAtildeES J C Reescritas e esboccedilos

Rio de Janeiro Topbooks 2010 pp 9-53

123

seria o caso de traduccedilotildees como as de Batista Cepelos (c 1900) e de Alphonsus de Guimaratildees

(realizadas no iniacutecio do seacuteculo XX) de poemas do francecircs Steacutephane Mallarmeacute que teriam ldquouma

funccedilatildeo de imitaccedilatildeo ou de paraacutefraserdquo (p 4) Faleiros desenvolve a ideia apresentada por

Guimaratildees de ser Guilherme de Almeida ldquoum dos primeiros a operar de modo mais completo

uma lsquomudanccedila da noccedilatildeo de traduccedilatildeorsquordquo (ib) reconhecendo na formulaccedilatildeo do poeta ldquoao longo

das deacutecadas de trinta e quarenta do seacuteculo XX parte dos princiacutepios que regem as concepccedilotildees

dominantes do traduzir poemas hoje no Brasilrdquo (ib) Estas seriam marcadas pela ldquotraduccedilatildeo

como formardquo que teria o propoacutesito de ldquoreproduzir no poema de chegada formas homoacutelogas agraves

do poema de partidardquo sendo constantes ldquoa retomada de padrotildees meacutetricos e riacutemicosrdquo e a

ldquopreocupaccedilatildeo com a retoacuterica e a imageacutetica do texto de partidardquo (p 2)

De minha parte destacaria um aspecto importante nas concepccedilotildees sobre

traduccedilatildeo (ou ldquore-produccedilatildeordquo ou ldquotransfusatildeordquo) de Guilherme de Almeida este expressava

que no seu ldquoprocesso de re-criaccedilatildeo natildeo haacute propriamente luta de poeta contra poeta de

um contra outro idioma e sim uma automaacutetica justaposiccedilatildeo passiva conformaccedilatildeo

espeacutecie de entente cordiale de taacutecita e reciacuteproca sujeiccedilatildeordquo128

Ainda que se afirme uma

ldquopassiva conformaccedilatildeordquo esta eacute anulada pela colocaccedilatildeo final se haacute ldquoreciacuteproca sujeiccedilatildeordquo

natildeo haacute sujeiccedilatildeo unilateral ou seja natildeo haacute relaccedilatildeo de subserviecircncia Este entendimento que

prevecirc o diaacutelogo da traduccedilatildeo com o original e portanto a relativa autonomia autoral do poema

recriado estaraacute em conformidade com a mais atual praacutetica tradutoacuteria de poesia e com a proacutepria

conceituaccedilatildeo buscada por este trabalho acerca da traduccedilatildeo poeacutetica e da anaacutelise de poemas

traduzidos como se poderaacute verificar

128 ALMEIDA G de Flores das ldquoflores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 p 97

124

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica

O poeta Haroldo de Campos eacute um caso raro de fertilidade natildeo soacute na produccedilatildeo de

criaccedilotildees originais e de traduccedilotildees referenciais em liacutengua portuguesa como tambeacutem de

escritos criacuteticos e teoacutericos sobre poesia e sobre traduccedilatildeo Sem duacutevida entre os poetas

que o Brasil jaacute teve eacute o exemplo maacuteximo de pensamento sobre traduccedilatildeo poeacutetica tendo

publicado um grande nuacutemero de textos que se somam num conjunto dos mais densos e

coerentes acerca do assunto Aleacutem dos artigos incluiacutedos em livros haacute outros que

apareceram apenas em perioacutedicos129

Dos escritos teoacutericos de Campos acerca da traduccedilatildeo de poesia emerge

centralmente um conceito que pode orientar a praacutetica do traduzir e assim considero daacute

conta de coadunar visotildees por vezes tomadas como diacutespares ou mesmo antagocircnicas por

quem as confronta O conceito a que me refiro eacute o do isomorfismo ao qual se dedica

esta breve apresentaccedilatildeo

Coerentemente o pensamento de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo130

considera como um de seus princiacutepios fundamentais a definiccedilatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem de Roman Jakobson ndash funccedilatildeo dominante da ldquoarte verbalrdquo (1973 128) ndash que

implica o ldquotratamento da palavra como objetordquo (Campos H 1976 22) e por

conseguinte o fato de que a palavra deixa de ser um mero mesma (coisificando-se

portanto) e a suas relaccedilotildees com outras palavras criando uma instrumento de

transmissatildeo de um conteuacutedo para chamar a atenccedilatildeo a si ldquoteia de significantesrdquo

caracteriacutestica do fenocircmeno poeacutetico Na linha de pensamento jakobsiana tal teia seria

irreproduziacutevel sendo possiacutevel apenas a ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (1973 72) Esta

transposiccedilatildeo se daria necessariamente conforme fica impliacutecito em tal concepccedilatildeo pela

via do ldquoprinciacutepio construtivo do textordquo (p 72) que assim atentaria agrave palavra e a suas

relaccedilotildees com outras do ponto de vista de sua existecircncia como objeto a qual

caracterizaria tais relaccedilotildees por uma dimensatildeo significante ou seja de forma

Outra ideia que fundamenta a concepccedilatildeo de Haroldo sobre traduccedilatildeo eacute a

definiccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max Bense caracterizada por elementos de

ldquoimprevisibilidaderdquo ldquosurpresardquo ldquoimprobabilidade da ordenaccedilatildeo de siacutembolosrdquo e

129 Tais artigos integraratildeo o volume a ser lanccedilado denominado Transcriaccedilatildeo 130 Seratildeo referidos e reiterados complementariamente de forma sucinta e um tanto diversa nesta parte do

trabalho alguns conceitos antes apresentados

125

marcada pela fragilidade uma vez que eacute ldquoinseparaacutevel de sua realizaccedilatildeordquo coincidente

com sua totalidade Daiacute decorreria igualmente no caso da informaccedilatildeo esteacutetica ldquopelo

menos em princiacutepio sua intraduzibilidaderdquo (1976 22-3) Como diz Haroldo ldquoadmitida

a tese da impossibilidade em princiacutepio da traduccedilatildeo de textos criativos parece-nos que

esta engendra o corolaacuterio da possibilidade tambeacutem em princiacutepio da recriaccedilatildeo desses

textosrdquo (p 24 grifo meu) Assim ldquoNa traduccedilatildeo de um poema o essencial natildeo eacute a

reconstituiccedilatildeo da mensagem [ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquoconteuacutedordquo] mas a

reconstituiccedilatildeo do sistema de signos em que estaacute incorporada esta mensagem a

reconstituiccedilatildeo portanto da informaccedilatildeo esteacutetica e natildeo ldquoda informaccedilatildeo meramente

semacircnticardquo (1975 100) Priorizar o significado a informaccedilatildeo semacircntica seria ndash para

utilizarmos um conceito tomado da quiacutemica ndash realizar uma provaacutevel alotropia

(fenocircmeno pelo qual pode a mesma substacircncia apresentar-se sob variados aspectos e

com propriedades diferentes) convertendo por exemplo um diamante em grafite ou

em carvatildeo Embora de nossa visatildeo dependa o brilho da pedra cristalina algo em sua

estrutura a distingue do carvatildeo ainda que sejam ambos estados alotroacutepicos do

carbono131

Como nos revela a poeta curitibana Helena Kolody (em seu poema

ldquoGestaccedilatildeordquo) ldquoDo longo sono secreto na entranha escura da terra o carbono acorda

diamanterdquo (1985 39)

Observe-se que a visatildeo de uma informaccedilatildeo esteacutetica ndash que coincide com a proacutepria

totalidade do poema implicando que qualquer mudanccedila de seus constituintes

transforma (ou ldquoperturbardquo) tal informaccedilatildeo ndash ou de um ldquoprinciacutepio construtivordquo que

privilegia a referecircncia ao significante natildeo acarreta necessariamente o conceito de que o

texto seja ldquoreceptaacuteculo de significados estaacuteveisrdquo conceito este passiacutevel de ser

depreendido da linguiacutestica estrutural ao qual se opotildee uma oacuteptica desconstrucionista De

meu ponto de vista a recriaccedilatildeo esteacutetica de um original natildeo exclui nem a mutabilidade

do signo (e particularmente de seu significado) nem a participaccedilatildeo da leitura como um

ldquoato de interpretaccedilatildeordquo que delineia os significados postuladas pela referida oacuteptica

Na concepccedilatildeo de Haroldo de Campos a ldquo[hellip] traduccedilatildeo de textos criativos seraacute

sempre recriaccedilatildeo ou criaccedilatildeo paralela autocircnoma poreacutem reciacuteproca [hellip] Numa traduccedilatildeo

dessa natureza natildeo se traduz apenas o significado traduz-se o proacuteprio signo ou seja

sua fisicalidade sua materialidade mesma (propriedades sonoras de imageacutetica visual

131 Valho-me de um recurso metafoacuterico para nova referecircncia agrave questatildeo da ldquomaterialidade siacutegnicardquo

126

enfim tudo aquilo que forma [] a iconicidade do signo esteacutetico [hellip] O significado o

paracircmetro semacircntico seraacute apenas e tatildeo-somente a baliza demarcatoacuteria do lugar da

empresa recriadora Estaacute-se pois no avesso da chamada traduccedilatildeo literalrdquo (1976 24) O

autor em seu artigo ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo refere-se agrave ldquoteoria do traduzirrdquo

de Walter Benjamin ndash outro dos fundamentos essenciais de sua concepccedilatildeo relativa agrave

traduccedilatildeo de poesia e agrave sua proacutepria atividade como tradutor ndash como um pensamento que

ldquoinverte a relaccedilatildeo de servitude que via de regra afeta as concepccedilotildees ingecircnuas da

traduccedilatildeo como tributo de fidelidade (a chamada traduccedilatildeo literal ao sentido ou

simplesmente traduccedilatildeo lsquoservilrsquo) concepccedilotildees segundo as quais a traduccedilatildeo estaacute

ancilarmente encadeada agrave transmissatildeo do conteuacutedo do originalrdquo (1981 179)

Enfatizando tratar-se ldquodo caso de traduccedilatildeo de mensagens esteacuteticas obras de arte

verbalrdquo ou seja afirmando a especificidade desse tipo de obra e consequentemente a

singularidade de uma abordagem tradutoacuteria a ela dirigida Haroldo considera que ldquona

perspectiva benjaminiana da lsquoliacutengua purarsquo o original eacute quem serve de certo modo agrave

traduccedilatildeo no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteuacutedo inessencial

da mensagem [hellip] e permite dedicar-se [hellip] [agrave] lsquofidelidade agrave reproduccedilatildeo da formarsquo que

arruiacutena aquela outra [hellip] estigmatizada por W B como o traccedilo distintivo da maacute

traduccedilatildeo lsquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrsquo rdquo Nesse sentido Haroldo

postula que a teoria benjaminiana eacute ldquoorientada pelo lema rebelionaacuteriordquo de uma

ldquotraduccedilatildeo luciferinardquo (p 180)

Podemos ver em tal concepccedilatildeo de recriaccedilatildeo que toma como referecircncia a

materialidade do signo linguiacutestico se natildeo um questionamento expliacutecito aos ditos

ldquosignificados estaacuteveisrdquo uma impliacutecita visatildeo de sua efemeridade ligada agrave secundaacuteria

importacircncia para o poema e consequentemente para a traduccedilatildeo da obra de arte verbal

Natildeo seria absurdo vincular o que Benjamin considera ldquoconteuacutedo inessencialrdquo com uma

qualidade que poderia ser uma das justificativas de sua inessencialidade seu aspecto

instaacutevel ou mutaacutevel Campos entende a traduccedilatildeo do ldquomodo de intencionalidaderdquo (Art

des Meinens) benjaminiano como a traduccedilatildeo da forma ldquouma forma significante

portanto intracoacutedigo semioacuteticordquo (ib) Para ele isso ldquoquer dizer em termos

operacionais de uma pragmaacutetica do traduzir re-correr o percurso configurador da

funccedilatildeo poeacutetica reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o enquanto

dispositivo de engendramento textual na liacutengua do tradutor para chegar ao poema

127

transcriado como re-projeto isomoacuterfico do poema originaacuteriordquo (p 181 grifo meu)

Segundo ele o ldquotradutor de poesia eacute um coreoacutegrafo da danccedila interna das liacutenguas tendo

o sentido [o ldquoconteuacutedordquo][hellip] [apenas] como bastidor semacircntico ou cenaacuterio

pluridesdobraacutevel dessa coreografia moacutevelrdquo (p 181 grifo meu) Fica creio evidente

neste ponto a natildeo-incompatibilidade entre uma visatildeo do ato de traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo

esteacutetica e uma oacuteptica ldquopoacutes-estruturalistardquo que preconize a inexistecircncia de significados

estaacuteveis originais Sobre a ldquocoreografia moacutevelrdquo que caracterizaria a traduccedilatildeo de poesia

Haroldo afirma tratar-se de ldquopulsatildeo dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea

do texto original jaacute preacute-formado numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo (p 181 grifo meu) Natildeo seria cabiacutevel vermos a afirmada

dissolvecircncia da ldquodiamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto originalrdquo ndash portanto uma

transformaccedilatildeo de uma estrutura que para tanto natildeo pode ser uma meta fixa a ser

atingida ndash como uma metaacutefora da inexistecircncia do original como objeto estaacutevel Ideia

compatiacutevel com o que o criador do desconstrucionismo Jacques Derrida enfatiza em

seu ensaio ldquoTorres de Babelrdquo dedicado a ldquoA tarefa do tradutorrdquo de W Benjamin ldquoO

original se daacute modificando-se esse dom natildeo eacute o de um objeto dado ele vive e sobrevive

em mutaccedilatildeo lsquoPois na sobrevida que natildeo mereceria esse nome se ela natildeo fosse mutaccedilatildeo

e renovaccedilatildeo do vivo o original se modifica Mesmo para as palavras modificadas existe

ainda uma poacutes-maturaccedilatildeorsquo [citaccedilatildeo de W B]rdquo (2002 38)

Valendo-se de noccedilotildees da cristalografia (ldquoCiecircncia da mateacuteria cristalizada das leis

que regem sua formaccedilatildeo de sua estrutura de suas propriedades geomeacutetricas fiacutesicas e

quiacutemicasrdquo) Campos propotildee como se mencionou o conceito de ldquoisomorfismordquo para a

designaccedilatildeo da operaccedilatildeo de traduzir poesia Para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra

liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a

da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo

diferentes enquanto linguagem mas como os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro

de um mesmo sistemardquo Segundo o Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa

ldquoisomorfismordquo pode ser definido como ldquofenocircmeno pelo qual duas ou mais substacircncias

de composiccedilatildeo quiacutemica diferente se apresentam com a mesma estrutura cristalinardquo

(2001 1656) conforme a Larousse satildeo isomorfas ldquoduas substacircncias quiacutemicas que

apresentam a mesma estrutura cristalinardquo sendo que tais substacircncias ldquogeralmente

possuem um grande parentesco de constituiccedilatildeo quiacutemica e tecircm a propriedade de poderem

substituir-se mutuamente na formaccedilatildeo de um mesmo cristal chamado lsquosoluccedilatildeo soacutelidarsquo rdquo

128

(p 3252) Substacircncias portanto diversas mas capazes de substituiccedilatildeo muacutetua por

analogia de estrutura

Em uma nota agrave ldquoNota de Haroldo de Campos agrave traduccedilatildeordquo do poema ldquoBlancordquo

de Octavio Paz o tradutor observa que jaacute procurara antes (no ensaio ldquoDa traduccedilatildeo

como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo escrito em 1962 e publicado originalmente em 1963)

ldquodefinir a traduccedilatildeo criativa (lsquorecriaccedilatildeorsquo lsquotranscriaccedilatildeorsquo) como uma praacutetica isomoacuterfica

(no sentido da cristalografia envolvendo a dialeacutetica do diferente e do mesmo) uma

praacutetica voltada para a iconicidade do signo para as qualidades materiais desterdquo (1986

89) E prossegue afirmando que mais tarde preferiria ldquousar o termo paramorfismo para

descrever a mesma operaccedilatildeo acentuando no vocaacutebulo (do sufixo grego paraacutendash lsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquo) o aspecto diferencial dialoacutegico do processo

[]rdquo132

Referindo-se em sua ldquoNotardquo agrave traduccedilatildeo que realizara do poema de Paz

Haroldo frisa que ldquoos lsquodesviosrsquo semacircnticos ou sintaacuteticos no texto em portuguecircs

responderam a precisas opccedilotildees transformadoras de natureza lsquoparamoacuterficarsquo rdquo (p 89)

Como se pode constatar tais observaccedilotildees enfatizam o aspecto da transformaccedilatildeo

do original realizada pela praacutetica da traduccedilatildeo o tradutor vecirc como tarefa sua natildeo o

resgate de significados originais mas sim a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em outra liacutengua da

ldquoentretrama das figuras fonossemacircnticasrdquo (p 89) ou seja da teia de ldquosignificantesrdquo

cujas relaccedilotildees internas caracterizariam mais o poema do que seus ldquosignificadosrdquo natildeo

priorizados na abordagem tradutoacuteria Busca-se a criaccedilatildeo em outro idioma de obra

esteticamente anaacuteloga agrave original com todas as possibilidades de transformaccedilatildeo de seus

elementos sejam estes vistos como signos em sua integridade ou de maneira

dicotomicamente parcial como seu ldquoconteuacutedordquo ou seja seu valor semacircntico no caso

de ldquoBlancordquo palavras iguais em ambas as liacutenguas (inclusive em seus aspectos

denotativo e conotativo) podem ser e satildeo mudadas tendo-se em vista criteacuterios de ordem

esteacutetica

Tal empresa luciferina eacute caracteriacutestica do tradutor como recriador ou (como o

denomina Haroldo) do ldquotradutor usurpadorrdquo que ldquopassa por seu turno a ameaccedilar o

original com a ruiacutena da origemrdquo sendo esta para ele ldquoa uacuteltima lsquohybrisrsquo do tradutor

luciferino [a palavra grega hybrisdiga-se refere-se a um orgulho desafiador que podia

132 A nota em questatildeo reproduz o paraacutegrafo inicial do jaacute referido artigo ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo

(1983)

129

provocar a necircmesis ou seja a indignaccedilatildeo dos deuses] transformar por um aacutetimo o

original na traduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo Reencenar a origem e a originalidade como

plagiotropia como lsquomovimento infinito da diferenccedilarsquo (Derrida) e a miacutemesis como

produccedilatildeo dessa diferenccedilardquo (1984 7 grifo meu)

A recriaccedilatildeo de um poema natildeo soacute natildeo seria por tais caminhos uma versatildeo fiel do

ldquoconteuacutedordquo do original como tambeacutem natildeo seria fiel nem agrave liacutengua de origem nem agrave

liacutengua de chegada em termos dos limites de uma ou de outra tanto relativamente a seus

ldquosignificadosrdquo como a sua sintaxe Assim ligando-se a uma tradiccedilatildeo do pensamento

romacircntico alematildeo que inclui as ideias de Schleiermacher de Rudolf Pannwitz e do

proacuteprio Benjamin a atividade da traduccedilatildeo poeacutetica poderia envolver a ampliaccedilatildeo dos

limites das liacutenguas como agente transformador de ambas as envolvidas no processo

Para Haroldo de Campos na traduccedilatildeo de poesia ldquocomo que se desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeo aquela fragiacutelima beleza aparentemente intangiacutevel que

nos oferece o produto acabado numa liacutengua estrangeira E que no entanto se revela

suscetiacutevel de uma vivissecccedilatildeo implacaacutevel que lhe revolve as entranhas para trazecirc-la

novamente agrave luz num corpo linguiacutestico diverso Por isso mesmo a traduccedilatildeo eacute criacuteticardquo

(1976 31)

Referindo-se ao procedimento que considera adequado agrave tarefa de traduccedilatildeo

Campos assim sintetiza suas etapas

Pedagogicamente o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor-poeta) seria o

seguinte descobrir (desocultar) [] o coacutedigo de ldquoformas significantesrdquo [pelo qual]

o poema representa a mensagem [] (qual a equaccedilatildeo de equivalecircncia de

comparaccedilatildeo eou contraste de constituintes levada a efeito pelo poeta para

construir o seu sintagma) em seguida reequacionar os constituintes assim

identificados de acordo com criteacuterios de relevacircncia estabelecidos ldquoin casurdquo e

regidos em princiacutepio por um isoformismo icocircnico que produza o mesmo sob a

espeacutecie da diferenccedila na liacutengua do tradutor (paramorfismo com a ideia de

paralelismo como em paraacutefrase em paroacutedia ou em paragrama seria um termo

mais preciso afastando a sugestatildeo de ldquoigualdaderdquo na transformaccedilatildeo contida no

130

prefixo grego ldquoiso-rdquo) Os mecanismos da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo instruiriam essa

ldquooperaccedilatildeo metalinguiacutesticardquo por assim dizer de segundo grau133

Numa visatildeo que considere a iconicidade do signo esteacutetico e portanto a

existecircncia de uma dimensatildeo fiacutesica ou material do signo o poema tambeacutem resulta da

ldquoleiturardquo de seu proacuteprio criador A ldquoleiturardquo do autor ndash concomitante a sua criaccedilatildeo ndash e a

leitura criacutetica satildeo (proponho que se considere este horizonte) poacutelos de uma mesma

realidade indissociaacutevel que assume diferentes configuraccedilotildees conforme as

peculiaridades com que se estabelecem

Vale enfatizar que o conceito de isomorfismo envolvido no processo de traduccedilatildeo

de um poema ndash o ldquoredesenhorsquo dele em outra liacutengua ndash inclui a criaccedilatildeo e a leitura tanto

do original (que se recria ao ser desvendado por vivissecccedilatildeo processo que envolve ndash e

aiacute estaacute o plano do horizonte a que me referi ndash natildeo soacute as descobertas de seus elementos

constituintes mas a criaccedilatildeo destes na medida em que somente se reconhece o que se

pode ver e o que se vecirc inclui a determinaccedilatildeo ndash limite seletividade e mesmo projeccedilatildeo ndash

de quem vecirc) como da traduccedilatildeo que por ser tambeacutem criada pode converter-se em

ldquooriginalrdquo transformando a obra anterior em sua ldquotraduccedilatildeordquo e portanto revelando sua

potencialidade de mutaccedilatildeo e seu aspecto de incompletude uma vez que o movimento a

transformaccedilatildeo funcionaraacute como acreacutescimo uma nova dimensatildeo de existecircncia ndash no

processo ambas as criaccedilotildees se transformam pela ldquoleiturardquo reciacuteproca que se fazem

(Abra-se aqui um parecircntese complementar a fim de se fazer referecircncia ao

conhecido conceito relativo agrave abordagem do texto literaacuterio a partir de uma perspectiva

funcionalista representado pela ideia de contraposiccedilatildeo entre o ldquocristalrdquo e a ldquochamardquo134

Em vez de se entender o ldquocristalrdquo tal como se pode fazecirc-lo a partir das afirmaccedilotildees de

Leacutevi-Strauss relativas agrave ceacutelebre anaacutelise que empreendera de ldquoLes chatsrdquo de Baudelaire

em parceria com Jakobson ndash segundo as quais a obra seria ldquoum objeto que uma vez

criado pelo autor possuiacutea a rigidez por assim dizer do cristalrdquo e a anaacutelise consistia em

explicitar ldquosuas propriedadesrdquo (Bellei 1986 188) ndash de que ele seja um ldquoobjeto isolado

do espectadorrdquo ldquocontrolado em sua essecircncia e portanto em todas as suas

133 CAMPOS H de ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo In OLIVEIRA Ana

Claacuteudia SANTAELLA Lucia (org) Semioacutetica da literatura Satildeo Paulo Educ 1987 pp 53-74

(Cadernos PUC vol 28) 134 Tal oposiccedilatildeo de teor metafoacuterico entre o cristal e a chama encontra-se em fontes tanto literaacuterias como

teoacuterico-criacuteticas Refiro-me aqui no entanto acerca do uso conceitual de tal metaacutefora agrave obra O cristal em

chamas de Seacutergio Bellei (1986)

131

manifestaccedilotildeesrdquo (ib) (inclusive deduz-se em seu plano de conteuacutedo ou seja em seus

ldquosignificadosrdquo) pode-se entendecirc-lo como estrutura de ldquosignificantesrdquo (ligados a

significados instaacuteveis) de relaccedilotildees sonoras ou imageacuteticas que seratildeo desveladas a partir

da leitura e mesmo modificadas por esta produzindo-se o sentido por meio das relaccedilotildees

estabelecidas entre o observador e o imposto pela leitura o resultado eacute a recriaccedilatildeo do

sentido que combina os aspectos estruturais identificados e os ldquosignificadosrdquo como satildeo

compreendidos Tal ideia seria compatiacutevel com aquela haroldiana de ldquocristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo o cristal natildeo eacute fixo e imutaacutevel mas passiacutevel de refluidificaccedilatildeo

(Neste sentido a tiacutetulo de curiosidade mencione-se uma recente experiecircncia cientiacutefica

que teria demonstrado que no interior do cristal em nanoescala materiais magneacuteticos

emitem uma espeacutecie de ldquochama magneacuteticardquo ldquoum processo muito semelhante ao

produzido por uma substacircncia inflamaacutevel pegando fogordquo135

Tal fato nos permitiria uma

nova metaacutefora a da ldquochama no cristalrdquo aludindo-se agrave ideia de que um texto

caracterizado pela informaccedilatildeo esteacutetica comparado a um cristal abrigaria em si mesmo

a chama de sua mutabilidade ou fluididade))

C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo

Poesia vem do substantivo grego poiacuteesis ligado ao verbo poieacuteo que significa

fazer produzir fabricar criar Assim transcriar um poema eacute fazecirc-lo de novo Mas

tambeacutem seraacute fazer de novo o novo renovar o poema de origem seguindo o lema make

it new proposto pelo poeta e tradutor norte-americano Ezra Pound Ao transcriar um

poema segundo a concepccedilatildeo de Haroldo de Campos seraacute preciso pensar em uma vez

conhecida sua ldquoformardquo fazer um novo poema inserido em novo lugar e novo tempo em

vez de se fazer uma ldquoarqueologiardquo de sua funccedilatildeo social cultural ou histoacuterica136

Assim

ao traduzir um haicai (modelo claacutessico japonecircs de poema breve) de Bashocirc em vez de

ser apenas ldquofielrdquo a seu conteuacutedo ou mesmo a certos aspectos ldquosociaisrdquo da praacutetica dessa

poesia na eacutepoca Haroldo procura recriar em portuguecircs um poema dotado de

visualidade (a escrita ideogracircmica eacute visual por natureza) e capaz de re-produzir a

135Referecircncia a uma experiecircncia realizada por Yoko Suzuki da Universidade City College inspirada no

trabalho de Eugene Chudnovsky (Lehman College) que em conjunto com Dmitry Garanin elaborou

uma teoria segundo a qual as chamas magneacuteticas satildeo possiacuteveis 136 A questatildeo se esclarece por meio de conceituaccedilatildeo de Campos baseada em proposiccedilotildees de Wolfgang

Iser o tema seraacute tratado em texto complementar a este toacutepico anunciado e incluiacutedo adiante

132

concisatildeo do original137

valendo-se por exemplo da criaccedilatildeo de uma palavra nova uma

ldquopalavra-valiserdquo agrave maneira de Lewis Carroll ou James Joyce o verbo saltombar

corresponderia ao verbo tobikomu composto de tobu saltar mais komeru entrar

furu ike ya kawasu tobikomu mizu no oto

o velho tanque

ratilde saltacute

tomba

rumor de aacutegua

Pode-se causar um certo ldquoestranhamentordquo no leitor deste novo tempo e espaccedilo

embora o poema a ele se dirija renovadoramente haacute uma tendecircncia na transcriaccedilatildeo de

ldquolevar o leitor (de uma liacutengua) ao autor (de outra)rdquo privilegiando um dos dois caminhos

identificados pelo pensador romacircntico alematildeo Schleiermacher para a traduccedilatildeo (o outro

seria ldquolevar o autor ao leitorrdquo)

Renomeaccedilatildeo ldquoadacircmicardquo

Para citar apenas mais um exemplo ligado agrave atividade recriadora (ou

ldquotranscriadorardquo como prefere o tradutor) de Haroldo de Campos capaz de ilustrar

(ainda que de forma limitada a um vocaacutebulo) o processo em que ldquose desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeordquo tomemos um elemento de sua traduccedilatildeo do Berersquoshit o

Gecircnese No iniacutecio do texto aparece a expressatildeo ldquofogoaacuteguardquo correspondente agrave palavra

hebraica shamaacuteyim normalmente traduzida por ldquoceacuteurdquo Comenta a respeito do motivo

de sua opccedilatildeo o tradutor ldquo[hellip] HM [Henri Meschonic] sugere que na palavra hebraica

pode-se entrever um composto de rsquoesh (lsquofogorsquo) e maacuteyim (lsquoaacuteguarsquo) embora ele proacuteprio

natildeo tire partido desse verdadeiro lsquopictogramarsquo etimoloacutegico Dentro da ideia de uma

traduccedilatildeo lsquolaicarsquo pareceu-me que a imagem coacutesmica de um magma de fogo e aacutegua

previne a projeccedilatildeo neste ponto de um lsquoceacuteursquo abstrato jaacute conceptualizado Tanto a

137 No mesmo complemento a este texto o exemplo da transcriaccedilatildeo do haicai ao portuguecircs eacute retomado

como paradigma explicitador de procedimentos tradutoacuterios de Campos

133

componente iacutegnea como a liacutequida pertencem por outro lado agrave imaginaccedilatildeo biacuteblica de

um cosmo supraterrestrerdquo (1993 27)

Ao usar o composto ldquofogoaacuteguardquo Haroldo fornece metaforicamente um

correspondente ldquoconcretordquo (feito de dois elementos) ao ldquoabstratordquo ldquoceacuteurdquo fundamentado

numa hipoacutetese de constituiccedilatildeo etimoloacutegica que natildeo soacute alarga ndash realizando o proposto

pelos teoacutericos do romantismo alematildeo ndash os limites de nossa liacutengua causando-lhe

estranheza ao incorporar um novo constructo vocabular cuja dimensatildeo de materialidade

aponta para um pictograma mas tambeacutem modifica o original pela leitura de seu

elemento de forma a desvesti-lo de sua conceptualizaccedilatildeo prosaica e normalizadora

chamando a atenccedilatildeo para sua proacutepria composiccedilatildeo e portanto para o aspecto de sua

fisicalidade ldquoiconicizanterdquo destituindo-a assim de sua dimensatildeo meramente simboacutelica

(para referir-me ao conceito de ldquosiacutembolordquo de Charles S Peirce)

De forma anaacuteloga em suas traduccedilotildees da eacutepica grega Haroldo de Campos vale-se

frequentemente de compostos inusitados em nossa liacutengua criados agrave semelhanccedila das

composiccedilotildees vocabulares do grego Para que se observe o procedimento ldquoisordquo ou ldquoparardquo

-moacuterfico de Haroldo em relaccedilatildeo agrave eacutepica grega veja-se a parte inicial do item ldquoardquo do

terceiro capiacutetulo deste trabalho

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos

De difiacutecil consenso interpretativo o ceacutelebre ensaio de Walter Benjamin sobre

traduccedilatildeo mereceu inuacutemeras anaacutelises e interpretaccedilotildees lembrem-se por exemplo o texto

de Paul de Man Sobre A Tarefa do Tradutor de Walter Benjamin138

e o de Jacques

Derrida (Torres de Babel) Haroldo de Campos faz do texto de Benjamin uma leitura

operacionalizadora que extrai dele apesar de suas ambiguidades e contradiccedilotildees e das

diferentes interpretaccedilotildees de sua obra (por vezes atribuiacuteda ao proacuteprio caraacuteter

contraditoacuterio do conceito de origem em ldquoA tarefardquo) liccedilotildees indicadoras de aspectos da

praacutetica da traduccedilatildeo fazendo correlaccedilotildees entre as ideias de Benjamin (qualificadas por

Campos como uma metafiacutesica do traduzir) e as de Roman Jakobson (qualificadas como

uma fiacutesica do traduzir)

138In MAN Paul de A Resistecircncia agrave Teoria Lisboa Ediccedilotildees 70 1979

134

Natildeo caberaacute neste estudo a apresentaccedilatildeo das tatildeo estudadas ideias de Benjamin

(uma vez que natildeo as utilizaremos como referecircncia direta mas apenas como elemento

fundamental das reflexotildees de H de Campos sobre traduccedilatildeo) incluirei apenas um

comentaacuterio de Campos sobre as ideias do autor precedido de algumas anotaccedilotildees suas

datiloscritas e manuscritas sobre ldquoA tarefa do tradutorrdquo trata-se de uma espeacutecie de

ldquofichamentordquo do texto ndash em que se podem identificar conceitos-chaves do filoacutesofo

alematildeo acompanhados de sua denominaccedilatildeo em portuguecircs ndash a servir-lhe de fonte

interpretativa das proposiccedilotildees benjamianas139

Veja-se a seguir portanto uma das

paacuteginas de conjunto de anotaccedilotildees do autor na qual eacute explorada a ideia central em

Benjamin da existecircncia de uma ldquoiacutentima relaccedilatildeo das liacutenguas umas com as outrasrdquo

(ldquoreciprocamente parentesrdquo) uma ldquorelaccedilatildeo ocultardquo que a traduccedilatildeo natildeo alcanccedila

ldquoproduzirrdquo podendo contudo ldquore-presentaacute-lardquo

139 A paacutegina reproduzida integra um conjunto a ser incluiacutedo no mencionado volume Transcriaccedilatildeo a sair

135

Campos assim se refere a sua compreensatildeo das proposiccedilotildees benjaminianas em

seu artigo ldquoA liacutengua pura na teoria de W Benjaminrdquo140

140 O artigo foi publicado em Revista da USP no 33 marccedilo-maio de 1997 pp 161-170

136

Sob a roupagem rabiacutenica midrashista da irocircnica ldquometafiacutesicardquo do traduzir

benjaminiana um poeta-tradutor longamente experimentado em seu ofiacutecio pode

sem dificuldade depreender uma ldquofiacutesicardquo (uma praacutexis) tradutoacuteria efetivamente

materializaacutevel Essa ldquofiacutesicardquo ― como venho sustentando de haacute muito (10) ― eacute

possiacutevel reconhececirc-la in nuce nos concisos teoremas de Roman Jakobson sobre a

ldquoauto-referencialidade da funccedilatildeo poeacuteticardquo e sobre a traduccedilatildeo de poesia como

creative transposition (ldquotransposiccedilatildeo criativardquo) (11) A esses teoremas

fundamentais da poeacutetica linguiacutestica os ldquoteologemasrdquo benjaminianos conferem por

sua vez uma perspectiva de vertigem

Para converter a ldquometafiacutesicardquo benjaminiana e ldquofiacutesicardquo jakobsoniana basta repensar

em termos laicos a ldquoliacutengua purardquo como o ldquolugar semioacuteticordquo ― o espaccedilo operatoacuterio

― da ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (Undichtung ldquotranspoetizaccedilatildeordquo para W Benjamin

ldquotranscriaccedilatildeordquo na terminologia que venho propondo) O ldquomodo de significarrdquo (Art

des Meinens) ou de ldquointencionarrdquo (Art der Intentio) passa a corresponder a um

ldquomodo de formarrdquo o plano siacutegnico e sua ldquolibertaccedilatildeordquo ou ldquo remissatildeordquo (Erloesung

no vocabulaacuterio salviacutefico de Benjamin) seraacute agora entendida como a operaccedilatildeo

metalinguiacutestica que aplicada sobre o original ou texto de partida nele desvela o

percurso da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo Essa funccedilatildeo por sua natureza opera sobre a

ldquomaterialidaderdquo dos signos linguiacutesticos sobre ldquoformas significantesrdquo (fono-

prosoacutedicas e gramaticais) e natildeo primacialmente sobre o ldquoconteuacutedo

comunicacional a ldquomensagem referencialrdquo As ldquoformas significantesrdquo por sua

vez constituem um ldquointracoacutedigo semioacuteticordquo virtual (outro nome para a ldquoliacutengua

purardquo de Benjamin) exportaacutevel de liacutengua a liacutengua ex-traditaacutevel de uma idioma

para outro quando se trata de poesia O tradutor-transcriador como que

ldquodesbabeliza o stratum semioacutetico das liacutenguas interiorizado nos poemas (neles

ldquoexiladordquo ou ldquocativordquo nos termos de Benjamin) promovendo assim a

reconvergecircncia das divergecircncias a harmonizaccedilatildeo do ldquomodo de formarrdquo do poema

de partida com aquele reconfigurado no poema de chegada Essa reconstruccedilatildeo (que

sucede a ldquodesconstruccedilatildeordquo metalinguiacutestica de primeira instacircncia) daacute-se natildeo por

Abbildung (afiguraccedilatildeo imitativa coacutepia) mas por Anbildung (ldquofiguraccedilatildeo juntordquo

ldquoparafiguraccedilatildeo) comportando a transgressatildeo o ldquoestranhamentordquo a irrupccedilatildeo da

diferenccedila do mesmo

137

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura

Em dois artigos seus de grande relevacircncia publicados em perioacutedicos (um deles

mais tarde integrou uma antologia de textos sobre traduccedilatildeo) ldquoTraduccedilatildeo ideologia e

histoacuteriardquo (1993) e ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficionalidaderdquo (1989) depois denominado

ldquoTraduccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo o tradutor como transfingidorrdquo Haroldo de Campos vale-

se de conceitos do teoacuterico alematildeo Wolfgang Iser para trazer nova dimensatildeo de

esclarecimento a respeito de suas concepccedilotildees sobre transcriaccedilatildeo Por meio do texto em

que se fundamenta Campos define os contornos de sua orientaccedilatildeo aos procedimentos

tradutoacuterios seu ponto de partida se daraacute segundo um modo de abordagem do texto

baseado em sua estrutura ou seja em sua dimensatildeo estrutural modo este que

corresponde ao primeiro entre outros dois identificados por Iser A este respeito incluo

os apontamentos que se seguem (originalmente integrantes de artigo criacutetico meu a

respeito de haicai ndash modelo de poesia tradicional japonesa ndash e recriaccedilatildeo141

) que contecircm

uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica dos pontos centrais da teoria de Iser e sua utilizaccedilatildeo por H

de Campos aleacutem de outras observaccedilotildees referentes a fontes e conceitos A escolha do

haicai como objeto em que se assenta a discussatildeo justifica-se por ser um exemplo breve

e claro de modos de abordagem do texto poeacutetico e da traduccedilatildeo colaborando para uma

interpretaccedilatildeo de alguns conceitos fundadores do pensamento de Campos

[]

A questatildeo central no entanto estaacute em se determinar quais aspectos relacionados a

uma poesia nascida em outra eacutepoca e em outra cultura seratildeo considerados

essenciais por quem a toma como objeto de estudo ou como referecircncia para a

criaccedilatildeo

Podemos ateacute em relaccedilatildeo ao posicionamento diante do haikai ndash e agrave maneira de

traduzi-lo ou criaacute-lo ndash distinguir dois modos fundamentais (da forma como os

vejo) ligados aos diferentes pontos de vista identificados que por sua vez

correspondem a diferentes visotildees de literatura e poesia de modo geral assim como

de traduccedilatildeo literaacuteria e poeacutetica Definamos tais modos de forma talvez demasiado

sucinta e redutora tendo-se em conta a complexidade do tema

141ldquoSuacutebitos de luzrdquo posfaacutecio ao livro Lumes antologia de haicais de Pedro Xisto (Satildeo Paulo Berlendis amp

Vertecchia 2008)

138

O primeiro modo seraacute aquele que prioriza a estrutura do poema e portanto os

ldquofatores intratextuaisrdquo142

(isto eacute fatores internos ao texto) Esta oacuteptica pode ser

representada pela conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos que ao considerar o poema

escrito atentaraacute fundamentalmente para as relaccedilotildees entre som sentido e

visualidade no texto (no caso do haikai como se disse a escrita ideogramaacutetica

seraacute para ele uma referecircncia fundamental) Sua abordagem prevecirc tambeacutem uma

apropriaccedilatildeo dos fatores histoacutericos relativos ao texto original com o objetivo de

construir uma ldquotradiccedilatildeo vivardquo Assim em vez de se concentrar na ldquotentativa de

lsquoreconstruccedilatildeo de um mundo passadorsquo e de lsquorecuperaccedilatildeo de uma experiecircncia

histoacutericarsquordquo143

(tentativa esta coerente com o outro ponto de vista que distinguimos)

o ato de traduzir seraacute regido ldquopelas necessidades do presente da criaccedilatildeordquo o novo

texto ldquopor desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo

reinventando-ardquo144

O outro modo privilegia a funccedilatildeo do texto um conceito que permite compreender

a ldquorelaccedilatildeo do texto com seu contextordquo145

e portanto atenta para sua historicidade

para as condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que o texto nasceu Este ponto de vista

poderaacute envolver o conceito de ldquofidelidaderdquo agrave funccedilatildeo levando agrave tentativa de

produzir um poema que corresponda agraves relaccedilotildees que estabelecia com seu contexto

original Assim por exemplo seraacute desejaacutevel que um haikai de Bashocirc concebido

para ser ldquopopularrdquo em sua origem seja traduzido ou recriado em nossa liacutengua de

modo que natildeo exiba um vocabulaacuterio pouco usual ou as marcas de uma elaboraccedilatildeo

mais sofisticada Se o poema era produzido oralmente e soacute depois transcrito seraacute

mais adequado priorizar sua dicccedilatildeo oral e natildeo seus atributos visuais decorrentes

da escrita ideogramaacutetica A partir da ideia de ldquoreconstruccedilatildeo de um mundo

passado tambeacutem se poderaacute fazer na interpretaccedilatildeo de um poema a ser traduzido

ldquoo esforccedilo para sentir ou experimentar de novo a emoccedilatildeo do poetardquo (no dizer de

Suzuki146

) numa atitude que parece buscar aleacutem do resgate do papel social do

haikai conforme proposto pela escola japonesa o da intencionalidade do proacuteprio

poeta De acordo com esses pressupostos portanto um haikai criado em nossa

liacutengua (ou traduzido para ela) deveraacute guardar relaccedilatildeo com a visatildeo de mundo da

142ISER W ldquoProblemas da teoria da literatura atual o imaginaacuterio e os conceitos-chaves da eacutepocardquo In

Costa Lima Luiz Teoria da literatura em suas fontes 2ordf ediccedilatildeo Rio de Janeiro Francisco Alves 1983

P 369 143As frases provecircm do jaacute mencionado ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) O trecho citado inclui por

sua vez citaccedilotildees de Iser (op cit) 144Id p 59 (Os grifos da citaccedilatildeo satildeo do original) 145ISER op cit p 371 146SUZUKI Teiiti ldquoImpressotildees da viagem agrave China Pequim ndash fevereiro de 1980rdquo In Estudos japoneses

III Satildeo Paulo Centro de Estudos Japoneses ndash USP 1983 p 95

139

cultura de origem corresponder ao ldquoespiacuterito do haikairdquo ser simples composto de

vocabulaacuterio popular (acessiacutevel a ldquocrianccedilas e incultosrdquo147

) e natildeo ser

ldquoostensivamente trabalhadordquo deveraacute apresentar as caracteriacutesticas consideradas

essenciais (segundo Shiki148

) agrave natureza do haikai ldquoexpressatildeo direta objetiva por

meio de imagens claras sem abstraccedilotildees ou sentimentalismordquo

Se este ponto de vista centrado no conceito de funccedilatildeo privilegia a origem a

ldquogecircnese do textordquo aquele visto primeiramente ao considerar a estrutura do texto e

sua inserccedilatildeo em outro tempo e lugar ressalta a ldquovalidade do textordquo (ou seja sua

ldquovidardquo apoacutes as condiccedilotildees histoacutericas em que nasceu) que prevecirc ldquoum modelo de

interaccedilatildeo entre texto e leitorrdquo149

Enfatizar portanto a estrutura do texto e sua

interaccedilatildeo com o leitor permitiraacute um desapego da ideia de reconstruir um mundo

passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato da leitura e da

recriaccedilatildeo) indo ao encontro do conceito ldquomake it newrdquo (tornar novo renovar) do

poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972)

Neste caso um texto ao ser traduzido sofreraacute a interferecircncia do contexto em que eacute

lido sua estrutura seraacute reconfigurada e a partir disso sua funccedilatildeo seraacute novamente

determinada De modo semelhante um poema criado a partir de um modelo

proveniente de outra eacutepoca outro lugar e outra cultura procuraraacute reinventar esse

modelo tal como o autor o vecirc no novo contexto150

Concentrando-se na linguagem e nas ldquonecessidades do presente da criaccedilatildeordquo seraacute

possiacutevel a um criador ou tradutor optar por outros paracircmetros formais que

considere adequados (com base em seus proacuteprios conceitos esteacuteticos) agrave produccedilatildeo

do poema em seu novo contexto No caso de Haroldo de Campos sua opccedilatildeo seraacute

em suas traduccedilotildees a de privilegiar a ldquocontinuidade visualrdquo do haikai adotando

para isso uma ldquodisposiccedilatildeo mais espacial que rompe o esquema usual do

tercetordquo151

tambeacutem natildeo usaraacute o padratildeo meacutetrico original preferindo adotar ldquoum

verso livre extremamente breve como moacutedulo de composiccedilatildeordquo descartaraacute ainda o

uso de rimas []

147FRANCHETTI op cit pp 46-47 148As caracteriacutesticas apontadas por Shiki satildeo mencionadas em Franchetti op cit p 28 149CAMPOS H ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficcionalidaderdquo In 34 letras nuacutemero 3 Rio de Janeiro 1989 P 90

Campos cita Iser para quem ldquoo modelo da interaccedilatildeo entre texto e leitor eacute fundamental para o conceito de

comunicaccedilatildeordquo (op cit p 365) (Ver nota seguinte) 150A abordagem de Campos que considera fundamentalmente a estrutura do texto (pois eacute nela que para

ele ldquoatua por excelecircncialdquo a recriaccedilatildeo ndash ou ldquotranscriaccedilatildeordquo como prefere denominar) aponta tambeacutem para

o terceiro daqueles que para Wolfgang Iser satildeo os ldquoconceitos-chaverdquo que ldquoconstituem os conceitos de

orientaccedilatildeo central na anaacutelise da literaturardquo ldquoestrutura funccedilatildeo e comunicaccedilatildeordquo 151CAMPOS H ldquoHaicai homenagem agrave siacutenteserdquo Op cit p 60 Veja-sea traduccedilatildeo que Campos realizou

de um poema de Buson e de outro de Bashocirc (o famoso ldquoum velho tanque []rdquo)

140

C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada

No livro Menis ndash a ira de Aquiles em que apresenta sua traduccedilatildeo do Canto I

da Iliacuteada Haroldo de Campos faz comentaacuterios sobre seus propoacutesitos tradutoacuterios

ausentes da ediccedilatildeo do poema completo (que conta com introduccedilatildeo no volume I de

Trajano Vieira) Esses comentaacuterios satildeo bastante esclarecedores sobre seus pontos de

vista acerca de traduccedilatildeo da eacutepica grega que complementam as informaccedilotildees jaacute

discutidas neste estudo Assim eacute importante que se incluam aqui trechos de sua

apresentaccedilatildeo ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo citados a seguir Apoacutes dizer de sua opccedilatildeo pelo

dodecassiacutelabo (em trecho jaacute antes citado) Campos afirma ldquo[] Busquei por um lado

preservar a melopeia homeacuterica (que Ezra Pound considerava inexcediacutevel) e por outro

estabelecer uma correspondecircncia verso a verso com o original (ou seja obter em

portuguecircs o mesmo nuacutemero de versos do texto grego)rdquo (1994 14) E prossegue

anunciando o que considerava entatildeo sua tarefa total

Estou empenhado em recriar em nossa liacutengua quanto possiacutevel a forma de

expressatildeo (no plano focircnico e riacutetmico-prosoacutedico) e a forma do conteuacutedo (a

logopeia o desenho sintaacutetico a poesia da gramaacutetica) do Canto I da Iliacuteada

Longe de mim a intenccedilatildeo excessiva para meus propoacutesitos de uma traduccedilatildeo

integral do poema Desejo tatildeo-somente constituir um modelo intensivo um

paradigma atual e atuante de transcriaccedilatildeo homeacuterica

Como sabemos Campos foi aleacutem do inicialmente pretendido traduzindo toda a

Iliacuteada e teria conforme se sabe de sua intenccedilatildeo posterior traduzido toda a Odisseia se

isso lhe tivesse sido possiacutevel (desse poema deixou-nos apenas fragmentos dos quais

tomaremos alguns para anaacutelise) Seu trabalho como revela dialoga com o de Mendes

Por um lado retomo o legado ateacute certo ponto arcaizado de Odorico com cujas

soluccedilotildees meu texto frequentemente dialoga por outro com o escopo de dar uma

nova vitalidade ao verso traduzido mobilizo todos os recursos do arsenal da

moderna poeacutetica nesse sentido (desde logo haacute a considerar em mateacuteria de

retomada eacutepica o exemplo de dicccedilatildeo dos Cantos de Ezra Pound []) Estou

persuadido pelo caminho ateacute aqui percorrido de que do transcriador da rapsoacutedia

homeacuterica se requer no plano da fatura poeacutetica uma atenccedilatildeo microloacutegica agrave

elaboraccedilatildeo poeacutetica de cada verso (paronomaacutesias aliteraccedilotildees ecos onomatopeias)

141

aliada a uma precisa teacutecnica de cortes remessas e encadeamentos fraacutesicos (o

tradutor no caso deveraacute comportar-se corno um coreoacutegrafo ou diagramador

sintaacutetico)

Aparece em seguida como proposta tradutoacuteria a ideia de ldquovivificaccedilatildeordquo do verso

traduzido que como se sabe associa-se ao conceito make it new de Pound e agrave

abordagem do texto de modo a considerar sua validade sua inserccedilatildeo em outro contexto

(acircmbito da comunicaccedilatildeo na conceituaccedilatildeo de Iser)

Recuperaccedilotildees etimoloacutegicas (por exemplo a que levei a efeito no verso 47

traduzindo nyktigrave eoikoacutes por iacutecone da noite em lugar de semelhante agrave noite

Odorico agrave noite semelha C A Nunes) podem estrategicamente aplicadas

vivificar o verso em portuguecircs Assim tambeacutem no caso dos epiacutetetos (liccedilatildeo

premonitoacuteria de Odorico que natildeo se deve descartar neste ponto mas aperfeiccediloar

criteriosamente) este efeito vitalizador pode ser obtido atraveacutes da cunhagem de

compostos isomorfos em relaccedilatildeo a essas virtuais ldquometaacuteforas fixasrdquo que brasonam

os heroacuteis gregos e seus deuses

O tradutor lanccedilaraacute matildeo muitas vezes da criaccedilatildeo de compostos embora de modo

diverso do de Odorico por fazer-se com frequecircncia pela simples justaposiccedilatildeo ldquopeacutes-

velozesrdquo (para Odorico ldquovelociacutepederdquo) ldquodoma-corceacuteisrdquo ldquobom-pugilistardquo etc Valoriza-

se como era de se esperar o trocadilho

Por vezes toda uma precisa carga retoacuterica pode estar encapsulada num simples

trocadilho que mobiliza som e sentido e que portanto ao inveacutes de rasura

desatenta demanda reconfiguraccedilatildeo no texto traduzido veja-se o v 231

demoboacuteros basileuacutes epeigrave outidanorsin anaacutesseis

Odorico traduz

Cobardes reges vorador do povo

recuperando o demoboacuteros com a foacutermula paronomaacutestica vorador do povo

C A Nunes menos feliz mais discursivo escreve

142

Devorador do teu povo Natildeo fosse imprestaacutevel Atrida toda esta gente

O tradutor fornece em seguida a sua versatildeo moldada pela ldquolei da

compensaccedilatildeordquo

[] procurei reconstituir sonora e semanticamente com o maacuteximo de economia o

jogo de palavras que nas traduccedilotildees consultadas [incluindo-se a de Robert

Fitzgerald e a de Robert Fagles] passou em branco

Devora-Povo Rei dos Dacircnaos Rei de nada

Observe-se que no texto portuguecircs o trocadilho expandiu-se em paronomaacutesia (dos

DAcircNAos de NADA) enquanto em grego outiDANoicircsin repercute sonoramente

no verbo ANAacutesseis (anaacutessein reinar sobre regendo um dativo no caso) Lei da

compensaccedilatildeo regra de ouro da traduccedilatildeo criativa

Como se vecirc Haroldo de Campos eacute um desses casos um tanto raros de poeta e

tradutor que se ocupou de conceituar e descrever procedimentos e expedientes seus

gerando uma ampla sustentaccedilatildeo para a leitura das traduccedilotildees que empreendeu Sobre a

compensaccedilatildeo diga-se que ocorrem com frequecircncia em suas traduccedilotildees o que seria

denominado por Joseacute Paulo Paes de ldquosobrecompensaccedilatildeordquo ndash uma soluccedilatildeo que

acrescenta recursos de linguagem poeacutetica norteado pela conceituaccedilatildeo de funccedilatildeo poeacutetica

da linguagem e de ldquoiconizaccedilatildeordquo do signo verbal Campos tende agrave concentraccedilatildeo de

efeitos que pode ultrapassar o que se depreende do original

Na convergecircncia de teoria e praacutetica revela-se uma amplitude de conduta que

permite a diversidade de resultados ditados pela identidade uacutenica de cada

empreendimento recriador natildeo haacute preceitos estritos a serem seguidos como ldquoreceitardquo

mas uma recomendaccedilatildeo fundamentada de hyacutebris criadora de ousadia na transposiccedilatildeo

criativa

A hyacutebris do tradutor ndash preceito indispensaacutevel desse ponto de vista para a

traduccedilatildeo desvinculada da tradiccedilatildeo de subserviecircncia ao original ndash jaacute encontra expressatildeo

na proacutepria apresentaccedilatildeo da Iliacuteada os volumes trazem como autor Haroldo de Campos

143

reservando-se ao tiacutetulo a forma Iliacuteada de Homero Trata-se da assunccedilatildeo pelo tradutor

do status de autor de criador de obra autocircnoma embora paramoacuterfica152

152 Esse modo de apresentaccedilatildeo decorrente de um conceito sobre a proacutepria tarefa do tradutor encontra ndash

mencione-se ndash antecedecircncia no paiacutes em livros de poesia traduzidos por Guilherme de Almeida Poetas

de Franccedila (1936) Paralelamente a Paul Verlaine (1944) (cujo tiacutetulo permite entrever o conceito de

ldquocanto paralelordquo) e Flores das ldquoFlores do malrdquo de Charles Baudelaire (1944) todos tendo como autor o

poeta paulista

144

Capiacutetulo III

A Vozes para Homero

A simple instance is the preservation of an object not only through the

meanings of the words which deal with it but also through their sound

as when Pope in his translation of a passage of the Iliad describing chariots rackering down a hillside

tries to put Homeracutes description into English words that shall not only correspond in meaning to the

meaning of Homeracutes words but shall also repeat in a different metrical structure and in the sound-system

of English the market onomatopoeia of the original

First march the heavy Mules securely slow

Orsquoer Hills orsquoer Dales orsquoer Crags orsquoer Rocks they go (XXIII 138-9)

Winifred Nowottny153

Este capiacutetulo teraacute por objetivo a anaacutelise de diferentes versotildees em portuguecircs de

fragmentos do Canto I e do Canto IX da Iliacuteada de Homero Do Canto I seratildeo extraiacutedos

apenas dois versos (33-34) considerando-se inicialmente trecircs traduccedilotildees (a de Odorico

Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de Campos) agraves quais se agrega depois uma

quarta (de Andreacute Malta154

) do Canto IX seratildeo tomados os versos 177 a 198

considerando-se as versotildees dos quatro tradutores referidos

Para tanto o ponto de partida seraacute a abordagem de caracteriacutesticas gerais da

poesia eacutepica grega observando-se depois aspectos dos mencionados fragmentos seratildeo

apresentados como referenciais teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica alguns conceitos

centrais relativos ao tema e os pontos de vista dos tradutores escolhidos considerando-

se seus fundamentos e propoacutesitos as soluccedilotildees encontradas nas diferentes traduccedilotildees

seratildeo estudadas essencialmente agrave luz de suas proacuteprias diretrizes e o cotejamento destas

serviraacute a alguma anaacutelise comparativa dos diversos resultados

153 NOWOTTNY Winifred The language poets use London The Athlone Press 1972 p 3 154 Andreacute Malta Campos eacute professor de liacutengua e literatura grega na FFLCH da USP estudioso e tradutor

da obra homeacuterica

145

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade

A poesia homeacuterica eacute entendida hoje como resultante de um processo oral de

composiccedilatildeo ligado agrave tradiccedilatildeo de uma cultura marcada pela oralidade Segundo

Havelock155

[] presume-se que o tipo de composiccedilatildeo oral no qual os gregos se comprazeram

e pode-se dizer que aperfeiccediloaram deve ter sido uma histoacuteria milenar recuando ao

fundo da experiecircncia de todas as sociedades preacute-letradas mas civilizadas e suas

regras fundamentais deitam raiacutezes nessa histoacuteria O estranho poder dos claacutessicos

gregos arcaicos deve-se em primeiro lugar natildeo agrave inspiraccedilatildeo mas ao que eles tecircm

de comum com a teacutecnica e com o propoacutesito desse modo preacute-histoacuterico de

composiccedilatildeordquo (1996 14)

Desde a famosa tese de Milman Parry e seus trabalhos posteriores156

ndash que

procuram estudar o estilo da obra homeacuterica identificando de modo ldquopraacuteticordquo os

elementos que o caracterizam ndash a ldquofoacutermulardquo eacute definitivamente vista como um

componente fundamental do meacutetodo oral de composiccedilatildeo podendo-se conceituaacute-la como

uma expressatildeo usada de forma regular sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas a fim de

expressar uma ideia essencial Como demonstra Parry seguindo a esteira de Duumlntzer

(1872) as foacutermulas apresentam um aspecto funcional no caso dos epiacutetetos sempre que

no poema se vincular um atributo a determinado heroacutei em determinada extensatildeo do

hexacircmetro dactiacutelico (padratildeo meacutetrico da eacutepica grega)157

seraacute usada a mesma expressatildeo

formular Como seu emprego eacute funcionalmente ligado agraves necessidades e agraves

peculiaridades da composiccedilatildeo oral a foacutermula integraraacute o aspecto ornamental do poema

sem que precise ter significado especiacutefico em certa passagem assim seratildeo relevantes

antes suas caracteriacutesticas esteacuteticas do que semacircnticas

155 HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Campinas Papirus 1996 156 Referecircncia ao texto ldquoLacuteacuteEpithegravete traditionelle dans Homerrdquo publicado originalmente em 1928 e os

demais estudos do autor recolhidos (numa versatildeo em liacutengua inglesa) por Adam Parry no volume The

making of homeric verse ndash collected papers of Milman Parry Oxford 1971 157 O hexacircmetro dactiacutelico (verso formado por cinco peacutes daacutectilos e um cataleacuteptico ou seja falto de uma siacutelaba) eacute o padratildeo utilizado na eacutepica grega pode ser representado basicamente com a silaba breve

simbolizada pela braacutequia (U) e a siacutelaba longa pelo maacutecron (ndash) da seguinte forma ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU

ndash UU ndashU Mencione-se que duas siacutelabas breves podem ser substituiacutedas por uma longa em todos os peacutes

com exceccedilatildeo do quinto (a substituiccedilatildeo neste peacute ocorre muito raramente este fato eacute relevante para a

proposta que faremos em capiacutetulo posterior de possiacutevel padratildeo meacutetrico para a traduccedilatildeo da eacutepica) a

uacuteltima siacutelaba do verso breve tambeacutem pode ser uma longa integrando assim um daacutectilo

146

Ainda que como sustenta Havelock o essencial para Homero fosse ldquosem

sombra de duacutevidardquo a narrativa (A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia 1996 79) e

(conforme esse autor empenhou-se em demonstrar) sua poesia tivesse tambeacutem um

niacutetido papel ldquoenciclopeacutedicordquo ndash fazendo parte dela elementos didaacuteticos e informativos ao

cidadatildeo que incluiacuteam padrotildees de comportamento ndash tecircm sido objeto constante de

estudos apoacutes as descobertas de Parry ldquoo modo como aquela poesia foi feitardquo passando

ldquoa interessar menosrdquo ldquoo que aquela poesia nos contardquo (Oliveira 2006 xi) Ainda que se

possa criticar este ponto de vista ndash por implicar a menor consideraccedilatildeo do ldquoconteuacutedordquo

narrativo dos poemas ndash eacute evidente que as observaccedilotildees e constataccedilotildees de ordem formal

(que diga-se podem ir aleacutem da identificaccedilatildeo dos ldquomecanismos de oralidaderdquo) lanccedilam

luz sobre a natureza dessa poeacutetica bem como explicitam uma forma de utilizaccedilatildeo de

elementos esteacuteticos que por sua vez poderaacute servir de referecircncia a possiacuteveis

comparaccedilotildees com paracircmetros proacuteprios da ldquocultura letradardquo e particularmente da

cultura ocidental moderna (com seus conceitos acerca de poesia)

Segundo Peabody citado por Havelock o estilo oral especiacutefico de composiccedilatildeo eacute

ldquodetectaacutevel atraveacutes de criteacuterios que definem cinco tipos de lsquoredundacircnciarsquo ou

lsquoregularidadersquo na linguagem Vecircm a ser eles padrotildees fonecircmicos como rima ou

assonacircncia padrotildees formulares constatados em lsquofeixes morfecircmicosrsquo recorrentes

padrotildees perioacutedicos ou sintaacuteticos padrotildees temaacuteticos [] e lsquoindicador de cantorsquordquo (1996

150) Peabody examina a estrutura do hexacircmetro (como se refere Havelock) em termos

de coacutelon (ldquocombinaccedilatildeo de peacutes [] formando uma unidaderdquo158

) e de foacutermula Sobre esta

diz Havelock159

As foacutermulas (tornadas familiares [] pela obra de Milman Parry) satildeo examinadas

do ponto de vista da configuraccedilatildeo desses membros meacutetricos como constituiacutedas por

cola [plural de coacutelon] simples ou agregados de cola Os mais longos usualmente

formam hemistiacutequios [] Esses vaacuterios componentes do verso permite ao cantador

entoaacute-los apoiado no fato de que expressotildees e ritmos da fala ordinaacuteria [] se

refletem na sua composiccedilatildeo (1996 152)

158 MOISEacuteS Massaud Dicionaacuterio de termos literaacuterios Satildeo Paulo Cultrix 1978 159 HAVELOCK Eric A A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturais Satildeo Paulo

Unesp Rio de Janeiro Paz e Terra 1996

147

Para Havelock Peabody ldquose ateacutem com firmeza agraves realidades fonecircmicas

subjacentes ao processo de composiccedilatildeo genuinamente oralrdquo

Ele ouve o cantador que compotildee cola articulados em foacutermulas articula foacutermulas

em aglomerados temaacuteticos encerrando-os em hexacircmetros a aos hexacircmetros em

estacircncias a seguir o comando das formas foneacuteticas das palavras por uma espeacutecie

de automatismo psicoloacutegico (p 161)

Havelock observa que ldquoeacute nisso e natildeo na formaccedilatildeo ou busca de lsquoideiasrsquo como

enfatiza corretamente Peabody [para este a histoacuteria contada na epopeia eacute um traccedilo

secundaacuterio] que reside o segredo da composiccedilatildeo oralrdquo (p 161)

(Sendo assim a importacircncia da ldquoforma foneacutetica das palavrasrdquo e do esquema

riacutetmico-meacutetrico seraacute considerada neste estudo posteriormente em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees

escolhidas para discussatildeo)

Referindo-se agrave pesquisa de Parry e de Albert Lord com os cantadores

iugoslavos160

Havelock afirma que

A teoria da oralidade aplicada a Homero com analogias derivadas da poesia oral

balcacircnica estimulou o haacutebito de considerar a praacutetica oral e a letrada como

mutuamente exclusivas A escrita presume-se toma de assalto o espiacuterito da

composiccedilatildeo oral e corrompe-o de maneira que a originalidade dele daacute lugar agrave

repeticcedilatildeo mecacircnica (p 17)

Discordando desta visatildeo o autor considera que ldquoa Iliacuteada e a Odisseia satildeo

construccedilotildees complexas as quais refletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o

escrito parceria que se mostrou fecundardquo (ib) E esclarece que ldquoo espiacuterito integral da

literatura e da filosofiardquo por ele considerados mostra-se como uma ldquotensatildeo dinacircmicardquo

entre o oral e o letrado sendo tal ldquoo processo que nele a linguagem tratada de forma

acuacutestica segundo princiacutepios de ressonacircncia (eco) entra em competiccedilatildeo com a

linguagem tratada segundo princiacutepios arquitetocircnicosrdquo (procedimento que teria se

firmado depois de Platatildeo) (ib)

160 PARRY ldquoGreek and southslavic heroic songrdquo in op cit e Lord The Singer of TalesCambridge

Harvard University Press 1960

148

(Estas consideraccedilotildees tambeacutem poderatildeo servir de referecircncia agrave anaacutelise que se

pretende desenvolver aqui das diferentes versotildees de fragmentos da Iliacuteada eacute este

tambeacutem o caso das citaccedilotildees seguintes)

Acerca da modernidade e da maneira como esta concebe a poesia e referindo-se

agrave questatildeo da narrativa o mesmo autor afirma que

[] eacute caracteriacutestico de toda a tendecircncia da criacutetica moderna que o componente do

relato seja ignorado e o componente do artifiacutecio seja exagerado Nossa concepccedilatildeo

de poesia natildeo tem lugar para o ato oral de relatar e portanto natildeo leva em conta as

complexidades da tarefa de Homero A criaccedilatildeo artiacutestica no sentido que damos ao

termo eacute algo muito mais simples do que a declamaccedilatildeo eacutepica e implica o

afastamento do artista com relaccedilatildeo agrave accedilatildeo poliacutetica e social (Prefaacutecio 1996 108)

(Havelock refere-se no final do trecho diga-se ao papel social das informaccedilotildees

ldquoenciclopeacutedicasrdquo que a poesia eacutepica encerra) Em que pese a possibilidade de

divergecircncia acerca das colocaccedilotildees quanto ao niacutevel de complexidade da criaccedilatildeo oral e da

natildeo-oral eacute interessante registrar-se a diferenccedila entre ambos os modos em termos de

concepccedilatildeo e procedimento vinculada agrave sua proacutepria funccedilatildeo na comunidade em que se

insere

Em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre as culturas oral e letrada afirma Havelock que

numa obra escrita busca-se um miacutenimo de repeticcedilatildeo enquanto ldquoo registro oral requer

exatamente o processo opostordquo sendo que

os inteacuterpretes letrados que natildeo treinaram sua imaginaccedilatildeo para entender a psicologia

da conservaccedilatildeo oral iratildeo [] dividir recortar e amputar as repeticcedilotildees e variantes de

um texto de Homero ou de Hesiacuteodo para conformar o texto a procedimentos

letrados nos quais as exigecircncias da memoacuteria viva natildeo mais satildeo importantes (pp

109-110)

Como diz ainda Havelock ldquono campo circunscrito pela repeticcedilatildeo poderia haver

variaccedilatildeordquo161

e ldquoo tiacutepico pode ser reafirmado dentro de um acircmbito bastante extenso de

161 Eacute oportuno mencionar que por meio das gravaccedilotildees realizadas por Lord com cantores iugoslavos

constatou-se que estes variavam seu canto ainda que dissessem mantecirc-lo sempre igual

149

foacutermulas verbaisrdquo para ele o ldquohaacutebito de lsquovariaccedilatildeo do mesmorsquo eacute fundamental agrave poesia

de Homerordquo (p 110) Tal haacutebito integra o procedimento do poeta descrito nesta

passagem

A teacutecnica oral de composiccedilatildeo em verso pode ser vista como a que se constroacutei

mediante os seguintes recursos haacute um padratildeo puramente riacutetmico que permite que

versos sucessivos de poesia de extensatildeo temporal padronizada sejam compostos de

partes meacutetricas intercambiaacuteveis em segundo um enorme suprimento de

combinaccedilotildees de vocaacutebulos ou foacutermulas de extensatildeo e sintaxe variaacuteveis compostas

ritmicamente para que se ajustem a partes do verso meacutetrico mas que por sua vez

sejam tambeacutem compostas de partes meacutetricas intercambiaacuteveis dispostas de modo a

que tanto pela combinaccedilatildeo de diferentes foacutermulas quanto pela combinaccedilatildeo de

partes de diferentes foacutermulas o poeta possa alterar sua sintaxe sem alterar seu

ritmo Seu talento artiacutestico como um todo consiste desse modo numa distribuiccedilatildeo

infinita de variaacuteveis nas quais todavia a variaccedilatildeo eacute mantida dentro de limites

estritos e as possibilidades verbais embora extensas satildeo em uacuteltima anaacutelise

finitas (ib)

Considere-se ainda que para Havelock a teacutecnica formular teria nascido como

um artifiacutecio de memorizaccedilatildeo e de registro natildeo devendo ser considerada como um

simples auxiacutelio agrave improvisaccedilatildeo poeacutetica elemento este secundaacuterio ldquoassim como a

invenccedilatildeo pessoal do menestrel eacute secundaacuteria para a cultura e costumes populares que ele

relata e conservardquo (p 111) Natildeo eacute pertinente de seu ponto de vista a comparaccedilatildeo com

cantores de comunidades como as da Iugoslaacutevia e da Ruacutessia nas quais a teacutecnica oral

natildeo eacute mais essencial agrave cultura e o cantor ldquotorna-se primordialmente um homem de

espetaacuteculos e similarmente suas foacutermulas estatildeo destinadas agrave improvisaccedilatildeo faacutecil e natildeo agrave

conservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo magisterialrdquo (p 112) Desse ponto de vista o mesmo se

poderia dizer em relaccedilatildeo aos cantadores nordestinos do Brasil que se valem de padrotildees

riacutetmicos e de ldquofoacutermulasrdquo memorizadas em seus improvisos e ldquodesafiosrdquo executados em

apresentaccedilotildees populares

As colocaccedilotildees referidas apontam para diferenccedilas fundamentais existentes entre a

poesia oral tradicional e a poesia tal como a entendemos hoje com propoacutesitos esteacuteticos

No entanto eacute preciso ter em conta que ainda que a funccedilatildeo do aedo e de sua poesia

150

fossem prioritariamente ldquomagisterial e enciclopeacutedicardquo seu modo de concepccedilatildeo

composiccedilatildeo e execuccedilatildeo envolviam padrotildees esteacuteticos nitidamente definidos o que a

aproxima essencialmente por esta via da poesia conforme nossa cultura letrada a

entende O ritmo ndash um componente de ordem esteacutetica ndash eacute apontado da antiguidade agrave

contemporaneidade como um elemento essencial e caracteriacutestico da poesia

prevalecente na composiccedilatildeo poeacutetica desde suas origens ateacute o presente o que pelo

ldquoplano da expressatildeordquo assemelha toda e qualquer poesia independentemente da situaccedilatildeo

histoacuterico-cultural e dos conceitos compartilhados pelos indiviacuteduos inseridos no mesmo

contexto quanto ao que seja poesia e qual seja sua funccedilatildeo na comunidade Sobre o

ritmo lembremos a visatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica162

Por serem naturais em noacutes a tendecircncia para a imitaccedilatildeo a melodia e o ritmo ndash que

os metros satildeo parte dos ritmos eacute fato evidente ndash primitivamente os mais bem

dotados para eles progredindo a pouco e pouco fizeram nascer de suas

improvisaccedilotildees a poesia (1990 22)

Contemporaneamente Segismundo Spina163

afirma

O homem por natureza natildeo eacute somente um animal poliacutetico como diz Aristoacuteteles

[] eacute tambeacutem e sobretudo um animal riacutetmico [] Dentre todos os caracteres

geneacuteticos das artes foneacuteticas e da coreografia estaacute em primeira linha o ritmo []

O conto a narraccedilatildeo miacutetica primitiva foi foi-se desvencilhando gradativamente do

elemento riacutetmico tatildeo dominante na literatura primitiva Mas permaneceu na poesia

ateacute os nossos tempos A Poesia deve agrave Muacutesica em seu periacuteodo ancilar as suas leis

constitutivas (2002 127)

Considerando-se novamente uma concepccedilatildeo provinda da linguiacutestica estrutural a

de ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo tal como definida por Roman Jakobson poderemos

estender o que se observou em relaccedilatildeo ao ritmo para todos os aspectos natildeo-verbais que

integrem a estrutura linguiacutestica do poema (Revejam-se ndash agora relacionadas agrave poesia

oral ndash as proposiccedilotildees de Jakobson jaacute abordadas neste trabalho)

162 ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 2002

163 SPINA S Na madrugada das formas poeacuteticas Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2002

151

Jakobson procura descrever o que lhe parece caracterizar a poesia

independentemente de circunscriccedilotildees temporais situacionais ou culturais e note-se o

que ele aponta parece adequar-se tatildeo bem agrave poesia oral da antiguidade quanto agrave poesia

como a concebemos e praticamos hoje Isto exatamente porque ele reconhece elementos

constitutivos que independem da funccedilatildeo da arte na comunidade e da intencionalidade

de seu ldquoconteuacutedordquo Enfatiza ele sim a ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo o que se manteacutem

mesmo no caso das foacutermulas cuja funccedilatildeo no metro muitas vezes parece atribuir-lhes ndash

como demonstrou Parry ndash apenas funccedilatildeo formal associada ao esvaziamento de

significado na concepccedilatildeo jakobsoniana a tensatildeo entre som e sentido eacute o que promove o

alcance do poema como um todo significante (pleno de significado pois as duas ldquofacesrdquo

do signo satildeo indissociaacuteveis) Sobre isto diz Maacuterio Laranjeira ldquo[] as palavras os sons

as formas e a sua organizaccedilatildeo enquanto tais assumem a dianteira na expressatildeo poeacutetica

trocando o seu estatuto subalterno de veiacuteculo do sentido mero suporte ndash liacutengua natildeo-

poeacutetica ndash pelo de princiacutepio ativo gerador de sentidos nunca suspeitados porque

desvinculados do mundo exterior como referente diretordquo (2003 52)

As repeticcedilotildees e as correspondecircncias de posiccedilotildees (caso das foacutermulas) das

palavras acentos pausas etc como afirma Jakobson satildeo avaliadas em termos de

equivalecircncia participando portanto da criaccedilatildeo de sentido a projeccedilatildeo paradigmaacutetica

pode-se dizer amplia o sentido denotativo gerando a ambiguidade que muitos

consideram tambeacutem proacutepria da poesia Para Michael Riffaterre citado por Laranjeira

ldquoa poesia exprime os conceitos de maneira obliacutequa Em suma um poema diz-nos uma

coisa e significa outrardquo (2003 48)

Tendo-se em conta que como se disse os sons e o modo como as formas se

organizam geram sentidos ldquodesvinculados do mundo exterior como referente diretordquo

pode-se pensar nas foacutermulas homeacutericas (dada sua funcionalidade sonora e formal) como

produtoras de sentido apontado ao acircmbito interno do poema (ou seja da linguagem)164

desvinculado do referente o que as torna ldquodescompromissadasrdquo com a ldquoverdaderdquo

(considerada em relaccedilatildeo ao referente) (Esta abordagem diga-se redimensiona a

questatildeo da funccedilatildeo apenas de ldquoembelezamentordquo165

que uma visatildeo simplificadora atribui

164 ldquoNa funccedilatildeo poeacutetica [da linguagem] a mensagem se volta sobre si mesma para o seu aspecto sensiacutevel

para a sua configuraccedilatildeordquo (Campos 1975 41) 165 Referecircncia a uma das maneiras pelas quais os alexandrinos explicavam o uso das

adjetivaccedilotildees formulares Note-se que tambeacutem Parry (e antes dele Duumlntzer) ao atribuir aos epiacutetetos um

esvaziamento de sentido consideram o significado apenas em termos do referente de certa forma

desvinculando a funcionalidade sonora e riacutetmica da geraccedilatildeo de sentido

152

agraves foacutermulas para explicar o fato de que seu sentido muitas vezes parece natildeo se ajustar

ao contexto especiacutefico em que eacute empregado)

Uma vez abordadas certas caracteriacutesticas baacutesicas da composiccedilatildeo oral e uma vez

observado que estas embora possam ser peculiares mantecircm um canal amplo de contato

com o que se concebe genericamente como poesia eacute possiacutevel antever que a eacutepica

permitiraacute tambeacutem uma ampla faixa de leituras e interpretaccedilotildees possiacuteveis em

conformidade com ideias particulares que se possam ter sobre poesia e sobre poesia

grega arcaica bem como sobre a forma adequada de traduzi-la a diversidade existente

entre as diferentes versotildees seraacute teoricamente justificaacutevel e neste sentido os resultados

poderatildeo ser considerados em princiacutepio (ainda que isto seja discutiacutevel) igualmente

ldquovaacutelidosrdquo166

Entre tais leituras portanto a consideraccedilatildeo dos procedimentos proacuteprios de

composiccedilatildeo oral como fundamento do meacutetodo de traduccedilatildeo da poesia arcaica seraacute no

plano teoacuterico apenas uma das opccedilotildees possiacuteveis Mas deixemos para mais adiante a

questatildeo da diversidade e dos fundamentos que norteiam cada uma das versotildees aqui

focalizadas

A2 Iliacuteada fragmentos

Sinopse do poema

Antes de apresentarmos os fragmentos escolhidos para discussatildeo inserindo-os

no contexto do canto e tecendo um breve comentaacuterio sobre seus elementos e

caracteriacutesticas eacute conveniente incluir-se uma sinopse do argumento da Iliacuteada (composta

de XXIV cantos) A accedilatildeo se passa em torno de 1200 aC na planiacutecie de Troacuteia na Aacutesia

Menor transcorre entre o final do nono e o iniacutecio do deacutecimo ano da Guerra de Troacuteia

Agamecircmnon liacuteder do exeacutercito grego toma a escrava de Aquiles Briseida desonrando-

o o heroacutei entatildeo afasta-se dos combates Apoacutes uma seacuteria derrota (no Canto VIII)

Agamecircmnon admite seu erro e envia mensageiros a Aquiles oferecendo-lhe por

166 Acerca da diversidade de caracteriacutesticas das diferentes traduccedilotildees lembre-se o jaacute discutido conceito desconstrucionista hoje indispensaacutevel relativamente agrave atividade tradutoacuteria de que cada tradutor chega a

resultados proacuteprios a partir de suas convicccedilotildees de ordem esteacutetica e de seu ponto de vista sobre o que seja

a tarefa do tradutor (embora isto no meu modo de ver natildeo impeccedila discussotildees comparativas no plano

esteacutetico de realizaccedilatildeo ainda que relativizadas) Revejam-se os comentaacuterios de Rosemary Arrojo e sob

outra perspectiva os de Joatildeo Angelo Oliva Neto

153

intermeacutedio deles muitos bens como reparaccedilatildeo por seu ato a fim de convencer o heroacutei a

retornar ao campo de batalha Aquiles natildeo atende ao pedido mas cede mais tarde agrave

suacuteplica de seu mais proacuteximo e querido amigo Paacutetroclo que desejava lutar no lugar de

Aquiles com as armas do heroacutei para livrar o acampamento grego da proximidade

ameaccediladora dos troianos Paacutetroclo eacute morto em combate pelo filho do rei Priacuteamo Heitor

que se apodera das armas de Aquiles Este tomado pela ideia de vingar a morte de

Paacutetroclo retorna agrave luta (com novas armas feitas pelo deus Hefesto a pedido da matildee do

heroacutei Teacutetis) matando Heitor e ultrajando seu cadaacutever Por intervenccedilatildeo dos deuses

Aquiles concede a Priacuteamo mediante pagamento de resgate que este leve o cadaacutever de

seu filho de volta a Troacuteia para seus funerais

Em linhas muito gerais eacute este o assunto da Iliacuteada

Canto I

Embora nos proponhamos a analisar neste toacutepico apenas dois versos do Canto

I faccedilamos antes um resumo de seu argumento

Crises sacerdote de Apolo suplica a Agamecircmnon que lhe devolva a filha

Criseida mas este o afronta e se nega a devolvecirc-la Apolo em resposta agrave invocaccedilatildeo de

Crises envia como castigo uma peste que se apodera do exeacutercito grego matando muitos

dos seus integrantes O adivinho Calcas revela em assembleia convocada por Aquiles

que a devoluccedilatildeo de Criseida eacute o uacutenico remeacutedio para o mal Agamecircmnon a devolve mas

toma Briseida cativa de Aquiles Aquiles revoltado abandona a luta a conselho de sua

matildee Teacutetis que lhe promete vinganccedila Teacutetis pede a Zeus vantagem aos troianos e o deus

promete atender a seu pedido ateacute Aquiles obter reparaccedilatildeo Hera esposa de Zeus

ameaccedila-o Hefesto filho de Teacutetis e Zeus restabelece a harmonia entre os deuses

Os dois versos escolhidos do iniacutecio do canto referem-se ao momento em o

sacerdote Crises manifesta temor apoacutes a fala ultrajante de Agamecircmnon e se vai pela

praia antes de orar a Apolo

Iliacuteada I vv 33-34

154

(Hos ephatacute edeisen dacuteho geacuteron kai epeiacuteteto myacutethoi

be dacuteakeacuteon paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses)

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

Taciturno o anciatildeo treme e obedece

Busca as do mar fluctissonantes praias

(2003 27)167

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes

Isso disse ele medroso o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilas

e taciturno se foi pela praia do mar ressoante

(Sd 48)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Findou a fala e o anciatildeo retrocedeu medroso

mudo ao longo do mar de poliacutessonas praias

(2002 33)

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem

Passemos entatildeo a uma anaacutelise um tanto detida das diferentes traduccedilotildees de tal

fragmento que embora restringindo-se a dois versos pode nos dar subsiacutedios para

consideraccedilotildees que por sua vez tambeacutem se aplicaratildeo agrave anaacutelise do fragmento do Canto

IX a ser estudado posteriormente Teratildeo lugar nesta anaacutelise inicial e nas posteriores

referecircncias teoacutericas acerca de cada um dos tradutores de modo a se construir

paulatinamente um conjunto significativo de informaccedilotildees acerca das diretrizes e dos

procedimentos que lhes satildeo proacuteprios

167Obs a numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego

155

Observe-se relativamente agraves diversas traduccedilotildees que a proacutepria imposiccedilatildeo de

regularidade meacutetrica ndash um dos elementos que integram o conjunto de caracteriacutesticas de

teor esteacutetico do poema original considerado por todos os tradutores independentemente

de sua oacuteptica diferenciada a respeito do traduzir ndash seraacute evidentemente um fator

determinante para que nenhum dos textos em portuguecircs se oriente de modo imperativo

pela ldquoliteralidaderdquo168

(jaacute dificultada no caso em princiacutepio pela grande distacircncia

existente no plano morfossintaacutetico entre as liacutenguas envolvidas) Cada um desses

tradutores agrave sua maneira procura recriar os versos em conformidade com o padratildeo

formal adotado cuja regularidade busca corresponder agrave uniformidade meacutetrica do

original isto jaacute representa uma opccedilatildeo comum por natildeo priorizar radicalmente uma

suposta ldquofidelidade de sentidordquo centrada na ideia de uma ldquoliteralidade semacircnticardquo

embora esta ideia se revele em niacuteveis diversos de intencionalidade entre esses

tradutores

No caso de Carlos Alberto Nunes a escolha por versos de dezesseis siacutelabas

tenderia a favorecer de certa forma devido agrave sua extensatildeo se natildeo a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo

possibilidades de correspondecircncia maior de sentido que poderia ser buscada por meio

de soluccedilotildees como a ldquotransposiccedilatildeordquo169

e a ldquomodulaccedilatildeordquo170

Observe-se ainda em relaccedilatildeo

a esse tradutor que a extensatildeo do verso natildeo se origina de um criteacuterio voltado ao aspecto

semacircntico mas sim obedece a uma transferecircncia matemaacutetica do hexacircmetro dactiacutelico

para o sistema silaacutebico-tocircnico de nossa liacutengua resultando portanto em seis segmentos

sendo cinco formados por uma siacutelaba tocircnica seguida de duas aacutetonas (correspondendo agraves

siacutelabas longas e breves do peacute grego) e um uacuteltimo por uma tocircnica seguida de uma aacutetona

(agrave semelhanccedila do uacuteltimo peacute do hexacircmetro) Podemos representar da seguinte maneira o

modelo meacutetrico adotado por Nunes utilizando-se os siacutembolos relativos a siacutelabas longas

e breves para representar as tocircnicas e aacutetonas

168 Entende-se aqui o termo ldquoliteralidaderdquo como relativo agrave ldquotraduccedilatildeo palavra-por-palavrardquo 169 A transposiccedilatildeo conforme a entende Francis Aubert acontece ldquo[] sempre que ocorrerem rearranjos

morfossintaacuteticosrdquo que podem envolver o desdobramento de uma palavra em duas ou a condensaccedilatildeo de

duas palavras numa soacute alteraccedilotildees na ordem das palavras (inversotildees e deslocamentos) A transposiccedilatildeo eacute

um dos desdobramentos da literalidade que segundo esse autor ldquomanifesta-se como um conjunto de

soluccedilotildees tradutoacuterias [] em que a passagem do texto original para o traduzido faz-se [] de forma direta valendo-se de soluccedilotildees configuradoras de uma certa sinoniacutemia interlinguiacutestica e interculturalrdquo AUBERT

Francis Henrik ldquoEm busca das refraccedilotildees na literatura brasileira traduzida ndash revendo a ferramenta de

anaacuteliserdquo In Literatura e sociedade no 9 Satildeo Paulo USP 2006 170 ldquoRegistra-se como modulaccedilatildeo a soluccedilatildeo tradutoacuteria que resulta em uma alteraccedilatildeo perceptiacutevel na

estrutura semacircntica de superfiacutecie embora retenha fundamentalmente o mesmo efeito geral de sentido

denotativo no contexto em questatildeordquo (AUBERT 2006)

156

ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashU

Sobre o hexacircmetro dactiacutelico e sobre sua opccedilatildeo meacutetrica ao traduzir a eacutepica

homeacuterica diz o proacuteprio Carlos A Nunes ldquo[] [a] medida exclusiva da epopeia grega o

hexacircmetro [] iria impor-se depois na literatura latina e em parte nas modernas

como o verso mais adequado para esse gecircnero de poesia (1962 38)rdquo Conforme o autor

explicita (revejam-se as citaccedilotildees do autor incluiacutedas na paacutegina 112 deste estudo) para ele

a caracteriacutestica riacutetmico-meacutetrica da eacutepica grega lhe eacute essencial e como tal deve ser

tomada como referecircncia para a traduccedilatildeo dos poemas gregos No entanto note-se que a

transposiccedilatildeo do hexacircmetro operada por Nunes pode corresponder ao metro grego em

medida mas natildeo poderaacute equivaler a este plenamente devido agrave proacutepria diferenccedila

fundamental entre as siacutelabas longas e breves por um lado e tocircnicas e aacutetonas por outro

A ldquomonotoniardquo a que o tradutor se refere como proacutepria do hexacircmetro aplica-se antes ao

verso correspondente em nossa liacutengua uma vez que as possibilidades de combinaccedilatildeo

entre as siacutelabas longas e breves satildeo muacuteltiplas no verso grego (devido agrave usual

substituiccedilatildeo de duas breves por uma longa) o que incluiacutea a diversidade no padratildeo fixo

aleacutem disso a proacutepria melopeia caracteriacutestica do verso grego (decorrente das elevaccedilotildees e

descensos determinados pela acentuaccedilatildeo) estabelecia uma dinacircmica que natildeo encontra

equivalecircncia no verso em portuguecircs

Observe-se a escansatildeo dos versos tomados para referecircncia marcando-se a

divisatildeo das siacutelabas com barra ( ) e as siacutelabas tocircnicas com sublinhas ( _ )

Is so dis se e le me dro so o an ci atildeo se cur vou agraves a mea ccedilas

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

e ta ci tur no se foi pe la prai a do mar res so nan te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

Diz Nunes que ldquouma traduccedilatildeo deve apresentar-se como criaccedilatildeo nova quando

natildeo for apreciada como obra original eacute porque falhou na finalidade de nacionalizar o

157

modelordquo (s d 143) Tal afirmaccedilatildeo aproxima sua oacuteptica em relaccedilatildeo ao traduzir daquela

que concebe a traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo (a ser apresentada quando abordar-se aqui a

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos) e ao mesmo tempo define-a como uma visatildeo que

encara o trabalho tradutoacuterio como associado agrave ideia de ldquonacionalizaccedilatildeordquo o que

suponho equivaleria a dizer que se busca inserir uma obra estrangeira na cultura local

de modo a fazer com que pareccedila escrita na liacutengua de chegada (neste aspecto como

veremos distingue-se da visatildeo de H de Campos acerca de recriaccedilatildeo poeacutetica) Eacute nesse

sentido pode-se entender que Nunes fala de ldquoobra originalrdquo embora este conceito

tambeacutem possa estender-se a uma ideia que desobriga o texto traduzido de ldquofidelidaderdquo

semacircntica absoluta em relaccedilatildeo ao original e isto se confirma pela prioridade que ele

estabelece ao padratildeo meacutetrico que como se disse impotildee inevitaacuteveis distanciamentos da

ldquoliteralidaderdquo

O verso longo de Nunes se por um lado facilita o arranjo semacircntico para dar

conta de todos os elementos envolvidos pela narrativa por outro tende a aproximaacute-lo da

prosa No entanto natildeo impede a ocorrecircncia de momentos de densidade sonora que

aleacutem do mais podem contrapor-se agrave monotonia que se costuma atribuir a suas

traduccedilotildees eacute o caso do verso ldquoe taciturno se foi pela praia do mar ressoanterdquo cujas

aliteraccedilotildees em p e em t atribuem-lhe uma concentraccedilatildeo sonora desejaacutevel ao verso

(considerando-se a do original) ainda que ldquomar ressoanterdquo enfraqueccedila a sonoridade da

expressatildeo formular

Na traduccedilatildeo do preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes o emprego

de versos decassiacutelabos (considerado desde o classicismo ndash eacute o modelo usado por

Camotildees em Os lusiacuteadas uma espeacutecie de ldquoreescriturardquo da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem

composta em hexacircmetros dactiacutelicos ndash um correspondente do verso heroacuteico capaz da

mesma dicccedilatildeo elevada) obriga a uma busca de siacutentese (e eacute como veremos tambeacutem

adotado por esta procura) que em princiacutepio pode levar a ldquoomissotildeesrdquo171

e que

ocasionou uma significativa diminuiccedilatildeo do nuacutemero de versos dos poemas eacutepicos por ele

traduzidos (no caso da Iliacuteada o nuacutemero de versos do original 804 desceu para 652) eacute

por isso a traduccedilatildeo que tende agrave menor ldquoliteralidaderdquo (correspondecircncia ldquopalavra-a-

palavrardquo ndash embora como se poderaacute ver nos fragmentos analisados costume manter toda

171 ldquoOcorre omissatildeo sempre que um dado segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo

podem ser recuperados no texto metardquo (AUBERT 2006)

158

a ldquoinformaccedilatildeo essencialrdquo ndash e sendo marcada por uma niacutetida procura de recriaccedilatildeo

esteacutetica conforme os padrotildees vigentes em sua eacutepoca isto natildeo impediu ndash como observa

de um ponto de vista criacutetico Haroldo de Campos ndash que obtivesse soluccedilotildees poeticamente

referenciais (como eacute o caso da sequecircncia ldquofluctissonantes praiasrdquo presente nos versos

aqui abordados) e no conjunto conserve hoje o atrativo de um texto com qualidade

esteacutetica inegaacutevel sobrevivente na modernidade

Mostra-se a seguir a escansatildeo dos versos de Odorico apresentados um heroacuteico

(com tocircnica principal na sexta siacutelaba) e outro saacutefico (com tocircnicas principais da quarta e

oitava siacutelabas) que ilustram a variabilidade do decassiacutelabo por ele utilizado ao modo

camoniano

O primeiro deles permite trecircs formas de escansatildeo conforme se opte ou natildeo

pelas diferentes elisotildees172

possiacuteveis

(Primeira possibilidade)

Ta ci tur no o an ci atildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Segunda possibilidade com sineacuterese ndash passagem de hiato a ditongo ndash em

ldquociatildeordquo natildeo se elidindo o e e o o de ldquoobedecerdquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Terceira possibilidade natildeo se elidindo o o e o an (de ldquoanciatildeordquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

O outro verso pode ser assim escandido

172 Elisatildeo ldquomodificaccedilatildeo foneacutetica decorrente do desaparecimento da vogal final aacutetona diante da inicial

vocaacutelica da palavra seguinterdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001

159

Bus ca as do mar fluc tis so nan tes prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Sobre Odorico diz tambeacutem Campos

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares173

[]

Odorico [] soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente

onde os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese [] seja para demonstrar que o portuguecircs era capaz de tanta ou

mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para acomodar em decassiacutelabos

heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para evitar as repeticcedilotildees e a

monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar com as terminaccedilotildees

diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas palavras ofereceria

na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado (1976 27)

O proacuteprio Odorico Mendes (citado por Campos) diz que ldquoSe vertecircssemos

servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a

pior das infidelidadesrdquo (ib) Como se pode notar o que outro tradutor poderia

considerar como caracteriacutestica essencial da obra homeacuterica a ser preservada numa

traduccedilatildeo eacute vista por Odorico ndash e por Haroldo de Campos que mostra compartilhar da

mesma visatildeo quanto a este aspecto ndash como indesejada devido agrave natureza diversa das

liacutenguas envolvidas de novo o aspecto da diversidade incorporada ao padratildeo repetitivo

natildeo encontra correspondente em nossa liacutengua e esta constataccedilatildeo orienta Odorico (e

tambeacutem ainda que com diferenciaccedilatildeo Campos) no sentido de recriar a eacutepica de modo a

173 Campos refere-se agrave criacutetica negativa em relaccedilatildeo a Odorico que prevaleceu desde Silvio Romero Este

diz em sua Histoacuteria da literatura brasileira ldquoQuanto agraves traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo

poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante

impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidadesrdquo (1949 35) O criacutetico qualifica de ldquoaacutesperas prosaicas

obscurasrdquo as traduccedilotildees do maranhense e chama de ldquopuerilrdquo sua ideia de ldquoprovar ser a liacutengua portuguesa

tatildeo concisa quanto o latim e o gregordquo aponta ainda outros defeitos da iniciativa do tradutor ldquoinventou

termosrdquo ldquolatinizou e grecificou termos o diabordquo ldquonum portuguecircs macarrocircnico abafou evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo Deve-se ressaltar que diversos dos defeitos apontados por Romero seriam

mais tarde considerados como suas principais virtudes por H de Campos coerentemente a pressupostos

seus como a concepccedilatildeo na natureza sinteacutetica da poesia provinda de Ezra Pound ou a ideia de ampliar os

limites da liacutengua de chegada por meio de criaccedilotildees lexicais realizadas a partir de elementos da liacutengua do

original Apoacutes a ldquorecuperaccedilatildeordquo criacutetica de Odorico a que se empenhou H de Campos sua obra tradutoacuteria

tem sido objeto de muitos estudos e referecircncias inclusive no acircmbito acadecircmico

160

natildeo envolver o que seria uma monotonia inexistente no original (para ele uma

ldquoinfidelidaderdquo) Neste sentido sua visatildeo ndash e a de Campos ndash opotildeem-se agravequela de Carlos

A Nunes quanto ao simples transporte de um padratildeo no caso o meacutetrico

Quanto agrave traduccedilatildeo de H de Campos os versos dodecassiacutelabos se natildeo permitem

um ldquoespaccedilo de manobrardquo tatildeo amplo como o possibilitado pela medida adotada por

Nunes (para o exerciacutecio de soluccedilotildees dadas pela transposiccedilatildeo e pela modulaccedilatildeo)

tampouco determinam uma restriccedilatildeo tatildeo grande quanto aquela imposta pelos

decassiacutelabos (mencione-se contudo que Campos lanccedilaraacute matildeo muitas vezes ndash agrave

semelhanccedila de O Mendes ndash de um procedimento sinteacutetico de criaccedilatildeo de neologismos

formando palavras correspondentes a compoacutesitos gregos) Espera-se portanto um

menor nuacutemero de omissotildees em seus versos que embora privilegiem o aspecto esteacutetico

ndash decorrentes que satildeo de uma concepccedilatildeo transcriadora ndash tambeacutem procuraratildeo

corresponder agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo caracteriacutesticas da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem na concepccedilatildeo jakobsoniana a qual natildeo seraacute perdida de vista pelo tradutor

ainda que este natildeo busque a ldquoliteralidaderdquo da equivalecircncia

Ficam assim os versos de Campos escandidos

Fin dou a fa la e o an ciatildeo re tro ce deu me dro so

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

mu do ao lon go do mar de po liacutes so nas prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Em seus versos (no caso ambos alexandrinos pela cesura na sexta siacutelaba)

Campos adota procedimentos regulares de elisatildeo e sineacuterese (caso de anciatildeo) que

permitem (principalmente a uacuteltima) um certo ganho quantitativo relativo ao nuacutemero de

siacutelabas (ou seja com a providecircncia das sinalefas174

amplia-se um pouco o espaccedilo dos

versos) Seraacute possiacutevel conferir os procedimentos em exemplos futuros

Acerca da visatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica considere-se a

apresentaccedilatildeo de seu pensamento no segundo capiacutetulo deste trabalho

174 Sinalefa ldquofenocircmeno de transformaccedilatildeo de duas siacutelabas em uma por elisatildeo crase ou sineacutereserdquo

(Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001)

161

Voltemos a considerar as caracteriacutesticas das traduccedilotildees apresentadas a partir de

uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo (ldquopalavra-por-palavrardquo) dos citados versos gregos que pode ser a

seguinte

Quanto ao primeiro verso observamos que o primeiro segmento hos

eacutephatrsquo(assim ndash ou dessa maneira ndash dizia) um elemento formular muitas vezes repetido

ao longo dos poemas homeacutericos ndash natildeo encontra correspondecircncia literal em nenhuma das

trecircs traduccedilotildees consideradas pode-se apontar a versatildeo de Nunes (ldquoIsso disse elerdquo) como

a menos distante da literalidade por se referir ao que foi expresso antes (ldquoissordquo) e

conservar o verbo ldquodizerrdquo provavelmente a substituiccedilatildeo de ldquoassimrdquo (adveacuterbio) por

ldquoissordquo (pronome) tenha decorrido da necessidade de se iniciar o verso sempre com uma

siacutelaba tocircnica e de fato essa eacute a forma empregada pelo tradutor como correspondente a

tal foacutermula No caso de Odorico o segmento eacute omitido e no de Campos transforma-se

em ldquofindou a falardquo soluccedilatildeo que sugere a intenccedilatildeo antes de se criar um efeito aliterante

do que corresponder agrave foacutermula sob um ponto de vista da literalidade de sentido ndash e que eacute

coerente com a perspectiva da recriaccedilatildeo que visa as relaccedilotildees esteacuteticas internas aos

versos na liacutengua de chegada podendo corresponder isomorficamente agrave densidade de

relaccedilotildees do original sem no entanto a obrigatoriedade do cumprimento de regras fixas

advindas deste (como as foacutermulas em seu aspecto fixo e repetitivo) uma vez que o

ldquocorpo isomoacuterficordquo tambeacutem se estruturaraacute a partir de caracteriacutesticas que lhe satildeo

intriacutensecas Em relaccedilatildeo ao restante do verso embora tambeacutem natildeo se encontre

correspondecircncia literal em nenhuma das traduccedilotildees novamente eacute a de Nunes (ldquomedroso

o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilasrdquo) que conserva mais correspondecircncias de posiccedilotildees

relativas de seus elementos ldquoanciatildeordquo que no original aparece logo apoacutes o verbo ali

aparece apoacutes o adjetivo relativo a esse verbo ldquoagraves ameaccedilasrdquo aparece correspondendo a

(myacutethoi) (palavra discurso ordem) que estando no caso dativo envolve a

atribuiccedilatildeo representada em portuguecircs por ldquoagraverdquo e ldquose curvourdquo corresponde a

(epeyacutetheto) (imperfeito do indicativo voz meacutedia do verbo peitoacute persuadir

162

significando que o anciatildeo deixou-se persuadir pela ordem ou seja cedeu a ela usamos

ldquocedeurdquo na traduccedilatildeo referida como ldquoliteralrdquo o que pode ser considerado sinocircnimo)

Odorico inclui nesse verso um elemento que se encontra no verso seguinte

(recorrendo portanto a uma transposiccedilatildeo de palavra de um verso a outro) ldquotaciturnordquo

(relativo a (akeacuteon) calado mudo) e substitui metonimicamente o verbo

ldquotemeurdquo por ldquotremerdquo fazendo corresponder ldquoobedecerdquo ao sentido relativo a

(peitoacute) e omitindo seu complemento a ordem () (myacutethoi) H de Campos

utiliza como verbo do segmento ldquoretrocedeurdquo sugerindo com ele ao mesmo tempo a

desistecircncia o voltar atraacutes do anciatildeo (que alude portanto a seu cedimento) e o andar de

volta pela praia adota tambeacutem em lugar do verbo ldquotemerrdquo a mesma palavra

ldquomedrosordquo (usada por Nunes) encadeando-a com outro adjetivo que inicia o verso

seguinte ldquomudordquo o que permite natildeo soacute a associaccedilatildeo imediata de qualificativos

(concentrando e reforccedilando a imagem do estado do anciatildeo) como traccedilar uma sequecircncia

aliterante que envolveraacute tambeacutem a palavra ldquomarrdquo mais agrave frente

Sobre o segundo verso pode-se observar que a traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

tambeacutem eacute a que mais se aproxima da literalidade apenas recorrendo agrave mudanccedila de

ordem (transposiccedilatildeo) ldquofoi-serdquo corresponde a aoristo do verbo (andar

caminhar ir-se) ldquotaciturnordquo refere-se a ldquordquo (mudo calado taciturno) ldquopela praia

do mar ressoanterdquo pode-se considerar que corresponde integralmente a

(paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses) tendo-

se optado por uma palavra corrente na liacutengua (ressoante) em lugar de um possiacutevel

neologismo correspondente a invertendo-se a ordem do adjetivo e do

substantivo A traduccedilatildeo de Odorico Mendes emprega ldquobuscardquo para referir-se a (o

que permite dizer que se manteacutem no campo semacircntico de correspondecircncias) e altera a

sintaxe do segmento seguinte atribuindo o adjetivo ldquofluctissonanterdquo (de inegaacutevel

qualidade esteacutetica tendo-se em conta o composto grego) agraves praias e natildeo ao mar como

ocorre no grego (no original e ambos no genitivo estatildeo

associados) a sequecircncia ldquoas do mar fluctissonantes praiasrdquo em vez da mais esperada

em portuguecircs (as praias fluctissonantes do mar) provavelmente se tenha definido pela

questatildeo do metro bem como por outras razotildees de ordem riacutetmico-esteacutetica Haroldo de

Campos recorre agrave mesma alteraccedilatildeo sintaacutetica realizada por Odorico atribuindo o adjetivo

(ldquopoliacutessonasrdquo) a ldquopraiasrdquo e natildeo a ldquomarrdquo o que sugere mais uma vez o seu desapego (e

tambeacutem de Odorico) em relaccedilatildeo agrave literalidade eacute evidente neste caso como jaacute se

163

apontou antes a opccedilatildeo pela escolha de palavras e sequecircncias que atendam ao propoacutesito

central de (re)criaccedilatildeo de um verso que ofereccedila paramorficamente uma densidade

sonora compatiacutevel com a melopeia grega (isso natildeo impede obviamente que natildeo ocorra

por vezes o uso de elementos de correspondecircncia direta como eacute o caso de ldquoao longo derdquo

em relaccedilatildeo a que ao mesmo tempo se conforma perfeitamente ao encadeamento

de sons nasais ocasionando o efeito particularmente bem-sucedido de sua associaccedilatildeo

com ldquopoliacutessonasrdquo (on ndash on) Devido aos objetivos do tradutor e agrave sua competecircncia

poeacutetica obteacutem-se um verso plenamente realizado em termos esteacuteticos que permitiraacute a

visatildeo de sua superioridade (relativa agraves demais versotildees apresentadas) quando a avaliaccedilatildeo

for pelo criteacuterio (ou pela percepccedilatildeo) da ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo e da proacutepria

construccedilatildeo sonora que encerra

Em relaccedilatildeo agrave natureza oral da composiccedilatildeo homeacuterica a traduccedilatildeo que mais se

afina com seus elementos formulares eacute a de Nunes pois como se viu a soluccedilatildeo por ele

empregada inclui neste fragmento a repeticcedilatildeo da foacutermula na mesma posiccedilatildeo eacute o caso

de ldquoIsso disse elerdquo no iniacutecio dos versos O tradutor contudo variaraacute a posiccedilatildeo de

foacutermulas ndash caso de como se veraacute no fragmento do Canto

IX ndash visando a adequaccedilatildeo aos paracircmetros de seu proacuteprio verso Os demais tradutores

conforme esperado natildeo consideram a necessidade de manter repeticcedilotildees formulares

proacuteprias da eacutepica (independentemente de sua visatildeo acerca da natureza ndash oral ou escrita ndash

da composiccedilatildeo) voltados que satildeo antes (como jaacute se disse) agraves qualidades intriacutensecas de

seus proacuteprios versos

Tratando-se da assunccedilatildeo de paracircmetros da proacutepria eacutepica e da consideraccedilatildeo de

sua oralidade eacute interessante acrescentar-se ao conjunto de traduccedilotildees ateacute agora estudadas

a publicada mais recentemente por Andreacute Malta (que se dedicou a traduzir os cantos I

IX XVI e XXIV da Iliacuteada)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

Assim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceu

Partiu mudo pela praia do murmurejante mar

(2006 310)

164

Note-se primeiramente nesta traduccedilatildeo o padratildeo meacutetrico adotado segundo o

tradutor o metro proposto

corresponde no Brasil junto com o decassiacutelabo de Odorico Mendes o hexacircmetro

de Carlos Alberto Nunes o verso livre de Jaa Torrano e o dodecassiacutelabo de

Haroldo de Campos a mais uma tentativa de encontrar em nossa liacutengua um

equivalente para o hexacircmetro grego tatildeo estranho agraves nossas medidas de poesia

escrita Trata-se de uma linha elaacutestica e maleaacutevel de 14 a 17 siacutelabas em cuja base

estatildeo duas redondilhas maiores metrificadas com matildeo leve muitas vezes

imprecisa sem a cesura de praxe A validade do recurso a esse metro baacutesico de

sete siacutelabas ndash sem tradiccedilatildeo heroacuteica entre noacutes ndash reside no fato de ser largamente

verificado na poesia popular e oral e dessa forma se aparentar de algum modo agrave

eacutepica grega ndash aleacutem de servir ao nosso propoacutesito de buscar o simples e andar nos

arredores da prosa (2006 6)

O ponto de vista do tradutor considera como se pode ver as diversas propostas

tradutoacuterias como diferentes tentativas de equivalecircncia ao hexacircmetro grego por ser esta

sua oacuteptica relaciona traduccedilotildees como as de Odorico e de Campos a uma

intencionalidade estranha ao propoacutesito que lhes eacute inerente (como vimos estes tradutores

natildeo propotildeem propriamente equivalecircncia meacutetrica mas sim a recriaccedilatildeo no metro que

sob seu proacuteprio ponto de vista permite a realizaccedilatildeo esteacutetica mais satisfatoacuteria do poema

eacutepico dentro dos paracircmetros da poesia em sua proacutepria liacutengua ao mesmo tempo que

anaacuteloga ao original sob um certo ponto de vista esteacutetico) (Eacute a perspectiva desta

relatividade ndash jaacute referida neste estudo ndash que se mostra indispensaacutevel quando se aborda a

produccedilatildeo de um tradutor jaacute que coexistem diferentes visotildees acerca do que deve ser

considerado e priorizado em traduccedilatildeo poeacutetica e no caso na traduccedilatildeo da poesia eacutepica

arcaica em particular)

A realizaccedilatildeo de Malta utiliza como base um metro popular em nossa liacutengua a

redondilha maior por ser este caracteriacutestico das produccedilotildees orais em portuguecircs

revelando assim que considera essencial para a traduccedilatildeo da obra homeacuterica a

equivalecircncia agrave sua natureza oral adota portanto como princiacutepio ndash agrave semelhanccedila de

Carlos Alberto Nunes ndash um valor de referecircncia externo agrave proacutepria necessidade do verso

eacutepico em liacutengua portuguesa se pensada intrinsecamente agrave sua elaboraccedilatildeo Usa no

entanto por necessidade ligada agrave dimensatildeo semacircntica do longo verso grego um duplo

165

da redondilha aproximando-se em extensatildeo do verso nunesiano mas eacute soacute neste

aspecto que se pode assemelhar seu trabalho ao de Nunes uma vez que a maleabilidade

do verso (referida pelo tradutor) ocasionada pela variaccedilatildeo meacutetrica decorrente da

existecircncia ou natildeo de elisatildeo entre um verso e outro traz um dinamismo que praticamente

inexiste na recriaccedilatildeo de Nunes (restringe-se nesta apenas agrave alternacircncia das cesuras)

Note-se ainda que coerentemente agrave busca de equivalecircncia aos padrotildees da

epopeia grega a traduccedilatildeo de Malta eacute a uacutenica a trazer ldquoliteralmenterdquo a foacutermula ldquoAssim

disserdquo que eacute sempre repetida ndash assim como outras expressotildees formulares ndash da mesma

forma nos versos em que aparece

Sobre os versos pode-se constatar devido agrave sua coloquialidade a coerecircncia

entre o resultado e o propoacutesito do ldquosimplesrdquo e de ldquoandar nos arredores da prosardquo

ldquoAssim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceurdquo a natildeo ser pela inversatildeo do iniacutecio

aproxima-se de uma frase prosaica e mesmo oral pela repeticcedilatildeo sequencial dos verbos

e conjunccedilotildees o outro verso embora tambeacutem encerre uma inversatildeo mais marcante que

a anterior (as inversotildees parecem coexistir com o aspecto prosaico em funccedilatildeo de

imposiccedilatildeo meacutetrica) natildeo chega a perder o tom coloquial ditado por seu iniacutecio

apresentando uma sequecircncia aliterante que pode indicar a preocupaccedilatildeo do tradutor

tambeacutem com este aspecto ldquopartiu ndash praiardquo e ldquomudo ndash murmurejante ndash marrdquo tal

encadeamento ainda que se possa questionar sua adequaccedilatildeo no plano da relaccedilatildeo entre

som e sentido ao teor do verso (pela cadeia mu ndash mu ndash mu) constroacutei uma frase dotada

de densidade sonora

Canto IX

Siacutentese do argumento

Os gregos obrigados no Canto VIII a recuar a suas fortificaccedilotildees pelos troianos

estatildeo com o acircnimo dilacerado Setecentos homens posicionam-se entre a muralha e o

fosso para proteger o exeacutercito Nestor propotildee que se tente amainar a ira de Aquiles

com o objetivo de trazecirc-lo de volta agrave luta Agamecircmnon concorda dispondo-se a

devolver Briseida ao heroacutei aleacutem de lhe dar muitas e valiosas daacutedivas como reparaccedilatildeo

Nestor designa Fecircnix Aacutejax e Odisseu para irem ateacute Aquiles e realizarem a suacuteplica Os

visitantes encontram Aquiles e Paacutetroclo com a lira nas matildeos Aquiles canta Bem

166

recebidos pelo heroacutei Odisseu Fecircnix e Aacutejax discursam sempre seguidos de resposta de

Aquiles que natildeo aceita a retrataccedilatildeo recusando-se a lutar contra Heitor Odisseu e Aacutejax

retornam agrave tenda de Agamecircmnon e comunicam que Aquiles natildeo soacute natildeo lutaraacute como

ameaccedila voltar a Ftia sua terra natal Diomedes diz que natildeo deveriam ter suplicado a

Aquiles pois isto o tornou ainda mais insolente e incita os chefes agrave luta no dia seguinte

Veja-se a seguir o fragmento escolhido no original e nas quatro traduccedilotildees

(inclui-se agora entre elas a de Andreacute Malta)

IX 162-198

167

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

(A numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego)

130 Inda o Gereacutenio Soberano egreacutegio

Dons natildeo despiciendos lhe destinas

Legados sus ao pavilhatildeo de Aquiles

Aqui mesmo os nomeio e natildeo recusem

135 Feacutenix guie de Juacutepiter privado

O magno Ajax o sapiente Ulisses

E arautos Hoacutedio e Euribates com eles

Aacuteguas agraves matildeos freio agraves liacutenguas deprequemos

De noacutes se comisere o deus supremo

140 O aviltre aceitam linfa arautos vertem

E de urnas coroadas vertem servos

Dos auspicantes pelos copos vinho

Fartos de libaccedilotildees iam saindo

168

Nestor a cada um lanccedilando os olhos

145 E ao Laeacuterticles mais no empenho os firma

De abrandar o magnacircnimo Pelides

Pelas do mar fluctissonantes praias

Ao padre Enosigeu vatildeo suplicando

Que as entranhas do Eaacutecida comova

150 Jaacute no arraial dos Mirmidotildees o encontram

A recrear-se na artefacta lira

Que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros dEtion faccedilanhas

De valentes cantava e soacute Patroclo

155 Taacutecito agrave espera estaacute que finde o canto

Chegam-se agrave testa Ulisses e o Pelejo

Em peacute na sestra a lira estupefato

Com seu fido consoacutecio as destras cerra

Que urge a que vindes Bem que irado amigos

160 Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezo

(2003 216-217)

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes (1897 ndash 1990)

Disse-lhe tudo o Gerecircnio Nestor condutor de cavalos

Filho glorioso de Atreu Agameacutemnone rei poderoso

o que ofereces a Aquiles de fato natildeo eacute despiciendo

Ora sem perda de tempo emissaacuterios a jeito escolhamos

para os enviar com recados agrave tenda de Aquiles Peleio

Deixa que eu proacuteprio os nomeie ningueacutem objeccedilotildees anteponha

A direccedilatildeo tome o heroacutei predileto dos deuses Fenice

o grande Ajaz depois venha e Odisseu o divino guerreiro

Sigam tambeacutem como arautos Odio e o impecaacutevel Euriacutebates

As matildeos lavemos observe-se em tudo completo silecircncio

quando imploramos a Zeus que haacute de ter de noacutes todos piedaderdquo

Foi o discurso do velho Nestor agradaacutevel a todos

Fazem vir aacutegua e os arautos por cima das matildeos a despejam

Teacute pelas bordas escravos as taccedilas encheram de vinho

distribuindo por todos os copos as sacras primiacutecias

169

Logo que todos haviam comido e bebido agrave vontade

os emissaacuterios deixaram a tenda do Atrida Agameacutemnone

Observaccedilotildees a ecircles todos o velho Nestor faz ainda

acompanhadas de olhar expressivo a Odisseu com mais ecircnfase

socircbre a maneira melhor de suadir o divino Pelida

Ambos entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

preces alccedilando a Posido que os muros da terra sacode

para que focircsse possiacutevel dobrar o Pelida altanado

Quando chegaram agraves tendas e naves dos fortes Mirmiacutedones

aiacute enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora

de cavalete de prata tocircda ela de bela feitura

que ecircle do espoacutelio do burgo de Eeciatildeo para si separara

O coraccedilatildeo deleitava faccedilanhas de heroacuteis decantando

Em frente decircle sogravemente calado encontrava-se Paacutetroclo

Pacientemente a esperar que o Pelida concluiacutesse o seu canto

Ambos entatildeo avanccedilaram servia Odisseu como guia

Param defronte do heroacutei Espantado de vecirc-los Aquiles

sem que o instrumento soltasse a cadeira de um salto abandona

O mesmo Paacutetroclo fecircz ao notar a presenccedila de estranhos

A ambos Aquiles veloz cumprimenta dizendo o seguinte

Salve Bem grave eacute sem duacutevida a causa de aqui terdes vindo

Ainda que muito agastado sois ambos os que eu mais distingo

(S d 208)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Neacutestor entatildeo ginete exiacutemio redarguiu

Glorioso Atreide rei-dos-homens Agamecircmnon

natildeo despreziacuteveis dons ofereces a Aquiles

Mas raacutepido emissaacuterios de escol para a tenda 165

do filho de Peleu se dirijam Avante

Aqueles para os quais acene me obedeccedilam

Fecircnix seja o primeiro em comando cariacutessimo

a Zeus Entatildeo o grande Aacutejax Odisseu divo

e os arautos Odio e Euriacutebates os dois 170

Que se lavem as matildeos em silecircncio augurai

170

Roguemos a Zeus Pai piedade para os Gregos

Falou Palavras gratas aos ouvintes todos

Os arautos de pronto versam aacutegua agraves matildeos

e os mais jovens coroaram de vinho as crateras 175

ateacute as bordas e a todos encheram as copas

Feitas as libaccedilotildees aos deuses todos bebem

de coraccedilatildeo agrave larga e da tenda do Atreide

Agamecircmnon se vatildeo Neacutestor Gerenio exiacutemio

ginete faz apelos de olhar a eles todos 180

sobretudo a Odisseu encarece persuada

Aquiles o Peleide imaacuteculo Entatildeo eles

pelas praias do mar polissonoras marcham

muitas preces erguendo ao deus circum-terrestre

a Posecircidon Tremor-de-terra que movesse 185

o coraccedilatildeo de Aquiles Junto agraves naus e tendas

dos Mirmidotildees o encontram Tangia uma lira

mdash cordas presas em trave de prata mdash artefato

dedaacuteleo que o enlevava do espoacutelio de Eeciatildeo

e a cujos sons cantava gestas de heroacuteis Paacutetroclo 190

soacute silencioso senta-lhe defronte e espera

que ele termine o canto Odisseu guiando os nuacutenciacuteos

chegam agrave frente dele e param O Peleide

sustendo a lira salta abismado do soacutelio

onde sentava Paacutetroclo ao vecirc-los levanta-se 195

Aquiles peacutes-velozes daacute-lhes as boas-vindas

Salve Eis aqui guerreiros amigos Algum

motivo urgente grave eacute que vos traz a mim

Ainda que irado sois-me entre os Gregos cariacutessimos

(2002 339)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

E respondeu-lhe em seguida Nestor velho cavaleiro

Atrida assinaladiacutessimo senhor de homens Agamecircnon

daacutedivas natildeo indevidas daacutes ao soberano Aquiles

Mas vamos seletos homens incitemos que depressa 165

171

se dirijam agrave cabana dele do Pelida Aquiles

anda aqueles em quem eu puser os olhos acatem

que primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frente

e entatildeo em seguida Max grande e o divino Odisseu

dentre os arautos que Odio e Euriacutebato os acompanhem 170

Trazei aacutegua para as matildeos e solicitai silecircncio

para que oremos a Zeus Cronida a ver se tem pena

Disse assim e proferiu fala grata a todos eles

Os arautos de imediato vertem aacutegua sobre as matildeos

os jovens enchem entatildeo as crateras de bebida 175

e as distribuem a todos mdash libando antes com os caacutelices

Apoacutes libar e beber quanto o acircnimo queria

se apressaram da cabana dele do Atrida Agamecircnon

E a eles muito ordenou Nestor velho cavaleiro

(olhando pra cada uni) sobretudo a Odisseu 180

que tentassem convencer ao ilibado Pelida

E partiram pela praia do murmurejante mar

ambos clamando muitiacutessimo ao Terra-tem Treme-terra

por convencer facilmente o grande acircnimo do Eaacutecida

E chegaram logo agraves naus e agraves cabanas dos mirmiacutedones 185

o encontraram deliciando o acircnimo com lira liacutempida

bela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)

que apanhara dos despojos destruiacuteda a polis de Eeacutecion

Com ela se deliciava cantando as gloacuterias dos homens

Sozinho com ele Paacutetroclo sentava em frente em silecircncio 190

aguardando quando o Eaacutecida terminasse de cantar

Os dois avanccedilam mdash agrave frente vai o divino Odisseu mdash

e param diante dele atocircnito Aquiles se ergue

a lira ainda nas matildeos deixando o assento em que estava

Paacutetroclo do mesmo modo ao ver os heroacuteis levanta-se 195

E saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquiles

Salve Entrai sim como amigos (sim eacute grande a precisatildeo)

voacutes que a mim sois mdash mesmo irado mdash os mais caros dos acaiosrdquo

(2006 334)

172

Comentaacuterios sobre o fragmento

Passemos ao largo de algumas questotildees importantes relativas ao episoacutedio para

nos atermos agravequelas ligadas a esse breve fragmento (e particularmente como as vecircem

alguns dos tradutores escolhidos) antes de procedermos agrave anaacutelise das traduccedilotildees

Um aspecto do fragmento a se ressaltar jaacute muito discutido por estudiosos da

obra homeacuterica eacute a questatildeo do uso repetido de verbos na forma dual (proacutepria para a

dupla) a partir do verso 182 uma vez que foram trecircs os enviados agrave tenda de Aquiles

(Fecircnix Aacutejax e Odisseu) Sobre este tema (compartilhando em sua explicaccedilatildeo da visatildeo

de Denys Page manifestada no apecircndice agrave sua obra History and the homeric Iliad

1959) diz Carlos Alberto Nunes

O que importa eacute chegarmos ao verso 182 no ponto em que se diz que como os

componentes da embaixada se puseram a caminho depois de ouvidas as uacuteltimas

recomendaccedilotildees de Nestor ldquoAmbosrdquo entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

Como se eram trecircs os embaixadores Dez linhas adiante encontramos novamente

o dual quando os emissaacuterios chegam agrave tenda de Aquiles e tambeacutem na saudaccedilatildeo

com que este os recebe num misto de surpresa e alegria ainda que muito agastado

ldquosois ambosrdquo os que eu mais distingo

Os partidaacuterios da unidade a todo custo dos poemas de Homero recorrem a

subterfuacutegios para explicar a irregularidade mas o fato eacute que o Canto IX da Iliacuteada

tal como nos foi transmitido deixa perceber as suturas por que passou o episoacutedio

da embaixada ao ser incorporado na trama do poema [] No primitivo traccedilado os

embaixadores eram apenas dois Ajaz e Odisseu [] Aleacutem do mais as falas dos

dois primeiros se diferenciam estilisticamente da de Fenice []

Mas natildeo eacute tudo dizer-se que o canto da embaixada sofreu retoques todo ele soacute mui

tardiamente foi incorporado agrave Iliacuteada

Ao abordar esta questatildeo Andreacute Malta considerando outras hipoacuteteses relativas a

ela175

observa que ldquoFecircnix natildeo segue com eles [Aacutejax e Odisseu] pois fora na frente o

que explica a repetida conjugaccedilatildeo dos verbos no dual a partir desse pontordquo

esclarecendo que ldquodevemos [] simplesmente entender que no texto (v 168

hegesaacutestho) estaacute indicado que Fecircnix foi na frente (e natildeo agrave frente) e natildeo avisou Aquiles

175O referido autor menciona a ediccedilatildeo de Jasper Griffin do Canto IX ndash Homer Iliad IX Oxford 1995 e a

obra de Pierre Chantraine Grammaire homeacuterique Paris 19481953

173

da vinda dos companheirosrdquo (2006 295) Para o autor assim a duacutevida se resolve

mediante a atribuiccedilatildeo do significado de ldquoir na frenterdquo equivalente a ldquoir antesrdquoagrave forma

verbal (hegesaacutestho) (imperativo aoristo voz meacutedia do verbo

egeacuteomai)) sentido considerado em sua traduccedilatildeo Escapa ao foco de interesse

deste estudo a discussatildeo acerca de tal hipoacutetese sendo-nos pertinente apenas consideraacute-

la como uma interpretaccedilatildeo determinante176

no caso de um aspecto da soluccedilatildeo

tradutoacuteria comparando-a com aquelas dadas pelos demais tradutores relativamente a

esta questatildeo (o que seraacute feito adiante)

Outro aspecto a ser apontado eacute o uso da mesma expressatildeo formular encontrada

no verso 34 do Canto I (paragrave thicircna

polyphloiacutesboio thalaacutesses) tal emprego possibilitaraacute tambeacutem a observaccedilatildeo comparativa

do procedimento adotado pelos tradutores em relaccedilatildeo agraves foacutermulas homeacutericas

Encontra-se neste fragmento a significativa passagem de Aquiles cantando ao

som de sua lira177

cena cuja descriccedilatildeo permitiraacute especialmente observar

procedimentos dos tradutores escolhidos Mas eacute a diversidade relativa aos dois versos

finais do fragmento que nos traraacute uma possibilidade clara de anaacutelise das soluccedilotildees

tradutoacuterias agrave luz da interpretaccedilatildeo em termos semacircnticos norteadora de cada uma dessas

soluccedilotildees inserida na oacuteptica ldquogeralrdquo de cada tradutor Sobre esses versos comenta Malta

acerca do uso da palavra (khreoacute) ldquoprecisatildeordquo (na afirmaccedilatildeo (eacute

ti mala khreoacute) traduzida por ele como ldquosim eacute grande a precisatildeordquo) que tal substantivo

176 Diga-se apenas que a possibilidade de tal interpretaccedilatildeo pode se dar a partir da definiccedilatildeo do verbo

encontrada em Lidell amp Scott ldquoto go before lead the wayrdquo ainda que ldquobeforerdquo tambeacutem possa

ter o sentido de ldquoagrave frente na dianteirardquo ou ldquona vanguardardquo encerra o significado de ldquoantesrdquo (Houaiss

1982) ldquolead awayrdquo (ldquolevar (conduzindo)rdquo id) eacute o outro sentido possivelmente atribuiacutedo agrave mesma

expressatildeo tomado por Page e outros 177 Dada sua relevacircncia inclua-se um comentaacuterio acerca de seus possiacuteveis sentidos a partir das

observaccedilotildees de Malta (2006) Este autor parte da colocaccedilatildeo de Bryan Hainsworth ndash segundo a qual a

motivaccedilatildeo para o canto de Aquiles seria ldquorealizar pela palavrardquo o que natildeo podia ldquorealizar em atosrdquo uma

vez que desonrado havia se afastado da luta ndash para estender a motivaccedilatildeo a um apego do heroacutei ao

ldquomecanismo de ordenaccedilatildeo e significaccedilatildeo do mundo que satildeo as palavras das Musas mecanismo

oportunamente reclamado diante de sua posiccedilatildeo de heroacutei desonradordquo tal canto consistiria num ldquocanto

pronunciado por um heroacutei que busca exatamente na glorificaccedilatildeo de feitos humanos uma sustentaccedilatildeo para

sirdquo reafirmando assim o proacuteprio ldquovalor do canto da Iliacuteada por que apontaria para o fato de que na iminecircncia da des-significaccedilatildeo eacute o canto divino que traz orientaccedilotildees (claras ou obscuras) para a vida

humanardquo Para Malta (cuja obra aqui referida tem por tema central a (aacutete) ndash definida por ele como

ldquoperdiccedilatildeordquo ndash na Iliacuteada) esse ato de Aquiles encerra um paradoxo ldquo[] a entoaccedilatildeo de um eacutepico por parte

de Aquiles aleacutem de se identificar com a afirmaccedilatildeo de seu eacutepico e de seu significado identifica-se

tambeacutem contrariamente com a negaccedilatildeo de seu eacutepico ou com a afirmaccedilatildeo de sua falta (para ele Aquiles)

de sentido por lhe surgir como grande farsa e soacute pode lhe surgir de tal modo porque o heroacutei no

momento passa a ser incapaz de perceber o alcance de seus atosrdquo (2006 150-153)

174

ldquonos remete a seu emprego pelo mesmo Aquiles no Canto I quando entatildeo afirmou aos

arautos de Agamecircnon que um dia haveria ldquoprecisatildeordquo (v 341) de que ele afastasse a

ruiacutena ultrajante dos acaios A precisatildeo de agora seria portanto a precisatildeo jaacute prevista

pelo Pelida atraacutesrdquo a presenccedila dos heroacuteis que lhe foram enviados permitiria a ele

ldquoafirmar com indisfarccedilaacutevel satisfaccedilatildeo que era chegado o momento de os acaios

reconhecerem seu valorrdquo Segundo Malta o mesmo verso no entanto tambeacutem pode

referir-se agrave ldquoprecisatildeo que o proacuteprio Aquiles tinha dos amigosrdquo ldquotanto os acaios

precisam vir a ele e lhe suplicar porque dele precisam quanto ele precisa que os acaios

a ele venham e lhe supliquem porque a suacuteplica eacute uma oportunidade de reconhecimento

do seu valorrdquo (2006 143-155) (Cabe relembrar aqui que a poesia considerada

genericamente do ponto de vista da linguagem e independentemente das

especificidades de determinada poeacutetica tem na ambiguidade uma de suas

caracteriacutesticas por este acircngulo a soluccedilatildeo da duacutevida sobre a quem se refere a palavra

ldquoprecisatildeordquo natildeo soacute natildeo eacute obrigatoacuteria como eacute indesejada pela possibilidade de ampliaccedilatildeo

de sentido que a ambiguidade proporciona (como se vecirc pela citaccedilatildeo acima))

Feitas tais consideraccedilotildees realizemos a seguir uma breve anaacutelise das traduccedilotildees

do fragmento localizada em alguns de seus pontos e caracteriacutesticas

De maneira geral a traduccedilatildeo menos voltada agrave literalidade eacute a de Manuel Odorico

Mendes No caso deste trecho seu compromisso com a siacutentese eacute particularmente

visiacutevel e se torna mesmo um caso notaacutevel de realizaccedilatildeo nesse plano usando de

transposiccedilotildees e modulaccedilotildees (notadamente inversotildees caracteriacutestica de sua dicccedilatildeo) e

evidentemente de omissotildees ndash sem contudo suprimir o que parece ldquoessencialrdquo ao

sentido e nem mesmo o detalhe em prata da lira ndash obteacutem uma descriccedilatildeo breve

dinacircmica e concentrada para a cena de Aquiles tocando seu instrumento ldquo[] o

encontram A recrear-se na artefacta lira que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros drsquoEtion faccedilanhas De valentes cantava e soacute Paacutetroclo Taacutecito agrave espera

estaacute que finde o cantordquo Note-se na passagem a alta concentraccedilatildeo tambeacutem sonora

urdida principalmente de aliteraccedilotildees que aceleram o ritmo dos versos agrave densidade do

sentido soma-se a densidade focircnica compondo uma relaccedilatildeo peculiar entre ambos que

introduz um clima contraditoriamente vibrante e tenso a uma situaccedilatildeo anunciada como

deleitosa mas ao mesmo tempo coerente com a intensidade de um canto feito de fatos

heroacuteicos a tensatildeo pode tambeacutem prenunciar a chegada abrupta dos mensageiros numa

sequecircncia igualmente admiraacutevel pela concisatildeo ldquoChegam-se agrave testa Ulisses e o Peleio

175

Em peacute na sestra a lira estupefacto com seu fido consoacutecio as destras cerra ldquoQue

urge a que vindes Bem que irado amigos Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezordquo

As aliteraccedilotildees (principalmente em t p e c aleacutem da trilha de fricativas) associadas agraves

assonacircncias e panonomaacutesias (como entre testa e sestra) perpassam tambeacutem esses

versos engendrando nesse niacutevel a continuidade das cenas e conservando sua tensatildeo

esta de certo modo culmina com o cerramento da matildeo direita (inexistente no original

um acreacutescimo portanto) e este por sua vez liga-se agrave ira pelo heroacutei referida subjacente

agrave alegria que manifesta pela chegada dos amigos natildeo me parece absurda a leitura de

que pela associaccedilatildeo som-sentido esta traduccedilatildeo arma (independentemente da

intencionalidade de seu autor) um quadro de conflito adequado ao momento paradoxal

vivido por Aquiles e agrave ldquocegueirardquo (ou ldquoperdiccedilatildeordquo) ndash (aacutete) ndash em relaccedilatildeo agraves

consequecircncias de seus atos (Sobre o original ainda que natildeo se possa afirmar que haja

neste trecho uma especial concentraccedilatildeo de aliteraccedilotildees elas estatildeo presentes de forma

clara e ateacute onde me eacute dado perceber a tensatildeo sonora estaacute presente na passagem ainda

que de forma inerentemente menos compacta que a dos decassiacutelabos de Odorico)

Tensatildeo sonora semelhante se pode perceber nos versos de Haroldo de Campos

densos envolvendo tambeacutem sequecircncias aliterantes que aceleram seu ritmo como em

ldquo[] Tangia uma lira ndash cordas presas em trave de prata ndash artefactordquo ou ldquosustendo a lira

salta abismado do soacutelio onde sentavardquo A siacutentese eacute igualmente caracteriacutestica desta

versatildeo coerentemente aos pressupostos que a orientam Quanto a este aspecto as

demais traduccedilotildees tambeacutem de modo coerente aos pressupostos de seu meacutetodo satildeo mais

analiacuteticas tendendo agrave literalidade Embora a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes possa

ser como jaacute se viu em relaccedilatildeo ao fragmento do Canto I considerada proacutexima da

literalidade eacute na traduccedilatildeo de Andreacute Malta que esta mais se realiza como no

versokalecirc daidaleacutee epigrave drsquoargyrion

zygoacuten een) traduzido como ldquobela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)rdquo em que

apenas com o recurso da transposiccedilatildeo e do acreacutescimo de uma pontuaccedilatildeo conservam-se

todas as palavras do original (ainda que com alguma modulaccedilatildeo)

Como jaacute se disse a medida dos versos usados por Malta e por Nunes tende a

favorecer a literalidade mas o primeiro parece ater-se mais a este propoacutesito associado agrave

priorizaccedilatildeo do sentido baseando-se para tanto principalmente em sua leitura

interpretativa do original fundamentada por sua vez em questotildees apontadas por

especialistas na obra homeacuterica este ponto de vista (que inclui a preocupaccedilatildeo com a

176

natureza oral da eacutepica e seu aspecto ldquopopularrdquo) eacute determinante de seu meacutetodo e do

consequente resultado distinguindo-a claramente das demais quanto ao modo de

abordagem de duacutevidas em relaccedilatildeo ao significado do original e suas ambiguidades

Vejamos este aspecto ao tratar de pontos levantados anteriormente sobre o fragmento

No caso das foacutermulas evidencia-se mais uma vez a preocupaccedilatildeo de Malta em

mantecirc-las inalteradas a cada ocorrecircncia o que natildeo sucede sempre nas demais traduccedilotildees

Campos conserva a forma de epiacutetetos (no caso ldquoAquiles peacutes-velozesrdquo ndash

correspondente a (poacutedas okys Akhilleuacutes) como estaacute no verso

196 constante do fragmento aparece por exemplo no verso 48 do Canto XVI pode

surgir no entanto em posiccedilotildees diversas e mesmo independentemente de figurar no

original como no caso do verso 166 do mesmo canto) mas natildeo de outras expressotildees

formulares como se pode constatar na foacutermula relativa ao mar se nos versos do Canto I

aparecia para (paragrave thicircna polyphloiacutesboio

thalaacutesses) ao longo do mar de poliacutessonas praias no verso 183 do Canto XIX aparece

ldquopelas praias do mar polissonorasrdquo (mesmo que se considere como foacutermula apenas a

expressatildeo (polyphloiacutesboio thalaacutesses) haacute portanto

mudanccedila) Opccedilotildees como esta que evidenciam a natildeo-obrigatoriedade da perspectiva

deste tradutor de correspondecircncia com o aspecto imutaacutevel da foacutermula tambeacutem podem

indicar o compartilhamento da visatildeo de Odorico Mendes de ldquoevitar as repeticcedilotildees e a

monotoniardquo (agrave qual estaria mais sujeita uma liacutengua natildeo-flexionaacutevel) A mesma foacutermula

tambeacutem eacute modificada por Odorico neste fragmento conservando-se no entanto em sua

principal parte em vez de ldquoBusca as do mar fluctissonantes praiasrdquo presente no Canto

I encontra-se agora ldquopelas do mar fluctissonantes praiasrdquo (fica mantida assim a

sonoridade apontada anteriormente acrescida de uma aliteraccedilatildeo entre ldquopelasrdquo e

ldquopraiasrdquo) na versatildeo de Nunes a foacutermula ldquopela praia do mar ressoanterdquo se conserva

variando apenas sua colocaccedilatildeo na frase (a mesma expressatildeo eacute usada por ele contudo

para a construccedilatildeo (regmini thalaacutesses) no verso 67 do Canto XVI o

que revela o desapego agrave repeticcedilatildeo exata do sintagma original indicando um criteacuterio de

escolha e coerecircncia interno agrave traduccedilatildeo) Quanto ao epiacuteteto atribuiacutedo a Aquiles ele

sequer aparece na traduccedilatildeo de Odorico em Nunes surge a forma ldquoAquiles velozrdquo no

verso 196 do Canto IX enquanto no verso 48 do Canto XVI estaacute ldquoAquiles de peacutes muito

raacutepidosrdquo evidenciando a flexibilidade com que satildeo trabalhados os epiacutetetos pelo

177

tradutor No caso de Malta coerentemente a suas diretrizes conserva-se a forma e a

posiccedilatildeo da foacutermula ldquoo peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo nos versos em que ela acontece nos

fragmentos que traduziu

A respeito do uso da forma dual nos versos gregos vinculado aos embaixadores

de Agamecircmnon a soluccedilatildeo apontada por Malta (relativa ao entendimento de

(hegesaacutestho) como ldquona frenterdquo) eacute exclusiva de sua traduccedilatildeo que conteacutem a

sequecircncia ldquoque primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frenterdquo ldquoE partiram []

ambos clamando []rdquo ldquoOs dois avanccedilam ndash agrave frente vai o divino Odisseu ndashldquo ldquoE

saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo Nunes manteacutem a contradiccedilatildeo gerada

pela compreensatildeo da referida palavra como ldquoagrave frenterdquo ldquona dianteirardquo ldquono comandordquo

utilizando ldquoambosrdquo para corresponder ao dual quando este surge ldquoA direccedilatildeo tome o

heroacutei predileto dos deuses Fenicerdquo ldquoAmbos entatildeo pela praia [] ldquoAmbos entatildeo

avanccedilaram servia Odisseu como guiardquo A ambos Aquiles veloz cumprimentardquo

Odorico passa ao largo do conflito desconsiderando a existecircncia do dual ldquoFecircnix guie

de Juacutepiter privadordquo ldquovatildeo suplicandordquo Chegam-se agrave testa Ulisses [] ldquoE o peleio []

com seu fido consoacuteciordquo Campos agrave semelhanccedila de Odorico elimina a contradiccedilatildeo ao

natildeo levar em conta a forma dual ldquo[] Entatildeo eles pelas praias do mar []rdquo []

Odisseu guiando os nuacutencios chegam agrave frente dele e paramrdquo Aquiles peacutes-velozes daacute-

lhes as boas vindasrdquo

Eacute de se supor no caso da soluccedilatildeo adotada por Nunes que sua intenccedilatildeo eacute manter

o que para ele representa uma evidecircncia da agregaccedilatildeo posterior de elementos a um texto

mais antigo no caso daquelas adotadas por Odorico e Campos a questatildeo pode-se

tambeacutem supor passa a ser secundaacuteria diante de seus objetivos mais voltados agrave recriaccedilatildeo

de um poema de modo a considerar sua dimensatildeo estrutural proacutepria ainda que como

afirma Campos ndash e talvez por isto mesmo ndash sua configuraccedilatildeo se defina

paramorficamente em relaccedilatildeo ao original (este aspecto seraacute tratado ainda de modo

mais detido adiante)

Quanto agrave questatildeo relativa ao emprego da palavra (khreoacute) (ldquonecessidade

falta desejo saudaderdquo ndash Isidro Pereira) no verso 197 apenas Malta manteacutem utilizando

o vocaacutebulo ldquoprecisatildeordquo a ambiguidade por ele apontada em relaccedilatildeo ao sujeito da

necessidade ldquo[] (sim eacute grande a precisatildeo)rdquo Odorico emprega a noccedilatildeo de necessidade

encerrando-a na forma de pergunta soluccedilatildeo que lhe permite uma construccedilatildeo sinteacutetica

ldquoQue urge A que vindes []rdquo tal soluccedilatildeo claramente opta pela atribuiccedilatildeo da urgecircncia

178

aos visitantes e natildeo a ele proacuteprio Eacute num sentido tambeacutem ligado a ldquourgirrdquo ldquourgecircnciardquo

(ldquosituaccedilatildeo criacutetica ou muito grave que tem prioridade sobre outrasrdquo ndash Dicionaacuterio

Houaiss 2001) que Nunes constroacutei seu verso ldquo[] Bem grave eacute sem duacutevida a causa

de aqui terdes vindordquo a soluccedilatildeo de Campos aproxima-se semanticamente das de Nunes

e Odorico ldquoAlgum motivo urgente grave eacute que voz traz a mimrdquo

Feita esta raacutepida anaacutelise comparativa das traduccedilotildees do fragmento do Canto IX

voltemos a questotildees fundamentais acerca de sua diversidade O que as distingue

essencialmente eacute a opccedilatildeo por considerar ndash ou natildeo ndash suas caracteriacutesticas ditadas pela

cultura e pela liacutengua gregas como absolutas no sentido da referecircncia formal agrave

composiccedilatildeo Tais caracteriacutesticas ligadas agrave natureza oral da poesia eacutepica satildeo ndash ou natildeo ndash

tomadas como padratildeo composicional pelos tradutores (independentemente inclusive da

convicccedilatildeo acerca de tal oralidade) Inseridos na cultura letrada que deteacutem conceitos

proacuteprios acerca de arte literatura e poesia o tradutor pode guiar-se por conceitos que

lhe satildeo externos ndash no caso advindos da cultura oral ndash ou orientar-se pelos padrotildees de

sua proacutepria cultura acerca da composiccedilatildeo poeacutetica recriando dentro destes padrotildees o que

seria anaacutelogo ao original provindo de cultura diversa naquilo que ele considera

essencial a este do ponto de vista esteacutetico

Se como vimos a partir de Havelock a praacutetica oral e a letrada natildeo satildeo

mutuamente exclusivas e os poemas homeacutericos satildeo ldquoconstruccedilotildees complexasrdquo que

ldquorefletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o escritordquo a tensatildeo entre estes dois

ldquopoacutelos opostosrdquo permitiraacute do ponto de vista da leitura (entendida em seu sentido amplo)

do original e de sua traduccedilatildeo ou uma diretriz a partir de suas caracteriacutesticas que satildeo

proacuteprias do mundo oral ou outra na qual a consideraccedilatildeo dos elementos do poema se daacute

a partir da cultura letrada e de sua visatildeo acerca do fenocircmeno poeacutetico que inclui como

vimos aquilo de comum que haacute ndash do ponto de vista da linguagem ndash entre as

composiccedilotildees de eacutepocas tatildeo distantes como a antiguidade e a nossa Evidentemente

ambas as diretrizes encontram-se no plano de intersecccedilatildeo entre a oralidade e a escrita

(entre os aludidos ldquopoacutelosrdquo) o que as distinguiria basicamente seria a adoccedilatildeo de um ou

outro referente para a definiccedilatildeo das regras orientadoras de sua recriaccedilatildeo o que envolve

inevitavelmente a funccedilatildeo da poesia numa ou noutra cultura (oral ou letrada)

Neste sentido traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (principalmente pela

transposiccedilatildeo direta do metro grego) e Andreacute Malta (pela adoccedilatildeo de metro considerado

179

anaacutelogo ao original por suas caracteriacutesticas ligadas agrave oralidade) adviriam de um ponto

de vista que parte de padrotildees caracteriacutesticos da poesia na cultura arcaica ligados agrave sua

funccedilatildeo em sua cultura (jaacute que independentemente das convicccedilotildees de Nunes acerca da

natureza oral ou natildeo autoral ou natildeo da eacutepica grega ele incorporou um padratildeo fiacutesico

caracteriacutestico da poesia homeacuterica178

) Contudo mesmo que orientados por uma oacuteptica

que se pode considerar intriacutenseca aos padrotildees da composiccedilatildeo oral eacute inevitaacutevel que a

visatildeo da cultura em que se insere o tradutor e a maneira como concebe o fenocircmeno

poeacutetico bem como sua concepccedilatildeo acerca das criaccedilotildees de outras eacutepocas propiciada pelo

uso de instrumentos de anaacutelise e interpretaccedilatildeo de que dispotildee exerccedilam papel decisivo na

atividade tradutoacuteria no caso de Malta as hipoacuteteses voltadas ao esclarecimento de

contradiccedilotildees e ambiguidades do original grego satildeo ainda que investigativas fruto da

cultura contemporacircnea e do modo com esta pode ldquorefazerrdquo a loacutegica e a coerecircncia de

sentido onde elas natildeo se datildeo sem que se construa uma tentativa de explicaacute-las embora

tenha o objetivo de resgate de significados estes seratildeo sempre tambeacutem resultantes da

leitura que poderaacute envolver formulaccedilotildees hipoteacuteticas produtoras de sentido (uma vez

que o campo da incerteza e mesmo da mutabilidade do significado eacute intransponiacutevel)

Na teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash que considera o poema e a traduccedilatildeo

deste como ligados ldquoentre si por uma relaccedilatildeo de isomorfiardquo sendo ldquodiferentes enquanto

linguagemrdquo (a obra traduzida eacute uma ldquooutra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnomardquo) mas que

ldquocomo os corpos isomorfosrdquo cristalizam-se ldquodentro do mesmo sistemardquo ndash o original

natildeo eacute tomado como estrutura fixa o ato de traduzir eacute visto como uma ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto original jaacute preacute-formado

numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em reebuliccedilatildeo de lavardquo Como jaacute se disse

antes a dissolvecircncia de tal ldquodiamantizaccedilatildeordquo implica transformaccedilatildeo estrutural o sentido

do isomorfismo (ou do paramorfismo) envolve a noccedilatildeo de substacircncias diferentes e a

analogia de estrutura se daacute natildeo por paracircmetros fixos impostos externamente ao que se

recria mas ndash conforme entendo ndash pela reconstruccedilatildeo estrutural que se sustente como

178 C A Nunes dizia-se em relaccedilatildeo aos estudos da eacutepica grega filiado agrave corrente analiacutetica (para quem

nas palavras do tradutor ldquoeacute apenas aparente a unidade dos dois poemas [Iliacuteada e Odisseia] que se

formaram pela uniatildeo mal ajeitada de composiccedilotildees menoresrdquo (sd 10) Alertava no entanto que suas

conclusotildees pareceriam paradoxais uma vez que defendia ldquoa unidade de concepccedilatildeo da Iliacuteada e a pluralidade da Odisseiardquo atribuindo-lhes autoria diversa Para ele ldquoa Iliacuteada e a Odisseia representam a

fase uacuteltima do movimento eacutepico na Greacutecia firmando-se os dois poemas em copioso material preacute-

existente isto eacute em poemas de proporccedilotildees menores em sagas lendas mitos de origem variada que iam

sendo incorporados a conjuntos cada vez mais complexos Mas no caso da Iliacuteada um grande poeta ndash que

poderaacute ser o tatildeo discutido Homero histoacuterico ndash conseguiu uma siacutentese admiraacutevel com esse material

heterogecircneo a que imprimiu o cunho de seu grande gecircniordquo (id 11)

180

corpo autocircnomo paralelo e ao mesmo tempo anaacutelogo em suas relaccedilotildees constituintes

consideradas essenciais aquelas decorrentes da iconicidade do signo ou seja a teia de

relaccedilotildees sonoras e imageacuteticas que formam o conjunto cuja funcionalidade decorreraacute de

uma nova criaccedilatildeo de um novo cristal que ldquobrilherdquo (ou para usar outra analogia de

ldquoorganismordquo que funcione) independentemente no contexto em que surge (ou

ldquonascerdquo) Na oacuteptica de Campos portanto ndash que leva em conta tambeacutem o conceito

poundiano make it new (tornar novo) ndash o corpo isomoacuterfico teraacute um metro e outras

caracteriacutesticas proacuteprias da cultura em que a traduccedilatildeo se insere dentro das quais se recria

o conjunto de relaccedilotildees essenciais que tornam o conjunto uma informaccedilatildeo esteacutetica Isto

natildeo impede no entanto como jaacute se viu que se busque alargar os limites da proacutepria

liacutengua com criaccedilotildees vocabulares ou sintaacuteticas baseadas na liacutengua do original mas eacute

dentro da funcionalidade da obra na proacutepria cultura que se buscaraacute estender seus

paracircmetros Assim no caso particular do verso hexacircmetro dada a natureza diversa das

substacircncias sua consideraccedilatildeo como referecircncia fixa e sua simples transposiccedilatildeo

implicariam a perda de algo isto sim tido como essencial para o tradutor a dinacircmica

associada agrave siacutentese que do ponto de vista de Campos natildeo eacute estranha ao original a

concisatildeo nesta forma de pensar se daacute pela concentraccedilatildeo de efeitos pela densidade

poeacutetica pela relaccedilatildeo cerrada entre seus elementos (natildeo eacute difiacutecil perceber numa simples

leitura quatildeo densa eacute a relaccedilatildeo sonora presente nos versos gregos) Se em nossa liacutengua o

verso excessivamente longo pode levar agrave perda da musicalidade e agrave aproximaccedilatildeo com a

prosa outros valores se elevaratildeo para a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em vez da medida

original por exemplo a escolha baacutesica de um metro fixo sendo este metro adequado

aos padrotildees de sensibilidade do contexto da traduccedilatildeo ainda que este possa ser

ldquoalargadordquo em seus lindes

No caso de Odorico Mendes como vimos eacute niacutetida sua opccedilatildeo por guiar-se pelos

valores esteacuteticos de sua eacutepoca e de sua cultura tomando entatildeo o verso ldquoheroacuteicordquo como

padratildeo o que lhe permitiu levar a cabo seu objetivo de siacutentese radical para ele

tambeacutem a narrativa natildeo eacute priorizada em relaccedilatildeo agrave urdidura poeacutetica marcada pela

extrema densidade de efeitos

Para concluir este exerciacutecio reflexivo reafirme-se que nas diferentes traduccedilotildees

prevalece sobre a (por vezes buscada) ldquofidelidaderdquo ao original uma ldquofidelidaderdquo agraves

convicccedilotildees do tradutor a respeito da obra que traduz da proacutepria poesia e do que vem a

181

ser uma traduccedilatildeo Neste sentido recorde-se tambeacutem ainda que se possam distinguir ndash

sempre a partir de um ponto de vista criacutetico que tambeacutem relativiza seus julgamentos ndash

realizaccedilotildees mais plenas no plano esteacutetico todas as traduccedilotildees aqui consideradas satildeo

resultados vaacutelidos e proacuteprios de abordagens competentes embora diversas da eacutepica

grega Todas envolvem noccedilotildees de equivalecircncia mas compatiacuteveis com seus pontos de

vista a anaacutelise descritiva permanece por isso mais adequada como procedimento para

comparaccedilatildeo e estabelecimento de semelhanccedilas e diferenccedilas

A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise

Seratildeo abordados a seguir outros versos isolados e fragmentos de cantos da

Iliacuteada e da Odisseia Buscaremos introduzir alguns elementos agraves anaacutelises de modo a

caminhar no esboccedilo de possibilidades de desvendamento dos processos empregados

pelos diversos tradutores Incluiremos a traduccedilatildeo ldquopalavra-a-palavrardquo do grego como

iacutendice de sentido

Considerem-se os seguintes versos em grego dotados de particular sonoridade

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο (Iliacuteada I 46)

Ressoaram as flechas do ombro do furioso

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

terriacutevel ruiacutedo surgiu do prateado arco

Fazemos mais uma vez acompanhar os versos do que seria uma ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo (palavra-a-palavra) do grego tais palavras podem ser vistas como iacutendices da

construccedilatildeo das frases naquele idioma dando conta das informaccedilotildees delas apreensiacuteveis

ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquosentidordquo179

no entanto ao se ouvirem esses versos180

certamente algo do sentido pareceraacute perdido pela escolha das palavras

179 Se se quiser utilizar o referencial semioacutetico estariacuteamos no plano do siacutembolo da terceiridade (da qual

emergiram hipoiacutecones no processo de iconizaccedilatildeo do siacutembolo que buscaremos identificar tambeacutem nos

demais fragmentos estudados) 180 As observaccedilotildees feitas neste trabalho sobre a sonoridade dos versos e palavras em grego baseiam-se

na pronuacutencia mais habitual empregada nos cursos de formaccedilatildeo em liacutengua e literatura grega antiga

182

independentemente de sua ordem em portuguecircs Seguem-se novamente os versos

acompanhados de sua transliteraccedilatildeo

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Marquemos as repeticcedilotildees aliterativas (consoantes ou grupos consonantais

similares)

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemonkhoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Associadas agraves evidentes assonacircncias (repeticcedilotildees de vogais) as aliteraccedilotildees e

tambeacutem as semelhanccedilas de algumas palavras entre si colaboram para que se perceba

um efeito dos ruiacutedos referidos no plano do conteuacutedo segundo diferentes pontos de vista

teoacutericos diriacuteamos que a projeccedilatildeo paradigmaacutetica se realiza (funccedilatildeo poeacutetica) as palavras

parecem motivar-se os siacutembolos181

convertem-se em iacutecones (ou a rigor hipoiacutecones182

)

Nestes uacuteltimos termos advindos da semioacutetica de Peirce poderiacuteamos nos referir

a aspectos de primeiridade que emergeriam do contexto de terceiridade os sons que

ecoam reverberam nos versos aproximam-se por relaccedilotildees de contiguidade focircnica

formando-se uma tessitura sonora que sugere um caraacuteter qualitativo imageacutetico183

a

contiacutenua emissatildeo de flechas por Apolo em movimento Falariacuteamos inicialmente em

181 Observe-se que neste contexto adota-se o conceito de ldquosiacutembolordquo (e portanto de ldquosimboacutelicordquo)

proveniente da semioacutetica de Peirce diverso daquele empregado na semioacutetica oriunda da linguiacutestica isto eacute de Greimas e colaboradores (jaacute mencionado em capiacutetulo anterior em que se tratou de ldquorelaccedilotildees semi-

simboacutelicasrdquo) 182 Ver breve referecircncia agrave classificaccedilatildeo de signos por Peirce no primeiro capiacutetulo deste estudo 183 Seraacute utilizada como referecircncia para um possiacutevel exerciacutecio de anaacutelise a classificaccedilatildeo de trecircs tipos de

hipoiacutecones conforme apresentada por Santaella em Teoria geral dos signos (2000 119-120) a imagem

propriamente dita o diagrama e a metaacutefora

183

Aspectos de primeiridade ndash

Hipoiconicidade imageacutetica (contiacutenuo de sons sugerindo a accedilatildeo de Apolo)

1 Aliteraccedilatildeo

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras portanto relacionam-se pela hipo-iconicidade)

2 Assonacircncia

eacuteklangxan drsquoaacuteroiumlstoigrave errsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras se ligam tambeacutem pelas assonacircncias claro estaacute que as aliteraccedilotildees e

assonacircncias se ligam interpenetrando-se ndash a ldquoseparaccedilatildeordquo eacute feita apenas para

evidenciaccedilatildeo)

3 Paronomaacutesia (repeticcedilatildeo de conjuntos de sons semelhantes)

oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegravegeacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

4 Onomatopeia a sequecircncia de consoantes oclusivas (k d t g b) em ambos os

versos ocasionam o efeito de som forte imitativo de golpes batidas accedilotildees que

percutem

Quanto a aspectos de secundidade ndash hipoiconicidade anagramaacutetica (ver nota

177) ndash pode-se entrever um ldquodiagramardquo das posiccedilotildees das ldquofontes sonorasrdquo envolvidas na

accedilatildeo por meio das palavras posicionadas em cada linha na primeira na qual haacute

referecircncia ao ressoar das flechas as palavras se alongam proacuteprias da posiccedilatildeo relativa a

essa fonte de ressonacircncia na segunda em que a referecircncia se faz ao estridente arco haacute

palavras mais breves secas raacutepidas contundentes a indicarem a posiccedilatildeo relativa ao

arco como emissor do som Uma leitura possiacutevel demonstrando-se as possibilidades de

184

reconhecimento de inter-relaccedilotildees produtoras de sentido ainda que este se crie (ou se

recrie) pela observaccedilatildeo

Sobre os aspectos da terceiridade (para completarmos nossa leitura com base

nessa referecircncia) dada a brevidade do fragmento temos a identificar a construccedilatildeo da

relaccedilatildeo entre o estado de fuacuteria do deus o ato de emissatildeo de flechas e seu ressoar

ecoando a proacutepria fuacuteria assim como a estridecircncia ou retumbacircncia do arco que a

representam em maacutexima intensidade Neste plano o sentido pelo niacutevel simboacutelico

estabelecem-se na ldquomente interpretanterdquo (para usar terminologia da semioacutetica) as

relaccedilotildees de analogia entre a fuacuteria e os ruiacutedos contruiacuteda num crescendo de intensidade

Voltando agrave dimensatildeo da primeiridade note-se que a sonoridade desses versos

portanto participa da composiccedilatildeo do ldquosignificadordquo Resultam da percepccedilatildeo das

qualidades focircnicas que por diferenccedila e semelhanccedila chamam nossa atenccedilatildeo para sua

ldquomaterialidaderdquo a leitura atenta poderaacute ldquodesvelaacute-losrdquo agrave primeira audiccedilatildeo A ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo portanto ainda que do ponto de vista da ldquoequivalecircncia semacircnticardquo esteja a

contento deixa muito a desejar como recriaccedilatildeo dos versos uma vez que o sentido pleno

se faz exatamente da associaccedilatildeo entre o som e o chamado ldquosentidordquo ou seja o

ldquosignificadordquo Em que medida se deveria priorizar a equivalecircncia (ou correspondecircncia

palavra a palavra) no caso de versos cujo alcance de sentido ultrapassa a prerrogativa da

literalidade

Vejamos as soluccedilotildees obtidas pelos tradutores que temos focalizado

Odorico Mendes

Tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota (45 = 46)

Terriacutevel o arco argecircnteo estala e zune (47 = 49)

Carlos Alberto Nunes

A cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechas (46)

[nos ombros largos ]

185

Do arco de prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso (49)

Haroldo de Campos

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas (46)

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo (49)

Comecemos por Odorico

Tratando-se da informaccedilatildeo semacircntica ndash ldquoRessoaram as flechas ao ombro do

furiosordquo ndash o verso ldquotinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frotardquo omite o significado de

ldquofuriosordquo (ldquoiradordquo ldquocoleacutericordquo etc) no mais corresponde ao sentido com o acreacutescimo

de conteuacutedo relativo aos versos seguintes Contudo natildeo se trata neste caso

propriamente de omissatildeo (relembre-se o conceito ldquoocorre omissatildeo sempre que um dado

segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo podem ser recuperados

no texto metardquo ndash Aubert 2006) ocorre sim falta de repeticcedilatildeo do adjetivo epiacuteteto de

Apolo o verso 44 (βῆ δὲ κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ) eacute traduzido por

Odorico para ldquoDo veacutertice do ceacuteu baixa iracundordquo A palavra ldquoiracundordquo corresponde no

caso a χωόμενος (khooacutemenos encolerizado) particiacutepio presente (voz meacutedia) do verbo

χωoμaι (khoomai ldquoestar irritado enfadar-serdquo ndash Isidro Pereira) que apareceraacute

novamente (com a variaccedilatildeo no modo que permite no grego a repeticcedilatildeo associada agrave

mudanccedila) no verso 46 (χωoμενοιo khoomenoio ndash optativo aoristo voz meacutedia) Odorico

procura evitar a repeticcedilatildeo como jaacute se viu conforme o procedimento que adotou

vinculado agrave ideia de concisatildeo e de natildeo tornar a obra pouco ldquoapraziacutevelrdquo A informaccedilatildeo

portanto fora dada dentro do conjunto dos versos proacuteximos Quanto ao aspecto da

sonoridade o verso nada deixa a desejar pela alta concentraccedilatildeo de efeitos aliterantes e

assonantes

tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota

186

A escolha do verbo ldquotinirrdquo (palavra que parece motivada) permite associar o som

agudo das vogais agrave consoante oclusiva estabelecendo uma perfeita relaccedilatildeo som-sentido

que inclui as demais aliteraccedilotildees e semelhanccedilas uma sequecircncia de cinco consoantes

grupos consonantais que podem ser associados com o ruiacutedo das flechas lanccediladas por

Apolo concentraccedilatildeo correspondente agrave das consoantes oclusivas no verso grego

Especialmente concentrado de efeito portanto uma vez que o verso decassiacutelabo

(heroacuteico no caso de ambos os versos) eacute bem menor que o hexacircmetro pode-se pensar

em proporcionalidade quantitativa pois as ocorrecircncias tendem a se aglutinar mais no

menor verso em si mais concentrado Claro que os versos em sequecircncia com uso de

enjambement tecircm seus limites relativizados mas num caso como o de Odorico (como

se viu e veraacute com outros exemplos) o niacutevel de reuniatildeo de efeitos costuma ser alto A

ideia de proporccedilatildeo associada agrave simples observaccedilatildeo (percepccedilatildeo) do efeito produzido

num verso envolve a flexibilidade da ldquoequivalecircnciardquo como categoria natildeo-absoluta mas

apenas referecircncia do comportamento do texto recriado sob determinado aspecto O

verso 45 de Odorico (correspondente ao 46 em Homero jaacute que o procedimento do

tradutor envolve a diminuiccedilatildeo do nuacutemero de palavras e de versos em relaccedilatildeo ao texto

grego) apresenta ocorrecircncia anaacuteloga de primeiridade ou seja de hipoiconicidade

imageacutetica

Sobre o outro verso em questatildeo ldquoTerriacutevel o arco argecircnteo estala e zunerdquo eacute

evidente a cadeia de consoantes oclusivas assim como de constritivas (fricativas e

vibrantes) entre outras associaccedilotildees possiacuteveis (como a seguida repeticcedilatildeo de ldquoarrdquo aleacutem

de efeitos mais sutis como a inversatildeo entre ldquoecircnrdquo e ldquonecircrdquo) A presenccedila da iconicidade eacute

flagrante sem que a mediccedilatildeo seja necessaacuteria para o convencimento pelo efeito Dentro

de seus propoacutesitos e procedimentos estes versos isolados satildeo um indicador da fatura

(ainda que possa ser um momento especialmente dotado de eficiecircncia) de Odorico

poderiam ser exemplos de uso da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem de relaccedilatildeo som-sentido

hibridismo iacutecone-siacutembolo etc

Prossigamos com Carlos Alberto Nunes

Por vezes como eacute de se esperar ndash e nesse sentido veremos uma breve

amostragem natildeo calcada em criteacuterios estatiacutesticos mas apenas em busca de alguns

paradigmas ou padrotildees que componham o modo composicional do tradutor ndash Nunes

187

parece ter de preencher o verso longo com palavras adicionais a fim de manter a

paridade de versos com o texto grego Certas adjetivaccedilotildees que poderiam consistir numa

uacutenica palavra desdobram-se outras natildeo presentes no poema homeacuterico atrelam-se agrave

sequecircncia A escolha pela manutenccedilatildeo do ritmo uniforme em esquema ternaacuterio

descendente impotildee necessidades de distribuiccedilatildeo agrave qual a palavra deve adequar-se o que

amplia o nuacutemero de exigecircncias para a escolha semacircntica e vocabular Assim os versos

ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo e ldquoDo arco de prata comeccedila

a irradiar-se um clangor pavorosordquo assumem um caraacuteter mais descritivo pela variedade

de palavras usada coerentemente com a colocaccedilatildeo das tocircnicas na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e

16ordf siacutelabas sendo niacutetida a superioridade da configuraccedilatildeo do segundo verso em relaccedilatildeo

ao primeiro a comeccedilar pela tocircnica naturalmente posta na primeira siacutelaba Do arco de

prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso Certamente a concisatildeo natildeo eacute uma das

precondiccedilotildees de Nunes a favor desta opccedilatildeo pode-se dizer que o verso grego natildeo tem

igualmente o propoacutesito de siacutentese e que a concisatildeo eacute uma procura proacutepria de uma

eacutepoca de um contexto e de um autor No entanto como se poderaacute observar e concluir a

partir de poucos exemplos de trechos e muito melhor com a leitura geral das obras os

versos gregos apresentam uma certa ldquocondensaccedilatildeordquo de efeitos que os torna densos

ainda que natildeo necessariamente sucintos por suas funccedilotildees narrativa e descritiva No

plano do conteuacutedo ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo deixa de

de fora ou melhor para depois a informaccedilatildeo ldquonos ombrosrdquo (levada ao verso seguinte ndash

a omissatildeo tambeacutem no caso deste verso eacute relativa de modo diferente pois natildeo visa a

evitar a repeticcedilatildeo) que passaraacute a contar com o adjetivo ldquolargosrdquo inexistente no verso

grego Haacute um detalhe de sentido a observar ldquoomonrdquo correspondente a ldquoombrosrdquo estaacute

no genitivo-ablativo (com ideia de origem) e portanto indicando que deles partem o

retinir da flechas ldquonos ombrosrdquo (soluccedilatildeo que seria coerente com a forma do caso

dativo-locativo) traz uma ambiguidade (a ideia de os ombros receberem as flechas) que

no entanto se resolve pela compreensatildeo do relato ldquoA cada passo querdquo eacute uma expressatildeo

para indicar movimento ldquodesdobradardquo em forma de peacutes daacutectilos acentuando-se o ldquoArdquo

(A ca da pas so que) O verso traz a informaccedilatildeo de ldquoiradordquo por meio da sequecircncia

tambeacutem natildeo sinteacutetica ldquocheio de irardquo assim como da informaccedilatildeo relativa ao ruiacutedo das

flechas Sob o aspecto da sonoridade o verso soa de outro modo reservando o uso de

siacutelabas iniciadas por consoantes oclusivas na associaccedilatildeo com o movimento aacutegil brusco

de Apolo que pode ser entrevisto pela sequecircncia aliterante ndash A cada passo que daacute ndash

188

enquanto emprega as fricativas quando a informaccedilatildeo semacircntica refere-se ao som das

fechas que passam a soar como um zumbido os objetos a produzirem sons ao passar

pelo ar ldquocheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo Uma possiacutevel sensaccedilatildeo de frouxidatildeo do

verso deve advir do efeito mais tecircnue menos contundente em relaccedilatildeo ao texto grego e a

uma soluccedilatildeo como a de Odorico Mendes Os versos no entanto ainda que tambeacutem

possam parecer desequilibrados nos agrupamentos de iacutecones sonoros e incertos no

sentido respondem a exigecircncias baacutesicas que podemos atribuir a Nunes da informaccedilatildeo

relevante agrave narrativa e ao padratildeo riacutetmico-meacutetrico

Vejamos em seguida a versatildeo de Haroldo de Campos

Entre os tradutores estudados Campos eacute o uacutenico cuja trajetoacuteria reflexiva

vincula-se agraves teorizaccedilotildees acerca dos signos da linguagem poeacutetica e da traduccedilatildeo de

poesia Assim seus pressupostos expliacutecitos permitem antever a valorizaccedilatildeo das relaccedilotildees

som-sentido ou da ldquoiconicidade do signordquo184

Haacute criacuteticas como uma recentemente

manifesta em livro185

que atribuem equivocadamente ao poeta e tradutor a convicccedilatildeo

de que para a traduccedilatildeo ser criativa eacute necessaacuterio e desejaacutevel que o ldquoconteuacutedordquo seja

desconsiderado ou modificado valorizando-se as traduccedilotildees que assim procedem A

criacutetica pueril revela desconhecimento do trabalho teoacuterico e tradutoacuterio de Haroldo que se

dedicou a demonstrar a inadequaccedilatildeo em traduccedilatildeo poeacutetica de se conferir a primazia a

uma suposta ldquofidelidade ao sentidordquo como jaacute se abordou neste estudo sem entretanto ndash

e evidentemente ndash deixaacute-lo de lado Vejamos as caracteriacutesticas destas soluccedilotildees do

tradutor considerando seu arcabouccedilo teoacuterico e convicccedilotildees sobre a praacutetica do traduzir

ldquoAgrave espaacutedua do iracundo retiniam flechasrdquo incorpora todas as informaccedilotildees do

verso grego (do ombro de Apolo irado ressoaram as flechas) e neste caso apenas elas

(embora Haroldo se valha frequentemente de enjambement) O uso do verbo no

passado embora no imperfeito guarda relaccedilatildeo com o uso homeacuterico que natildeo adota

verbos no presente como o fez neste caso Odorico Mendes chama a atenccedilatildeo a escolha

de verbo derivado daquele que Odorico empregou (tinir retinir) indicando a referecircncia

agrave traduccedilatildeo anterior considerada ldquotranscriadorardquo por Campos Tambeacutem se pode notar o

184ldquoA traduccedilatildeo criativa [] uma praacutetica voltada para a iconicidade do signordquo CAMPOS H ldquoTraduccedilatildeo

ideologia e histoacuteriardquo (1984) 185ABRAMO C W O Corvo ndash Gecircnese Referecircncias e Traduccedilotildees do Poema de Edgar Allan Poe Satildeo

Paulo Hedra 2011

189

uso da preposiccedilatildeo ldquoagraverdquo ligada a ldquoespaacuteduardquo soluccedilatildeo conveniente para dar a entender que

as flechas partiam do ombro apoliacuteneo recurso de que se valera tambeacutem Mendes (ldquoao

ombrordquo) O dodecassiacutelabo parece acomodar perfeitamente os elementos que dando

conta plena do sentido satildeo palavras que podem atender ao referencial do paramorfismo

relativo agrave dimensatildeo icocircnica do verso note-se a sucessatildeo de cinco oclusivas

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas

A reiteraccedilatildeo atende em quase todo o verso agrave necessidade de presenccedila

onomatopaica com niacutetida presenccedila icocircnica as ocorrecircncias se dividem em dois grupos

se considerarmos a cesura na sexta siacutelaba trecircs antes desta e duas apoacutes sendo que

ademais a vogal aberta em ldquoflechasrdquo reverbera a vogal aberta em ldquoespaacuteduardquo

finalizando o verso com a ecircnfase desejada que sugere a ampliaccedilatildeo da accedilatildeo de Apolo A

escolha de ldquoespaacuteduardquo em vez de ombros chama a atenccedilatildeo embora o relativo

preciosismo vocabular natildeo seja estranho agrave assumida tendecircncia ldquobarroquizanterdquo da obra

do poeta e tradutor a opccedilatildeo pelo vocaacutebulo claramente sugere a preocupaccedilatildeo com as

ocorrecircncias aliterantes e assonantes aleacutem do mais o fonema a atribui forccedila agrave

ldquoexplosatildeordquo do p na segunda siacutelaba do verso promovendo a intensidade do iniacutecio da

accedilatildeo

Por sua vez o verso ldquoHorriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteordquo tambeacutem

encerra toda a informaccedilatildeo comunicada pelo verso homeacuterico (o ruiacutedo ou estrondo ou

estreacutepito que nasceu ou brotou ou surgiu do arco prateado) A escolha de ldquoclangorrdquo

enfatiza no plano semacircntico a natureza metaacutelica estridente do som envolvido na accedilatildeo

ao mesmo tempo em que o ldquosignificanterdquo traz a dimensatildeo grave ressoante das vogais

fechadas associadas agraves consoantes explosivas (ou oclusivas) O verso constitui um

verdadeiro modelo dificilmente superaacutevel de relaccedilatildeo som-sentido ou para

relembrarmos o referencial jakobsoniano de projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma

observem-se as notaccedilotildees (feitas com diferentes marcas) de correspondecircncias internas agrave

linha que procuram assinalar as reiteraccedilotildees de vogais consoantes fricativas e

explosivas e dos segmentos paronomaacutesticos

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo

190

Novamente o uso de vocabulaacuterio ldquopreciosordquo sugestivo do veio barroco do

escritor serve para trazer elevaccedilatildeo ao verso adequada ao contexto eacutepico

Verifiquemos ainda com objetivo de complementaccedilatildeo a traduccedilatildeo de Andreacute

Malta Campos aqui incluiacuteda pelo interesse de sua especificidade meacutetrica e pela

preocupaccedilatildeo (jaacute referida) do tradutor em manter na recriaccedilatildeo as ocorrecircncias dos

epiacutetetos empregando para eles as mesmas palavras a cada apariccedilatildeo

[E jaacute dos cimos do Olimpo baixou encolerizado (44)]

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado (46)

[deus]

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado) (49)

Um elemento a se destacar nesta versatildeo eacute o uso do epiacuteteto ldquoencolerizadordquo

correspondente nesse verso agrave palavra grega χωoμενοιo (khoomenoio) Conforme jaacute foi

mencionado ocorre no verso 46 do poema homeacuterico a repeticcedilatildeo da palavra integrante do verso

44 χωόμενος (khooacutemenos) mas como se pode ver com mudanccedila de sua terminaccedilatildeo Fiel a

sua proposta de conservar em sua traduccedilatildeo a mesma palavra relativa agravequela que define um

epiacuteteto no texto grego o tradutor usa o mesmo adjetivo (forma do particiacutepio do verbo em

portuguecircs) nos dois versos em questatildeo como se pode ver nas citaccedilotildees O verso de Malta feito

de duas redondilhas maiores (conforme se comentou antes) apresenta uma cesura niacutetida apoacutes o

primeiro segmento que mais concentra o efeito sonoro referente ao clangor ou seja o aspecto

icocircnico do verso

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado

A escolha da palavra ldquoestrepitaramrdquo permite por si soacute a recriaccedilatildeo de efeito

anaacutelogo ao do texto grego a seguinte repeticcedilatildeo de t (pela providecircncia da opccedilatildeo por

ldquosetasrdquo) e a ocorrecircncia de br que ecoa tr completam a sonoridade no entanto esta

perde forccedila com o uso do adjetivo resultando em desequiliacutebrio esteacutetico perceptiacutevel da

audiccedilatildeo atenta do verso O mesmo natildeo acontece com o verso 49

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

191

Como se pode ver o efeito do ruiacutedo distribui-se por todo o verso atribuindo

forccedila maior ao conjunto e maior equiliacutebrio que resulta em melhor resultado esteacutetico O

uso de ldquoterriacutevelrdquo cuja vogal tocircnica marca a cesura dos hemistiacutequios permite o efeito de

ecircnfase e agudeza sugerido pelo fonema i O tradutor adotou a soluccedilatildeo dos parecircnteses

ao que parece pela questatildeo sintaacutetica de independecircncia do verso de modo a evitar o

ponto final no proacuteprio verso e no anterior no grego os versos 48 e 49 terminam em

ldquoponto em cimardquo equivalente aos dois pontos em portuguecircs

ἕζετ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπάνευθε νεῶν μετὰ δ᾽ ἰὸν ἕηκε

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

Os dois pontos envolvem o prenuacutencio a soluccedilatildeo de Malta manteacutem a

ldquoautonomiardquo do verso 49 e ao mesmo tempo a expectativa ligada ao conjunto de dois

versos (48 e 49)

E entatildeo pondo-se bem longe das naus lanccedilou uma flecha

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

Esse procedimento ilustra a caracteriacutestica de apego agrave literalidade manifesta na

traduccedilatildeo de Malta coerentemente aos seus pressupostos de equivalecircncia (inclusive

quanto agrave versificaccedilatildeo) ao verso grego Como eacute faacutecil verificar os versos do tradutor

atendem ao criteacuterio de correspondecircncia de sentido com o original

Observemos em seguida os primeiros sete versos tambeacutem do Canto I da Iliacuteada

Mas antes eacute oportuno fazer-se uma observaccedilatildeo importante sobre o processo de anaacutelise

que estaacute em andamento

Natildeo eacute minha pretensatildeo exatamente propor um modelo de anaacutelise em meu

modo de ver anaacutelise tambeacutem eacute criaccedilatildeo ou re-criaccedilatildeo ainda que baseada em aspectos

intratextuais pois eacute um modo de leitura e esta sempre seraacute tambeacutem re-criadora O

objetivo pretendido aqui eacute tatildeo-somente indicar possibilidades (perseguidas de modo

um tanto erraacutetico sem a formulaccedilatildeo de procedimentos-padratildeo ou metodologia fixa) de

leitura analiacutetica que colaborem para o re-conhecimento de caracteriacutesticas do texto

192

poeacutetico original ou traduzido na dimensatildeo interna a uma estrutura tal como

identificada e na dimensatildeo comparativa entre estruturas de textos diversos

Iliacuteada I 1-7

ΜῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

A ira (duradoura) canta Deusa do Pelida Aquiles

οὐλομένην ἣ μυρί ᾽Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε

funesta que dez mil (miriacuteade) aos aqueus dores fez

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

muitas valentes almas no Hades lanccedilou precocemente

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν

de heroacuteis e a eles mesmos presa produziu para os catildees

οἰωνοῖσί τε πᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

e para as aves todas de Zeus cumpria-se a decisatildeo

ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε

desde que primeiro apartaram-se em discoacuterdia

Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

O Atrida chefe de homens e o divino Aquiles

E agora as traduccedilotildees de Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de

Campos

Odorico Mendes (I 1-6)

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

193

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Carlos Alberto Nunes

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Haroldo de Campos

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles (7)

Pensemos primeiramente na traduccedilatildeo de Odorico apenas para conferecircncia

faccedilamos a escansatildeo dos versos do fragmento assinalando-se suas siacutelabas tocircnicas

Can ta- me oacute deu sa do Pe lei o A qui les

A i ra te naz que lu tu o sa aos Gre gos

Ver des no Or co lan ccedilou mil for tes al mas

Cor pos de He roacuteis a catildees e a bu tres pas to

Lei foi de Jo ve em ri xa ao dis cor da rem

O de ho mens che fe e o Mir mi don di vi no

194

Os versos se dividem entre aqueles com tocircnicas predominantes na quarta e

oitava siacutelabas (saacuteficos) e aqueles com tocircnica predominante na sexta siacutelaba (heroacuteico)

contudo dois deles (quarto e quinto) permitem a leitura com acentos nas posiccedilotildees pares

o que ocasiona certa indefiniccedilatildeo em seu esquema meacutetrico-riacutetmico que favorece certa

aceleraccedilatildeo e ritmo mais marcado pelos reiterados acentos que ocasionam sequecircncias

binaacuterias (jacircmbicas) nos segundos hemistiacutequios caso este tambeacutem do terceiro verso

Note-se tambeacutem a sequecircncia ternaacuteria decrescente (dactiacutelica) no iniacutecio de todos os versos

do fragmento com exceccedilatildeo do terceiro com ceacutelula binaacuteria descendente (trocaico)

todos tecircm em comum portanto o acento na primeira siacutelaba (o uacuteltimo permite a leitura

do acento em ldquoordquo) Quanto agraves sinalefas elas se datildeo de maneira usual com elisotildees entre

vogais aacutetonas ou entre aacutetona e tocircnica ou semitocircnica (caso de ldquoA irardquo seria possiacutevel a

leitura sem a elisatildeo mas isso ocasionaria um esquema atiacutepico ndash acentuado na quinta

siacutelaba ndash do decassiacutelabo claacutessico usado por Odorico nas variantes de saacutefico e heroacuteico)

Tratemos agora do acircmbito semacircntico do trecho O iniacutecio da Iliacuteada eacute jaacute

revelador da concisatildeo do tradutor da eficiecircncia com que procura re-produzir o

ldquosentidordquo depreendido do texto grego186

exercitando uma espeacutecie de paraacutefrase187

poeacutetica com grande acuidade na escolha das palavras e com um engendramento

sintaacutetico que resulta em tom ao mesmo tempo elevado e contundente pela densidade Eacute

mesmo impressionante verificar-se que em apenas seis versos sem basear-se na noccedilatildeo

estrita de equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo Odorico alcance sugerir todo o sentido

essencial188

do que o texto grego comunica Fazendo-se outra paraacutefrase desta vez

apenas referencial ou seja no acircmbito da funccedilatildeo cognitiva da linguagem seraacute possiacutevel

evidenciar o que da informaccedilatildeo ldquooriginalrdquo se pode obter pelos versos concisos de

186 Relembrem-se as palavras de Nienkoumltter antes citadas 187Paraacutefrase ldquointerpretaccedilatildeo ou traduccedilatildeo em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua

letra metaacutefraserdquo (Houaiss) A palavra se origina do grego composta de (paraacute)ndash ao lado junto a

cerca de e (phraacutesis) ndash linguagem discurso frase Eacute nesse sentido natildeo vinculado a um

referencial teoacuterico especiacutefico que o termo eacute aqui empregado Mencione-se a diferenccedila em relaccedilatildeo ao

conceito de Newmark para quem a paraacutefrase escaparia a qualquer viacutenculo com o texto na liacutengua de

partida consistindo em ldquouma ampliaccedilatildeo ou re-escritura livre do significado de um periacuteodordquo (1981 apud

Barbosa 1990 54) 188 Sobre esse aspecto do ldquosentido essencialrdquo desapegado da literalidade cabe mencionar guardadas as devidas diferenccedilas de contexto e proposta a primeira etapa do modelo operacional proposto por Nida que

prevecirc trecircs etapas no processo tradutoacuterio ldquoreduccedilatildeo do texto original a seus nuacutecleos mais simples e

semanticamente evidentes transferecircncia do significado da liacutengua original para a liacutengua da traduccedilatildeo em

um niacutevel estruturalmente simples geraccedilatildeo de uma expressatildeo etiliacutestica e semanticamente equivalente na

liacutengua da traduccedilatildeordquo Para Nida ldquoo tradutor realmente competente traduz lsquounidades de significadorsquordquo em

vez de reproduzir ldquounidades estruturaisrdquo (1964 apud Barbosa 1990 33)

195

Mendes A paraacutefrase seraacute uma providecircncia de auxiacutelio agrave anaacutelise seu uso me parece um

modo de se verificar a presenccedila do sentido geral ou seja das informaccedilotildees ldquoessenciaisrdquo

na traduccedilatildeo cuja proposta natildeo eacute a ldquofidelidaderdquo em termos de equivalecircncia ldquopela letrardquo

isto eacute pela ldquoliteralidaderdquo (palavra-a-palavra) mas sim (como jaacute foi apontado) por um

processo de ldquoconstruccedilatildeo paralelardquo do conjunto de informaccedilotildees depreendido do texto-

fonte que se vale do uso de sinoniacutemia afim com o objetivo manifesto de siacutentese ou

concisatildeo e com o objetivo (dedutiacutevel pela observaccedilatildeo dos versos) de ldquodensidade

sonorardquo Diremos entatildeo parafraseando as notaccedilotildees ldquoliteraisrdquo (essas palavras consistem

apenas em algumas primeiras escolhas comuns usuais nos dicionaacuterios entre outras

possibilidades) que eacute feito o pedido agrave Deusa de que ela cante a ira funesta de Aquiles

Pelida (filho de Peleu) que dez mil dores trouxe aos aqueus (gregos) e que lanccedilou

prematuramente ao Hades muitas almas valentes de heroacuteis e as presas aos catildees e agraves

aves cumprindo-se a lei de Zeus desde que em discoacuterdia se separaram o chefe dos

homens o Atrida e o divino Aquiles

Segue-se nova paraacutefrase desta vez da traduccedilatildeo de Mendes o primeiro verso

saacutefico expressa perfeitamente a mensagem conativa agrave Deusa introduzindo o nome do

heroacutei para em seguida atribuir-lhe a ira tenaz (persistente) lutuosa aos gregos e informar

que ela lanccedilou verdes (jovens) no Orco (o reino dos mortos o Hades) mil almas fortes

corpos que satildeo pasto a catildees e abutres anuncia entatildeo que a Lei (cumprida) foi de Jove

(Juacutepiter versatildeo latina de Zeus) e aponta que estatildeo em rixa por terem discordado o chefe

dos homens e o Mirmidon (epocircnimo do heroacutei Aquiles)

Jaacute se pode perceber que o sentido geral estaacute mantido as informaccedilotildees relevantes

estatildeo todas presentes Ao menos o que podemos apreender hoje dos significados do

texto grego lido sob nosso ponto de vista189

Montemos contudo ndash para evidenciar as

relaccedilotildees entre um conjunto de informaccedilotildees e outro ndash uma relaccedilatildeo de correspondecircncias

entre as palavras ou grupo de palavras postos como traduccedilotildees ldquoliteraisrdquo junto aos

versos gregos (apenas uma escolha ldquoimediatardquo frise-se) e as palavras que a eles

correspondem usadas por Odorico

189 A observaccedilatildeo procura explicitar um ponto de vista sobre a problemaacutetica jaacute discutida Ainda que o

significado seja mutaacutevel como jaacute se comentou largamente o processo histoacuterico envolve a ldquofixaccedilatildeordquo de

significados de referecircncia que permitem o acesso sob a oacuteptica proacutepria de quem lecirc e do contexto ao qual

pertence

196

Notemos alguns pontos na primeira linha da ldquotabelardquo aparece de um lado a

palavra ldquoirardquo correspondente a (meacutenis) esta palavra pode ser traduzida

simplesmente por ldquofuacuteriardquo ldquoirardquo ldquocoacutelerardquo etc (no Greek-English lexicon de Liddell and

Scott190

μῆνις [] mdash ldquowrathrdquo) Em Odorico vemos ldquoira tenazrdquo Diga-se no entanto

que o significado eacute previsto no Dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira191

ldquoira

190 LIDDELL amp SCOTT Greek-English lexicon Londres Clarendon Press ndash Oxford s d (O dicionaacuterio

passaraacute a ser referido neste estudo como Liddell amp Scott) 191 PEREIRA ISIDRO S J Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego Porto Livraria Apostolado

da Imprensa 1984 (Ao longo do texto o Dicionaacuterio seraacute referido pela forma usual que toma o nome do

autor Isidro Pereira)

197

duradoira ressentimentordquo192

entre os significados de ldquotenazrdquo no Dicionaacuterio Houaiss

constam ldquodifiacutecil de acabarrdquo e ldquopersistenterdquo um caso em que o tradutor se vale de duas

palavras para abranger com ecircnfase o sentido de persistecircncia resistecircncia da ira do

heroacutei

Na segunda linha haacute ldquolutuosardquo correspondendo a ldquofunestardquo por οὐλομένην

(oulomeacutenen) acusativo feminino singular de οὐλoacuteμν no Liddell amp Scott

ldquodestructive banefulrdquo (segundo o Houaiss193

ldquodestrutivo mortiacutefero pernicioso

nocivordquo) no Isidro Pereira e no Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquopernicioso funestordquo

ldquoLutuosordquo segundo o Houaiss194

eacute o ldquoque evoca ou simboliza a ideia de morte

fuacutenebre luacutegubrerdquo a palavra eacute um dos sinocircnimos relacionados no Dicionaacuterio para

ldquofunestordquo (ldquoque causa a morte fatal mortalrdquo) Natildeo passa despercebida entretanto a

semelhanccedila parcial da palavra oulomeacutenen com lutuoso um possiacutevel iacutendice da razatildeo da

escolha do tradutor Aleacutem disso a escolha explicita o luto pela morte dos gregos

motivo das ldquodez mil doresrdquo (uma quantidade a sugerir o nuacutemero ldquosimboacutelicordquo

indefinido de ldquomuitasrdquo) que a ira provocou nos aqueus (ldquodez milrdquo mortes portanto)

passagem transformada ou concentrada por Odorico diretamente na afirmaccedilatildeo de ldquomil

fortes almasrdquo lanccediladas ao ldquoOrcordquo (ldquoo infernordquo segundo o Houaiss) ldquoVerdes no Orco

lanccedilourdquo ademais daacute conta da informaccedilatildeo correspondente a προΐαψεν (proiapsen)

verdes eacute soluccedilatildeo relativa a pro indicativo da precocidade prematuridade do

lanccedilamento ao Hades dos heroacuteis (mortos jovens portanto) O tradutor inclui a palavra

ldquocorposrdquo que associada a ldquopastordquo cumpre o sentido de que os heroacuteis almas atiradas ao

Hades tornaram-se presas dos catildees e aves embora em grego aluda-se a ldquotodas as avesrdquo

a opccedilatildeo por ldquoabutresrdquo permanece com o ganho de uma imagem intensa no mesmo

acircmbito semacircntico

Quanto agrave sonoridade observemos inicialmente correspondecircncias focircnicas nos

versos gregos transliterados

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Aquileos

192 A mesma definiccedilatildeo (ldquoira duradoura ressentimentordquo) eacute encontrada no recente Dicionaacuterio grego-

portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc vol 3 2008) Ambas as definiccedilotildees reportam ao Bailly ndash Dictionaire Grec-

Franccedilais ldquoμήνις [] colegravere durable ressentimentrdquo (Bailly Anatole Dictionaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2005 (1ordf ediccedilatildeo 1895) 193 HOUAISS A (editor) Dicionaacuterio inglecircs-portuguecircs Rio de Janeiro Record 1982 194Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001

198

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

ἐξοὗδὴ τὰ πρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave ta procirc tadiasteacute tem epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

Seguem-se os versos com as unidades de correspondecircncia assinaladas com

diferentes notaccedilotildees de destaque

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Akhileos

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

199

ἐξοὗδὴ τὰπρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave tagraveprocirc tadiasteacute ten epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

As marcaccedilotildees ainda que limitadas e um tanto imprecisas podem indicar a

intrincada teia de correspondecircncias sonoras do texto grego Haacute como se pode ver

muitos aspectos de iconicidade que se sobressaem do signo verbal simboacutelico Para

efeito ilustrativo isolemos algumas das unidades demarcadas por exemplo a de

consoantes oclusivas sonoras surdas e aspiradas195

(satildeo incluiacutedas tambeacutem consoantes

duplas por envolverem dois sons consonacircnticos consecutivos o primeiro deles

oclusivo)

de Th P d kh

kh ge th k

p drsquo th os kh d pr ps

t t khek

t p D t t B

ks d t pr t d t t p t

tr d t ks dr k d kh

195 Haacute divergecircncias no acircmbito das hipoacuteteses acerca dos fonemas do grego antigo Para efeito praacutetico de

referecircncia adota-se aqui uma categorizaccedilatildeo usualmente aceita nos atuais cursos de liacutengua e literatura

grega antigas que pode ser assim representada (relativa agraves consoantes) (ver paacutegina seguinte)

Fonte Ribeiro Juacutenior W A Didascalia Portal Graecia Antiqua Satildeo Carlos Disponiacutevel em

wwwgreciantigaorg

200

Ira discoacuterdia morte os fonemas oclusivos sugerem uma batida belicosa uma imagem

de tensatildeo e conflito (primeiridade) Vejamos sob este aspecto restrito o que podemos

perceber do texto de Mendes mas antes assinalando tambeacutem algumas das diferentes

relaccedilotildees de semelhanccedila focircnica que se urdem no texto

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Repeticcedilotildees de consoantes oclusivas de constritivas fricativas ocorrecircncias de

primeiridade a sugerirem tensatildeo embate divergecircncia paronomaacuterias como ldquoirardquo e

ldquorixardquo ldquopeleiordquo e ldquoleirdquo a sugerirem tambeacutem oposiccedilatildeo De secundidade podemos

notar posiccedilotildees de palavras que indicariam correspondecircncias com a situaccedilatildeo a que o

texto se refere ldquoverdesrdquo no iniacutecio do verso em correspondecircncia exata com a palavra

ldquocorposrdquo inicial do verso seguinte a indicar a presenccedila prematura dos corpos lanccedilados

ao Hades como almas (palavra que ocupa posiccedilatildeo de final de verso oposta a ldquoverdesrdquo)

a palavra ldquorixardquo no meio do verso podendo indicar a intervenccedilatildeo de Zeus a pedido de

Teacutetis na guerra que assim teria se posto em meio agrave disputa de Agamemnon e Aquiles

posicionados de um lado e outro no verso seguinte (ldquorixardquo tem penso referecircncia

ambiacutegua no verso tanto pode referir-se agravequela entre os guerreiros como agrave participaccedilatildeo

do deus)

No texto grego chama a atenccedilatildeo a posiccedilatildeo intermediaacuteria de ldquoDiogravesrdquo no quinto

verso (para dizer de uma possiacutevel atribuiccedilatildeo de secundidade) centro do poder e

interventor nos destinos dos guerreiros e da guerra

Mas o deus que se intrometera antes e ocasionara a situaccedilatildeo que levaria agrave

discoacuterdia entre o ldquochefe de homensrdquo e o pelida fora Apolo filho de Zeus e Latona Seraacute

feito adiante algum comentaacuterio tambeacutem acerca dos dois versos seguintes aos

propostos para anaacutelise que se referem a Phebo

201

Prossigamos observando a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes conferindo o

esquema riacutetmico por ele adotado por meio da marcaccedilatildeo das tocircnicas do verso

Can ta- me a coacute le ra ndash oacute deu sa ndash funes ta de Aqui les Pe li da

cau sa que foi de os A qui vos so fre rem tra ba lhos sem

[ con ta

e de bai xa rem pa ra o Ha des as al mas de he roacuteis nu me ro

[sos

e es cla re ci dos fi can do e les proacute prios aos catildees a ti ra dos

e co mo pas to das a ves Cum priu-se de Zeus o de siacuteg nio

des de o prin ciacute pio em que os dois em dis coacuter dia fi ca ram

[cin di dos

o de A treu fi lho se nhor dos guer rei ros e A qui les di vi no

O primeiro verso eacute modelar por diversas razotildees Primeiro pela perfeita

prosoacutedia com coincidecircncia entre as posiccedilotildees das tocircnicas exigidas pelo esquema

hexameacutetrico (ternaacuterio descendente) e as siacutelabas tocircnicas das palavras Embora esta seja

uma condiccedilatildeo baacutesica que se repetiraacute em todos os versos em muitos deles na traduccedilatildeo

de Nunes a primeira siacutelaba meacutetrica tocircnica prevista pelo modelo do verso corresponde a

siacutelabas gramaticais aacutetonas caso dos versos 3 4 5 e 7 aqui apresentados iniciados pelos

conectivos ldquoerdquo ou pelo artigo ldquoordquo Este expediente no entanto eacute frequente em

adaptaccedilotildees do antigo sistema quantitativo para o sistema qualitativo a proacutepria

sequecircncia de versos marcados pelas tocircnicas poeacuteticas impotildee a leitura de modo a tornar

tocircnica a primeira siacutelaba de cada verso ainda que a ela natildeo corresponda uma tocircnica

gramatical veremos isso adiante quando tratarmos mais detidamente da questatildeo da

adaptaccedilatildeo do sistema quantitativo ao qualitativo e do hexacircmetro portuguecircs no toacutepico

relativo ao estudo para proposiccedilatildeo de um formato riacutetmico para a traduccedilatildeo da eacutepica

A que pese a apontada monotonia dos versos hexacircmetros de Nunes agrave

semelhanccedila dos versos baseados em peacutes nas liacutenguas anglo-saxocircnicas196

eacute como jaacute se

196 Diz Wolfgang Kayser sobre o assunto ldquoA analogia fez parecer possiacutevel a reproduccedilatildeo do verso antigo

nas liacutenguas germacircnicas as longas substituiacuteram-se pelas tocircnicas as breves pelas aacutetonas [] Na verdade o

encontro com a meacutetrica antiga foi de fatiacutedico significado para a meacutetrica germacircnica [] [Ele] levou agrave

restriccedilatildeo [] [da] liberdade [antes existente na meacutetrica germacircnica] e [] agrave construccedilatildeo com peacutes iguaisrdquo

202

disse notaacutevel a sua difiacutecil empreitada e a competecircncia com que a realizou Talvez este

seja o aspecto mais importante a se assinalar em sua recriaccedilatildeo da eacutepica por ser um

criteacuterio fundamental de correspondecircncia ao verso antigo que o distingue dos demais

tradutores estudados neste trabalho Sua noccedilatildeo de manter a organizaccedilatildeo do verso em peacutes

anaacutelogos aos do texto grego eacute fator determinante das caracteriacutesticas dos resultados por

ele obtidos

Sobre isso observe-se preliminarmente que de fato a medida em siacutelabas natildeo

deve ser vista como a referecircncia primeira em seus versos conforme observou J A

Oliva Neto (em trecho jaacute citado) em vez dela o fundamento de sua versificaccedilatildeo eacute a

ldquoceacutelula dactiacutelicardquo jaacute que estas se sucedem ininterruptamente pouco importando o ponto

em que cada verso termina ndash quanto a esse aspecto haacute a considerar tambeacutem os

enjambements frequentes na eacutepica que pela via semacircntico-sintaacutetica relativizam a

delimitaccedilatildeo dos versos Embora assim seja o alongamento decorrente da obrigatoacuteria

sequecircncia de seis daacutectilos em cada linha leva a um procedimento analiacutetico (termo

entendido aqui como oposto a ldquosinteacuteticordquo197

) na busca de correspondecircncia com o

original que envolve a inclusatildeo de acreacutescimos de significados em relaccedilatildeo a esse

Faccedilamos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo adotada como referecircncia e os elementos que a eles correspondem na versatildeo de

C A Nunes

KAYSER W Anaacutelise e interpretaccedilatildeo da obra literaacuteria Coimbra Armeacutenio Amado Editor Satildeo Paulo

Livraria Martins Fontes 1976 p 84 Este tema seraacute novamente abordado em outro toacutepico deste estudo 197 Conforme jaacute foi referido neste estudo e assinalou tambeacutem Oliva Neto a eacutepica grega de teor

narrativo natildeo se faz com base no valor da siacutentese natildeo sendo o procedimento de Nunes portanto avesso

aos poemas que traduz

203

_________________________________________________________________________

Embora natildeo tenhamos o propoacutesito geral de quantificaccedilatildeo mas sim de

identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas e de sua significaccedilatildeo para o resultado o uso que temos

feito das relaccedilotildees de correspondecircncia baseiam-se no procedimento de ldquotabelasrdquo agrave

semelhanccedila do que eacute proposto por P H Britto Natildeo se considera de interesse no

entanto propriamente enumerar todas as ocorrecircncias de aspectos identificados com

determinado referencial teoacuterico visando a um julgamento O reconhecimento de

aspectos qualitativos de procedimento pode contudo dar-nos alguma identificaccedilatildeo de

melhor realizaccedilatildeo tendo em vista como base de referecircncia a proposta de traduccedilatildeo e

sua coerecircncia interna

As traduccedilotildees ateacute agora vistas apresentam ndash para lembrarmos conceitos da

linguiacutestica contrastiva ndash transposiccedilatildeo e modulaccedilatildeo (ver notas 125 126 e 128) com

diversas ocorrecircncias Um caminho a seguir seria enumeraacute-las em cada uma das

204

traduccedilotildees mas essa perspectiva natildeo me parece promissora natildeo levaria a constataccedilotildees

frutiacuteferas para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo adotado a ocorrecircncia generalizada no entanto

ainda que em poucos exemplos atesta a importante obviedade (nem sempre

reconhecida) de que a traduccedilatildeo poeacutetica envolve a transformaccedilatildeo independentemente

dos procedimentos e criteacuterios de traduccedilatildeo adotados Aleacutem dos paracircmetros ldquoformaisrdquo que

determinam adequaccedilotildees e das soluccedilotildees semacircnticas e esteacuteticas definidas pela oacuteptica do

tradutor haacute a se considerar a proacutepria distacircncia entre as liacutenguas que ocasiona a

necessidade de abundantes ocorrecircncias como essas (duas palavras em vez de uma e

vice-versa inversotildees e deslocamentos ndash transposiccedilatildeo aparentes alteraccedilotildees na estrutura

semacircntica mas com o mesmo ldquoefeito geral de sentido denotativordquo ndash modulaccedilatildeo) Como

foi antes apontado o verso mais longo permite maior ldquoespaccedilo de manobrardquo ao uso

desses recursos visando agrave realizaccedilatildeo de seus objetivos de traduccedilatildeo seja no plano de

expressatildeo ou de conteuacutedo

A identificaccedilatildeo de omissotildees por sua vez ndash importante por dizer respeito agrave

presenccedila ou ausecircncia de informaccedilatildeo potencialmente relevante agrave narrativa ndash pode indicar

que estas tambeacutem ocorrem de modo independente da extensatildeo dos versos observemos

sua existecircncia nos hexacircmetros de Nunes Chama a atenccedilatildeo de imediato a ausecircncia da

informaccedilatildeo relativa a (pro) (de προΐαψεν proiapsen) ou seja da prematuridade do

lanccedilamento dos heroacuteis ao Hades ou da juventude desses heroacuteis (no verso de Nunes haacute

apenas a afirmaccedilatildeo ldquoe de baixarem ao Hadesrdquo) Haacute outro evento a se destacar a

informaccedilatildeo relativa a ἰφθίμους (iphthiacutemous) foi substituiacuteda por uma informaccedilatildeo diversa

ndash o sentido denotativo foi modificado portanto O adjetivo ἰφθμος (iphthimos) (que no

verso aparece no acusativo plural) eacute assim definido pelo Liddell amp Scott ldquostout strong

stal wartrdquo (palavras agraves quais se atribuem no Houaiss os significados de forte resoluto

corajoso decidido etc) assim eacute pelo Isidro Pereira ldquoforte robusto generoso

valenterdquo e pelo Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquovigoroso forte robusto valente

corajoso valorosordquo O sentido predominante de ldquovalenterdquo tratando-se de jovens heroacuteis

natildeo pode ser apreendido dos versos de Nunes em seu lugar aparece a palavra

ldquoesclarecidordquo que para o Houaiss significa ldquodotado de saber de conhecimentos que

possui nobreza ilustrerdquo Embora se possa aproximar o conceito de ldquopossuidor de

nobrezardquo agrave valentia do heroacutei o sentido denotativo imediato da palavra eacute bem diverso

daquele do adjetivo grego Estes dois eventos demonstram que embora com maior

ldquoespaccedilo de manobrardquo estes versos de Nunes trazem omissatildeo relativamente importante

205

(tendo-se em conta o conceito grego de heroacutei) e uma substituiccedilatildeo que tambeacutem o eacute (pela

mesma razatildeo)

Se haacute a possibilidade de se identificar uma omissatildeo nos versos de Odorico

Mendes (relativa a ldquodesde que primeirordquo [apartaram-se em discoacuterdia]) natildeo se pode

atribuir a ela a mesma importacircncia pelo teor quase redundante da informaccedilatildeo

Vejamos agora o que se pode observar de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem ou de

iconicidade perceptiacutevel nos versos

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Na linha de leitura que percorremos com a traduccedilatildeo anteriormente vista

destacamos inicialmente as consoantes que vislumbramos como potenciais participantes

das relaccedilotildees entre som e sentido Marcamos tambeacutem com as sublinhas as tocircnicas do

hexacircmetro

Embora este natildeo seja o foco do procedimento adotado recorramos a alguma

quantificaccedilatildeo a fim de buscar possiacuteveis explicaccedilotildees para um dado de percepccedilatildeo de que

falaremos pouco adiante As repeticcedilotildees prosseguem em todos os versos somando 52

ocorrecircncias de oclusivas no total com presenccedila predominante do d (20 ocorrecircncias)

seguida da do k (15 ocorrecircncias) da do p (7 ocorrecircncias) etc A versatildeo de Odorico

por sua vez apresenta o total de 28 ocorrecircncias de oclusivas sendo 9 de d 6 de k 6

de t 3 de p etc Considerando-se a proporcionalidade de ocorrecircncias com o nuacutemero

de siacutelabas poeacuteticas de cada um dos conjuntos de versos observados (no caso de Odorico

6 versos com 10 siacutelabas cada = 60 siacutelabas no caso de Nunes 7 versos com 16 siacutelabas

cada) chegamos ao resultado de que para os versos de Nunes terem a mesma proporccedilatildeo

de ocorrecircncia de fricativas que a dos versos de Odorico deveratildeo contar com 522

siacutelabas Como vimos os versos de Nunes contam com 52 siacutelabas ou seja uma

206

ocorrecircncia de oclusivas proporcional agravequela apresentada pelos versos de Odorico

Tambeacutem os fonemas predominantes satildeo na ordem decrescente d e k com a

diferenccedila de que o t aparece na mesma quantidade do k

Havendo a mesma proporccedilatildeo de ocorrecircncia dessas consoantes entre ambas as

traduccedilotildees seraacute considerada pelo criteacuterio da quantidade a mesma possibilidade de efeito

aliterativo ligado agrave ideia de embate conforme a nossa atribuiccedilatildeo interpretativa No

entanto o efeito parece menos niacutetido natildeo obstante a subjetividade da percepccedilatildeo a

distribuiccedilatildeo das oclusivas parece tornaacute-las menos marcantes e assim a citada relaccedilatildeo

som-sentido parece mais remota como perspectiva de leitura Algumas hipoacuteteses podem

ser consideradas mencionamos trecircs a maior quantidade de palavras natildeo possibilita

efeito anaacutelogo ao daquele ocasionado por uma quantidade menor delas ainda que na

mesma proporccedilatildeo a presenccedila marcante dos acentos uniformemente distribuiacutedos faz

recair a atenccedilatildeo auditiva agraves proacuteprias tocircnicas e a fonemas outros em que as tocircnicas

recaem a narrativa mais extensa favorece conforme a suposiccedilatildeo jaacute mencionada a

aproximaccedilatildeo dos versos longos agrave prosa deslocando a atenccedilatildeo agrave narrativa em si e

dificultando a apreensatildeo de efeitos sonoros Estamos num terreno em que a tentativa de

objetividade para avaliaccedilatildeo de resultados pouco pode colaborar ao menos ateacute onde

posso entrever suas possibilidades a afericcedilatildeo de qualidades esteacuteticas escapa agrave

mensuraccedilatildeo inevitavelmente recaindo em constataccedilotildees de ordem subjetiva

compartilhadas ou natildeo por outros leitores

De todo modo alguns efeitos satildeo ressaltados pela leitura atenta a paronomaacutesia

em ldquode Zeus o desiacutegniordquo quase anagramaacutetica a sucessatildeo dos d na sequencia ldquoos dois

em discoacuterdia ficaram cindidosrdquo em que as posiccedilotildees do fonema parecem indicar a

proacutepria separaccedilatildeo convertendo-se suas ocorrecircncias em iacutendices da posiccedilatildeo dos

discordantes Efeitos poeacuteticos que resistem ao fluxo narrativo e agrave aparente diluiccedilatildeo das

reiteraccedilotildees focircnicas

Passemos a examinar a traduccedilatildeo de Haroldo de Campos com a relaccedilatildeo de

correspondecircncias entre as palavras usadas por Campos e as da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo que

temos adotado como referecircncia

207

__________________________________________________________________________

De imediato sobressai no plano do conteuacutedo a variante relativa ao significado

de imperativo presente do verbo ndash(aeido ado) ao qual eacute

atribuiacutedo em primeiro lugar o sentido denotativo de ldquocantarrdquo ndash no entanto o Liddell amp

Scott registra aleacutem de ldquosingrdquo o significado de ldquochantrdquo que segundo o Houaiss pode

significar ldquocelebrar em versos ou cantordquo o Isidro Pereira por sua vez traz os

significados ldquocantar celebrar elogiarrdquo e o Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquocantar

celebrar cantar repetindo cantar refratildeo [etc]rdquo A opccedilatildeo de Campos eacute por ldquocelebrarrdquo

que permite ndash seratildeo feitas aqui diga-se observaccedilotildees de relaccedilotildees formais que podem

hipoteticamente ser determinantes nas escolhas do tradutor ndash dois tipos de ocorrecircncia

que seriam de interesse para o resultado de recriaccedilatildeo o primeiro a adequaccedilatildeo da

palavra ao esquema meacutetrico dodecassilaacutebico com a tocircnica da palavra ldquocelebrardquo

localizando-se na sexta siacutelaba do verso ou seja na posiccedilatildeo intermediaacuteria usual de pausa

(ou cesura) no dodecassiacutelabo segundo a repeticcedilatildeo de le (celebra do Peleio Aquiles)

208

em variantes aberta e fechadas Tambeacutem se nota a variaccedilatildeo dos significados comumente

atribuiacutedos a (oulomenen ndash conforme jaacute dito ldquoperdido arruinado

pernicioso funestordquo ndash Isidro Pereira) o tradutor prefere ldquoo irado desvariordquo

aparentemente ldquoafastando-se da letrardquo Entretanto eacute preciso considerar que o Liddell amp

Scott traz como referecircncia preliminar a seguinte indicaccedilatildeo para

(oulomenos) ldquoused as a term of abuserdquo (ldquousado como um termo de

abusordquo) o que sugere o ldquodesvariordquo na soluccedilatildeo de Campos (O adjetivo deriva-se do

verbo (ollumi ldquoto destroy make an end ofrdquo)) Uma hipoacutetese para a opccedilatildeo do

tradutor eacute a de que a palavra (oulomenen)manteacutem uma relaccedilatildeo

paronomaacutestica com (menin) lembrando que e

correspondem ambos a e em portuguecircs Ao utilizar ldquoo irado desvariordquo Campos inclui

a palavra ldquoirardquo por meio do adjetivo e a faz reverberar no substantivo numa disposiccedilatildeo

anagramaacutetica (desvario) criando uma dupla paronomaacutesia que pode associar-se na

leitura ao sentido de insistente persistente Um ganho portanto de iconizaccedilatildeo do

siacutembolo (na classificaccedilatildeo de Peirce um ldquolegissigno icocircnico remaacuteticordquo assim como

outros exemplos aqui dados) que permite a perspectiva de uma relaccedilatildeo som-sentido

Deve-se considerar ademais que a soluccedilatildeo adotada se adeacutequa agraves exigecircncias do padratildeo

meacutetrico com a tocircnica da palavra ldquodesvariordquo na posiccedilatildeo da cesura

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem a ausecircncia (omissatildeo) do sentido de ldquojovemrdquo tal

como na traduccedilatildeo de Nunes A despreocupaccedilatildeo de manter presente esse significado

talvez se deva em ambos os casos agrave relativa obviedade da informaccedilatildeo pelas

caracteriacutesticas da cultura grega no caso de Odorico no entanto essa informaccedilatildeo eacute

mantida e portanto escolhida para permanecer Se poreacutem haacute tal omissatildeo na versatildeo de

Campos natildeo haacute aquela de Mendes ldquodesde que por primeiro a discoacuterdia []rdquo manteacutem a

ideia de ldquoprimeirordquo de anterioridade do desentendimento que o uacuteltimo desprezou O

verso seguinte por sua vez eacute traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do verso grego ldquoO Atreide chefe de

homens e o divino Aquilesrdquo por ldquoAtreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutesrdquo

Algumas preacutevias suposiccedilotildees satildeo portanto relativizadas neste breve conjunto de

versos todas as traduccedilotildees apresentam omissatildeo a versatildeo de Odorico natildeo apresenta mais

omissotildees que as demais Campos acomoda diante dessa possibilidade uma

correspondecircncia palavra-a-palavra em seu dodecassiacutelabo mantendo aleacutem do mais

proximidade sonora com o original (como na opccedilatildeo por ldquoatreiderdquo) As ideias de

concisatildeo e concentraccedilatildeo de efeitos em Odorico e em Campos correspondem ao que

209

ocorre neste trecho em Nunes os ldquoefeitosrdquo tecircm presenccedila anaacuteloga agraves versotildees dos demais

(embora natildeo se associem agrave siacutentese e possivelmente por isso natildeo parecem causar a

mesma impressatildeo de concentraccedilatildeo) Mas para se afirmar isso devemos conferir a

ocorrecircncia das consoantes (oclusivas) tomadas como referecircncia potencial da poeticidade

pela repeticcedilatildeo

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles

De novo quantificando para estabelecer referecircncias as opccedilotildees do tradutor

parecem coerentes com o referencial por ele expliacutecito da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

a frequecircncia das oclusivas eacute ligeiramente maior que a das demais versotildees (39

ocorrecircncias 15 a mais que as outras) como nos outros casos sua ocorrecircncia permite

engendramento de relaccedilotildees paradigmaacuteticas que compotildeem na leitura associaccedilotildees entre

som e sentido A destacar tambeacutem entre outros caminhos de identificaccedilatildeo

semelhanccedilas como a entre ldquopastordquo e ldquorapacesrdquo (que restringe o sentido como ldquoabutresrdquo

em Odorico) e toda a sequecircncia sonora desse verso

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

E ainda a observar ldquoa irardquo ldquopeleiordquo e ldquopastordquo satildeo escolhas tambeacutem de

Odorico possiacutevel ldquocitaccedilatildeordquo do trabalho considerado referencial pelo tradutor

Faccedila-se a seguir a escansatildeo dos dodecassiacutelabos marcando-se as tocircnicas e a

pausa na sexta siacutelaba e registrando-se as tocircnicas e semitocircnicas de modo a evidenciar as

variaccedilotildees no esquema riacutetmico dos versos

A i ra Deu sa ce le bra do Pe lei o A qui les

210

o i ra do des va rio que aos A queus tan tas pe nas

trou xe e in con taacute veis al mas ar ro jou no Ha des

de va len tes de he roacuteis es poacute lio pa ra os catildees

pas to de a ves ra pa ces fez- se a lei de Zeus

des de que por pri mei ro a dis coacuter dia a par tou

o A trei de che fe de ho mens e o di vi no A qui les

Com o mesmo iniacutecio de Odorico o verso tambeacutem faz elisatildeo em ldquoA irardquo

encontro entre uma vogal aacutetona e uma tocircnica esse tipo de elisatildeo seraacute um recurso

comum em Campos assim como em Odorico um modo (jaacute referido) de ldquoganharrdquo

elementos por meio de sinalefa Eacute (como jaacute se mencionou) frequente na Iliacuteada de

Campos o uso de sineacuterese (ldquopassagem de um hiato no interior da palavra a ditongordquo ndash

Houaiss) como em ldquoDes pre zo es sa tua coacute le ra ca ni na As simrdquo (VIII

484) e de sineacutereses associadas a elisotildees como em ldquoNatildeo me im por ta tua coacute le

ra ain da que te lan cesrdquo (VIII 478) A esse respeito vejam-se como referecircncia

ilustrativa duas paacuteginas manuscritas por Haroldo de Campos contendo a escansatildeo de

versos do Canto XXIV da Iliacuteada198

198 Estas paacuteginas integraratildeo tambeacutem o mencionado livro Transcriaccedilatildeo em preparo

211

212

Os manuscritos permitem constatar que poeta de longa experiecircncia Haroldo de

Campos natildeo desprezou a escansatildeo anotada de versos talvez um registro de seus

criteacuterios de metrificaccedilatildeo como se pode ver a cesura na sexta siacutelaba eacute um deles Fica

evidente tambeacutem a flexibilidade no uso dos diferentes modos de sinalefa como se tem

213

observado vejam-se por exemplo os versos (nos quais anoto tocircnicas e semitocircnicas

evidenciando-se mais uma vez a variaccedilatildeo riacutetmica)

e a Heacutector um mortal [] (XXIV 58)199

que eacute ho ra de res ga tar seu fi lho ao cam po a queu (XXIV 146)

e troi a nas seios fun dos sem te mor e sem

Nesses versos destacam-se a elisatildeo em ldquoe a Heacutectorrdquo e em ldquoque eacute ho (ra)rdquo e a

sineacuterese em ldquoseiosrdquo exemplos da referida flexibilidade incorporada aos criteacuterios do

tradutor200

Sobre o dodecassiacutelabo de Campos diga-se que natildeo corresponde ao padratildeo do

alexandrino claacutessico tatildeo utilizado pelos poetas parnasianos embora o tradutor tenha

optado por manter preferencialmente a pausa na sexta siacutelaba201

(um dos criteacuterios

relativos ao referido alexandrino natildeo seguido pela escola romacircntica que reagia ldquocontra

o rigorismo antigo deslocando muitas vezes a cesura central para outro ponto e fazendo

largo emprego do cavalgamentordquo202

) Campos coerentemente agrave composiccedilatildeo eacutepica (que

envolve a narrativa) emprega com frequecircncia o cavalgamento sem contudo abdicar da

cesura claacutessica Sobre os demais criteacuterios que definiriam o padratildeo claacutessico leia-se a

seguinte citaccedilatildeo do parnasiano Olavo Bilac sobre o verso ldquode doze siacutelabas ou

alexandrinordquo

Este verso compotildee-se geralmente de dois versos de seis siacutelabas poreacutem eacute

indispensaacutevel observar que dois simples versos de seis siacutelabas sem sempre fazem

um alexandrino perfeito [] A lei orgacircnica do alexandrino pode ser expressa em

dois artigos 1o quando a uacuteltima palavra do primeiro verso de seis siacutelabas eacute grave a

199 O verso que consta no manuscrito foi posteriormente modificado pelo tradutor aparece assim na

ediccedilatildeo da Iliacuteada de Homero ldquoe a Heacutector Mortal em peito de mulher mamourdquo Op cit vol II p 443 200

Faccedila-se tambeacutem uma observaccedilatildeo de outro teor o tradutor indica a repeticcedilatildeo para o verso 186 do

verso 157 do mesmo canto tais versos satildeo tambeacutem iguais no texto grego 201 Relembre-se a seguinte afirmaccedilatildeo do tradutor ldquo[] recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na

sexta siacutelaba ou mais raramente na quarta oitava e deacutecima-segunda)rdquo (1994 13) 202 ALI Said Versificaccedilatildeo portuguesa Satildeo Paulo Edusp 2006 p 108

214

primeira palavra do segundo deve comeccedilar por uma vogal ou por um h 2o a uacuteltima

palavra do primeiro verso nunca pode ser esdruacutexula (1910 68)

Bilac segue preceitos definidos por A F de Castilho em seu jaacute citado Tratado

de metrificaccedilatildeo sobre tais regras leia-se o que dizem Adriano L Drummond e J

Ameacuterico Miranda

Na concepccedilatildeo de Antocircnio Feliciano de Castilho soacute eacute alexandrino o verso que

conta doze siacutelabas de ponta a ponta ateacute a uacuteltima tocircnica O poeta portuguecircs

considerava ainda pelo padratildeo agudo de contagem que propunha verso de doze

siacutelabas apenas aquele que se compusesse de dois versos de seis siacutelabas Entretanto

havia restriccedilotildees a essa foacutermula o primeiro hemistiacutequio deveria ser agudo no caso

de ser grave o primeiro hemistiacutequio deveria terminar por vogal e o segundo

iniciar-se por vogal ou por ldquohrdquo de modo que a siacutelaba final do primeiro hemistiacutequio

se absorvesse por sinalefa na primeira siacutelaba do segundo Preenchidas essas

exigecircncias conforme os moldes da prescriccedilatildeo castilhiana a medida do verso

resulta invariavelmente em doze siacutelabas Denomina-se esse verso de doze siacutelabas

de alexandrino francecircs203

Afirma sobre o alexandrino e em defesa de seu uso o proacuteprio Castilho

Ao verso de doze siacutelabas chamam alexandrino e tambeacutem francecircs [] entre os

franceses eacute ele o heroacuteico como o de dez siacutelabas o tem sido em Portugal Castela e

Itaacutelia como entre os Latinos e os Gregos o fora o hexacircmetro [] Surda e

antimusical a sua lingua mas necessitando em poesia de uma medida que por sua

extensatildeo abrangesse maior suma de ideacuteas somaram dois versos de pausas assaz

constantes para a conseguirem se o verso heroacuteico se partisse como o nosso em

porccedilotildees deseguais deixaria de ser reconheciacutevel sem passar a ser prosa deixaria de

ser verso

Natildeo seraacute faacutecil atinar com a razatildeo porque um verso mais espaccediloso que todos os

outros por consequecircncia mais capaz de pensamento e com uma particcedilatildeo simeacutetrica

203 O trecho integra o artigo ldquoO alexandrino portuguecircsrdquo de Adriano Lima Drummond e Joseacute Ameacuterico

Miranda in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira vol 14 ndash Dossiecirc Literatura Brasileira do

final do seacuteculo XIX Belo Horizonte UFMG 2007 pp 15-28

215

o que para o espiacuterito de quem os faz e para o agrado de quem os lecirc eacute ainda uma

vantagem tem sido ateacute hoje tatildeo escassamente cultivado em nossa liacutengua204

Acerca do tema diz ainda Castilho

Depois que noacutes por inteiramente convictos do preacutestimo e das excelecircncias dos

alexandrinos nos entregamos desenganada e abertamente ao seu granjeio e

sucessivo aperfeiccediloamento em portuguecircs muitos dos nossos mais bem nascidos

poetas o tomaram tambeacutem a si e o tecircm jaacute na verdade subido a grande apuro sendo

jaacute hoje faacutecil prever que dentro em pouco este metro que tanto se aconchega agrave

elegacircncia da frase e do estilo haacute de pleitear ousadamente preferecircncias ao nosso

velho heroacuteico apesar da prescriccedilatildeo da sua posse ateacute o deixar afinal natildeo dizemos

destruiacutedo nem o desejamos mas quando menos suplantado205

Como se pode verificar nos versos de Haroldo de Campos aqui citados uma das

regras relativas ao alexandrino (o primeiro dos ldquoartigosrdquo mencionados por Bilac) nem

sempre eacute seguida ou seja natildeo haacute neles a preocupaccedilatildeo de que a siacutelaba seguinte a uma

palavra paroxiacutetona no final do primeiro hemistiacutequio ser sucedida por uma vogal ou h ldquoe

troi a nas seios fun dos sem te mor e semrdquo ou ldquoA i ra Deu sa ce

le bra do Pe lei o A qui lesrdquo

Como se apontou os versos de Campos transitam por diferentes esquemas

permitidos pelo dodecassiacutelabo Sobre os esquemas baacutesicos do alexandrino afirma Said

Ali que ldquoo movimento riacutetmico ateacute a uacuteltima tocircnica obedece em qualquer dos

hemistiacutequios a um destes quatro esquemasrdquo

Forma-se o alexandrino quer pela repeticcedilatildeo de um destes tipos quer pela

combinaccedilatildeo de dois diferentes206

204 CASTILHO A F op cit 1874 p 50 205 Id p 52 206 ALI Said op cit p 108

216

Rogeacuterio Chociay identifica as seguintes ldquopossibilidades acentuais do

alexandrino claacutessicordquo ldquoconsiderando-se a contiguidade dos hemistiacutequiosrdquo207

1-3-6-8-12 2-4-6-8-12 3-6-8-12

1-3-6-9-12 2-4-6-9-12 3-6-9-12

1-3-6-10-12 2-4-6-10-12 3-6-10-12

1-3-6-8-10-12 2-4-6-8-10-12 3-6-8-10-12

1-4-6-8-12 2-6-8-12 4-6-8-12

1-4-6-9-12 2-6-9-12 4-6-9-12

1-4-6-10-12 2-6-10-12 4-6-10-12

1-4-6-8-10-12 2-6-8-10-12 4-6-8-10-12

Como pudemos constatar nos poucos exemplos considerando-se tocircnicas e

semitocircnicas ocorrem em Campos esquemas como 1-4-6-8-10-12 1-3-6-8-10-12 etc

Algo a comentar complementariamente o verso seguinte aos vistos ou seja o

oitavo da Iliacuteada

Satildeo as seguintes as soluccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Nume haacute que os malquistasse O que o Supremo

[]

Carlos Alberto Nunes

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Haroldo de Campos

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

207 CHOCIAY Rogeacuterio Teoria do verso Rio de Janeiro Satildeo Paulo McGraw-Hill 1974 p 128

217

A registrar a extrema concisatildeo de Odorico com a comunicaccedilatildeo do sentido geral

do verso grego no primeiro segmento do decassiacutelabo heroacuteico ou seja ateacute a sexta siacutelaba

tocircnica a coerecircncia de Nunes com seu propoacutesito narrativo afim com a extensatildeo e a

explicitaccedilatildeo e especialmente a providecircncia de Campos em valer-se da disposiccedilatildeo dos

elementos do verso de maneira a criar a indicialidade da posiccedilatildeo da sequecircncia de

palavras referentes agrave divindade entre viacutergulas e entre dois extremos do verso de modo

anaacutelogo ao que seria a posiccedilatildeo no espaccedilo extriacutenseco ao poema ldquoposto entre ambosrdquo

passa a funcionar tambeacutem como um hipoiacutecone da divindade

Tomaremos como objeto de estudo agora fragmentos da Odisseia Antes no

entanto de abordarmos os poucos versos escolhidos apresentemos sucintamente o

argumento do poema

A Odisseia composta de 24 cantos eacute dedicada ao retorno de Odisseu a sua terra

Iacutetaca apoacutes sua participaccedilatildeo na guerra de Troacuteia Durante dez anos (apoacutes ter estado

tambeacutem por uma deacutecada na guerra) o heroacutei astucioso afrontou perigos na terra e no

mar antes de poder chegar a seu reino O poema compotildee-se de trecircs partes

1 A ldquoTelemaquiardquo (cantos I-IV) Telecircmaco parte agrave procura do pai diante

da situaccedilatildeo em que se encontra sua matildee Peneacutelope devido agrave ausecircncia de seu pai

pretendentes a sua matildeo usurpam o palaacutecio real

2 A ldquovolta de Odisseurdquo (cantos V-VIII) recolhido apoacutes um naufraacutegio pelo

rei dos feaacutecios Alciacutenoo ele relata suas peregrinaccedilotildees (cantos IX-XIII) que o levaram

ateacute os Lotoacutefagos os Ciclopes a feiticeira Circe o Hades o mar das Sereias e por fim a

ninfa Calipso

3 A ldquovinganccedila de Odisseurdquo (cantos XIV-XXIV) de volta a Iacutetaca o heroacutei se

disfarccedila de mendigo e chega ao palaacutecio invadido pelos pretendentes agrave matildeo de sua

esposa ela poreacutem declara que soacute se casaraacute com aquele que conseguir manejar o arco

de Odisseu ele entatildeo se revela e massacra os pretendentes auxiliado por Telecircmaco

Tambeacutem eacute apresentada a seguir uma adaptaccedilatildeo do resumo claacutessico do Canto I

a partir da ediccedilatildeo da Odisseia de Victor Berard (Les Belles Lettres)208

208 A mesma observaccedilatildeo se aplica a outras sinopses de cantos incluiacutedas neste trabalho

218

Canto I

Assembleia dos Deuses Conselhos de Atena a Telecircmaco Festim dos

Pretendentes

A Assembleia dos Deuses reuacutene-se e decide pelo o envio de Odisseu a Iacutetacaa

partirda ilha de Calipso Atena vai para Iacutetaca onde se apresenta a Telecircmaco

fazendo-se semelhante a Mentes rei dos Taacutefios Haacute uma conversa em que Atena

aconselha Telecircmaco a procurar por seu pai primeiramente em Pilo cidade de

Nestor depois em Esparta cidade de Menelau Ao partir ela daacute sinais de que eacute a

deusa Atena Acontece nesse iacutenterim a Festa dos Pretendentes

Segue-se o texto grego dos primeiros cinco versos do canto acompanhado de uma

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo agrave semelhanccedila das apresentadas anteriormente

Odisseia I 1-5

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

homem cantai-me Musa multiacutevioastuto que muitiacutessimas vezes

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

vagou porque de Troia sagrado baluarte destruiu

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

de muitos homens viu cidades e soube pensamento

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

e muitas ele no mar sofreu dores seu no acircnimo

(e no mar muitas dores sofreu ele em seu acircnimo)

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

tentando salvar sua vida e retorno de companheiros

219

Leiamos as recriaccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Canta oacute Musa o varatildeo que astucioso

Rasa Iacutelion santa errou de clima em clima

Viu de muitas naccedilotildees costumes vaacuterios

Mil transes padeceu no equoacutereo ponto

Por segurar a vida e aos seus a volta

[]

Carlos Alberto Nunes

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros da alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

Haroldo de Campos

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus209

Verifiquemos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo e os da traduccedilatildeo de Odorico Mendes com o referencial do acircmbito semacircntico

209 Fragmentos de cantos da Odisseia traduzidos por Haroldo de Campos foram reunidos no livro Campos H de Odisseia de Homero ndash Fragmentos Organizaccedilatildeo Ivan de Campos e Marcelo Taacutepia

Apresentaccedilatildeo Trajano Vieira Satildeo Paulo Olavobraacutes 2006 Na ediccedilatildeo consta relativamente ao fragmento

do Canto I (versos 1-37) a seguinte nota dos organizadores ldquoProvavelmente Haroldo de Campos natildeo

considerasse esta uma versatildeo definitiva de sua traduccedilatildeo da abertura da Odisseia a julgar pelos

manuscritos que deixou em que os versos iniciais do poema homeacuterico recebem outras formulaccedilotildees Feito

o registro consideramos mesmo assim interessante a publicaccedilatildeo do texto nesta oportunidaderdquo (p 9)

220

____________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Valendo-se basicamente do recurso da modulaccedilatildeo como se pode ver ndash e natildeo eacute

penso necessaacuterio explicitar detalhes do procedimento ndash o texto de Odorico daacute conta do

plano do conteuacutedo entendido como a comunicaccedilatildeo ldquoessencialrdquo do sentido depreendido

dos versos gregos Com suas habituais paraacutefrases atua de modo a recriar a mensagem

coerentemente a suas convicccedilotildees esteacuteticas e agravequelas que orientam sua escolha

vocabular inseridas em sua eacutepoca e em seu contexto esteacutetico-literaacuterio permanecendo

no campo semacircntico do original Diversos elementos podem ser destacados como a

opccedilatildeo por ldquotranserdquo para designar as ldquodores em seu acircnimordquo para a palavra escolhida o

Houaiss traz inicialmente os significados de ldquoestado de afliccedilatildeo anguacutestiardquo ou a

utilizaccedilatildeo de ldquocostumesrdquo para fazer corresponder a lugares (cidades) e a pensamentos

simultaneamente ou ldquorasa Iacutelion santardquo referindo-se agrave destruiccedilatildeo (rasa ldquoarrasardquo ndash

Houaiss) do sagrado baluarte (fortaleza praccedila forte) de Troacuteia (Iacutelion ldquoantigo nome de

Troacuteia []rdquo ndash Isidro Pereira) Siacutentese radical em parte ditada pelo metro adotado

associada agrave procura de manutenccedilatildeo do que se pode considerar o conjunto ldquofundamentalrdquo

de informaccedilotildees propiciadas pelos versos Nestes cinco primeiros versos Odorico

manteacutem a correspondecircncia quase verso a verso e portanto a mesma quantidade de

221

linhas diminuiraacute contudo um verso jaacute no conjunto dos dez primeiros versos do texto

grego fazendo corresponder a sua nona linha agrave deacutecima de Homero A fim apenas de

propiciar esta verificaccedilatildeo incluirei a seguir os versos de nuacutemeros 6 a 10 no original

(acompanhados da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo) e os que a ele correspondem de Odorico de

nuacutemeros 6 a 9 evidenciando o processo de siacutentese que decorria do posicionamento do

tradutor e que como jaacute se mencionou o torna ndash embora circunscrito a periacuteodo que vai

do iniacutecio a pouco aleacutem de meados do seacuteculo XIX ndash identificaacutevel com as postulaccedilotildees

modernas da condensaccedilatildeo como uma das propriedades da linguagem poeacutetica

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

mas nem assim companheiros resgatou desejando emboraainda que

αὐτῶν γὰρ σφετέρῃσιν ἀτασθαλίῃσιν ὄλοντο

deles mesmos (pois) proacutepria por loucuraestultiacutecia pereceram

(pois pereceram por sua proacutepria loucura)

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

neacutescios que vacas de Hiperiocircnio Sol (Heacutelio)

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

devoravam e ele lhes arrebatou do retorno dia

(e ele lhes arrebatou o dia do retorno)

τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν (10)

disso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutes

Baldo afatilde Pereceram tendo insanos

Ao claro Hiperiocircnio os bois comido

Que natildeo quis para a paacutetria alumiaacute-los

Tudo oacute prole Dial me aponta e lembra (9)

222

ldquoProle dialrdquo comente-se alude agrave Deusa agrave Musa descendente de Zeus provindo

a palavra ldquodialrdquo do vocaacutebulo (Di) ldquoZeusrdquo em grego

Vejamos em semelhante estabelecimento de correspondecircncias a traduccedilatildeo de

Carlos Alberto Nunes

______________________________________________________________________

Como se pode constatar a simples leitura comparativa a recriaccedilatildeo de Nunes

pode ser encarada como uma possiacutevel traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do texto grego natildeo omitindo

na passagem qualquer de seus elementos As soluccedilotildees vocabulares se datildeo de modo

coerente a seus procedimentos mais afeitos agrave anaacutelise ao resultado explicitador do que agrave

siacutentese adequando-se agraves necessidades ditada pelo esquema riacutetmico-meacutetrico do

hexacircmetro Natildeo se observa neste fragmento tambeacutem qualquer acreacutescimo

223

Apresente-se por fim a relaccedilatildeo de correspondecircncias estabelecidas pela traduccedilatildeo

de Haroldo de Campos

______________________________________________________________________

Conforme se pode verificar o texto de Campos permanece como os demais no

campo de sentido do texto grego empregando o recurso da modulaccedilatildeo nota-se a

transformaccedilatildeo da referecircncia homeacuterica agrave destruiccedilatildeo do ldquosagrado baluarterdquo ou sagrada

fortaleza de Troacuteia em saque a ldquoTroacuteia urbe sagradardquo coerente agrave visatildeo do tradutor como

sendo o plano semacircntico uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a tarefa da traduccedilatildeo neste

caso inclui-se um sentido explicitador do teor da destruiccedilatildeo referida nos versos de

Homero Os dodecassiacutelabos da recriaccedilatildeo natildeo trazem nesta passagem omissotildees ou

acreacutescimos A destacar a recriaccedilatildeo (por modo usual nos procedimentos do tradutor agrave

semelhanccedila daqueles praticados por Odorico Mendes) do epiacuteteto de Odisseu que

consiste em palavra criada a partir do termo grego utilizando-se para tanto neste caso

o mesmo antepositivo ldquopolirdquo ldquopoliengenhosordquo por ldquopolyacutetroponrdquo

Diga-se que curiosamente a traduccedilatildeo de Campos relativa aos cinco primeiros

versos do texto homeacuterico vale-se de seis versos para abranger o campo de sentido

224

daqueles como se pode ver no conjunto antes apresentado Contudo no conjunto dos

dez primeiros versos do Canto I a ldquotranscriaccedilatildeordquo realizada faraacute manter-se a

correspondecircncia numeacuterica conforme mostra a leitura de seus versos de nuacutemeros 7 a 10

incluiacutedos a seguir

Aos companheiros natildeo logrou poupaacute-los mesmo

querendo Por si proacuteprios perderam-se Loucos

predando os bois do Sol do retorno privaram-se

Comeccedila de onde queiras Deusa a nos contar (10)

Note-se que o deacutecimo verso corresponde de modo quase ldquoliteralrdquo ao verso grego

de mesmo nuacutemero (ldquodisso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutesrdquo)

eliminando-se apenas a informaccedilatildeo (com valor de epiacuteteto) referente agrave Musa (ldquofilha de

Zeusrdquo)

Antes de prosseguirmos a anaacutelise com observaccedilotildees de ordem formal relativas a

repeticcedilotildees identificaacuteveis no fragmento vejamos ndash para que natildeo seja excluiacuteda esta

referecircncia ndash os versos de nuacutemeros 6 a 10 na traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

Os companheiros poreacutem natildeo salvou muito embora o tentasse

pois pereceram por culpa das proacuteprias accedilotildees insensatas

Loucos que as vacas sagradas do Sol hiperiocircnio comeram

Ele por isso do dia feliz os privou do retorno

Deusa nascida de Zeus de algum ponto nos conta o que queiras

Manteacutem-se na sequecircncia conforme eacute possiacutevel verificar a relaccedilatildeo praticamente

literal com o texto grego o deacutecimo inclui a informaccedilatildeo referente agrave Deusa embora

transformada Haacute a informaccedilatildeo cabiacutevel por deduccedilatildeo a partir do verso homeacuterico relativa

agrave vontada da Musa (agrave semelhanccedila do que escreveu Haroldo de Campos) permanecendo

portanto no campo semacircntico do original

Continuemos com breves comentaacuterios acerca do plano esteacutetico dos versos Para

tanto segue-se inicialmente o conjunto de versos gregos acompanhados de sua

transliteraccedilatildeo

225

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

Localizaremos nossa anaacutelise num acircmbito decorrente de uma hipoacutetese de leitura

sustentada pela observaccedilatildeo de repeticcedilotildees focircnicas nos cinco primeiros versos homeacutericos

(por vezes aproximadas por semelhanccedila agrave maneira do que jaacute se fez neste estudo)

Destaquem-se com grifos as ocorrecircncias (entre outras de possiacutevel identificaccedilatildeo) que

tomaremos por base para a discussatildeo

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

A hipoacutetese de leitura fundamentada na projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o

sintagma eacute de que se constroacutei no texto uma teia de correspondecircncias entre elementos

contidos no epiacuteteto do heroacutei tecendo-se sua erracircncia por entre os versos As

manifestaccedilotildees de primeiridade efeitos sugestivos de marcaccedilatildeo riacutetmico-sonora

permitem a composiccedilatildeo da figura da erracircncia que em niacutevel de secundidade pode

226

corresponder a lugares pelos quais Odisseu teria peregrinado no anuacutencio de sua

muacuteltipla aventura

Relendo-se as traduccedilotildees em questatildeo agrave luz desta hipoacutetese conclui-se que a

ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos permite a observaccedilatildeo de teia comparaacutevel de

elementos icocircnicos assim como da indicialidade das posiccedilotildees do heroacutei errante

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

Se aleacutem das ocorrecircncias (aproximativas) no plano focircnico destacarmos as

ocorrecircncias de notaccedilatildeo ou seja pela semelhanccedila graacutefica ampliaremos a teia de

correspondecircncias

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

227

Isoladas assim ficam as ocorrecircncias nas duas versotildees de destaque

Tomaremos como objeto de anaacutelise por fim um fragmento do Canto XI da

Odisseia Vejamos preambularmente uma sinopse do canto

Canto XI

Consulta aos mortos

[Apoacutes a morte de Elpenor (que cai do terraccedilo na casa de Circe) relatada no final

do Canto X] Odisseu conta como a conselho de Circe desce ao Hades a fim de

consultar o adivinho tebano Tireacutesias Encontra primeiro a alma de Elpenor que

reclama a proacutepria sepultura ouve depois de Tireacutesias o modo de salvar a si

mesmo e a seus companheiros Conversa com diversos heroacuteis e heroiacutenas com a

matildee que lhe daacute notiacutecias de Iacutetaca e com alguns da guerra de Troacuteia aleacutem de alguns

criminosos

228

Seguem-se os primeiros oito versos do canto em grego acompanhados de sua

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ao portuguecircs

Odisseia XI 1-8

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Depois quando ateacute o navio descemos e o mar

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

o navio primeiro puxamos ao mar divino

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

no mastro pusemos e velas navio negro

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

dentro as ovelhas tendo pegado fomos e noacutes mesmos

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

fomos (subimos) aflitos abundantes laacutegrimas vertendo

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

nosso agrave popa de navio de escura proa

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Circe de belas tranccedilas terriacutevel Deusa de voz harmoniosa (canora)

229

Leiam-se consecutivamente as traduccedilotildees do fragmento ao portuguecircs por

Odorico Nunes e Campos

Odorico Mendes

Deitado ao mar divino o fresco lenho

Dentro as hoacutestias o mastro e o pano armados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

Que invoca a deusa de anelado Crino (8)

Carlos Alberto Nunes

Quando chegamos agrave beira do mar e ao navio ligeiro

antes de tudo arrastando-o o metemos nas ondas divinas

mastro depois levantamos e velas no negro navio

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

Por traacutes de nosso navio de proa anegrada mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha (8)

Haroldo de Campos

Foi assim que baixamos para a nau mirando

o mar antes poreacutem lanccedilamos o navio

ao sacro sal aquoso o mastro e as velas todas

fazendo arborescer no barco escuro entatildeo

embarcamos carneiros e ovelhas Subimos

a bordo coraccedilotildees-cortados todo-laacutegrimas

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

230

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

de proa azul-cianuro Apoacutes os faticosos (10)

[]

Observemos a relaccedilatildeo de correspondecircncias entre a recriaccedilatildeo de Odorico e a

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do grego

O texto de Odorico relativo agrave sequecircncia inicial do Canto XI eacute um exemplo

niacutetido de sua orientaccedilatildeo para a siacutentese as informaccedilotildees contidas nos oito primeiros

versos gregos satildeo trabalhadas pelo tradutor em apenas cinco O modo de composiccedilatildeo

evidencia pela radicalidade o teor paroacutedico da recriaccedilatildeo o objetivo parece mesmo ser

o de comunicar a informaccedilatildeo ldquoessencialrdquo agrave narrativa com a maior economia possiacutevel de

elementos Ao adotar por exemplo o particiacutepio para referir-se a uma accedilatildeo jaacute executada

ndash ldquodeitado o fresco lenhordquo ndash o tradutor vale-se de um recurso para dispensar a accedilatildeo

inicial descrita no poema homeacuterico meio para colocar o navio ao mar de modo

anaacutelogo utiliza a sequecircncia ldquodentro as hoacutestiasrdquo para comunicar que as ovelhas ou reses

231

(ldquohoacutestiardquo tem o significado de ldquoviacutetima expiatoacuteriardquo) foram levadas a bordo (incluindo

assim a denotaccedilatildeo da finalidade de uso das reses) Omitem-se a referecircncia agrave cor escura

do barco a qualificaccedilatildeo de ldquofavoraacutevelrdquo ao vento (informaccedilatildeo que se pode considerar

impliacutecita na seguinte ou seja de que o vento ldquoenfuna e soprardquo) o nome de Circe (que

apareceraacute no 17ordm verso) e parte de seus epiacutetetos (terriacutevel canora) Embora seja sempre

relativa a secundarizaccedilatildeo da importacircncia de sentidos atribuiacuteveis ao texto pode-se

considerar que tais informaccedilotildees natildeo sejam indispensaacuteveis ao plano de conteuacutedo do

poema Sobre a fatura poeacutetica a evidente e notaacutevel autonomia do conjunto com sua

coerecircncia condensante assentada sobre os decassiacutelabos e sua forte sonoridade como

seraacute referido adiante

Vejamos as correspondecircncias relativas agrave traduccedilatildeo de C A Nunes

Marcado por algum acreacutescimo associado agrave modulaccedilatildeo o texto de Nunes inclui

possiacuteveis composiccedilotildees semacircnticas de elementos decorrentes do sentido depreendido do

texto grego como ldquoentre suspiros magoadosrdquo referecircncia contiacutegua a ldquoaflitosrdquo A mesma

232

soluccedilatildeo diga-se encontra-se em sua traduccedilatildeo do final do Canto X no qual haacute verso

quase idecircntico no poema grego alterando-se apenas o verbo de sentido anaacutelogo

(baiacuteno210

no Canto XI eicircmi no canto X) do verso 572 desse canto mencione-se

tambeacutem Nunes colheraacute uma informaccedilatildeo que seraacute incluiacuteda na traduccedilatildeo do iniacutecio do

canto XI (vejam-se em seguida o referido trecho homeacuterico com a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo de

apenas dois versos em questatildeo)

A traduccedilatildeo de Nunes para os versos 570 e 572 eacute ldquoa derramar quentes laacutegrimas

entre suspiros magoadosrdquo e ldquotinha amarrado um carneiro e tambeacutem uma ovelha bem

negrardquo (2001 188) O tradutor segue a repeticcedilatildeo do verso em grego repetindo

igualmente o seu e utiliza a informaccedilatildeo das duas reses na composiccedilatildeo do verso 4 do

Canto XI ldquoe ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimosrdquo ndash a inclusatildeo da

palavra ldquoambasrdquo ndash que natildeo se apoacuteia no proacuteprio verso traduzido pois este traz em grego

o artigo e o substantivo no plural) permitiu aleacutem da referecircncia ao canto anterior211

a

perfeita acomodaccedilatildeo do hexacircmetro

Coerentemente a um projeto mais afeito agrave anaacutelise que agrave siacutentese a traduccedilatildeo natildeo

traz omissotildees

Segue-se o quadro de correspondecircncias referentes agrave traduccedilatildeo de H de Campos

210O Dicionaacuterio grego-portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc 2006-2010 5 volumes) traz para (baiacuteno) os

sentidos de ldquodar um passo andar colocar o peacute colocar-se ir descer subir colocar os peacutes para

avanccedilar ir embora partir morrer passar etcrdquo E para (eicircmi) ldquoir [] ir a dirigir-se a ir por

percorrer seguir o caminho percorrer etcrdquo 211 O tradutor supotildee serem as reses deixadas presas por Circe as uacutenicas a serem embarcadas cria-se uma

coerecircncia natildeo necessariamente presente no poema homeacuterico

233

______________________________________________________________________

Tambeacutem de maneira coerente com sua concepccedilatildeo de ldquocanto paralelordquo H de

Campos compotildee versos que envolvem o sentido geral ou ldquoessencialrdquo (para a narrativa)

do texto grego sem que se mostre pretensatildeo de correspondecircncia semacircntica direta Nesta

sequecircncia o ldquoconteuacutedordquo dos oito primeiros versos homeacutericos eacute trabalhado em dez

versos pelo tradutor natildeo havendo portanto correspondecircncia verso a verso ao longo do

fragmento do Canto XI traduzido por Campos no entanto ndash que vai ateacute o verso 137 ndash a

sequecircncia ajusta-se de modo a reinstalar a correspondecircncia

O primeiro verso introduz de outro modo a narraccedilatildeo com eficiecircncia anaacuteloga (em

vez de ldquodepois quandordquo usa-se ldquofoi assim querdquo) acresce-se a palavra ldquoaquosordquo a

ldquosacro marrdquo (als em grego ndash que aparece na forma do acusativo ala ndash designa o mar

assim como ldquoonda salgadardquo212

) um modo de distinguir da primeira referecircncia a mar

(thaacutelassa) cria-se uma imagem sugestiva ldquofazendo arborescer no barco escurordquo (a

212Dicionaacuterio grego-portuguecircs (2006-2010)

234

expressatildeo aleacutem do mais como veremos logo adiante teria funccedilatildeo sonora) O uso de

ldquocarneiros e ovelhasrdquo desmembra o sentido de ldquoovelhasrdquo ou ldquoresesrdquo em informaccedilatildeo

que diferentemente de C A Nunes natildeo supotildee os dois animais presenteados por Circe

como os uacutenicos a embarcarem ou natildeo considera o final do canto anterior ou natildeo se

baseia em suposta coerecircncia do texto grego o ldquofuncionamentordquo do conjunto de versos

sua elaboraccedilatildeo esteacutetica com base nas repeticcedilotildees focircnicas parece nortear as escolhas

como se prevecirc pela proposiccedilatildeo da ldquofidelidade agrave formardquo conceito integrante da teoria da

transcriaccedilatildeo A assinalar quanto agrave coerecircncia de procedimentos internos agrave traduccedilatildeo dos

fragmentos da Odisseia e de toda a Iliacuteada a criaccedilatildeo de adjetivos compostos por

simples justaposiccedilatildeo ldquocoraccedilotildees-cortadosrdquo ldquotodo-laacutegrimasrdquo ldquoazul-cianurordquo ldquoenfuna-

velasrdquo ldquobelas-tranccedilasrdquo ldquoclaravozrdquo

Antes de observarmos certos aspectos formais das traduccedilotildees vejamos algo dos

versos gregos Para tanto segue-se o fragmento acompanhado de sua transliteraccedilatildeo

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Autagraver epeiacute rrsquo epigrave necirca katheacutelthomen edegrave thaacutelassan

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

necirca megraven ar pamproton eryacutesamen eis aacutela diacutean

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

em drsquo istograven titheacutemestha kaigrave istiacutea neigrave melaiacutene

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

em degrave ta mela laboacutentes ebeacutesamen an degrave kaigrave autoi

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

hemin drsquoaucirc katoacutepisthe neograves kyanoproacuteroio

235

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Kiacuterke euploacutekamos deinegrave theograves audeacuteessa

Dada a alta concentraccedilatildeo de repeticcedilotildees (de fonemas de siacutelabas de palavras) o

fragmento apresenta particular densidade sonora no contexto sempre denso da eacutepica de

Homero Pode-se falar pelas sequecircncias aliterantes e reincidecircncias proacuteximas numa

aceleraccedilatildeo tensiva dos versos tensatildeo ligada ao momento aflitivo aceleraccedilatildeo ligada ao

movimento agrave accedilatildeo que se executa A leitura pode incluir a percepccedilatildeo de obstaacuteculos

reiterantes associados agrave marcaccedilatildeo dos passos da movimentaccedilatildeo Tatildeo abundante de

efeitos eacute o conjunto que me parece dispensaacutevel seu difiacutecil destaque Mas podemos

indicar como um verso de quase-cimo tensivo aquele referente agrave subida dos homens

aflitos tristes a bordo observe-se sua escansatildeo (evidenciando portanto o esquema do

hexacircmetro dactiacutelico213

)

(baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes)

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες (5)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U U _ U

(Subimos aflitos abundantes laacutegrimas vertendo)

A alternacircncia padratildeo de longas e breves neste caso parece associar-se

perfeitamente agrave reincidecircncia dos sons e no plano semacircntico ao movimento referido no

verso mantendo-se a marcha a velocidade constante no conjunto de vogais

particularmente o repetido tal como se apresenta na sequecircncia pode colaborar na

sugestatildeo do aspecto sombrio depressivo da cena

O verso 7 no entanto apresenta outra configuraccedilatildeo ao dizer do vento favoraacutevel

213 Como jaacute se disse o hexacircmetro eacute composto por seis peacutes daacutectiacutelicos _UU (uma siacutelaba longa e duas

breves podendo as breves ser substituiacutedas por uma longa resultando num peacute espondaico)

236

(iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon)

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

_ U U _ U U_ _ _ UU _ U U _ U

(favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro)

Apesar de aparecerem as aliteraccedilotildees de oclusivas agrave semelhanccedila do anterior

surge a repeticcedilatildeo do fonema s que ameniza a sonoridade da frase e potencialmente

sugere iconicamente a passagem do vento o ritmo desacelera estende-se pela

sucessatildeo de siacutelabas longas entre o terceiro e o quarto peacutes transformando-se tambeacutem

num iacutecone de mudanccedila aliada agrave suavizaccedilatildeo variaccedilatildeo de tom de ritmo associada agrave

alteraccedilatildeo de perspectiva no relato

Abordemos sinteticamente a dimensatildeo formal das traduccedilotildees apresentadas

Em Odorico satildeo perceptiacuteveis relaccedilotildees entre som e sentido observemos como se

apresentam nos versos relacionados aos dois versos homeacutericos receacutem-destacados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

O movimento do verso heroacuteico com tocircnica na terceira e sexta siacutelabas instaura

um ritmo ternaacuterio ascendente inicial a ser complementado pela ceacutelula quaternaacuteria

subsequente214

compondo uma sequecircncia adequada ao que se diz com a posiccedilatildeo das

tocircnicas a reforccedilar o significado de cada palavra

Em tris tiacutes si mas laacute gri mas par ti mos

214Pela tendecircncia paroxiacutetona e dos padrotildees riacutetmicos de nossa liacutengua ndash binaacuterio e ternaacuterio ndash um verso

acentuado na terceira sexta e deacutecima siacutelabas como eacute o caso pode) encaminha-se agrave subdivisatildeo binaacuteria agrave

maneira do martelo agalopado forccedilando-se uma tocircnica

237

As repeticcedilotildees das consoantes oclusivas e particularmente dos encontros

consonantais tr e gr marcam o passo e a dificuldade compatiacutevel com a situaccedilatildeo

aflitiva O verso seguinte (diferentemente do grego em que o ritmo parece desacelerar)

tambeacutem heroacuteico traz o padratildeo mais veloz do pentacircmetro jacircmbico ou seja composto de

uma sucessatildeo de cinco unidades binaacuterias ascendentes como que a reiterar o impulso do

vento

Bom soacute cio en fu na e so pra o ven to em po pa

A tecitura sonora reforccedila a accedilatildeo associando agrave sequecircncia a sucessatildeo aliterante de

fricativas tambeacutem a sugerir como primeiridades (hipoiacutecones sonoros) o efeito da

passagem do vento que amaina o ldquoclimardquo funesto movimento constante reiterativo da

accedilatildeo e sopro uma conjunccedilatildeo entre ritmo sonoridade e sentido que traz unidade ao

verso e consistecircncia ao conjunto

A traduccedilatildeo de C A Nunes por sua vez se natildeo pode valer-se de variaccedilotildees do

ritmo pelo padratildeo fixo utilizado pode dar a ilusatildeo de mudanccedila como no verso

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

Embora em padratildeo ternaacuterio descendente (dactiacutelico) o verso ndash pela cesura na

deacutecima siacutelaba coincidente com a final da oraccedilatildeo ou seja com a pausa sintaacutetica

marcada pelo ponto-e-viacutergula ndash parece inverter o sentido para o padratildeo ascendente ao

mesmo tempo em que eacute dito ldquoem seguida subimosrdquo accedilatildeo que ganha paulatinidade com

a repeticcedilatildeo uniforme Um momento feliz no processo composicional de Nunes que

mostra uma certa (ainda que diminuta) relatividade na fixidez do padratildeo Vejam-se

ainda os versos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

[] mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha

238

No primeiro ainda que se possa ter a sensaccedilatildeo de ldquolassidatildeordquo do verso como

frequentemente ocorre nos versos analiacuteticos e alongados do tradutor ndash a impressatildeo de

arrastar-se extensivamente com perda de forccedila e diluiccedilatildeo de efeitos ndash as repeticcedilotildees

colaboram para uma unidade em que se entrevecircem relaccedilotildees som-sentido a reiteraccedilatildeo do

fonema m da siacutelaba ldquomardquo repetida sugere murmuacuterio lamento os s sucessivos

reverberam a ideia de suspiro na palavra ldquomagoadosrdquo insinua-se a figura sonora da

ldquoaacuteguardquo (fazendo lembrar a proposiccedilatildeo de Jakobson quanto agrave sugestatildeo de proximidade

semacircntica a partir da semelhanccedila sonora) que por sua vez liga-se conceitualmente a

ldquolaacutegrimasrdquo O verso seguinte eacute feliz na distribuiccedilatildeo das tocircnicas entre vogais diferentes

que se sucedem (ẽ i eacute u ẽ atilde) marcando-se a repeticcedilatildeo do ẽ na palavra

referente a ldquoventordquo e traccedilando-se assim uma relaccedilatildeo sonora entre o iniacutecio e o fim do

verso No uacuteltimo podem-se reconhecer as aliteraccedilotildees nas fricativas v s e f que

como os demais casos convertem-se em iacutecones sugestivos do sopro do vento

Examinemos sob os aspectos da informaccedilatildeo esteacutetica alguns elementos da

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Procurarei isolar alguns efeitos marcantes dos versos

O primeiro verso traz a tocircnica da palavra ldquobaixamosrdquo na sexta siacutelaba do

dodecassiacutelabo ou seja da cesura acentuando-se com o componente riacutetmico a accedilatildeo

principal enunciada Desde o iniacutecio pode-se perceber o criteacuterio de engendramento de

repeticcedilotildees de correspondecircncias internas ao texto entre o primeiro e o segundo a

paronomaacutesia mirando ndash mar em seguida outras semelhanccedilas entre palavras ou

segmentos sacro ndash sal arbo ndash barco ndash barca ndash bor car ndash cor ndash cor etc Pode-se assim

supor a tentativa de re-produccedilatildeo de uma densidade sonora anaacuteloga aos versos gregos A

sequecircncia ldquofazendo arborescer no barco escurordquo encontra proximidade na

concentraccedilatildeo com certas sucessotildees no texto homeacuterico provaacutevel razatildeo da escolha que

embora distante ldquoda letrardquo sugere fonicamente um reiniacutecio um tempo feacutertil a iniciar-se

a crescer no momento ateacute entatildeo sombrio definido pelo ldquobarco escurordquo ligado pelo

som a ldquoarborescerrdquo Nos versos

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

239

de proa azul-cianuro [Apoacutes os faticosos] (10)

eacute apreensiacutevel de imediato a sucessatildeo de fricativas (de novo iacutecones do vento) que

participam da ressonacircncia vocal de Circe (poderosa claravoz) e do efeito escurecedor

da expressatildeo ldquoazul-cianurordquo com sua duplicaccedilatildeo de u Mais uma vez eacute dedutiacutevel em

Campos a priorizaccedilatildeo da teia sonora como meio de composiccedilatildeo do sentido geral do

conjunto de versos

240

Capiacutetulo IV

A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs

O propoacutesito central deste capiacutetulo seraacute apresentar uma proposta de possiacutevel

opccedilatildeo riacutetmico-meacutetrica a se adotar em uma recriaccedilatildeo da eacutepica homeacuterica e por extensatildeo

da eacutepica greco-latina

Baseia-se primeiramente na ideia oacutebvia de que sempre os versos em portuguecircs

apresentaratildeo medidas sejam regulares ou natildeo assim como conteratildeo siacutelabas tocircnicas

quer haja ou natildeo algum propoacutesito em sua existecircncia e no modo pelo qual satildeo

distribuiacutedas nos versos Natildeo penso na necessidade de correspondecircncia exata com o

hexacircmetro dactiacutelico porque creio natildeo se justificar ndash pelo fato de que a traduccedilatildeo seraacute

sempre recriaccedilatildeo com outros elementos e em outro contexto ndash a predefiniccedilatildeo da

equivalecircncia ldquoabsolutardquo (seja no plano de conteuacutedo ou no caso no plano de expressatildeo)

em relaccedilatildeo aos poemas traduzidos A autonomia do texto recriado ainda que relativa

envolveraacute inevitavelmente suas proacuteprias regras internas que natildeo seratildeo as mesmas do

original ainda que se tenha tal propoacutesito

Satildeo diversas as possibilidades como se pocircde constatar neste trabalho de

adaptaccedilatildeo meacutetrica e prosoacutedica da eacutepica ao portuguecircs variando da transposiccedilatildeo

adaptativa de C A Nunes ao decassiacutelabo de O Mendes A escolha do dodecassiacutelabo

por H de Campos eacute muito bem sucedida do ponto de vista formal por manter-se dentro

do paracircmetro da poesia tradicional de liacutengua portuguesa (sem portanto aproximar-se de

uma extensatildeo que sugere ilimitaccedilatildeo como a da prosa) e por apresentar variaccedilatildeo

prosoacutedica associada agrave quase fixa presenccedila da cesura emulando de certa forma a

regularidade e a mutabilidade do verso grego Eacute bastante eficiente tambeacutem a soluccedilatildeo

de A Malta Campos tambeacutem por associar ainda mais nitidamente a regularidade e a

mutabilidade aleacutem de fazer corresponder ao verso grego subunidades de metro popular

em portuguecircs estabelecendo a relaccedilatildeo em niacutevel tambeacutem extratextual com a funccedilatildeo do

poema eacutepico se considerada sua contextualizaccedilatildeo de origem Uma possibilidade a ser

testada eacute a do verso hendecassiacutelabo por sua dinacircmica normalmente formada por uma

ceacutelula binaacuteria seguida de trecircs ternaacuterias de perfil dinacircmico e marcado ao mesmo tempo

a pesar contra essa medida a restriccedilatildeo de seu tamanho (com uma siacutelaba apenas a mais

241

do que o metro escolhido por Mendes uma das razotildees para sua praacutetica de contorccedilotildees

sintaacuteticas) e portanto de ldquoespaccedilo de manobrardquo do tradutor a menos que se aumente a

quantidade de versos

Por necessidade de escolha entre outras possiacuteveis parece-me interessante e

adequada a opccedilatildeo que exporei adiante Ela seraacute baseada antes no elemento mais

caracterizador do ritmo as tocircnicas do que na medida do verso Isto para valorizar-se

exatamente o aspecto riacutetmico e tambeacutem meloacutedico do verso (compartilhando desse

modo da ldquoessencialidaderdquo do verso grego) uma vez que pelo teor narrativo a medida

tende a dissociar-se das unidades de sentido que se completam amiuacutede nos versos em

sequecircncia

Embora o verso grego fundamente-se na distribuiccedilatildeo de siacutelabas longas e breves

e tenhamos em portuguecircs de considerar a tonicidade das siacutelabas podem-se entender

com certa liberdade os procedimentos como anaacutelogos215

Mesmo porque ainda que os

criteacuterios sejam de natureza diversa (uma quantitativa216

outra qualitativa) haacute

possibilidade de entrever-se a duraccedilatildeo diferenciada entre as siacutelabas tocircnicas e aacutetonas

como queriam Olavo Bilac e Guimaratildees Passos em seu Tratado de versificaccedilatildeo (1910)

que chegam a utilizar a terminologia ldquolongardquo e ldquobreverdquo para se referirem agraves siacutelabas do

verso em portuguecircs Diz o texto

O acento predominante ou a pausa numa palavra eacute aquela siacutelaba em que parecemos

insistir assinalando-a []

O som mais ou menos aberto da vogal natildeo influi sobre o acento a demora eacute na

pronunciaccedilatildeo o que o caracteriza []

A siacutelaba longa eacute que daacute agrave palavra o nome de aguda grave ou exdruacutexula []

Bilac e Passos assim como outros teoacutericos da versificaccedilatildeo encontram apoio na

liccedilatildeo de Antoacutenio Feliciano de Castilho (1800-1875) que em seu Tratado de

Metrificaccedilatildeo (1851) reconhecia siacutelabas longas e breves nas palavras

215Verdade eacute que os versos greco-latinos tambeacutem encerram acentos como eacute inevitaacutevel essa natildeo era

entretanto ndash conforme se considera ndash a base para a composiccedilatildeo riacutetmica 216 Ou seja relativa agrave duraccedilatildeo das siacutelabas (a longa dura duas vezes a breve) Os diferentes arranjos entre

os dois tipos de siacutelabas compunham alguns tipos baacutesicos de peacutes usados na poesia greco-latina Os

principais (aqui anotados a partir dos siacutembolos da braquia U relativo agrave siacutelaba breve e o maacutecron _

relativo agrave siacutelaba longa) satildeo o jambo ou iambo (U_) o troquseu (_U) o espondeu (_ _) o daacutectilo (_UU)

o anapesto (UU_) e o peocircnio (_UUU UUU_)

242

Acento predominante ou pausa num vocaacutebulo se chama aquela siacutelaba em que

parecemos insistir ou deter-nos mais v g em louvo a primeira em louvado a

segunda [etc]

Toda a palavra tem necessariamente uma pausa nem mais nem menos []

Levantamos tem a terceira siacutelaba longa seguindo-se-lhe por consequecircncia uma soacute

breve se juntando-lhe o complemento mdash nos mdash disserdes levantamo-nos sentireis

depois daquela siacutelaba longa natildeo jaacute uma soacute breve mas duas breves []217

Reforccedilam a ideia de duraccedilatildeo das siacutelabas os modos de abordagem do verso com

base na notaccedilatildeo musical conforme proposta de Geoffrey N Leech218

de M Cavalcanti

Proenccedila219

(que por sua vez menciona Spinelli e Echarri) e de Paulo Henriques Britto

em comum a esses autores a indicaccedilatildeo por meio de siacutembolos musicais convencionais

da ldquoduraccedilatildeo relativa das siacutelabas e [d]as pausas e [d]as separaccedilotildees entre compassosrdquo220

Veja-se como exemplo uma notaccedilatildeo apresentada por Leech (1969 108)

E tambeacutem a notaccedilatildeo por Cavalcanti Proenccedila de versos do ldquoHino ao sonordquo de

Castro Alves

217CASTILHO A F de Op cit pp 14-15

218 Leech G A linguistic guide to English Poetry London Longman 1969 219 Proenccedila M Cavalcanti Ritmo e poesia Rio de Janeiro Organizaccedilatildeo Simotildees 1955 220 BRITTO P H ldquoO conceito do contraponto meacutetrico em versificaccedilatildeordquo p 6

243

Antes de prosseguirmos com uma sugestatildeo de uso meacutetrico para a eacutepica ndash que

ademais seraacute mais uma alternativa entre as existentes ndash vejamos referecircncias agraves diversas

possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro em liacutenguas modernas Jaacute mencionamos a

adaptaccedilatildeo realizada nas liacutenguas anglo-saxocircnicas (inglecircs e alematildeo) que fazem

corresponder as siacutelabas tocircnicas do verso agraves siacutelabas longas das composiccedilotildees gregas e

latinas e as aacutetonas agraves siacutelabas breves221

Seguem-se alguns exemplos colhidos de

Kayser (1976)222

relativos (na ordem) a jambos troqueus daacutectilos e anapestos

221 O mesmo sistema foi usado como vimos por C A Nunes mas haacute antecedentes do procedimento nas

liacutenguas latinas como veremos adiante 222 Op cit pp 84-85

244

Sobre a conversatildeo do metro a liacutenguas neolatinas ndash que devo abordar para

fundamentaccedilatildeo do que seraacute proposto por fim ndash recorrerei a um esclarecedor artigo

publicado na revista espanhola Estudios clasicos (1971)223

de autoria de Francisco

Pejenaute que traz um panorama dos modos com que se adapta ou se adaptou o

hexacircmetro ao espanhol terei como uma das principais fontes tambeacutem comentaacuterio de

Castilho sobre o hexacircmetro portuguecircs

Pejenaute categoriza modos de adaptaccedilatildeo do metro identificando quatro

sistemas diversos de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

a) adaptacioacuten ldquoa la grecolatinardquo la de aquellos que despueacutes de admitir que la

cantidad puede ser tambieacuten en espantildeol elemento esencial em el verso y constitutivo

de ritmo y tras formular las leyes por las que se rige la cantidad en espantildeol han

intentado demostrar praacutecticamente su teoriacutea con alguacuten ejemplo b) sistema que

nosotros denominamos de yuxtaposicioacuten y que parte del deseo de imitar los

acentos del verso latino leiacutedo a la espantildeola [] los adaptadores por yuxtaposicioacuten

se han dado cuenta de que los acentos del hexaacutemetro latino [] formaban las maacutes

de las veces esquemas acentuales que divididos en dos hemistiquios teniacutean

parangoacuten acentual con determinados versos castellanos [] su sistema ha

desembocado finalmente em yuxtaponer dos versos castellanos dotando al segundo

de claacuteusula acentual hexameacutetrica c) sistema denominado legere por

L Alonso Schokel y ldquoriacutetmico-acentual intensivordquo por Huidobro [] simple

imitacioacuten de los acentos del verso claacutesico de modo que en el hexaacutemetro [] no

aparecen fijos maacutes que los dos uacuteltimos acentos mientras que los otros (dos tres o

cuatro) se distribuyen en el resto del verso caprichosamente [] d) sistema ldquopor

223 PEJENAUOTE F ldquoLa adaptacioacuten de los metros clasicos em castellanordquo In Estudios clasicos no 63

Madri 1971

245

ictusrdquo que Huidobro denomina ldquopor arsis y tesisrdquo y Schoumlkel scandere y que

intenta reconstruir el ritmo del hexacircmetro claacutesico tratando de reproducir [] los

ictus o tiempos marcados Aquiacute habraacute que hacer tres divisiones hexaacutemetro

dactiacutelico puro hexaacutemetro anacruacutestico y hexaacutemetro con sustituciones

A classificaccedilatildeo revela o quadro complexo de possibilidades adaptativas do

hexacircmetro conforme os referenciais que se adotam para a definiccedilatildeo do procedimento

fundamental relativo agrave composiccedilatildeo do ritmo do poema Mais uma vez instala-se a

multiplicidade de sistemas decorrentes de uma pluralidade de visotildees que buscam

coerecircncia do produto com seus propoacutesitos Nenhum dos sistemas como se sabe e se

veraacute poderaacute almejar a equivalecircncia ou a correspondecircncia completa entre os metros pela

ldquonaturezardquo diversa dos sistemas associados agraves diferentes liacutenguas por esta via de

constataccedilatildeo pode-se concluir da necessidade de soluccedilatildeo intriacutenseca agrave traduccedilatildeo que

busque diferentes niacuteveis de analogia com os esquemas proacuteprios dos modelos traduzidos

e natildeo o paradigma da correspondecircncia ldquofielrdquo a tais modelos Voltando agraves categorias

distinguidas por Pejenaute segue alguma explicitaccedilatildeo e alguma exemplificaccedilatildeo

(necessaacuteria para o que discutiremos)

a) Adaptacioacuten a la greco-latina

[] no hay maacutes ejemplo claro queel hexaacutemetro cuantitativo de D Sinibaldo de

Mas [] [Eacutel] defiende no soacutelo que existenlargas y breves en castellano sino que

esa cantidad [] es o puede ser [] um elemento constitutivo de ritmo []

Siguieacutendo [reglas de la cantidad en castellano] nos ofrece ldquohexaacutemetrosrdquo

cuantitativos como los siguientes

A tentativa eacute portanto de fazer valer a diferenccedila de duraccedilatildeo entre siacutelabas do

espanhol o comentaacuterio do ensaiacutesta aponta o que natildeo eacute difiacutecil antever ndash a natildeo-

246

funcionalidade do sistema diante de um padratildeo instalado de leitura com base em

tocircnicas

Si alguacuten ritmo tienen versos de este tipo proviene delos acentos que al final

aparecen seguacuten la foacutermula de laclaacuteusula hexameacutetrica []

Aqui uma questatildeo fundamental a assinalar a permanecircncia da ldquoclaacuteusulardquo224

seraacute

comum aos diversos sistemas o padratildeo de constacircncia ndash definido pela distribuiccedilatildeo de

tocircnicas proacutepria do sistema qualitativo portanto ndash conviveraacute em geral com variaccedilotildees

diversas de esquema acentual (mesmo que o criteacuterio natildeo seja o acento) No caso receacutem-

visto eacute apontado o papel determinante das siacutelabas tocircnicas (e natildeo das ldquolongasrdquo e

ldquobrevesrdquo) para a configuraccedilatildeo do ritmo Seguem-se informaccedilotildees referentes agrave categoria

seguinte

b) Adaptacioacuten por yuxtaposicioacuten

Para [Juan Gualberto Gonzaacutelez] en el exaacutemetro latino se encierran [] todas

nuestras combinaciones meacutetricas [] Toda su teoriacutea de la adaptacioacuten de los metros

claacutesicos tiene sus raiacuteces en este principio [] todo hexaacutemetro latino puede

descomponerse en alguacuten verso castellano maacutes algo (praacutecticamente en dos versos

castellanos) []

Los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola resultan ser una yuxtaposicioacuten de dos

versos ya conocidos del castellano []

Para adaptar en castellano el hexaacutemetro latino no hay maacutes que yuxtaponer dos

versos castellanos []

Incluem-se em seguida como exemplo versos do tradutor mencionado (nos quais

assinalo as siacutelabas tocircnicas finais para evidenciar a presenccedila do ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo)

El pastor Coridoacuten al bello Alexis amaba

delicias de su duentildeo mas esperar no teniacutea

En la espesura solo de unas altiacutesimas hayas

andaba de continuo dando a los montes y selvas

224 A sequecircncia _UU _U no final do verso (um peacute daacutectilo e outro interrompido) como jaacute se viu eacute

caracteriacutestica do metro utilizado nos poemas eacutepicos o denominado ldquohexacircmetro dactiacutelico cataleacutecticordquo (ou

seja ao qual suprimiu-se uma siacutelaba em seu final) Chamarei de ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo a sequecircncia (a

que Pejenaute chama ldquoclaacuteusula hexameacutetricardquo)

247

Sobre o terceiro e o quarto tipos de adaptaccedilatildeo diz o autor

c) Adaptacioacuten por el sistema ldquolegererdquo

[] se trata de [mediante este sistema] reproducir acuacutesticamente la sensacioacuten que

producen en nosotros los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola un ritmo

indefinido vago impreciso en la mayor parte del verso que se canaliza y encauza

al llegar al final mediante la dipodia dactiacutelico-espondaica claacuteusula del hexaacutemetro

claacutesico donde la mayor parte de las veces el acento veniacutea a caer en tiempo

marcado

d) Adaptacioacuten por el sistema ldquoscandererdquo

Intenta reproducir mediante el acento los ictus o tiempos marcados del hexaacutemetro

claacutesico [] Tenemos [las variantes] []

1Hexaacutemetro dacti l i co puro que seriacutea [] la imitacioacuten mediante el acento

del hexaacutemetro ldquoholodaacutectilordquo esto es un verso de 17 siacutelabas225

con acento riacutetmico

en las siacutelabas 1ordf 4ordf 7ordf10ordf 13ordf y 16ordf o lo que es lo mismo una serie formada por

cinco grupos prosoacutedicos ternarios seguidos de uno binario todos ellos acentuados

en la primera siacutelaba

Como se pode notar o verso utilizado por Carlos Alberto Nunes em portuguecircs

corresponde a este modelo a equiparaccedilatildeo exata do sistema qualitativo com o

quantitativo tambeacutem a ele corresponde o sistema usado na tradicional metrificaccedilatildeo

inglesa e alematilde Segue-se um exemplo de verso da Iliacuteada em espanhol de Pedro-Luis

Heller

Esta pues fue hacia eacutel y la criada seguia sus pasos

sobre su seno llevando al caacutendido tierno infante

hijo querido de Heacutector igual a un astro hermoso

al que su padre llamaba Escamandrio en cambio los otros

laquoRey-de-ciudadraquo porque soacutelo aqueacutel amparaba a Troya

225 Observe-se que o sistema meacutetrico espanhol adota o padratildeo do verso grave (paroxiacutetono) para contagem

isto eacute considera uma siacutelaba aleacutem da uacuteltima tocircnica para estabelecer o nuacutemero de siacutelabas do verso (o

sistema que era praticado no portuguecircs antes da proposiccedilatildeo por Castilho do padratildeo do verso agudo ndash

oxiacutetono ndash prevecirc a natildeo contagem da uacuteltima siacutelada de uma palavra esdruacutexula no fim do verso e o acreacutescimo

de uma no caso de o verso terminar com palavra oxiacutetona) Assim as 17 siacutelabas mencionadas equivalem a

16 siacutelabas na contagem praticada em liacutengua portuguesa

248

2 Hexaacutemet ro dactiacute l i co anacruacutestico Aquiacute los grupos prosoacutedicos ternarios no

son cinco sino cuatro seguidos tambieacuten por uno binario todos igualmente com

acento en la primera siacutelaba y al frente de dichos grupos abriendo verso una o dos

siacutelabas en anacrusis226

que forman una especie de pie volado imprescindible para

totalizar los seis pies de los que necesariamente se compone esteverso

El adaptador maacutes consciente y maacutes convincente decuantos han seguido este

sistema es sin lugar a dudas D Joseacute Manuel Paboacuten y Suaacuterez de Urbina

A respeito da traduccedilatildeo de Paboacuten diz o apresentador de ediccedilatildeo de cantos da

Odisseia227

En vez de largas y breves una siacutelaba toacutenica seguida de dos aacutetonas en vez

de seis pies solamente cinco evitando asiacute la monoacutetona divisioacuten en

hemistiquios de tres pies [] Este ritmo resulta es cierto producto de uma

caprichosa convencioacuten pero es la maacutes perfecta imitacioacuten del hexacircmetro que

puede darse en nuestra lengua iquestQue a la larga resulta monoacutetono

Naturalmente Pero iquestno ocurre lo mismo con todos los metros y ritmos

[] los ensayos previos admitiacutean lo que el autor llama una anacrusis al

principio es decir los inicios de versos podiacutean ofrecer bien una o bien dos

siacutelabas aacutetonas [] e nesta versioacuten que ahora ofrecemos [] ha sido

eliminado este tipo de versos con una sola aacutetona para que no surja un

encabalgamiento con el cual la recitacioacuten se hariacutea maacutes monoacutetona y confusa

al empalmar unos versos con otros Se trata en general [] de pequentildeos

recursos para compensar la inevitable tendencia a la monotoniacutea que corre el

riesgo de producir la rigidez del sistema frentea la libertad del original con

sus daacutectilos y espondeos

O tradutor utiliza portanto a anacruse para instalar um componente de

variabilidade ao verso Conheccedilam-se algumas linhas de sua Odisseia marco as

anacruses e os hexacircmetros dos primeiros versos

226Anacruse ldquosiacutelaba (ou siacutelabas) inicial de um verso anteposta agrave aacutersis que natildeo eacute levada em conta para

que se tenha convencionalmente o mesmo nuacutemero de peacutes dos demais versosrdquo ndash Houaiss 227HOMERO Cuatro cantos de la ldquoOdiseardquo (IX XIII XIV XXII) Trad de Joseacute Manuel Paboacuten Com

introd de M F G Suplementos de Estudios Claacutesicos no 7 Madri 1969

249

Canto IX

Contestando a su vez dijo Ulises el rico en ingenios

Prez y honor de tus hombres Alciacutenoo sentildeor poderoso

halaguumlentildeo es sin duda escuchar a un cantor como eacuteste

semejante en su voz a los dioses Yo pienso de cierto

que el extremo de toda ventura se da soacutelo cuando

la alegriacutea se extiende en las gentes y estaacuten los que comen

Veja-se o tipo seguinte

3 Hexaacutemet ro dactiacute l i co con susti tuciones Al igual que en el hexaacutemetro

claacutesico los grupos silaacutebicos no van fijos maacutes que en 5ordf y en 6ordf posicioacuten

pudieacutendose dar alternancia de ternarios y binarios en loscuatro primeros pies De

cuantos sistemas se han seguido eacuteste nos parece el maacutes acertado y el que mejor se

amolda al modelo claacutesico El nuacutemero de siacutelabas oscila entre 13 y 17 los acentos

van formando grupos riacutetmicos de tres o de dos siacutelabas y terminan con la claacuteusula

hexameacutetrica

Como exemplo versos do colombiano Joseacute Eusebio Caro nos quais assinalo as

tocircnicas

Ceacutefiro rdpido laacutenzate Raacutepido empuacutejame y vivo

Maacutes redondas mis velas pon del proscrito a los lados

haz que tus silbos susurren dulces y dulces suspiren

[]

Na liacutengua portuguesa diversos tradutores praticaram a adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

greco-latino Tem-se notiacutecia do ldquohexacircmetro portuguecircsrdquo por meio do escritor Antoacutenio

Feliciano de Castilho (1800-1875) no seu jaacute mencionado Tratado de metrificaccedilatildeo

portuguesa (1851) Nessa e em trecircs ediccedilotildees seguintes do livro assim expressa Castilho

sua opiniatildeo acerca do tema

250

[] A tentativa natildeo jaacute moderna mas em que tanto insistiu modernamente o nosso

aliaacutes bom engenho Vicente Pedro Nolasco de fazer versos portugueses

hexacircmetros e pentacircmetros eacute uma quimera sem o miacutenimo vislumbre de

possibilidade Carecendo de quantidades condiccedilatildeo indispensaacutevel para os onze peacutes

do diacutestico o portuguecircs nada mais pode que arremedaacute-lo [] insistir em tatildeo

evidente mateacuteria [] fora malbaratar o tempo que as satildes doutrinas estatildeo pedindo

No entanto em texto posteriormente escrito ndash destacado mencione-se pela

ensaiacutesta portuguesa Maria Leonor C Buescu em livro seu228

ndash o autor emenda outro

comentaacuterio reconsiderando seu pensamento sobre o assunto229

a complementaccedilatildeo eacute

publicada na ediccedilatildeo de 1874230

do Tratado constando a data de 1871 como aquela em

que o trecho foi escrito

Entretanto agora quatro anos depois da quarta ediccedilatildeo refletindo novamente

na mateacuteria confessamos que a exclusatildeo absoluta que faziacuteamos da metrifiacutecaccedilatildeo

latina para o portuguecircs jaacute nos natildeo parece tatildeo bem fundada Subsiste sim a objeccedilatildeo

de natildeo haver em nossa liacutengua as quantidades como havia no latim mas a essa

pode-se responder que os entendedores desse belo idioma dado o natildeo saibam

pronunciar nem por consequecircncia lhe possam conhecer as longas e as breves natildeo

deixam contudo de reconhecer a harmonia dos versos de Virgiacutelio ou de Oviacutedio

tanto assim que na leitura embora raacutepida estremam logo como quer que seja um

metro que por ventura escapasse mal medido Esta soacute ponderaccedilatildeo jaacute persuade que

o nosso ouvido que assim aprecia esses metros pronunciados sem a respectiva

prosoacutedia antiga e agrave portuguesa bem pode por analogia achar muacutesica aceitaacutevel nos

que em portuguecircs se lhes assemelharem

228 O referido texto estaacute incluiacutedo quase na iacutentegra ndash com o tiacutetulo ldquoMuacutesica aceitaacutevelrdquo ndash na seccedilatildeo

ldquoDocumentaacuterio antoloacutegicordquo do volume Buescu Maria Leonor Carvalhatildeo Aspectos da heranccedila claacutessica

na cultura portuguesa Biblioteca Breve Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1979 229 Sugeriu-me uma vereda de pesquisa relativa ao tema um alerta para a mudanccedila de opiniatildeo de Castilho

feita durante palestra por Joatildeo Acircngelo de Oliva Neto que desenvolve pesquisa na aacuterea 230 O trecho acrescentado consta de ediccedilatildeo revista e aumentada do Tratado

Castilho A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Seguido de consideraccedilotildees sobre a declamaccedilatildeo e

a poeacutetica 4ordf ediccedilatildeo revista e aumentada Lisboa Livraria Moreacute-Editora 1874 No entanto nesse fragmento cuja escrita eacute datada de 1871 Castilho refere-se a terem se passado quatro

anos desde a quarta ediccedilatildeo o que mostra tratar-se de ediccedilatildeo nova ainda que permanecesse como

ldquoquartardquo

Trechos do volume em questatildeo em formato ldquoPDFrdquo estatildeo disponiacuteveis mediante consulta por palavras na

internet o texto integral do livro encontra-se acessiacutevel por meio de coacutepia digital (ldquofull textrdquo em formato

ldquotxtrdquo) as ediccedilotildees anteriores da obra tambeacutem podem ser lidas na iacutentegra

251

Uma vantagem grande e grandiacutessima poderia ter esta introduccedilatildeo se por uma parte

os hexacircmetros e pentacircmetros natildeo fossem feitos senatildeo por quem andasse bem

enfrascado na liacutengua do Laacutecio e possuiacutesse assaz de engenho para os imitar com

felicidade e por outra parte os leitores natildeo tivessem negaccedilatildeo ou completa falta de

conhecimentos para os apreciarem a vantagem repetimo-lo seria o muito maior

acircmbito que assim adquiriria a emissatildeo do pensamento poeacutetico O alexandrino tatildeo

guerreado jaacute afinal pegou e estaacute generalisadiacutessimo e por quecirc natildeo tanto pela sua

muita muacutesica como pela sua extensatildeo logo a mediccedilatildeo latina por inda mais

extensa muito melhor se acomodaria agrave ambiccedilatildeo de espaccedilo em que os poetas tantas

vezes laboram

Outra consideraccedilatildeo natildeo despicienda ao mesmo tempo que todos os nossos outros

metros satildeo obrigados a nuacutemero invariaacutevel de siacutelabas estes novos pela liberdade de

entremear ad libitum arremedos de daacutetilos e espondeus satildeo susceptiacuteveis de muito

maior focirclego O hexacircmetro pode constar de treze quatorze quinze dezesseis ou

dezessete siacutelabas isto eacute quatro siacutelabas mais que o opulento alexandrino e o

pentacircmetro de doze ateacute treze ou quatorze siacutelabas Mas deixando explicaccedilotildees

teoacutericas vejamos um fragmento de uma tentativa feita por poeta devidamente

versado no latim

Hexacircmetro

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrazada no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entreas sombras da tarde

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

ampc ampc ampc

252

Observemos os hexacircmetros (de autoria de Juacutelio de Castilho filho do autor)

citados como exemplo Primeiramente seraacute feita uma possiacutevel notaccedilatildeo dos peacutes daacutectilos

com base na ideia do sistema agrave maneira greco-latina (ldquoadaptacioacuten a la greco-latinardquo na

classificaccedilatildeo de Pejenaute) considerando a menccedilatildeo de Castilho a ldquodaacutectilos e

espondeusrdquo pode-se entender a variaccedilatildeo dos peacutes nos versos agrave possibilidade de

atribuiccedilatildeo do valor de ldquolongardquo ou ldquobreverdquo agraves siacutelabas o que implicaria a ocorrecircncia

potencial da sucessatildeo de duas longas Veja-se como ficariam os versos escandidos

conforme uma hipoacutetese baseada na configuraccedilatildeo dos peacutes pelo aspecto quantitativo

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

_ U U _ U U _ _ _ U U _ UU_ U

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U U_ U

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

_ U U _ _ _ U U _ U U _ UU_ U

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

_ _ _ U U _ U U_ U U_ U U _ U

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

_ U U _ _ _ U U _ U U_ U U _ U

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

_ _ _ U U _ U U_ U U _ U U _ U

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

_ UU _ _ _ U U _ U U _ U U_ U

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

_ _ _ U U_ U U _ U U _ U U _ U

253

Todos os versos seriam assim hexacircmetros (isto eacute com seis peacutes daacutectilos cada)

um padratildeo adaptativo fundado no uso das siacutelabas do portuguecircs de modo anaacutelogo agraves

siacutelabas do grego ou do latim atribuindo-lhes portanto diferentes duraccedilotildees (longa

breve) independentemente de sua tonicidade No entanto considerando a leitura

tradicional e habitual dos versos das liacutenguas modernas baseada nos acentos (e no

nuacutemero de siacutelabas) realizemos uma escansatildeo ldquoconvencionalrdquo dos mesmos versos231

Antes poreacutem faccedila-se a ressalva de que haveraacute certamente diferentes possibilidades de

leitura interpretativa das configuraccedilotildees meacutetricas232

opto por aquela que me parece mais

efetiva na configuraccedilatildeo riacutetmica em portuguecircs e atende aos propoacutesitos deste estudo a

busca de um possiacutevel padratildeo adaptativo (ou seja anaacutelogo) para o hexacircmetro Tais

versos todos com 15 siacutelabas podem ser entendidos como formados por justaposiccedilatildeo de

dois hemistiacutequios um de seis siacutelabas233

e outro de nove contudo desde a pausa da sexta

siacutelada faz-se uma sequecircncia de trecircs daacutectilos234

e um uacuteltimo falto de uma siacutelaba

(incluindo-se no final portanto o ldquomoacutedulo dactiacutelicordquo _UU_U)

A bru ma do alto marsome ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias bri lha soacute tris te Dido o teu mundo era Eneias

E Eneacuteias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

231 A razatildeo a ser logo reiterada eacute a provaacutevel inadequaccedilatildeo de um sistema quantitativo imposto no

contexto de nossa tradiccedilatildeo literaacuteria que natildeo inclui a referecircncia a padrotildees baseados em duraccedilatildeo silaacutebica 232 A definiccedilatildeo dos modos de composiccedilatildeo hexameacutetrica utilizados pode causar disparidades faccedilo uma

possiacutevel leitura do procedimento com base na observaccedilatildeo e na tipologia descrita para o espanhol ainda

que natildeo seja a considerada pelo autor dos versos Tratando-se de possibilidades de leitura Pejenaute

assim se refere agraves diferentes interpretaccedilotildees dos hexacircmetros de certo poeta

ldquoLa eacutegloga de Villegas Licidas Coridoacuten Poeta ha sido muy diversamente valorada en cuanto a sus

aspectos literaacuterio y formal Por lo que se refiere a la interpretacioacuten de los ldquohexaacutemetrosrdquo en que estaacute

compuesta las opiniones pueden alinearse en alguno de los apartados siguientes

1 Interpretacioacuten acentual Martiacutenez de la Rosa Narciso Alonso Corteacutes J M Pemaacuten T Navarro Tomaacutes

etc 2 Por yuxtaposicioacuten Huidobro 3 Acentualpor yuxtaposicioacuten Diacuteez-Echarri 4 Por largas y breves

Luzaacuten Saavedra Molina Garciacutea Calvo

La interpretacioacuten que maacutes nos satisface es la de Diacuteez-Echarri [] La repeticioacuten de octosiacutelabos por

ejemplo (de los dieciocho primeiros versos doce comienzan con tal grupo) maacutes el nuacutemero de acentos

que suele aparecer en el hexaacutemetro latino rematado todo ello con la claacuteusula final - - - es maacutes que

suficiente para explicar la laquocadenciaraquo que Alonso Corteacutes editor de Villegas encontraba en su poetardquo

Opcit p 226-227 233 O segmento inicial eacute semelhante ao praticado no verso alexandrino claacutessico 234 Pelo que se vecirc o moacutedulo dactiacutelico final pode ser identificado numa leitura com base nos acentos

porque haacute neste como nos demais casos (conforme se viu e veraacute) uma coincidecircncia com o padratildeo

acentual eacute cabiacutevel a hipoacutetese de que a opccedilatildeo pelo criteacuterio qualitativo no final dos versos se decirc com a

finalidade de definir a marcaccedilatildeo riacutetmica (lembre-se da observaccedilatildeo de Pejenaute sobre os versos com base

no criteacuterio qualitativo)

254

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

O ma ru lho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Cartago a sumir-se enter as sombras da tarde

em gemidos exala as profundas saudades em que arde

Pode-se constatar nos versos a irregularidade da distribuiccedilatildeo das tocircnicas

iniciais e a regularizaccedilatildeo dos acentos a partir da sexta siacutelaba Como tambeacutem se vecirc

predomina a existecircncia de seis tocircnicas em cada um deles quantidade que varia para

cinco (mas com a possibilidade de se contar uma semitocircnica)235

A frequecircncia de tocircnicas nos exemplos ateacute agora vistos pode constituir uma

referecircncia na procura de analogia com o hexacircmetro quantitativo pois ainda que fosse

possiacutevel considerar duraccedilotildees independentemente dos acentos na praacutetica de liacutenguas

neolatinas como o portuguecircs e o espanhol as siacutelabas tocircnicas eacute que constituem o

principal determinante do ritmo (como jaacute foi apontado em citaccedilatildeo de Piejenaute) A

sucessatildeo de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ndash que ocasiona portanto a

definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias e ternaacuterias (conforme o padratildeo riacutetmico da liacutengua

portuguesa) ndash permite apesar das variaccedilotildees o estabelecimento da expectativa de

repeticcedilatildeo (condiccedilatildeo fundamental ao ritmo marcado) em versos mais longos Como

qualidade baacutesica comum a diversas das adaptaccedilotildees apresentadas a desejaacutevel (de meu

ponto de vista) associaccedilatildeo entre a constacircncia e a variabilidade que natildeo ocasiona a

criticada monotonia resultante da marcaccedilatildeo exclusivamente ternaacuteria no sistema

qualitativo

Mas retornemos a Castilho ele apresenta em seguida236

exemplo (do mesmo

autor) de outra possibilidade de composiccedilatildeo que consistiria em diacutesticos de hexacircmetros

e pentacircmetros

235Notem-se os acentos secundaacuterios assinalados com pontilhado (menor intensidade) ou linha

interrompida (maior intensidade) numa leitura possiacutevel 236

Op cit pp 31-32

255

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido

No rude turbilhatildeo que lhe agita as turbadas idecircas

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneas

E Eneas vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

matildeo superna lhe aponta as regiotildees latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e o uivar do largo vento imita a labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

em gemidos exala o acerbo amor em que arde

ampc ampc ampc 237

De iniacutecio examinemos uma possibilidade de escansatildeo238

baseada no criteacuterio

quantitativo ou seja de cinco peacutes (daacutectilos e espondeus) formados de siacutelabas longas e

breves

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias(1-3-6-9-(10)-12)

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U

matildeo superna lhe a ponta as regiotildees latinas(1-3-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

237 Castilho encerra seu comentaacuterio com uma exortaccedilatildeo ao trabalho em ldquoamplas formasrdquo ldquoSe as amostras

que deixamos transcritas lograrem a fortuna de persuadir aos espiacuteritos natildeo-hoacutespedes no latim que a

novidade pode ser prestadia a esses rogamos que ponderem que imensa facilitaccedilatildeo natildeo encontraria para o seu trabalho nestas amplas formas quem empreendesse dar agrave nossa literatura os grandiosos poetas

romanos Eacute ponto que vale a pena de ser meditado 30 de julho de 1871rdquo 238 A escansatildeo envolve a incerteza considerando-se a existecircncia de diversos modos de adaptaccedilatildeo do

hexacircmetro e o fato de eu natildeo ter obtido fonte explicitadora das possibilidades ou maneiras de aplicaccedilatildeo

de regras da metrificaccedilatildeo latina para a configuraccedilatildeo dos peacutes em portuguecircs conforme a praacutetica da eacutepoca

256

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Eacute evidente a coerecircncia da configuraccedilatildeo que reforccedila a hipoacutetese do sistema

empreendido pelo autor Mas adotando-se novamente a ideia de busca de

correspondecircncias identificaacuteveis nos padrotildees de metrificaccedilatildeo qualitativa vejamos como

poderiam ser ldquolidosrdquo deste modo os versos

Pode-se reconhecer tambeacutem nos pentacircmetros (a seguir isolados) a justaposiccedilatildeo

de dois segmentos desta vez hexassiacutelabos ambos entre parecircnteses ao lado de cada

linha as posiccedilotildees das tocircnicas e semitocircnicas (entre parecircnteses internos) evidenciando-se

padrotildees do dodecassiacutelabo em portuguecircs

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias (1-3-6-9-(10)-12)

matildeo superna lhe a ponta as regiotildeeslatinas (1-3-6-(8)-10-12)

seinquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

Todos os versos terminam com uma sucessatildeo de duas ceacutelulas binaacuterias

descendentes ou seja dois troqueus ldquoacentuaisrdquo (uma relativa exceccedilatildeo eacute o quinto verso

com acento secundaacuterio definindo a sequecircncia) e totalizam doze siacutelabas (Do ponto de

vista acentual haacute predominacircncia de versos nesse peacute uma vez que embora haja igual

nuacutemero de versos que se iniciam por ceacutelulas jacircmbicas e trocaicas os primeiros natildeo

prosseguem com um conjunto uniforme desse padratildeo) A soluccedilatildeo pentameacutetrica

257

portanto (que tambeacutem permite outras possibilidades de leitura) vista deste modo

(baseado em sistema qualitativo) parece definir-se pela variaccedilatildeo da posiccedilatildeo das tocircnicas

(cinco com possiacutevel adiccedilatildeo de semitocircnica) e pela presenccedila constante de uma sequecircncia

trocaica final

Vejamos mais alguns exemplos de adaptaccedilotildees do hexacircmetro ao portuguecircs

citando-se versos do jaacute mencionado ldquoantecessorrdquo de Odorico Mendes em versatildeo

decassilaacutebica da Iliacuteada (embora apenas do primeiro canto) Joseacute da Costa e Silva autor

tambeacutem de epiacutestolas239

Destas quase todas satildeo feitas em decassiacutelabos como no breve

exemplo seguinte (de versos heroacuteicos) dedicado ao tradutor da Eneida Barreto Feio240

Epiacutestola I (Epiacutestolas Livro V)

Da sepultada ineacutercia e do oacutecio rude

Diferenccedila natildeo faz Barreto amigo

Quando esconde seus raios a virtude

Disse ldquoquaserdquo porque a Epiacutestola VIII241

eacute composta em versos adaptados do

hexacircmetro e dedicados ao praticante dessa modalidade Vicente Pedro Nolasco da

Cunha citado como referecircncia por Castilho

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma242

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe 243

239 Veja-se Livro V ndash Epiacutestolas In Poesias de Joseacute Maria da Costa e Silva ndash Tomo III Lisboa

Typographia de Antoacutenio Joseacute da Rocha 1844 240 Assim eacute a dedicatoacuteria que antecede a epiacutestola ldquoAo Sr Joseacute Vigtorino Barreto Feio (Capitatildeo do

Regimento de Cavalaria n 3 e mais correcto Poeta que se dava a traduzir a Eneida em verso solto)rdquo Op cit p 112 241

Do mesmo livro IV das Poesias pp 232-237 242 Este verso e o seguinte aparecem assim no corpo do poema ldquoOh tu que do Tejo Cisne de cacircndida

plumardquo ao Tames voaste onde o teu canto divinordquo no entanto constam da ldquoErrata do terceiro volumerdquo

na qual se indica a forma que aqui consta como sendo a correta Op cit p 292

258

De ti inda folgo quando teus versos escuto

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)244

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recursos

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)245

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)246

Faccedilo a seguir possiacutevel escansatildeo de alguns versos com base em criteacuterio

quantitativo247

observe-se a invariaacutevel presenccedila do moacutedulo definidor do hexacircmetro

dactiacutelico no quinto e sexto peacutes

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

_ _ _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

[]

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

243 Consta na ediccedilatildeo original a seguinte nota referente a esse verso ldquoAlusatildeo ao beliacutessimo Poema

Filosoacutefico de Darwin intitulado o Jardim Britacircnico que o Doutor Nolasco traduziu em verso e imprimiu

quando ainda estava em Lisboardquo Id p 232 244 Id p 233 Note-se na sequecircncia de versos o elogio do sistema praticado por Nolasco 245 Consta no livro relativa a esse verso a seguinte nota ldquoVerso do Doutor Nolasco no seu poema = O

Incendio de Moscourdquo 246 Corresponde a esse verso a seguinte nota na ediccedilatildeo ldquoO Incecircndio de Moscou foi o primeiro Poema Hexameacutetrico que em Portuguecircs se imprimiu Eacute de esperar que os amadores da verdadeira Poesia se natildeo

neguem a aperfeiccediloar e moldar ao Gecircnio da liacutengua uma tatildeo vantajosa metrificaccedilatildeordquo 247 Aqui como no caso anterior a escansatildeo traz incerteza Do modo como vejo resulta um nuacutemero

aparentemente excessivo de espondeus o que potildee em duacutevida a correccedilatildeo da leitura Seja como for

interessa-nos a diversidade da distribuiccedilatildeo e a presenccedila fixa da sequecircncia final de dois daacutectilos como

paracircmetro de identificaccedilatildeo do verso

259

De ti inda folgo quando teus versos escuto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Prosseguindo a busca de um caminho que se depreenda da transmigraccedilatildeo do

sistema quantitativo ao qualitativo como oacuteptica de interpretaccedilatildeo riacutetmica vejamos

agora como ficaria a escansatildeo dos versos com base nas tocircnicas

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

De ti inda folgo quando teus versos escuto

Amor das Artes Gecircnio Febeia coroa

Peito que natildeo turbam drsquoalheia gloacuteria Luzes

Contigo me enlaccedilam fique a Tersites infame

Iacutenvido morder-se quando a Virtude se eleva

Na voz deprimindo o que imitar desejava

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recurSOS

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

260

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)

Pode-se verificar da relativamente longa amostra que todos os versos

apresentam com o criteacuterio acentual (com apenas dois pontos que poderiam suscitar

duacutevida pela leitura em hiato de ldquogloacuteriardquo e ldquogecircniordquo) o dito moacutedulo hexameacutetrico Haacute

tambeacutem padrotildees da distribuiccedilatildeo das tocircnicas que se repetem (como U_ U_ U_ UU

_UU _U ou _ UU_U_UU _U U_U)248

com ocorrecircncia em quase todos os casos de

cinco tocircnicas no verso Desta como de outras observaccedilotildees acerca do comportamento e

possibilidades dos versos proporei a anunciada opccedilatildeo meacutetrica para um breve exerciacutecio

tradutoacuterio de fragmentos da Odisseia

248 Lembro para evitar confusotildees de leitura que temos usado a mesma notaccedilatildeo para distinguir as siacutelabas

no sistema quantitativo (breves e longas) e qualitativo (tocircnicas e aacutetonas)

261

A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio

A partir de tudo o que se considerou passo a fazer breve apresentaccedilatildeo de um

modo de conceber a traduccedilatildeo de poesia voltado a um exerciacutecio tradutoacuterio de fragmento

da eacutepica homeacuterica

Como conceito fundamental compartilho da visatildeo de traduccedilatildeo de poesia como

recriaccedilatildeo ldquoparalela poreacutem autocircnomardquo do texto de referecircncia Isso significaraacute reconhecer

os elementos que compotildeem o texto nos planos de conteuacutedo e de expressatildeo no entanto

considerando-se o que se buscou definir como referecircncias definidoras da linguagem

poeacutetica seratildeo observadas no texto as caracteriacutesticas que seratildeo tomadas

prioritariamente como fontes de recriaccedilatildeo Relativamente ao campo do sentido seraacute

buscada a reconstruccedilatildeo de informaccedilotildees com os elementos com que se trabalha visando

a abranger o maacuteximo possiacutevel das informaccedilotildees consideradas essenciais pelo tradutor

em decorrecircncia da leitura Para se ter esse paracircmetro ainda que se leve em conta a

mutabilidade do sentido e sua associaccedilatildeo inevitaacutevel com a sonoridade e outros

componentes icocircnicos da composiccedilatildeo seraacute feita inicialmente uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do

texto grego que serviraacute de base no plano de conteuacutedo agrave elaboraccedilatildeo do ldquocanto

paralelordquo Este por sua vez teraacute suas proacuteprias regras e qualidades internas de

composiccedilatildeo com a busca de estabelecimento de correlaccedilotildees analoacutegicas vistas num

amplo espectro de possibilidades quanto a isso nada de novo uma vez que

intencionalmente ou natildeo o que se faz seraacute sempre uma obra correlata mas com

identidade proacutepria definida pelo conjunto de referecircncias e de opccedilotildees de configuraccedilatildeo

do labor poeacutetico Seratildeo buscadas neste caso a dinacircmica e a densidade sonora que de

meu ponto de vista atendem agrave opccedilatildeo de analogia com qualidades do texto grego e

tambeacutem agrave proacutepria concepccedilatildeo de poesia voltada ao uso de repeticcedilotildees (focircnicas

semacircnticas riacutetmico-acentuais icocircnico-visuais) integrantes da pretendida teia de

relaccedilotildees entre som e sentido natildeo se teraacute como pressuposto a ideia de siacutentese ldquoradicalrdquo

que traz inconveniecircncias ao teor tambeacutem narrativo da composiccedilatildeo Diga-se

especificamente que natildeo seraacute considerada a obrigatoriedade de manutenccedilatildeo da mesma

forma de epiacutetetos e foacutermulas ao longo dos versos nem da posiccedilatildeo em que ocorrem

pensando-se na variabilidade como um conceito adequado agrave tradiccedilatildeo e agrave atualidade da

poesia de liacutengua portuguesa Adoto como os trecircs tradutores aqui estudados a opccedilatildeo

262

pelo tom elevado da composiccedilatildeo coerente segundo certos pontos de vista com o teor

heroacuteico do poema

O primeiro passo diante da tarefa de recriar o texto grego seraacute de meu ponto de

vista estabelecer o paracircmetro meacutetrico com que se iraacute trabalhar E neste aspecto

concentraremos nossa proposiccedilatildeo uma vez que o processo tradutoacuterio geral

compartilharaacute de accedilotildees comparaacuteveis agraves accedilotildees de leitura empreendidas durante as

anaacutelises feitas neste trabalho

Com base no que se discutiu no toacutepico anterior escolho um modelo de metro

para orientaccedilatildeo do exerciacutecio que poderaacute constituir-se num paracircmetro feacutertil para futuras

traduccedilotildees Natildeo penso diga-se jaacute no uso de modelo baseado em sistema que natildeo o

qualitativo pela profunda introjeccedilatildeo desse paradigma de leitura na cultura literaacuteria

moderna mas da observaccedilatildeo de possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas

como a nossa proponho o seguinte esquema riacutetmico-meacutetrico

Os versos natildeo teratildeo quantidade fixa de siacutelabas pois esta natildeo eacute uma condiccedilatildeo

fundamental na definiccedilatildeo do ritmo em versos que se sucedem em grande quantidade

envolvendo o fluxo de uma narrativa que contaraacute frequentemente com o enjambement

Mas teratildeo cinco ou seis acentos considerando a necessidade de marcaccedilatildeo que reforce a

expectativa constante como marcaccedilatildeo riacutetmica ao longo dos sucessivos versos

ldquonarrativosrdquo A constacircncia poreacutem se aliaraacute agrave diversidade como jaacute se disse a sucessatildeo

de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ocasionaraacute a definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias

e ternaacuterias em conformidade com o padratildeo riacutetmico da liacutengua portuguesa Mas seraacute

tambeacutem regra baacutesica a presenccedila em cada verso do que denominei ldquomoacutedulo

hexameacutetricordquo ou seja (em termos acentuais) de um daacutectilo e um troqueu ndash ou de uma

ceacutelula ternaacuteria descendente e uma binaacuteria descendente ndash finalizando o verso

(considerando-se a relaccedilatildeo entre tonicidade e duraccedilatildeo pode-se entender que a uacuteltima

siacutelaba da ceacutelula binaacuteria poderaacute se prolongar exercendo tambeacutem o papel de pausa

realizando analogamente um espondeu) Todos os versos seratildeo portanto graves haacute

no entanto a possibilidade (natildeo praticada no exerciacutecio que apresento249

) da admissatildeo do

verso agudo cuja siacutelaba tocircnica final teria de ser seguida por siacutelaba aacutetona no proacuteximo

verso no fluxo dos versos o moacutedulo se manteria presente na impressatildeo propiciada pela

leitura Um modo de associar o mutaacutevel ao constante garantindo-se a identificaccedilatildeo do

249 Haacute uma uacutenica exceccedilatildeo um verso agudo terminado por reticecircncias a sugerir um ldquotempordquo adicional

compensador da siacutelaba faltante de todo modo o verso eacute seguido por siacutelaba aacutetona do verso contiacuteguo

263

paracircmetro ternaacuterio sem que se recorra a sua aplicaccedilatildeo invariaacutevel O esquema permite

frequentemente que se faccedilam versos dodecassiacutelabos de modo a compor um padratildeo de

meacutetrica irregular em torno de medida usual em nossa liacutengua aleacutem de ser escolha

defendida com propriedade para a recriaccedilatildeo da eacutepica (caso de H de Campos entre

outros)

Veja-se em seguida como resulta o exerciacutecio desenvolvido conforme o modelo

exposto250

Primeiramente eacute apresentada a traduccedilatildeo acompanhada do texto grego

depois inclui-se novamente a traduccedilatildeo desta vez assinalando-se as siacutelabas tocircnicas ( _ )

e por vezes tocircnicas secundaacuterias ()251

e anotando-se ao lado de cada verso o nuacutemero

de siacutelabas que a ele corresponde

250 Trata-se de work in progress passiacutevel de modificaccedilotildees e aperfeiccediloamento 251 Quando duas siacutelabas se juntam por elisatildeo e uma delas eacute tocircnica assinalam-se ambas para evidenciar a

contagem de uma uacutenica siacutelaba uma vez que natildeo se anota neste caso a separaccedilatildeo das siacutelabas a fim de

natildeo prejudicar a leitura Embora natildeo se indique ldquocom ardquo seraacute lido com ectlipse (ldquocorsquoardquo)

264

Odisseia XI

(1-83 180-208)

265

266

267

Odisseia

(XI 1- 83)

Quando depois descemos ao mar e ao navio (12)

primeiro ao mar divino o navio empurramos (12)

e da negra nau o mastro e as velas erguemos (12)

levadas a bordo as ovelhas pegas seguimos (13)

5 tristes aflitos vertendo laacutegrimas fartas (12)

Por traacutes da nau de escura proa Circe a terriacutevel (13)

deusa canora de belos cachos envia-nos vento (14)

propiacutecio a inflar as velas oacutetimo soacutecio (11-12 siacutelabas)

Cansados demais por cuidar de apetrechos do barco (14)

10 sentamos o vento e o piloto o navio guiavam (13)

Por todo o dia singramos velas infladas (12)

Pocircsto o sol cobriram-se de sombra os caminhos (12)

a nau atinge o limite do oceano profundo (13)

Laacute estatildeo a cidade e o paiacutes dos cimeacuterios (12)

15 pelo veacuteu das nuvens e das brumas envoltos (12)

Heacutelio raios-brilhantes nunca sob si os vislumbra (14)

nem ao subir ao alto do ceacuteu estelante (12)

nem ao baixar de novo do paacuteramo agrave terra (12)

estira-se a noite fatal sobre os pobres humanos (14)

20 Aportado o navio dele tiramos as reses (14)

retomamos entatildeo as ondas do oceano bravio (14)

ateacute chegar ao local predito por Circe (12)

Periacutemedes e Euriacuteloco nossas cabras pegaram (14)

e eu sacando da coxa a aguda lacircmina um fosso

268

25 cavei um cocircvado de lado a lado medindo (13)

e em volta verti libaccedilotildees a todos os mortos (13)

leite-mel a primeira um doce vinho a segunda (13)

e aacutegua a terceira espargi entatildeo alva farinha (13)

Jurei agraves muitas cabeccedilas ocas dos mortos (12)

30 que indo a Iacutetaca em sacrifiacutecio daria (13)

o melhor novilho fartando de bens nossa pira (14)

mataria uma recircs apenas para Tireacutesias (13)

negra de todo distinta entre nossas ovelhas (13)

Depois de preces e votos enviados aos mortos (13)

35 agarrei os dois animais degolando-os por sobre (14)

o fosso seu sangue quente ensombrado escorria (13)

almas subidas do Eacuterebo em torno se uniram (12)

jovens esposas e anciatildeos por demais padecidos (13)

virgens tenras de coraccedilotildees receacutem-magoados (13)

40 muitos feridos por lanccedilas brocircnzeas homens (12)

mortos por Ares as armas tintas de sangue (12)

tantos por todo lado a correr ante o fosso (12)

com muito rumor fui tomado por liacutevido medo (14)

Eu entatildeo depois de incitar os parceiros (11)

45 mandei que esfolassem as reses por mim degoladas (14)

e ambas logo queimassem rogando agraves deidades (13)

ao poderoso Hades e a Perseacutefone torva (13)

tomando da coxa a aguda espada sentei-me (12)

e natildeo deixei que as cabeccedilas ocas dos mortos (12)

50 o sangue alcanccedilassem antes que ouvisse Tireacutesias (13)

Veio primeiro a alma de Elpenor meu amigo (12)

ele natildeo estava ainda sob a terra tatildeo vasta (13)

por termos deixado seu corpo no paccedilo de Circe (14)

insepulto e natildeo-pranteado novas dores urgiam (14)

55 Ao vecirc-lo irrompi em pranto e apiedando-me dele (13)

passei a dizer-lhe as seguintes palavras aladas (14)

ldquoElpenor como vieste agrave treva brumosa (12)

269

Chegaste a peacute antes de mim que vim com a nau negrardquo (13)

Assim falei ele lamentando-se disse (12)

60 ldquoFilho de Laertes oh Odisseu astucioso (13)

afetou-me um mau nume aleacutem do vinho inebriante (13)

deitado no quarto de Circe natildeo cogitei em (14)

usar a grande escada para descer (11)

caiacute direto do eirado quebrei o pescoccedilo (13)

65 e minha alma entatildeo buscou o caminho do Hades (13)

Suplico-te pelos ausentes que vivem no alto (14)

por tua esposa e por teu pai que com zelo criou-te (13)

e por Telecircmaco filho que em casa deixaste (13)

sei que para ires da morada de Hades (12)

70 agrave ilha Eeia teraacutes um navio bem feito (12)

imploro senhor que te lembres de mim ao chegares (14)

Natildeo me deixes assim natildeo-pranteado e insepulto (12)

ao partires para que os deuses natildeo se ressintam (13)

mas queima-me junto a meus pertences e armas (12)

75 e ergue-me um sepulcro na praia do mar pardacento (14)

lembranccedila deste infeliz aos que viratildeo algum dia (14)

ao fim de tudo finca sobre a tumba o meu remo (13)

aquele que usava junto a meus companheirosrdquo (12)

Assim me falou e eu em resposta lhe disse (12)

80 ldquoTais coisas oh infeliz farei como queresrdquo (12)

Nos sentamos trocando palavras muito doiacutedas (14)

De parte eu mantinha a espada sobre o sangue das reses (14)

O espectro do outro lado lamentava deveras (13)

(XI 180 ndash 208)

[hellip]

180 Disse-me entatildeo em resposta minha matildee veneranda (14)

ldquoEla resignado coraccedilatildeo ainda persiste (14)

em teu palaacutecio satildeo-lhe sempre penosos (11)

270

os dias e as noites que passam laacutegrimas verte (13)

Ningueacutem tomou ainda o teu nobre domiacutenio (12)

185 Telecircmaco o comanda e tambeacutem frequenta as festas (13)

tal como conveacutem a quem reparte justiccedila (12)

Muitos o convidam Teu pai ainda se encontra (13)

no campo e nunca desce agrave poacutelis jamais utiliza (14)

cama nem cobertores ou mantos macios (12)

190 no inverno dorme com os escravos em casa (11)

na cinza junto ao fogo soacute veste farrapos (12)

Mas se vecircm o veratildeo e o outono abundante (12)

ali sobre o inclinado terreno da vinha (12)

deita em seu leito feito de folhas caiacutedas (12)

195 Vive sofrendo com sua grande dor progressiva (13)

agrave tua espera chega-lhe a dura velhice (12)

Foi assim que morri o meu destino seguindo (13)

a haacutebil arqueira252

natildeo me matou no palaacutecio (12)

jaacute que natildeo me atacou com suas flechas amenas (12)

200 nem de fato atingiu-me a doenccedila que tanto (12)

sofrimento horriacutevel faz e os membros definha (12)

tua falta o anseio por ti Odisseu grandioso (13)

e teu afeto levaram-me a vida meliacuteflua (13)

Assim dizia inquietando-me quis a meu peito (13)

205 estreitar a alma triste de minha matildee morta (12)

Trecircs vezes lancei-me pelo peito impelido (12)

trecircs vezes ela voou-me das matildeos como sombra (13)

e sonho Uma dor atroz o coraccedilatildeo machucou-me (13)

[]

Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia

252 Referecircncia a Aacutertemis (Odisseu tambeacutem perguntara a sua matildee se esta teria morrido por accedilatildeo das

flechas da deusa)

271

Conclusatildeo

Iniciemos esta parte conclusiva com a rememoraccedilatildeo dos ldquodois sentidosrdquo

existentes segundo Haroldo de Campos (conforme exposto na Introduccedilatildeo deste

trabalho) no que seria a operaccedilatildeo semioacutetica envolvida na traduccedilatildeo a fim de refletirmos

brevemente sobre eles agrave luz do que aqui se desenvolveu Sobre o primeiro o de que a

traduccedilatildeo poeacutetica ldquovisa ao intracoacutedigo que opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo diga-se

que como se procurou demonstrar o chamado ldquointracoacutedigordquo sempre seraacute observado

ainda que se questione a existecircncia de propriedades intriacutensecas ao texto ou

independentes da leitura se de fato a leitura eacute determinante do coacutedigo ela se apoacuteia em

elementos por ela identificados ou seja existentes por seu desvelamento Eacute evidente

contudo que o ldquointracoacutedigordquo observado o seraacute conforme o ponto de vista da

observaccedilatildeo eacute inevitaacutevel a adoccedilatildeo de referenciais norteadores da escolha durante a

leitura e portanto durante a traduccedilatildeo Campos refere-se a um referencial (de que

compartilhamos) para identificaccedilatildeo do intracoacutedigo a funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson (cujo

ldquoespaccedilo operatoacuteriordquo seria o proacuteprio intracoacutedigo) que permite a identificaccedilatildeo de

componentes das relaccedilotildees icocircnicas (para valer-me de outro aporte teoacuterico aqui referido

uacutetil nas operaccedilotildees de leitura e de recriaccedilatildeo) perceptiacuteveis no texto as quais conforme

concepccedilotildees que permanecem frutiacuteferas para as operaccedilotildees de leitura anaacutelise e recriaccedilatildeo

ndash como aqui se pretendeu re-demonstrar ndash caracterizariam a linguagem poeacutetica

Pelas razotildees exploradas neste estudo relativas agrave diferenccedila das liacutenguas agrave

transitoriedade do sentido agrave impossibilidade da traduccedilatildeo como processo simplesmente

de ldquopassagemrdquo de uma liacutengua a outra ou da inviabilidade da equivalecircncia ldquoliteralrdquo

absoluta entre conjuntos de informaccedilatildeo esteacutetica etc a traduccedilatildeo de poesia seraacute como

define o outro sentido previsto por Campos da operaccedilatildeo semioacutetica um ldquocanto

paralelordquo O teor de ldquomovimento paroacutedicordquo da traduccedilatildeo poeacutetica eacute evidente na leitura

comparativa das diferentes versotildees da eacutepica em portuguecircs cada uma eacute obra diversa

autocircnoma que suscita discrepantes impressotildees ndash e compreensotildees ndash pela leitura Mais

uma vez constata-se o oacutebvio que ainda por vezes eacute questionado a inexistecircncia da

traduccedilatildeo ldquoneutrardquo da qual o tradutor estaria ldquoausenterdquo por submeter-se ao original de

modo a apenas transpocirc-lo fiel a seu sentido e a seu estilo a outro idioma a proacutepria

traduccedilatildeo revela desde a origem de sua realizaccedilatildeo as escolhas do tradutor que por sua

272

vez satildeo indicadoras de seus pressupostos de leitura e compreensatildeo do fenocircmeno

poeacutetico Reitere-se portanto que os diferentes cantos paralelos seratildeo tatildeo diversos (ainda

que apresentem caracteriacutesticas homoacutelogas aos poemas de partida) quanto o satildeo os

criteacuterios adotados por cada tradutor conforme se mostra neste estudo e conforme

postulou inapelavelmente a teoria desconstrucionista

A relatividade dos procedimentos tradutoacuterios contudo natildeo seraacute suficiente para a

total relativizaccedilatildeo das traduccedilotildees como igualmente vaacutelidas por precondiccedilatildeo a anaacutelise

descritiva e comparativa poderaacute servir agrave observaccedilatildeo dos resultados obtidos dentro de

determinada proposiccedilatildeo e perspectiva tradutoacuteria e da coerecircncia entre estes e objetivos

sugeridos pelos procedimentos identificados Seraacute de pouca valia no entanto segundo a

perspectiva que aqui se procurou defender a busca de estabelecimento de um criteacuterio de

superioridade ou inferioridade de traduccedilotildees com base numa avaliaccedilatildeo quantitativa de

equivalecircncias devido propriamente agrave incondicional natureza paroacutedica (no sentido

etimoloacutegico)253

da recriaccedilatildeo poeacutetica

Quanto agrave possibilidade de anaacutelise objetiva de resultados esteacuteticos os elementos

considerados por referencial anterior como ldquoefeitosrdquo ou recursos esteacutetico-sonoros

podem ser percebidos e mesmo quantificados resta no entanto como problema a

possibilidade de demonstrar objetivamente a superiodidade esteacutetica de uma obra sobre

outra sem se considerarem os referenciais ou criteacuterios previamente estabelecidos do que

deveraacute ser considerado esteticamente superior Isso natildeo elimina o fato de que ao se

ouvirem obras diversas por exemplo se possa (independentemente de anaacutelise) ter a

niacutetida sensaccedilatildeo de melhores soluccedilotildees sonoras em uma do que em outra versatildeo por

pessoas de diferentes repertoacuterios inseridas num mesmo contexto linguiacutestico-cultural

etc sobre isso relembrem-se as tatildeo exploradas regras de composiccedilatildeo para que versos

resultem ldquoagradaacuteveisrdquo ao ouvido254

Talvez a dificuldade ndash ou mesmo impossibilidade

ndash de se dar conta de processos quantificadores da qualidade esteacutetica se possa explicar

pela natureza impressiva da arte verbal (como das demais artes) dotada de

potencialidade ilimitada para a produccedilatildeo de sugestotildees podemos entender a questatildeo agrave

luz do conceito (do qual me vali repetidas vezes) de primeiridade relativa ao iacutecone

253 Gr paroidiacutea [] do gr paraacute ao lado de + oacuteidecircecircs ode pelo lat parodigraveaae id (Houaiss)

254 Sobre o assunto evoque-se Castilho em cujo Tratado de metrificaccedilatildeo consta o seguinte

ldquoInvestiguemos pois quais sejam os principais requisitos para o agrado do verso abstraindo da ideia do

afeto do estilo e da linguagem De todos estes requisitos o primeiro eacute que o verso natildeo seja duro nem

frouxo []rdquo Op cit 1874 p 66 (Ao trecho seguem-se as definiccedilotildees de ldquoverso durordquo e ldquoverso frouxordquo e

a identificaccedilatildeo dos fatores que os determinam)

273

segundo a teoria de Peirce tal plano semioacutetico refere-se agrave qualidade que nada

representa mas se apresenta (releiam-se os apontamentos sobre o conceito de iacutecone na

paacutegina 27 deste estudo255

) Sendo os aspectos esteacuteticos do poema ligados a formas

sonoras riacutetmicas visuais etc (a iacutecones portanto) considere-se (como jaacute se viu na

referida paacutegina) que o objeto do iacutecone eacute uma simples possibilidade do efeito que poderaacute

ldquoproduzir ao excitar nossos sentidosrdquo (Santaella 1983 86) e que ldquoo interpretante que o

iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera possibilidaderdquo (p 87) Assim

considerando-se o caraacuteter de primeiridade de iconicidade das formas e das relaccedilotildees

entre as formas que compotildeem o poema (e estabelecem as ditas relaccedilotildees com o sentido

num processo de hibridismo siacutegnico) e portanto a sua natureza eminentemente

sugestiva poderaacute ser compreensiacutevel a dificuldade de estabelecimento de processos

voltados agrave mediccedilatildeo objetiva universalizante de propriedades esteacuteticas de uma obra de

arte verbal Por essa mesma razatildeo atribuiccedilotildees de representaccedilatildeo que se fazem a

elementos utilizados em poesia como por exemplo a mencionada definiccedilatildeo de

sentimentos propiciados pelas vogais (em Castilho e Grammont) seraacute sempre incerta

ainda que seu caraacuteter sugestivo no plano perceptivo e emocional seja inegaacutevel

Sobre as competentes traduccedilotildees escolhidas como objeto de estudo pudemos

observar suas especificidades principais e desse modo os caminhos proacuteprios

percorridos no processo tradutoacuterio depreendendo-se de cada uma um paradigma

metodoloacutegico ora afeito agrave siacutentese mais radical vinculada a um verso mais breve ora agrave

explicitaccedilatildeo narrativa relacionada agrave cadecircncia fixa de um verso longo ora agrave preocupaccedilatildeo

evidente (e expliacutecita pela abordagem teoacuterica) de ldquotranscriaccedilatildeordquo pautada pela densidade

de efeitos sonoros associados ao campo do sentido em siacutentese semacircntica menos

draacutestica Paradigmas bastante diversos que ilustram modelarmente a grande e niacutetida

heterogeneidade que pode existir entre diferentes recriaccedilotildees do mesmo texto

exatamente por serem recriaccedilotildees a convergir entre as trecircs obras portanto o ponto

comum da criaccedilatildeo paralela que busca ainda que de modos distintos o estabelecimento

de construccedilotildees anaacutelogas aos poemas gregos em sentido e em forma (todas apresentam

em maior ou menor concentraccedilatildeo nos diversos fragmentos vistos resultados afeitos agrave

relaccedilatildeo entre sonoridade e significaccedilatildeo) Nenhum dos tradutores pelo que se pode

255 Nessa mesma paacutegina em nota haacute preliminarmente um breve comentaacuterio acerca da natureza incerta

da avaliaccedilatildeo de ordem esteacutetica

274

depreender de suas realizaccedilotildees buscou apenas a correspondecircncia de significados ou a

ldquoliteralidaderdquo do sentido

De minha parte a proposiccedilatildeo de mais um paracircmetro meacutetrico-riacutetmico de traduccedilatildeo

da poesia eacutepica veio a resolver ndash ou encaminhou a resoluccedilatildeo ndash de um antigo anseio

pessoal pela compatibilizaccedilatildeo do aspecto dinacircmico necessaacuterio aos versos e do aspecto

de repeticcedilatildeo de referecircncia fixa desejaacutevel a uma longa sequecircncia deles No caso do

metro diga-se parece-me infrutiacutefera (assim como o eacute a busca de equivalecircncia literal no

plano do conteuacutedo) a procura de correspondecircncia mais ldquofielrdquo ao metro greco-latino

dada a distacircncia entre idiomas poesias sistemas meacutetricos e por fim entre as culturas

envolvidas O interessantiacutessimo esquema proposto por Andreacute Malta (do qual aqui se

tratou ainda que marginalmente por sua importacircncia) apresenta qualidades riacutetmicas e

poeacuteticas independentes dos criteacuterios que nortearam fundamentalmente sua escolha

(voltados agrave tentativa de equivalecircncia funcional que consideraria fatores como a

popularidade do metro a natureza oral das composiccedilotildees etc) O que me levou agrave busca

de um esquema riacutetmico diferenciado foi antes uma soluccedilatildeo que conjuminasse meus

interesses de ordem esteacutetica considerados no plano interno ao poema resultante da

traduccedilatildeo que ele emerja de tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas modernas eacute

esperado uma vez que muito se fez nessa aacuterea e muito se pensou a respeito do assunto

Ainda que guarde analogias desejaacuteveis com o metro antigo natildeo seraacute o princiacutepio

puramente de equivalecircncia sua motivaccedilatildeo mas o seratildeo sim pelo proacuteprio criteacuterio da

analogia (e de analogia ldquoflexiacutevelrdquo ndash assim como deveraacute ser penso a referente ao campo

semacircntico) as qualidades comuns de junccedilatildeo do instaacutevel com o estaacutevel do imprevisto

com o previsiacutevel

275

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APEcircNDICES

Trecircs accedilotildees criativas

1 Referente agrave discussatildeo sobre a especificidade da poesia

ldquoAo som de duas insocircniasrdquo conto que encerra a anguacutestia pela incerteza entre o

existente e o imaginado

2 Referente ao conceito de traduccedilatildeo como accedilatildeo paroacutedica

Traduccedilatildeo do poema ldquoCeasefirerdquo do poeta irlandecircs Michael Longley que faz uma

recriaccedilatildeo adaptada agrave forma de soneto inglecircs (em procedimento portanto radicalmente

paroacutedico) de episoacutedio particularmente marcante do canto XXIV da Iliacuteada no qual o rei

Priacuteamo de Troacuteia suplica a Aquiles que lhe entregue o cadaacutever (ultrajado) de seu filho

Heitor

3 Referente agrave proposiccedilatildeo riacutetmica associada ao meacutetodo tradutoacuterio

Aacuteudio da traduccedilatildeo por mim apresentada do fragmento do Canto XI da Odisseia (CD)

para evidenciar pela leitura o resultado do modelo meacutetrico proposto

283

AO SOM DE DUAS INSOcircNIAS

Je sentis ma gorge serreacutee par la main terrible de lacutehysteacuterie

Charles Baudelaire

Eis que coloquei minhas palavras em tua boca

Jeremias 19

Soacute sobrevivo se rio do que eacute seacuterio

Anocircnimo

Naquele dia do mecircs de marccedilo de 1909 Giovanni Pascoli havia recebido pela

manhatilde uma carta que o deixara inquieto Datada do dia 19 trazia um conteuacutedo

inesperado e a resposta a dar suscitava reflexatildeo embora natildeo pudesse tardar

Olhando a paisagem quieta do entardecer em peacute no poacutertico de sua bela casa em

Castelvecchio o poeta sentia um rebuliccedilo interior que o impedia de pensar com

clareza natildeo sabia se deveria responder agrave carta ou caso respondesse se deveria

fazecirc-lo de modo indefinido ou com decididas afirmaccedilotildees Optou por respondecirc-la

com evasivas cuidando contudo de natildeo alimentar esperanccedilas A despeito da

decisatildeo natildeo se tranquilizou por inteiro restando-lhe uma espeacutecie de tremor sutil na

matildeo direita suficiente para dificultar sua escrita restou-lhe tambeacutem um fio muito

fino e frio no abdome apesar da bebida quente que ingerira antes de se deitar A

estranha sensaccedilatildeo acabou permanecendo em sua noite insone povoada por

imagens de letras que se embaralhavam formando nomes a soar em sua mente

imersos em versos que natildeo conseguia delimitar e dos quais logo se esquecia numa

sucessatildeo de apariccedilotildees e perdas

Longe dali Ferdinand de Saussure depois de mais um dia dedicado agrave preparaccedilatildeo

da segunda seacuterie de conferecircncias sobre linguiacutestica geral que ministrava na

Universidade de Genebra tambeacutem natildeo pudera dormir e se dedicava a continuar

seus cadernos de estudo sobre anagramas sistematicamente preenchidos durante as

noites ateacute a hora em que o sono o impedia de prosseguir Nessa ocasiatildeo com a

insocircnia o trabalho avanccedilava ateacute um ponto em que sua vista se turvava e seu

pensamento se aturdia num misto de sonho e realidade que o tornava ainda mais

aflito quanto agrave veracidade de suas descobertas vinham-lhe agrave mente entatildeo a partir

de direccedilotildees difusas inauditos sons guturais enquanto sentia pouco a pouco a

garganta apertar-se Uma breve pausa e alguns goles de aacutegua sorvidos em silecircncio

num canto escuro eram suficientes para que se percebesse parcialmente refeito

retornando agrave sua longa tarefa

284

Apoacutes alguns anos de pesquisa incansaacutevel permanecia a duacutevida primaacuteria quanto agrave

proacutepria existecircncia do objeto de sua busca apesar do deslumbramento a que se

entregara por reconhecer tantos anagramas evidentes nas obras que examinava e

conseguir formular as regras que deveriam ter orientado os autores na realizaccedilatildeo

daqueles feitos poeacuteticos persistia nele um duro foco de incerteza imanente ao seu

estudo que se contrapunha ao encanto como um gume aguccedilado impiedoso a

introduzir-se cada vez mais fundo em seu espiacuterito Durante a madrugada aleacutem do

trabalho ocupava-lhe a imaginaccedilatildeo uma possiacutevel segunda carta dirigida a Pascoli

na qual formularia de maneira sucinta mas suficiente a questatildeo crucial que o

aliviaria pela resposta que obtivesse mesmo que negativa Lia e relia a primeira

carta enviada agravequele poeta um dos poucos a cultivar ainda a poesia latina e tantas

vezes premiado no Certamen Hoeufftianum da Academia de Amsterdatilde

Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propoacutesito da versificaccedilatildeo latina em

geral encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema ndash Certos

pormenores teacutecnicos que parecem observados na versificaccedilatildeo de alguns modernos

satildeo puramente fortuitos ou satildeo desejados e aplicados de maneira consciente

Entre todos aqueles que se distinguiram em nossos dias por obras de poesia latina e

que poderiam por conseguinte esclarecer-me satildeo poucos os que se poderia

considerar ter dado modelos tatildeo perfeitos como os seus e onde se sentisse tatildeo

nitidamente a continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo muito pura Eacute a razatildeo que me leva a natildeo

hesitar em dirigir-me particularmente ao senhor e que deve servir-me de justificativa

pela grande liberdade que tomo

Caso o senhor estivesse disposto a receber em pormenor minhas perguntas eu teria

a honra de enviaacute-las numa proacutexima carta

Saussure iniciara sua pesquisa sobre os anagramas em 1906 e a esta altura jaacute

havia preenchido seu 1170 caderno aleacutem de papeacuteis avulsos no momento fazia

anotaccedilotildees nas grandes folhas em que tratava dos poemas latinos de Pascoli e de

outro autor tambeacutem italiano e tambeacutem Giovanni Rosati Seus cadernos continham

essencialmente exerciacutecios de decifraccedilatildeo por meio dos quais buscava encontrar os

anagramas foneacuteticos que teriam sido incluiacutedos pelos versificadores um ou mais

versos comporiam uma certa palavra geralmente o nome de um deus ou de um

heroacutei ao escutar versos latinos Saussure ouvia levantarem-se pouco a pouco os

fonemas principais de um nome proacuteprio distribuiacutedos ndash acreditava ndash

intencionalmente e conforme normas definiacuteveis A cada lance de dados do olhar

surgia um premeditado arranjo anagramaacutetico a evidenciar a intervenccedilatildeo do

demiurgo uma inteligecircncia organizadora do caos que a sua proacutepria desvendava

285

divisados em toda parte os nomes insuflavam o seu acircnimo nunca serenado

todavia pela convicccedilatildeo

Pascoli professor da Universidade de Bolonha e portanto seu colega de ensino

acadecircmico seria seu salvador o deus vivo a revelar-lhe a proacutepria intenccedilatildeo

criadora a dar-lhe sustentaccedilatildeo agraves asas do seu vocirco a confirmar-lhe a determinaccedilatildeo

dos gestos por ele desvelados a dar-lhe a paz necessaacuteria agrave sua excitaccedilatildeo chatildeo a sua

descoberta sem limites

Ao raiar a aurora entrevendo por uma fresta um tecircnue raio de sol Saussure

adormeceu E teve um sonho curioso com estantes e estantes de livros numa delas

(onde seus olhos captaram de relance a palavra Ficccedilatildeo encerrada numa etiqueta)

apareceu-lhe num close a meia-luz ndash detalhe sobressaiacutedo em meio agraves contiacuteguas

ediccedilotildees na linha da prateleira ndash o tiacutetulo Sobre a psicopatologia da vida cotidiana

A inscriccedilatildeo o fez despertar lembrou-se logo de jaacute ter visto tal volume numa

livraria de Genebra sem chegar a folheaacute-lo ndash era sabia ele outra obra de Sigmund

Freud autor de A interpretaccedilatildeo dos sonhos que tambeacutem natildeo lera Tratava-se

aquele vislumbre de algo estranho e mero acaso como lhe pareciam ser quase

sempre os sonhos apoacutes deixar de lado os signos esvanecidos na memoacuteria voltou

ao seu mundo presente focalizando a resposta que receberia do poeta italiano

Maria irmatilde de Pascoli notou na manhatilde seguinte sua inquietude estava liacutevido

com as feiccedilotildees contraiacutedas visivelmente maldormido trazia uma expressatildeo rude

grave interrogativa aleacutem do habitual ar sombrio que se instalara nele desde o

assassinato nunca aclarado de seu pai Ruggero quando tinha apenas 12 anos Ela

ofereceu-lhe entatildeo um revigorante desjejum que ele mal tocou Ainda na mesa o

escritor relia versos seus de Ultima linea ndash Ergo Vergilius cecinit nova saecula

frustra frustra ego praedixi frustraque effata Sybilla est ndash de Senex Coricius ndash

Spectabat mare caeruleum de vertice collis mente Cilix tota Prope falx et marra

iacebant ndash e de Nestor na paacutegina casualmente aberta de Catullocalvos ndash sub

arbore umbra Nestoris sedet senis depois debruccedilou-se sobre versos de seus

familiares poetas latinos buscando neles tambeacutem possiacuteveis pormenores

teacutecnicos a que o linguista aludia Seriam procedimentos por ele ignorados E se

apareciam em seus proacuteprios poemas seriam fruto de uma consciecircncia misteriosa

que guiara sua pena uma consciecircncia alheia que o tornara um simples instrumento

de sua vontade Ou estaria tatildeo imbuiacutedo da poesia no idioma do Laacutecio que a criaria

em seus moldes como um meio transmissor de uma tradiccedilatildeo sem que isto se

286

limitasse agrave sua iniciativa Afinal ele Iohannis recebera medalhas de ouro do

concurso holandecircs o que revelava que aos olhos dos criacuteticos assim como aos do

proacuteprio Saussure seus versos eram legiacutetimos e destacados representantes da

poeacutetica latina Natildeo lhe agradava a ideia de natildeo saber coisas importantes acerca de

sua proacutepria obra composta com o maacuteximo de atenccedilatildeo labor dedicaccedilatildeo e controle

que podia oferecer a si mesmo naquilo que mais lhe importava conhecia e

estimava eacute claro os momentos em que lhe vinham soluccedilotildees sem que as

perseguisse as fases mais feacuterteis a inspiraccedilatildeo especial de alguns momentos sem

os quais acreditava ele natildeo seria um poeta mas a simples sugestatildeo de algo que

fizesse sem ter plena ciecircncia de que o fazia fincava-lhe novamente no abdome

um frio e fino fio como se a ponta delgadiacutessima de uma seta ou mesmo uma

agulha geacutelida estivesse cravando-se em suas entranhas Desencorajando o

interlocutor sobre a existecircncia de algo que natildeo identificava foi cortecircs o suficiente

em sua resposta para propiciar a nova e esperada carta com a questatildeo mais

definida acerca dos tais pormenores a mensagem natildeo categoacuterica dava-lhe a

alternativa de estar escondendo o que natildeo queria revelar em vez de atestar o

possiacutevel desconhecimento de algo que pudesse ser real

Ao receber a resposta de Pascoli Saussure inicialmente prostrou-se por natildeo lhe

indicar ela qualquer identificaccedilatildeo com suas sugestotildees Anteviu portanto a

negativa quanto agrave realidade de seus achados talvez apenas uma miragem uma

projeccedilatildeo de sua mente excitada sobre uma massa ou mancha que se prestava a

qualquer molde que a ela se impusesse Mas a chama de uma possiacutevel revelaccedilatildeo

vista a cada passo de seu empenho natildeo se apagava com mais uma incerteza e sua

iniciativa de escrever a segunda carta deu-se logo sem rodeios Era o dia 6 de

abril

Dois ou trecircs exemplos bastaratildeo para colocar o senhor no centro da questatildeo que se colocou

ao meu espiacuterito e ao mesmo tempo permitir-lhe uma resposta geral pois se eacute somente o

acaso que estaacute em jogo nesses poucos exemplos disso decorre certamente que o mesmo

acontece em todos os outros De antematildeo creio bastante provaacutevel a julgar por algumas

palavras de sua carta que tudo natildeo deve passar de simples coincidecircncias fortuitas

1 Eacute por acaso ou intencional que numa passagem como Catullocalvos p 16 o nome Falerni se

encontre rodeado de palavras que reproduzem as siacutelabas desse nome

facundi caacutelices hausere ndash alterni

FA AL ER AL ERNI

287

2 Ibidem p 18 eacute ainda por acaso que as siacutelabas de Ulixes parecem procuradas numa sequecircncia

de palavras como

Urbium simul Undique pepulit lux umbras resides

U UL U ULI X S S ES

assim como as de Circe em

Cicuresque

CI R CE

ou Comes est itineris illi cerva pede

A carta continuaria mas o essencial estava dito Se isto natildeo fosse como deixara

expliacutecito um procedimento consciente nada o seria e seu esforccedilo teria sido em

vatildeo A anguacutestia instalou-se nele com um suspiro indefiniacutevel pelo tempo que

durasse a espera de uma resposta que previa deseacutertica aacuterida vazia a consumir-lhe

o acircnimo

Sem prestar muita atenccedilatildeo agrave correspondecircncia Maria passou-a ao irmatildeo que

apanhou imediatamente dentre as diversas cartas a do mestre suiacuteccedilo Ela notou

mais uma vez que o desassossego tomava conta do poeta alccedilando-se pela

premecircncia de algo oculto a um niacutevel bem mais elevado do que aquele que percebia

nele desde os dias finais do uacuteltimo mecircs

Pascoli leu-a rapidamente e dirigiu-se como em busca de ar aos arredores de sua

residecircncia Uma neacutevoa discreta tomava conta do lugar fundindo-se a seu

pensamento curiosamente vago Natildeo pensara considerava-se certo disso em

espargir elementos de nomes nos poemas mas eles estavam ali e o remetente da

carta tinha razatildeo Desconhecia de fato algo que ele proacuteprio fizera Ou seu

conhecimento era maior do que supunha Por um instante pareceu-lhe natural que

tivesse engendrado tais palavras nos versos Seu devaneio ingressou numa

dimensatildeo mais interna a olhar para dentro buscando enxergar em meio agrave neacutevoa

que espelhava o exterior agora natildeo visto e viu um possiacutevel outro de si a rir de sua

ignoracircncia a ironizar sua cegueira Voltando novamente o olhar para o lado de

fora dominado por uma superfiacutecie vaporosa amena continuou a ver uma face de si

mesmo no eacuteter como um reflexo que natildeo obedecendo a seu gesto ria enquanto ele

franzia o cenho Seria este outro o autor daqueles gestos precisos de siacutelabas de

sons entremeando-se em seu ofiacutecio como uma linha que costura no tecido alheio

mas cede agrave fusatildeo de seu feitio Ou seu riso denunciava a natildeo-autoria de quem quer

que natildeo fosse a proacutepria escritura a gerar em seus meandros suas proacuteprias leis

288

dotada de um ceacuterebro motor da linguagem criador de urdiduras independentes do

veiacuteculo de sua concretizaccedilatildeo esta matildeo trecircmula

Natildeo havia resposta a dar sem partir-se sem negar a sua consciecircncia ou exaurir a

do outro ou afirmar o inexistente ou cegar-se diante da evidecircncia ou admitir que

sua poesia lhe era transcendente ou que se natildeo o era talvez fosse algo que natildeo

conhecia bem e se natildeo conhecia bem talvez natildeo existisse assim como sua

consciecircncia que agora lhe parecia demente com um teor indistinto de mentira a

roer-lhe desde dentro ndash e desde fora

Nada a responder A decisatildeo amainou-lhe a alma que clareava em seu centro

enquanto a neacutevoa se dissipava permitindo contornos mais niacutetidos O ar frio entrou

mais livremente em seus pulmotildees acalentando-lhe o peito revolto parecia

delimitar-se em raros traccedilos de vapor a face transluacutecida de seu pai sugerindo-lhe

com voz paacutelida e longiacutenqua que deixasse os misteacuterios se diluiacuterem nos vatildeos do

intelecto

No iniacutecio a ausecircncia de resposta intensificou a agrura de Saussure que febril jaacute

natildeo conseguia prosseguir a escrita em seus papeacuteis grandes As noites tornaram-se

vazias porque povoadas apenas de fantasmas Fantasmas satildeo nada vecircm e vatildeo agrave

mercecirc dos ventos de nossa fantasia emergem e retornam ao infinito das

possibilidades amorfas ao vazio das formas Soacute a intenccedilatildeo soacute o ato atento

determina a existecircncia do que se identifica o que apenas surge e some nada eacute

desprovido da determinaccedilatildeo da vigiacutelia Assim os sonhos incertos das noites em

Genebra quando a elas retornou o sono soacute reaparecido no momento em que os

cadernos foram definitivamente ocultados dos olhos exangues de seu autor num

moacutevel de soacutelida madeira

Marcelo Taacutepia novembro-dezembro de 2007

Nota Este conto foi motivado pelas informaccedilotildees contidas na obra As palavras sob as

palavras ndash os anagramas de Ferdinand de Saussure de Jean Starobinski (traduccedilatildeo de

Carlos Vogt) publicada em Satildeo Paulo pela editora Perspectiva em 1974 Os trechos das

cartas de Saussure foram retirados dessa ediccedilatildeo com alteraccedilotildees miacutenimas assim como dela

proveacutem alguma frase incorporada ao texto

289

POEMA DE MICHAEL LONGLEY256

Ceasefire

I

Put in mind of his own father and moved to tears

Achilles took him by hand and pushed the old king

Gently away but Priam curled up at his feet and

Wept with him until their sadness filled the building

II

Taking Hectorrsquos corpse into his hands Achilles

Made sure it was washed and for the old kingrsquos sake

Laid out in uniform ready for Priam to carry

Wrapped like a present home to Troy at daybreak

III

When they had eaten together it pleased them both

To stare at each otherrsquos beauty as lovers might ndash

Achilles built like a god Priam good-looking still

And full of conversation who earlier had sighed

IV

lsquoI get down on my knees and to what must be done

And kiss Achillesrsquo hand the killer of my sonrsquo

256 Nascido em Belfast em 1939 Michael Longley publicou entre outros os livros de poemas No

continuing city (1969) Man lying on a wall (1976) Poems 1963-1983 (1984) The ghost orchid (1995) e

Broken dishes (1998) Eacute membro da Royal Society of Literature

290

CESSAR-FOGO

I

Relembrando o proacuteprio pai lacrimoso Aquiles

Tomou a matildeo do velho rei com gentileza

Afastou-o mas Priacuteamo abraccedilou-lhe os peacutes

Choraram e a tenda inundou-se de tristeza

II

Tendo nas matildeos o corpo lavado de Heitor

Aquiles que respeito pelo rei nutria

Embrulhou-o numa tuacutenica qual presente

A ser ofertado a Troacuteia ao raiar do dia

III

Cearam juntos e entatildeo admiraram a

Beleza um do outro como o fariam amantes ndash

Aquiles qual um deus Priacuteamo ainda belo

E pleno de prosa ele que suspirara antes

IV

ldquoFaccedilo o que devo posto de joelhos me humilho

Beijo a matildeo de Aquiles que aniquilou meu filhordquo

(Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia)

Nota do trad ldquoCeasefirerdquo foi escrito segundo o autor quando ldquose rezava em seu paiacutes por

um cessar-fogo do Irardquo

  • DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUCcedilAtildeO DA EacutePICA HOMEacuteRICA COMO PARADIGMAS METODOLOacuteGICOSDE RECRIACcedilAtildeO POEacuteTICA
  • Resumo
  • Abstract
  • Sumaacuterio
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo I
    • 1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica
      • A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica
      • B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade
        • B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia
        • B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica
        • B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo
          • B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo
            • B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees
            • B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise
              • Capiacutetulo II
                • A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudoapresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo
                  • A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
                  • A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
                  • A3 Haroldo de Campos
                    • B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasilum trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais
                    • C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Camposa traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica
                      • C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo
                      • C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos
                      • C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura
                      • C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada
                          • Capiacutetulo III
                            • A Vozes para Homero
                              • A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade
                              • A2 Iliacuteada fragmentos
                              • A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem
                              • A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise
                                  • Capiacutetulo IV
                                    • A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio o hexacircmetro em portuguecircs
                                      • A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio
                                          • Conclusatildeo
                                          • Bibliografia
                                          • APEcircNDICES
Page 3: DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUÇÃO DA ÉPICA HOMÉRICA …

3

Este trabalho eacute dedicado agrave memoacuteria de minha matildee

Maria Aparecida Belli Taacutepia e ao meu pai Acircngelo Taacutepia Fernandes

Agradeccedilo agrave minha mulher Peacuterola Wajnsztejn Taacutepia e ao meu filho Daniel Taacutepia pela

cooperaccedilatildeo e pelo estiacutemulo agrave minha filha Ana Luiza Taacutepia de modo especial por sua decisiva

influecircncia em minha iniciativa de formar-me ainda que tardiamente em Letras

Agradeccedilo tambeacutem a Aurora Bernardini por ter-me concedido o privileacutegio de me acolher

como seu orientando e a Jaa Torrano por seus tatildeo proveitosos conselhos

4

Sumaacuterio

Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip5

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica9

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica9

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade50 B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia50

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica 68

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo71 B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo77

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees81

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise 88

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo95 A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)95

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)107

A3 Haroldo de Campos (1929-2003)114 B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais122

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica 124 C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo131

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos133

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura137 C4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada140

Capiacutetulo III Vozes para Homero144

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade145

A2 Iliacuteada fragmentos152

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem154 A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise181

Capiacutetulo IV Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs240

1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio261

Conclusatildeo271

Bibliografia275

Apecircndices282

5

Introduccedilatildeo

A traduccedilatildeo de poesia eacute um terreno movediccedilo Chatildeo deslizante sobre o qual se

atua feito de elementos errantes como as rochas mencionadas no canto XII da Odisseacuteia

Mas natildeo soacute pelos obstaacuteculos tambeacutem pela incerteza pela mutabilidade do sentido pela

multiplicidade de opccedilotildees potencialmente vaacutelidas

Admitindo-se que a poesia exista pela especificidade de sua linguagem e que a

traduccedilatildeo de poesia seja possiacutevel ndash eacute o que se admite e se busca discutir neste estudo ndash

seraacute na diversidade que se poderatildeo obter talvez (como aqui se quer demonstrar)

indicativos de pontos de convergecircncia de processos de criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo

Este trabalho ndash elaborado com a perspectiva de entendimento da teoria literaacuteria

como um amplo campo no qual se pode recorrer a fundamentos provenientes de uma

abordagem interdisciplinar ndash se iniciaraacute com uma discussatildeo sobre a natureza da poesia

tendo-se como referecircncia diferentes esforccedilos teoacutericos voltados agrave identificaccedilatildeo e agrave

definiccedilatildeo do que se entende por ldquopoeacuteticordquo Argumentos contraacuterios a essa possibilidade

de identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas imanentes agrave linguagem poeacutetica (e que envolvem

portanto a sua distinccedilatildeo da prosa) seratildeo tambeacutem considerados procurando-se algum

pensamento norteador para a tarefa empreendida que incluiraacute anaacutelise de trechos da

poesia homeacuterica e de suas recriaccedilotildees em nossa liacutengua Assim faraacute parte de nossos

propoacutesitos a reflexatildeo sobre procedimentos de anaacutelise assim como a proposiccedilatildeo de

certos procedimentos que se consideraratildeo adequados aos objetivos gerais do estudo

Como natildeo poderia deixar de ser tambeacutem se discutiratildeo oacutepticas diversas e conceitos

referentes agrave traduccedilatildeo e particularmente agrave traduccedilatildeo de poesia aplicando-se nas anaacutelises

e nas propostas que seratildeo feitas relativamente agrave tarefa tradutoacuteria as conclusotildees

consideradas pertinentes como fundamentaccedilatildeo para as formulaccedilotildees introduzidas

Noacutes leitores de liacutengua portuguesa somos privilegiados pela oferta generosa de

traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica ao nosso idioma E isso mesmo desconsiderando-se as

diversas versotildees em prosa que escaparatildeo ao campo de interesse deste trabalho

dedicado essencialmente a questotildees sobre traduccedilatildeo de poesia a partir de um objeto de

interesse tomado como fonte para identificaccedilatildeo de modos e procedimentos tradutoacuterios

Para cumprir sua finalidade o estudo se valeraacute de obras que se pretendem ndash guardadas

as diferenccedilas de eacutepoca de princiacutepios e de resultados ndash produtos do que poderiacuteamos

6

chamar de traduccedilatildeo poeacutetica dos poemas gregos ou seja de um processo tradutoacuterio que

busca atender agraves expectativas de realizaccedilatildeo de poemas eacutepicos em nossa liacutengua a partir

das composiccedilotildees originais Hoje apenas no Brasil dispomos de trecircs versotildees integrais da

Iliacuteada ndash a de Manuel Odorico Mendes (em versos decassiacutelabos) publicada em 1874 a

de Carlos Alberto Nunes (em hexacircmetros dactiacutelicos) publicada em 1962 e a de

Haroldo de Campos (em dodecassiacutelabos) publicada em dois volumes 2000-2002 aleacutem

de traduccedilotildees parciais significativas caso da apresentada em 2000 por Andreacute Malta

Campos (em versos compostos pela junccedilatildeo de dois heptassiacutelabos) Dispomos tambeacutem

de quatro versotildees da Odisseacuteia ndash a de Manuel Odorico Mendes (tambeacutem em

decassiacutelabos) a de Carlos Alberto Nunes (tambeacutem em hexacircmetros) a de Donaldo

Schuumller (em versos livres) e a de Trajano Vieira (em dodecassiacutelabos) aleacutem de uma

quinta a sair de Christian Werner (em versos livres) tambeacutem haacute traduccedilotildees

significativas de excertos da obra caso das realizadas por Haroldo de Campos (em

dodecassiacutelabos) que vieram a lume postumamente em 2006

Este estudo se concentraraacute na obra dos dois primeiros tradutores da obra integral

de Homero no paiacutes Odorico e Nunes e no trabalho de Haroldo de Campos que aleacutem

de particularmente importante como realizaccedilatildeo esteacutetica associa-se ao mais

desenvolvido e influente constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica levado a termo por

um poeta brasileiro Por essa razatildeo e por representar sua versatildeo da Iliacuteada a

contribuiccedilatildeo da maturidade de um tradutor-pensador da recriaccedilatildeo de poesia a produccedilatildeo

teoacuterico-criacutetica de Campos constituiraacute uma dimensatildeo relativamente privilegiada deste

trabalho

As demais traduccedilotildees mencionadas dos poemas homeacutericos natildeo seratildeo

investigadas por necessidade de delimitaccedilatildeo do jaacute vasto objeto dadas sua riqueza e sua

significaccedilatildeo talvez venham a constituir futuramente o foco de algum novo trabalho

que eu venha a empreender

Uma abordagem referencial a ser demonstrada

A argumentaccedilatildeo que deveraacute ser construiacuteda ao longo deste estudo teraacute de certo

modo como ponto de partida e de chegada a referecircncia norteadora (preacutevia portanto ao

pensamento a ser elaborado e alvo da conclusatildeo de seus objetivos) de uma

7

conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica brevemente apresentada a

seguir

Em anotaccedilotildees manuscritas para uma apresentaccedilatildeo realizada em 13 de dezembro

de 1979 Campos esquematiza pensamentos seus que se encontram de diversas formas

expostos no conjunto de seus textos teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica os quais visam a

construir o conceito do que denomina ldquotranscriaccedilatildeordquo Elabora contudo um esquema

que encontra particularidade em sua configuraccedilatildeo teoacuterica pelo enfoque que traz

relativamente agrave definiccedilatildeo da traduccedilatildeo de poesia Em vez de se ater ao conceito fundador

de sua teorizaccedilatildeo manifesto em diversos ensaios ndash a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica

ou paramoacuterfica ndash nestas anotaccedilotildees ele a entende como uma ldquooperaccedilatildeo semioacutetica em

dois sentidosrdquo O primeiro desses constitui-se no sentido ldquoestritordquo o de que a traduccedilatildeo

poeacutetica eacute uma ldquopraacutetica semioacuteticardquo especial ldquona medida em que visa ao intracoacutedigo que

opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo Para o autor

esse intracoacutedigo definido de um ponto de vista linguiacutestico seria o espaccedilo

operatoacuterio da funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson ou na expressatildeo alegoacuterica de Walter

Benjamin die Reine Sprache a liacutengua pura a ser desocultada resgatada pela

operaccedilatildeo tradutora no cerne do original (ao inveacutes do conteuacutedo cuja transmissatildeo eacute

afeita agrave traduccedilatildeo referencial)

O segundo o sentido ldquolatordquo diz respeito agrave traduccedilatildeo como um ldquoprocesso semioacuteticordquo de

ldquosemiose ilimitadardquo Afirma Campos

A traduccedilatildeo eacute o capiacutetulo por excelecircncia de toda teoria literaacuteria na medida em que a

literatura eacute um imenso canto paralelo um movimento paroacutedico em que uma dada

tradiccedilatildeo eacute sempre reproposta e reformulada na traduccedilatildeo [] Processo de semiose

ilimitada agrave maneira de Peirce

Assim a traduccedilatildeo seria correlata da proacutepria literatura e do processo essencial de

sua realizaccedilatildeo como campo abrangente de produccedilatildeo parodiacutestica

Pelo teor sinteacutetico e consistente da abordagem por seu amplo alcance e pelas

questotildees que desperta ndash incluindo-se a da proacutepria noccedilatildeo de ldquointracoacutedigordquo ou da

dimensatildeo intratextual ndash estas breves anotaccedilotildees podem consistir num marco preacutevio e

8

posterior a minha proacutepria tentativa de contribuiccedilatildeo ao pensamento sobre traduccedilatildeo

poeacutetica em geral e sobre a recriaccedilatildeo da eacutepica de Homero em particular

A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo veja-se uma coacutepia da referida paacutegina manuscrita1 por

Haroldo de Campos da qual resultaram as observaccedilotildees aqui inseridas

1A coacutepia do manuscrito de Haroldo de Campos (assim como de outras paacuteginas reproduzidas neste

trabalho) foi-me gentilmente cedida pelos herdeiros do autor durante processo de pesquisa de sua obra e

de seus originais do qual participei a fim de organizar em colaboraccedilatildeo com Thelma Noacutebrega uma

ediccedilatildeo contendo artigos de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica quase todos originalmente publicados em

perioacutedicos e natildeo recolhidos em livro (o volume seraacute publicado em 2012 pela Editora Perspectiva com o

tiacutetulo de Transcriaccedilatildeo e conteraacute reproduccedilatildeo de originais do autor)

9

Capiacutetulo I

1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica

A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica

Ao considerar as versotildees da eacutepica grega ao portuguecircs como trabalhos de

traduccedilatildeo poeacutetica de modo a associaacute-los ao pensamento sobre traduccedilatildeo proacuteprio dos

diversos tradutores abordados neste estudo e a vislumbrar neles diferentes percursos

tradutoacuterios que podem constituir paradigmas metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo torna-se

necessaacuteria a formulaccedilatildeo acerca do que se entenderaacute por poesia para em seguida

conceituar-se preliminarmente a traduccedilatildeo poeacutetica como atividade recriadora

A poesia existe Esta questatildeo revela a natureza da reflexatildeo relativizadora que

marcou as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX por influecircncia da obra de pensadores como

Jacques Derrida2 Roland Barthes e Stanley Fish entre outros que propiciaram a

formaccedilatildeo do que seria a conceituaccedilatildeo poacutes-estruturalista acerca da linguagem Para situar

o problema numa breve abordagem geral que serviraacute como referecircncia a

complementaccedilotildees menos ligeiras opto3 por valer-me da quase totalidade de um artigo ndash

cujo tiacutetulo consiste na pergunta com a qual se inicia este paraacutegrafo ndash por mim escrito

com a finalidade de apresentaccedilatildeo do problema a um puacuteblico indiferenciado4

procurando-se adequar a linguagem a seus objetivos gerais

[] Ao questionarmos a existecircncia da poesia teremos dois caminhos ou

responder de imediato com um simples e indignado ldquosimrdquo (eu mesmo dedico

grande parte de minha vida a ela direta ou indiretamente e natildeo creio devotar-me a

algo inexistente) ou principiar uma discussatildeo que certamente natildeo cabe nos limites

de um texto de uma coluna como esta Mas o assunto surgiu porque penso que

talvez seja interessante relatar duas breves experiecircncias vividas durante os cursos

que tenho dado [] em torno do tema ldquoPoesia leitura anaacutelise e interpretaccedilatildeordquo A

2 Obras dos autores referidos relacionadas ao tema constam das Referecircncias Bibliograacuteficas 3 De modo atiacutepico num trabalho desta natureza uma vez que o artigo poderia integrar os anexos tal

expediente se deve agrave minha visatildeo de que as reflexotildees e experiecircncias nele relatadas seratildeo uacuteteis como

introduccedilatildeo agraves discussotildees posteriores 4 Trata-se de uma coluna em site literaacuterio (Cronopios wwwcronopioscombr) consultado em

24112011

10

primeira aconteceu jaacute haacute algum tempo [] e foi uma proposta inspirada no

conhecido estudo do teoacuterico e professor norte-americano Stanley Fish (autor de Is

there a text in the class The authority of interpretive communities [1980]) que

pediu a um grupo de alunos dedicados ao estudo da poesia religiosa do seacutec XVII

que analisassem o ldquopoemardquo escrito na lousa na verdade o que havia no quadro era

uma relaccedilatildeo de nomes de autores que integravam uma bibliografia sugerida Os

estudantes ndash habituados agrave anaacutelise e dotados de repertoacuterio para tanto ndash realizaram a

tarefa a contento estabelecendo correlaccedilotildees entre os nomes isso levou o autor a

considerar a literariedade um constructo motivado para ele a interpretaccedilatildeo natildeo eacute a

arte de entender mas a arte de construir afirma tambeacutem que o que eacute reconhecido

como literatura resulta de uma decisatildeo da ldquocomunidade interpretativardquo acerca do

que eacute literaacuterio ou natildeo Eacute faacutecil encontrar exemplos que ilustrem esta uacuteltima

proposiccedilatildeo alguns poemas hoje considerados como tal natildeo o seriam um seacuteculo

atraacutes Mas voltemos agrave experiecircncia agrave qual me referi tomei dois trechos de textos

que natildeo foram escritos como poemas ndash um fragmento de um dos Ensaios de

Montaigne e outro da coluna assinada por Contardo Calligaris no jornal Folha de

Satildeo Paulo ndash e os apresentei (divididos em ldquoversosrdquo) como poemas aos alunos

pedindo que discutissem suas caracteriacutesticas Conforme esperava os grupos

assinalaram diversos aspectos considerados interessantes nos ldquopoemasrdquo levando-

os a seacuterio como poesia ndash de fato nossa leitura eacute decisiva na qualificaccedilatildeo de um

texto Mas ocorreu algo que daacute subsiacutedio para outra questatildeo um dos alunos

observou que os poemas seriam ldquologopeiasrdquo Referia-se agrave classificaccedilatildeo de Pound

sobre as modalidades de poesia enquadrando os textos analisados naquela

categoria em que prevalece a ldquodanccedila do intelecto entre as palavrasrdquo ou seja em

que o engendramento loacutegico prevalece sobre outros aspectos como a musicalidade

(quando esta prepondera trata-se de ldquomelopeacuteiardquo) ou a forccedila de imagens (o

prevalecimento desta caracteriza a ldquofanopeiardquo) Ou seja notou que embora

aqueles textos fossem poesia ndash pois assim lhe foram apresentados ndash natildeo se podia

destacar neles por exemplo a melodia dos versos eram conforme lhe parecia

poemas de um tipo mais semelhante agrave prosa Quero discutir com isto a questatildeo de

que se a leitura pode atribuir a um texto um teor qualquer desde que haja ldquodecisatildeo

comunitaacuteriardquo acerca de sua qualificaccedilatildeo isto natildeo quer dizer que natildeo existam

elementos que lhe satildeo intriacutensecos e que permitem sua observaccedilatildeo diante da leitura

adequada Isto pode parecer oacutebvio mas natildeo eacute bem assim pois com base na ideia

da leitura como uma ldquoarte de construirrdquo pode-se dizer ndash como o faz Rosemary

Arrojo em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo Oficina de traduccedilatildeo ndash que ldquoo poeacutetico eacute na verdade

11

uma estrateacutegia de leitura uma maneira de ler e natildeo [] um conjunto de

propriedades estaacuteveis que objetivamente encontramos em certos textosrdquo Quando

se diz ldquopropriedades estaacuteveisrdquo estaacute-se pensando nos sentidos do poema que

conforme tal visatildeo ndash afinada com as proposiccedilotildees poacutes-estruturalistas e

particularmente com o desconstrucionismo de Jacques Derrida ndash decorrem da

leitura ldquocomo leitores do poemardquo ndash diz Arrojo ndash ldquoaceitamos o desafio impliacutecito de

interpretaacute-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para elerdquo

tal sentido contribuiraacute para ldquoa construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeordquo De acordo com

essa concepccedilatildeo quando lemos um texto ldquopoeticamenterdquo passamos a buscar

dimensotildees de sentido compatiacuteveis com a proacutepria ideia de poema que pode ser a de

um texto capaz de dizer muitas coisas ao mesmo tempo e que tenha na

ambiguidade muitas vezes um instrumento gerador de sentido inesperado

insoacutelito um texto em que todos os seus elementos devam ser considerados numa

teia de associaccedilotildees no processo interpretativo que pode resultar em conclusotildees

diversas e igualmente ldquoverdadeirasrdquo (considerando-se que natildeo haacute do ponto de

vista da desconstruccedilatildeo ldquoverdaderdquo original ou estaacutevel) Se pensarmos em termos de

sentido natildeo haveraacute mesmo propriedades ou elementos fixos no texto a leitura

cria ldquosignificadosrdquo ndash mesmo porque estes natildeo existem como uacutenicos e estaacuteveis

dentro de uma liacutengua Mas ndash e sem querer levar muito longe esta discussatildeo que

pode ser infindaacutevel e infinita ndash natildeo se pode negar sob outro ponto de vista que

uma leitura ao envolver muacuteltiplas possibilidades interpretativas teraacute de atentar

para aqueles elementos que laacute estatildeo inclusive com suas caracteriacutesticas sonoras e

visuais (quando for o caso) que por sinal contribuem para a construccedilatildeo do

sentido Mesmo que eu possa ler como poema um texto que natildeo foi criado como

tal isto natildeo quer dizer que natildeo possa distinguir nele caracteriacutesticas que me

permitam por exemplo afirmar que natildeo apresenta musicalidade ou imagens ou

que a sonoridade produzida por seus constituintes eacute pobre e embora eu possa

ldquojustificaacute-lordquo como poema a partir de outras qualidades que nele encontre ele natildeo

seraacute visto como uma melopeacuteia mesmo que eu me esforce para tanto (Antes de

prosseguir um parecircntese eacute claro que a ideia sobre o que eacute poesia mudou e muda

com o tempo e o contexto e que hoje haacute uma pluralidade indefinida do que se

considera poesia inclusive a jaacute usual ldquopoesia em prosardquo mas pensando no

experimento de Fish quanto de sua autoridade sobre os alunos natildeo restringiu uma

afirmaccedilatildeo do tipo ldquoo rei estaacute nurdquo ou seja ldquoisto natildeo eacute um poemardquo No meu caso

guardadas as devidas desproporccedilotildees o caso seria semelhante em que uma simples

autoridade de professor pode dificultar ou impedir uma questatildeo aleacutem do proposto

12

e ademais no meu caso particular devo admitir que a escolha teraacute envolvido de

certa forma uma preacute-leitura do que poderia dar margem a uma discussatildeo

estimulante) Claro que se pode dizer mas o que eacute considerado ldquomusicalrdquo tambeacutem

o eacute por decisatildeo da comunidade cultural assim como o que vem a ser muacutesica satildeo

muitos os exemplos que corroborariam esta afirmaccedilatildeo como o caso das

composiccedilotildees atonais (que sofreram grande resistecircncia no proacuteprio meio em que

foram criadas) e outras experimentais que muitos natildeo reconhecem como muacutesica

Nestes termos natildeo haacute qualquer possibilidade de definiccedilatildeo do que seja muacutesica

pintura ou literatura ou poesia nada disso existe a natildeo ser a partir do ldquoacordordquo

que cria sua identificaccedilatildeo Mas de novo a partir de outro ponto de vista uma

composiccedilatildeo feita de ruiacutedos e sons ldquoestranhosrdquo com base num sistema natildeo

convencional teraacute em si um esquema de relaccedilotildees ditado por suas proacuteprias regras

que podem ser ou natildeo percebidas conhecidas Um poema independentemente de

sua qualificaccedilatildeo como ldquomusicalrdquo traz em si por exemplo fonemas que se repetem

ou natildeo palavras que trazem a mesma terminaccedilatildeo ou natildeo vogais fechadas que

sucedem outras abertas ou vice-versa apresenta sons que escorrem fluidos ou que

se seguem em solavancos obstaacuteculos haacute a distribuiccedilatildeo de siacutelabas tocircnicas e pausas

que impotildeem um ritmo ao conjunto haacute sim ndash e de novo o oacutebvio pode natildeo o ser ndash

uma dimensatildeo fiacutesica do signo (poderiacuteamos dizer que considero aqui em termos da

semioacutetica de Charles Peirce o ldquoobjeto imediatordquo do signo isto eacute sua aparecircncia

graacutefica ou acuacutestica) que eacute uma espeacutecie de mateacuteria-prima do artista e que mesmo

natildeo se dissociando da produccedilatildeo de sentido pela leitura permite o estabelecimento

de regras internas de composiccedilatildeo e a sua identificaccedilatildeo por diferenccedila relativamente

a outras obras Assim da mesma forma como natildeo se pode atribuir musicalidade a

um determinado texto ndash nascido crocircnica por exemplo ndash que ao priorizar a ldquofunccedilatildeo

cognitivardquo (na classificaccedilatildeo de Jakobson) empregando as palavras como ldquosignos-

parardquo e natildeo como ldquosignos-derdquo (conforme a distinccedilatildeo de Charles Morris) isto eacute ao

usaacute-las como ldquoveiacuteculosrdquo que conduzem a algo natildeo apresenta relaccedilotildees que

sobressaiam no plano sonoro tambeacutem natildeo se pode negar musicalidade a um texto

que nascido poema ndash vale dizer tambeacutem ldquolidordquo como um poema por seu autor ndash

manifeste uma elaboraccedilatildeo discerniacutevel da tessitura dos sons Claro eacute no entanto

que mesmo um poema feito como tal e dotado de caracteriacutesticas consideradas

poeacuteticas ndash inclusive no campo da sonoridade ndash pode ser lido de maneira a natildeo se

perceberem seus elementos tudo pode ldquopassar batidordquo pelo leitor desavisado que

lecirc um poema como se leria uma notiacutecia de jornal ou uma narrativa qualquer ou

seja que natildeo se dispotildee a uma leitura que possibilite natildeo soacute a dita ldquoproduccedilatildeo de

13

sentidordquo como tambeacutem a simples percepccedilatildeo dos aspectos sonoro e visual das

palavras O reconhecimento portanto de certas caracteriacutesticas do texto observadas

a partir dos sons que se relacionam entre si por diferenccedilas e semelhanccedilas ndash

poderiacuteamos dizer que estamos focalizando em termos da teoria linguiacutestica de

Hjelmslev (para quem o signo eacute a junccedilatildeo de um ldquoplano de expressatildeordquo e um ldquoplano

de conteuacutedordquo cada plano compreendendo os niacuteveis da ldquoformardquo e da ldquosubstacircnciardquo)

a forma da expressatildeo dada pelas diferenccedilas focircnicas (lembrando que as oposiccedilotildees

se constroem sobre identidades) ndash tambeacutem depende de uma atitude de leitura que

envolve inclusive um repertoacuterio voltado agrave percepccedilatildeo de formas Muitas vezes o

leitor natildeo estaacute preparado para observar os elementos natildeo-verbais (embora

associados ao signo verbal ou integrantes deste) que se apresentam no texto

compondo sua identidade riacutetmica e sonora e buscaraacute num poema apenas o que

este ldquoquer dizerrdquo podemos dizer que neste caso o poema se perde porque a leitura

natildeo se faz ldquopoeticamenterdquo ou seja natildeo visa agrave percepccedilatildeo do acircmbito relativo ao que

Jakobson denominou ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo ndash caracterizada conforme

observa Deacutecio Pignatari em seu O que eacute comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquopela projeccedilatildeo de

coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo esta

pode ser uma maneira de compreendecirc-la Como diz ainda Deacutecio ldquoA maioria das

pessoas lecirc poesia como se fosse prosa A maioria quer lsquoconteuacutedosrsquo ndash mas natildeo

percebe formasrdquo Se lermos poesia como poesia ela existiraacute para noacutes com tudo

aquilo que a identifica em maior ou menor grau conforme seu niacutevel de realizaccedilatildeo

esteacutetica alcanccedila e assim desempenharaacute a funccedilatildeo que lhe cabe diferente da de um

texto natildeo poeacutetico

Mas voltando a questotildees iniciais o que deveraacute fazer com que leiamos um texto

como poesia Seraacute acaso a sua simples disposiccedilatildeo em versos Natildeo poderaacute ser

pois haacute poemas que natildeo satildeo em versos e haacute textos assim dispostos que

dificilmente poderemos chamar de poesia Ou seraacute sua qualificaccedilatildeo anterior como

um poema Isto nos levaraacute a lecirc-lo como tal mas eacute preciso considerar que os

criteacuterios para tanto satildeo variaacuteveis e mesmo que a informaccedilatildeo pode ser falsa Ou

ainda outras caracteriacutesticas ldquoformaisrdquo Natildeo pois podem ser considerados poemas

textos de caracteriacutesticas muito diversas O que entatildeo Resta-nos atentar para as

estruturas que nos permitam a percepccedilatildeo ndash e consequente apreciaccedilatildeo esteacutetica ndash de

elementos que se associam daquele modo peculiar que possibilitou a formulaccedilatildeo de

um conceito como ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo de nos abrirmos

aprioristicamente agrave leitura esteacutetica de um texto que se insinue como dotado de

14

algo mais do que a simples funccedilatildeo de ldquotransmissatildeo de mensagensrdquo de o vermos e

ouvirmos com olhos e ouvidos o mais possiacutevel libertos do sistema loacutegico-

discursivo facultando-nos o pensamento analoacutegico Se o texto nos eacute dado como

poesia seja qual for o ldquotipordquo de poema eacute claro que esta atitude seraacute ativa e

predeterminada ainda que natildeo o reconheccedilamos de imediato como poesia

conforme os padrotildees que adotamos se natildeo nos for dado como tal tambeacutem

poderemos nos surpreender ao encontrarmos pela frente por exemplo no meio de

um romance trechos que parecem emergir do contexto como um ser que salta do

plano da prosa para o da poesia Eacute o caso entre tantos outros de alguns fragmentos

de romances do autor cubano Alejo Carpentier ndash e eacute a partir de um deles que se deu

a segunda experiecircncia a que me referi no iniacutecio deste artigo mas como este jaacute se

alongou muito aleacutem de sua apropriada medida deixemos este tema para outra vez

Muitas satildeo as referecircncias feitas de passagem nesse artigo aqui evocado para

explicitar as concepccedilotildees envolvidas no suporte dessa abordagem precisaremos de

acreacutescimos significativos aleacutem de algumas reiteraccedilotildees No entanto esse texto pode dar

conta de apresentar a complexidade da discussatildeo pela tentativa mais ou menos bem

sucedida de formulaccedilatildeo de um ponto de vista Consideraremos neste trabalho para a

proacutepria presenccedila de um objeto de estudo no modo em que eacute proposto que a poesia

existe e possui caracteriacutesticas distinguiacuteveis que podemos buscar independentemente da

diversidade do que se chama ou chamou de poesia (da antiguidade ocidental ateacute nossos

dias)

Mencionou-se no artigo a teoacuterica brasileira Rosemary Arrojo sua leitura e sua

sistematizaccedilatildeo acerca das concepccedilotildees desconstrucionistas e sua aplicaccedilatildeo na

(in)definiccedilatildeo e na leitura de poesia assim como no entendimento da atividade de

traduccedilatildeo seratildeo frequentemente citados por tudo o que possibilitam de discussatildeo e

reflexatildeo Mas antes focalizemos da maneira mais breve possiacutevel (poreacutem mais detida

que o artigo apresentado) algo do principal arcabouccedilo teoacuterico da linguiacutestica estrutural

(fundamentada nas noccedilotildees de Ferdinand de Saussure5) sobre poesia

Natildeo cabe apresentar aqui a histoacuteria do estruturalismo na linguiacutestica pela

limitaccedilatildeo naturalmente imposta a explanaccedilotildees de fundamentaccedilatildeo ao tema central e pelo

fato de ser esse um tema amplamente difundido e explorado no seacuteculo XX apenas

5 SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Traduccedilatildeo de Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro

Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 1977

15

como indicaccedilatildeo contudo e para se manter alguma ilusatildeo de autonomia deste trabalho

leia-se uma abordagem sinteacutetica de Michael Peters a respeito do assunto conforme

afirma o estruturalismo

[] tem sua origem na linguiacutestica estrutural tal como desenvolvida por Ferdinand

de Saussure e por Roman Jakobson na virada do seacuteculo Saussure ministrou um

curso sobre linguiacutestica geral de 1907 a 1911 morreu em 1913 Seus alunos

publicaram em 1916 o livro Cours de linguistique reconstituiacutedo a partir de suas

anotaccedilotildees de aula O Cours de linguistique concebia a linguagem como um sistema

de significaccedilatildeo vendo seus elementos de uma forma relacional []6

Conheccedilam-se tambeacutem os esclarecimentos de Margarita Petter acerca do tema

Para o mestre genebrino a Linguiacutestica tem por uacutenico e verdadeiro objeto a liacutengua

considerada em si mesma e por si mesma Os seguidores dos princiacutepios

saussureanos esforccedilaram-se por explicar a liacutengua por ela proacutepria examinando as

relaccedilotildees que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor

funcional desses diferentes tipos de relaccedilotildees A liacutengua eacute considerada uma estrutura

constituiacuteda por uma rede de elementos em que cada elemento tem um valor

funcional determinado A teoria de anaacutelise linguiacutestica que desenvolveram herdeira

das ideias de Saussure foi denominada estruturalismo Os princiacutepios teoacuterico-

metodoloacutegicos dessa teoria ultrapassaram as fronteiras da Linguiacutestica e a tomaram

ciecircncia piloto entre as demais ciecircncias humanas [] (Fiorin 2002 14)7

Eacute importante que haja aqui ndash para que se tornem fundamentos a discussotildees

posteriores ndash uma referecircncia breve a conceituaccedilotildees e princiacutepios estabelecidos pelo

linguista suiacuteccedilo Ferdinand de Saussure (1857-1913) Sobre a linguagem e o conceito de

signo diz sinteticamente Haroldo de Campos8

6PETERS M Poacutes-estruturalismo e filosofia da diferenccedila ndash Uma introduccedilatildeo Belo Horizonte Autecircntica

2000 7 FIORIN Joseacute Luiz (org) Introduccedilatildeo agrave Linguiacutestica I Objetos teoacutericos Satildeo Paulo Contexto 2002 8 Citaccedilatildeo do artigo ldquoA comunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo In CAMPOS H de A arte no horizonte

do provaacutevel Satildeo Paulo Perspectiva 1975 pp 131-154

16

A linguagem eacute um sistema de signos O signo entatildeo eacute a unidade linguiacutestica Para

Saussure cujas concepccedilotildees pioneiras ainda estatildeo impregnadas de psicologismo9 o

signo linguiacutestico eacute uma entidade psiacutequica de duas faces unindo natildeo uma coisa e

um nome mas um conceito e uma imagem acuacutestica10

o significante eacute a imagem

sensorial psiacutequica (natildeo a pura materialidade fiacutesica do som) da forma focircnica e o

significado eacute a imagem mental da coisa (que pode estar ligada a outro significante

conforme o idioma) (1975 134)

Por sua vez Joseacute Luiz Fiorin observa que

A definiccedilatildeo de signo dada por Saussure eacute substancialista pois ele trata do signo em

si como uniatildeo de um significante e um significado No entanto no Curso de

linguiacutestica geral ele insiste no fato de que na liacutengua natildeo haacute senatildeo diferenccedilas ou

seja de que cada elemento linguiacutestico deve ser diferente dos outros elementos com

os quais contrai relaccedilatildeo Por isso eacute preciso considerar o signo natildeo mais em sua

composiccedilatildeo mas em seus contornos dados por suas relaccedilotildees com os outros signos

Por isso Saussure cria a noccedilatildeo de valor [] Com ela daacute-se uma definiccedilatildeo

negativa do signo um signo eacute o que os outros natildeo satildeo O valor proveacutem da situaccedilatildeo

reciacuteproca das peccedilas na liacutengua pois importa menos o que existe de conceito e de

mateacuteria focircnica num signo do que o que haacute ao seu redor A significaccedilatildeo eacute entatildeo

uma diferenccedila entre um signo e outro signo pois o que existe na liacutengua satildeo a

produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo de diferenccedilas (2002 58)

Eacute pertinente ndash por questotildees terminoloacutegicas e conceituais ndash incluir-se aqui a

ideia de signo para Hjelmslev11

Hjelmslev [] Comeccedila por dizer que o signo eacute a uniatildeo de um plano de conteuacutedo a

um plano de expressatildeo[] Para Hjelmslev cada plano compreende dois niacuteveis a

9 A observaccedilatildeo criacutetica de Campos eacute reveladora de sua posiccedilatildeo teoacuterica como se poderaacute verificar

posteriormente Agrave apresentaccedilatildeo do que seria o signo para Saussure o autor faz suceder a conceituaccedilatildeo de

signo segundo Jakobson ldquoJakobson deixando de lado o mentalismo saussuriano prefere distinguir entre

signans o aspecto sensualmente perceptiacutevel do signo e signatum o seu aspecto inteligiacutevel traduziacutevel

para concluir lsquoToda entidade linguiacutestica da maior agrave menor eacute uma conjunccedilatildeo necessaacuteria de signans e signatum Assim se define o traccedilo distintivo na base do signans como uma propriedade socircnica opositiva

aliada ao seu signatum que eacute a funccedilatildeo distintiva do traccedilo ndash a sua capacidade de diferenciar significaccedilotildeesrdquo 10 Campos usa aqui a mesma definiccedilatildeo que aparece no Curso de linguiacutestica geral de Saussure ldquoO signo

linguiacutestico une natildeo uma coisa e uma palavra mas um conceito e uma imagem acuacutesticardquo (1977 80) 11HJELMSLEV H Capiacutetulo ldquoExpressatildeo e conteuacutedordquo integrante de Hjelmslev H Prolegocircmenos a uma

teoria da linguagem Satildeo Paulo Perspectiva 1975

17

forma e a substacircncia Assim haacute uma forma do conteuacutedo e uma substacircncia do

conteuacutedo uma forma da expressatildeo e uma substacircncia da expressatildeo

[] A forma corresponde ao que Saussure chama valor ou seja eacute um conjunto de

diferenccedilas Para estabelecer uma definiccedilatildeo formal de um som ou de um sentido eacute

preciso estabelecer oposiccedilotildees entre eles por traccedilos pois os sons e os sentidos natildeo

se opotildeem em bloco [] A mesma coisa ocorre no acircmbito do sentido []

Assim o signo para Hjelmslev une uma forma da expressatildeo a uma forma de

conteuacutedo Essas duas formas geram duas substacircncias uma da expressatildeo e uma do

conteuacutedo A forma da expressatildeo satildeo diferenccedilas tocircnicas e suas regras

combinatoacuterias a forma do conteuacutedo satildeo diferenccedilas semacircnticas e suas regras

combinatoacuterias a substacircncia da expressatildeo satildeo os sons a substacircncia do conteuacutedo os

conceitos (2002 59)

Satildeo as seguintes as caracteriacutesticas do signo linguiacutestico assim apresentadas (aqui

em citaccedilotildees sucessivas) por J L Fiorin

Para Saussure o signo linguiacutestico tem duas caracteriacutesticas principais a

arbitrariedade do signo e a linearidade do significante []

[] o signo linguiacutestico eacute arbitraacuterio e portanto cultural Arbitraacuterio eacute o contraacuterio de

motivado[] ou seja [] natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o som e o

sentido [] natildeo haacute qualquer necessidade natural que determine a uniatildeo de um

significante e de um significado Isso eacute comprovado pela diversidade das liacutenguas

[] Algumas pessoas criticaram a concepccedilatildeo da arbitrariedade do signo

mostrando que as onomatopeacuteias [] satildeo motivadas No entanto eacute preciso dizer

que em [] as onomatopeacuteias ocupam um lugar marginal na liacutengua e [] elas satildeo

submetidas agraves coerccedilotildees fonoloacutegicas de cada liacutengua []

O corolaacuterio da arbitrariedade eacute a convenccedilatildeo[]

Como diz Jakobson12

ldquoo proacuteprio Saussure atenuou seu lsquoprinciacutepio fundamental

do arbitraacuteriorsquo distinguindo em cada liacutengua aquilo que eacute lsquoradicalmentersquo arbitraacuterio

daquilo que soacute o eacute lsquorelativamentersquo (1973 109) Explica Fiorin

[] Jakobson (196998-117)13

mostra que embora estivesse correta a afirmaccedilatildeo

saussurreana de que os signos linguiacutesticos satildeo arbitraacuterios ela deveria ser matizada

12 JAKOBSON Roman Em traduccedilatildeo de Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo

Satildeo Paulo Clutrix 1973 6ordf ediccedilatildeo

18

pois em muitos casos em todos os niacuteveis da liacutengua aparecem motivaccedilotildees Os sons

parecem ter um simbolismo universal A oposiccedilatildeo de fonemas graves como o a

e agudos como o i eacute capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro do pontudo

e do arredondado do fino e do grosso do ligeiro e do maciccedilo Por isso quando se

vai indicar nas histoacuterias em quadrinho o riso dos homens e das mulheres usam-

se respectivamente ha ha ha e hi hi hi Ainda nas histoacuterias em quadrinho as

onomatopeacuteias que indicam ruiacutedo sons brutais e repentinos como pancadas

comeccedilam sempre por consoantes oclusivas que satildeo momentacircneas como um golpe

(pb td kg) pum paacute taacute Isso natildeo ocorre segundo Jakobson apenas nas

onomatopeacuteias Haacute regiotildees do leacutexico em que conjuntos de palavras apresentam

sentidos similares associados a sons similares Em inglecircs temos bash golpe

mash mistura smash golpe duro crash fragor desmoronamento dash

choque lash chicotada hash confusatildeo rash erupccedilatildeo brash ruiacutenas

clash choque violento trash repelente plash marulho splash salpico

flash relacircmpago[] (2002 62)

Ressaltem-se as observaccedilotildees que se seguem acerca da ldquomotivaccedilatildeordquo na poesia

Eacute na poesia no entanto que a motivaccedilatildeo do signo aparece em toda sua forccedila O

poeta busca motivar a relaccedilatildeo entre o significante e o significado Essa motivaccedilatildeo

natildeo aparece no niacutevel do signo miacutenimo mas no do signo-texto Por isso no texto

poeacutetico o plano da expressatildeo serve natildeo apenas para veicular conteuacutedos mas para

recriaacute-los em sua organizaccedilatildeo O material sonoro contribui para produzir

significaccedilatildeo o plano da expressatildeo eacute colocado em funccedilatildeo do conteuacutedo Os

elementos da cadeia sonora lembram de algum modo o significado presente no

plano do conteuacutedo As aliteraccedilotildees as assonacircncias os ritmos imitam aquilo de que

fala o poema pois ele eacute na frase do poeta Valeacutery um hesitaccedilatildeo prolongada entre

o som e o sentido Os sons na poesia satildeo escolhidos em razatildeo de seu poder

imitativo Nos versos abaixo de Os Lusiacuteadas a repeticcedilatildeo de consoantes oclusivas

especialmente do t imita as explosotildees que a tempestade produzia

Em tempo de tormenta e vento esquivo

De tempestade escura e triste pranto (V 18 3-4) (2002 63-64)

13 ID Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo em sua primeira ediccedilatildeo (1969) especificamente ao capiacutetulo ldquoAgrave procura

da essecircncia da linguagemrdquo que trata da motivaccedilatildeo de signos linguiacutesticos

19

A respeito da contribuiccedilatildeo do material sonoro para a significaccedilatildeo evoque-se a

teoria de Maurice Grammont citada por Antonio Candido em seu Estudo analiacutetico do

poema14

Candido refere-se ao que eacute exposto na segunda parte (ldquoLes sons consideres

comme moyens dexpressionrdquo p 193-375) do livro Le vers franccedilais como ldquoexemplo de

uma teoria que afirma a existecircncia de correspondecircncias entre a sonoridade e o

sentimentordquo15

Ponto de partida [da teoria de Grammont] Pode-se pintar uma ideia por meio de

sons todos sabem que isto eacute praticaacutevel na muacutesica e a poesia sem ser muacutesica eacute

() em certa medida uma muacutesica as vogais satildeo espeacutecies de notas []

Todavia Grammont eacute bastante prudente para observar e em seguida insistir

repetidas vezes que o som por si soacute natildeo produz efeitos se natildeo estiver ligado ao

sentido Em resumo todos os sons da linguagem vogais ou consoantes podem

assumir valores precisos quando isto eacute possibilitado pelo sentido da palavra em que

ocorrem se o sentido natildeo for suscetiacutevel de os realccedilar permanecem inexpressivos

[]

Distingue os seguintes casos 1 Repeticcedilatildeo de fonemas quaisquer 2 Vogais 3

Consoantes 4 Hiato 5 Rima

Destaquem-se as afirmaccedilotildees referentes agrave necessidade de associaccedilatildeo entre o som

e o sentido para a produccedilatildeo de efeitos e tambeacutem a distinccedilatildeo em sua teoria dos

diferentes casos de repeticcedilatildeo Grammont assim se refere agrave repeticcedilatildeo de consoantes e

vogais

Vogais 1 Agudas dor desespero alegria coacutelera ironia e desprezo aacutecido troccedila

2 Claras leveza doccedilura3 Brilhantes barulhos rumorosos 4 Sombrias barulhos

surdos raiva peso gravidade ideias sombrias 5 Nasais repetem os efeitos das

baacutesicas modificando-as

Consoantes 1 Momentacircneas Satildeo as explosivas proacuteprias a qualquer ideia de

choque oclusivas surdas e sonoras As primeiras mais fortes produzem mais

14 CANDIDO Antonio O estudo analiacutetico do poema Satildeo Paulo Humanitas 1996 pp 31-37 O

conteuacutedo do livro proveacutem de cursos ministrados pelo autor na USP em 1963 e 1964 15 Seraacute feito na Conclusatildeo deste trabalho breve comentaacuterio relativo agrave teoria de Grammont (assim como agrave

concepccedilatildeo de Castilho mencionada na proacutexima paacutegina) agrave luz de conceitos da semioacutetica de C S Peirce

20

efeito (T C P) que as segundas (DG B) Exprimem ou ajudam a dar ideia de um

ruiacutedo seco repetido [] (1996 31-37)

No seacuteculo XIX o escritor e teoacuterico da versificaccedilatildeo Antoacutenio Feliciano de

Castilho (1800-1875) jaacute se referia agrave potencialidade expressiva das vogais

Se a vogal A [] expressa a grandeza e a alegria o I [] parece conviraacute com as

ideias de pequenez e de tristeza O E parece incapaz de algum valor onomatoacutepico

ou representativo a natildeo ser para expressar languidez tibieza quietaccedilatildeo e ainda os

gozos serenos [] O O eacute [] som franco rasgado eneacutergico eacute como que uma

explosatildeo da alma [] O U [] sumido e soturno parece convir agrave desanimaccedilatildeo agrave

tristeza profunda aos assuntos lutuosos sepulcro tuacutemulo fuacutenebre funeacutereo etc16

Retornando agrave discussatildeo sobre a arbitrariedade do signo mencione-se a

referecircncia que faz Haroldo de Campos agrave objeccedilatildeo de Jakobson relativamente a tal

princiacutepio da linguiacutestica

Como observa Mattoso Cacircmara17

Jakobson nega a arbitrariedade absoluta do

signo fonoloacutegico sustentando que toda liacutengua que toda liacutengua necessariamente

procede a uma seleccedilatildeo entre um limitado nuacutemero de tipos de sons vocais e suas

combinaccedilotildees inclusive por uma injunccedilatildeo biopsicoloacutegica de que resulta a presenccedila

constante de certos tipos baacutesicos A tese do linguista russo encontra respaldo nas

posiccedilotildees de E Benveniste18

para quem haacute uma relaccedilatildeo de necessidade e

consubstancialidade entre os dois componentes do signo linguiacutestico (significante e

significado) ldquoSe a liacutengua eacute algo diverso de um conglomerado fortuito de noccedilotildees

erraacuteticas e de sons emitidos ao acaso isto se daacute porque haacute uma necessidade

imanente agrave sua estrutura como a toda estruturardquo afirma Benveniste Em todo caso

o que se poderaacute desde logo sustentar de maneira incontrastaacutevel eacute que na poesia

(onde como proclama Jakobson reina o jogo de palavras a paronomaacutesia figura

16 CASTILHO A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Para em pouco tempo e ateacute sem mestre

se aprenderem a fazer versos de todoas as medidas e composiccedilotildees Lisboa Imprensa Nacional 1851 pp 65-70 17 Referecircncia ao conceituado linguista brasileiro Joaquim Mattoso Cacircmara Juacutenior (1904-1970) ndash que foi

aluno de Jakobson nos Estados Unidos ndash autor de Histoacuteria da linguiacutestica entre outras obras 18 Referecircncia ao linguista estruturalista francecircs Eacutemile Benveniste (1902-1976) conhecido por seus

estudos sobre as liacutenguas indo-europeias e pela expansatildeo do paradigma linguiacutestico estabelecido por

Saussure Em portuguecircs eacute referecircncia a obra Problemas de Linguiacutestica Geral publicada em dois volumes

21

esta entendida num sentido amplo de correlaccedilatildeo de som e sentido) esta

arbitrariedade natildeo existe (1975 143)

Resta apresentar a outra caracteriacutestica essencial do signo na proposiccedilatildeo de

Saussure a ldquolinearidade do significanterdquo

O caraacuteter auditivo do significante linguiacutestico faz com que ele se desenvolva no

tempo Ele representa uma extensatildeo e essa extensatildeo eacute mensuraacutevel numa soacute

dimensatildeo eacute uma linha A escrita ao representar a fala representa essa linearidade

no espaccedilo [] (FIORIN 2002 65)

Roman Jakobson diga-se questionou tambeacutem esse outro postulado baacutesico da

linguiacutestica Saussuriana diz ele em seu estudo ldquoDois aspectos da linguagem e dois tipos

de afasiardquo ldquoPode-se dizer que a concorrecircncia de entidades simultacircneas e a concatenaccedilatildeo

de entidades sucessivas satildeo os dois modos segundo os quais noacutes que falamos

combinamos os constituintes linguiacutesticosrdquo (1973 38)19

Referecircncias que persistem em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo e agrave anaacutelise da linguagem

poeacutetica contemporaneamente apesar das relativizaccedilotildees ocasionadas pelas concepccedilotildees

poacutes-estruturalistas20

nas anaacutelises de poesia satildeo exatamente as ideias de Roman

Jakobson21

(1896-1982) (e persistem tambeacutem como se poderaacute ver relativamente agrave

traduccedilatildeo poeacutetica)22

Sobre elas leia-se inicialmente um esclarecimento sinteacutetico sobre

poesia do proacuteprio Jakobson expresso no artigo ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Em poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de princiacutepio construtivo

do texto As categorias sintaacuteticas e morfoloacutegicas os fonemas e seus componentes

19 Em seu trabalho sobre os afaacutesicos Jakobson aponta as duas formas para ele existentes de arranjo dos

signos combinaccedilatildeo e seleccedilatildeo esta postulaccedilatildeo seraacute fundamental para a compreensatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem (caracterizada pela projeccedilatildeo do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de combinaccedilatildeo como seraacute visto

adiante) 20 Mais adiante seratildeo mencionados por meio de citaccedilotildees alguns aspectos baacutesicos do denominado ldquopoacutes-

estruturalismordquo 21 Cabe que se incluam em nota como menccedilatildeo geral observaccedilotildees de Michael Peters

[] Roman Jakobson eacute uma figura central no desenvolvimento histoacuterico da linguiacutestica estrutural

Ele foi instrumental no estabelecimento do Formalismo Russo ajudando a fundar tanto o Ciacuterculo Linguiacutestico de Moscou quanto a Sociedade para o Estudo da Linguagem Poeacutetica (OPOJAZ) em

Satildeo Petersburgo antes de se mudar para a Checoslovaacutequia em 1920 para fundar o Ciacuterculo

Linguiacutestico de Praga []Opcit 2000 22 Veja-se por exemplo no livro O que eacute poesia (Rio de Janeiro 2009) a referecircncia presente entre poetas

brasileiros que expressam definiccedilotildees de caraacuteter mais teacutecnico ou que adotam referecircncias diretas a

conceitos de ordem linguiacutestica

22

(traccedilos distintivos) ndash em suma todos os constituintes do coacutedigo verbal ndash satildeo

confrontados justapostos colocados em relaccedilatildeo de contiguidade de acordo com o

princiacutepio de similaridade e de contraste e transmitem assim uma significaccedilatildeo

proacutepria A semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um parentesco semacircntico O

trocadilho ou para empregar um termo mais erudito e mais preciso a

paronomaacutesia reina na arte poeacuteticardquo (1973 72)

Ressalte-se a afirmaccedilatildeo ldquoA semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um

parentesco semacircnticordquo particularmente relevante para indicar a participaccedilatildeo das

relaccedilotildees focircnicas na construccedilatildeo do sentido de um poema entendimento que teremos em

vista na abordagem de certas passagens das traduccedilotildees que satildeo nosso objeto de estudo

Seraacute de interesse prioritaacuterio para este trabalho a formulaccedilatildeo de Jakobson sobre

as ldquofunccedilotildees da linguagemrdquo com base em sistema elaborado pelo linguista e psicoacutelogo

austriacuteaco Karl Buumlhler (1869-1963)23

Este identificou em 1934 a existecircncia de trecircs

dessas funccedilotildees Darstellungsfunktion a funccedilatildeo propriamente comunicativa que informa

sobre o conteuacutedo objetivo factual da realidade extralinguiacutestica Kundgabefunktion

(ldquofunccedilatildeo de exteriorizaccedilatildeordquo ou de ldquoexpressatildeordquo) Appelfunktion (ldquofunccedilatildeo de apelordquo ou

ldquoconativardquo) (Campos 1975 136-137) Para Jakobson seriam seis as funccedilotildees da

linguagem associadas respectivamente a cada um dos elementos que compotildeem o

esquema relativo agrave comunicaccedilatildeo verbal por ele proposto

23 ldquo[Buumlhler] [] participou em 1930 da Conferecircncia Fonoloacutegica Internacional convocada pelo Ciacuterculo de

Praga em 1930 e [] desenvolveu atividades na Universidade de Viena nos anos 30rdquo (Campos 1975

136)

23

Em raacutepida passagem cite-se a apresentaccedilatildeo do primeiro quadro por Diana

Pessoa de Barros

Para Jakobson na esteira dos estudos sobre a informaccedilatildeo haacute na comunicaccedilatildeo um

remetente que envia uma mensagem a um destinataacuterio e essa mensagem para ser

eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere apreensiacutevel pelo

remetente e pelo destinataacuterio um coacutedigo total ou parcialmente comum a ambos e

um contato isto eacute um canal fiacutesico e uma conexatildeo psicoloacutegica entre o remetente e o

destinataacuterio que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicaccedilatildeo (FIORIN

2002 28)

E de modo tambeacutem breve diga-se sobre as funccedilotildees que

1 A Emotiva centrada no remetente funda-se no ldquoeurdquo ou seja na primeira

pessoa do singular sendo-lhe afim a classe gramatical das interjeiccedilotildees uma vez que

ldquovida a suscitar reaccedilotildees de tipo emotivordquo (Campos 1975 137) Sobre esta funccedilatildeo diz

Haroldo de Campos ldquoEacute importante natildeo confundir esta funccedilatildeo com a funccedilatildeo poeacutetica O

Romantismo privilegiando a poesia do EU eacute o grande responsaacutevel por este equiacutevoco

que se perpetua na ideia vulgar que se tem de poesiardquo (1975 138)

2 A Referencial ou Cognitiva eacute aquela fulcrada no referente correspondente agrave

terceira pessoa do singular ldquoA mensagem denota coisas reais ou transmite

conhecimentos de ordem loacutegico-discursiva sobre determinado objeto [] Eacute a funccedilatildeo por

excelecircncia do conviacutevio diaacuteriordquo (CAMPOS 1975 138)

3 A Conativa centrada no destinataacuterio corresponde ao ldquoturdquo a segunda pessoa

do singular a ela se ligam as categorias gramaticais do imperativo e do vocativo ldquoA

mensagem representa uma ordem exortaccedilatildeo ou suacuteplica [] No acircmbito desta mesma

funccedilatildeo se enquadra a funccedilatildeo maacutegica ou encantatoacuteria expressa em foacutermulas optativas

[] como lsquoDeus te guardersquo ou em conjuros []rdquo (ib)

4 A Faacutetica centra-se no contato da comunicaccedilatildeo seu nome proveacutem do grego

phaacutetis (ruiacutedo rumor) As mensagens faacuteticas servem para ldquoestabelecer prolongar ou

interromper a comunicaccedilatildeordquo (p 139) consistindo em expressotildees como ldquoolaacuterdquo ldquoalocircrdquo

ldquoclarordquo ldquocomo vairdquo ldquonatildeo eacuterdquo etc

5 A Metalinguiacutestica centrada no coacutedigo eacute aquela em cujo exerciacutecio a

ldquomensagem se dirige para uma outra mensagem tomada como linguagem-objetordquo []

Os verbetes do dicionaacuterio exprimem tambeacutem esta funccedilatildeordquo (p 140)

24

6 A Poeacutetica eacute aquela funccedilatildeo em que a mensagem se volta sobre si mesma (ib

141) Sobre ela diz o proacuteprio Jakobson (as citaccedilotildees que se seguem ndash na versatildeo ao

portuguecircs dos tradutores jaacute mencionados ndash tornaratildeo o item relativo a esta funccedilatildeo maior

que os demais dada a sua importacircncia para a conceituaccedilatildeo de ldquopoesiardquo)

O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal o enfoque da mensagem por

ela proacutepria eis a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem []

A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo-somente a funccedilatildeo

dominante determinante ao passo que em todas as outras atividades verbais ela

funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (JAKOBSON 1973 127-

128)

[] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funccedilatildeo poeacutetica agrave poesia ou de

confinar a poesia agrave funccedilatildeo poeacutetica seria uma simplificaccedilatildeo excessiva e

enganadora A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo

somente a funccedilatildeo dominante ao passo que em todas as outras atividades

verbais ela funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (128)

[] qual eacute o caracteriacutestico indispensaacutevel inerente a toda obra poeacutetica Para

responder a esta pergunta devemos recordar os dois modos baacutesicos de arranjo

utilizados no comportamento verbal seleccedilatildeo e combinaccedilatildeo [] A seleccedilatildeo eacute feita

em base de equivalecircncia semelhanccedila e dessemelhanccedila sinoniacutemia e antoniacutemia ao

passo que a combinaccedilatildeo a construccedilatildeo da sequecircncia se baseia na contiguidade

(129)

[] A funccedilatildeo poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre

o eixo de combinaccedilatildeo (130) []

Os versos mnemocircnicos citados por Hopkins [] os modernos jungles de

propaganda e as leis medievais versificadas [] ou finalmente os tratados

cientiacuteficos sacircnscritos em verso [] ndash todos esses textos meacutetricos fazem uso da

funccedilatildeo poeacutetica sem contudo atribuir-lhe o papel coercitivo determinante que ela

tem na poesiardquo (131)

Sobre a funccedilatildeo poeacutetica e a poesia eacute importante ressaltar-se o seguinte

comentaacuterio do linguista que menciona a associaccedilatildeo de funccedilotildees nos diferentes gecircneros

poeacuteticos

25

Conforme dissemos o estudo linguiacutestico da funccedilatildeo poeacutetica deve ultrapassar os

limites da poesia e por outro lado o escrutiacutenio linguiacutestico da poesia natildeo se pode

limitar agrave funccedilatildeo poeacutetica As particularidades dos diversos gecircneros poeacuteticos

implicam uma participaccedilatildeo em ordem hieraacuterquica variaacutevel das outras funccedilotildees

verbais a par da funccedilatildeo poeacutetica dominante A poesia eacutepica centrada na terceira

pessoa potildee intensamente em destaque a funccedilatildeo referencial da linguagem a liacuterica

orientada para a primeira pessoa estaacute intimamente vinculada agrave funccedilatildeo emotiva a

poesia da segunda pessoa estaacute imbuiacuteda de funccedilatildeo conativa e eacute ou suacuteplice ou

exortativa dependendo de a primeira pessoa estar subordinada agrave segunda ou esta agrave

primeira (1973 129)

No caso da eacutepica portanto devido a seu teor narrativo prevaleceria aleacutem da

funccedilatildeo poeacutetica ndash comum aos gecircneros ndash a funccedilatildeo cognitiva mas isto natildeo excluiraacute as

demais funccedilotildees (lembre-se por exemplo de momentos de fala em primeira pessoa de

Odisseu)

Acerca das funccedilotildees da linguagem nos diversos gecircneros poeacuteticos diz Haroldo de

Campos

Na poesia o determinante eacute o exerciacutecio da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem aquela

que se volta sobre o lado sensiacutevel palpaacutevel dos signos linguiacutesticos [] Mas o

poeta usa concorrentemente outras funccedilotildees em caraacuteter acessoacuterio A maneira como

ele hierarquiza as funccedilotildees dentro de sua mensagem decide da natureza desta

Assim na poesia claacutessica caracterizada pela eacutepica a funccedilatildeo cognitiva ou

referencial eacute associada preferentemente agrave poeacutetica produzindo-se uma poesia da 3ordf

pessoa impessoal objetiva descritiva (na epopeacuteia haacute a representaccedilatildeo do objeto em

sua objetividade mesma Hegel) Na poesia romacircntica eacute a funccedilatildeo emotiva a

poesia do eu-liacuterico que ganha a palma sobre as remanescentes associando-se agrave

funccedilatildeo poeacutetica (tambeacutem a funccedilatildeo maacutegica eacute enfatizada pelo poeta romacircntico) Surge

assim uma poesia biograacutefico-emocional exortativa suplicatoacuteria encantatoacuteria uma

poesia do soluccedilo em que rebenta o sentimento pessoal na foacutermula de Musset

lembrada por Antocircnio Cacircndido Mas tanto na poesia claacutessica como na poesia

romacircntica se as funccedilotildees acessoacuterias determinantes do motivo primeiro do poetar

em cada uma dessas escolas natildeo forem por seu turno determinadas pela funccedilatildeo

poeacutetica ou configuradora da mensagem a informaccedilatildeo esteacutetica natildeo se realiza o

poema claacutessico ficaraacute entatildeo mero enunciado prosaico de ideias de descriccedilotildees de

informaccedilotildees documentaacuterias uma retoacuterica do pensamento cognitivo e o poema

26

romacircntico natildeo assumiraacute o estado esteacutetico do poema mas permaneceraacute no grito na

laacutegrima na explosatildeo emotiva na retoacuterica do coraccedilatildeo A fraqueza de boa parte do

Romantismo poeacutetico no Brasil e fora dele estaacute nesse dissiacutedio entre a motivaccedilatildeo

emocional e a capacidade de exerciacutecio da funccedilatildeo propriamente poeacutetica

(diagramadora configuradora) por parte de alguns de seus nomes mais conhecidos

[] A grandeza de um Camotildees de outro lado estaacute na sua capacidade de

equacionar na materialidade dos signos atraveacutes de operaccedilotildees de seleccedilatildeo e

combinaccedilatildeo de palavras o seu ideal classicista e no aporte de novidade que sua

poesia traz nesse sentido em relaccedilatildeo ao repertoacuterio da poesia portuguesa precedente

(1975 147-148)

Campos prossegue numa breve anaacutelise exemplo (entre tantos outros que

poderiam ser aqui incluiacutedos) ilustrativo de possibilidades de leitura ndash a partir da noccedilatildeo

de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (e conceitos correlatos) ndash que apontam para o exerciacutecio

a ser feito neste trabalho ao se abordar a eacutepica homeacuterica

Camotildees eacute um soberbo ldquodesignerrdquo da linguagem como se poderaacute ver pela anaacutelise

do exemplo seguinte

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas onde o mar se esconde

Laacute donde as ondas saem furibundas

Quando agraves iras do vento o mar responde

Netuno mora e moram as jocundas

Nereidas e outros deuses do mar onde

As aacuteguas campo deixam agraves cidades

Que habitam estas uacutemidas deidades

(Os Lusiacuteadas C VI n VIII)

Pode-se dizer para limitar nosso exame a este ponto fundamental que o efeito

poeacutetico desta descriccedilatildeo do reino marinho estaacute na habilidade com que o autor

estabelece um encadeamento de som e sentido fazendo com a palavra onda (seja

diretamente seja na sua forma latina unda por associaccedilatildeo etimoloacutegica) engaste-se

ou ressoe em outras palavras fundo profundas jocundas onde esconde donde

responde fonemas de unda podem ser vislumbrados ainda redistribuidamente em

ldquouacutemidasrdquo e ldquoNetunordquo aleacutem disto entre Nereidas e o epiacuteteto que lhes daacute Camotildees ndash

ldquouacutemidas deidadesrdquo haacute uma espeacutecie de apelo cruzado pois os fonemas finais da

27

primeira palavra se repetem no comeccedilo da segunda Toda esta oitava eacute percorrida

pela imagem semacircntica da agitaccedilatildeo das ondas atraveacutes de uma sucessatildeo de

projeccedilotildees focircnicas (Ib 148)

O poeta tradutor e semioticista brasileiro Deacutecio Pignatari estabelece uma

relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo jakobsoniana de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem e o pensamento

do criador da semioacutetica norte-americana contemporacircneo de Saussure o filoacutesofo

cientista e matemaacutetico Charles Sanders Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo eacute inadequada

embora se possa considerar que haja resistecircncia entre os estudiosos da linguiacutestica e da

semioacutetica de relacionarem os dois sistemas de estudo da linguagem (da linguiacutestica de

Saussure dedicada exclusivamente ao signo verbal emerge uma ldquosemiologiardquo mais

geral de reflexatildeo baseada no trabalho de Jakobson emergiria uma ldquosemioacutetica poeacuteticardquo

desenvolvida por A J Greimas e seguidores24

) pois o proacuteprio Jakobson aborda a

semioacutetica peirciana estabelecendo relaccedilotildees com a teorizaccedilatildeo de Saussure em seu

estudo ldquoAgrave procura da essecircncia da linguagemrdquo Citem-se as explicaccedilotildees de Pignatari

(ademais esclarecedoras acerca das proposiccedilotildees de Jakobson) nas quais se estabelece a

referida relaccedilatildeo (no trecho inicial o autor baseia-se no artigo do linguista sobre a

afasia)

Dois satildeo os processos de associaccedilatildeo ou organizaccedilatildeo das coisas por contiguidade

(proximidade) e por similaridade (semelhanccedila) Esses dois processos formam dois

eixos um eacute o eixo de seleccedilatildeo (por similaridade) chamado paradigma ou eixo

paradigmaacutetico o outro eacute o eixo de combinaccedilatildeo (por contiguidade)25

chamado

sintagma ou eixo sintagmaacutetico [] (2005 13)

Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce funccedilatildeo poeacutetica quando o

eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade Quando o paradigma

se projeta sobre o sintagma Em termos da semioacutetica de Peirce podemos dizer que

a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem se marca pela projeccedilatildeo do iacutecone sobre o siacutembolo ndash

ou seja ndash pela projeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc)

sobre o coacutedigo verbal Fazer poesia eacute transformar o siacutembolo (palavra) em iacutecone

24 Veja-se o livro Ensaios de semioacutetica poeacutetica (Satildeo Paulo Cultrix Ed da Univers de S Paulo 1976) Uma breve referecircncia a proposiccedilotildees da semioacutetica greimasiana seraacute feita adiante 25 A respeito de tais conceitos diz Pignatari em Semioacutetica e literatura (referindo-se agrave teoria de Peirce)

ldquoAs sugestotildees associativas satildeo inferecircncias segundo Peirce e as inferecircncias podem ser de dois tipos por

Contiguidade (Contiguity) e por Semelhanccedila (Resemblance) expressotildees cunhadas por David Hume

(1711-76) e que tiveram o mais amplo curso no pensamento moderno como o demonstram os exemplos

da psicologia da gestalt e da linguiacutestica estruturalrdquo (1979 35)

28

(figura) Figura eacute soacute desenho visual Natildeo Os sons de uma tosse e de uma melodia

tambeacutem satildeo figuras sonoras

Em poesia vocecirc observa a projeccedilatildeo de uma analoacutegica sobre a loacutegica da linguagem

a projeccedilatildeo de uma ldquogramaacuteticardquo analoacutegica sobre a gramaacutetica loacutegicardquo (p 17-18)

Para que seja elucidadas as concepccedilotildees de Charles Peirce (que serviratildeo para

referecircncias posteriores de anaacutelise) incluem-se a seguir esquemas e citaccedilotildees que

permitiratildeo do modo mais sinteacutetico possiacutevel uma compreensatildeo ligeira do assunto

Considere-se inicialmente uma das definiccedilotildees de signo propostas pelo ldquopai da

semioacuteticardquo

Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um

objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto) de modo idecircntico transformando-

se o interpretante por sua vez em signo e assim sucessivamente ad infinitum

(1977 74)26

Veja-se acerca do conceito expresso em tal definiccedilatildeo a representaccedilatildeo do

modelo triaacutedico peirciano27

por meio de esquema incluiacutedo por Pignatari em Semioacutetica amp

literatura

E em seguida a apresentaccedilatildeo que faz Pignatari iniciando-se com outra das

definiccedilotildees de signo propostas por Peirce

26 PEIRCE Charles S Semioacutetica Trad Joseacute Teixeira Coelho Neto Satildeo Paulo Perspectiva 1997 27 Sobre o esquema diz Pignatari ldquoJaacute se tornou bem conhecido o diagrama triangular com que C K

Ogden e I A Richards procuraram traduzir a relaccedilatildeo triaacutedica baacutesica de Peirce relativa ao problema do

significado envolvendo os termos de Signo ou Representame Objeto ou Referente Interpretanterdquo

(1979 25)

29

ldquoSigno ou Representame eacute um Primeiro que estaacute em tal genuiacutena relaccedilatildeo com o

Segundo chamado seu Objeto de forma a ser capaz de determinar que um

Terceiro chamado seu Interpretante assuma a mesma relaccedilatildeo triaacutedica (com o

Objeto) que ele signo manteacutem em relaccedilatildeo ao mesmo objetordquo []

Superando a relaccedilatildeo didaacutetica tipo signifiant signifieacute ndash que causa diga-se as

maiores dificuldades ao desenvolvimento de uma semiologia de extraccedilatildeo

saussuriana ndash Pierce cria um terceiro veacutertice chamado Interpretante que eacute o signo

de um signo ou como tentei definir em outra oportunidade um supersigno cujo

Objeto natildeo eacute o mesmo do signo primeiro pois que engloba natildeo somente Objeto e

Signo como a ele proacuteprio num contiacutenuo jogo de espelhos []

Um dos postulados baacutesicos ndash melhor dizendo ndash uma das descobertas fundamentais

de Peirce eacute a de que o significado de um signo eacute sempre outro signo (um dicionaacuterio

eacute o exemplo que ocorre imediatamente) portanto o significado eacute um processo

significante que se desenvolve por relaccedilotildees triaacutedicas ndash e o Interpretante eacute o signo-

resultado contiacutenuo que resulta desse processo

Acerca da classificaccedilatildeo dos signos segundo a semioacutetica norte-americana

observa Lucia Santaella que ldquoPeirce estabeleceu uma rede de classificaccedilotildees sempre

triaacutediacutecas (isto eacute trecircs a trecircs) dos tipos possiacuteveis de signordquo28

Antes que se prossiga no

entanto com excertos de texto de Santaella referentes ao tema leia-se o sinteacutetico e

esclarecedor escrito de Lucreacutecia DacuteAleacutessio Ferrara

Charles Sanders Peirce salienta trecircs tipos de representaccedilatildeo que satildeo de extrema

importacircncia porque apresentam de modo jaacute bem organizado a classificaccedilatildeo do

signo em iacutecone iacutendice e siacutembolo O iacutecone apresenta-se como uma representaccedilatildeo

que se manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo de qualidade o iacutendice

se apresenta como uma representaccedilatildeo que manteacutem com o objeto ao qual se refere

uma correspondecircncia de fato o siacutembolo se apresenta como uma representaccedilatildeo que

manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo imposta (A estrateacutegia os

signos 1981 67)

Seguem-se as colocaccedilotildees de Santaella acerca da tipologia siacutegnica de Peirce

28 SANTAELLA L O que eacute semioacutetica Satildeo Paulo Brasiliense 1983 p 83

30

Tomando como base as relaccedilotildees que se apresentam no signo por exemplo de

acordo com o modo de apreensatildeo do signo em si mesmo ou de acordo com o

modo de apresentaccedilatildeo do objeto imediato ou de acordo com o modo de ser do

objeto dinacircmico etc foram estabelecidas 10 tricotomias isto eacute 10 divisotildees

triaacutedicas do signo de cuja combinatoacuteria resultam 64 classes de signos e a

possibilidade loacutegica de 59049 tipos de signos

[] um exame mais minucioso dessas classificaccedilotildees pode nos habilitar para a

leitura de todo e qualquer processo siacutegnico []

Dentre todas essas tricotomias haacute trecircs as mais gerais agraves quais Peirce dedicou

exploraccedilotildees minuciosas Satildeo as que ficaram mais conhecidas e que tecircm sido mais

divulgadas Tomando-se a relaccedilatildeo do signo consigo mesmo (1ordm) a relaccedilatildeo do signo

com seu objeto dinacircmico (2ordm) e a relaccedilatildeo do signo com seu interpretante (3ordm)

tem-se

[] na relaccedilatildeo do signo consigo mesmo no seu modo de ser aspecto ou aparecircncia

(isto eacute a maneira como aparece) o signo pode ser uma mera qualidade um

existente (sin-signo singular) ou uma lei

Lembremos se algo aparece como pura qualidade este algo eacute primeiro Eacute claro

que uma qualidade natildeo pode aparecer e portanto natildeo pode funcionar como signo

sem estar encarnada em algum objeto Contudo o quali-signo diz respeito tatildeo-soacute e

apenas agrave pura qualidade

[] se o signo aparece como simples qualidade na sua relaccedilatildeo com seu objeto ele

soacute pode ser um iacutecone Isso porque qualidades natildeo representam nada Elas se

apresentam Ora se natildeo representam natildeo podem funcionar como signo Daiacute que o

iacutecone seja sempre um quase-signo algo que se daacute agrave contemplaccedilatildeo []

[] porque natildeo representam efetivamente nada senatildeo formas e sentimentos

(visuais sonoros taacuteteis viscerais) os iacutecones tecircm um alto poder de sugestatildeo []

Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas de criaccedilatildeo na arte e as descobertas

na ciecircncia tecircm a ver com iacutecones examinemos agora as modalidades de hipoiacutecones

31

ou melhor dos signos que representam seus objetos por semelhanccedila Assim uma

imagem eacute um hipoiacutecone porque a qualidade de sua aparecircncia eacute semelhante agrave

qualidade da aparecircncia do objeto que a imagem representa Todas as formas de

desenhos e pinturas figurativas satildeo imagens []

[] o interpretante que o iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera

possibilidade (qualidade ou impressatildeo) ou no maacuteximo no niacutevel do raciociacutenio um

rema isto eacute uma conjectura ou hipoacutetese Daiacute que diante de iacutecones costumamos

dizer ldquoParece uma escadardquo ldquoNatildeo parece uma cachoeirardquo [] e assim por diante

sempre no niacutevel do parecer29

[] Qualquer coisa que se apresente diante de vocecirc como um existente singular

material aqui e agora eacute um sin-signo

Isso em termos amplos e vastos Concretizando poreacutem em termos particulares o

iacutendice como seu proacuteprio nome diz eacute um signo que como tal funciona porque

indica uma outra coisa com a qual ele estaacute atualmente ligado Haacute entre ambos

uma conexatildeo de fato Assim o girassol eacute um iacutendice isto eacute aponta para o lugar do

sol no ceacuteu []

Rastros pegadas resiacuteduos remanecircncias satildeo todos iacutendices de alguma coisa que por

laacute passou deixando suas marcas []

Quanto agraves triacuteades ao niacutevel de terceiridade elas comparecem quando em si mesmo

o signo eacute de lei (legi-signo) Sendo uma lei em relaccedilatildeo ao seu objeto o signo eacute um

siacutembolo Isto porque ele natildeo representa seu objeto em virtude do caraacuteter de sua

qualidade (hipoiacutecone) nem por manter em relaccedilatildeo ao seu objeto uma conexatildeo de

fato (iacutendice) mas extrai seu poder de representaccedilatildeo porque eacute portador de uma lei

que por convenccedilatildeo ou pacto coletivo determina que aquele signo represente seu

objeto []

[Os siacutembolos satildeo] signos triaacutedicos genuiacutenos pois produziratildeo como interpretante

um outro tipo geral ou interpretante em si que para ser interpretado exigiraacute um

outro signo e assim ad infinitum Siacutembolos crescem e se disseminam mas eles

trazem embutidos em si caracteres icocircnicos e indiciais30

(1983 83-94)

29 Haacute algo importante a se observar ligado agraves conceituaccedilotildees apresentadas por vezes as anaacutelises de fragmentos da eacutepica homeacuterica realizadas neste trabalho enfrentaratildeo o limite da incomensurabilidade da

inviabilidade de avaliaccedilatildeo objetiva exatamente porque lidando-se com o plano esteacutetico ndash no acircmbito

portanto da iconicidade ndash muito do que se poderaacute dizer a respeito do objeto estudado seraacute apenas

impressatildeo percepccedilatildeo diante do sugerido 30 Estas observaccedilotildees finais do trecho satildeo especialmente relevantes para este trabalho a oacuteptica da

semioacutetica peirceana prevecirc a existecircncia ldquomaterialrdquo do signo que ainda que verbal convencionado traz em

32

Mencionem-se as dez classes de signo31

formuladas por Peirce assim

relacionadas por Santaella em A teoria geral dos signos (2000) com base em C

Hardwick32

I Quali-signo icocircnico remaacutetico Por exemplo um sentimento de

vermelhidatildeo

II Sin-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama individual

III Sin-signo indicativo remaacutetico Um grito espontacircneo

IV Sin-signo indicativo dicente Um catavento

V Legi-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama abstraindo-se sua

individualidade

VI Legi-signo indicativo remaacutetico Um pronome demonstrativo

VII Legi-signo indicativo dicente Um pregatildeo de rua

VIII Legi-signo simboacutelico remaacutetico Um substantivo comum

IX Legi-signo simboacutelico dicente Uma proposiccedilatildeo

X Legi-signo simboacutelico argumental Um soligismo

Eacute possiacutevel fazer-se tambeacutem uma relaccedilatildeo aparentemente imprevista entre

funccedilatildeo poeacutetica ldquoiconicidade verbalrdquo e o pensamento de um ldquooutro Saussurerdquo aquele

que se dedicou intensamente a identificar principalmente em versos latinos

ldquosaturninosrdquo a presenccedila de anagramas descobertos de certo modo como uma

determinaccedilatildeo interna ao signo arbitraacuterio arranjo simultacircneo natildeo-linear de fonemas o

pesquisador e anotador incansaacutevel dos cadernos deixados de lado ateacute a iniciativa de seu

disciacutepulo Jean Starobinski de apresentaacute-los e publicaacute-los O conceito que emerge dessas

anotaccedilotildees permite uma visatildeo da poeticidade ou da linguagem poeacutetica por um caminho

proacuteprio que pode ser considerado anaacutelogo e complementar agraves duas visotildees jaacute

relacionadas

Jakobson assim se refere ao trabalho de Saussure em entrevista concedida em

1966 ldquoquando indagado sobre a unidade da linguiacutestica e da poeacuteticardquo

si a presenccedila icocircnica ou indicial Com base nesta concepccedilatildeo podem ser feitas anaacutelises identificadoras da

iconicidade e da indicialidade manifestas nos textos poeacuteticos estudados 31 A identificaccedilatildeo das classes serviraacute de subsiacutedio para algum apontamento integrante deste estudo 32 HARDWICK C Semiotics and significs Bloomington Indiana University Press 1977 p 161

33

Uma tal unidade pode jaacute pode ser extraiacuteda dos ensinamentos de Saussure Veja os

seus ldquoAnnagrammesrdquo Acabo justamente de examinar os seus manuscritos em

Genebra graccedilas a Starobinski Trata-se sua obra mais genial que chegou a assustar

ateacute mesmo seus disciacutepulos Daiacute a tentativa destes uacuteltimos de manter essa parte da

obra saussuriana em segredo tanto tempo quanto possiacutevel Saussure todavia em

carta a Meillet dizia considerar esse trabalho como sendo sua obra-prima

(CAMPOS H 1976 106-107)33

Sobre o propoacutesito de Saussure diz Haroldo de Campos

O anagrama propriamente dito noacutes o sabemos lida com as letras os sinais

graacuteficos os diacutegitos do alfabeto foneacutetico [] Assim EVA eacute anagrama de AVE

ROMA de AMOR e reciprocamente

Saussure poreacutem interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos

fonemas pelo anagrama enquanto ldquofigura focircnicardquo como diria Jakobson

constituiacutedo pela repeticcedilatildeo de certos sons cuja combinaccedilatildeo imitaria uma dada

palavra []

As observaccedilotildees de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino

caracterizado pela aliteraccedilatildeo Ao cabo do exame que empreendeu a praacutetica

aliterativa pareceu-lhe neste verso a manifestaccedilatildeo particular e menos significativa

de determinadas leis focircnicas cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na

afonia Assim no exemplo

Taurasia Cisauna samnio cepit

Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipiatildeo) convocando para esta reconstruccedilatildeo

fonoloacutegica as siacutelabas Ci (de Cisauna) pi (de cepit) e io (de Samnio) aleacutem de

vislumbrar uma outra repeticcedilatildeo quase-perfeita do mesmo nome-tema em

fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra

os quatro primeiros fonemas da segunda) [] (A operaccedilatildeo do texto 1976 107)

O ponto nodal das reflexotildees de Saussure sobre os fenocircmenos anagramaacuteticos estaacute

justamente naquilo em que elas tocam a questatildeo da lienaridade da liacutengua []

Como eacute sabido um dos postulados fundamentais da linguiacutestica saussuriana eacute o da

linearidade do significante do signo linguiacutestico [] Jakobson contestou a validade

33 CAMPOS H de A operaccedilatildeo do texto Satildeo Paulo Perspectiva 1976

34

desta assertiva invocando para infirmaacute-la o caraacuteter natildeo-linear mas simultacircneo

dos traccedilos distintivos que constituem o fonema (Ib 110)

Repeticcedilatildeo aliada agrave simultaneidade talvez seja esta (ressalte-se como referencial

proposto) a resposta mais evidente agrave necessidade de se identificar uma condiccedilatildeo de

leitura dada pela reincidecircncia que permita a identificaccedilatildeo do que caracterizaria ateacute

onde a generalizaccedilatildeo pudesse propiciar a linguagem poeacutetica Neste sentido um fator

miacutenimo ndash e muacuteltiplo ndash comum (formado pelos dois fatores associados ou seja pela

possibilidade de se ldquolerrdquo ou perceber uma unidade por meio de elementos que se

juntam pela repeticcedilatildeo) serviraacute de base a uma aproximaccedilatildeo dos objetos escolhidos para

este trabalho

Retornando ao empenho do pesquisador genebrino citem-se comentaacuterios

relevantes de Jakobson sobre ele no artigo ldquoA primeira carta de Ferdinand de Saussure

a A Meillet sobre os Anagramasrdquo (em traduccedilatildeo de Joatildeo Alexandre Barbosa)

Eacute muito surpreendente que os noventa e nove cadernos manuscritos de Saussure

consagrados agrave ldquopoeacutetica fonizanterdquo e em particular ao ldquoprinciacutepio do anagramardquo

tenham podido permanecer ocultados aos leitores por mais de meio seacuteculo ateacute que

Jean Starobinski tivera a feliz ideia de publicar vaacuterias amostras cuidadosamente

escolhidas e comentadas (1990 9)34

[]

A anaacutelise linguiacutestica dos versos latinos gregos veacutedicos e germacircnicos esboccedilada

por Saussure eacute sem nenhuma duacutevida salutar natildeo somente para a poeacutetica mas

tambeacutem segundo a expressatildeo do autor ldquopara a proacutepria linguiacutesticardquo ldquoA genialidade

da intuiccedilatildeordquo do pesquisador potildee agrave luz a natureza essencial e eacute preciso acrescentar

universalmente polifocircnica e polissecircmica da linguagem poeacutetica e desafia como

Meillet bem observou a concepccedilatildeo corrente ldquode uma arte racionalistardquo em outras

palavras a ideia oca e importuna de uma poesia infalivelmente racional (p 12)

Talvez a atitude de disciacutepulos do linguista de ocultarem seu trabalho sobre

anagramas natildeo seja surpreendente o proacuteprio Saussure manifestava duacutevidas acerca da

pertinecircncia de sua pesquisa e da proacutepria existecircncia real de seu objeto de estudo como

34 JAKOBSON Roman Poeacutetica em accedilatildeo Seleccedilatildeo prefaacutecio e org de Joatildeo Alexandre Barbosa Satildeo

Paulo Perspectiva Ed da Univers de S Paulo 1990

35

revela a carta referida no tiacutetulo do artigo de Jakobson a primeira das por ele enviadas ao

linguista francecircs Paul Jules Antoine Meillet (1866-1936)

Poderia o senhor por amizade fazer-me o favor de ler as notas sobre o annagrame

dans les poegravemes homeacuteriques que reuni entre outros estudos no decorrer das

pesquisas sobre o verso saturnino e a respeito dos quais eu o consulto

confidencialmente porque eacute quase impossiacutevel agravequele que teve a ideia saber se eacute

viacutetima de uma ilusatildeo ou se alguma coisa de verdadeiro estaacute na base de sua ideia

ou se a verdade existe apenas parcialmente (1990 4)

A duacutevida de Saussure quanto agrave existecircncia dos anagramas que distinguia eacute para

este toacutepico do presente estudo de particular importacircncia primeiro porque reflete a

questatildeo da existecircncia de caracteriacutesticas inerentes agrave linguagem poeacutetica segundo porque

evidencia os limites incertos entre o que seria de fato integrante de um texto e o que

seria originado pela proacutepria leitura terceiro porque a questatildeo da ldquoveracidaderdquo das

descobertas esbarra no questionamento da intencionalidade do produtor do texto assim

como da do leitor intencionalidade esta que poderaacute depender da postura teoacuterica dos

objetivos e do repertoacuterio de quem exerce a leitura Estes aspectos seratildeo aqui discutidos

com base na contraposiccedilatildeo entre as oacutepticas estruturalista e poacutes-estruturalista

desconstrucionista35

(Neste ponto da exposiccedilatildeo cabe referir-me a um texto meu que acredito poderaacute

cumprir um papel de informaccedilatildeo (ou de expressatildeo) adicional ao que tem sido exposto36

e por isso encontra-se anexo a este trabalho Trata-se de um texto ficcional sobre o

Saussure dos anagramas (e sobre os anagramas de Saussure) ilustrativo do trabalho do

linguista e de seu contexto (e auto-referido pela inserccedilatildeo de anagramas desvendaacuteveis

conscientes ou inconscientes para o autor) o conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo que

apresenta uma imaginada situaccedilatildeo referente agrave derradeira tentativa do pesquisador em

35 Os focos teoacutericos escolhidos para discussatildeo integram possiacuteveis categorias em que se podem agrupar as

teorias sobre traduccedilatildeo Na classificaccedilatildeo de Anthony Pym (2011) ndash que seraacute abordada em outro toacutepico ndash

teorias advindas do estruturalismo baseado em Saussure como as de Catford e Nida (que creem na possibilidade de ldquotransporterdquo dos significados de uma liacutengua a outra e de equivalecircncia de sentido entre

palavras de liacutenguas diversas) satildeo enquadradas na categoria de ldquoTeorias da equivalecircnciardquo enquanto que a

teorizaccedilatildeo estruturalista de Jakobson integra a categoria ldquoTeorias descritivistasrdquo o desconstrucionismo

por sua vez pertence agrave categoria de ldquoteorias indeterministasrdquo 36 O conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo estaacute publicado na revista eletrocircnica Zunaacutei (wwwrevistazunaicom)

consultado em 24112011

36

obter confirmaccedilatildeo quanto agrave pertinecircncia de sua pesquisa suscitando reflexotildees sobre o

existente e o imaginado desejaacuteveis aos objetivos gerais deste estudo)

Mas retornemos agrave discussatildeo sobre linguagem poeacutetica por meio de postulaccedilotildees a

serem consideradas complementarmente Entre as inuacutemeras reflexotildees baseadas nas

proposiccedilotildees de ordem estrutural sobre poesia ndash cuja amplitude e diversidade

ultrapassariam em muito os limites deste estudo ndash escolho algumas que particularmente

satildeo de interesse por adicionarem alguns aspectos apontados sobre a especificidade da

linguagem poeacutetica visando agrave disponibilizaccedilatildeo de referecircncias internas ao trabalho

Apresentemos inicialmente neste toacutepico complementar a visatildeo expressa em

hipoacutetese do linguista Jean Cohen37

sobre a caracterizaccedilatildeo da poesia

[] O fato inicial em que se basearaacute nossa anaacutelise eacute que o poeta natildeo fala como

todo mundo Sua linguagem eacute anormal e tal anormalidade confere-lhe um estilo A

poeacutetica eacute a ciecircncia do estilo poeacutetico (1978 16)

admitimos pelo menos a tiacutetulo de hipoacutetese de trabalho a existecircncia na linguagem

de todos os poetas de uma invariante que permanece atraveacutes das variaccedilotildees

individuais ou seja uma maneira idecircntica de desviar da norma uma regra

imanente ao proacuteprio desvio (ib)

O verso natildeo eacute simplesmente diferente da prosa Opotildee-se a ela natildeo eacute natildeo-prosa

mas antiprosa [] (p 80)

Como a prosa a poesia compotildee um discurso isto eacute alinha seacuteries de termos

foneticamente diferentes Todavia na linha das diferenccedilas semacircnticas o verso

adapta toda uma seacuterie de semelhanccedilas focircnicas eacute como tal que ele eacute verso (p 81)

[] temos o direito de concluir que a redundacircncia eacute um processo que caracteriza

como tal a linguagem poeacutetica (p 121)

[] A diferenccedila entre prosa e poesia eacute de natureza linguiacutestica38

vale dizer formal

Natildeo se acha nem na substacircncia sonora nem na substacircncia ideoloacutegica mas no tipo

particular de relaccedilotildees que o poema institui entre o significante e o significado de

um lado e os significados entre si de outro

37 Os excertos de textos do autor satildeo colhidos de Estrutura da linguagem poeacutetica (Struture du langage poeacutetique) publicado originalmente em 1966 e de A plenitude da linguagem ndash teoria da poeticidade (Le

haut langage ndash theorie de la poeticite) publicado originalmente em 1979 38 Explicitamente (de modo anaacutelogo agraves demais procuras e definiccedilotildees estruturalistas) o autor atribui

caracteriacutesticas e diferenccedilas da poesia agrave proacutepria linguagem a contraposiccedilatildeo desta oacuteptica com a concepccedilatildeo

poacutes-estruturalista (que atribui agrave leitura o papel preponderante na identificaccedilatildeo dos ldquogecircnerosrdquo) seraacute

novamente discutida adiante

37

[] Esse tipo particular de relaccedilotildees caracteriza-se pela sua negatividade jaacute que

cada um dos processos ou ldquofigurasrdquo que constituem a linguagem poeacutetica em sua

especificidade eacute uma maneira diferente segundo os niacuteveis de violar o coacutedigo da

linguagem normal39

(1978 161)

[] A funccedilatildeo da prosa eacute denotativa a funccedilatildeo da poesia eacute conotativa A teoria

conotativa da linguagem poeacutetica natildeo eacute nova [] Valeacutery jaacute distinguia ldquodois efeitos

de expressatildeo pela linguagem transmitir um fato ndash produzir uma emoccedilatildeo A poesia

eacute um compromisso ou certa proporccedilatildeo destas duas funccedilotildeesrdquo (p 165)

Em A plenitude da linguagem Cohen comeccedila por afirmar a existecircncia da poesia

como objeto de estudo de uma ciecircncia e como tal deveraacute apresentar invariantes que a

definam (conforme jaacute anunciara em sua obra anterior)

A poesia eacute uma segunda potecircncia da linguagem um poder de magia e de

encantamento cujos segredos a poeacutetica tem por objetivo descobrir []

O primeiro postulado da presente pesquisa eacute o postulado da existecircncia de seu

objeto Se a palavra ldquopoesiardquo tem um sentido [] eacute necessaacuterio que em todos os

objetos designados por esta palavra exista alguma coisa de idecircntico uma ou

algumas invariantes subjacentes que transcendam a variedade infinita dos textos

individuais [] Pode-se dar um nome a essa variacircncia Platatildeo dizia que o belo eacute

ldquoaquilo por que satildeo belas todas as coisas belasrdquo [Hiacutepias maior] Definiccedilatildeo que soacute eacute

tautoloacutegica na aparecircncia pois postulando uma essecircncia comum a todos os objetos

belos faz escapar a beleza ao relativismo e fornece um objeto especiacutefico agrave esteacutetica

como ciecircncia [] (1987 7)

O autor prossegue propondo (em continuidade ao que propusera em seu estudo

anteriormente publicado) uma anaacutelise que em vez de considerar a poesia como algo

mais do que a prosa a considere um ldquoanticoacutedigordquo (de passagem critica a teoria de

Jakobson e a teoria dos anagramas de Saussure40

)

39 Embora o autor utilize uma terminologia em parte diferenciada relativa a aspectos definidos ao longo

de seu amplo estudo Estrutura da linguagem poeacutetica pode-se compreender esta siacutentese por seu sentido

geral 40 Sobre a primeira diz Cohen ldquoo princiacutepio de lsquoprojeccedilatildeo do eixo das equivalecircncias no eixo das

combinaccedilotildees lsquogeneraliza aos trecircs niacuteveis da linguagem as recorrecircncias formais que a versificaccedilatildeo reserva

em exclusivo ao niacutevel sonoro O que podemos chamar sentido natildeo eacute em princiacutepio afetado pela adiccedilatildeo

das regras de equivalecircncia e permanece parafraseaacutevel em prosardquo [O autor parece desconsiderar que

Jakobson prevecirc uma associaccedilatildeo entre som e sentido (relativo ao plano semacircntico) que comporia como se

pode deduzir um ldquosentidordquo mais amplo integrado] Sobre a segunda afirma ldquoA perspectiva

38

O conjunto das teorias poeacuteticas conhecidas ateacute aqui assenta num postulado comum

[] convergem para aceitar como traccedilo pertinente da diferenccedila poesianatildeo poesia

(ou prosa) um caraacuteter propriamente quantitativo A poesia natildeo eacute coisa diferente da

prosa ela eacute mais [] (p 10)

Ao inveacutes das teorias precedentes [a anaacutelise proposta] constitui a linguagem poeacutetica

natildeo como hipercoacutedigo mas como anticoacutedigo [] (p 14)41

Para destacar uma proposiccedilatildeo que particularmente interessaraacute a este estudo

mencione-se que no texto ldquoPoesia e redundacircnciardquo integrante da obra O discurso da

poesia42

Cohen reafirma com novo alcance o conceito expresso em frase jaacute aqui

transcrita

A redundacircncia eacute a lei constitutiva do discurso poeacutetico (1982 17)

No livro mencionado acrescente-se o autor ndash que sustenta que a ldquocoerecircncia [nos

poemas] eacute obtida no niacutevel da sinoniacutemia pateacuteticardquo distingue a existecircncia em poesia de

trecircs espeacutecies de redundacircncia do signo (repeticcedilatildeo de palavra a estrofe) do significante

(total ndash homoniacutemia ou parcial ndash rimas etc) e do significado (total ndash sinoniacutemia ou

parcial ndash pleonasmo) (pp 54-57)

Passemos a apresentar aspectos da proposiccedilatildeo do linguista Samuel R Levin por

meio da citaccedilatildeo de postulaccedilotildees suas

Vaacuterias satildeo as teacutecnicas empregadas em criacutetica literaacuteria mas um dos resultados a que

todas chegam parece ser o de evidenciar que em oposiccedilatildeo agrave prosa a poesia se

distingue por uma singular unidade de estrutura []

A anaacutelise revela certas estruturas que satildeo peculiares agrave linguagem da poesia [] A

tais estruturas chamamos ACOPLAMENTOS (couplings) [] o conceito de

acoplamento alcanccedila explicar uma experiecircncia generalizada a saber a de que a

contemporacircnea herdada da teoria dos anagramas de Saussure [] natildeo vecirc na poesia mais que um traccedilo

suplementar Se num texto em que se trata de Cipiatildeo se deve (re)constituir o nome lsquoCipiatildeorsquo disperso na

cadeia sintagmaacutetica teremos aiacute um signo adicional que faz do texto [] qualquer coisa lsquomaisrsquordquo (1979 12-13) 41 As citaccedilotildees servem para exemplificar o esforccedilo na concepccedilatildeo estruturalista de identificaccedilatildeo de

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave linguagem poeacutetica e em primeira e uacuteltima anaacutelise a afirmaccedilatildeo da existecircncia

da poesia 42 COHEN Jean ldquoPoesia e redundacircnciardquo In O discurso da poesia Coimbra [Poeacutetique 28] Almedina

1982

39

poesia tende a permanecer na memoacuteria do leitor Possui ela uma qualidade

duradoura [] (1975 13-14)

Um poema combina no eixo sintagmaacutetico elementos que na base de suas

equivalecircncias naturais constituem classes ou paradigmas de equivalecircncia []

Ademais a exploraccedilatildeo dessas equivalecircncias que podem derivar de traccedilos focircnicos

eou semacircnticos natildeo eacute fortuita mas processa-se sistematicamente num poema Tal

exploraccedilatildeo sistemaacutetica assume a forma de colocaccedilatildeo de elementos linguiacutesticos

naturalmente equivalentes em posiccedilotildees equivalentes ou para dizecirc-lo de outro

modo de uso de posiccedilotildees equivalentes como engastes para elementos focircnicos eou

semacircnticos equivalentes (pp 51-52)

Neste ponto da apresentaccedilatildeo de uma questatildeo primeira para os objetivos de nosso

estudo cabe observar a possibilidade (simplificadora) de identificaccedilatildeo de um fator

comum agraves principais teorias mencionadas seja pela associaccedilatildeo de signos por

semelhanccedila seja pela detecccedilatildeo de anagramas subjacentes conforme regras de reiteraccedilatildeo

seja pela visatildeo de unidade a partir de redundacircncias isto eacute pela identificaccedilatildeo de

elementos em posiccedilotildees equivalentes haacute inerentemente agraves configuraccedilotildees vislumbradas

a ocorrecircncia de repeticcedilatildeo De modos diversos e em diferentes planos da linguagem a

reincidecircncia de elementos permite que se perceba a repeticcedilatildeo ainda que esta seja

aproximativa isto eacute guarde algum niacutevel de variaccedilatildeo (que natildeo impeccedila o seu

reconhecimento) e dependa de certo grau interpretativo Em um de seus textos

referenciais sobre poesia do qual transcrevemos a seguir alguns excertos Jakobson

afirma a importacircncia da repeticcedilatildeo nos versos antes de expressar ndash com base na lapidar e

famosa frase de Paul Valeacutery (Le poegraveme mdash cette hesitation prolongeacutee entre le son et le

sens)43

ndash sua visatildeo relativa agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo

A poesia eacute um facto inelutaacutevel Dizem os antropoacutelogos que natildeo haacute um soacute grupo

eacutetnico desprovido de poesia mesmo na sociedades denominadas primitivas

Trata-se pois dum fenocircmeno universal exactamente como a linguagem em certos

grupos eacutetnicos apenas existe a par da linguagem quotidiana a linguagem poeacutetica

desconhecem-se poreacutem sociedades em que aleacutem da linguagem corrente se

cultive exclusivamente a prosa artiacutestica [] Note-se por outro lado que em certas

43 VALEacuteRY Paul Varieacuteteacute II Œuvres II (1941) Paris Gallimard col Bibliothegraveque de la Pleiade 1960

p 636

40

sociedades soacute existe poesia sob a forma de poesia cantada eacute o sincretismo

primitivo da palavra poeacutetica e da muacutesica Mais em certas tribos que natildeo possuem

muacutesica instrumental opotildeem-se o conjunto poesia-muacutesica dum lado e a linguagem

corrente do outro Nas tribos que possuem muacutesica vocal e muacutesica instrumental

observa-se por via de regra uma estreita ligaccedilatildeo entre a muacutesica instrumental e a

danccedila Logo dois sincretismos muacutesica instrumental-danccedila e muacutesica vocal-poesia

[] Como se sabe a palavra poesia que eacute de origem grega prende-se a um verbo

que significa criar e na verdade a poesia natildeo sendo o uacutenico aspecto criador eacute o

domiacutenio mais criador da linguagem[] versus quer dizer ldquoretorno um discurso

que comporta regressos ndash e penso ser este um fenocircmeno fundamental [] no verso

a repeticcedilatildeo desempenha um papel de que estamos conscientes Projeta-se na

linguagem poeacutetica o princiacutepio da equivalecircncia na sequecircncia as siacutelabas Os acentos

tornam-se unidades equivalentes Donde vem a importacircncia da repeticcedilatildeo Cumpre

natildeo esquecer que as frases satildeo feitas de palavras e grupos de palavras e se por

assim dizer ldquovivemos a repeticcedilatildeo das silabas dos acentos das entoaccedilotildees as

palavras que se correspondem pela sua posiccedilatildeo avaliamo-las subconscientemente

do ponto de vista de sua equivalecircncia []

A questatildeo fundamental reside em poesia nas relaccedilotildees entre som e sentido []

Fala-se de estruturas ritmicas fala-se de aliteraccedilatildeo ou de rima satildeo sem duacutevida

realidades mas natildeo se trata soacute de muacutesica estaacute sempre em jogo a relaccedilatildeo entre som

e sentido [] (JAKOBSON R ldquoO que fazem os poetas com as palavrasrdquo revista

Coloacutequio Letras nordm 12 Marccedilo de 1973 5-9)

Uma das consequecircncias previsiacuteveis da repeticcedilatildeo eacute a criaccedilatildeo de expectativas que

podem incluir a proacutepria expectativa de coerecircncia ou unidade capaz de influir na

apreensatildeo do objeto de linguagem favorecendo por exemplo a memorizaccedilatildeo Mas a

expectativa de repeticcedilatildeo eacute a prerrogativa do ritmo como diz Dubois

Ritmo e expectativa estatildeo sempre ligados Eacute a repeticcedilatildeo regular isoacutecrona de um

evento que estabelecendo forte correlaccedilatildeo leva agrave percepccedilatildeo do ritmo cria a

previsibilidade e provoca a expectativa [] a experiecircncia demonstra que as

condiccedilotildees de percepccedilatildeo do ritmo correspondem a regras flutuantes [] O

isocronismo antes de tudo pode ser muito aproximativo satildeo necessaacuterios

intervalos [] que variem do simples ao duplo para destruir a percepccedilatildeo do ritmo

[] (DUBOIS Jacques et al Retoacuterica da poesia 1980 134)rlm

41

Assim sendo natildeo seraacute despropositada a opiniatildeo ateacute certo ponto generalizada

entre poetas e estudiosos de arte poeacutetica de que a poesia envolve sempre ritmo tambeacutem

natildeo o seraacute a visatildeo de alguns de que a poesia nasceria da percepccedilatildeo dele em diferentes

niacuteveis em que se possa denominar ritmo a associaccedilatildeo de elementos reincidentes44

Para prosseguir com a menccedilatildeo de esforccedilos para a caracterizaccedilatildeo da linguagem

poeacutetica cite-se no acircmbito sinteacutetico de nosso estudo que o contato com referecircncias

importantes natildeo tocadas aqui podem ser obtidas por meio do trabalho do teoacuterico

brasileiro da traduccedilatildeo Maacuterio Laranjeira45

Apoacutes apresentar em seu estudo proposiccedilotildees

estruturalistas e gerativistas46

o referido autor observa o que considera serem limitaccedilotildees

proacuteprias de tais ldquogramaacuteticasrdquo (cujos recursos natildeo bastariam para caracterizar o texto

como poema) propotildee logo a utilizaccedilatildeo do conceito de ldquoautotelicidaderdquo (funccedilatildeo interior

ao texto este se portador dessa funccedilatildeo natildeo teria objetivos externos a si mesmo) com

base em J M Adam (Pour lire le poegraveme) Apoacutes considerar que a contribuiccedilatildeo da

linguiacutestica eacute ldquoincontestavelmente preciosa e insubstituiacutevelrdquo afirma ser ela ldquonecessaacuteria

mas natildeo suficienterdquo Para ele a ldquoPoeacutetica transcende os estritos limites da linguiacutesticardquo e

para ldquocobrir pelo menos parcialmente essa lacunardquo opta por lanccedilar matildeo

principalmente da semanaacutelise desenvolvida pela filoacutesofa semioticista e criacutetica buacutelgaro-

francesa Julia Kristeva (1941) Apoiando-se em conceitos como o de significacircncia

(ldquoComo o poema sempre nos diz uma coisa e significa outra a sua marca identificadora

estaacute nessa maneira obliacutequa de gerar o seu proacuteprio sentidordquo ldquoa essa lsquounidade formal e

semacircntica que conteacutem todos os sinais de obliquidadersquo Riffaterre chama significacircnciardquo)

Laranjeira encaminha sua importante contribuiccedilatildeo para o entendimento da traduccedilatildeo

poeacutetica como sendo uma tarefa que deve considerar a ldquounidade de significacircnciardquo ldquoa

unidade de significacircncia eacute o texto inteirordquo ldquo[] se eacute o poema todo que constitui a

unidade de significacircncia tambeacutem seraacute o poema todo a unidade da traduccedilatildeo poeacuteticardquo

Este ponto de vista diga-se de passagem relaciona-se com a conclusatildeo desde cedo

manifesta por Haroldo de Campos com base no conceito de informaccedilatildeo esteacutetica de

44 Para o poeta e tradutor brasileiro Guilherme de Almeida ldquoDo paralelismo da ideia com a expressatildeo ndash

brotadas a um mesmo tempo de um mesmo ritmo ndash vem esse misteacuterio do verso puro Ideia expressatildeo e

ritmo satildeo necessariamente inseparaacuteveisrdquo Almeida Guilherme de Ritmo elemento de expressatildeo (tese de

concurso) Satildeo Paulo 1926 45 LARANJEIRA Maacuterio Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp Fapesp 2003 46 Natildeo consideradas neste trabalho devido ao recorte escolhido tendo-se em conta os propoacutesitos e

encaminhamento das proposiccedilotildees que o integraratildeo (ldquoGerativismo teoria linguiacutestica desenvolvida por

Noam Chomsky (1928-) desde 1957 que representa a capacidade linguiacutestica humana por meio de um

sistema formalizado de regras de aplicaccedilatildeo mecacircnica (gramaacutetica gerativa) baseadas em princiacutepios de

caraacuteter universalrdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001)

42

Max Bense Mas natildeo se deve ainda iniciar a discussatildeo relativa agrave traduccedilatildeo poeacutetica

propriamente dita reservada para outro capiacutetulo deste trabalho Comente-se no entanto

em relaccedilatildeo agraves consideraccedilotildees de Laranjeira que embora sejam relevantes as referidas

fundamentaccedilotildees sobre as quais constroacutei o proacuteprio pensamento natildeo nos deteremos nelas

por considerarmos que as postulaccedilotildees aqui adotadas como suporte agrave discussatildeo sejam

suficientes e as mais adequadas aos objetivos imediatos relativos agrave afirmaccedilatildeo da

existecircncia da linguagem poeacutetica (e portanto da proacutepria poesia) para contraposiccedilatildeo agrave

visatildeo desconstrucionista que abordaremos adiante assim como aos objetivos gerais de

apreciaccedilatildeo das traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica como paracircmetros de diferentes condutas de

recriaccedilatildeo textual

Resta-nos ainda incluir referecircncia ao jaacute mencionado instrumental propiciado

pela semioacutetica poeacutetica desenvolvida por Greimas e colaboradores Para tanto dadas as

delimitaccedilotildees deste estudo contarei com elementos de percuciente artigo de J L Fiorin

(2003)47

que traz proposiccedilatildeo para superar o que ele considera ser insuficiente na

semioacutetica greimasiana para a anaacutelise de textos poeacuteticos seu artigo que eacute esclarecedor

sobre os proacuteprios conceitos e propoacutesitos dessa semioacutetica interessa-nos pela abordagem

analiacutetica apresentada Devido agrave siacutentese que nos propicia seraacute uma oportunidade para se

elucidar um modo de ver questotildees baacutesicas da linguagem poeacutetica e por isso ocasionaraacute

alguma breve reflexatildeo de minha parte Um parecircntese inicial a anaacutelise realizada penso

parte de um pressuposto como as demais possibilidades que temos visto de que o texto

apresenta caracteriacutesticas que o distinguem em relaccedilatildeo a outro que a ele se contrapotildee

sendo um ldquotexto com funccedilatildeo esteacuteticardquo (caso da poesia) seu oposto seraacute um ldquotexto com

funccedilatildeo utilitaacuteriardquo O que torna distinto o texto poeacutetico eacute o objeto de partida de toda

anaacutelise mesmo quando as caracteriacutesticas que o distinguem satildeo atribuiacutedas agrave leitura e natildeo

agrave dimensatildeo intratextual (como se buscaraacute discutir adiante) Mas uma questatildeo como essa

natildeo faria parte de uma abordagem como a do referido texto cujo pressuposto da

existecircncia de caracteriacutesticas distintivas da poesia satildeo a base de sua execuccedilatildeo

Na parte inicial do artigo conceituam-se os dois tipos de texto mencionados

47 FIORIN Joseacute Luiz ldquoTrecircs questotildees sobre a relaccedilatildeo entre expressatildeo e conteuacutedordquo In Revista Itineraacuterios

no especial pp 77-89 Araraquara Unesp Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios 2003

43

Do ponto de vista da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e expressatildeo haacute dois tipos de texto

aqueles que tecircm funccedilatildeo utilitaacuteria (informar convencer explicar documentar etc)

e os que tecircm funccedilatildeo esteacutetica Se algueacutem ouve ou lecirc um texto com funccedilatildeo utilitaacuteria

natildeo se importa com o plano de expressatildeo Ao contraacuterio atravessa-o e vai

diretamente ao conteuacutedo para entender a informaccedilatildeo No texto com funccedilatildeo

esteacutetica a expressatildeo ganha relevacircncia pois o escritor procura natildeo apenas dizer o

mundo mas recriaacute-lo nas palavras de tal sorte que importa natildeo apenas o que se

diz mas o modo como se diz Como o poeta recria o conteuacutedo na expressatildeo a

articulaccedilatildeo entre os dois planos contribui para a significaccedilatildeo global do texto A

compreensatildeo de um texto com funccedilatildeo esteacutetica exige que se entenda natildeo somente o

conteuacutedo mas tambeacutem o significado dos elementos da expressatildeo (2003 77-78)

Segundo o autor a fim de ldquoexplicar essa relaccedilatildeo a semioacutetica acolheu [] a

diferenccedila entre sistemas simboacutelicos e sistemas semioacuteticosrdquo nos primeiros haveria uma

conformidade total entre os planos de conteuacutedo e de expressatildeo (por exemplo ldquoa foice

simboliza sempre o campesinato o martelo o proletariado e o cruzamento dos dois a

uniatildeo dessas duas classesrdquo) enquanto nos ldquosemioacuteticosrdquo ldquoNatildeo haacute uma conformidade

entre o planos de expressatildeo e o do conteuacutedordquo Para lidar com a falta de correspondecircncia

entre unidades dos dois planos ldquoa Semioacutetica cria o conceito de sistemas semi-

simboacutelicosrdquo nos quais a correspondecircncia se daria por categorias em vez de unidades

(por exemplo ldquona gestualidade a categoria da expressatildeo verticalidade vs

horizontalidade correlaciona-se agrave categoria do conteuacutedo afirmaccedilatildeo vs negaccedilatildeordquo) Na

conceituaccedilatildeo de Greimas tais sistemas constituiriam a base dos textos poeacuteticos no

entanto Fiorin considera que ldquona anaacutelise de textos poeacuteticos essa definiccedilatildeo eacute claramente

insuficienterdquo Ocorre que a semioacutetica distingue diferentes niacuteveis do chamado ldquopercurso

gerativo de sentidordquo do mais ao menos profundo segundo o autor as categorias do

conteuacutedo que se correlacionam (realizam ldquohomologaccedilotildeesrdquo) com as categorias da

expressatildeo satildeo abstratas e ldquoremetem aos niacuteveis mais profundosrdquo do dito percurso

enquanto em poesia os ldquoefeitos de sentidordquo gerados por recursos do poema (como

aliteraccedilotildees e rimas) manteriam correlaccedilatildeo ldquoem todos os niacuteveis do percurso gerativo de

sentidordquo e por isso deve-se propor que seja ampliada ldquoa definiccedilatildeo de sistema semi-

simboacutelico eacute o que estabelece correlaccedilotildees entre categorias situadas em todos os niacuteveis

do percurso gerativo de sentidordquo Como se vecirc o esforccedilo eacute para modificar um conceito a

fim de que um constructo teoacuterico e metodoloacutegico possa dar conta da anaacutelise de poesia eacute

44

de nosso interesse sobretudo a condiccedilatildeo praacutetica da proposta o autor passaraacute a buscar

as diversas ldquohomologaccedilotildeesrdquo entre categorias da expressatildeo e do conteuacutedo em poemas

mostrando-nos exemplos de sua anaacutelise Um dos textos analisados eacute o poema

ldquoDebussyrdquo de Manuel Bandeira

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Um novelozinho de linha

Para caacute para laacute

Para caacute para laacute

Oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila

(Vem e vai)

Que delicadamente e quase a adormecer o balanccedila

ndash Psio ndash

Para caacute para laacute

Para caacute e

ndash O novelozinho caiu

(BANDEIRA 1973 p 64)48

Comenta o autor

O poeta vai acompanhando o movimento pendular de alguma coisa Os versos

como um metrocircnomo tecircm um ritmo que acompanha o movimento ldquopara caacute para

laacuterdquo Esse ritmo eacute interrompido e explica-se o que estava oscilando um novelozinho

de linha [] as reticecircncias interrompem a comunicaccedilatildeo Eacute como se o poeta

estivesse a contemplar a crianccedila que estava para adormecer e parasse o que ia dizer

para contemplar novamente o novelozinho na matildeo da crianccedila ldquopara caacute para laacuterdquo

Ele diz que o novelozinho ldquooscila no ar pela matildeo de uma crianccedila () que

delicadamente e quase a adormecer o balanccedilardquo Entre os dois versos da fala do

poeta haacute um verso que aparece entre parecircnteses a indicar que enquanto o poeta

fala o movimento do novelo continua Ele mostra que seu vaiveacutem prossegue

sempre igual primeiro para caacute (vem) e depois para laacute (vai) As reticecircncias revelam

que o movimento eacute contiacutenuo

48 BANDEIRA M Estrela da vida inteira 4ordf ed Rio de Janeiro J Olympio 1973 (Fonte do autor do

artigo)

45

Depois de ter-nos informado que esse ldquopara caacute para laacuterdquo [] eacute o movimento de um

novelozinho de linha que oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila que delicadamente

e quase a adormecer o balanccedila o poeta impede nossa manifestaccedilatildeo com um psio

para natildeo acordarmos a crianccedila quase adormecida

O ritmo do verso continua a recriar o ritmo do balanccedilo A interrupccedilatildeo do verso

seguinte que mostra o movimento apenas numa direccedilatildeo significa que a crianccedila

dormiu e portanto derrubou o novelo O uacuteltimo verso reitera esse significado para

noacutes

Temos aqui a homologaccedilatildeo de uma categoria da expressatildeo riacutetmico vs arritmico

a uma categoria figurativa balanccedilo vs natildeo balanccedilo [] temos tambeacutem quando

se observa a interrupccedilatildeo riacutetmica do penuacuteltimo verso em contraste com os outros

versos que indicam o balanccedilo uma homologaccedilatildeo a uma categoria narrativa

disjunccedilatildeo com o sono vs conjunccedilatildeo com o sono

O tiacutetulo do poema eacute o nome do compositor francecircs Debussy cuja obra Childrenrsquos

corner [] possui uma peccedila intitulada ldquoA menina dos cabelos de linhordquo composta

de movimentos ascendentes (vem) e descendentes (vai) e terminada com uma

cadecircncia harmocircnica com movimento meloacutedico descendente (caiu)

Para um ponto de vista que natildeo pretende circunscrever-se no meacutetodo de anaacutelise

no acircmbito da semioacutetica greimasiana o mais importante nesse rico estudo eacute a busca bem

sucedida de demonstrar as diferentes correlaccedilotildees entre os planos de conteuacutedo e de

expressatildeo Isso comeccedila com a escolha desse exemplo (e dos demais) cuja coesatildeo entre

os planos eacute particularmente clara o ritmo e os recursos de sequecircncia corte e pontuaccedilatildeo

dos versos se relacionam com o que se diz o poeta ldquorecria o mundo com palavrasrdquo na

conceituaccedilatildeo dita inicialmente (Faccedila-se aqui um comentaacuterio em terreno adjascente a

visatildeo da poesia como recriaccedilatildeo do mundo estaacute expressa no proacuteprio discurso de anaacutelise

cria-se uma cena cujo protagonista eacute o poeta ldquoo poeta vai acompanhando o

movimentordquo se depreendemos o movimento este eacute uma recriaccedilatildeo do que o poeta vecirc

ou viu O ldquomundordquo do poema seria portanto um correlato da realidade (com elementos

associados entre si) que se revela por meio das relaccedilotildees percebidas Um modo de

interpretar o que poderia ser visto como simples criaccedilatildeo de uma realidade com os

elementos que lhe satildeo proacuteprios mas dependeraacute sempre da leitura para sua re-criaccedilatildeo

Esse modo de abordagem vecirc de maneira geral ndash e aqui num ldquolivre pensamentordquo natildeo

uso terminologia ldquoteacutecnicardquo ndash o poema como uma ldquofiguraccedilatildeordquo uma representaccedilatildeo

figurativa da realidade No caso do poema de Bandeira o ldquodesenhordquo eacute niacutetido as

46

sugestotildees satildeo delineadas delimitadas de modo a se perceber com nitidez a ldquofigurardquo

nem sempre seraacute assim no entanto em poesia as sugestotildees poderatildeo ser mais vagas as

relaccedilotildees mais difusas por exemplo quando inseridas no contexto vasto de um poema

extenso e ao se considerarem elementos impressivos com associaccedilatildeo menos imediata agrave

dimensatildeo do sentido49

(anaacutelogos talvez aos de uma obra de arte abstrata por exemplo)

Mais uma vez no artigo em questatildeo evidencia-se o caminho da anaacutelise de

poesia pela criaccedilatildeo de modos de identificaccedilatildeo das ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo e pelo

esforccedilo em recriar a adequaccedilatildeo de modelo e meacutetodo a um objeto que poderaacute talvez

sempre escapar de sua proacutepria definiccedilatildeo por meio de um constructo especiacutefico Mas

diante de esforccedilos como esse dificilmente se poderaacute atribuir apenas agrave leitura o que se

demonstra de existente na dimensatildeo intratextual ainda que se ponham em questatildeo

elementos interpretativos como sendo criados pela leitura O movimento no sentido de

se ampliarem conceitos de maneira a estender o alcance da anaacutelise e da demonstraccedilatildeo

do modo como se realiza e se aprecia o texto esteacutetico eacute considero o caminho para a

proacutepria noccedilatildeo de existecircncia da poesia como linguagem diferenciada por mais extensa

que sejam suas possibilidades e por mais difiacutecil que seja abrangecirc-la num modelo

teoacuterico

Mas retornemos ao texto discutido Fiorin anuncia uma segunda questatildeo relativa

ao tema da relaccedilatildeo entre os dois referidos planos postulando que embora geralmente se

pense ldquoque as categorias [de expressatildeo e de conteuacutedo] precisam estar efetivamente

manifestadas com seus dois termos em oposiccedilatildeordquo haveria na verdade ldquoduas maneiras

de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas presenccedila vs presenccedila dos elementos

correlacionados ou presenccedila vs ausecircncia dos elementos correlacionadosrdquo Para o autor

ldquona anaacutelise de uma categoria do plano da expressatildeo e de sua correlaccedilatildeo com uma

categoria do plano do conteuacutedo natildeo eacute preciso que os dois termos estejam manifestados

porque a manifestaccedilatildeo de um pressupotildee a presenccedila do outrordquo O exemplo tomado para a

primeira das maneiras apontadas eacute o poema ldquoA ondardquo de Manuel Bandeira

a onda anda

aonde anda

a onda

49 Nas partes posteriores deste trabalho ao se tratar de possibilidades de anaacutelise seraacute feita uma tentativa

de discussatildeo da ldquoobjetividaderdquo no estudo da poesia como limitada agrave natureza qualitativa do signo icocircnico

tendo-se como referecircncia (num esfoccedilo desapegado de um ou outro constructo teoacuterico) a semioacutetica de

Peirce

47

a onda ainda

ainda onda

ainda anda

aonde

aonde

a onda a onda

(1973 p 286)

O autor apoacutes assinalar diversos aspectos da composiccedilatildeo (o poema eacute ldquoconstituiacutedo

de uma oposiccedilatildeo entre vogal oral e vogal nasalrdquo ldquoeacute constituiacutedo basicamente com

vogais que do ponto de vista acuacutestico satildeo ondas perioacutedicasrdquo ldquoa uacutenica consoante que

ocorre no texto eacute o d que por ser oclusiva eacute momentacircnea e explosiva e por ser sonora

conteacutem uma certa periodicidaderdquo etc) afirma que todos os ldquoelementos focircnicos (ritmo

assonacircncia alternacircncia de orais e nasais etc) recriam no plano da expressatildeo o

movimento ondulatoacuterio ininterrupto das ondas do marrdquo e conclui que ldquoo poema eacute

constituiacutedo por oposiccedilotildees da expressatildeo que se correlacionam com oposiccedilotildees do

conteuacutedo para recriar sensivelmente o movimento ondulatoacuterio das ondasrdquo A segunda

maneira (de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas) eacute ilustrada por um fragmento

do poema ldquoA valsardquo de Casimiro de Abreu

Tu ontem

Na danccedila

Que cansa

Voavas

Coas faces

Em rosas

Formosas

De vivo

Lascivo

Carmim

Na valsa

Corrias

Fugias

Ardente

Contente

48

Tranquila

Serena

Sem pena

De mim

(ABREU 1974 p 49-50)50

Sobre ele afirma o autor que ldquoeacute feito com versos dissiacutelabos com acento na

segunda siacutelaba o que cria o ritmo raacutepido da valsa Natildeo temos o contraste entre dois

ritmos mas entre a presenccedila do ritmo e sua ausecircncia pressupostardquo

Haacute ainda como o tiacutetulo do artigo indica uma terceira questatildeo a se considerar

que ldquodiz respeito agrave utilizaccedilatildeo das formas fixas em poesiardquo O autor observa que ldquoa

especificidade da semioacutetica poeacutetica caracteriza-se pela correlaccedilatildeo entre expressatildeo e

conteuacutedo ou seja que o discurso poeacutetico eacute um discurso duplo pois projeta suas

articulaccedilotildees simultaneamente no plano da expressatildeo e no do conteuacutedo (GREIMAS

1976 p 12)51

rdquo e comenta que o plano de conteuacutedo (ao qual o de expressatildeo deve

articular-se) possibilitaraacute vaacuterias leituras por caracterizar-se pela densidade Segundo

Fiorin ldquoesses postulados natildeo permitem confundir versificaccedilatildeo com poesiardquo no entanto

para o autor no caso dos ldquograndes poetasrdquo ldquoas formas fixas constituem uma maneira

codificada de segmentar o discurso poeacutetico em unidadesrdquo haveria ldquono plano de

expressatildeo da poesiardquo ldquocategorias topoloacutegicas que se relacionam com as categorias do

conteuacutedordquo Para Fiorin essa eacute uma sugestatildeo que precisa ser resgatada ldquopara verificar

que a distribuiccedilatildeo do conteuacutedo eacute homoacuteloga a sua estruturaccedilatildeordquo (tal verificaccedilatildeo

exemplificada no artigo por meio de dois sonetos natildeo seraacute aqui incluiacuteda)

Numa observaccedilatildeo um tanto externa ao foco da discussatildeo caberia perguntar se a

produccedilatildeo de ldquograndes poetasrdquo (uma categoria vaga e relativa) seria a referecircncia para a

verificaccedilatildeo das correlaccedilotildees entre estruturaccedilatildeo meacutetrica e conteuacutedo ou se seria o proacuteprio

modo de produccedilatildeo que pode envolver tais correlaccedilotildees mesmo sem alto desempenho

esteacutetico

Como se vecirc mais uma vez a procura desse ponto de vista eacute sempre de se

possibilitar a identificaccedilatildeo das correlaccedilotildees identificaacuteveis num texto poeacutetico No caso das

traduccedilotildees da eacutepica grega o aspecto meacutetrico teraacute papel importante na proacutepria

50 ABREU C Poesia 4ordf ed Rio de Janeiro Agir 1974 (Fonte do autor do artigo) 51

GREIMASS A J (org) Ensaios de semioacutetica poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1976 (Fonte do autor do artigo)

49

configuraccedilatildeo do conteuacutedo ainda que nem sempre se possam estabelecer relaccedilotildees semi-

simboacutelicas entre tais dimensotildees do poema

Jaacute se apontou de passagem que mesmo a oacuteptica questionadora da existecircncia do

ldquotexto de partida como um objeto definidordquo pode recorrer agrave anaacutelise de poesia baseada em

estabelecimento de relaccedilotildees entre elementos do poema Eacute o que se poderaacute constatar durante a

discussatildeo exposta no proacuteximo toacutepico

50

B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade

B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia

A discussatildeo em torno de conceituaccedilotildees linguiacutestico-estruturalistas de um lado e

desconstrucionistas de outro alusivas agrave existecircncia ndash ou natildeo ndash de aspectos intriacutensecos ao

texto poeacutetico seraacute fundamental para a discussatildeo que se seguiraacute sobre a tarefa do

tradutor de poesia que por sua vez serviraacute de suporte agraves posteriores colocaccedilotildees e

anaacutelises relativas agrave eacutepica grega que este trabalho abrangeraacute Natildeo se pretende aqui

evidentemente tratar de modo amplo das controveacutersias que tecircm alimentado nas uacuteltimas

deacutecadas um debate inesgotaacutevel tampouco se tem a intenccedilatildeo de expor com mais

profundidade as conceituaccedilotildees desconstrucionistas52

baseadas em Jacques Derrida este

assunto seria por si soacute suficiente para um estudo de grande focirclego a limitaccedilatildeo

decorrente de nossos objetivos impotildee que apenas se identifiquem os pontos de vista em

conflito (ou natildeo) a fim de se propor um modo de ver as fundamentaccedilotildees e caminhos

para a traduccedilatildeo de poesia

Em ensaio53

de importacircncia particular para a discussatildeo da traduccedilatildeo neste estudo

(e que por isso seraacute evocado repetidas vezes) Rosemary Arrojo afirma

Em linhas muito gerais as teorias da linguagem que emergem da tradiccedilatildeo

intelectual do Ocidente alicerccediladas no logocentrismo e na crenccedila no que Jacques

Derrida chama de ldquosignificado transcendentalrdquo tecircm considerado o texto de partida

como um objeto definido congelado receptaacuteculo de significados estaacuteveis

geralmente identificados com as intenccedilotildees de seu autor Obviamente esse conceito

de texto traz consigo uma concepccedilatildeo de leitura que atribui ao leitor a tarefa de

ldquodescobrirrdquo os significados ldquooriginaisrdquo do texto (ou de seu autor) Ler seria em

uacuteltima anaacutelise uma atividade que propotildee a ldquoproteccedilatildeordquo dos significados

originalmente depositados no texto por seu autor (1993 16)

52 Sobre a ldquodesconstruccedilatildeordquo diz Edwin Gentzler ldquoDerrida lsquobasesrsquo his lsquotheoryrsquo of desconstruction on non-

identity on non-presence on unrepresentability What does exist according to Derrida are different chains of signification ndash including the lsquooriginalrsquo and its translations in a symbiotic relationship ndash mutually

supplementing each other defining and redefining a phantasm of sameness which never has existed nor

will exist as something fixed graspable known or understoodrdquo GENTZLER E Contemporary

translation theories New York Routledge 1993 p 147 53 ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo In ARROJO R Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo e

psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago 1993

51

Sobre a ldquotradiccedilatildeo intelectual do Ocidenterdquo baseada na ldquocrenccedila no Logosrdquo

afirma Arrojo em outro artigo seu54

Nessa tradiccedilatildeo cultural que crecirc na possibilidade de uma distinccedilatildeo intriacutenseca entre

sujeito e objeto a origem do significado eacute necessariamente localizada no

significante (no texto na mensagem na palavra) nas intenccedilotildees (conscientes) do

emissorautor ou numa combinaccedilatildeo ou alternacircncia dessas duas possibilidades A

primeira delas se reflete por exemplo na noccedilatildeo de literalidade que autoriza a

possibilidade de um significado subordinado agrave letra anterior a qualquer

interpretaccedilatildeo e independente de qualquer contexto Reflete-se tambeacutem na

concepccedilatildeo de literariedade que ainda domina a tradiccedilatildeo dos estudos literaacuterios entre

noacutes a noccedilatildeo de que o literaacuterio eo poeacutetico se encontram no texto como

propriedades intriacutensecas que o marcam indelevelmente e o distinguem dos textos

natildeo-literaacuterios Segundo essa visatildeo o leitor [] deve poder encontrar os

significados [] no texto e em suas marcas que teriam portanto a propriedade de

preservar seus conteuacutedos []

A segunda possibilidade como vimos projeta no emissorautor a origem

dosignificado [] Compreender ouler envolveria [] a descoberta e o resgate

daquilo que o emissor ou o autor quis dizer [] (2003 37-38)

Como veremos mais agrave frente ideias sobre traduccedilatildeo baseadas em conceitos que

incluem destacadamente os constructos teoacutericos de Jakobson ndash refiro-me centralmente

agrave teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash podem compatibilizar-se embora por outro vieacutes

de compreensatildeo com a postura de natildeo-submissatildeo a desejos autorais ou de descrenccedila na

preservaccedilatildeo de ldquoconteuacutedosrdquo nos textos Aponte-se jaacute contudo que a accedilatildeo de atribuir a

elementos do texto ndash perceptiacuteveis na leitura que busca caracteriacutesticas do poema ou da

proacutepria poesia como tais ndash a dimensatildeo de ldquosignificadosrdquo ou de preservaccedilatildeo de

ldquoconteuacutedosrdquo parece reducionista e desvirtuadora dos propoacutesitos de investigaccedilatildeo das

especificidades da linguagem poeacutetica os elementos que possivelmente a caracterizam

podem ser vistos como figuras iacutecones passiacuteveis de apreensatildeo pela leitura que os busca e

encontra em poemas de diversas eacutepocas ldquogecircnerosrdquo e tendecircncias construindo ou

reconstruindo (ainda que a ldquointenccedilatildeordquo possa ser de descoberta de elementos presentes

no texto) uma configuraccedilatildeo que comporaacute a trama de ldquosentidordquo Observar a existecircncia de

54 ldquoA desconstruccedilatildeo do logocentrismo e a origem do significadordquo In ARROJO R (org) O signo

desconstruiacutedo Campinas Pontes 2003

52

repeticcedilotildees (em diferentes planos) semelhanccedilas focircnicas aspectos visuais e outros

elementos que permitam a formulaccedilatildeo (na leitura) de relaccedilotildees entre som e sentido

permitidas pelo texto eacute um ato que natildeo pode ser desqualificado pela pressuposiccedilatildeo de

que ele resulta da busca de significados preservados ou intriacutensecos ainda que a maneira

de aproximaccedilatildeo ou de discurso feita pelo investigador possa ser enquadrada no que seria

a revelaccedilatildeo de elementos intriacutensecos (e natildeo propriamente ldquosignificadosrdquo) ao texto O

exemplo de Saussure permanentemente em duacutevida com a existecircncia ou natildeo do que via

nos versos latinos (e outros) atribui por si soacute a consideraccedilatildeo da leitura como

participante do processo de produccedilatildeo ou construccedilatildeo de sentido os diversos exemplos de

anaacutelise de Jakobson como a que realizou do poema ldquoThe ravenrdquo de E A Poe mostra a

importacircncia de leituras analiacuteticas que ao buscar desvelar relaccedilotildees paradigmaacuteticas entre

elementos do texto edificam suas particularidades linguiacutesticas e esteacuteticas (admitindo-se

o entendimento do poema como obra de arte verbal) independentemente de

corresponderem as ldquodescobertasrdquo a intenccedilotildees do autor do poema Mesmo que Poe natildeo

tenha pretendido ao menos conscientemente articular a relaccedilatildeo fonicamente especular

entre ldquoravenrdquo e ldquoneverrdquo esta observaccedilatildeo de Jakobson revela uma qualidade que

associada ao conjunto de elementos passiacuteveis de depreensatildeo no poema (incluindo-se os

assinalados por seu autor no texto ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo) colabora para a

compreensatildeo de seu ldquofuncionamentordquo como objeto de linguagem e de arte Ainda que

os conceitos referentes ao que seja poesia ao que seja arte ao que seja esteticamente

desejaacutevel ou indesejaacutevel estejam ndash como postulam os desconstrucionistas ndash vinculados

ao repertoacuterio e ao modo de ver do apreciador (veja-se por exemplo o referido texto ldquoA

que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo) identidades e fatores que as compotildeem

sempre teratildeo seu lugar como agentes da produccedilatildeo de cultura Mas voltemos por ora

aos argumentos da desconstruccedilatildeo por meio do trabalho especialmente esclarecedor e

consistente de Rosemary Arrojo

Em outros estudos seus a autora ndash com base em comentaacuterios de George Steiner

sobre um conto de Jorge Luis Borges ldquoPierre Menard o autor do Quixoterdquo (1939) ndash

vale-se dessa obra para o objetivo de elucidar a ideia de inexistecircncia do significado fixo

ou ldquodepositadordquo no texto O personagem (fictiacutecio) dessa obra-prima de Borges o receacutem-

falecido escritor Menard (ldquohomem de letras que viveu na primeira metade do seacuteculo

XX) produzira aleacutem de suas obras ldquovisiacuteveisrdquo uma outra ldquoinvisiacutevelrdquo que seria sua obra

mais significativa Esta seria uma reescritura de capiacutetulos do romance Dom Quixote de

53

Cervantes feita de modo a que Menard sendo ele mesmo conseguisse reproduzir (natildeo

copiar) o mesmo texto repetindo-o na iacutentegra O ldquonarradorrdquo do conto um criacutetico

literaacuterio que comenta as obras do escritor faz um cotejo de um trecho de Cervantes com

o mesmo trecho escrito por Menard

Constitui uma revelaccedilatildeo cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes

Este por exemplo escreveu (Dom Quixote primeira parte nono capiacutetulo)

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

Redigida no seacuteculo XVII redigida pelo ldquoengenho leigordquo Cervantes essa

enumeraccedilatildeo eacute mero elogio retoacuterico da histoacuteria Menard em compensaccedilatildeo escreve

a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees

testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro

A histoacuteria matildee da verdade a ideia eacute assombrosa Menard contemporacircneo de

William James natildeo define a histoacuteria como indagaccedilatildeo da realidade mas como sua

origem A verdade histoacuterica para ele natildeo eacute o que aconteceu eacute o que julgamos que

aconteceu As claacuteusulas finais ndash exemplo e aviso do presente advertecircncia do

futuro ndash satildeo descaradamente pragmaacuteticas

Diz Arrojo

Menard tenta recuperar o significado ldquooriginalrdquo de Cervantes mas somente

consegue reproduzir suas palavras O que Menard lecirc e reproduz como sendo o

verdadeiro Quixote (e portanto de acordo com Menard imutaacutevel e evidente) eacute

interpretado pelo narradorcriacutetico como algo diferente Paradoxalmente ao

ldquorepetirrdquo a totalidade do texto de Cervantes Menard ilustra a impossibilidade da

repeticcedilatildeo total exatamente porque as palavras do texto de Cervantes natildeo

conseguem delimitar ou petrificar seu significado ldquooriginalrdquo independentemente

de um contexto ou de uma interpretaccedilatildeo (2003 21-22)55

55 ARROJO R Oficina de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

54

Considerado por George Steiner ldquoo mais perspicaz o mais condensado

comentaacuterio que algueacutem jaacute ofereceu sobre a atividade de traduccedilatildeordquo56

o conto de Borges

eacute um instrumento da constataccedilatildeo da impermanecircncia do significado e por extensatildeo da

existecircncia de qualquer atributo ldquofiacutesicordquo ldquoconcretordquo ldquomaterialrdquo ao texto Essa ideia

diga-se afina-se com um encaminhamento radical do conceito de signo arbitraacuterio

proposto por Saussure que o define como uma instacircncia psicoloacutegica ldquoimaterialrdquo Sobre

a radicalizaccedilatildeo desconstrutivista do signo saussuriano por seus aspectos de

arbitrariedade e convenccedilatildeo diz Arrojo

Ao levar agraves uacuteltimas consequecircncias a concepccedilatildeo do signo arbitraacuterio econvencional

proposta por Saussure a reflexatildeo desconstrutivista necessariamente revisae

redimensiona as noccedilotildees tradicionais de significado Se o signo eacute resultado de

umaconvenccedilatildeo de um pacto a origem do significado eacute necessariamente remetida

para esse pacto e em uacuteltima anaacutelise para a necessidade de organizaccedilatildeo e de

domiacutenio quedesemboca nesse pacto Se aceitarmos a tese da convencionalidade do

signo ou seja anoccedilatildeo de que todo significado eacute necessariamente construiacutedo e

atribuiacutedo a partir de umtaacutecito acordo comunitaacuterio natildeo poderemos portanto eximir

a leitura e a compreensatildeo ou qualquer outro processo de utilizaccedilatildeo de signos de

uma origem atrelada agrave construccedilatildeoe agrave produccedilatildeo de significados (2003 37)

Mas ldquolevar agraves uacuteltimas consequecircnciasrdquo as ideias de Saussure envolve considerar

como referecircncia absoluta a incorporeidade do significante Afirma o proacuteprio Saussure

Todos os valores convencionais apresentam esse caraacuteter de natildeo se confundir com o

elemento tangiacutevel que lhe serve de suporte Assim natildeo eacute o metal da moeda que lhe

fixa o valor Isso eacute ainda mais verdadeiro no que respeita ao significante

linguiacutestico em sua essecircncia este natildeo eacute de modo algum focircnico eacute incorpoacutereo

constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas que

separam sua imagem acuacutestica de todas as outras

Leiam-se acerca da ecircnfase derridiana quanto agrave imaterialidade do significante as

observaccedilotildees de Cristina Carneiro Rodrigues

56 STEINER G Depois de Babel Trad C A Faraco Curitiba Editora da UFPR 2005 p 96

55

Ao salientar o caraacuteter diferencial e formal do funcionamento dos signos Saussure

mostrou que o som natildeo pode pertencer agrave liacutengua e que o significante natildeo eacute uma

entidade puramente material Na medida em que para Saussure o significado natildeo

eacute puramente focircnico a substacircncia de expressatildeo eacute de alguma maneira considerada

abstrata e natildeo puramente fiacutesica [] caso se levassem as ideias de Saussure agraves

uacuteltimas consequecircncias seria rejeitada qualquer noccedilatildeo de materialidade do

significante e do signo em geral Efetivamente apenas pela materialidade focircnica

natildeo seria possiacutevel identificar um signo repetido como se fosse o mesmo pois cada

repeticcedilatildeo dele natildeo eacute idecircntica Essa concepccedilatildeo deveria se estender ao significado

que tambeacutem seria marcado pela alteridade pela diferenccedila concepccedilatildeo que natildeo

conduziria agrave noccedilatildeo de equivalecircncia [em traduccedilatildeo ndash ou seja agrave ideia de que os

significados de uma liacutengua encontram equivalentes aos de outra e que a traduccedilatildeo

seria um processo de reproduccedilatildeo de sentidos equivalentes agravequeles fornecidos pelo

texto ldquooriginalrdquo]

Eacute importante discutirmos neste ponto a noccedilatildeo de (i)materialidade do

significante ou do signo com alguma tentativa de raciociacutenio que contribua para

ultrapassar o que eu veria como um ldquoconfinamentordquo ao modelo relacional do signo

convencionado O modelo binaacuterio de Saussure enfatiza uma unidade intriacutenseca do

processo psicoloacutegico de transmissatildeo de mensagens que permitiu o modo de

investigaccedilatildeo e compreensatildeo propiciador dos frutos notoacuterios do desenvolvimento da

ciecircncia linguiacutestica no uacuteltimo seacuteculo mas eacute um modelo voltado ao signo verbal

arbitraacuterio ndash ainda que o modelo possa ser frutiacutefero para a anaacutelise de objetos de outra

natureza como por exemplo um poema graacutefico-visual57

ele eacute um modelo fundado no

espaccedilo mental em que opera a comunicaccedilatildeo O fato de isolar a concepccedilatildeo ou a

ldquonaturezardquo do signo em sua relaccedilatildeo entre uma imagem acuacutestica e um conceito natildeo

significa entretanto que deixem de existir o estiacutemulo focircnico em sua dimensatildeo

material assim como o objeto relacionado ao conceito integrante do signo Trata-se

evidentemente de uma constataccedilatildeo oacutebvia mas que pode ter implicaccedilotildees na visatildeo sobre

um poema por exemplo logo voltaremos a isso Mas considere-se outro aspecto oacutebvio

a identidade do proacuteprio som como fenocircmeno fiacutesico participa da definiccedilatildeo do modo

57 Veja-se a anaacutelise desenvolvida por Antocircnio Vicente Pietroforte do poema ldquoCoacutedigordquo de Augusto de

Campos com base na diferenccedila entre a linha e o ciacuterculo mostrando que o poema ilustraria a proacutepria

natureza relacional do coacutedigo) Em Pietroforte Antocircnio Vicente O discurso da poesia concreta ndash uma

abordagem semioacutetica Satildeo Paulo AnnaBlume 2011 p 47-50

56

como eacute percebido para que se forme uma ldquoimagem acuacutesticardquo eacute preciso que a emissatildeo

do som ou dos fonemas permita sua percepccedilatildeo adequada os sons agudos seratildeo assim

percebidos ainda que possam ocasionar diferentes sensaccedilotildees ou mesmo participar da

formaccedilatildeo de diferentes significados pense-se ainda a tiacutetulo digressivo-ilustrativo no

caso particular de uma gravaccedilatildeo de sons por exemplo de muacutesica na qual o tratamento

teacutecnico da sonoridade de um instrumento ou de uma voz pode interferir na percepccedilatildeo

esteacutetica e na emoccedilatildeo que a ela pode associar-se influindo no ldquosentidordquo da composiccedilatildeo

em termos amplos

Se a linguiacutestica saussuriana considera o signo como um processo

exclusivamente mental ndash o que permite estabelecer as identidades apenas pelas

diferenccedilas que estabelecem entre si e portanto relativizar as ldquoverdadesrdquo em cuja

crenccedila se depositaria a tradiccedilatildeo do logocentrismo ndash isto natildeo quer dizer que a

consideraccedilatildeo da realidade fiacutesica material seja necessariamente fixadora de verdades ou

significados ou de atributos que lhe sejam perenes Considere-se o modelo (triaacutedico) da

semioacutetica de Peirce representado anteriormente em um dos veacutertices do triacircngulo estaacute o

objeto em outro oposto o signo e no terceiro o interpretante o interpretante origina

outro signo e assim sucessivamente Num exerciacutecio de livre pensamento comparativo

poderiacuteamos atribuir uma correspondecircncia possiacutevel entre a funccedilatildeo do interpretante (que

realiza a relaccedilatildeo entre signo e objeto) e a concepccedilatildeo da dualidade imagem-acuacutestica ndash

conceito de Saussure que opera no campo mental das relaccedilotildees O modelo de Peirce

destinado a abranger os diferentes tipos de signo por ele identificados ndash e natildeo apenas o

verbal arbitraacuterio que ele denominaria de ldquosiacutembolordquo um ldquolegissignordquo (porque resultante

de lei ou convenccedilatildeo) ndash permite a natildeo-exclusatildeo da dimensatildeo material dos estiacutemulos

envolvidos na produccedilatildeo da linguagem em suas diferentes manifestaccedilotildees

Como jaacute se mencionou Deacutecio Pignatari fala da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

como sendo marcada pela ldquoprojeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais

etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo Elementos sonoros e visuais se vistos como existentes em

si (ou seja positivamente) embora participantes do signo verbal e existentes nele

apenas em termos relacionais ou pela negatividade poderatildeo tambeacutem compor uma teia

adicional engendradora de um coacutedigo de natureza diversa que se projeta sobre o campo

verbal ou semacircntico (do significado) Quando Saussure buscava anagramas enquanto

ldquofiguras focircnicasrdquo (no dizer de Jakobson) rastreava os elementos isolados do contexto do

proacuteprio signo a que pertenciam destacando-os da relaccedilatildeo interna significante-

57

significado que compotildee a sua noccedilatildeo abstratizante de signo se tomados apenas como

fonemas em sua representaccedilatildeo por letras natildeo seratildeo esses elementos vistos em sua

materialidade ainda que possam originar diferenccedilas em sua audiccedilatildeo ou emissatildeo Nos

exerciacutecios de Jakobson em que relaciona unidades focircnicas para revelar sentidos

adjacentes ou subjacentes ou suprajacentes (como fizera por exemplo na jaacute

mencionada anaacutelise de ldquoThe ravenrdquo entre tantas outras) e em sua proacutepria noccedilatildeo de

projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma natildeo haacute a identificaccedilatildeo de ldquoformasrdquo

ldquoexternasrdquo a cada signo verbal que consistem em elementos integrantes de coacutedigos

sonoros visuais etc

Veja-se esta breve reflexatildeo natildeo como uma proposiccedilatildeo ambiciosamente

resolutoacuteria mas apenas como um exerciacutecio voltado agrave superaccedilatildeo de importantes entraves

de compreensatildeo ou operacionalizaccedilatildeo no trabalho com a linguagem por conflitos

supostamente insuperaacuteveis Em seu constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica Haroldo

de Campos vale-se muitas vezes da ideia de ldquomaterialidade siacutegnicardquo contudo como se

poderaacute ver seu pensamento natildeo se volta ao ldquoresgate de significados estaacuteveisrdquo e

tampouco considera o ldquooriginalrdquo como autoridade dotada de uma intenccedilatildeo a ser

respeitada ou seguida ancilarmente agrave semelhanccedila dele outros poetas e tradutores de

poesia encaram sua tarefa de traduzir de modo bem diverso do que seria o modus

operandi da traduccedilatildeo ldquofiel ao sentido que o autor quis transmitirrdquo etc

Num novo livre pensamento com alguma possiacutevel utilidade reflexiva

admitindo-se que seja na ldquodiferenccedilardquo (conforme preconizou Saussure) que a

significaccedilatildeo se decirc no processo relacional dos signos e ainda que se considere o signo

natildeo ldquoem sua composiccedilatildeo mas em seus contornosrdquo talvez se possa supor que no

ldquoconfrontordquo entre contornos focircnicos estes tambeacutem recuperem na leitura sua

ldquoidentidade materialrdquo ou se faccedilam notar em sua especificidade ldquomaterializandordquo o

corpo que envolvem seria na comparaccedilatildeo que a ldquomaterialidaderdquo tambeacutem se afirmaria

ldquoconsolidando-serdquo pelo ldquoembaterdquo entre contornos58

58 Em outra oportunidade referi-me agrave questatildeo geral da materialidade do signo desta forma um tanto

diversa e mais sinteacutetica ldquoAinda que se considere a postulaccedilatildeo de Saussure de que o lsquosignificante

linguiacutesticorsquo eacute lsquoincorpoacutereo constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas

que separam sua imagem acuacutestica de todas as outras (1972 137-8) [] eacute inegaacutevel a existecircncia da materialidade siacutegnica que permite o estabelecimento das diferenccedilas pelas quais o lsquosignificantersquo se define

Assim ainda que o lsquosignificantersquo natildeo seja lsquouma entidade puramente materialrsquo (Rodrigues 1999 189) (o

grifo eacute meu) tambeacutem o eacute (material) e as diferenccedilas que o delimitam ainda que de teor lsquoabstratorsquo

integram a cadeia de relaccedilotildees entre signos identificadas numa obra de arte verbal relaccedilotildees estas

marcadas exatamente por semelhanccedilas e diferenccedilas (considerando-se a projeccedilatildeo do eixo de similaridade

sobre o de contiguidade caracteriacutestico da lsquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrsquo) []rdquo

58

O poeta tradutor e ensaiacutesta Joseacute Paulo Paes tambeacutem fala em ldquomaterialidaderdquo

Apoacutes discutir a traduccedilatildeo de poesia em sua obra Traduccedilatildeo a ponte necessaacuteria (1990)

considerando-a ldquoo caso-limite da problemaacutetica geral da traduccedilatildeordquo (devido

principalmente para ele por ser a poesia ldquoa forma mais condensada de linguagemrdquo

conceito colhido do poeta e criacutetico norte-americano Ezra Pound) assim se refere agrave

atividade do poeta evocando o ldquoprinciacutepio miacutetico do mundo aquele jardim do Eacuteden a

cujos seres Adatildeo deu o nome inauguralrdquo

Ao perturbar constantemente o primado do sentido loacutegico do discurso por via de

operadores diversivos como a metaacutefora a aliteraccedilatildeo a assonacircncia o jogo

paronomaacutestico etc busca o poeta com isso chamar a atenccedilatildeo do leitor menos para

o significado abstrato dos signos do que para a materialidade deles ndash o seu som a

sua forma ndash que eacute o penhor de serem congeniais das coisas Precisamente porque

aspira ao ideoleto imaginaacuterio [(o ldquoprimeiro ideoletordquo a liacutengua privativa de Adatildeo

teria se transformado por meio de seus descendentes em socioleto uma liacutengua

grupal instaurando-se a partir de entatildeo o ldquoreino da vicariedade ou

intermediaccedilatildeo)] o poeta estaacute sempre redescobrindo o mundo vendo-o como nunca

ningueacutem o tivesse visto antes como se fosse ele o primeiro homem sobre a face da

Terra (1990 47)

A recorrecircncia agrave noccedilatildeo natildeo-saussuriana das palavras como ldquocongeniais das

coisasrdquo (ideia que pode ser vista como manifestaccedilatildeo logocecircntrica) serve para enfatizar o

que seria a busca da poesia pela ldquomaterializaccedilatildeordquo da palavra que ansiaria a ser ldquocoisardquo

no poema A esse respeito leia-se ndash por sua sugestatildeo materializante ndash o seguinte poema

de Joatildeo Cabral de Melo Neto criador de uma ldquopoesia com coisasrdquo (no dizer de Marta

Peixoto59

) feita de ldquopalavras-coisasrdquo contendo uma interessante metaacutefora

(materializadora) da criaccedilatildeo poeacutetica

59 PEIXOTO Marta Poesia com coisas Satildeo Paulo Perspectiva 1983

59

Catar feijatildeo

1

Catar feijatildeo se limita com escrever

joga-se os gratildeos na aacutegua do alguidar

e as palavras na folha de papel

e depois joga-se fora o que boiar

Certo toda palavra boiaraacute no papel

aacutegua congelada por chumbo seu verbo

pois para catar esse feijatildeo soprar nele

e jogar fora o leve e oco palha e eco

2

Ora nesse catar feijatildeo entra um risco

o de que entre os gratildeos pesados entre

um gratildeo qualquer pedra ou indigesto

um gratildeo imastigaacutevel de quebrar dente

Certo natildeo quando ao catar palavras

a pedra daacute agrave frase seu gratildeo mais vivo

obstrui a leitura fluviante flutual

accedilula a atenccedilatildeo isca-a como o risco60

Antes de encerrar este toacutepico preparatoacuterio a nossas abordagens centrais com

alguns comentaacuterios criacuteticos agrave postura radicalmente relativizadora proacutepria do

desconstrucionismo escolho referir-me a um interessante exerciacutecio realizado por

Rosemary Arrojo em que analisa o poema ldquoAacuteporordquo de Carlos Drummond de Andrade

Aleacutem do proveito que o exerciacutecio traz como exemplificaccedilatildeo de possibilidades de anaacutelise

de um poema haacute tambeacutem o aspecto de ainda que convicta da inexistecircncia de qualquer

caracteriacutestica intriacutenseca aos poemas que os distingam como tais a autora recorrer a

procedimento muito semelhante ao empregado em uma anaacutelise estrutural como se veraacute

nesta breve referecircncia Comenta Arrojo ldquolsquoAacutepororsquo [] eacute o texto escolhido pois apesar

de sua brevidade pode nos dar um bom exemplo do que seria ler lsquopoeticamentersquo um

textordquo Ainda que a ecircnfase seja na ldquoleiturardquo na praacutetica natildeo haacute mudanccedila significativa de

procedimento em relaccedilatildeo agravequele adotado nas anaacutelises usualmente desenvolvidas por

60 De A educaccedilatildeo pela pedra (1965)

60

linguistas semioticistas ou criacuteticos de poesia a diferenccedila reside essencialmente no

modo de referir-se ao ato de anaacutelise como ldquoleiturardquo ldquoA leitura de Aacuteporo que proponho

a seguir se assemelha agrave construccedilatildeo de um quebra-cabeccedilardquo (p 47) Independentemente

do referencial teoacuterico e da oacuteptica de abordagem do objeto o que se realizaraacute seraacute um

conjunto de observaccedilotildees elaboradas a partir do que o objeto de anaacutelise ldquopode nos darrdquo

por suas qualidades de possibilidades de identificaccedilatildeo do ldquoquebra-cabeccedilardquo que

pressupotildee a existecircncia de peccedilas identificaacuteveis ainda que associadas a um processo

sempre interpretativo Assim os procedimentos de anaacutelise efetuados por estruturalistas

como Jakobson61

ou entre noacutes por teoacutericos da poesia como Haroldo de Campos e

Deacutecio Pignatari permanecem sendo o meio para reconhecimento de aspectos e

possibilidades da linguagem poeacutetica ainda que a postura desconstrucionista utilize um

discurso enfatizador do aspecto de ldquoconstruccedilatildeordquo da leitura analiacutetica ldquoVamos tentar

construir melhor esse enredo quebra-cabeccedilardquo Mas o que eacute construiacutedo natildeo vem do

nada procede natildeo soacute da dimensatildeo psicoloacutegica (que inclui a percepccedilatildeo) mas tambeacutem de

elementos e relaccedilotildees que podem ser identificados e aos quais podem ser atribuiacutedos

aspectos de organizaccedilatildeo da linguagem do poema ou de interpretaccedilatildeo a partir das

relaccedilotildees estabelecidas Tais elementos podem ser observados pela ldquoleitura poeacuteticardquo do

texto que diga-se sempre foi a leitura desejaacutevel para uma obra que se propotildee como um

poema tenha ela a funccedilatildeo que tiver em determinado contexto soacutecio-cultural Assim

ainda que se opte por coerecircncia teoacuterico-ideoloacutegica pela referecircncia enfaacutetica de que se

trata de ldquoleiturardquo e natildeo de algo inerente ao texto permanece viva a escolha pela anaacutelise

voltada a mostrar o alcance das intrincadas relaccedilotildees entre som e sentido encontraacuteveis

num poema

Previamente agraves observaccedilotildees sobre a anaacutelise de Arrojo leia-se o poema de

Drummond

61 Vejam-se como exemplos entre tantos estudos do linguista os relativos a poemas de Dante Bellay

Shakespeare Blake Yeats Houmllderlin Baudelaire e Poe (jaacute mencionado) enfeixados na antologia

(tambeacutem jaacute referida) Poeacutetica em accedilatildeo (1990)

61

Aacuteporo

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape

Que fazer exausto

em paiacutes bloqueado

enlace de noite

raiz e mineacuterio

Eis que o labirinto

(oh razatildeo misteacuterio)

presto se desata

em verde sozinha

antieuclidiana

uma orquiacutedea forma-se

A respeito do poema Arrojo observa (apoacutes decorrida grande parte de sua longa

anaacutelise)

O jogo da leitura poeacutetica natildeo deve descartar nenhum fragmento que possa ser

empregado na construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo [] No ldquoAacuteporordquo um destes

elementos eacute o nuacutemero de siacutelabas do uacuteltimo verso ldquouma orquiacutedea forma-serdquo que se

destaca dos demais por ser o uacutenico a contar som seis siacutelabas Portanto exatamente

o verso em que se forma a orquiacutedeaaacuteporo62

eacute tambeacutem ldquoantieuclidianordquo na medida

em que subverte a organizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoAacuteporordquo

Sobre a observaccedilatildeo um comentaacuterio a interpretaccedilatildeo ainda que interessante

encerra um erro de leitura evidenciando-se que as caracteriacutesticas do texto exigem

62 A autora usa as combinaccedilotildees ldquoorquiacutedeaaacuteporordquo e ldquoinsetoaacuteporordquo em decorrecircncia dos muacuteltiplos sentidos

do termo ldquoaacuteporordquo (do grego aacuteporos ldquointransponiacutevel sem saiacuteda difiacutecil inelutaacutevelrdquo) que tanto pode

significar ldquosituaccedilatildeo sem saiacutedardquo como ldquoinseto himenoacutepterordquo e ainda (como observa Arrojo com base no

Dicionaacuterio contemporacircneo da liacutengua portuguesa de Caldas Aulete (Lisboa 1948) referir-se a ldquoum tipo

de planta da famiacutelia das orquiacutedeas solitaacuteria geralmente esverdeadardquo

62

atenccedilatildeo cuidado e propriedade na ldquoleitura poeacuteticardquo O verso apontado como

apresentando seis siacutelabas pode perfeitamente ser lido como sendo uma redondilha

menor agrave semelhanccedila dos demais versos do poema

U ma or quiacute dea for ma-se

1 2 3 4 5

Contamos portanto ateacute a uacuteltima tocircnica do verso cinco siacutelabas considerando-se

a esperada elisatildeo entre as vogais aacutetonas de ldquoma orrdquo e a habitual leitura de ldquodeardquo como

ditongo Dada a normalidade da leitura e da contagem dela decorrente natildeo haacute nenhuma

razatildeo para que se veja tal verso como hexassiacutelabo mesmo porque a leitura do conjunto

de heptassiacutelabos sugere (para natildeo dizer ldquodeterminardquo) pela sequecircncia riacutetmica que esse

verso tambeacutem seja lido como tal Haacute muitos casos em que a regularidade meacutetrica

empregada pelo poeta exige mais flexibilidade na leitura para que se mantenha e isso eacute

um procedimento usual em composiccedilatildeo de poesia expedientes de ditongaccedilatildeo de hiatos

e elisotildees por vezes forccediladas satildeo aceitas em funccedilatildeo da percepccedilatildeo do conjunto riacutetmico-

meacutetrico articulado (e observado) no poema Uma evidenciaccedilatildeo assim entendo de que

as anaacutelises envolvem a observaccedilatildeo de aspectos intratextuais ainda que estes sejam

ldquorecriadosrdquo por meio da leitura

Acerca do mesmo verso diz ainda Arrojo

Outro fragmento que se destaca nesse verso eacute o pronome se que encerra o poema

[] o que chama a atenccedilatildeo eacute sua posiccedilatildeo encliacutetica numa situaccedilatildeo em que a

proacuteclise [] seria mais natural [] Visualmente o hiacutefen que separa o ldquoserdquo do

verbo (e do verso) pode enfatizar a sugestatildeo do extravazar O ldquoserdquo poderia

representar a relaccedilatildeo estabelecida entre criador e objeto criado entre o insetoaacuteporo

e a orquiacutedeaaacuteporo Relaccedilatildeo essa que sugere quase um expelir um parto o

momento mesmo em que a orquiacutedea sai da terra

E com uma sequecircncia analiacutetica que apresenta pontos em comum com aquela

realizada por Pignatari em seu ensaio criacutetico ldquoAacuteporordquo (iniciado com o subtiacutetulo ldquoUm

inseto semioacuteticordquo (Contracomunicaccedilatildeo 1973 131) Arrojo prossegue

63

Tal interpretaccedilatildeo pode ser ainda enriquecida pela observaccedilatildeo de que a siacutelaba ldquoserdquo

se encontra tambeacutem no centro do substantivo ldquoinsetordquo o inseto ldquoconteacutemrdquo aquilo

que se transforma em orquiacutedea e que nasce depois de um processo quase doloroso

Se prestarmos atenccedilatildeo aos demais versos do poema podemos observar que a siacutelaba

ldquoserdquo ou variaccedilotildees dela (ieacute sibilante + vogal e) satildeo constantes no poema No

primeiro quarteto o ldquoserdquo de ldquoinsetordquo se repete em ldquosemrdquo nos versos 2 e 4 e surge

a variaccedilatildeo ldquoesrdquo em ldquoescaperdquo No segundo quarteto concentram-se diversas

variaccedilotildees em que o s desaparece e eacute substituiacutedo por outras sibilantes ldquofazerrdquo

ldquoexaustordquo ldquoenlacerdquo ldquoraiz erdquo No primeiro terceto ldquoserdquo volta a ocorrer em sua

forma original aleacutem da variaccedilatildeo ldquoesrdquo ldquopresto se desatardquo Em seguida a siacutelaba ldquoserdquo

volta a se repetir somente no uacuteltimo verso Tais ocorrecircncias poderiam sugerir os

vaacuterios caminhos percorridos pelo insetocriador em sua tentativa de chegar agrave forma

ideal da orquiacutedeaaacuteporo []

Afirmaccedilotildees como ldquosiacutelaba ou variaccedilotildees dela constantes no poemardquo ldquoa siacutelaba

volta a se repetir volta a ocorrerrdquo ou ldquotais ocorrecircncias poderiam sugerirrdquo revelam que

natildeo obstante o esforccedilo para que tudo seja visto como criado pela leitura as referecircncias a

ocorrecircncias no texto integram o processo de anaacutelise e de ldquoproduccedilatildeo de sentidordquo Poder-

se-ia dizer que as referecircncias satildeo inevitaacuteveis porque a linguagem que usamos estaacute

imbuiacuteda do logocentrismo que pressupotildee os existentes independentes fixos etc Mas

creio natildeo leva a nada a permanecircncia ciacuteclica interminaacutevel na sustentaccedilatildeo de

inexistecircncias antes satildeo bastante interessantes do ponto de vista de operacionalidade no

labor e na criacutetica de poesia as decorrecircncias (possivelmente generalizantes) dos

resultados obtidos pelas anaacutelises de poemas assim como a simples apreciaccedilatildeo

propiciada pela ldquoleitura poeacuteticardquo envolvendo a observaccedilatildeo de padrotildees de relaccedilatildeo entre

som e sentido e outros identificaacuteveis como recorrentes em poesia

De todo modo a iniciativa da anaacutelise exemplifica a necessidade ou

inevitabilidade de superar o imobilismo que a total relativizaccedilatildeo das identidades textuais

poderia ocasionar ao natildeo deixar de buscar num poema as possibilidades que o texto

mesmo revela agrave leitura ainda que as noccedilotildees a respeito de poesia ou literatura sejam

mutaacuteveis atraveacutes dos tempos e variaacuteveis atraveacutes dos espaccedilos e contextos culturais

vale o que vemos em nosso meio e com nosso modo de ver a universalidade ou

64

imutabilidade de conceitos natildeo satildeo penso imprescindiacuteveis para que exista um ldquogecircnerordquo

ou um modo de ser da linguagem ainda que mutante

A intenccedilatildeo foi fazer nesta parte do trabalho certo esforccedilo para a discussatildeo

acerca da linguagem poeacutetica visando agrave compreensatildeo de princiacutepios de traduccedilatildeo de

poesia e agrave aplicaccedilatildeo de algumas referecircncias para tanto Entre as muitas teorias sobre a

linguagem e sobre a traduccedilatildeo (na proacutexima etapa deste capiacutetulo seraacute abordado

brevemente o amplo panorama teoacuterico relativo agrave atividade tradutoacuteria) elegeu-se certo

estruturalismo e para estabelecimento de um confronto criacutetico com algumas concepccedilotildees

que dele advecircm e seratildeo utilizadas neste estudo foram apresentados alguns aspectos do

pensamento poacutes-estruturalista desconstrucionista Com o intuito de refletir sobre o

impacto do desconstrucionismo na teoria na praacutetica e na avaliaccedilatildeo da tarefa de traduccedilatildeo

poeacutetica seratildeo apontadas a seguir duas colocaccedilotildees de especial pertinecircncia tendo-se em

conta nossos propoacutesitos gerais

Leia-se primeiro o ldquoAbstractrdquo que acompanha o artigo ldquoDoubts about

deconstruction as a general theory of translationrdquo do teoacuterico da traduccedilatildeo Anthony Pym

apresentado aqui em traduccedilatildeo integrante da publicaccedilatildeo do artigo em inglecircs pela revista

brasileira TradTerm (1995)

A comparaccedilatildeo de quatro versotildees de uma frase de Derrida coloca a questatildeo da

redaccedilatildeo da filosofia desconstrutivista com a teoria da traduccedilatildeo Levantam-se

duacutevidas acerca da pertinecircncia geral da desconstruccedilatildeo da possibilidade de expandir

o alcance de seus insights para aleacutem da anaacutelise do texto-fonte e das razotildees de

uma certa inferiorizaccedilatildeo residual da traduccedilatildeo Sugere-se no espiacuterito de uma

discordacircncia paciacutefica que a teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute seriamente abalada pelo

fato dos textos-fonte constituiacuterem pontos de partida semanticamente instaacuteveis

(1995 11)

Sem que se pretenda alongar demais a referecircncia ao artigo e a seu conteuacutedo eacute

uacutetil que se destaque a frase final desse Resumo ldquoa teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute

seriamente abalada []rdquo e que sejam citados alguns fragmentos do ensaio

65

There is some irony in the way that the critique of origins tends to invest all its

efforts on the level of origins to the detriment of efficient formal or final purposes

[hellip] A critique of origins is inevitably locked into a backward vision to the

detriment of present action or future agreements In its psychoanalytic metaphors

this critique focuses on the imaginary status of initial causes but forgets that the

analysts final cause is to help cure someone Deconstruction might perhaps be able

to say something about how a translator should accept semantic plurality [hellip] or

how a user should assess a translation in terms of this plurality But as soon as the

specific problem of anterior origins becomes the problem of translation

deconstruction reduces translation to a form of source-text analysis In fact it turns

translation into what could only be an inferior form of the kind of readings

undertaken by deconstruction itself [hellip]

The problem with deconstructionist propositions like those based on the obverse

dominance of target-side or final causes is that they are decidedly unhelpful once

agreed to One eventually has to ask So what and then get on with solving

concrete problems [hellip]

In a world where everything is to constructed deconstructionist theory can and

should raise passing doubts on the way to concrete action But translation theory

has a lot of other work to do awaiting the philosopheracutes return from Derridean

islands (1995 15-17)

Em suma o tradutor em seu aacuterduo ofiacutecio teria problemas mais ldquoconcretosrdquo com

que lidar aleacutem das questotildees da pluralidade semacircntica63

ou da instabilidade do

significado que teriam reduzido a traduccedilatildeo a uma forma de anaacutelise do texto-fonte

Sobre a questatildeo da utilidade ou das contribuiccedilotildees da desconstruccedilatildeo e considerando a

argumentaccedilatildeo de Pym Paulo Henriques Britto ndash autor da talvez mais perspicaz criacutetica agrave

visatildeo desconstrucionista no Brasil ndash diz em seu artigo ldquoDesconstruir para quecircrdquo64

[] O grande meacuterito da desconstruccedilatildeo portanto eacute ter levantado discussotildees que nos

tornou a todos ndash independentemente da posiccedilatildeo que adotemos ndash mais conscientes

da diferenccedila entre o que devem ser as metas da atividade tradutoacuteria e o que na

praacutetica se pode exigir de uma traduccedilatildeo real Hoje por exemplo afirmar que uma

63 Sobre esta fundamental postulaccedilatildeo de Derrida ver seu ensaio ldquoDes tours de Babelrdquo em Psycheacute

(19871998) Haacute ediccedilatildeo brasileira em traduccedilatildeo de Junia Barreto DERRIDA J Torres de Babel Belo

Horizonte UFMG 2006 64 In Cadernos de traduccedilatildeo vol 2 Florianoacutepolis UFSC 2001

66

determinada traduccedilatildeo de um determinado texto eacute a uacutenica correta ou a uacutenica

possiacutevel eacute uma demonstraccedilatildeo de absoluta ingenuidade teoacuterica Talvez a melhor

maneira de ver a desconstruccedilatildeo seja encaraacute-la como uma vertente de pensamento

de valor puramente negativo boa para apontar para as limitaccedilotildees de conceitos

correntes poreacutem incapaz de propor alternativas viaacuteveis []

Sem duacutevida a criacutetica desconstrutivista nos leva a relativizar vaacuterios conceitos ndash ou

seja encaraacute-los tais como satildeo como ficccedilotildees e natildeo realidades Poreacutem natildeo podemos

abrir matildeo dessas ficccedilotildees ndash e ldquonatildeo podemosrdquo aqui natildeo tem o sentido deocircntico de

ldquonatildeo devemosrdquo trata-se de uma impossibilidade praacutetica Conceitos como

ldquosignificadordquo ldquooriginalrdquo e ldquoequivalecircnciardquo satildeo pressupostos incontornaacuteveis das

praacuteticas textuais por mais problemaacuteticos que sejam Devemos criticaacute-los estar

sempre atentos para seu caraacuteter construiacutedo mas deles natildeo podemos abrir matildeo O

jogo do logocentrismo eacute em uacuteltima anaacutelise o jogo da linguagem Recusar-se a

jogaacute-lo eacute condenar-se ao silecircncio

Para chegar a essas conclusotildees ndash com as quais mantenho certo grau de

concordacircncia ndash Britto mostrou em seu artigo a divergecircncia entre a criacutetica feita por R

Arrojo (que ele considera ldquotalvez a mais destacada defensora da desconstruccedilatildeo na aacuterea

da teoria da traduccedilatildeo no Brasilrdquo) a pressupostos ldquoestigmatizados como lsquologocecircntricosrsquordquo

e o proacuteprio discurso tradutoloacutegico realizado por ela no artigo ldquoAs questotildees teoacutericas da

traduccedilatildeo e a desconstruccedilatildeo do logocentrismo algumas reflexotildeesrdquo65

Nele Arrojo cita

em portuguecircs vaacuterios trechos de obras de F Nietzche e G Mounin referindo-se a eles

como se fossem os textos dos proacuteprios autores sem mencionar quem realizou as

traduccedilotildees utilizadas Diante disso Brito considera que

[] para Arrojo a traduccedilatildeo de um texto pode ser considerada equivalente ao

original [] o que lhe interessa no momento satildeo os significados as ideias que

Nietzsche e Mounin exprimiram em seus textos e ela considera que esses

significados ou ideias foram transpostos para o portuguecircs nas traduccedilotildees de modo

razoavelmente confiaacutevel Ao tratar traduccedilotildees como originais e atribuiacute-las aos

autores dos originais Arrojo assume plenamente a visatildeo logocecircntrica [] ndash

traduccedilotildees satildeo textos equivalentes a originais

65 In ARROJO R (org) O signo desconstruiacutedo implicaccedilotildees para a traduccedilatildeo a leitura e o ensino

Campinas Pontes 2003 p 71-79

67

Em segundo lugar vemos que Arrojo utiliza expressotildees como ldquoMounin crecircrdquo e

ldquopara Mouninrdquo Ora se Arrojo pode atribuir crenccedilas e opiniotildees a Mounin com

base na sua leitura do texto de Mounin eacute porque a seu ver o texto de Mounin

reflete as intenccedilotildees conscientes de Mounin

[] na sua praacutetica textual Arrojo segue o pressuposto [de que] o significado eacute uma

propriedade estaacutevel do texto que pode ser identificada com a intenccedilatildeo consciente

do autor ao escrevecirc-lo e que independe das circunstacircncias do leitor Por fim

constatamos tambeacutem que para Rosemary Arrojo o significado pode ser

considerado um objeto distinto do estilo do texto em que ele aparece Caso

contraacuterio ela teria citado Nietzsche e outros autores no original []

Vemos portanto que para os fins de um artigo cujo tema eacute a desconstruccedilatildeo do

logocentrismo Arrojo subscreve justamente aqueles aspectos da visatildeo logocecircntrica

que segundo ela devem ser desconstruiacutedos A autora naturalmente poderia

argumentar que se trata de uma aproximaccedilatildeo apenas que na verdade ela sabe que

a traduccedilatildeo de Mounin feita pelo tradutor brasileiro natildeo eacute a mesma coisa que o texto

de Mounin tal como sabe que o texto de Mounin natildeo eacute uma representaccedilatildeo estaacutevel

dos significados e intenccedilotildees conscientes de Mounin mas que para os fins a que se

propotildee no artigo em questatildeo ela pode perfeitamente admitir essas ficccedilotildees ndash a

ficccedilatildeo do original estaacutevel e consciente e a ficccedilatildeo da traduccedilatildeo equivalente Pois esta

hipoteacutetica defesa de Arrojo eacute justamente o ponto a que quero chegar Todas as

criacuteticas ao logocentrismo apontam para fatos inegaacuteveis Tem razatildeo Arrojo quando

chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de traduccedilotildees perfeitamente literais em que

a figura do tradutor eacute de todo invisiacutevel Tambeacutem eacute verdade que natildeo eacute possiacutevel

determinar com exatidatildeo qual o significado uacutenico e preciso de um determinado

texto nem tampouco identificar um tal significado com a intenccedilatildeo consciente do

autor E eacute evidente que eacute ingenuidade acreditar que o significado eacute uma entidade

abstrata que pode ser destacada dos outros elementos do texto como o estilo O

problema poreacutem eacute que para a grande maioria dos fins praacuteticos que envolvem a

utilizaccedilatildeo de textos soacute podemos agir se adotarmos certos pressupostos

aproximaccedilotildees que embora natildeo correspondam agrave realidade dos fatos satildeo

imprescindiacuteveis (2001 42-48)

Mais uma vez a longa citaccedilatildeo se justifica pela acuidade dos argumentos e por

sua total conveniecircncia para o encerramento desta parte de nosso estudo Outros textos

do mesmo autor seratildeo evocados nos proacuteximos toacutepicos ao tratarmos propriamente da

traduccedilatildeo poeacutetica

68

B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica

The death of Irish

The tide gone out for good

Thirty-one words for seaweed

Whiten on the foreshore

Aidan Carl Mathews

A morte do Irlandecircs

A mareacute vazia de vez

Trinta e uma palavras para alga

Empalidecem na praia

(Trad Marcelo Taacutepia66

)

ldquoSegundo Jakobson a estrateacutegia do traduzir impotildee [] um ldquomodus operandirdquo []

distinto a este ldquomodus operandirdquo Jakobson denomina ldquotransposiccedilatildeo criativardquo

(caso em que eu falo de lsquore-criaccedilatildeorsquo ou lsquotranscriaccedilatildeorsquo e

Meschonnic de lsquotraduccedilatildeo-textorsquo) []

Haroldo de Campos67

Jaacute se fez referecircncia neste trabalho agrave hipoacutetese proposta nos anos 1930 pelos

linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf tese que se tornou durante muito

tempo referecircncia para o relativismo linguiacutestico Segundo a tatildeo conhecida hipoacutetese

Sapir-Whorf as diferentes culturas caracterizam-se por universos mentais muito

distintos natildeo soacute expressos mas tambeacutem determinados pelas diferentes liacutenguas que lhes

satildeo proacuteprias Assim o estudo das estruturas de uma liacutengua pode levar agrave elucidaccedilatildeo das

concepccedilotildees de mundo a que ela se liga Esta proposiccedilatildeo suscitou o entusiasmo de uma

geraccedilatildeo inteira de antropoacutelogos psicoacutelogos e linguistas nas deacutecadas que se seguiram

Do entendimento que ela implica deduz-se a natildeo-correspondecircncia entre os diferentes

idiomas e as consequentes visotildees diacutespares de mundo condenando-se a ideia da traduccedilatildeo

agrave impossibilidade por princiacutepio

66 O poema refere-se ao processo de ldquomorterdquo do idioma irlandecircs que conta com 31 palavras para designar

variedades de alga coerentemente com a cultura da ilha In A forja ndash alguma poesia irlandesa Ed

biliacutengue trad M Taacutepia Satildeo Paulo Olavobraacutes 2003 67 CAMPOS H ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo Conferecircncia apresentada

no II Congresso Brasileiro de Semioacutetica Satildeo Paulo 1985

69

Jakobson como jaacute se aludiu esforccedilou-se por introduzir uma visatildeo menos

pessimista expressa em seu referencial ensaio ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo

Diz ele

A praacutetica e a teoria da traduccedilatildeo abundam em problemas complexos de quando em

quando fazem-se tentativas de cortar o noacute goacuterdio proclamando o dogma da

impossibilidade da traduccedilatildeo ldquoO Sr Todo-Mundo esse loacutegico naturalrdquo tatildeo

vivamente imaginado por B L Whorf teria supostamente de raciocinar da

seguinte maneira ldquoOs fatos satildeo diferentes para pessoas cuja formaccedilatildeo linguiacutestica

lhes fornece uma formulaccedilatildeo diferente para expressar tais fatosrdquo68

Nos primeiros

anos da revoluccedilatildeo russa existiam visionaacuterios fanaacuteticos que advogaram[] uma

revisatildeo radical da linguagem tradicional e em particular a supressatildeo de expressotildees

enganosas como o ldquonascerrdquo ou ldquopocircrrdquo do Sol Entretanto [] eacute faacutecil para noacutes

passar de nossas conversaccedilotildees costumeiras sobre o Sol nascente ou poente agrave

representaccedilatildeo da rotaccedilatildeo da Terra [] porque qualquer signo pode ser traduzido

num outro signo em que ele se nos apresenta mais plenamente desenvolvido e mais

exato []

Toda experiecircncia cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer liacutengua

existente Onde houver uma deficiecircncia a terminologia poderaacute ser modificada por

empreacutestimos calccedilos neologismos transferecircncias semacircnticas e finalmente por

circunloacutequios [] (1973 66-67)

Sobre a questatildeo da equivalecircncia Jakobson afirma que

[] no niacutevel da traduccedilatildeo interlingual69

natildeo haacute comumente equivalecircncia completa

entre as unidades de coacutedigo ao passo que as mensagens podem servir como

interpretaccedilotildees adequadas das unidades de coacutedigo ou mensagens estrangeiras []

No caso da traduccedilatildeo poeacutetica apoacutes sustentar (conforme citaccedilatildeo jaacute incluiacuteda no

iniacutecio deste estudo) que ldquoem poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de

princiacutepio construtivo do textordquo e de que ldquoo trocadilho ou [] a paronomaacutesia reina na

68 Referecircncia a Benjamin Lee Whorf Language thought and reality Massachusetts Cambridge 1956

p 235 69 O linguista distingue trecircs espeacutecies de traduccedilatildeo intralingual ou reformulaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo dos signos

verbais por meio de outros signos da mesma liacutengua) interlingual ou traduccedilatildeo propriamente dita

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de alguma outra liacutengua) e traduccedilatildeo intersemioacutetica

(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de sistemas de signos natildeo-verbais)

70

arte poeacuteticardquo o linguista considera que ldquoquer esta dominaccedilatildeo seja absoluta ou limitada

a poesia por definiccedilatildeo eacute intraduziacutevelrdquo Sendo assim para ele ldquosoacute eacute possiacutevel a

transposiccedilatildeo criativardquo (1973 72)

A expressatildeo ldquotransposiccedilatildeo criativardquo daria origem agrave palavra ldquotranscriaccedilatildeordquo

designadora do conceito de traduccedilatildeo poeacutetica segundo Haroldo de Campos que

examinou a questatildeo da ldquofragilidaderdquo de uma ldquoobra de arte verbalrdquo e propotildee do mesmo

modo o caminho de transcriaacute-lo Veja-se oportunamente a teoria da transcriaccedilatildeo de

Campos em toacutepico a ela dedicado neste estudo

71

B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo

George Steiner em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo livro sobre traduccedilatildeo After Babel (1973)

diz70

que ldquoA traduccedilatildeo eacute necessaacuteria em razatildeo de os seres humanos falarem diferentes

liacutenguasrdquo (2005 77) A afirmaccedilatildeo aparentemente oacutebvia implica a noccedilatildeo de que sendo

necessaacuteria seraacute realizada independentemente de suas dificuldades ou mesmo de ser

ldquopossiacutevelrdquo ou ldquoimpossiacutevelrdquo Desde a Antiguidade haacute a praacutetica da traduccedilatildeo assim como

a reflexatildeo sobre ela Ao longo da histoacuteria diferentes modos de visatildeo da atividade se

sobrepotildeem se contradizem se complementam sem que haja qualquer perspectiva de

uma teoria uacutenica que venha a se converter em referencial universal para a praacutetica da

traduccedilatildeo Embora cada uma das teorias existentes possa reivindicar a superioridade

sobre as demais o que permanece eacute um conjunto intrincado e muito amplo de

formulaccedilotildees e consequentemente de possibilidades de metodologia para a atividade

tradutoacuteria Enquanto se pode ter a ideia de que sempre a transposiccedilatildeo de um sentido de

um idioma a outro seraacute possiacutevel pela ldquosubstituiccedilatildeo do material textual de uma liacutengua

pelo material textual equivalente em outra liacutenguardquo (J C Catford)71

agrave semelhanccedila de

vagotildees de um trem de carga que rearranjados da forma que for necessaacuteria conduziratildeo

todo o ldquoconteuacutedordquo da mensagem do ponto de partida ao ponto de chegada (Eugene

Nida)72

pode-se concluir pela impossibilidade da traduccedilatildeo (hipoacutetese Humboldt ndash Sapir-

Whorf73

) ou por uma oacuteptica menos ldquopessimistardquo (mesmo incorporando a ideia de

impossibilidade) que ofereceraacute saiacuteda (Jakobson) tambeacutem se pode questionar a ideia de

traduccedilatildeo relativizando o significado como algo absolutamente incorpoacutereo e inacessiacutevel

(Derrida) Com a permanecircncia num conjunto de historicidade complexa de uma

extensa pluralidade de teorias mais antigas e mais novas seraacute sempre necessaacuterio eleger

aquela ou aquelas que melhor se prestem a determinadas perspectivas de realizaccedilatildeo

70 Utilizaremos para as citaccedilotildees de Steiner a ediccedilatildeo brasileira de seu livro Depois de Babel questotildees de

linguagem e traduccedilatildeo (Curitiba UFPR 2005) em traduccedilatildeo de Carlos Alberto Faraco 71 CATFORD J C A linguistic theory of translation Oxford Oxford University Press 1965 Traduccedilatildeo

brasileira Uma teoria linguiacutestica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1980 72 NIDA E Language structure and translation California Stanford University Press 1975 73

Wilhelm von Humboldt argumentou que as diferentes liacutenguas determinam constroem ldquovisotildees de

mundordquo (Weltanschauungen) diversas a ideia foi desenvolvida posteriormente pelos linguistas norte-

americanos Edward Sapir e Benjamin Whorf

72

Steiner considera que a ldquobibliografia sobre teoria praacutetica e histoacuteria da traduccedilatildeo

[] pode ser distribuiacuteda por quatro periacuteodosrdquo (259) embora natildeo haja linhas divisoacuterias

niacutetidas O primeiro por ele delimitado corresponde a um periacuteodo de dezenove seacuteculos

estende-se

[] do famoso preceito de Ciacutecero que recomenda em seu Libellus de optimo

genere oratorum de 46 a C que natildeo se traduza verbum pro verbo (ldquopalavra por

palavrardquo) e de sua reiteraccedilatildeo por Horaacutecio na Ars Poetica aproximadamente 20

anos mais tarde ateacute o enigmaacutetico comentaacuterio de Houmllderlin sobre suas proacuteprias

traduccedilotildees de Soacutefocles (1804)

O autor baseia-se para sua definiccedilatildeo desse imenso intervalo no fato de que

nele ldquoanaacutelises e pronunciamentos seminais brotam diretamente do empreendimento do

tradutorrdquo e destaca no periacuteodo

as observaccedilotildees e polecircmicas de Satildeo Jerocircnimo o magistral Sendbrief vom

Dolmetschen de Lutero (1530) os comentaacuterios de Du Bellay Montaigne e

Chapman os de Jacques Amyot para os leitores de sua traduccedilatildeo de Plutarco [] as

elaboraccedilotildees de Dryden sobre Horaacutecio Quintiliano e Jonson as de Pope sobre

Homero as de Rochefort sobre a Iliacuteada A teoria de Floacuterio [] os pontos de vista

gerais de Cowley [] o De interpretatione recta de Leonardo Bruni [] O tratado

de Huet [] (259-260)

Algumas notaccedilotildees que faccedilo de marcos (entre outros possiacuteveis) nessa histoacuteria

Ciacutecero inicia a histoacuteria da tradutologia distingue entre ut interpres (mero

tradutor) e ut orator (orador escritor) rechaccedilando a traduccedilatildeo literal (pro verbo

uerbum) Nec verbum verbo reddere fidus interpres (ldquonatildeo se preocupe em verter

palavra por palavra como um fiel inteacuterpreterdquo) Mas antes no seacutec VI a C quando a

liacutengua persa dominava o oriente os targumistas (targum traduccedilatildeo interpretaccedilatildeo)

ajudavam o puacuteblico a entender os versos biacuteblicos traduzindo-os oralmente e

comentando-os ndash cite-se o lema de Judaacute bem Ilai ldquoo que traduz literalmente eacute um

falsaacuterio o que acrescenta algo eacute um blasfemordquo No seacuteculo III a C judeus integrados agrave

cultura heleniacutestica do Mediterracircneo centro-oriental ocasionam a necessidade de

73

traduccedilatildeo de textos sagrados para o grego por dificuldade de leitura do hebraico surge o

primeiro caso histoacuterico de traduccedilatildeo bem-sucedida ndash a Biacuteblia na ldquoversatildeo dos setentardquo

ldquo72 anciatildeos traduzem em 72 dias inspirados pela divindaderdquo No final do seacuteculo IV

aparece a Vulgata Satildeo Jerocircnimo procede agrave revisatildeo dos textos biacuteblicos latinos existentes

a partir do grego e realiza a traduccedilatildeo do velho testamento com base no texto hebraico

propotildee que ldquoEadem igitur interpretandi sequenda est regula quam saepe diximus ut

ubi non sit damnum in sensu linguae in quam transferimus εὐφωνία et proprietas

conserveturrdquo74

(ldquoAssim pois deve-se seguir a regra de traduccedilatildeo que jaacute indicamos vaacuterias

vezes quando natildeo redunde em detrimento do sentido haacute que se conservar a eufonia e as

caracteriacutesticas proacuteprias da liacutengua que se traduzrdquo) Na Idade Meacutedia Maimocircnides formula

concepccedilotildees acerca de procedimentos de traduccedilatildeo que ainda correspondem a uma visatildeo

pragmaacutetica de equivalecircncia adotada por tradutores

O tradutor que pretenda verter literalmente cada vocaacutebulo e apegar-se servilmente

agrave ordem das palavras e frases do original depararaacute com muitas dificuldades e o

resultado apresentaraacute reparos e corruptelas O tradutor teraacute de apreender primeiro

todo o alcance da ideia e reproduzir depois seu conteuacutedo com maacutexima clareza em

outro idioma Mas isto natildeo pode ser realizado sem alterar a disposiccedilatildeo sintaacutetica

sem usar de muitos vocaacutebulos onde soacute havia um ou vice-versa e sem acrescentar

ou suprimir palavras de tal maneira que a mateacuteria resulte perfeitamente inteligiacutevel

na liacutengua para a qual se traduz75

Na Idade Moderna durante o Renascimento destaca-se o problema da traduccedilatildeo

de textos sagrados Lutero e Frei Luis de Leoacuten satildeo partidaacuterios da ldquoliteralidaderdquo (ldquose

pudesse ater-me agrave letra o fariardquo ndash Lutero) haacute preocupaccedilatildeo com a ldquonaturalidaderdquo no

idioma de chegada que levaria a acusaccedilotildees de uso de linguagem profana nos textos

biacuteblicos Em 1533 surge a obra De ratione dicendi de Juan Luis Vives que traz

ldquoquestotildees certamente muito sugestivas para a moderna teoria moderna da traduccedilatildeordquo

(Torre 1994 35) o linguista romeno Coseriu o considera ldquoprecursor da teoria moderna

do traduzirrdquo pelo fato de ele propor o problema da traduccedilatildeo como uma atividade

74 Hieronymus Epistolae 4 106 55 75 A partir da versatildeo ao espanhol de Santoyo (Santoyo J C Teoriacutea y criacutetica de La traduccioacuten Antologiacutea

Barcelona Bellaterra 1987) que por sua vez traduziu da versatildeo inglesa de Stitskin (Stitskin L D

Letters of Maimonides New York Yeshiva University Press 1977) Apud Torre E Teoria de La

traduccioacuten literaacuteria Madri Sintesis 1994 p 24

74

diferenciada para cada tipo de texto suas colocaccedilotildees centrais vatildeo ao encontro de

proposiccedilotildees como as de Nida (Theory and Practice of Translation 1969) para ele a

traduccedilatildeo eacute ldquouma transferecircncia de palavras de uma liacutengua a outra conservando-se o

sentidordquo76

Distingue trecircs tipos de traduccedilatildeo

Em algumas versotildees atende-se somente ao sentido (solus spectatur sensus) em

outras somente agrave construccedilatildeo e ao estilo [] como se por exemplo algueacutem

tentasse trasladar a outras liacutenguas os discursos de Demoacutestenes ou de Ciacutecero ou os

poemas de Homero ou de Virgiacutelio respeitando fielmente todas as suas

caracteriacutesticas e nuanccedilas [] Um terceiro tipo de versatildeo eacute aquele em que se tecircm

em conta tanto os conteuacutedos 77

como as palavras (et res et verba) isto eacute quando as

palavras vecircm a adicionar forccedila e graccedila agraves ideias seja isoladamente ou em grupos

ou na totalidade do discurso78

Mencione-se tambeacutem como referecircncia especialmente marcante a proposiccedilatildeo de

Alexander Fraser Tytler (1792) comumente citadas como a manifestaccedilatildeo modelar da

concepccedilatildeo logocecircntrica da traduccedilatildeo79

1 A traduccedilatildeo deve reproduzir em sua totalidade a ideia do texto original

2 O estilo da traduccedilatildeo deve ser o mesmo do original

3 A traduccedilatildeo deve ter toda a fluecircncia e a naturalidade do texto original

E ainda o ldquodecisivo ensaiordquo (Steiner 2005 260) de Friedrich Schleirmacher80

ldquoUeber die verschiedenen Methoden des Uebersetzensrdquo (ldquoSobre os diferentes meacutetodos

de traduccedilatildeordquo conforme traduccedilatildeo brasileira)81

de 1813 Schleiermacher distingue

primeiramente ldquoduas formasrdquo que teriam sido inventadas de ldquotravar conhecimento com

as obras de liacutenguas desconhecidasrdquo ndash a ldquoimitaccedilatildeordquo e a ldquoparaacutefraserdquo

76 Apud TORRE 1994 p35 77 Apud ARROJO R 2003 A partir de The principles of translation (1791) apud Bassnet-McGuire

Susan Translation studies p 63 78 Id ib 79 Vejam-se as referecircncias agraves concepccedilotildees desconstrucionistas neste trabalho Outras observaccedilotildees sobre o assunto seratildeo incluiacutedas adiante 80 O filoacutesofo Shleiermacher (1768-1834) foi um dos criadores do Romantismo alematildeo ao lado dos irmatildeos

August e Friedrich Schlegel do poeta Novalis do autor de obras dramaacuteticas Ludwig Tieck e do tambeacutem

filoacutesofo Schelling todos unidos em torno da revista ldquoAtheanumrdquo em 1797 81 SCHLEIRMACHER F Traduccedilatildeo de Margarete Von Muumlhlen Poll In Claacutessicos da teoria da traduccedilatildeo

vol I ndash Alematildeo-portuguecircs Florianoacutepolis UFSC 2001 p 27

75

A paraacutefrase quer dominar a irracionalidade das liacutenguas mas somente de forma

mecacircnica [] O parafraseador lida com os elementos de ambas as liacutenguas como se

fossem sinais matemaacuteticos que se deixam levar aos mesmos valores por adiccedilatildeo ou

subtraccedilatildeo e nem o espiacuterito da liacutengua traduzida nem o da liacutengua original

conseguem aparecer nesse procedimento [] Em contrapartida a imitaccedilatildeo se

curva ante a irracionalidade das liacutenguas [] natildeo restaria outra coisa com a

diversidade das liacutenguas com a qual tantas outras diversidades estatildeo ligadas a natildeo

ser esboccedilar uma imitaccedilatildeo um todo composto de elementos visivelmente diferentes

dos do original que contudo aproximasse o seu efeito daquele tanto quanto as

diferenccedilas de material ainda lhe permitissem (2005 41-43)

Mas a contribuiccedilatildeo mais importante do pensador alematildeo foi a distinccedilatildeo entre

caminhos a serem seguidos pelo ldquoverdadeiro tradutorrdquo (ldquoaquele que realmente pretende

levar as encontro essas duas pessoas tatildeo separadas seu autor e seu leitor []rdquo) ldquo[] que

caminhos ele [o verdadeiro tradutor] pode tomar A meu ver soacute existem dois Ou o

tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor ateacute ele ou deixa o leitor em paz e leva o

autor ateacute elerdquo (2001 43)

Com a obra de Tytler e a de Schleiermacher encerra-se segundo Steiner o

primeiro periacuteodo da histoacuteria bibliograacutefica da traduccedilatildeo caracterizada essencialmente por

uma orientaccedilatildeo empiacuterica de ldquoasserccedilotildees e notaccedilotildees teacutecnicas primaacuteriasrdquo iniciando-se

entatildeo o segundo periacuteodo eminentemente teoacuterico e voltado agrave investigaccedilatildeo

hermenecircutica ldquoA questatildeo da natureza da traduccedilatildeo eacute posicionada no interior das teorias

mais gerais da linguagem e da mente [] A abordagem hermenecircutica [] foi iniciada

por Schleiermacher e adotada por A W Schlegel e Humboldtrdquo Steiner atribui a ldquoesse

intercacircmbiordquo relatos dos mais reveladores sobre traduccedilatildeo como os de Goethe

Schopenhauer Matthew Arnold Paul Valeacutery Ezra Pound Walter Benjamin e Ortega y

Gasset entre outros Sobre Arnold mencione-se que em seu ensaio On translating

Homer (1861) ldquosustenta a tese de que toda boa traduccedilatildeo haveria de produzir no leitor de

liacutengua receptora a mesma impressatildeo que produziu o original em sua eacutepoca em seus

primeiros leitoresrdquo enquanto F W Newman (tambeacutem em 1861) ldquodefendia exatamente

o contraacuterio a traduccedilatildeo deveria seguir fielmente as caracteriacutesticas formais do texto

original e o leitor da traduccedilatildeo haveria de ter sempre a impressatildeo de que se encontrava

76

precisamente diante de uma traduccedilatildeo e natildeo diante do texto originalrdquo (Torre 1994 47)

O ldquoperiacuteodo de teorizaccedilatildeo e definiccedilatildeo poeacutetico-filosoacuteficardquo termina para Steiner com Sous

lrsquonvocation de Saint Jeacuterome (1946) de Valery Larbaud

O terceiro periacuteodo eacute marcado pela aplicaccedilatildeo por estudiosos russos e tchecos ndash

ldquoherdeiros do movimento formalistardquo de teorias linguiacutesticas e estatiacutesticas no estudo da

traduccedilatildeo Quine (1960) e Andrej Fedorov (1953) estatildeo entre os autores representativos

do contexto

Um novo periacuteodo se configura para Steiner a partir das proximidades da deacutecada

de 1970 surge um novo interesse na hermenecircutica da traduccedilatildeo despertado pela

redescoberta do texto ldquoDie Aufgabe decircs Uumlbersetzersrdquo (ldquoA tarefa do tradutorrdquo) de

Walter Benjamin (1923) e pela influecircncia de Heidegger e Hans-George Gadamer a

reflexatildeo sobre teoria e praacutetica da traduccedilatildeo se transforma num ponto de contato entre

diferentes disciplinas Quanto agraves ideias de Walter Benjamin dadas a sua complexidade

e a sua importacircncia para a discussatildeo da atividade tradutoacuteria ndash e em especial para a

teorizaccedilatildeo sobre traduccedilatildeo poeacutetica por Haroldo de Campos ndash elas seratildeo referidas

oportunamente ao tratarmos das reflexotildees do brasileiro

77

B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo

Eacute recente ndash de 2011 ndash a publicaccedilatildeo de Teorias contemporaneas de la traduccioacuten

de A Pym82

Para uma raacutepida referecircncia ao panorama teoacuterico geral sobre traduccedilatildeo creio

que essa seja a fonte mais conveniente pela proposta de categorizaccedilatildeo e pela

abrangecircncia que encerra

O autor afirma que estruturou seu estudo ldquoem torno de paradigmas e natildeo de

teorias teoacutericos ou escolas individuaisrdquo Propotildee-se a examinar os paradigmas baseados

em ldquoequivalecircnciardquo ldquofinalidaderdquo ldquodescriccedilatildeordquo ldquoindeterminaccedilatildeordquo e ldquolocalizaccedilatildeordquo os

paradigmas aparecem em parte por ordem cronoloacutegica dos anos 1960 agrave atualidade

Quanto agraves teorias anteriores diz Pym ldquoAs teorias novas substituiacuteram as teorias

precedentes Em absoluto Todos os paradigmas continuam funcionando ateacute certo

ponto en contextos profissionais ou acadecircmicos atuais Todos merecem ser objeto de

um estudo geralrdquo

Sobre as teorias enquadradas no primeiro paradigma diz Pym ao apresentar

suas bases conceituais

En el aacutembito de la linguiacutestica se prestoacute atencioacuten al problema del ldquosentidordquo

Saussure habiacutea establecido una distincioacuten entre el ldquovalorrdquo que tiene una palabra

(con relacioacuten al sistema del lenguaje) y su ldquosignificacioacutenrdquo (que tiene en el uso

concreto) Consideremos el ejemplo famoso del ajedrez el valor del caballo es la

suma de todos los movimientos que puede hacer mientras que la significacioacuten de

un caballo en concreto depende de la posicioacuten que ocupe en el tablero en un

momento dado Por tanto el valor depende del sistema que Saussure denominoacute

langue (lengua) mientras que la significacioacuten depende del uso concreto que

Saussure denominoacute parole (habla) Para algunos teoacutericos como Coseriu podriacutea

trazarse una correspondencia entre esos teacuterminos y la distincioacuten en alemaacuten entre

Sinn (significado estable) y Bedeutung (significado momentaacuteneo significacioacuten) Si

una traduccioacuten no puede reproducir el primero podriacutea tal vez transmitir el

segundo En espantildeol por ejemplo no hay palabra equivalente al vocablo ingleacutes

shallow tal como aparece en la expresioacuten shallow water No obstante su

82 Anthony Pym que eacute professor de Traduccedilatildeo e Estudos Interculturais na Universitat Rovira i Virgili em

Tarragona (Catalunha Espanha) publicou o trabalho em liacutengua espanhola O livro encontra-se

disponiacutevel pela internet em site da referida Universidade

78

significacioacuten se puede transmitir empleando dos palabras poco profundo (cf

Coseriu 1978) Asiacute queda demostrado que aunque las estructuras de ambos

idiomas sean diferentes es posible establecer cierta equivalencia

E cita posteriormente algumas das primeiras definiccedilotildees de ldquoequivalecircnciardquo

La traduccioacuten entre lenguas puede definirse como la sustitucioacuten de los elementos

de un idioma el campo [domain] traductivo por elementos equivalentes de otro

idioma la gama [range] traductiva (A G Oettinger 1960 110)

La traduccioacuten podriacutea definirse de la siguiente manera la sustitucioacuten del material

textual en un idioma por material equivalente en otro idioma (Catford 1965 20)

Traducir consiste en reproducir en la lengua meta el equivalente natural maacutes

proacuteximo al mensaje de la lengua de origen (Nida and Taber 1969 12 cf Nida

1959 33)

[La traduccioacuten] lleva de un texto de origen a un texto de destino que es el

equivalente lo maacutes proacuteximo posible y presupone una comprensioacuten del contenido y

el estilo del original (Wilss 1982 62)

Sobre as teorias agrupadas com base no paradigma da finalidade diz o autor

[] es frecuente encontrar referencias a la Skopostheorie la llamada teoriacutea del

Skopos que es la palabra griega para lo que denominaremos ldquofinalidadrdquo Este

teacutermino forma el nuacutecleo de la ldquoteoriacutea generalrdquo de Reiss y Vermeer gracias sobre

todo a la proposicioacuten siguiente

Una accioacuten viene determinada por su finalidad (o sea es una funcioacuten de su

finalidad) (Reiss y Vermeer 1984 101[])

Esta ldquoregla del Skoposrdquo implica que el acto de traducir considerado como una

accioacuten obedece en uacuteltima instancia a las razones por las cuales alguien ha

encargado la traduccioacuten []

[] tenemos el mismo texto de origen varias posibles traducciones y un factor

dominante el Skopos

O paradigma seguinte o das teorias descritivas nasceria da noccedilatildeo de que ldquoa

equivalecircncia eacute uma caracteriacutestica de todas as traduccedilotildees sem importar sua qualidade

linguiacutestica ou esteacuteticardquo de modo a que o conceito natildeo poderia servir para a formaccedilatildeo

79

prescritiva de tradutores O que se propotildee dentro desse paradigma eacute descrever o que

satildeo na realidade as traduccedilotildees ou como satildeo efetivamente feitas e natildeo apenas

prescrever como elas deveriam ser Por essa razatildeo a mudanccedila da prescriccedilatildeo para a

descriccedilatildeo representou como diz Pym um claro desafio ao paradigma da equivalecircncia

Enquadram-se nesta categoria entre outros constructos teoacutericos o do formalismo russo

e do estruturalismo do Ciacuterculo Liacutenguiacutestico de Praga

Para abordar as teorias referentes ao paradigma do indeterminismo Pym se vale

inicialmente de um comentaacuterio sobre a permanecircncia em certa medida do paradigma da

equivalecircncia em traduccedilatildeo para ele as diferentes versotildees desse paradigma ainda

ldquosubjazem na maior parte do trabalho realizado em tradutologiardquo O autor constata que

a equivalecircncia natildeo morreu ainda que tenha sido questionada De seu ponto de vista haacute

duas ldquorazotildees profundasrdquo para as duacutevidas teoacutericas relativas agrave equivalecircncia e que natildeo

provecircm dos dois paradigmas jaacute mencionados a ldquoinstabilidade da lsquoorigemrsquordquo (ldquoa

investigaccedilatildeo descritiva mostra que as tarefas dos tradutores variam consideravelmente

em funccedilatildeo de seu posicionamento cultural e histoacutericordquo) e o ldquoceticismo epistemoloacutegicordquo

Faz tempo como observa Pym que os filoacutesofos da proacutepria ciecircncia e mais tarde os das

humanidades puseram em duacutevida a ldquocertezardquo proacutepria das diversas formas de

estruturalismo ao assumirem que o estudo cientiacutefico poderia produzir conhecimentos

estaacuteveis num mundo de relaccedilotildees puras ndash ldquoas relaccedilotildees entre coisas natildeo podem ser

separadas das relaccedilotildees entre pessoasrdquo e por isso o estruturalismo deu origem ao poacutes-

estruturalismo e agrave desconstruccedilatildeo nos estudos literaacuterios e culturais Segundo Pym uma

teoria ldquodeterministardquo pressupotildee um tipo de relaccedilatildeo em que um fator X impotildee a natureza

de um fator Y e assim a determina enquanto uma teoria ldquoindeterministardquo admite que a

relaccedilatildeo ldquonatildeo eacute tatildeo direta tatildeo unidirecional tatildeo binaacuteria ou tatildeo faacutecil de observarrdquo (113)

Entre as teorias estudadas sob este paradigma encontra-se evidentemente a

desconstruccedilatildeo

As ideias e praacuteticas reunidas sob o uacuteltimo dos paradigmas identificados por

Pym o da localizaccedilatildeo ldquoprovavelmente natildeo formamrdquo segundo ele ldquouma teoria da

traduccedilatildeo do estrito ponto de vista acadecircmicordquo Nascidas para atender a necessidades de

mercado ndash ldquoa localizaccedilatildeo implica fazer com que um produto seja apropriado linguiacutestica

e culturalmente ao mercado local de destino onde seraacute utilizado e vendidordquo (segundo

uma Associaccedilatildeo norte-americana dedicada agrave aacuterea) ndash ldquonatildeo satildeo mais que um conjunto de

nomes e ideias desenvolvido dentro de alguns setores da induacutestria da linguagemrdquo O

80

autor comenta que ldquose os idiomas e as culturas satildeo tatildeo incertos e instaacuteveis que ningueacutem

pode estar seguro sobre o que eacute a equivalecircncia entatildeo uma soluccedilatildeo poderia ser criar-se

um conjunto de idiomas e culturas artificiais onde a certeza fosse possiacutevelrdquo

Uma vez apresentado ligeiramente este breve panorama pode-se deduzir que a

grande questatildeo remanescente no campo da teoria da traduccedilatildeo e portanto em relaccedilatildeo agraves

possibilidades de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees diz respeito ao conceito de equivalecircncia

sua utilizaccedilatildeo (ou natildeo) como fundamento para a atividade tradutoacuteria e as possiacuteveis

formas de seu emprego caso seja ele considerado Assim seraacute aproveitada esta

constataccedilatildeo para que se apresente uma breve reflexatildeo sobre as possibilidades de um

estudo comparativo de traduccedilotildees a ser aqui realizado

O construto teoacuterico da ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos deve enquadrar-

se ainda que imprecisamente (pelas limitaccedilotildees da categorizaccedilatildeo apresentada presentes

em qualquer categorizaccedilatildeo) entre as teorias descritivas pelo niacutevel geneacuterico de suas

ldquoprescriccedilotildeesrdquo (voltadas apenas ao posicionamento de iniciativa criadora incluindo-se a

ousadia criativa e agrave noccedilatildeo de ldquoconstruccedilatildeo paramoacuterficardquo que permite um amplo campo

de accedilotildees diacutespares conforme a leitura) e pela concepccedilatildeo dessacralizante do ldquooriginalrdquo a

ser recriado diante do qual se prevecirc a atitude rebelionaacuteria

81

B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre

traduccedilotildees

No ensaio ldquoFidelidade em traduccedilatildeo poeacutetica o caso Donnerdquo Paulo Henriques

Britto assim sintetiza de iniacutecio a questatildeo sobre a possibilidade de se compararem

traduccedilotildees tendo em conta a visatildeo desconstrucionista

Na aacuterea de Estudos da Traduccedilatildeo no Brasil tem certa influecircncia o ideaacuterio poacutes-

estruturalista que pode ser encarado como uma versatildeo contemporacircnea do

ceticismo em sua versatildeo mais radical mdash natildeo o ceticismo de Hume mas o de Sexto

Empiacuterico A posiccedilatildeo poacutes-estruturalista pode ser resumida aproximadamente como

se segue os textos natildeo possuem significados estaacuteveis que correspondam a

intenccedilotildees que seus autores tivessem em mente ao escrevecirc-los (se eacute que os autores

tecircm controle total sobre suas intenccedilotildees) soacute temos acesso a nossas proacuteprias leituras

dos textos Assim quando dizemos que uma dada traduccedilatildeo eacute fiel ao original

estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traduccedilatildeo eacute fiel agrave nossa leitura do

original nada podemos afirmar sobre os textos em si Entende-se pois que natildeo

haja consenso absoluto a respeito dos meacuteritos relativos de duas traduccedilotildees de um

dado texto se achamos a traduccedilatildeo de um texto feita por A melhor que a feita por

B isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais agrave do

tradutor A do que a de B e nada mais haacute a se dizer (2006 239) 83

Britto parte para uma contribuiccedilatildeo sua agrave comparaccedilatildeo de traduccedilotildees do artigo (jaacute

mencionado neste trabalho) ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo de R

Arrojo sobre uma polecircmica ocorrida entre os criacuteticos e tradutores Nelson Ascher e

Paulo Vizioli relativa a traduccedilotildees da poesia de John Donne realizadas por Augusto de

Campos e por Vizioli Ele cita um trecho do referido artigo

[] a traduccedilatildeo de um poema e a avaliaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo natildeo poderatildeo realizar-se

fora de um ponto de vista ou de uma perspectiva ou sem a mediaccedilatildeo de uma

ldquointerpretaccedilatildeordquo Portanto a traduccedilatildeo de um poema ou de qualquer outro texto

inevitavelmente seraacute fiel agrave visatildeo que o tradutor tem desse poema e tambeacutem aos

objetivos de sua traduccedilatildeo [] Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos satildeo

83 Publicado na revista Terceira margem nuacutemero 15 Rio de Janeiro julho-dezembro de 2006 pp 239-

253

82

ldquofieacuteisrdquo agraves suas concepccedilotildees teoacutericas acerca de traduccedilatildeo e acerca da poesia de

Donne e nesse sentido tanto as traduccedilotildees de um como de outro satildeo legiacutetimas e

competentes Inevitavelmente as traduccedilotildees de cada um deles agradaratildeo aos

leitores que consciente ou inconscientemente compartilharem de seus

pressupostos e desagradaratildeo agravequeles que como Ascher jaacute foram seduzidos por

pressupostos diferentes

Apoacutes comentar que ldquonum primeiro momentordquo essa argumentaccedilatildeo (de que natildeo

temos jamais acesso agrave coisa-em-si mas somente agrave nossa percepccedilatildeo dela) parece

inatacaacutevel Britto aponta a existecircncia de um problema esse argumento natildeo se aplicaria

apenas agrave traduccedilatildeo e deveria valer aos outros campos do saber Evoca entatildeo o fato de

os cientistas dedicados agraves questotildees da fiacutesica contemporacircnea (aacuterea de conhecimento na

qual tambeacutem natildeo se teria acesso agrave realidade-em-si) ao natildeo serem unacircnimes em relaccedilatildeo

agrave teoria das cordas (uma das tentativas de teoria unificada) prosseguirem com

experimentos publicaccedilotildees e debates em vez de se contentarem com a constataccedilatildeo de

que as discordacircncias se devam somente aos diferentes pressupostos de cada fiacutesico para

concluir que ldquoo ponto de partida de Arrojo procede mas a conclusatildeo a que ela chega

natildeo se sustentardquo

Eacute verdade que natildeo temos acesso direto ao real e que todas nossas opiniotildees satildeo

qualificadas pelosnossos pressupostos mas essa constataccedilatildeo natildeo leva agrave conclusatildeo

de que todas as traduccedilotildees ou todas as teorias satildeo igualmente ldquolegiacutetimas e

competentesrdquo Pelo contraacuterio eacute precisamente porque natildeo temos esse acesso direto

ao real que eacute necessaacuterio analisar discutir e tentar estabelecer consensos ainda que

parciais ndash pois se o real se oferecesse diretamente como evidecircncia agrave inteligecircncia

humana o que haveria para discutir

Depois de contestar diversos argumentos possiacuteveis a favor da noccedilatildeo

desconstrucionista o autor propotildee um procedimento de anaacutelise comparativa cujas

providecircncias satildeo primeiramente assinalar em negrito no ldquotexto originalrdquo ldquotoda

palavra ou expressatildeo cujo significado pareccedila natildeo ter sido transposto na traduccedilatildeordquo

depois marcar em itaacutelico no ldquooriginalrdquo e nas traduccedilotildees ldquotoda passagem cujo sentido

tenha sido alterado de forma significativardquo e ainda sublinhar nas traduccedilotildees ldquoas

palavras e expressotildees que no plano do sentido parecem natildeo corresponder a nada que

conste no originalrdquo

83

Veja-se como exemplo um pequeno fragmento do poema analisado em ambas

as versotildees ao portuguecircs

Antes da anaacutelise o autor observa que sendo o texto em inglecircs composto em

pares de pentacircmetros jacircmbicos84

as duas traduccedilotildees utilizaram medidas diferentes

Vizioli o dodecassiacutelabo Campos o decassiacutelabo E comenta que embora ldquoa maioria dos

tradutoresrdquo tendesse a considerar o decassiacutelabo como o verso portuguecircs mais proacuteximo

do pentacircmetro jacircmbico poderia ser vantajoso usar o verso de doze siacutelabas pois sendo

as palavras inglesas mais curtas do que as portuguesas haveria menor chance de cortes

visando agrave manutenccedilatildeo do nuacutemero de siacuteladas

Na etapa seguinte Britto exibe um quadro com a quantificaccedilatildeo das marcaccedilotildees

em negrito itaacutelico e sublinhas

84Versos de cinco jambos ou seja cinco peacutes binaacuterios com a tocircnica na segunda siacutelaba

84

Faz ele entatildeo algumas constataccedilotildees

No que diz respeito agraves perdas de significado e agraves alteraccedilotildees de elementos

semacircnticos as duas traduccedilotildees se equivalem com ligeira vantagem para V por

outro lado V apresenta muito mais acreacutescimos do que C Ou seja ao queparece a

adoccedilatildeo de um metro mais longo em V embora permitisse diminuir um pouco as

perdas e alteraccedilotildees semacircnticas teve o efeito contraproducente de obrigar o tradutor

a acrescentar um grande nuacutemero de palavras e expressotildees que natildeo correspondem a

nada que se encontre no original a fim de preencher as doze siacutelabas de cada verso

Examinando a primeira tabela mais detidamente chegamos a uma outra

constataccedilatildeo importante dos 15 acreacutescimos em V nada menos que 11 ocorrem em

posiccedilatildeo final o que parece indicar que as palavras em questatildeo foram acrescentadas

com o duplo objetivo de preencher espaccedilo e tambeacutem forccedilar uma rima Quando

verificamos que em C haacute apenas um acreacutescimo em posiccedilatildeo final somos levados a

concluir que em C muito mais do que em V as rimas se datildeo entre termos que

correspondem semanticamente ao original ao passo que em V em 11 versos

traduziu-se o sentido do original e em seguida acrescentaram-se uma ou mais

palavras ao verso para que houvesse rima Ou seja em V o metro mais longo foi a

soluccedilatildeo encontrada pelo tradutor para compensar sua dificuldade em encontrar

soluccedilotildees que funcionassem ao mesmo tempo no plano do significado e no da rima

Este fato se comprovado por si soacute jaacute constitui um forte argumento em favor da

superioridade de C (245)

Britto passa a examinar ldquoos 11 diacutesticos em cujas traduccedilotildees houve acreacutescimos na

posiccedilatildeo final dos versosrdquo para comprovar a sua hipoacutetese Apoacutes a anaacutelise enumera

verificaccedilotildees a respeito dos aspectos observados nas traduccedilotildees para concluir por fim

que ldquoeacute possiacutevel argumentar que C eacute superior a V quanto ao quesito fidelidade

utilizando argumentos razoavelmente objetivos Dizer que as pessoas que preferem a de

Campos agrave de Vizioli o fazem apenas por compartilharem os pressupostos de Campos e

natildeo os de Vizioli natildeo resolve o problema []rdquo

O esforccedilo de Britto eacute de grande relevacircncia procura um meio de natildeo se

permanecer na relativizaccedilatildeo total em que tudo poderia ser igualmente ldquovaacutelidordquo (e

portanto tendente a despir-se de atrativos para a busca das qualidades proacuteprias de cada

criaccedilatildeo responsaacuteveis pela fruiccedilatildeo e pelo conhecimento que os textos proporcionam)

para distinguir caracteriacutesticas ndash e com elas vantagens ou desvantagens ndash de cada uma

85

das traduccedilotildees concluindo pela ldquosuperioridaderdquo de uma sobre a outra No entanto eacute

nesta parte que continua a residir em meu modo de ver uma duacutevida quais as vantagens

de se constatar por um meacutetodo de anaacutelise ndash entre outros certamente possiacuteveis ndash a

superioridade de um trabalho sobre o outro Pode-se argumentar que a escolha dos

procedimentos jaacute seraacute compatiacutevel com um ponto de vista e coerente com a hipoacutetese

preconcebida Nesse sentido uma reafirmaccedilatildeo do foco descritivo que manteacutem a noccedilatildeo

da relatividade de avaliaccedilotildees permite observar por meio da constataccedilatildeo de diferenccedilas

o modo como realizaccedilotildees distintas operam em suas escolhas natildeo necessariamente se

dando um passo conclusivo sobre a inferioridade ou natildeo de um resultado sobre outro

No caso em questatildeo a superioridade eacute depreendida em relaccedilatildeo ao quesito ldquofidelidaderdquo

sendo esta vinculada ao aspecto semacircntico ou ao ldquoplano do conteuacutedordquo poderia ser

outro o quesito e poderiam ser outras portanto as conclusotildees natildeo se pode esquecer

que a ldquofidelidade ao sentidordquo eacute como outras condiccedilotildees predefinidas discutiacutevel como

referecircncia essencial e se fundamenta inevitavelmente no conceito de equivalecircncia

Embora este pareccedila ser um conceito que tende a resistir aos questionamentos e

relativizaccedilotildees da noccedilatildeo de origem natildeo deveraacute penso ser visto como mais do que um

dos possiacuteveis princiacutepios sobre os quais se poderaacute buscar correspondecircncias para

verificaccedilatildeo de resultados num processo geral de ldquodesvendamentordquo das caracteriacutesticas

que compotildeem os textos como fontes de leitura e de recriaccedilatildeo O que eacute importante

admitir para a viabilizaccedilatildeo de qualquer passo de anaacutelise ou compreensatildeo eacute que o texto

eacute um objeto que pode ser lido e ldquocriadordquo pela leitura de modos diversos mas que

tambeacutem apresenta caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias que vatildeo aleacutem do significado e

sua permanecircncia do mesmo modo que um poema traduzido as teraacute e natildeo

necessariamente as ldquomesmasrdquo do texto do qual partiu uma vez que tambeacutem seja visto

como criaccedilatildeo como um poema autocircnomo A questatildeo eacute que um poema que ldquofuncione

bemrdquo ainda que em determinado contexto poderaacute ser considerado uma boa traduccedilatildeo

mesmo que pouco ldquofielrdquo sob certos aspectos ao texto do qual partiu Lembre-se por

exemplo entre tantas outras referecircncias possiacuteveis a traduccedilatildeo de Fitzgerald do Rubayat

de Omar Khayam tatildeo ldquodiferenterdquo do original persa no aspecto da ldquofidelidaderdquo

semacircntica e que se tornou ele mesmo um claacutessico da poesia universal

Haroldo de Campos fala em ldquovivissecccedilatildeo implacaacutevelrdquo do poema ldquooriginalrdquo

pressupondo sua materialidade necessaacuteria para um exame particular que pode originar

um novo ser uma criaccedilatildeo ldquoparamoacuterficardquo de ldquoestrutura anaacutelogardquo (construiacuteda com base

86

no reconhecimento propiciado por referenciais linguiacutestico-esteacuteticos como a funccedilatildeo

poeacutetica da linguagem ou a iconicidade do signo) nascida ao lado do outro que a

antecedeu Mas a proposta de Campos central neste estudo seraacute vista em outro

capiacutetulo

Voltando ao ensaio de Britto ele eacute tatildeo relevante para a poesia e para a traduccedilatildeo

de poesia como o ensaio de Arrojo que o motivou Ainda que se discorde do autor (que

prevecirc em seu texto as inevitaacuteveis discordacircncias) por exemplo em relaccedilatildeo a sua crenccedila

no valor da equivalecircncia e nos ldquofatosrdquo ndash manifesta na ideia de se cotejarem duas

traduccedilotildees e original ldquolinha a linha siacutelaba a siacutelaba examinando e pesando as diferenccedilas

para se chegar a uma conclusatildeo baseada em fatos [] e expressa em argumentos loacutegicos

(natildeo por exemplo em trocadilhos)rdquo ndash seu empreendimento vai contra a imobilidade e a

resignaccedilatildeo

Atualmente nos estudos da traduccedilatildeo como na aacuterea dos estudos literaacuterios eacute

frequente o argumento de que como natildeo podemos ter acesso direto a um

significado essencial absolutamente estaacutevel devemos adotar um relativismo

absoluto ndash todas as soluccedilotildees satildeo igualmente vaacutelidas e competentes cada uma em

relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos e nada mais haacute a dizer Como natildeo pode

haver uma avaliaccedilatildeo de traduccedilatildeo absolutamente objetiva e universalmente aceita

avaliar traduccedilotildees seria uma atividade ociosa A alternativa que proponho eacute esta

ainda que natildeo haja um consenso absoluto e ainda que cada um de noacutes faccedila seus

julgamentos com base em seus proacuteprios pressupostos eacute possiacutevel utilizar o discurso

racional para fazer avaliaccedilotildees e tecer consideraccedilotildees em torno de traduccedilotildees fazendo

referecircncia a certas propriedades dos textos traduzidos com relaccedilatildeo agraves quais haacute um

certo grau de acordo entre um bom nuacutemero de pessoas envolvidas nas atividade de

traduzir

Se concordamos com a accedilatildeo e com a contraposiccedilatildeo a um relativismo absoluto

(inclusive sobre poesia ou qualquer existecircncia) temos de considerar contudo que

mesmo quando se consideram diferentes soluccedilotildees como igualmente vaacutelidas em

princiacutepio isso natildeo impede necessariamente que se proceda a uma anaacutelise visando agrave

revelaccedilatildeo ao mesmo tempo das diferenccedilas entre os textos e da coerecircncia interna de

cada um e em relaccedilatildeo a seus possiacuteveis pressupostos ndash um modo talvez de concluir

87

sobre sua eficiecircncia intriacutenseca ndash extraindo-se ateacute aspectos comuns num substrato mais

ldquofundamentalrdquo do poeacutetico

A breve discussatildeo realizada neste toacutepico prosseguiraacute no seguinte de modo um

pouco mais aprofundado e amplo valendo-me para tanto de outro artigo de P H

Britto como referecircncia para reflexatildeo

88

B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise

Como se veraacute iniciaremos nossos comentaacuterios e anaacutelises de breves fragmentos

da obra homeacuterica apontando primeiramente aspectos fundamentais da poesia eacutepica

grega e caracteriacutesticas gerais das traduccedilotildees dos poemas ao portuguecircs Consideraremos o

plano de conteuacutedo e algumas correspondecircncias principais de sentido para

prosseguirmos tambeacutem com apontamentos de ordem formal assim como de relaccedilotildees

entre conteuacutedo e expressatildeo Nenhuma novidade nesse procedimento que entretanto

adotaraacute modos de descriccedilatildeo e avaliaccedilatildeo natildeo baseados centralmente na quantificaccedilatildeo

esta escolha natildeo representa apenas o natildeo-uso de um recurso possiacutevel mas uma

diferenccedila de concepccedilatildeo e procedimento em relaccedilatildeo a anaacutelises como as propostas por

Paulo H Britto tomadas como referecircncia imediata Pode-se depreender de iniacutecio que o

referencial da estrita equivalecircncia como o meio para se avaliarem traduccedilotildees natildeo se

mostra o mais adequado agrave traduccedilatildeo da poesia homeacuterica que de certo modo serve para

demonstrar as dificuldades e para mim a inadequabilidade de se permanecer no uso da

equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo seja semacircntica seja formal Trata-se eacute claro de

discutir a proacutepria conceituaccedilatildeo de traduccedilatildeo poeacutetica e do que seja a ldquofidelidaderdquo na accedilatildeo

tradutoacuteria

Um ponto de vista como aquele elaborado por Haroldo de Campos com base

em conceitos que seratildeo apresentados oportunamente permite ver a traduccedilatildeo de um

poema como uma criaccedilatildeo de algo novo com suas proacuteprias ldquoregrasrdquo internas ainda que

resulte propriamente de um processo de recriaccedilatildeo e ainda que seja construiacutedo de modo a

guardar relaccedilotildees de paramorfismo com o texto-fonte As prescriccedilotildees tradutoacuterias de uma

teorizaccedilatildeo como essa natildeo determinam procedimentos sempre idecircnticos ou uniformes

nem soluccedilotildees encaminhadas pelas mesmas diretrizes sendo um processo de criaccedilatildeo

envolveraacute as escolhas do tradutor-criador a cada etapa de seu trabalho iniciando-se com

a eleiccedilatildeo pela leitura do que considera relevante da ldquoestruturardquo do poema a ser ldquore-

produzidordquo85

e prosseguindo com suas opccedilotildees de composiccedilatildeo e modo de

ldquocorrespondecircnciardquo com o texto de que parte Existiraacute potencialmente permitida por uma

abordagem como essa grande flexibilidade no processo de escolhas que levaratildeo a

resultados diferentes abolindo-se uma relaccedilatildeo de ldquoservituderdquo em relaccedilatildeo ao ldquooriginalrdquo ndash

85 Relembre-se neste ponto a explicitaccedilatildeo deste termo pelo poeta e tradutor Guilherme de Almeida em

sua apresentaccedilatildeo ao livro Poetas de Franccedila (1ordf ediccedilatildeo 1936 5ordf ediccedilatildeo ndash Satildeo Paulo Babel 2011) o

autor sugere a palavra ldquolsquore-produzirrsquo quer dizer produzir de novordquo como o que seria traduzir poesia

89

que deixa de ter o peso impliacutecito agrave noccedilatildeo de equivalecircncia completa e com o qual o

poema traduzido deseja ombrear-se podendo ser visto como ldquooriginal do originalrdquo ndash o

poema resultante da traduccedilatildeo seraacute antes construiacutedo a partir de princiacutepios e de processos

considerados anaacutelogos ou correspondentes do que de obrigaccedilotildees de equivalecircncia

palavra a palavra ou efeito a efeito (sonoro ou imageacutetico) Do ponto de vista de uma

recriaccedilatildeo de fato ndash ou transcriaccedilatildeo conforme propotildee H de Campos ndash o poema poderaacute

dar conta da eficiecircncia construtiva e comunicativa (ou anticomunicativa se pensarmos

na exigecircncia pelo poema de uma leitura apropriada para sua apreensatildeo86

) daquele ao

qual se refere de modos diversos seguindo-se por exemplo o conceito de ldquomake it

newrdquo (ldquorenovarrdquo) proposto por Ezra Pound e buscando-se elementos (inclusive

referecircncias) na proacutepria cultura poderatildeo ocorrer alteraccedilotildees semacircnticas significativas

assim como a ldquomodernizaccedilatildeordquo e a ldquocontextualizaccedilatildeordquo do poema (como na traduccedilatildeo de

Augusto de Campos de fragmento do Rubayat na versatildeo de Fitzgerald defendida em

artigo por Haroldo87

) ao passo que ao seguir-se uma ideia de recriaccedilatildeo que possa ser

inserida em contexto histoacuterico correspondente seraacute obtido um texto ldquoanacrocircnicordquo como

na traduccedilatildeo de Guilherme de Almeida do poema ldquoBallade des dames du temps jadisrdquo

de Franccedilois Villon considerada modelar por H de Campos88

No caso da eacutepica grega (e latina) em portuguecircs temos no trabalho de Odorico

Mendes o exemplo niacutetido da conceituaccedilatildeo da traduccedilatildeo como natildeo vinculada agrave

obrigatoriedade de correspondecircncia ldquopalavra a palavrardquo Ao optar pelo uso do verso

camoniano ou seja do decassiacutelabo para recriar poemas originalmente produzidos em

hexacircmetros dactiacutelicos e ao propor-se a realizar uma obra marcada pela concisatildeo (na

qual natildeo haveria lugar para o aumento da quantidade de versos por serem mais breves)

o tradutor baseia-se na ideia de correspondecircncias menos restritas de sentido

dispensando por vezes detalhes inessenciais agrave narrativa e repeticcedilotildees de foacutermulas e

epiacutetetos inadequados para ele a um poema produzido e lido em seu tempo Se

analisada com base num modelo como o proposto por P H Brito em que se

quantificam as palavras e suas estritas correspondecircncias na traduccedilatildeo a fim de se

86 Pelos usos que faz de recursos sonoros riacutetmicos e de repeticcedilatildeo (conforme jaacute se viu neste estudo) ou

seja da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma) e dos denominados ldquodesvios de linguagemrdquo pelas construccedilotildees semacircntico-sintaacuteticas inabituais e ambiacuteguas e essencialmente

por ser visto como um poema (e portanto gerar expectativa de leitura diversa daquela dedicada a um

texto de raacutepida comunicaccedilatildeo) a poesia suscitaraacute um modo apropriado de leitura 87 ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) In Cadernos do MAM no 1 R de Janeiro dezembro de 1983 88 ldquoMemoraacutevel e virtuosiacutestica recriaccedilatildeordquo assim se refere Campos agrave versatildeo de G de Almeida em texto de

orelha para o livro ALMEIDA G de VIEIRA T Trecircs trageacutedias gregas S Paulo Perspectiva 1997

90

estabelecer um juiacutezo de valor para a traduccedilatildeo a obra de Odorico estaria previamente

condenada a uma avaliaccedilatildeo de inferioridade em relaccedilatildeo a outras de verso mais longo ou

feitas em prosa embora estas tambeacutem contenham omissotildees89

este resultado seria

inadequado tendo-se em conta as qualidades e a importacircncia histoacuterico-literaacuteria da

traduccedilatildeo (e do pensamento) de Mendes que como veremos prevecirc a utilizaccedilatildeo de

paraacutefrases muitas vezes mais ldquoeconocircmicasrdquo (ou seja com emprego de menor quantidade

de palavras) e portanto sem correspondecircncia ldquoliteralrdquo para compor sentidos similares

aos do texto-fonte Embora talvez se pudesse usar esse criteacuterio por exemplo para

traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (em versos de dezesseis siacutelabas) de Andreacute

Malta (em versos compostos por duas redondilhas) de Donaldo Schuumller (em versos

livres) e a portuguesa de Frederico Lourenccedilo (tambeacutem em versos livres)90

o criteacuterio natildeo

daria conta creio de uma comparaccedilatildeo mais abrangente Mas o que se precisa

considerar fundamentalmente eacute a proacutepria inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo quantitativa de

correspondecircncia seja semacircntica ou formal e a ideia de avaliaccedilatildeo como estabelecimento

de superioridade entre traduccedilotildees ainda que se possam evidenciar suas qualidades

intriacutensecas ndash numa anaacutelise com propoacutesito predominantemente descritivo ndash permitindo-

se assim que se faccedilam juiacutezos de valor baseados na coerecircncia interna do trabalho e em

aspectos determinados (como por exemplo a ldquodensidaderdquo sonora em segmentos

correspondentes) conforme os princiacutepios e os propoacutesitos adotados pela criacutetica

Assim a anaacutelise natildeo se basearaacute em conceitos fundamentados (ao menos

exclusivamente) na noccedilatildeo de equivalecircncia91

como os de correspondecircncia e de perda

(quando natildeo haacute correspondecircncia plena) propostos por Britto no texto que citaremos em

seguida para esclarecimento da referecircncia antes de prosseguirmos com a apresentaccedilatildeo

dos propoacutesitos desta tarefa seratildeo marcadas em negrito passagens que serviratildeo de base

a minhas observaccedilotildees posteriores

A avaliaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo de poesia eacute uma tarefa complexa e delicada Temos

consciecircncia de que o texto poeacutetico trabalha com a linguagem em todos os seus

niacuteveis mdash semacircnticos sintaacuteticos foneacuteticos riacutetmicos entre outros Idealmente o

89 Como se veraacute nas anaacutelises no entanto ndash em algum momento quantificador ndash ocorre de o texto de Odorico Mendes apresentar menos omissotildees que as traduccedilotildees feitas em verso mais longo 90 Supondo-se que a opccedilatildeo por versos mais longos inclui alguma noccedilatildeo de ldquoliteralidaderdquo na

correspondecircncia ao sentido 91 Isso natildeo quer dizer que natildeo seraacute usada nas anaacutelises desenvolvidas neste trabalho uma avaliaccedilatildeo de

correspondecircncias e mesmo uma quantificaccedilatildeo de elementos recorrerei sim a dados comparativos e a

quantidades Os dados serviratildeo contudo de um modo proacuteprio relativo agrave anaacutelise e agraves conclusotildees

91

poema deve articular todos esses niacuteveis ou pelo menos vaacuterios deles no sentido de

chegar a um determinado conjunto harmocircnico de efeitos poeacuteticos A tarefa do

tradutor de poesia seraacute pois a de recriar utilizando os recursos da liacutengua-meta os

efeitos de sentido e forma do original mdash ou ao menos uma boa parte deles []

Podemos entender o conceito de ldquocorrespondecircnciardquo em diversos niacuteveis de

exatidatildeo Vejamos um exemplo meacutetrico Digamos que eu queria traduzir para o

portuguecircs um determinado verso inglecircs com uma pauta acentual que podemos

representar como se segue (onde ldquoˇrdquo representa uma siacutelaba aacutetona e ldquo rdquo uma siacutelaba

com acento primaacuterio e ldquo|rdquo eacute o separador de peacutes)

ˇ | ˇ | ˇ | ˇ ˇ |

[] Numa primeira acepccedilatildeo da expressatildeo ldquocorresponderrdquo um verso portuguecircs

correspondente a esse verso inglecircs teria de ser precisamente um decassiacutelabo com

acento na 2a 4

a 5

a 6

a 9

a e 10

a siacutelabas Esta seria a acepccedilatildeo mais ldquoforterdquo da

expressatildeo ldquoo verso A corresponde ao verso Brdquo porque se daria no niacutevel mais

proacuteximo da realidade focircnica do verso Se enfraquecermos um pouco a acepccedilatildeo de

ldquocorresponderrdquo diriacuteamos que qualquer decassiacutelabo de ritmo predominantemente

jacircmbico no portuguecircs corresponde a qualquer decassiacutelabo predominantemente

jacircmbico no inglecircs Saltando para um niacutevel ainda mais alto de generalidade

qualquer decassiacutelabo do portuguecircs corresponderia a qualquer pentacircmetro do inglecircs

Mas podemos ter uma correspondecircncia ainda mais fraca se considerarmos que o

pentacircmetro eacute um metro relativamente longo no inglecircs mdash em oposiccedilatildeo ao triacutemetro

por exemplo mdash e que o decassiacutelabo e o alexandrino no portuguecircs satildeo metros

relativamente longos mdash em comparaccedilatildeo com os hexassiacutelabos e heptassiacutelabos mdash

poderiacuteamos dizer que um alexandrino em portuguecircs corresponde a um pentacircmetro

inglecircs na medida em que ambos satildeo ldquoversos longosrdquo []

Podemos agora entender de modo mais preciso a noccedilatildeo de perda na traduccedilatildeo

poeacutetica quanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia mdash ou seja quanto

mais alto o niacutevel de generalidade em que ela se daacute mdash maior a perda No exemplo

acima haveraacute mais perda se eu traduzir o verso original por um alexandrino do que

se eu traduzi-lo por um decassiacutelabo qualquer por exemplo

Na avaliaccedilatildeo do grau de perda poreacutem o niacutevel de generalidade natildeo eacute o uacutenico fator

a ser levado em conta No caso de uma traduccedilatildeo de letra de muacutesica a prosoacutedia

musical pede uma correspondecircncia quase exata entre a configuraccedilatildeo acentual do

original e a da traduccedilatildeo []

92

Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros elementos da forma e tambeacutem do

conteuacutedo semacircntico do poema

[]

O meacutetodo proposto eacute ainda um esboccedilo em que muitos detalhes ainda precisam ser

elaborados Mas creio que temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar

a uma avaliaccedilatildeo menos subjetivista das traduccedilotildees poeacuteticas que trabalhe com dados

mais objetivos e permita quantificar os juiacutezos de valor expressos atraveacutes de

conceitos como ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoperdardquo 92

O autor baseia-se na ideia de que eacute possiacutevel a correspondecircncia total entre as

caracteriacutesticas do plano de conteuacutedo e do plano de expressatildeo entre uma traduccedilatildeo e o

texto de que ela parte Embora natildeo se possam levar em conta os argumentos da

intraduzibilidade de poesia superados pela proacutepria praacutetica tambeacutem natildeo se podem

desconsiderar as diferenccedilas de ldquonaturezardquo entre obras elaboradas natildeo soacute em idiomas

como em sistemas distintos sob diversos aspectos para ficarmos com a dimensatildeo

apontada no artigo a do esquema meacutetrico-riacutetmico considere-se que embora possa

parecer que o sistema em peacutes praticado nas liacutenguas anglo-saxocircnicas encontraraacute esquema

exatamente correspondente em portuguecircs essa crenccedila na equivalecircncia absoluta ficaraacute

abalada quando se pensar na ldquoorigemrdquo do sistema greco-latino baseado em siacutelabas

longas e breves e natildeo em siacutelabas tocircnicas e aacutetonas O aproveitamento do antigo sistema

exigiu uma adaptaccedilatildeo decorrente da caracteriacutestica essencialmente diversa entre os

idiomas envolvidos ou seja a inexistecircncia de fonemas longos e breves nas liacutenguas para

as quais o sistema foi adaptado o que era nos peacutes gregos e latinos uma composiccedilatildeo

entre siacutelabas longas e breves passou a ser uma composiccedilatildeo entre siacutelabas tocircnicas e

aacutetonas determinando-se desse modo uma alteraccedilatildeo de identidade93

Se considerarmos

portanto a traduccedilatildeo direta ao portuguecircs de um poema grego depararemos com a

diferenccedila ldquoem primeira instacircnciardquo entre os sistemas quantitativo (quantidade de

duraccedilatildeo das siacutelabas breves ou longas) e qualitativo (siacutelabas acentuadas ou natildeo)94

92 BRITTO PH ldquoPara uma avaliaccedilatildeo mais objetiva das traduccedilotildees de poesiardquo In Krause Gustavo B As

margens da traduccedilatildeo Rio de Janeiro FAPERJCaeteacutesUERJ 2002 93 Como se veraacute mais adiante houve tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro greco-latino baseadas na

atribuiccedilatildeo de duraccedilatildeo agraves siacutelabas em liacutenguas neolatinas (ou seja buscando-se fazer corresponderem

sistemas semelhantes quantitativos) As referidas tentativas natildeo satildeo referecircncias presentes em nosso atual

contexto lieraacuterio 94 A afirmaccedilatildeo se baseia no aspecto eminentemente praacutetico do uso dos idiomas da leitura de poemas e da

tradiccedilatildeo poeacutetica das liacutenguas ocidentais modernas No entanto eacute possiacutevel relativar a inexistecircncia de siacutelabas

93

diversamente do que ocorre entre os idiomas inglecircs e portuguecircs (uma diferenccedila

diriacuteamos em ldquosegunda instacircnciardquo) pelo fato de os poemas compostos no primeiro jaacute

trazerem embora num sistema meacutetrico diverso do utilizado como referecircncia baacutesica em

liacutengua portuguesa (quantidade de siacutelabas e natildeo distribuiccedilatildeo de tocircnicas ainda que a

quantidade fixa ocasione esquemas ndash comumente irregulares ndash de colocaccedilatildeo dos

acentos) a caracteriacutestica semelhante de natildeo se construiacuterem com base na duraccedilatildeo das

siacutelabas A ilusatildeo de correspondecircncia absoluta mascararaacute as diferenccedilas entre os idiomas e

as culturas poeacuteticas (para natildeo dizer dos contextos culturais gerais a que pertencem) as

aproximaccedilotildees envolveratildeo com caraacuteter mais ou menos acentuado uma diversidade que

sugere aleacutem de tudo o mais (ver as referecircncias aos argumentos da inviabilidade da

traduccedilatildeo) a inexistecircncia de equivalecircncia completa Por conseguinte estabelecer valores

de correspondecircncia (no caso referido de padratildeo meacutetrico-riacutetmico) como criteacuterio de

avaliaccedilatildeo eacute a priori incerto afirmaccedilotildees como ldquo[o verso em pentacircmetro jacircmbico] teria

de ser precisamente [um decassiacutelabo em portuguecircs]rdquo natildeo seriam sob o ponto de vista

apresentado desejaacuteveis

Assim sendo a vinculaccedilatildeo da ideia de ldquoperdardquo e sua quantificaccedilatildeo a diferentes

niacuteveis de correspondecircncia (ldquoquanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia []

maior a perdardquo) tambeacutem careceraacute de propriedade E natildeo seraacute adequada por outra razatildeo

fundamental agrave qual jaacute se aludiu a noccedilatildeo de ldquoperdardquo vincula-se a uma ideia do texto

traduzido como subordinado ao original e portanto como devendo resultar de uma

obrigatoacuteria equivalecircncia cujos niacuteveis de ausecircncia determinaratildeo o valor da perda De

outro ponto de vista que rompa a relaccedilatildeo ancilar entre original e traduccedilatildeo a relativa

independecircncia de um texto recriado como poema o desobrigaraacute da suposta fidelidade

nos seus diversos planos possiacuteveis Para Haroldo de Campos (com base em postulaccedilotildees

de Walter Benjamin que como se veraacute consideraria a priorizaccedilatildeo da ldquomensagemrdquo

como uma ldquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrdquo) o ldquosignificadordquo do texto

de partida seraacute apenas uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a configuraccedilatildeo do sentido no

texto traduzido que envolveraacute diferenccedilas em relaccedilatildeo ao anterior decorrentes do

proacuteprio processo de re(ou trans)criaccedilatildeo A anunciada ldquofidelidade agrave formardquo tambeacutem

envolve noccedilotildees relativizadoras das equivalecircncias dissociadas da ideia de

correspondecircncia ldquoliteralrdquo

longas e breves nessas liacutenguas e houve jaacute propostas de composiccedilatildeo quantitativa em idiomas modernos

Leia-se sobre este assunto referecircncias agraves adaptaccedilotildees do hexacircmetro no capiacutetulo IV deste trabalho

94

As anaacutelises que se faratildeo neste estudo embora possam considerar o ldquoconteuacutedo

literalrdquo (sabendo-se claro da inadequaccedilatildeo desse conceito pela mutabilidade do

significado conforme jaacute se abordou extensamente) dos textos-fonte para evidenciar o

que eacute suprimido ou acrescentado nas traduccedilotildees natildeo o utilizaraacute como ponto de partida

para qualquer avaliaccedilatildeo A noccedilatildeo de equivalecircncia embora natildeo desapareccedila seraacute tratada

com a relatividade que o processo tradutoacuterio impotildee vista como equivalecircncia relativa

consistiraacute em aproximaccedilotildees referentes agraves informaccedilotildees mais relevantes para o acircmbito

ldquoconteudiacutesticordquo e na proporcionalidade quanto agrave concentraccedilatildeo de efeitos e relaccedilotildees

entre som e sentido (que envolvem como se viu a ocorrecircncia de repeticcedilotildees de variado

teor)

Seraacute feita uma tentativa de mostrar diferentes possibilidades de anaacutelise com base

em aspectos presentes em cada traduccedilatildeo (e portanto na configuraccedilatildeo que lhe eacute proacutepria)

reservando-se possiacuteveis atribuiccedilotildees de valor a observaccedilotildees referentes a categorias

construiacutedas pela oacuteptica do observador (maior ou menor quantidade de efeitos e mais ou

menos informaccedilotildees por exemplo) lidando-se com a relatividade das correspondecircncias

existentes entre poemas natildeo colocados em posiccedilatildeo hieraacuterquica Sem o estabelecimento

aprioriacutestico de meacutetodo de anaacutelise avanccedilaremos agregando alternativas de referencial

sempre como se disse com a finalidade antes de tudo descritiva por vezes

comparativa dos textos estudados

95

Capiacutetulo II

A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo

apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo

A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Em 1854 saiacutea o primeiro poema eacutepico traduzido no paiacutes a Eneida brasileira

por obra do poeta e tradutor maranhense Manuel Odorico Mendes Precedido pelas

traduccedilotildees ao nosso idioma da obra de Virgiacutelio pelos portugueses Leonel da Costa

(seacuteculo XVII) Joatildeo Franco Barreto (seacuteculo XVII) Francisco Joseacute Freire (ldquoCacircndido

Lusitano seacuteculo XVIII) e Barreto Feio Odorico seria no entanto pioneiro na traduccedilatildeo

completa da Iliacuteada de Homero publicada postumamente em 1874 a que se seguiu sua

versatildeo da Odisseia publicada em 1928

Sobre seu pioneirismo diz Silveira Bueno autor do Prefaacutecio da ediccedilatildeo da Iliacuteada

de 1956

Na Ameacuterica do Sul estaacute o Brasil em primeira plana levando nisto a palma ao

proacuteprio Portugal apresentando em liacutedimo vernaacuteculo natildeo soacute a Iliacuteada mas tambeacutem

a Odisseia completadas ambas pela Eneida de Virgilio Ao ilustre maranhense

Manuel Odorico Mendes ficamos a dever esta homenagem esta gratidatildeo porque

da sua pena saiacuteram essas traduccedilotildees que os anos apenas fazem avultar e agigantar

Em 1874 na tipografia ldquoGuttenbergrdquo aparecia [] a obra-prima de Odorico

Mendes Quase contemporaneamente em Portugal o Conselheiro Antocircnio Joseacute

Viale publicava esparsamente alguns episoacutedios da Iliacuteada [] Natildeo eacute soacute

cronologicamente o primeiro mas tambeacutem o primeiro pelo valor literaacuterio de sua

traduccedilatildeo Que natildeo conhecesse os versos de Viale provam negativamente as notas

que apocircs a cada livro traduzido []rdquo95

Abra-se aqui um parecircntese Odorico seraacute de fato pioneiro na traduccedilatildeo da Iliacuteada

se considerarmos (como jaacute se indicou) o poema completo uma vez que surgira em

1811 a traduccedilatildeo do Canto I realizada pelo portuguecircs Joseacute Maria da Costa e Silva Essa

95 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio do Prof Silveira Bueno Satildeo Paulo Atena

Editora 1956 P 10

96

traduccedilatildeo emprega a mesma escolha decassilaacutebica de Odorico ou seja o verso heroacuteico

camoniano (essa caracteriacutestica da obra do brasileiro seraacute estudada aqui

posteriormente) tambeacutem adianta a opccedilatildeo de Odorico pela utilizaccedilatildeo de versotildees latinas

dos nomes dos deuses gregos Leia-se o iniacutecio do uacutenico canto traduzido precedido pela

apresentaccedilatildeo de seu argumento tambeacutem apresentado em versos decassiacutelabos

Iliacuteada de Homero ndash Livro I

Argumento

De Febo o Sacerdote venerando

Vem a filha remir que lhe eacute negada

Recorre ao Deus que as setas disparando

Fere de mortal peste a Grega Armada

Aquiles de Agameacutemnon discordando

Quer mataacute-lo susteacutem Minerva a espada

Teacutetis queixa-se ao Padre nrsquoalta Corte

aos Aquivos impetra estrago e morte

Coacutelera funesta oacute Deusa canta

Do Peacuteleo Aquiles dolorosa aos Gregos

Que ao Inferno baixar de Heroacuteis valentes

Mil Espiacuteritos fez e deu seus corpos

A catildees e aves em pasto assim de Jove

Se cumpriu o Decreto des qu em oacutedio

Inimizara suacutebita contenda

Atrides dHomens Rei e o divo Aquiles96

Embora guarde semelhanccedila com a traduccedilatildeo do brasileiro (conforme se poderaacute

constatar adiante) a versatildeo de Costa e Silva eacute menos afeita agrave siacutentese (nessa sequecircncia

ultrapassa em um verso o nuacutemero de versos gregos traduzidos e em dois o nuacutemero de

versos da versatildeo de Odorico para o mesmo fragmento grego) Haacute no entanto certa

relaccedilatildeo entre as construccedilotildees sintaacuteticas ldquocomplexasrdquo de ambos os tradutores mesmo que

Costa e Silva pareccedila valer-se menos de ldquopreciosismo vocabularrdquo comumente atribuiacutedo

96 HOMERO Iliacuteada de Homero ndash traduzida do grego em verso portuguecircs por Joseacute Maria da Costa e

Silva Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1811

97

agrave obra de Odorico embora isso seja discutiacutevel considerando-se os possiacuteveis criteacuterios do

tradutor e o contexto em que seu trabalho foi produzido97

Mas retornando ao prefaacutecio de Silveira Bueno diga-se que embora o

prefaciador enalteccedila o trabalho de Odorico na verdade eacute mais recente o reconhecimento

da importacircncia e da qualidade de sua obra tradutoacuteria principalmente pelo empenho por

sua reavaliaccedilatildeo criacutetica empreendido pelo poeta Haroldo de Campos (1923-2003) a

partir de um ensaio seu de 1962 Hoje muitas vozes se juntam para a celebraccedilatildeo das

traduccedilotildees de Odorico considerado por Campos ldquoo patriarca da traduccedilatildeo criativa no

Brasilrdquo98

Diz o criacutetico sobre Odorico Mendes no referido artigo99

em que propotildee uma

revisatildeo de sua obra

ldquoNo Brasil natildeo nos parece que se possa falar no problema da traduccedilatildeo criativa sem

invocar os manes daquele que entre noacutes foi o primeiro a propor e a praticar com

empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da traduccedilatildeo

Referimo-nos ao preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares

Realmente fazer um negative approach em relaccedilatildeo a suas traduccedilotildees eacute empresa

faacutecil de primeiro impulso e desde Siacutelvio Romero (que as considerava

lsquomonstruosidadesrsquo escritas em lsquoportuguecircs macarrocircnicorsquo)100

quase natildeo se tem feito

97 Conheccedila-se o comentaacuterio que pode ser lido na Wikipedia (site de divulgaccedilatildeo popular) acerca da

traduccedilatildeo de Odorico ldquoDas [traduccedilotildees] brasileiras [da Iliacuteada] a mais antiga eacute a de Odorico Mendes feita

no seacuteculo XIX (1874) que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus

arqueacutetipos equivalentes latinos Ou seja em vez de Zeus Juacutepiter de Posiacutedon Netuno etc A traduccedilatildeo de

Odorico Mendes toda em decassiacutelabos se notabiliza pela escolha lexical preciosa e a estrutura sintaacutetica amiuacutede incomum de feiccedilatildeo muitas vezes arcaizante e com farto recurso ao neologismordquo 98Haroldo de Campos (1991-92 144) ldquoOdorico com efeito eacute o patriarca da traduccedilatildeo criativa no Brasil

no seu intuito pioneiro de conceber um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar o

portuguecircs em lugar de neutralizar a diferenccedila do original rasurando-lhe as arestas sintaacuteticas e lexicais em

nossa liacutenguardquo 99 CAMPOS Haroldo de ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo In Metalinguagem ndash ensaios de

teoria e criacutetica literaacuteria 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1976 100 Escreveu Siacutelvio Romero no capiacutetulo ldquoPoetas de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo de sua Histoacuteria

da Literatura apoacutes incluir o ldquoHino agrave tarderdquo de Odorico e de comentaacute-lo favoravelmente ldquoQuanto agraves

traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-

las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidades [] A traduccedilatildeo deve revelar-se na leitura como trabalho autocircnomo e independente como se fora produto

original e assim primitivamente escrito Eacute o que natildeo se nota nas traduccedilotildees de Odorico Aacutesperas prosaicas

obscuras assaltam o leitor aquelas paacuteginas como flagelos O tradutor atirou-se agrave faina sem emoccedilatildeo sem

entusiasmo e munido de um sistema preconcebido O preconceito era a monomania de natildeo exceder o

nuacutemero de versos feitos por Virgiacutelio e Homero para provar a ideia pueril de ser a liacutengua portuguesa tatildeo

concisa quanto o latim e o grego Para obter este resultado esdruacutexulo e extravagante o maranhense

98

outra coisa Mas difiacutecil seria poreacutem reconhecer que Odorico Mendes admiraacutevel

humanista soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente onde

os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese (reduziu por exemplo os 12106 versos da Odisseia a 9302

segundo taacutebua comparativa que acompanha a ediccedilatildeo) seja para demonstrar que o

portuguecircs era capaz de tanta ou mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para

acomodar em decassiacutelabos heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para

evitar as repeticcedilotildees e a monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar

com as terminaccedilotildees diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas

palavras ofereceria na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado

Sobre este uacuteltimo aspecto diz ele lsquoSe vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de

Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a pior das infidelidadesrsquo

Procurou tambeacutem reproduzir as lsquometaacuteforas fixasrsquo os caracteriacutesticos epiacutetetos

homeacutericos inventando compoacutesitos em portuguecircs animado pelo exemplo dos

tradutores italianos de Homero minus Monti e Pindemonte minus e muitas vezes

extremando o paradigma pois entendia a nossa liacutengua lsquoainda mais afeita agraves

palavras compostas e ainda mais ousadarsquo do que o italianordquo (1976 27)

A citaccedilatildeo apresenta ainda que sob a visatildeo particular do criacutetico uma siacutentese de

aspectos relacionados agrave produccedilatildeo tradutoacuteria de Odorico aspectos estes que

mencionados nessas observaccedilotildees seratildeo de novo abordados logo adiante com base em

comentaacuterios do proacuteprio Haroldo de Campos e de outros autores a fim de apresentarmos

um quadro da recepccedilatildeo criacutetica do trabalho do tradutor especialmente relevante em seu

caso pela divergecircncia que tem suscitado ao longo do tempo de julgamentos quanto a

seus resultados

Mas leiamos a seguir na iacutentegra a nota de Odorico ao Canto I de sua Iliacuteada ndash

assinale-se que eacute do conjunto de notas presente em sua obra que se pode depreender o

pensamento do tradutor sobre seu trabalho ndash na qual apresenta claramente a sua visatildeo

torturou frases inventou termos fez transposiccedilotildees baacuterbaras e periacuteodos obscuros jungiu arcaiacutesmos e

neologismos latinizou e grecificou palavras e proposiccedilotildees o diabo Num portuguecircs macarrocircnico abafou

evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora 1949 4ordf ediccedilatildeo tomo terceiro p 35 (Primeira ediccedilatildeo Rio de

Janeiro Garnier 1902 Vol I)

Diga-se que eacute curioso como exatamente a qualidade apontada por criacuteticos posteriores como H de

Campos e A Medina Rodrigues de ser a de Odorico obra marcada pela recriaccedilatildeo e por consequente

autonomia eacute tida como inexistente por Romero teremos oportunidade neste estudo de apreciar a

identidade recriadora de Odorico Mendes

99

acerca do que seria ser ldquofielrdquo a Homero recriar a obra de acordo com os padrotildees de

percepccedilatildeo criacutetica do tradutor renovada em seu tempo e lugar segundo os paracircmetros

entatildeo tidos como desejaacuteveis Odorico manifesta opccedilotildees coerentes com a determinaccedilatildeo

de concisatildeo ideia esta comum ao entendimento moderno de poesia (lembrem-se os

comentaacuterios de Ezra Pound sobre a correspondecircncia anotada em dicionaacuterio alematildeo-

italiano entre a palavra dichten (poesia) e a palavra condensare101

As repeticcedilotildees de Homero se reduzem a duas classes ora por exemplo manda

Juacutepiter um recado que o mensageiro daacute pelos mesmos ou quase pelos mesmos

termos ora juntam-se epiacutetetos que por continuados agraves vezes podem enfastiar

Conservo as primeiras como proacuteprias da singeleza do autor e porque nelas se

assemelha aos antigos da Biacuteblia Quanto agraves segundas procedo assim trato do

verter os epiacutetetos com exatidatildeo e nos lugares mais apropriados isto feito omito as

repeticcedilotildees onde seriam enfadonhas Ainda mais vario a forma de cada epiacuteteto ou

me sirvo de um equivalente em vez de Aquiles velociacutepede digo tambeacutem

impetuoso raacutepido fogoso e assim no demais Note-se que os adjetivos gregos

terminando em casos diversos natildeo tecircm a monotonia dos nossos que soacute variam nos

dois gecircneros e nos dois nuacutemeros mdash Rochefort apoda do pueril o empenho de

variar natildeo sei como quem andava sempre agarrado ao rabicho da cabeleira de

Boileau e de Racine se levantou contra a variedade no estilo que um recomenda e

pratica o outro Se vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixava a

obra de ser apraziacutevel como eacute a dele a pior das infidelidades Com isto natildeo quero

fazer a apologia das paraacutefrases aspiro a ser tradutor (2008 873)

Em sua apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada organizada por Antocircnio Medina

Rodrigues102

Campos refere-se novamente agrave criacutetica de Silvio Romero (1851-1914)

associando a ela o julgamento posterior de Antonio Candido

Em ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo [] tive a ocasiatildeo haacute exatamente

30 anos de rebater a criacutetica preconceituosa de Siacutelvio Romero [] Esse juiacutezo

depreciativo natildeo obstante o ponto de vista em contraacuterio de filoacutelogos [] como

Joatildeo Ribeiro Silveira Bueno e Martins de Aguiar [] acabou por prevalecer e dar

101 POUND E ABC da literatura Satildeo Paulo Cultrix 1977 p 86 102 HOMERO Odisseia Org Antonio Medina Rodrigues Satildeo Paulo Ars Poetica Ateliecirc 2000

100

o tom [] Importa sim destacar neste contexto que a sentenccedila condenatoacuteria de

Siacutelvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido

(1918) O autor da Formaccedilatildeo da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na

tinta usando expressotildees como ldquobestialoacutegicordquo ldquopreciosismo do pior gostordquo

ldquopedantismo arqueoloacutegicordquo e ldquoaacutepice de tolicerdquo para se referir ao legado tradutoacuterio

do maranhense [] A propoacutesito do conceito ldquomacarrocircnicordquo usado

pejorativamente por Siacutelvio Romero lembrei que ldquoo preconceito contra o

maneirismo natildeo pode ter mais vez para a sensibilidade moderna configurada por

escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimaratildees Rosa das

inesgotaacuteveis invenccedilotildees vocabularesrdquo [] (2000 11-12)

Mas antes de prosseguirmos com a questatildeo das traduccedilotildees de Odorico e sua

recepccedilatildeo criacutetica tratemos brevemente do proacuteprio escritor e de seu tempo Sobre ele diz

Antonio Medina Rodrigues

[Manuel Odorico Mendes viveu] no periacuteodo que abrange os uacuteltimos momentos do

neoclassicismo e o iniacutecio do romantismo Foi de corpo e alma um humanista um

claacutessico empenhado na traduccedilatildeo dos poemas de Virgiacutelio e Homero Mas foi

tambeacutem homem inclinado agrave singeleza que agrave margem das traduccedilotildees escreveu

poemas um pouco afinados com a sensibilidade romacircntica e que chegaram a ter

alguma repercussatildeo (2000 21)

Silvio Romero enquadra em sua Histoacuteria Odorico na classe dos ldquoPoetas

de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo Diz ele

A rotina criacutetica entre noacutes estabeleceu que o romantismo surgiu no Brasil em 1836

com a publicaccedilatildeo dos Suspiros Poeacuteticos de Magalhatildees [] A verdade eacute que antes

de Magalhatildees diversos poetas haviam abraccedilado os princiacutepios da nova escola

especialmente entre os estudantes de Olinda e Satildeo-Paulo desde 1829 Maciel

Monteiro Cacircndido de Arauacutejo Viana Odorico Mendes Moniz Barreto Barros

Falcatildeo [] (1949 tomo terceiro 12)

101

Por ter Odorico perdido sua produccedilatildeo em uma de suas ldquofrequentes viagens do

Maranhatildeo para o Riordquo103

restaram de sua produccedilatildeo poeacutetica (como relata Rodrigues)

apenas

[] o ldquoHino agrave Tarderdquo impresso em 1861 no Parnaso Maranhense depois de ter

aparecido em 1844 na Minerva Brasiliense com sua versatildeo mais precisa no

BreacutesilLitteacuteraire (1863) de Ferdinand Wolf poema de que Siacutelvio Romero dizia

sempre lembrar-se natildeo ldquosem boa e saudosa emoccedilatildeordquo tendo seus versos ldquoum natildeo

sei quecirc de vago e tristerdquo que bem pareciam ser ldquoa essecircncia mesma da poesiardquo ldquoO

sonhordquo (ou ldquoA morterdquo como se acha no Parnaso Maranhense) impresso em vaacuterias

coletacircneas e ldquoO Meu Retirordquo publicado na Minerva Brasiliense mais alguns

poemas de circunstacircncia fecham esse diminuto espoacutelio literaacuterio que Odorico natildeo

quis aumentar Seu interesse estava de fato voltado para a traduccedilatildeo (2000 22)

Incluam-se aqui os versos iniciais do ldquoHino agrave tarderdquo poema em versos

decassiacutelabos como referecircncia agrave criaccedilatildeo poeacutetica do tradutor

Que amaacutevel hora Expiram os favocircnios

Transmonta o Sol o rio se espreguiccedila

E a cinzenta alcatifa desdobrando

Pelas azuis diaacutefanas campinas

Na carroccedila de chumbo assoma a tarde

Salve moccedila tatildeo meiga e sossegada

Salve formosa virgem pudibunda

Que insinuas cos olhos doce afeto

Natildeo criminosa abrasadora chama

Em ti repousa a triste humana prole

Do trabalho do dia nem jaacute lavra

Juiz severo a baacuterbara sentenccedila

Que haacute de a fraqueza conduzir ao tuacutemulo

Lasso o colono mal avista ao longe

A irmatilde da noite coa-lhe nos membros

Plaacutecido aliacutevio mdash posta a dura enxada

Limpa o suor que em bagas vai caindo

103 Citaccedilatildeo (incluiacuteda por A Medina Rodrigues) de Antonio Henriques Leal in Pantheon maranhense

ensaio biograacutefico dos maranhenses ilustres jaacute falecidos Lisboa Imprensa nacional 1873 p36

102

Que ventura A mulher o espera ansiosa

Cos filhinhos em braccedilo e jaacute deslembra

O homem dos campos a diurna lida

Com entranhas de pai ledo abenccediloa

A progecircnie gentil que a olho pula

Natildeo vecircs como o fantasma do silecircncio

Erra e paacutera o buliacutecio dos viventes

Soacute quebra esta mudez o pastor simples

Que trazendo o rebanho dos pastios

Coa suspirosa frauta ameiga os bosques

Feliz que nunca o ruiacutedo dos banquetes

Do estrangeiro escutou nem alta noite

Foi agrave porta bater de alheio alvergue

Acha no humilde colmo os seus penates

Como acha o grande em soberbotildees palaacutecios

[]

No contexto preacute-romacircntico o uso do decassiacutelabo classicizante associa-se como

se pode constatar agrave mencionada ldquosensibilidade romacircnticardquo104

Como se veraacute

detalhadamente depois (ao analisarmos a produccedilatildeo do tradutor) o verso camoniano seraacute

ndash conforme se poderia esperar sabendo-se que esta era em seu tempo a medida de

escolha para a dicccedilatildeo elevada da narrativa heroacuteica ndash o metro escolhido por Odorico (agrave

semelhanccedila de seus antecessores na traduccedilatildeo da Eneida) para suas versotildees das eacutepicas

latina e grega dotadas contudo de aspectos maneiristas (como observou Campos) e

mais ousadia vocabular incluindo-se a formulaccedilatildeo de compostos agrave semelhanccedila dos

termos greco-latinos A opccedilatildeo pelos decassiacutelabos eacute assim comentada por Saacutelvio

Nienkoumltter em seu Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada105

por ele anotada ldquoverso a versordquo

104 Confira-se em termos da associaccedilatildeo do classicismo agrave ldquosensibilidade romacircnticardquo o teor um tanto

semelhante (embora menos ldquoclaacutessicordquo pela diversidade temaacutetica e de perceptiacutevel menor competecircncia

esteacutetica) em relaccedilatildeo aos de Odorico dos decassiacutelabos (heroacuteicos estes) de um dos representantes da

ldquoTerceira fase do romantismordquo (segundo Romero ndash id 265-331) Joseacute Bonifacio ldquo[] O desdenhoso

passo o gesto ousado A descuidosa matildeo que a tranccedila alisa Na triacutepode infernal a pitonisardquo (Romero

1949 317) 105 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio e notas verso a verso Saacutelvio Nienkoumltter

Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da Unicamp 2008

103

[Odorico] Conseguiu com esta escolha imprimir ao verso a velocidade que

Homero imprimiu Sendo a liacutengua portuguesa mais lenta que a grega o verso

decassiacutelabo acaba imprimindo a velocidade que eacute proacutepria do hexacircmetro grego

contudo o decassiacutelabo portuguecircs eacute notadamente mais acelerado (2008 28)

Sobre a adoccedilatildeo do decassiacutelabo pelo tradutor diz Silveira Bueno

Maior efeito teria [Odorico Mendes] alcanccedilado se tivesse tido a coragem de

romper com a praxe do Renascimento e houvesse empregado o alexandrino mais

amplo o uacutenico metro moderno que se aproxima do hexacircmetro dactiacutelico de

Homero Natildeo foi seu o pecado mas da sua eacutepoca (1946 10)106

(A questatildeo dos metros seraacute tratada neste estudo diga-se ao longo das referecircncias aos

procedimentos utilizados pelos diversos tradutores focalizados)

Sobre as caracteriacutesticas da linguagem de Odorico comenta Rodrigues ao refutar

a observaccedilatildeo de Siacutelvio Romero de que ldquoEm literatura e arte o maranhense era um

claacutessico um espiacuterito conservadorrdquo107

Nem poliacutetica nem literariamente Odorico Mendes teria sido conservador e natildeo o

foi sobretudo quando comparamos o trabalho de seus textos tanto com a

textualidade do classicismo em que ele se formara quanto com a do romantismo

que de certa forma ele quis evitar Odorico Mendes levou a liacutengua portuguesa aos

limites que pocircde e explorou vaacuterios tipos de recurso desde o tenso claacutessico ateacute o

oral cotidiano [] E Odorico natildeo fez o que fez para ldquoser modernordquo mas por

necessidade interna de seu trabalho [] (2000 24)

Quanto ainda agrave relaccedilatildeo de Odorico com a eacutepoca em que se insere diz o mesmo

autor

A eacutepoca em que se publica o Virgiacutelio Brasileiro (1854) era francamente romacircntica

sobretudo realccedilada pela vertente popular de Macedo Alencar Gonccedilalves Dias

homens que praticamente constituiacuteram o primeiro ldquogostordquo da era nacional Natildeo

obstante o ideal algo nostaacutelgico e elitizante da epopeia ainda perdurava A

106 O comentaacuterio seraacute referecircncia para H de Campos ao justificar sua proacutepria opccedilatildeo pelo metro

dodecassiacutelabo para a traduccedilatildeo da Iliacuteada 107 ROMERO S Op cit

104

Confederaccedilatildeo dos Tamoios ndash de que O Guarani pode ser considerado uma espeacutecie

de antiacutepoda mais popular e mais feliz ndash eacute de 1856 Os Timbiras [] eacute de 1857[]

Pode-se dizer [] que o experimentalismo da eacutepica na fase romacircntica fazia com

que o antigo vernaacuteculo camoniano desse um salto sobre si proacuteprio na acircnsia de

fazer o gecircnero sobreviver agraves novas modalidades literaacuterias do tempo [] O romance

e boa parte da poesia se vatildeo orientar pela construccedilatildeo de uma personalidade

brasileira []

Odorico era um dos que resistiam Achava que se podia ser original ldquoimitando os

antigosrdquo e explorando as esferas mais tenebrosas da linguagem coisa que por

sinal o nacionalismo abominava Daiacute que ele veraacute o gecircnero eacutepico como uma

estrutura trans-histoacuterica internamente dinamizaacutevel e dinamizaacutevel sobretudo pela

infinita possibilidade criadora das liacutenguas Este racionalismo linguiacutestico []

somado agrave obsessiva concisatildeo ao gosto pelas literaturas eacutepicas e agrave aversatildeo aos

iacutempetos emolientes do nacionalismo literaacuterio acabou fazendo com que Odorico

Mendes compusesse obra homogecircnea e coerente [] (2000 26-27)

Tambeacutem a respeito da linguagem de Odorico sob os aspectos do vocabulaacuterio e

da sintaxe Nienkoumltter atribui-lhe um ldquoamor agrave precisatildeordquo que seria a verdadeira razatildeo

para o uso que faz de ldquovocabulaacuterio raro e contorccedilotildees sintaacuteticasrdquo em vez da ldquoprimeira

impressatildeordquo que se pode ter de que o motivo seja ldquodemonstrar erudiccedilatildeordquo Apesar da

suposiccedilatildeo das intenccedilotildees do autor algo pouco uacutetil ou desejaacutevel (ldquoOdorico natildeo usa por

demonstrarrdquo o propoacutesito de Odorico natildeo erardquo) haacute nesse e nos comentaacuterios que se

seguem afirmaccedilotildees que correspondem ao que se pode constatar por meio da observaccedilatildeo

do texto de Mendes

[] O propoacutesito de Odorico Mendes natildeo era traduzir todas as palavras do original

mas construir periacuteodos que denotassem todo o sentido contido neste original

mantendo deste a forccedila expressiva e riacutetmica Este preceito o leva agrave economia

verbal e agrave frase composta [] As frases invertidas se datildeo pelo mesmo motivo

concatenadas duas frases podem encerrar contexto mais abrangente e produzir um

estilo mais elegante e inteligente (2008 31-32)

O mesmo criacutetico assim se refere de modo geral agraves opccedilotildees tradutoacuterias de

Odorico

105

Odorico Mendes trabalha com o texto de Homero em plena maturidade

especialmente na maturidade poeacutetica e literaacuteria Ao planejar o trabalho o poeta

teve de fazer escolhas preacutevias como o metro o estilo o vocabulaacuterio etc suas

escolhas foram sempre fundadas na tradiccedilatildeo Tradiccedilatildeo da liacutengua que o fez preferir

o verso camoniano que julgava mais apropriado agraves epopeias a nomenclatura dos

deuses de Virgiacutelio jaacute que nossa liacutengua eacute latina o vocabulaacuterio dos grandes claacutessicos

da liacutengua portuguesa etc Produz assim uma espeacutecie de interliacutengua em que nas

palavras de Octaacutevio Camargo ldquopotildee a conversar Homero Virgiacutelio e Camotildeesrdquo

(2008 31-32)

Acerca da criaccedilatildeo de palavras com base na combinaccedilatildeo de termos marcante no

texto do tradutor jaacute assim se referia Silveira Bueno antecipando a valoraccedilatildeo por H de

Campos desse procedimento

Esta eacute outra qualidade de Odorico Mendes preceito que recebeu de Homero a

formaccedilatildeo de termos novos pela adjunccedilatildeo de outros jaacute conhecidos Para dar uma

simples amostra da sua fecunda invenccedilatildeo notamos somente no primeiro livro

todas estas formaccedilotildees segundo os moldes do grande mestre grego infrugiacutefero mar

altipotente Jove celeriacutepede Aquiles [] arciargecircnteo Febo [] dedirroacutesea Aurora

[] (1956 11-12)

Sobre a recepccedilatildeo criacutetica da obra de Odorico citem-se nesta breve apresentaccedilatildeo

geral do tradutor e sua obra comentaacuterios que dela faz em artigo publicado em 2007 e

em resenha criacutetica publicada em 2008 Paulo Seacutergio de Vasconcellos

[] A obra de Odorico Mendes foi alvo frequente de incompreensotildees sobretudo

suas traduccedilotildees de Homero [] Eacute que difiacutecil e desafiador por vezes natildeo eacute lido

com o cuidado e a exigecircncia que merece []

Odorico Mendes foi um desses tradutores que deixaram o discurso da estrita e

suposta fidelidade ao sentido literal por alegaccedilatildeo de que a poesia em seu aspecto

formal eacute mesmo intraduziacutevel [] no tiacutetulo mesmo de sua Eneida se lecirc ldquotraduccedilatildeo

poeacuteticardquo condensando todo um projeto de traduccedilatildeo que jaacute se revela na escolha de

uma focircrma meacutetrica riacutegida o decassiacutelabo heroacuteico []108

108 VASCONCELLOS P S ldquoDuas traduccedilotildees poeacuteticas da Eneida Barreto Feio e Odorico Mendesrdquo In

Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo

Humanitas 2007 pp 9597

106

Independentemente do que entendamos por traduccedilatildeo natildeo haacute como negar que nessa

traduccedilatildeo [da Iliacuteada por Odorico Mendes] extremamente concisa (por vezes talvez

excessivamente concisa) atenta agrave palavra exata (agraves raias da obsessatildeo vejam-se as

notas do tradutor sobre os nomes das diversas peccedilas de uma roda) latinizante ([]

o vocabulaacuterio eacute repleto de latinismos) e ao mesmo tempo helenizante (nos

compostos agrave moda grega []) haacute inuacutemeros versos dignos de figurar em antologia

de literatura pelas qualidades esteacuteticas prodiacutegios de som ritmo e expressividade

[]109

Inclua-se ainda o comentaacuterio relativo agraves traduccedilotildees de Odorico por Joatildeo Acircngelo

Oliva Neto110

como tendo se convertido hoje (apoacutes portanto a reavaliaccedilatildeo de seu

trabalho incitada por Haroldo de Campos) em uma referecircncia quanto a seus

procedimentos para criacutetica de outras traduccedilotildees (evidenciando-se assim a importacircncia

que tal obra adquiriu como paracircmetro de recriaccedilatildeo poeacutetica em nosso tempo no paiacutes)

[] mercecirc da importacircncia que a traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes auferiu entre

noacutes apoacutes as reflexotildees de Haroldo de Campos os criteacuterios da teoria tradutoacuteria do

maranhense estatildeo a tornar-se equivocadamente criteacuterio de avaliaccedilatildeo de todas as

traduccedilotildees ateacute mesmo daquelas tributaacuterias das dominantes poeacuteticas anteriores agrave

teoria de Odorico e daquelas cujo criteacuterio deliberadamente natildeo eacute o mesmo de

Odorico e de Haroldo de Campos caso evidente de Leonel da Costa Franco

Barreto Cacircndido Lusitano por ser anteriores e de Carlos Alberto Nunes e

Agostinho da Silva Tomemos a concisatildeo ou siacutentese ingrediente necessaacuterio de

alguns gecircneros antigos como o epigrama grego e o latino jaacute era procedimento

valorizado por certos autores [] ateacute mesmo em outros gecircneros de poesia como a

proacutepria eacutepica e bem sabemos que eacute pedra de toque por exemplo de manifestaccedilotildees

da poesia modernista e da contemporacircnea Era-o tambeacutem na teoria de Odorico

Mendes que por lograr concisatildeo suprimiu a repeticcedilatildeo de discursos proacutepria da

oralidade homeacuterica [] Mas o Homero que hoje lemos escrito em grego eacute

tributaacuterio da tradiccedilatildeo oral em que sobejam aquelas repeticcedilotildees pelo que se deve

109Idem ldquoHomero Iliacuteada Traduccedilatildeo de O Mendes Satildeo Paulo Campinas ateliecirc Editorial Unicamp

2008rdquo (resenha criacutetica) In Nuntius Antiquus nordm 3 Belo Horizonte agosto de 2009 (ISSN 19833636) 110 OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo ldquoA Eneida em bom portuguecircs consideraccedilotildees sobre teoria e praacutetica da

traduccedilatildeo poeacuteticardquo In Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da

USP Satildeo Paulo Humanitas 2007 pp 77-78

107

lembrar que natildeo eacute conciso natildeo eacute sinteacutetico porque natildeo havia este criteacuterio entre os

aedos [] (2007 77-78)

A importante relativizaccedilatildeo (conceituada no artigo acima citado tendo-se em

conta a adoccedilatildeo da obra de Odorico como referecircncia da traduccedilatildeo criativa) dos

procedimentos e resultados de traduccedilotildees com base na existecircncia de pontos de vista

proacuteprios que os norteiam e a consequente proposiccedilatildeo de Oliva Neto de que uma

traduccedilatildeo seja avaliada ldquoa partir de sua proacutepria teoria e eventualmente das doutrinas

retoacuterico-poeacuteticas em que se insere essa teoria em seu tempo evitando-se generalizar

criteacuterios de um dado tradutor para outros em outros temposrdquo (2007 65) constituem-se

em referecircncia particularmente uacutetil a este trabalho

A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)

Responsaacutevel por traduccedilotildees da Odisseia e da Iliacuteada (publicadas respectivamente

em 1960 e 1962) o meacutedico poeta e tradutor (tambeacutem maranhense) Carlos Alberto

Nunes (que entretanto morou no interior e na capital de Satildeo Paulo a maior parte de sua

vida) eacute dono de vasta obra tradutoacuteria incluindo-se a Eneida de Virgiacutelio vertida do

latim os Diaacutelogos de Platatildeo vertidos (assim como as eacutepicas homeacutericas) do grego o

teatro completo de Shakespeare e peccedilas teatrais de J W Goethe e de Friedrich Hebbel

traduzidas do alematildeo Escreveu tambeacutem diversas obras originais de poesia e drama

entre elas a epopeia (em versos decassiacutelabos) Os brasileidas publicada em 1938 da

qual citamos em seguida os versos iniciais (a fim de que se perceba que embora em

decassiacutelabos o poema se faz com constante uso de enjambement aparentemente sem

compromisso com a siacutentese)

Musa canta-me a reacutegia poranduba

das bandeiras os feitos sublimados

dos heroacuteis que o Brasil plasmar souberam

traveacutes do Pindorama demarcando

nos sertotildees a conquista e as esperanccedilas111

111 NUNES C A Os brasileidas (Epopeia nacional em nove cantos e um epiacutelogo) Satildeo Paulo

Melhoramentos s d

108

Cite-se pela pertinecircncia em se incluir o ponto de vista do autor acerca da poesia

eacutepica agrave qual dedicou grande parte de seu empenho criador e recriador algo de seu

pensamento sobre ldquoo lugar da poesia eacutepica na literatura modernardquo exposto em ensaio

publicado na ediccedilatildeo de Os brasileidas

A epopeia como gecircnero literaacuterio natildeo estaacute morta nem pertence aos museus da

literatura O exemplo do escritor cretense [Nikos Kazantzakis autor de nova

Odisseia] eacute decisivo para demonstrar a possibilidade da criaccedilatildeo em nossos dias de

uma epopeia heroacuteica ao mesmo tempo claacutessica e revolucionaacuteria tendo se revelado

como carecente de base a tentativa dos teoacutericos e doutrinadores de fechar caminhos

para a atividade da imaginaccedilatildeo criadora [] 112

E inclua-se tambeacutem uma apreciaccedilatildeo sua integrante das ldquoNotas de um tradutor

de Homerordquo a respeito da poesia homeacuterica como um meio de se observar sua crenccedila de

que a traduccedilatildeo pode aproximar eacutepocas e culturas diversas pela poesia ldquoinfusa dos

poemas de Homerordquo

Sempre fui de parecer que ateacute para os menos iniciados os poemas de Homero

podem constituir ocasiatildeo de deleite natildeo foi por acaso que esses dois monumentos

inigualaacuteveis atravessaram milecircnios sem perder o frescor dos primeiros tempos []

Atrever-me-ei a dizer que ateacute mesmo as pessoas mais imbuiacutedas de prevenccedilatildeo

contra a literatura claacutessica natildeo poderatildeo deixar de sentir a poesia infusa dos poemas

de Homero se se entregarem agrave leitura honesta dessas criaccedilotildees sem par em pouco

tempo se sentiratildeo empolgadas pela verdade eterna que se irradia daquele mundo de

poesia Onde quer que abramos Homero o sol bate sempre em cheio A sua poesia

natildeo eacute de ontem nem de hoje poreacutem eterna agrave medida que se afasta que se afasta no

tempo liberta-se dos liames da contingecircncia humana para refletir em sua estrutura

liacutempida os traccedilos das criaccedilotildees universais []113

112 NUNES C A ldquoEnsaio sobre a poesia eacutepicardquo In Os brasileidas ndash epopeia nacional Satildeo Paulo

Melhoramentos 1962 p 14 113 Idem ldquoNotas de um tradutor de Homerordquo In Revista da Academia Paulista de Letras Satildeo Paulo s

d p 142

109

Algo importante acerca de suas concepccedilotildees relativas agrave tarefa da traduccedilatildeo pode

ser depreendido do seguinte trecho de suas referidas ldquoNotasrdquo114

[] ateacute mesmo as divergecircncias remanescentes que tanto acirram os acircnimos nos

arraiais da Filologia redundam em vantagem para o tradutor pela variedade daiacute

decorrente que lhe proporciona maior amplitude de movimentos Um exemplo

entre muitos diante do epiacuteteto Argeiphontes em referecircncia a Hermes encontrado

na Odisseia teraacute o tradutor que optar rapidamente entre vaacuterias interpretaccedilotildees

ldquomatador de Argosrdquo ndash numa etimologia forccedilada mas que vem da antiguidade ndash

ldquobrilhanterdquo e vaacuterias outras Se se resolver pela primeira empregaraacute com toda

certeza o neologismo ldquoArgicidardquo o que o obrigaraacute a uma nota para elucidaccedilatildeo de

um mito tardio e de pouca ou de nenhuma significaccedilatildeo no mundo helecircnico na

segunda hipoacutetese falaraacute linguagem simples mas por isso mesmo mais de acordo

com as caracteriacutesticas do estilo homeacuterico o leitor natildeo perceberaacute o obstaacuteculo e

prosseguiraacute empolgado pela beleza dos poemas imortais (p 145)

Como se pode notar Nunes antepotildee-se a formulaccedilotildees que possam dificultar a

leitura fluente da traduccedilatildeo de Homero abolindo o uso de notas (ldquoAo publicar o texto da

traduccedilatildeo portuguesa daqueles poemas deixei-o desacompanhado de notas jaacute por afagar

a esperanccedila de que conseguiria infundir-lhe uma parcela da beleza original []) (pp

141-142) A dicccedilatildeo de sua obra tradutoacuteria aponta portanto para uma pretendida

oposiccedilatildeo ao modo como Odorico realizara seu intento ao optar por ldquouma linguagem

simplesrdquo (opccedilatildeo baseada tambeacutem em sua visatildeo do texto homeacuterico como dotado de

simplicidade) busca favorecer a fruiccedilatildeo da obra pelo leitor a que se dirige Diz ele ldquoem

geral as notas que acompanham as traduccedilotildees valem como trabalho agrave parte que servem

para revelar os fundamentos filoloacutegicos de seus autores Natildeo eacute um trabalho dessa

natureza que me proponho nesse momentordquo (p 144)

Sobre sua versatildeo da obra teatral de Shakespeare e a recepccedilatildeo criacutetica por ela

obtida diz Marcia A P Martins115

114 Outras observaccedilotildees de C A Nunes sobre traduccedilatildeo seratildeo citadas oportunamente durante as primeiras

iniciativas de anaacutelise de fragmentos da obra homeacuterica 115 ldquoA Traduccedilatildeo do drama shakespeariano por poetas brasileirosrdquo In revista Ipotesi v 13 n 1 janjul

Juiz de Fora 2009 pp 27-40

110

[Carlos Alberto Nunes] dedicou-se durante a deacutecada de 1950 a um projeto

grandioso a traduccedilatildeo de todas as comeacutedias trageacutedias e dramas histoacutericos de

Shakespeare para o portuguecircs

[] A recepccedilatildeo criacutetica do trabalho de Nunes pode ser avaliada pelos comentaacuterios

de alguns tradutores e criacuteticos Eugecircnio Gomes elogiou o trabalho de Nunes que

considerou de grande envergadura e de modo geral consciencioso e seguro

ldquocapaz de impor-se como verdadeiro modecirclo do que deveraacute ser uma traduccedilatildeo

brasileira de Shakespearerdquo (GOMES 1961 p 68) []

Para Nelson Ascher tradutor e criacutetico Nunes eacute um tradutor erudito e rigoroso com

sua busca por manter o esquema meacutetrico do original enquanto que na avaliaccedilatildeo da

especialista em estudos shakespearianos Margarida Rauen (1993) as traduccedilotildees de

Nunes satildeo difiacuteceis de ler por causa do seu estilo ornamentado e grandiloquente e

por observarem as normas da linguagem escrita tatildeo diferentes daquelas da

linguagem oral Barbara Heliodora por sua vez criticou-lhe o excesso de

inversotildees que inviabilizam o uso da sua traduccedilatildeo no palco (1997)

Eacute possiacutevel observar que enquanto o comentaacuterio de Ascher deixa transparecer uma

concepccedilatildeo de traduccedilotildees shakespearianas que valoriza a manutenccedilatildeo das

caracteriacutesticas formais observadas no texto de partida as duas apreciaccedilotildees

seguintes evidenciam uma concepccedilatildeo de ldquofidelidaderdquo a Shakespeare que pressupotildee

a preservaccedilatildeo da sua funccedilatildeo teatral para a qual contribuem uma dicccedilatildeo e uma

sintaxe adequadas a um texto que se destina primordialmente agrave fala e natildeo agrave

leitura

Por fim em seu artigo ldquoFigura em minha liacutengua da traduccedilatildeo em verso do verso

dramaacutetico de William Shakespeare um projeto para Ricardo IIIrdquo (2007) o

dramaturgo e tradutor de textos teatrais Marcos Barbosa de Albuquerque considera

Nunes um tradutor brilhante embora ldquobastante particular em sua escolha de

palavras e vasto no emprego de inversotildees e de malabarismos sintaacuteticosrdquo estilo que

tem sido recorrentemente tachado de arcaizante pela criacutetica (2009 35)

Tendo alcanccedilado relativa popularidade suas traduccedilotildees da eacutepica greco-latina

foram publicadas com significativa tiragem em ediccedilotildees de bolso Sobre essas

traduccedilotildees diz Haroldo de Campos

No que respeita agrave traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes embora natildeo se possa

enquadrar na categoria da lsquotranscriaccedilatildeorsquo (termo que eacute liacutecito aplicar sem exagero a

Odorico natildeo obstante os eventuais lsquodesniacuteveisrsquo que possam afetar o resultado

111

esteacutetico de seu projeto tradutoacuterio) estamos diante de uma empreitada incomum

que merece como tal respeito e admiraccedilatildeo Desde logo pelo focirclego do tradutor

que levou a cabo a transposiccedilatildeo integral em versos para o portuguecircs de ambos os

extensos poemas Num outro plano o prosoacutedico pela interessante soluccedilatildeo

(louvada por Maacuterio Faustino se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis

siacutelabas o equivalente em meacutetrica vernaacutecula do hexacircmetro (verso de seis peacutes)

homeacuterico O resultado para o nosso ouvido embora relente um pouco o passo do

verso aproximando-o da prosa ritmada eacute uma boa demonstraccedilatildeo de que natildeo

assistia razatildeo a Mattoso Cacircmara Jr quando impugnava a ac1imataccedilatildeo do verso de

medida longa em portuguecircs considerando-o lsquointeiramente anocircmalorsquo em nossa

liacutengua (Mattoso referia-se agrave adoccedilatildeo de um verso de quinze siacutelabas por Fernando

Pessoa em sua traduccedilatildeo de The Raven de E A Poe) A praacutetica de Carlos Alberto

Nunes sustentando com brio por centenas de versos essa medida contesta

eloquentemente aquela restriccedilatildeo normativa No que se refere agrave linguagem todavia

natildeo eacute um empreendimento voltado para soluccedilotildees novas com a estampa da

modernidade Trata-se antes de uma traduccedilatildeo acadecircmica de pendor

lsquoclassicizantersquo que retroage estilisticamente no tempo116

Um aspecto da obra tradutoacuteria de Nunes ndash jaacute mencionado na referecircncia a

avaliaccedilatildeo de Nelson Ascher relativa a suas traduccedilotildees de Shakespeare ndash eacute a preocupaccedilatildeo

de correspondecircncia riacutetmico-meacutetrica com o original e portanto a importacircncia por ele

atribuiacuteda aos padrotildees formais do texto que se traduz Frequentemente assinalada por

seus criacuteticos a caracteriacutestica de recriaccedilatildeo do aspecto meacutetrico costuma ser contraposta ndash

como o fez Campos ndash ao que seria um conservadorismo da linguagem Para Martins

referindo-se a sua versatildeo da obra shakespeariana suas traduccedilotildees satildeo

conservadoras no que diz respeito tanto agraves poeacuteticas que vinham surgindo no

sistema literaacuterio brasileiro [agrave eacutepoca em que realizou o trabalho quando se

desenvolvia o movimento da vanguarda concretista na poesia] como agrave maneira de

se traduzir Shakespeare como um autor de linguagem elevada que exigiria

rebuscamento sintaacutetico e lexical (2009 35)

116 CAMPOS H ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo Revista USP no 12 dez-jan- fev 1991-1992 pp 143-161

112

Parece-me bastante discutiacutevel a noccedilatildeo de que a opccedilatildeo tradutoacuteria teria de estar

vinculada agraves ldquopoeacuteticas que vinham surgindo []rdquo e tambeacutem de que a ideia da obra de

Shakespeare como dotada de linguagem elevada implique necessariamente

conservadorismo

A importacircncia atribuiacuteda por Nunes no plano formal agrave observacircncia do esquema

meacutetrico em traduccedilatildeo evidencia-se nesta sua referecircncia agrave eacutepica grega

Firmemos portanto mais uma caracteriacutestica do estilo eacutepico a uniformidade do

verso ldquoHomero emerge da corrente da vidardquo diz Staiger ldquoe se conserva imoacutevel

em face do mundo exterior contempla as coisas de um certo ponto de vista por

uma determinada perspectiva Esta eacute condicionada pelo ritmo de seus versos sendo

ela que lhe assegura a identidade o ponto fixo no fluxo permanente das coisasrdquo Eacute

essa condiccedilatildeo que permite ao poeta conservar a serenidade em face dos

acontecimentos relatados Interpretando o hexacircmetro em termos da meacutetrica

portuguesa veremos que se trata de um verso longo de dezesseis siacutelabas

paroxiacutetono com acento predominante na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e 16ordf siacutelabas e discreta

cesura depois do terceiro peacute

Ouve-me Atena tambeacutem nobre filha de Zeus poderoso

Quando o poeta se afasta desse paradigma para introduzir duas pausas no verso

que o dividem em trecircs porccedilotildees quase iguais de regra volta no verso subsequente a

cair no ritmo inicial que eacute o predominante em todo o recitativo

Daacute que possamos cobertos de gloacuteria voltar para as naves

poacutes grande feito acabarmos que haacute de lembrar sempre aos Teucros

Nas traduccedilotildees esse esquema natildeo eacute observado com rigor notando-se ainda a

tendecircncia para variar de ritmo pelo deslocamento das pausas dentro do verso com

o que se evita a monotonia de possiacutevel desagrado para o ouvido moderno Mas

com isso padece o estilo eacutepico em uma de suas caracteriacutesticas essenciais []

(1962 38-39)

Haacute no entanto em relaccedilatildeo agrave opccedilatildeo de Nunes de ldquofidelidaderdquo ao esquema

riacutetmico-meacutetrico do texto-fonte discussotildees acerca da qualidade de seu resultado esteacutetico

113

Sobre o sistema praticado pelo tradutor em suas versotildees da eacutepica virgiliana defende-o

Oliva Neto (que no entanto tambeacutem aponta no aspecto da linguagem o ldquodefeitordquo do

ldquoleacutexico beletristardquo empregado por Nunes)

[] Carlos Alberto Nunes quis reproduzir o hexacircmetro datiacutelico [] A bem dizer

quando se diz ldquo16 siacutelabasrdquo [quantidade que se atribui ao verso usado por Nunes]

estaacute-se de fato a contaacute-las ateacute a uacuteltima siacutelaba tocircnica como se faz na meacutetrica

portuguesa hoje o que revela que se levou em conta a dimensatildeo do verso que eacute

entatildeo muito longo em vez privilegiar-se a ceacutelula datiacutelica que sendo o que

ritmicamente se impotildee era o que o tradutor tinha em mente Na leitura riacutetmica eacute

secundaacuteria a dimensatildeo do verso jaacute que os daacutetilos se sucedem verso apoacutes verso natildeo

tendo tanta importacircncia aqui a quebra deles ou seja onde terminam isto eacute a

dimensatildeo Estaacute-se a criticar a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes natildeo pelos defeitos

intriacutensecos que decerto possui como a meu ver entre outros o leacutexico beletrista

mas porque natildeo fez segundo cada criacutetico ou o que Odorico Mendes ou que

Barreto Feio fizeram o que eacute extriacutenseco [] (2007 82-83)

O esquema meacutetrico adotado por Nunes eacute objeto de comentaacuterio de Medina

Rodrigues que questiona sua pertinecircncia embora em referecircncia geneacuterica a seu

trabalho reforce o juiacutezo aparentemente consensual de ser ele um ldquomeritoso tradutorrdquo

O hexacircmetro de Homero tem seis peacutes com predomiacutenio do daacutectilo como em nossas

proparoxiacutetonas Carlos Alberto Nunes incansaacutevel e meritoso tradutor levou isso a

seacuterio Em suas versotildees da Iliacuteada e da Odisseia procurou ajeitar o portuguecircs em

compassos ternaacuterios para imitar o original []

Certamente o tradutor sabia que os compassos ou peacutes de Homero natildeo privilegiam

siacutelabas tocircnicas e aacutetonas mas longas e breves que aliaacutes natildeo existem em liacutenguas

que falamos Privilegiando a estrutura silaacutebica naquilo que pocircde o tradutor imitou

uma teacutecnica sem levar-lhe em conta o efeito a saber aquela velocidade colorida

que Homero consegue com o hexacircmetro grego e que a traduccedilatildeo de Carlos Alberto

Nunes natildeo consegue com o hexacircmetro portuguecircs por ser este muito pesado lento

Eacute a ilusatildeo aritmeacutetica da semelhanccedila formal que natildeo percebe que teacutecnicas idecircnticas

levam a efeitos distintos

[] enquanto Odorico estava preocupado em traduzir efeitos ou sentidos Carlos

Alberto Nunes se preocupou em traduzir basicamente a forma ou mais

114

precisamente como querem alguns a focircrma os esquemas retoacutericos prosoacutedicos os

epiacutetetos a frase oralizada etc (2000 50-51)

O aspecto particular ndash e tatildeo relevante ndash da tarefa empreendida por Nunes em

manter a dinacircmica fixa de acentuaccedilatildeo dos versos assim como suas peculiaridades

esteacuteticas gerais seratildeo assim como as obras dos demais tradutores analisadas

oportunamente

A3 Haroldo de Campos

Apresenta-se a seguir de modo sucinto a trajetoacuteria do poeta tradutor e ensaiacutesta

Haroldo de Campos ndash que como jaacute se disse seraacute objeto relativamente privilegiado deste

trabalho devido ao alcance e agrave importacircncia de sua obra tradutoacuteria e ensaiacutestica sobre

traduccedilatildeo poeacutetica Para uma certa independecircncia desta apresentaccedilatildeo natildeo seratildeo evitadas

algumas informaccedilotildees sobre aspectos de seu pensamento e de suas fontes presentes

tambeacutem em outros toacutepicos deste estudo

Estabelecer relaccedilotildees nexos transitar entre tempos espaccedilos culturas liacutenguas

formas ligar fundir elementos aparentemente diacutespares distantes realizar o hibridismo

a atitude que permeia estes objetivos parece-me determinante na obra e no pensamento

de Haroldo de Campos

Vejamos brevemente algumas manifestaccedilotildees da focalizaccedilatildeo do entremeio do

espaccedilo em que se podem traccedilar conexotildees entre dois pontos referenciais

Sobre sua obra Galaacutexias diz Haroldo em entrevista concedida a Carlos Rennoacute e

publicada em 23 de outubro de 1984117

A poesia concreta respondeu a uma das vertentes da minha personalidade as

Galaacutexias respondem a outra Que elas tenham podido coexistir eacute algo que me

demonstrou a inexistecircncia de uma oposiccedilatildeo antagocircnica entre barroquismo e

construtivismo [] Natildeo teria sido possiacutevel por outro lado sem a experiecircncia de

rigor e controle do acaso da poesia concreta disciplinar o turbilhatildeo barroquizante

que a escritura galaacutetica desencadeia

117 A referida entrevista foi publicada nessa data no caderno Folha Ilustrada do jornal Folha de SPaulo

115

Coexistecircncia entre ldquoconstrutivismo e barroquismordquo entre a poesia concreta e o

ldquoturbilhatildeo barroquizanterdquo da ldquoescritura galaacuteticardquo a fusatildeo desenvolve-se como

instrumento como caminho para o autor de encontro entre diferentes tendecircncias que

criaraacute um espaccedilo manifesto natildeo soacute na ldquoproesiardquo de Galaacutexias como em sua obra

propriamente poeacutetica (lembre-se por exemplo a poesia de Signacircncia quase ceacuteu ou a de

Finismundo a uacuteltima viagem agraves quais voltaremos mais adiante) A linguagem de

Galaacutexias em seu ldquohibridismo textualrdquo jaacute conteria em si o ldquofusionismordquo do proacuteprio

barroco

[Em um ensaio] referia-me ao Barroco pelo fusionismo que lhe eacute proacuteprio pelo

hibridismo de liacutenguas e culturas que o caracteriza como o momento embrionaacuterio

em nossa Ameacuterica dessa rebeliatildeo contra a normatividade claacutessica dos gecircneros

Tambeacutem a proacutepria ideia de ldquoruptura dos gecircnerosrdquo ou seja fusatildeo de seus limites

estaria na base da escritura da obra

Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos

gecircneros na literatura contemporacircnea da rarefaccedilatildeo dos limites entre poesia e prosa

e tambeacutem entre ficccedilatildeo e ensaio criacutetico entre o exerciacutecio ficcional e o exerciacutecio

metalinguiacutestico da escritura

Teria sido ainda um tracircnsito uma passagem que leva a outro hibridismo a

concepccedilatildeo de que ldquoA escritura galaacutetica foi [] um gesto eacutepico que se resolveu numa

epifacircnicardquo ndash ldquoo narrar deixou-se levar de roldatildeo pela proliferaccedilatildeo de imagens pela

voracidade focircnica pelas fosforescecircncias de uma semacircntica moacutevel que o contaacutegio de

significantes eacute capaz de suscitar e sustar []rdquo

Vista rapidamente a presenccedila de passagem de ligaccedilatildeo ndash que leva agrave fusatildeo ndash em

Galaacutexias prossigamos o itineraacuterio erraacutetico de referecircncias abordando sob a mesma

perspectiva a sua atividade de recriaccedilatildeo e mais exatamente o seu pensamento sobre

traduccedilatildeo poeacutetica

Em seu primeiro ensaio de focirclego sobre o assunto ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e

como criacuteticardquo118

Haroldo buscou fundamentar-se em duas referecircncias principais a

118 Op cit

116

noccedilatildeo de ldquosentenccedila absolutardquo de Albrecht Fabri e de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max

Bense traccedilando por meio de sua proacutepria concepccedilatildeo de poesia e de traduccedilatildeo uma

conexatildeo entre as duas formulaccedilotildees que serviram a uma forma de ldquounificaccedilatildeordquo expressa

em seu pensamento Mas essa junccedilatildeo seria apenas o iniacutecio de um processo de agregaccedilatildeo

de fundamentos num esforccedilo de leitura que buscaria pontos de convergecircncia em fontes

de diferente teor Nesse mesmo texto de 1962 o autor propotildee valendo-se de noccedilotildees da

cristalografia o conceito de ldquoisomorfismordquo para designar a operaccedilatildeo de traduzir poesia

para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica

autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas

entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo diferentes enquanto linguagem mas como

os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro de um mesmo sistemardquo (1976 24) uma

ldquodialeacutetica do diferente e do mesmordquo (Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria) Em primeiro

lugar haacute a evidente aproximaccedilatildeo de dois campos distintos de conhecimento a quiacutemica

e a poesia em segundo a proacutepria natureza do conceito de isomorfismo cuja ecircnfase eacute na

analogia correspondecircncia de forma que seraacute um exerciacutecio de passagem O termo

ldquoisomoacuterficordquo cederaacute lugar mais tarde a ldquoparamoacuterficordquo no pensamento de Haroldo para

que fosse enfatizada a relaccedilatildeo de paralelismo sugerida pelo prefixo ldquopara-rdquo ldquolsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquordquo) Observando-se a obra do tradutor natildeo se

encontraratildeo no entanto regras precisas ou absolutas de como se deve construir o corpo

paramoacuterfico ndash as relaccedilotildees de correspondecircncia a serem estabelecidas seratildeo de certa

forma uacutenicas como eacute cada poema e como eacute cada recriaccedilatildeo autocircnomos cada

transposiccedilatildeo uma viagem com seu proacuteprio percurso sua proacutepria paisagem

Seraacute na descoberta do trabalho do linguista russo Roman Jakobson no entanto

que Haroldo teraacute uma dos principais sustentaccedilotildees de seu pensamento sobre poesia e

sobre traduccedilatildeo poeacutetica As proposiccedilotildees desse autor iratildeo ao encontro das ideias que

acompanhavam o grupo concretista paulistano desde sua origem permitindo uma

referecircncia desenvolvida e precisa sobre aspectos natildeo-verbais da linguagem a

materialidade do signo linguiacutestico tal como pode ser vista na linguagem poeacutetica ideia

que encontra respaldo em Jakobson seraacute um ponto essencial na concepccedilatildeo de Haroldo

Centralmente a formulaccedilatildeo do linguista relativa agraves funccedilotildees da linguagem entre as quais

se inclui a funccedilatildeo poeacutetica passaraacute a ser para os poetas construtivistas uma referecircncia

absoluta porque capaz de definir a especificidade da linguagem da poesia Por essa

117

razatildeo Haroldo incluiraacute em longo ensaio de A arte no horizonte do provaacutevel119

uma

abordagem dos conceitos jakobsonianos relacionando-os com o trabalho de outros

autores como o criador da semioacutetica norte-americana Charles Peirce outra das

referecircncias principais dos concretistas e seu disciacutepulo Charles Morris

A ideia central de Jakobson sobre a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem poderaacute ser

associada por Haroldo agraves outras fontes jaacute por ele utilizadas como fundamentaccedilatildeo de

seu pensamento eacute perfeitamente compatiacutevel com a noccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de

Bense ou de ldquosentenccedila absolutardquo de Fabri Se para Bense a informaccedilatildeo esteacutetica de um

poema eacute coincidente com a totalidade de sua realizaccedilatildeo para Jakobson a ldquoequaccedilatildeo

verbalrdquo tambeacutem eacute irredutiacutevel Daiacute sobreviria ndash para ambos os pensadores ndash a

impossibilidade de uma ldquotraduccedilatildeordquo de poesia Se Haroldo jaacute falava em recriaccedilatildeo em

criaccedilatildeo de um corpo anaacutelogo iso- ou paramoacuterfico a proposiccedilatildeo de Jakobson de que

(ao mesmo tempo em que a traduccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel) seraacute possiacutevel a transposiccedilatildeo

criativa integraraacute perfeitamente o constructo em curso de seu pensamento que se

articularaacute progressiva e crescentemente em torno do conceito nominado transcriaccedilatildeo

Mas o ponto mais importante da concepccedilatildeo de Haroldo sobre transcriaccedilatildeo ndash que

se define e se arma no conjunto de seus textos sobre o assunto publicados tambeacutem em

perioacutedicos ao longo de uacuteltimas deacutecadas de sua vida e que recolhidos integraratildeo um

volume a ser publicado ndash eacute no meu modo de ver a explicitaccedilatildeo de que seu caminho

como transcriador parte de criteacuterios originados da observaccedilatildeo de elementos

intratextuais para chegar a um novo texto que por desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da

histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo reinventando-a (1983 60)120

Para tanto o ato de

construccedilatildeo de uma traduccedilatildeo viva seraacute um ato ateacute certo ponto usurpatoacuterio que se rege

pelas necessidades do presente de criaccedilatildeo (ib) Em vez de buscar reconstruir um

mundo passado a visatildeo haroldiana decide pela reinvenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo inserida em

novo contexto o texto portanto transforma-se na viagem e seu ponto de chegada

acolhe-o de modo a participar de sua reestruturaccedilatildeo para a qual o presente a releitura e

a comunicaccedilatildeo em novo espaccedilo e em novo tempo satildeo determinantes Resultado de

tracircnsito de trans-historicizaccedilatildeo o texto tambeacutem seraacute objeto de viagem para o leitor e

119 ldquoComunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo op cit (1975)

120 Esta citaccedilatildeo e as duas seguintes provecircm do artigo Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria in Cadernos do

MAM nuacutemero 1 Rio de Janeiro dezembro de 1983

118

seraacute objeto e sujeito de transformaccedilatildeo no dizer de Joatildeo Alexandre Barbosa121

[] a

compreensatildeo [por parte do leitor] estaacute na busca que eacute o iniacutecio de uma viagem [] o

leitor do poema recorta o seu espaccedilo de reflexatildeo e pensa a viagem e Transformando

pela leitura o poema que lecirc o leitor eacute transformado pela leitura

Recriaccedilatildeo reescritura um ponto de vista que abarca um amplo horizonte capaz

de revelar sincronicamente poeacuteticas de diversas eacutepocas espaccedilos e culturas este seria um

modo de se entender a posiccedilatildeo de Haroldo como leitor-criador Sigamos a ecircnfase no

foco extensivo de seu olhar e de seu pensamento amplamente dirigido agrave passagem

evocando (conforme anunciado) duas de suas escrituras palimpseacutesticas Signacircncia

quase ceacuteu e Finismundo a uacuteltima viagem

Sobre o primeiro lembre-se muito brevemente que o texto rastreia

reinscrevendo iacutendices da passagem textual da criaccedilatildeo dantesca num percurso inverso ao

da Divina Comeacutedia iniciando-se no paraiacuteso o livro-poema finda no fundo do inferno

atravessando os acircmbitos e lindes desde o iniacutecio com palavras pendentes desde as

alturas por um fio invisiacutevel que as susteacutem ateacute o derradeiro niacutevel uma queda evidenciada

na Coda em que a visatildeo dos uacuteltimos lecircmures configuram o ecircxito ao reveacutes a

viagem se daacute na amplitude do alcance de cada plano e tambeacutem na dimensatildeo da

profundidade como que colhendo fragmentos desvelados pela releitura Uma

reescrituraindicial-icocircnica pois ao indicar elementos de uma tradiccedilatildeo evocada reinstala

paradigmas ndash qualidade transformada na passagem de um a outro tempo de um a outro

espaccedilo ndash novos estiacutemulos agrave percepccedilatildeo em novo contexto em que se insere a nova

dimensatildeo poeacutetica

Sobre o segundo trata-se de um poema que no dizer de Haroldo envolve o

risco da criaccedilatildeo pensado como um problema de viagem e como um problema de

enfrentamento com o impossiacutevel uma empresa que se por um lado eacute punida com um

naufraacutegio por outro eacute recompensada com os destroccedilos do naufraacutegio que constituem o

proacuteprio poema Um desafio encarado pelo poeta que encontrou em estudo

semioloacutegico do italiano DacuteArco Silvio Avalle o embriatildeo de seu proacuteprio texto no

estudo eacute analisado o canto XXVI do Inferno no qual Dante propotildee a soluccedilatildeo para um

enigma que vinha da tradiccedilatildeo claacutessica o enigma do fim de Ulisses O enigma referido

121 As citaccedilotildees satildeo excertos do ensaio Um cosmonauta do significante navegar eacute preciso que introduz

o livro Signantia quase coelum Signacircncia quase ceacuteu de Haroldo de Campos (Satildeo Paulo Perspectiva

1979)

119

diz respeito a um segmento de verso do canto XI da Odisseia thaacutenatosekshaloacutes que

como diz Haroldo (na esteira de Avalle) pode ser entendidocomo uma morte para

longe do mar salino ou como uma morte que procede do mar salino (ou seja se

Odisseu teria morrido no mar ou longe dele em paz em Iacutetaca) No canto dantesco o

velho Odisseu (Ulisses) teria ousado uma nova aventura a travessia das fronteiras

permitidas do mundo ndash uma atitude provinda da hyacutebris (definida por Haroldo como

essa desmesura orgulhosa com que o ser humano intenta [] confrontar-se com o

impossiacutevel) Se haacute hyacutebris na accedilatildeo de Ulisses esta encontra paralelo no proacuteprio

enfrentamento do desafio do poema pelo poeta de Finismundo a travessia desde a

tradiccedilatildeo ndash a situaccedilatildeo do heroacutei homeacuterico Odisseu focalizada no primeiro tempo do

texto ndash ateacute a contemporaneidade em que o agora renomeado Ulisses (tambeacutem evocador

do anti-heroacutei criado parodicamente por James Joyce um paradigma do homem na

cidade contemporacircnea ou seja um Ulisses da banalidade do mundo como diria

Lukaacutecz abandonado pelos deuses) transforma-se num factotum Transmutaccedilatildeo

confronto passagem viagem ousadia no tracircnsito e na superaccedilatildeo de limites a jornada

de Haroldo em toda a sua obra eacute emblematicamente representada por Finismundo

talvez seu poema maacuteximo nele o poeta chega ao cume de seu processo interespaccedilos

navega destemida e firmemente no mar encarnado avermelhado multitudinoso cor de

vinho (tema de uma passagem de Galaacutexias) com a sensibilidade de quem sorve o

aroma desfruta das notas do paladar e deglute antropofagicamente toda a

humanidade e sua histoacuteria criadora reinventando-a

Terminemos com uma breve menccedilatildeo a uma iniciativa ndash emblemaacutetica ndash do poeta-

criacutetico-transcriador movida pela circunstacircncia em 1991 apoacutes diversos anos de

colaboraccedilatildeo com o livreto (por vezes livro) feito anualmente para o Bloomsday (data

em que se celebra internacionalmente a obra de James Joyce) paulistano Haroldo

propocircs e organizou o volume Ulisses a travessia textual122

que traccedilava por meio de

traduccedilotildees suas e alheias um percurso iniciado com o proacuteprio Odisseu homeacuterico (a

Odisseia aparece representada por fragmento do canto VI em que Nausiacutecaa depara-se

com o heroacutei naacuteufrago nu sujo de marugem salina) e que prosseguia com o tema

odisseico relido e recriado por Jorge Guilleacuten e por Derek Walcott aleacutem de ligar-se

entre outras referecircncias multiliacutengues agrave versatildeo em grego moderno do texto homeacuterico

122 Satildeo Paulo Olavobraacutes ABEI 2001

120

(realizada por Kazantzaacutekis) e agrave paroacutedica reimaginaccedilatildeo do episoacutedio em Ulysses de

Joyce ligava-se ainda ao poema evocador do retorno do heroacutei a sua terra Iacutetaca de

Kavaacutefis O sintagma travessia textual representa bem o mar siacutegnico que eacute objeto do

poeta a assumir em sua autocircnoma materialidade sonora e visual uma realidade

equivalente ndash espelho com vida proacutepria e independente tramado com seus proacuteprios

constituintes geradores de significaccedilatildeo ndash agrave dos elementos da vida e da histoacuteria

transitadas transpostas transcriadas Mar em que se viaja sempre com o olhar largo

extensivo da passagem

Complemente-se a apresentaccedilatildeo da obra de Haroldo de Campos com citaccedilotildees

que a discutem Sobre a Iliacuteada e a traduccedilatildeo do poema realizada por Campos foco de

interesse deste estudo diz Trajano Vieira

[] a linguagem da Iliacuteada eacute elaboradiacutessima ao contraacuterio do que ateacute pouco tempo

atraacutes entendiam alguns comentadores [] Se eacute verdade que a Iliacuteada apresenta

caracteriacutesticas formais que indicam sua natureza oral ndash retomada de expressotildees

fixas ao longo do texto repeticcedilatildeo de cenas tiacutepicas predomiacutenio da sintaxe parataacutetica

ndash isso natildeo implica que no plano esteacutetico sua linguagem seja simples ou despojada

[]

Desconheccedilo outra traduccedilatildeo tatildeo fiel agrave complexidade formal da Iliacuteada quanto esta

[]123

A fim de introduzir jaacute a referecircncia ao metro adotado por Campos em sua

recriaccedilatildeo da Iliacuteada visando ao dado comparativo em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees jaacute referidas e

agraves posteriores discussotildees sobre o tema cite-se o proacuteprio tradutor

De minha parte em lugar do decassiacutelabo de molde camoniano que mais de uma

vez obrigou Odorico a prodiacutegios de compressatildeo semacircntica e contorccedilatildeo sintaacutetica

recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na sexta siacutelaba ou mais raramente na

quarta oitava e deacutecima-segunda) Evitei assim o risco do prosaiacutesmo decorrente

123 VIEIRA T ldquoIntroduccedilatildeordquo In CAMPOS H Odisseia de Homero Satildeo Paulo Mandarim 2002 pp 20-

21

121

de um verso mais alongado e sua contrapartida a constriccedilatildeo derivada de um metro

demasiadamente conciso []124

Em nota referente agrave sua opccedilatildeo pelo metro dodecassiacutelabo Campos cita opiniatildeo de

Said Ali e o jaacute mencionado comentaacuterio de Silveira Bueno

M Said Ali estudando o hexacircmetro latino refere que a ldquoideia primitiva de

construir verso de seis peacutes uniformemente dactiacutelicosrdquo teve de ser modificada na

praacutetica jaacute que ldquoo predomiacutenio dos hexacircmetros de 15 e 14 siacutelabas se observa em

qualquer poeta latinordquo (Acentuaccedilatildeo e versificaccedilatildeo latinas Rio de Janeiro

Organizaccedilatildeo Simotildees 1957) Silveira Bueno por sua vez considera o

dodecassiacutelabo (alexandrino) ldquoo uacutenico metro moderno que se aproxima do

hexacircmetro dactiacutelicordquo (prefaacutecio de 1956 da ediccedilatildeo da Iliacuteada traduzida por M

Odorico Mendes)

124 CAMPOS H VIEIRA T ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo In Mecircnis ndash A ira de Aquiles Satildeo Paulo Nova

Alexandria 1994 pp 13-14

122

B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil

um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais

Se temos do seacuteculo XIX a teorizaccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes proveniente

das notas a suas traduccedilotildees da eacutepica e indiretamente da proacutepria metodologia tradutoacuteria

por ele empregada no seacuteculo XX alguns poetas se destacam quanto agrave produccedilatildeo de um

pensamento sobre traduccedilatildeo entre eles inegavelmente Haroldo de Campos ocupa

posiccedilatildeo mais elevada como se tem visto e seraacute reiterado adiante seu irmatildeo Augusto de

Campos referecircncia quase unacircnime pela excelecircncia de suas traduccedilotildees natildeo se dedicou

tanto quanto Haroldo a teorizar o que denomina ldquotraduccedilatildeo-arterdquo em conceito

semelhante ao de ldquotranscriaccedilatildeordquo outros seriam dignos de nota mas nos alongariacuteamos

para aleacutem dos destaques centrais Haacute no entanto um trabalho a ser citado e discutido

como pioneiro na proposiccedilatildeo de conceitos que se firmaram posteriormente ndash como o de

ldquorecriaccedilatildeordquo palavra primeiramente usada por ele ndash entre noacutes refiro-me ao poeta

Guilherme de Almeida cujos textos de apresentaccedilatildeo e notas agraves ediccedilotildees de poesia

francesa por ele recriada se mostram precursores de ideias hoje bem conhecidas em sua

eacutepoca bem mais do que hoje ldquoafastar-se da letrardquo para preservar a intenccedilatildeo de recriaccedilatildeo

de relaccedilotildees sonoras ou riacutetmicas havia de ser um ato bem justificado125

Em ensaio de 2011 denominado ldquoGuilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como

formardquo126

Aacutelvaro Faleiros (motivado por artigo de Juacutelio Castantildeon Guimaratildees127

)

destaca ldquoo papel central de Guilherme de Almeida na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo da traduccedilatildeo como

formardquo (2012 2) em nosso paiacutes tradiccedilatildeo essa que teria sucedido aquela da traduccedilatildeo praticada

conforme o paradigma da aemulatio que seria a ldquoforma predominante de se tratar a traduccedilatildeo de

poemas desde o seacuteculo XVII [] ateacute o iniacutecio do seacuteculo XXrdquo (ib) assim entendidas as

traduccedilotildees ldquomuitas vezes livremente modificadasrdquo eram correntemente incluiacutedas ldquonos livros dos

proacuteprios autores [] pois o que importava era a qualidade e o alcance da emulaccedilatildeordquo (p 3) Este

125 A fim de registrar a ocorrecircncia desse importante capiacutetulo da teoria da traduccedilatildeo poeacutetica em nosso paiacutes

(antecedendo a exposiccedilatildeo da teoria da transcriaccedilatildeo de H de Campos) assinalo a existecircncia de trecircs artigos

meus escritos para acompanharem reediccedilotildees da obra tradutoacuteria de Guilherme que ademais realizou

diretamente do grego uma traduccedilatildeo da Antiacutegone de Soacutefocles considerada modelar por Campos Os

artigos satildeo prefaacutecios e posfaacutecio dos livros Verlaine Paul Trad G de Almeida A voz dos botequins e

outros poemas Satildeo Paulo Hedra 2009 Almeida G de Flores das ldquoFlores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 Almeida G de Poetas de Franccedila Satildeo Paulo 2011 126 FALEIROS A Guilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como forma Plaquete Satildeo Paulo Casa

Guilherme de Almeida 2012 127 GUIMARAtildeES J C ldquoPresenccedila de Mallarmeacute no Brasilrdquo In GUIMARAtildeES J C Reescritas e esboccedilos

Rio de Janeiro Topbooks 2010 pp 9-53

123

seria o caso de traduccedilotildees como as de Batista Cepelos (c 1900) e de Alphonsus de Guimaratildees

(realizadas no iniacutecio do seacuteculo XX) de poemas do francecircs Steacutephane Mallarmeacute que teriam ldquouma

funccedilatildeo de imitaccedilatildeo ou de paraacutefraserdquo (p 4) Faleiros desenvolve a ideia apresentada por

Guimaratildees de ser Guilherme de Almeida ldquoum dos primeiros a operar de modo mais completo

uma lsquomudanccedila da noccedilatildeo de traduccedilatildeorsquordquo (ib) reconhecendo na formulaccedilatildeo do poeta ldquoao longo

das deacutecadas de trinta e quarenta do seacuteculo XX parte dos princiacutepios que regem as concepccedilotildees

dominantes do traduzir poemas hoje no Brasilrdquo (ib) Estas seriam marcadas pela ldquotraduccedilatildeo

como formardquo que teria o propoacutesito de ldquoreproduzir no poema de chegada formas homoacutelogas agraves

do poema de partidardquo sendo constantes ldquoa retomada de padrotildees meacutetricos e riacutemicosrdquo e a

ldquopreocupaccedilatildeo com a retoacuterica e a imageacutetica do texto de partidardquo (p 2)

De minha parte destacaria um aspecto importante nas concepccedilotildees sobre

traduccedilatildeo (ou ldquore-produccedilatildeordquo ou ldquotransfusatildeordquo) de Guilherme de Almeida este expressava

que no seu ldquoprocesso de re-criaccedilatildeo natildeo haacute propriamente luta de poeta contra poeta de

um contra outro idioma e sim uma automaacutetica justaposiccedilatildeo passiva conformaccedilatildeo

espeacutecie de entente cordiale de taacutecita e reciacuteproca sujeiccedilatildeordquo128

Ainda que se afirme uma

ldquopassiva conformaccedilatildeordquo esta eacute anulada pela colocaccedilatildeo final se haacute ldquoreciacuteproca sujeiccedilatildeordquo

natildeo haacute sujeiccedilatildeo unilateral ou seja natildeo haacute relaccedilatildeo de subserviecircncia Este entendimento que

prevecirc o diaacutelogo da traduccedilatildeo com o original e portanto a relativa autonomia autoral do poema

recriado estaraacute em conformidade com a mais atual praacutetica tradutoacuteria de poesia e com a proacutepria

conceituaccedilatildeo buscada por este trabalho acerca da traduccedilatildeo poeacutetica e da anaacutelise de poemas

traduzidos como se poderaacute verificar

128 ALMEIDA G de Flores das ldquoflores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 p 97

124

C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos

a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica

O poeta Haroldo de Campos eacute um caso raro de fertilidade natildeo soacute na produccedilatildeo de

criaccedilotildees originais e de traduccedilotildees referenciais em liacutengua portuguesa como tambeacutem de

escritos criacuteticos e teoacutericos sobre poesia e sobre traduccedilatildeo Sem duacutevida entre os poetas

que o Brasil jaacute teve eacute o exemplo maacuteximo de pensamento sobre traduccedilatildeo poeacutetica tendo

publicado um grande nuacutemero de textos que se somam num conjunto dos mais densos e

coerentes acerca do assunto Aleacutem dos artigos incluiacutedos em livros haacute outros que

apareceram apenas em perioacutedicos129

Dos escritos teoacutericos de Campos acerca da traduccedilatildeo de poesia emerge

centralmente um conceito que pode orientar a praacutetica do traduzir e assim considero daacute

conta de coadunar visotildees por vezes tomadas como diacutespares ou mesmo antagocircnicas por

quem as confronta O conceito a que me refiro eacute o do isomorfismo ao qual se dedica

esta breve apresentaccedilatildeo

Coerentemente o pensamento de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo130

considera como um de seus princiacutepios fundamentais a definiccedilatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem de Roman Jakobson ndash funccedilatildeo dominante da ldquoarte verbalrdquo (1973 128) ndash que

implica o ldquotratamento da palavra como objetordquo (Campos H 1976 22) e por

conseguinte o fato de que a palavra deixa de ser um mero mesma (coisificando-se

portanto) e a suas relaccedilotildees com outras palavras criando uma instrumento de

transmissatildeo de um conteuacutedo para chamar a atenccedilatildeo a si ldquoteia de significantesrdquo

caracteriacutestica do fenocircmeno poeacutetico Na linha de pensamento jakobsiana tal teia seria

irreproduziacutevel sendo possiacutevel apenas a ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (1973 72) Esta

transposiccedilatildeo se daria necessariamente conforme fica impliacutecito em tal concepccedilatildeo pela

via do ldquoprinciacutepio construtivo do textordquo (p 72) que assim atentaria agrave palavra e a suas

relaccedilotildees com outras do ponto de vista de sua existecircncia como objeto a qual

caracterizaria tais relaccedilotildees por uma dimensatildeo significante ou seja de forma

Outra ideia que fundamenta a concepccedilatildeo de Haroldo sobre traduccedilatildeo eacute a

definiccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max Bense caracterizada por elementos de

ldquoimprevisibilidaderdquo ldquosurpresardquo ldquoimprobabilidade da ordenaccedilatildeo de siacutembolosrdquo e

129 Tais artigos integraratildeo o volume a ser lanccedilado denominado Transcriaccedilatildeo 130 Seratildeo referidos e reiterados complementariamente de forma sucinta e um tanto diversa nesta parte do

trabalho alguns conceitos antes apresentados

125

marcada pela fragilidade uma vez que eacute ldquoinseparaacutevel de sua realizaccedilatildeordquo coincidente

com sua totalidade Daiacute decorreria igualmente no caso da informaccedilatildeo esteacutetica ldquopelo

menos em princiacutepio sua intraduzibilidaderdquo (1976 22-3) Como diz Haroldo ldquoadmitida

a tese da impossibilidade em princiacutepio da traduccedilatildeo de textos criativos parece-nos que

esta engendra o corolaacuterio da possibilidade tambeacutem em princiacutepio da recriaccedilatildeo desses

textosrdquo (p 24 grifo meu) Assim ldquoNa traduccedilatildeo de um poema o essencial natildeo eacute a

reconstituiccedilatildeo da mensagem [ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquoconteuacutedordquo] mas a

reconstituiccedilatildeo do sistema de signos em que estaacute incorporada esta mensagem a

reconstituiccedilatildeo portanto da informaccedilatildeo esteacutetica e natildeo ldquoda informaccedilatildeo meramente

semacircnticardquo (1975 100) Priorizar o significado a informaccedilatildeo semacircntica seria ndash para

utilizarmos um conceito tomado da quiacutemica ndash realizar uma provaacutevel alotropia

(fenocircmeno pelo qual pode a mesma substacircncia apresentar-se sob variados aspectos e

com propriedades diferentes) convertendo por exemplo um diamante em grafite ou

em carvatildeo Embora de nossa visatildeo dependa o brilho da pedra cristalina algo em sua

estrutura a distingue do carvatildeo ainda que sejam ambos estados alotroacutepicos do

carbono131

Como nos revela a poeta curitibana Helena Kolody (em seu poema

ldquoGestaccedilatildeordquo) ldquoDo longo sono secreto na entranha escura da terra o carbono acorda

diamanterdquo (1985 39)

Observe-se que a visatildeo de uma informaccedilatildeo esteacutetica ndash que coincide com a proacutepria

totalidade do poema implicando que qualquer mudanccedila de seus constituintes

transforma (ou ldquoperturbardquo) tal informaccedilatildeo ndash ou de um ldquoprinciacutepio construtivordquo que

privilegia a referecircncia ao significante natildeo acarreta necessariamente o conceito de que o

texto seja ldquoreceptaacuteculo de significados estaacuteveisrdquo conceito este passiacutevel de ser

depreendido da linguiacutestica estrutural ao qual se opotildee uma oacuteptica desconstrucionista De

meu ponto de vista a recriaccedilatildeo esteacutetica de um original natildeo exclui nem a mutabilidade

do signo (e particularmente de seu significado) nem a participaccedilatildeo da leitura como um

ldquoato de interpretaccedilatildeordquo que delineia os significados postuladas pela referida oacuteptica

Na concepccedilatildeo de Haroldo de Campos a ldquo[hellip] traduccedilatildeo de textos criativos seraacute

sempre recriaccedilatildeo ou criaccedilatildeo paralela autocircnoma poreacutem reciacuteproca [hellip] Numa traduccedilatildeo

dessa natureza natildeo se traduz apenas o significado traduz-se o proacuteprio signo ou seja

sua fisicalidade sua materialidade mesma (propriedades sonoras de imageacutetica visual

131 Valho-me de um recurso metafoacuterico para nova referecircncia agrave questatildeo da ldquomaterialidade siacutegnicardquo

126

enfim tudo aquilo que forma [] a iconicidade do signo esteacutetico [hellip] O significado o

paracircmetro semacircntico seraacute apenas e tatildeo-somente a baliza demarcatoacuteria do lugar da

empresa recriadora Estaacute-se pois no avesso da chamada traduccedilatildeo literalrdquo (1976 24) O

autor em seu artigo ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo refere-se agrave ldquoteoria do traduzirrdquo

de Walter Benjamin ndash outro dos fundamentos essenciais de sua concepccedilatildeo relativa agrave

traduccedilatildeo de poesia e agrave sua proacutepria atividade como tradutor ndash como um pensamento que

ldquoinverte a relaccedilatildeo de servitude que via de regra afeta as concepccedilotildees ingecircnuas da

traduccedilatildeo como tributo de fidelidade (a chamada traduccedilatildeo literal ao sentido ou

simplesmente traduccedilatildeo lsquoservilrsquo) concepccedilotildees segundo as quais a traduccedilatildeo estaacute

ancilarmente encadeada agrave transmissatildeo do conteuacutedo do originalrdquo (1981 179)

Enfatizando tratar-se ldquodo caso de traduccedilatildeo de mensagens esteacuteticas obras de arte

verbalrdquo ou seja afirmando a especificidade desse tipo de obra e consequentemente a

singularidade de uma abordagem tradutoacuteria a ela dirigida Haroldo considera que ldquona

perspectiva benjaminiana da lsquoliacutengua purarsquo o original eacute quem serve de certo modo agrave

traduccedilatildeo no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteuacutedo inessencial

da mensagem [hellip] e permite dedicar-se [hellip] [agrave] lsquofidelidade agrave reproduccedilatildeo da formarsquo que

arruiacutena aquela outra [hellip] estigmatizada por W B como o traccedilo distintivo da maacute

traduccedilatildeo lsquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrsquo rdquo Nesse sentido Haroldo

postula que a teoria benjaminiana eacute ldquoorientada pelo lema rebelionaacuteriordquo de uma

ldquotraduccedilatildeo luciferinardquo (p 180)

Podemos ver em tal concepccedilatildeo de recriaccedilatildeo que toma como referecircncia a

materialidade do signo linguiacutestico se natildeo um questionamento expliacutecito aos ditos

ldquosignificados estaacuteveisrdquo uma impliacutecita visatildeo de sua efemeridade ligada agrave secundaacuteria

importacircncia para o poema e consequentemente para a traduccedilatildeo da obra de arte verbal

Natildeo seria absurdo vincular o que Benjamin considera ldquoconteuacutedo inessencialrdquo com uma

qualidade que poderia ser uma das justificativas de sua inessencialidade seu aspecto

instaacutevel ou mutaacutevel Campos entende a traduccedilatildeo do ldquomodo de intencionalidaderdquo (Art

des Meinens) benjaminiano como a traduccedilatildeo da forma ldquouma forma significante

portanto intracoacutedigo semioacuteticordquo (ib) Para ele isso ldquoquer dizer em termos

operacionais de uma pragmaacutetica do traduzir re-correr o percurso configurador da

funccedilatildeo poeacutetica reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o enquanto

dispositivo de engendramento textual na liacutengua do tradutor para chegar ao poema

127

transcriado como re-projeto isomoacuterfico do poema originaacuteriordquo (p 181 grifo meu)

Segundo ele o ldquotradutor de poesia eacute um coreoacutegrafo da danccedila interna das liacutenguas tendo

o sentido [o ldquoconteuacutedordquo][hellip] [apenas] como bastidor semacircntico ou cenaacuterio

pluridesdobraacutevel dessa coreografia moacutevelrdquo (p 181 grifo meu) Fica creio evidente

neste ponto a natildeo-incompatibilidade entre uma visatildeo do ato de traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo

esteacutetica e uma oacuteptica ldquopoacutes-estruturalistardquo que preconize a inexistecircncia de significados

estaacuteveis originais Sobre a ldquocoreografia moacutevelrdquo que caracterizaria a traduccedilatildeo de poesia

Haroldo afirma tratar-se de ldquopulsatildeo dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea

do texto original jaacute preacute-formado numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo (p 181 grifo meu) Natildeo seria cabiacutevel vermos a afirmada

dissolvecircncia da ldquodiamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto originalrdquo ndash portanto uma

transformaccedilatildeo de uma estrutura que para tanto natildeo pode ser uma meta fixa a ser

atingida ndash como uma metaacutefora da inexistecircncia do original como objeto estaacutevel Ideia

compatiacutevel com o que o criador do desconstrucionismo Jacques Derrida enfatiza em

seu ensaio ldquoTorres de Babelrdquo dedicado a ldquoA tarefa do tradutorrdquo de W Benjamin ldquoO

original se daacute modificando-se esse dom natildeo eacute o de um objeto dado ele vive e sobrevive

em mutaccedilatildeo lsquoPois na sobrevida que natildeo mereceria esse nome se ela natildeo fosse mutaccedilatildeo

e renovaccedilatildeo do vivo o original se modifica Mesmo para as palavras modificadas existe

ainda uma poacutes-maturaccedilatildeorsquo [citaccedilatildeo de W B]rdquo (2002 38)

Valendo-se de noccedilotildees da cristalografia (ldquoCiecircncia da mateacuteria cristalizada das leis

que regem sua formaccedilatildeo de sua estrutura de suas propriedades geomeacutetricas fiacutesicas e

quiacutemicasrdquo) Campos propotildee como se mencionou o conceito de ldquoisomorfismordquo para a

designaccedilatildeo da operaccedilatildeo de traduzir poesia Para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra

liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a

da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo

diferentes enquanto linguagem mas como os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro

de um mesmo sistemardquo Segundo o Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa

ldquoisomorfismordquo pode ser definido como ldquofenocircmeno pelo qual duas ou mais substacircncias

de composiccedilatildeo quiacutemica diferente se apresentam com a mesma estrutura cristalinardquo

(2001 1656) conforme a Larousse satildeo isomorfas ldquoduas substacircncias quiacutemicas que

apresentam a mesma estrutura cristalinardquo sendo que tais substacircncias ldquogeralmente

possuem um grande parentesco de constituiccedilatildeo quiacutemica e tecircm a propriedade de poderem

substituir-se mutuamente na formaccedilatildeo de um mesmo cristal chamado lsquosoluccedilatildeo soacutelidarsquo rdquo

128

(p 3252) Substacircncias portanto diversas mas capazes de substituiccedilatildeo muacutetua por

analogia de estrutura

Em uma nota agrave ldquoNota de Haroldo de Campos agrave traduccedilatildeordquo do poema ldquoBlancordquo

de Octavio Paz o tradutor observa que jaacute procurara antes (no ensaio ldquoDa traduccedilatildeo

como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo escrito em 1962 e publicado originalmente em 1963)

ldquodefinir a traduccedilatildeo criativa (lsquorecriaccedilatildeorsquo lsquotranscriaccedilatildeorsquo) como uma praacutetica isomoacuterfica

(no sentido da cristalografia envolvendo a dialeacutetica do diferente e do mesmo) uma

praacutetica voltada para a iconicidade do signo para as qualidades materiais desterdquo (1986

89) E prossegue afirmando que mais tarde preferiria ldquousar o termo paramorfismo para

descrever a mesma operaccedilatildeo acentuando no vocaacutebulo (do sufixo grego paraacutendash lsquoao lado

dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquo) o aspecto diferencial dialoacutegico do processo

[]rdquo132

Referindo-se em sua ldquoNotardquo agrave traduccedilatildeo que realizara do poema de Paz

Haroldo frisa que ldquoos lsquodesviosrsquo semacircnticos ou sintaacuteticos no texto em portuguecircs

responderam a precisas opccedilotildees transformadoras de natureza lsquoparamoacuterficarsquo rdquo (p 89)

Como se pode constatar tais observaccedilotildees enfatizam o aspecto da transformaccedilatildeo

do original realizada pela praacutetica da traduccedilatildeo o tradutor vecirc como tarefa sua natildeo o

resgate de significados originais mas sim a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em outra liacutengua da

ldquoentretrama das figuras fonossemacircnticasrdquo (p 89) ou seja da teia de ldquosignificantesrdquo

cujas relaccedilotildees internas caracterizariam mais o poema do que seus ldquosignificadosrdquo natildeo

priorizados na abordagem tradutoacuteria Busca-se a criaccedilatildeo em outro idioma de obra

esteticamente anaacuteloga agrave original com todas as possibilidades de transformaccedilatildeo de seus

elementos sejam estes vistos como signos em sua integridade ou de maneira

dicotomicamente parcial como seu ldquoconteuacutedordquo ou seja seu valor semacircntico no caso

de ldquoBlancordquo palavras iguais em ambas as liacutenguas (inclusive em seus aspectos

denotativo e conotativo) podem ser e satildeo mudadas tendo-se em vista criteacuterios de ordem

esteacutetica

Tal empresa luciferina eacute caracteriacutestica do tradutor como recriador ou (como o

denomina Haroldo) do ldquotradutor usurpadorrdquo que ldquopassa por seu turno a ameaccedilar o

original com a ruiacutena da origemrdquo sendo esta para ele ldquoa uacuteltima lsquohybrisrsquo do tradutor

luciferino [a palavra grega hybrisdiga-se refere-se a um orgulho desafiador que podia

132 A nota em questatildeo reproduz o paraacutegrafo inicial do jaacute referido artigo ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo

(1983)

129

provocar a necircmesis ou seja a indignaccedilatildeo dos deuses] transformar por um aacutetimo o

original na traduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo Reencenar a origem e a originalidade como

plagiotropia como lsquomovimento infinito da diferenccedilarsquo (Derrida) e a miacutemesis como

produccedilatildeo dessa diferenccedilardquo (1984 7 grifo meu)

A recriaccedilatildeo de um poema natildeo soacute natildeo seria por tais caminhos uma versatildeo fiel do

ldquoconteuacutedordquo do original como tambeacutem natildeo seria fiel nem agrave liacutengua de origem nem agrave

liacutengua de chegada em termos dos limites de uma ou de outra tanto relativamente a seus

ldquosignificadosrdquo como a sua sintaxe Assim ligando-se a uma tradiccedilatildeo do pensamento

romacircntico alematildeo que inclui as ideias de Schleiermacher de Rudolf Pannwitz e do

proacuteprio Benjamin a atividade da traduccedilatildeo poeacutetica poderia envolver a ampliaccedilatildeo dos

limites das liacutenguas como agente transformador de ambas as envolvidas no processo

Para Haroldo de Campos na traduccedilatildeo de poesia ldquocomo que se desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeo aquela fragiacutelima beleza aparentemente intangiacutevel que

nos oferece o produto acabado numa liacutengua estrangeira E que no entanto se revela

suscetiacutevel de uma vivissecccedilatildeo implacaacutevel que lhe revolve as entranhas para trazecirc-la

novamente agrave luz num corpo linguiacutestico diverso Por isso mesmo a traduccedilatildeo eacute criacuteticardquo

(1976 31)

Referindo-se ao procedimento que considera adequado agrave tarefa de traduccedilatildeo

Campos assim sintetiza suas etapas

Pedagogicamente o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor-poeta) seria o

seguinte descobrir (desocultar) [] o coacutedigo de ldquoformas significantesrdquo [pelo qual]

o poema representa a mensagem [] (qual a equaccedilatildeo de equivalecircncia de

comparaccedilatildeo eou contraste de constituintes levada a efeito pelo poeta para

construir o seu sintagma) em seguida reequacionar os constituintes assim

identificados de acordo com criteacuterios de relevacircncia estabelecidos ldquoin casurdquo e

regidos em princiacutepio por um isoformismo icocircnico que produza o mesmo sob a

espeacutecie da diferenccedila na liacutengua do tradutor (paramorfismo com a ideia de

paralelismo como em paraacutefrase em paroacutedia ou em paragrama seria um termo

mais preciso afastando a sugestatildeo de ldquoigualdaderdquo na transformaccedilatildeo contida no

130

prefixo grego ldquoiso-rdquo) Os mecanismos da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo instruiriam essa

ldquooperaccedilatildeo metalinguiacutesticardquo por assim dizer de segundo grau133

Numa visatildeo que considere a iconicidade do signo esteacutetico e portanto a

existecircncia de uma dimensatildeo fiacutesica ou material do signo o poema tambeacutem resulta da

ldquoleiturardquo de seu proacuteprio criador A ldquoleiturardquo do autor ndash concomitante a sua criaccedilatildeo ndash e a

leitura criacutetica satildeo (proponho que se considere este horizonte) poacutelos de uma mesma

realidade indissociaacutevel que assume diferentes configuraccedilotildees conforme as

peculiaridades com que se estabelecem

Vale enfatizar que o conceito de isomorfismo envolvido no processo de traduccedilatildeo

de um poema ndash o ldquoredesenhorsquo dele em outra liacutengua ndash inclui a criaccedilatildeo e a leitura tanto

do original (que se recria ao ser desvendado por vivissecccedilatildeo processo que envolve ndash e

aiacute estaacute o plano do horizonte a que me referi ndash natildeo soacute as descobertas de seus elementos

constituintes mas a criaccedilatildeo destes na medida em que somente se reconhece o que se

pode ver e o que se vecirc inclui a determinaccedilatildeo ndash limite seletividade e mesmo projeccedilatildeo ndash

de quem vecirc) como da traduccedilatildeo que por ser tambeacutem criada pode converter-se em

ldquooriginalrdquo transformando a obra anterior em sua ldquotraduccedilatildeordquo e portanto revelando sua

potencialidade de mutaccedilatildeo e seu aspecto de incompletude uma vez que o movimento a

transformaccedilatildeo funcionaraacute como acreacutescimo uma nova dimensatildeo de existecircncia ndash no

processo ambas as criaccedilotildees se transformam pela ldquoleiturardquo reciacuteproca que se fazem

(Abra-se aqui um parecircntese complementar a fim de se fazer referecircncia ao

conhecido conceito relativo agrave abordagem do texto literaacuterio a partir de uma perspectiva

funcionalista representado pela ideia de contraposiccedilatildeo entre o ldquocristalrdquo e a ldquochamardquo134

Em vez de se entender o ldquocristalrdquo tal como se pode fazecirc-lo a partir das afirmaccedilotildees de

Leacutevi-Strauss relativas agrave ceacutelebre anaacutelise que empreendera de ldquoLes chatsrdquo de Baudelaire

em parceria com Jakobson ndash segundo as quais a obra seria ldquoum objeto que uma vez

criado pelo autor possuiacutea a rigidez por assim dizer do cristalrdquo e a anaacutelise consistia em

explicitar ldquosuas propriedadesrdquo (Bellei 1986 188) ndash de que ele seja um ldquoobjeto isolado

do espectadorrdquo ldquocontrolado em sua essecircncia e portanto em todas as suas

133 CAMPOS H de ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo In OLIVEIRA Ana

Claacuteudia SANTAELLA Lucia (org) Semioacutetica da literatura Satildeo Paulo Educ 1987 pp 53-74

(Cadernos PUC vol 28) 134 Tal oposiccedilatildeo de teor metafoacuterico entre o cristal e a chama encontra-se em fontes tanto literaacuterias como

teoacuterico-criacuteticas Refiro-me aqui no entanto acerca do uso conceitual de tal metaacutefora agrave obra O cristal em

chamas de Seacutergio Bellei (1986)

131

manifestaccedilotildeesrdquo (ib) (inclusive deduz-se em seu plano de conteuacutedo ou seja em seus

ldquosignificadosrdquo) pode-se entendecirc-lo como estrutura de ldquosignificantesrdquo (ligados a

significados instaacuteveis) de relaccedilotildees sonoras ou imageacuteticas que seratildeo desveladas a partir

da leitura e mesmo modificadas por esta produzindo-se o sentido por meio das relaccedilotildees

estabelecidas entre o observador e o imposto pela leitura o resultado eacute a recriaccedilatildeo do

sentido que combina os aspectos estruturais identificados e os ldquosignificadosrdquo como satildeo

compreendidos Tal ideia seria compatiacutevel com aquela haroldiana de ldquocristalografia em

reebuliccedilatildeo de lavardquo o cristal natildeo eacute fixo e imutaacutevel mas passiacutevel de refluidificaccedilatildeo

(Neste sentido a tiacutetulo de curiosidade mencione-se uma recente experiecircncia cientiacutefica

que teria demonstrado que no interior do cristal em nanoescala materiais magneacuteticos

emitem uma espeacutecie de ldquochama magneacuteticardquo ldquoum processo muito semelhante ao

produzido por uma substacircncia inflamaacutevel pegando fogordquo135

Tal fato nos permitiria uma

nova metaacutefora a da ldquochama no cristalrdquo aludindo-se agrave ideia de que um texto

caracterizado pela informaccedilatildeo esteacutetica comparado a um cristal abrigaria em si mesmo

a chama de sua mutabilidade ou fluididade))

C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo

Poesia vem do substantivo grego poiacuteesis ligado ao verbo poieacuteo que significa

fazer produzir fabricar criar Assim transcriar um poema eacute fazecirc-lo de novo Mas

tambeacutem seraacute fazer de novo o novo renovar o poema de origem seguindo o lema make

it new proposto pelo poeta e tradutor norte-americano Ezra Pound Ao transcriar um

poema segundo a concepccedilatildeo de Haroldo de Campos seraacute preciso pensar em uma vez

conhecida sua ldquoformardquo fazer um novo poema inserido em novo lugar e novo tempo em

vez de se fazer uma ldquoarqueologiardquo de sua funccedilatildeo social cultural ou histoacuterica136

Assim

ao traduzir um haicai (modelo claacutessico japonecircs de poema breve) de Bashocirc em vez de

ser apenas ldquofielrdquo a seu conteuacutedo ou mesmo a certos aspectos ldquosociaisrdquo da praacutetica dessa

poesia na eacutepoca Haroldo procura recriar em portuguecircs um poema dotado de

visualidade (a escrita ideogracircmica eacute visual por natureza) e capaz de re-produzir a

135Referecircncia a uma experiecircncia realizada por Yoko Suzuki da Universidade City College inspirada no

trabalho de Eugene Chudnovsky (Lehman College) que em conjunto com Dmitry Garanin elaborou

uma teoria segundo a qual as chamas magneacuteticas satildeo possiacuteveis 136 A questatildeo se esclarece por meio de conceituaccedilatildeo de Campos baseada em proposiccedilotildees de Wolfgang

Iser o tema seraacute tratado em texto complementar a este toacutepico anunciado e incluiacutedo adiante

132

concisatildeo do original137

valendo-se por exemplo da criaccedilatildeo de uma palavra nova uma

ldquopalavra-valiserdquo agrave maneira de Lewis Carroll ou James Joyce o verbo saltombar

corresponderia ao verbo tobikomu composto de tobu saltar mais komeru entrar

furu ike ya kawasu tobikomu mizu no oto

o velho tanque

ratilde saltacute

tomba

rumor de aacutegua

Pode-se causar um certo ldquoestranhamentordquo no leitor deste novo tempo e espaccedilo

embora o poema a ele se dirija renovadoramente haacute uma tendecircncia na transcriaccedilatildeo de

ldquolevar o leitor (de uma liacutengua) ao autor (de outra)rdquo privilegiando um dos dois caminhos

identificados pelo pensador romacircntico alematildeo Schleiermacher para a traduccedilatildeo (o outro

seria ldquolevar o autor ao leitorrdquo)

Renomeaccedilatildeo ldquoadacircmicardquo

Para citar apenas mais um exemplo ligado agrave atividade recriadora (ou

ldquotranscriadorardquo como prefere o tradutor) de Haroldo de Campos capaz de ilustrar

(ainda que de forma limitada a um vocaacutebulo) o processo em que ldquose desmonta e se

remonta a maacutequina da criaccedilatildeordquo tomemos um elemento de sua traduccedilatildeo do Berersquoshit o

Gecircnese No iniacutecio do texto aparece a expressatildeo ldquofogoaacuteguardquo correspondente agrave palavra

hebraica shamaacuteyim normalmente traduzida por ldquoceacuteurdquo Comenta a respeito do motivo

de sua opccedilatildeo o tradutor ldquo[hellip] HM [Henri Meschonic] sugere que na palavra hebraica

pode-se entrever um composto de rsquoesh (lsquofogorsquo) e maacuteyim (lsquoaacuteguarsquo) embora ele proacuteprio

natildeo tire partido desse verdadeiro lsquopictogramarsquo etimoloacutegico Dentro da ideia de uma

traduccedilatildeo lsquolaicarsquo pareceu-me que a imagem coacutesmica de um magma de fogo e aacutegua

previne a projeccedilatildeo neste ponto de um lsquoceacuteursquo abstrato jaacute conceptualizado Tanto a

137 No mesmo complemento a este texto o exemplo da transcriaccedilatildeo do haicai ao portuguecircs eacute retomado

como paradigma explicitador de procedimentos tradutoacuterios de Campos

133

componente iacutegnea como a liacutequida pertencem por outro lado agrave imaginaccedilatildeo biacuteblica de

um cosmo supraterrestrerdquo (1993 27)

Ao usar o composto ldquofogoaacuteguardquo Haroldo fornece metaforicamente um

correspondente ldquoconcretordquo (feito de dois elementos) ao ldquoabstratordquo ldquoceacuteurdquo fundamentado

numa hipoacutetese de constituiccedilatildeo etimoloacutegica que natildeo soacute alarga ndash realizando o proposto

pelos teoacutericos do romantismo alematildeo ndash os limites de nossa liacutengua causando-lhe

estranheza ao incorporar um novo constructo vocabular cuja dimensatildeo de materialidade

aponta para um pictograma mas tambeacutem modifica o original pela leitura de seu

elemento de forma a desvesti-lo de sua conceptualizaccedilatildeo prosaica e normalizadora

chamando a atenccedilatildeo para sua proacutepria composiccedilatildeo e portanto para o aspecto de sua

fisicalidade ldquoiconicizanterdquo destituindo-a assim de sua dimensatildeo meramente simboacutelica

(para referir-me ao conceito de ldquosiacutembolordquo de Charles S Peirce)

De forma anaacuteloga em suas traduccedilotildees da eacutepica grega Haroldo de Campos vale-se

frequentemente de compostos inusitados em nossa liacutengua criados agrave semelhanccedila das

composiccedilotildees vocabulares do grego Para que se observe o procedimento ldquoisordquo ou ldquoparardquo

-moacuterfico de Haroldo em relaccedilatildeo agrave eacutepica grega veja-se a parte inicial do item ldquoardquo do

terceiro capiacutetulo deste trabalho

C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos

De difiacutecil consenso interpretativo o ceacutelebre ensaio de Walter Benjamin sobre

traduccedilatildeo mereceu inuacutemeras anaacutelises e interpretaccedilotildees lembrem-se por exemplo o texto

de Paul de Man Sobre A Tarefa do Tradutor de Walter Benjamin138

e o de Jacques

Derrida (Torres de Babel) Haroldo de Campos faz do texto de Benjamin uma leitura

operacionalizadora que extrai dele apesar de suas ambiguidades e contradiccedilotildees e das

diferentes interpretaccedilotildees de sua obra (por vezes atribuiacuteda ao proacuteprio caraacuteter

contraditoacuterio do conceito de origem em ldquoA tarefardquo) liccedilotildees indicadoras de aspectos da

praacutetica da traduccedilatildeo fazendo correlaccedilotildees entre as ideias de Benjamin (qualificadas por

Campos como uma metafiacutesica do traduzir) e as de Roman Jakobson (qualificadas como

uma fiacutesica do traduzir)

138In MAN Paul de A Resistecircncia agrave Teoria Lisboa Ediccedilotildees 70 1979

134

Natildeo caberaacute neste estudo a apresentaccedilatildeo das tatildeo estudadas ideias de Benjamin

(uma vez que natildeo as utilizaremos como referecircncia direta mas apenas como elemento

fundamental das reflexotildees de H de Campos sobre traduccedilatildeo) incluirei apenas um

comentaacuterio de Campos sobre as ideias do autor precedido de algumas anotaccedilotildees suas

datiloscritas e manuscritas sobre ldquoA tarefa do tradutorrdquo trata-se de uma espeacutecie de

ldquofichamentordquo do texto ndash em que se podem identificar conceitos-chaves do filoacutesofo

alematildeo acompanhados de sua denominaccedilatildeo em portuguecircs ndash a servir-lhe de fonte

interpretativa das proposiccedilotildees benjamianas139

Veja-se a seguir portanto uma das

paacuteginas de conjunto de anotaccedilotildees do autor na qual eacute explorada a ideia central em

Benjamin da existecircncia de uma ldquoiacutentima relaccedilatildeo das liacutenguas umas com as outrasrdquo

(ldquoreciprocamente parentesrdquo) uma ldquorelaccedilatildeo ocultardquo que a traduccedilatildeo natildeo alcanccedila

ldquoproduzirrdquo podendo contudo ldquore-presentaacute-lardquo

139 A paacutegina reproduzida integra um conjunto a ser incluiacutedo no mencionado volume Transcriaccedilatildeo a sair

135

Campos assim se refere a sua compreensatildeo das proposiccedilotildees benjaminianas em

seu artigo ldquoA liacutengua pura na teoria de W Benjaminrdquo140

140 O artigo foi publicado em Revista da USP no 33 marccedilo-maio de 1997 pp 161-170

136

Sob a roupagem rabiacutenica midrashista da irocircnica ldquometafiacutesicardquo do traduzir

benjaminiana um poeta-tradutor longamente experimentado em seu ofiacutecio pode

sem dificuldade depreender uma ldquofiacutesicardquo (uma praacutexis) tradutoacuteria efetivamente

materializaacutevel Essa ldquofiacutesicardquo ― como venho sustentando de haacute muito (10) ― eacute

possiacutevel reconhececirc-la in nuce nos concisos teoremas de Roman Jakobson sobre a

ldquoauto-referencialidade da funccedilatildeo poeacuteticardquo e sobre a traduccedilatildeo de poesia como

creative transposition (ldquotransposiccedilatildeo criativardquo) (11) A esses teoremas

fundamentais da poeacutetica linguiacutestica os ldquoteologemasrdquo benjaminianos conferem por

sua vez uma perspectiva de vertigem

Para converter a ldquometafiacutesicardquo benjaminiana e ldquofiacutesicardquo jakobsoniana basta repensar

em termos laicos a ldquoliacutengua purardquo como o ldquolugar semioacuteticordquo ― o espaccedilo operatoacuterio

― da ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (Undichtung ldquotranspoetizaccedilatildeordquo para W Benjamin

ldquotranscriaccedilatildeordquo na terminologia que venho propondo) O ldquomodo de significarrdquo (Art

des Meinens) ou de ldquointencionarrdquo (Art der Intentio) passa a corresponder a um

ldquomodo de formarrdquo o plano siacutegnico e sua ldquolibertaccedilatildeordquo ou ldquo remissatildeordquo (Erloesung

no vocabulaacuterio salviacutefico de Benjamin) seraacute agora entendida como a operaccedilatildeo

metalinguiacutestica que aplicada sobre o original ou texto de partida nele desvela o

percurso da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo Essa funccedilatildeo por sua natureza opera sobre a

ldquomaterialidaderdquo dos signos linguiacutesticos sobre ldquoformas significantesrdquo (fono-

prosoacutedicas e gramaticais) e natildeo primacialmente sobre o ldquoconteuacutedo

comunicacional a ldquomensagem referencialrdquo As ldquoformas significantesrdquo por sua

vez constituem um ldquointracoacutedigo semioacuteticordquo virtual (outro nome para a ldquoliacutengua

purardquo de Benjamin) exportaacutevel de liacutengua a liacutengua ex-traditaacutevel de uma idioma

para outro quando se trata de poesia O tradutor-transcriador como que

ldquodesbabeliza o stratum semioacutetico das liacutenguas interiorizado nos poemas (neles

ldquoexiladordquo ou ldquocativordquo nos termos de Benjamin) promovendo assim a

reconvergecircncia das divergecircncias a harmonizaccedilatildeo do ldquomodo de formarrdquo do poema

de partida com aquele reconfigurado no poema de chegada Essa reconstruccedilatildeo (que

sucede a ldquodesconstruccedilatildeordquo metalinguiacutestica de primeira instacircncia) daacute-se natildeo por

Abbildung (afiguraccedilatildeo imitativa coacutepia) mas por Anbildung (ldquofiguraccedilatildeo juntordquo

ldquoparafiguraccedilatildeo) comportando a transgressatildeo o ldquoestranhamentordquo a irrupccedilatildeo da

diferenccedila do mesmo

137

C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura

Em dois artigos seus de grande relevacircncia publicados em perioacutedicos (um deles

mais tarde integrou uma antologia de textos sobre traduccedilatildeo) ldquoTraduccedilatildeo ideologia e

histoacuteriardquo (1993) e ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficionalidaderdquo (1989) depois denominado

ldquoTraduccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo o tradutor como transfingidorrdquo Haroldo de Campos vale-

se de conceitos do teoacuterico alematildeo Wolfgang Iser para trazer nova dimensatildeo de

esclarecimento a respeito de suas concepccedilotildees sobre transcriaccedilatildeo Por meio do texto em

que se fundamenta Campos define os contornos de sua orientaccedilatildeo aos procedimentos

tradutoacuterios seu ponto de partida se daraacute segundo um modo de abordagem do texto

baseado em sua estrutura ou seja em sua dimensatildeo estrutural modo este que

corresponde ao primeiro entre outros dois identificados por Iser A este respeito incluo

os apontamentos que se seguem (originalmente integrantes de artigo criacutetico meu a

respeito de haicai ndash modelo de poesia tradicional japonesa ndash e recriaccedilatildeo141

) que contecircm

uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica dos pontos centrais da teoria de Iser e sua utilizaccedilatildeo por H

de Campos aleacutem de outras observaccedilotildees referentes a fontes e conceitos A escolha do

haicai como objeto em que se assenta a discussatildeo justifica-se por ser um exemplo breve

e claro de modos de abordagem do texto poeacutetico e da traduccedilatildeo colaborando para uma

interpretaccedilatildeo de alguns conceitos fundadores do pensamento de Campos

[]

A questatildeo central no entanto estaacute em se determinar quais aspectos relacionados a

uma poesia nascida em outra eacutepoca e em outra cultura seratildeo considerados

essenciais por quem a toma como objeto de estudo ou como referecircncia para a

criaccedilatildeo

Podemos ateacute em relaccedilatildeo ao posicionamento diante do haikai ndash e agrave maneira de

traduzi-lo ou criaacute-lo ndash distinguir dois modos fundamentais (da forma como os

vejo) ligados aos diferentes pontos de vista identificados que por sua vez

correspondem a diferentes visotildees de literatura e poesia de modo geral assim como

de traduccedilatildeo literaacuteria e poeacutetica Definamos tais modos de forma talvez demasiado

sucinta e redutora tendo-se em conta a complexidade do tema

141ldquoSuacutebitos de luzrdquo posfaacutecio ao livro Lumes antologia de haicais de Pedro Xisto (Satildeo Paulo Berlendis amp

Vertecchia 2008)

138

O primeiro modo seraacute aquele que prioriza a estrutura do poema e portanto os

ldquofatores intratextuaisrdquo142

(isto eacute fatores internos ao texto) Esta oacuteptica pode ser

representada pela conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos que ao considerar o poema

escrito atentaraacute fundamentalmente para as relaccedilotildees entre som sentido e

visualidade no texto (no caso do haikai como se disse a escrita ideogramaacutetica

seraacute para ele uma referecircncia fundamental) Sua abordagem prevecirc tambeacutem uma

apropriaccedilatildeo dos fatores histoacutericos relativos ao texto original com o objetivo de

construir uma ldquotradiccedilatildeo vivardquo Assim em vez de se concentrar na ldquotentativa de

lsquoreconstruccedilatildeo de um mundo passadorsquo e de lsquorecuperaccedilatildeo de uma experiecircncia

histoacutericarsquordquo143

(tentativa esta coerente com o outro ponto de vista que distinguimos)

o ato de traduzir seraacute regido ldquopelas necessidades do presente da criaccedilatildeordquo o novo

texto ldquopor desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo

reinventando-ardquo144

O outro modo privilegia a funccedilatildeo do texto um conceito que permite compreender

a ldquorelaccedilatildeo do texto com seu contextordquo145

e portanto atenta para sua historicidade

para as condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que o texto nasceu Este ponto de vista

poderaacute envolver o conceito de ldquofidelidaderdquo agrave funccedilatildeo levando agrave tentativa de

produzir um poema que corresponda agraves relaccedilotildees que estabelecia com seu contexto

original Assim por exemplo seraacute desejaacutevel que um haikai de Bashocirc concebido

para ser ldquopopularrdquo em sua origem seja traduzido ou recriado em nossa liacutengua de

modo que natildeo exiba um vocabulaacuterio pouco usual ou as marcas de uma elaboraccedilatildeo

mais sofisticada Se o poema era produzido oralmente e soacute depois transcrito seraacute

mais adequado priorizar sua dicccedilatildeo oral e natildeo seus atributos visuais decorrentes

da escrita ideogramaacutetica A partir da ideia de ldquoreconstruccedilatildeo de um mundo

passado tambeacutem se poderaacute fazer na interpretaccedilatildeo de um poema a ser traduzido

ldquoo esforccedilo para sentir ou experimentar de novo a emoccedilatildeo do poetardquo (no dizer de

Suzuki146

) numa atitude que parece buscar aleacutem do resgate do papel social do

haikai conforme proposto pela escola japonesa o da intencionalidade do proacuteprio

poeta De acordo com esses pressupostos portanto um haikai criado em nossa

liacutengua (ou traduzido para ela) deveraacute guardar relaccedilatildeo com a visatildeo de mundo da

142ISER W ldquoProblemas da teoria da literatura atual o imaginaacuterio e os conceitos-chaves da eacutepocardquo In

Costa Lima Luiz Teoria da literatura em suas fontes 2ordf ediccedilatildeo Rio de Janeiro Francisco Alves 1983

P 369 143As frases provecircm do jaacute mencionado ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) O trecho citado inclui por

sua vez citaccedilotildees de Iser (op cit) 144Id p 59 (Os grifos da citaccedilatildeo satildeo do original) 145ISER op cit p 371 146SUZUKI Teiiti ldquoImpressotildees da viagem agrave China Pequim ndash fevereiro de 1980rdquo In Estudos japoneses

III Satildeo Paulo Centro de Estudos Japoneses ndash USP 1983 p 95

139

cultura de origem corresponder ao ldquoespiacuterito do haikairdquo ser simples composto de

vocabulaacuterio popular (acessiacutevel a ldquocrianccedilas e incultosrdquo147

) e natildeo ser

ldquoostensivamente trabalhadordquo deveraacute apresentar as caracteriacutesticas consideradas

essenciais (segundo Shiki148

) agrave natureza do haikai ldquoexpressatildeo direta objetiva por

meio de imagens claras sem abstraccedilotildees ou sentimentalismordquo

Se este ponto de vista centrado no conceito de funccedilatildeo privilegia a origem a

ldquogecircnese do textordquo aquele visto primeiramente ao considerar a estrutura do texto e

sua inserccedilatildeo em outro tempo e lugar ressalta a ldquovalidade do textordquo (ou seja sua

ldquovidardquo apoacutes as condiccedilotildees histoacutericas em que nasceu) que prevecirc ldquoum modelo de

interaccedilatildeo entre texto e leitorrdquo149

Enfatizar portanto a estrutura do texto e sua

interaccedilatildeo com o leitor permitiraacute um desapego da ideia de reconstruir um mundo

passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato da leitura e da

recriaccedilatildeo) indo ao encontro do conceito ldquomake it newrdquo (tornar novo renovar) do

poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972)

Neste caso um texto ao ser traduzido sofreraacute a interferecircncia do contexto em que eacute

lido sua estrutura seraacute reconfigurada e a partir disso sua funccedilatildeo seraacute novamente

determinada De modo semelhante um poema criado a partir de um modelo

proveniente de outra eacutepoca outro lugar e outra cultura procuraraacute reinventar esse

modelo tal como o autor o vecirc no novo contexto150

Concentrando-se na linguagem e nas ldquonecessidades do presente da criaccedilatildeordquo seraacute

possiacutevel a um criador ou tradutor optar por outros paracircmetros formais que

considere adequados (com base em seus proacuteprios conceitos esteacuteticos) agrave produccedilatildeo

do poema em seu novo contexto No caso de Haroldo de Campos sua opccedilatildeo seraacute

em suas traduccedilotildees a de privilegiar a ldquocontinuidade visualrdquo do haikai adotando

para isso uma ldquodisposiccedilatildeo mais espacial que rompe o esquema usual do

tercetordquo151

tambeacutem natildeo usaraacute o padratildeo meacutetrico original preferindo adotar ldquoum

verso livre extremamente breve como moacutedulo de composiccedilatildeordquo descartaraacute ainda o

uso de rimas []

147FRANCHETTI op cit pp 46-47 148As caracteriacutesticas apontadas por Shiki satildeo mencionadas em Franchetti op cit p 28 149CAMPOS H ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficcionalidaderdquo In 34 letras nuacutemero 3 Rio de Janeiro 1989 P 90

Campos cita Iser para quem ldquoo modelo da interaccedilatildeo entre texto e leitor eacute fundamental para o conceito de

comunicaccedilatildeordquo (op cit p 365) (Ver nota seguinte) 150A abordagem de Campos que considera fundamentalmente a estrutura do texto (pois eacute nela que para

ele ldquoatua por excelecircncialdquo a recriaccedilatildeo ndash ou ldquotranscriaccedilatildeordquo como prefere denominar) aponta tambeacutem para

o terceiro daqueles que para Wolfgang Iser satildeo os ldquoconceitos-chaverdquo que ldquoconstituem os conceitos de

orientaccedilatildeo central na anaacutelise da literaturardquo ldquoestrutura funccedilatildeo e comunicaccedilatildeordquo 151CAMPOS H ldquoHaicai homenagem agrave siacutenteserdquo Op cit p 60 Veja-sea traduccedilatildeo que Campos realizou

de um poema de Buson e de outro de Bashocirc (o famoso ldquoum velho tanque []rdquo)

140

C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada

No livro Menis ndash a ira de Aquiles em que apresenta sua traduccedilatildeo do Canto I

da Iliacuteada Haroldo de Campos faz comentaacuterios sobre seus propoacutesitos tradutoacuterios

ausentes da ediccedilatildeo do poema completo (que conta com introduccedilatildeo no volume I de

Trajano Vieira) Esses comentaacuterios satildeo bastante esclarecedores sobre seus pontos de

vista acerca de traduccedilatildeo da eacutepica grega que complementam as informaccedilotildees jaacute

discutidas neste estudo Assim eacute importante que se incluam aqui trechos de sua

apresentaccedilatildeo ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo citados a seguir Apoacutes dizer de sua opccedilatildeo pelo

dodecassiacutelabo (em trecho jaacute antes citado) Campos afirma ldquo[] Busquei por um lado

preservar a melopeia homeacuterica (que Ezra Pound considerava inexcediacutevel) e por outro

estabelecer uma correspondecircncia verso a verso com o original (ou seja obter em

portuguecircs o mesmo nuacutemero de versos do texto grego)rdquo (1994 14) E prossegue

anunciando o que considerava entatildeo sua tarefa total

Estou empenhado em recriar em nossa liacutengua quanto possiacutevel a forma de

expressatildeo (no plano focircnico e riacutetmico-prosoacutedico) e a forma do conteuacutedo (a

logopeia o desenho sintaacutetico a poesia da gramaacutetica) do Canto I da Iliacuteada

Longe de mim a intenccedilatildeo excessiva para meus propoacutesitos de uma traduccedilatildeo

integral do poema Desejo tatildeo-somente constituir um modelo intensivo um

paradigma atual e atuante de transcriaccedilatildeo homeacuterica

Como sabemos Campos foi aleacutem do inicialmente pretendido traduzindo toda a

Iliacuteada e teria conforme se sabe de sua intenccedilatildeo posterior traduzido toda a Odisseia se

isso lhe tivesse sido possiacutevel (desse poema deixou-nos apenas fragmentos dos quais

tomaremos alguns para anaacutelise) Seu trabalho como revela dialoga com o de Mendes

Por um lado retomo o legado ateacute certo ponto arcaizado de Odorico com cujas

soluccedilotildees meu texto frequentemente dialoga por outro com o escopo de dar uma

nova vitalidade ao verso traduzido mobilizo todos os recursos do arsenal da

moderna poeacutetica nesse sentido (desde logo haacute a considerar em mateacuteria de

retomada eacutepica o exemplo de dicccedilatildeo dos Cantos de Ezra Pound []) Estou

persuadido pelo caminho ateacute aqui percorrido de que do transcriador da rapsoacutedia

homeacuterica se requer no plano da fatura poeacutetica uma atenccedilatildeo microloacutegica agrave

elaboraccedilatildeo poeacutetica de cada verso (paronomaacutesias aliteraccedilotildees ecos onomatopeias)

141

aliada a uma precisa teacutecnica de cortes remessas e encadeamentos fraacutesicos (o

tradutor no caso deveraacute comportar-se corno um coreoacutegrafo ou diagramador

sintaacutetico)

Aparece em seguida como proposta tradutoacuteria a ideia de ldquovivificaccedilatildeordquo do verso

traduzido que como se sabe associa-se ao conceito make it new de Pound e agrave

abordagem do texto de modo a considerar sua validade sua inserccedilatildeo em outro contexto

(acircmbito da comunicaccedilatildeo na conceituaccedilatildeo de Iser)

Recuperaccedilotildees etimoloacutegicas (por exemplo a que levei a efeito no verso 47

traduzindo nyktigrave eoikoacutes por iacutecone da noite em lugar de semelhante agrave noite

Odorico agrave noite semelha C A Nunes) podem estrategicamente aplicadas

vivificar o verso em portuguecircs Assim tambeacutem no caso dos epiacutetetos (liccedilatildeo

premonitoacuteria de Odorico que natildeo se deve descartar neste ponto mas aperfeiccediloar

criteriosamente) este efeito vitalizador pode ser obtido atraveacutes da cunhagem de

compostos isomorfos em relaccedilatildeo a essas virtuais ldquometaacuteforas fixasrdquo que brasonam

os heroacuteis gregos e seus deuses

O tradutor lanccedilaraacute matildeo muitas vezes da criaccedilatildeo de compostos embora de modo

diverso do de Odorico por fazer-se com frequecircncia pela simples justaposiccedilatildeo ldquopeacutes-

velozesrdquo (para Odorico ldquovelociacutepederdquo) ldquodoma-corceacuteisrdquo ldquobom-pugilistardquo etc Valoriza-

se como era de se esperar o trocadilho

Por vezes toda uma precisa carga retoacuterica pode estar encapsulada num simples

trocadilho que mobiliza som e sentido e que portanto ao inveacutes de rasura

desatenta demanda reconfiguraccedilatildeo no texto traduzido veja-se o v 231

demoboacuteros basileuacutes epeigrave outidanorsin anaacutesseis

Odorico traduz

Cobardes reges vorador do povo

recuperando o demoboacuteros com a foacutermula paronomaacutestica vorador do povo

C A Nunes menos feliz mais discursivo escreve

142

Devorador do teu povo Natildeo fosse imprestaacutevel Atrida toda esta gente

O tradutor fornece em seguida a sua versatildeo moldada pela ldquolei da

compensaccedilatildeordquo

[] procurei reconstituir sonora e semanticamente com o maacuteximo de economia o

jogo de palavras que nas traduccedilotildees consultadas [incluindo-se a de Robert

Fitzgerald e a de Robert Fagles] passou em branco

Devora-Povo Rei dos Dacircnaos Rei de nada

Observe-se que no texto portuguecircs o trocadilho expandiu-se em paronomaacutesia (dos

DAcircNAos de NADA) enquanto em grego outiDANoicircsin repercute sonoramente

no verbo ANAacutesseis (anaacutessein reinar sobre regendo um dativo no caso) Lei da

compensaccedilatildeo regra de ouro da traduccedilatildeo criativa

Como se vecirc Haroldo de Campos eacute um desses casos um tanto raros de poeta e

tradutor que se ocupou de conceituar e descrever procedimentos e expedientes seus

gerando uma ampla sustentaccedilatildeo para a leitura das traduccedilotildees que empreendeu Sobre a

compensaccedilatildeo diga-se que ocorrem com frequecircncia em suas traduccedilotildees o que seria

denominado por Joseacute Paulo Paes de ldquosobrecompensaccedilatildeordquo ndash uma soluccedilatildeo que

acrescenta recursos de linguagem poeacutetica norteado pela conceituaccedilatildeo de funccedilatildeo poeacutetica

da linguagem e de ldquoiconizaccedilatildeordquo do signo verbal Campos tende agrave concentraccedilatildeo de

efeitos que pode ultrapassar o que se depreende do original

Na convergecircncia de teoria e praacutetica revela-se uma amplitude de conduta que

permite a diversidade de resultados ditados pela identidade uacutenica de cada

empreendimento recriador natildeo haacute preceitos estritos a serem seguidos como ldquoreceitardquo

mas uma recomendaccedilatildeo fundamentada de hyacutebris criadora de ousadia na transposiccedilatildeo

criativa

A hyacutebris do tradutor ndash preceito indispensaacutevel desse ponto de vista para a

traduccedilatildeo desvinculada da tradiccedilatildeo de subserviecircncia ao original ndash jaacute encontra expressatildeo

na proacutepria apresentaccedilatildeo da Iliacuteada os volumes trazem como autor Haroldo de Campos

143

reservando-se ao tiacutetulo a forma Iliacuteada de Homero Trata-se da assunccedilatildeo pelo tradutor

do status de autor de criador de obra autocircnoma embora paramoacuterfica152

152 Esse modo de apresentaccedilatildeo decorrente de um conceito sobre a proacutepria tarefa do tradutor encontra ndash

mencione-se ndash antecedecircncia no paiacutes em livros de poesia traduzidos por Guilherme de Almeida Poetas

de Franccedila (1936) Paralelamente a Paul Verlaine (1944) (cujo tiacutetulo permite entrever o conceito de

ldquocanto paralelordquo) e Flores das ldquoFlores do malrdquo de Charles Baudelaire (1944) todos tendo como autor o

poeta paulista

144

Capiacutetulo III

A Vozes para Homero

A simple instance is the preservation of an object not only through the

meanings of the words which deal with it but also through their sound

as when Pope in his translation of a passage of the Iliad describing chariots rackering down a hillside

tries to put Homeracutes description into English words that shall not only correspond in meaning to the

meaning of Homeracutes words but shall also repeat in a different metrical structure and in the sound-system

of English the market onomatopoeia of the original

First march the heavy Mules securely slow

Orsquoer Hills orsquoer Dales orsquoer Crags orsquoer Rocks they go (XXIII 138-9)

Winifred Nowottny153

Este capiacutetulo teraacute por objetivo a anaacutelise de diferentes versotildees em portuguecircs de

fragmentos do Canto I e do Canto IX da Iliacuteada de Homero Do Canto I seratildeo extraiacutedos

apenas dois versos (33-34) considerando-se inicialmente trecircs traduccedilotildees (a de Odorico

Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de Campos) agraves quais se agrega depois uma

quarta (de Andreacute Malta154

) do Canto IX seratildeo tomados os versos 177 a 198

considerando-se as versotildees dos quatro tradutores referidos

Para tanto o ponto de partida seraacute a abordagem de caracteriacutesticas gerais da

poesia eacutepica grega observando-se depois aspectos dos mencionados fragmentos seratildeo

apresentados como referenciais teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica alguns conceitos

centrais relativos ao tema e os pontos de vista dos tradutores escolhidos considerando-

se seus fundamentos e propoacutesitos as soluccedilotildees encontradas nas diferentes traduccedilotildees

seratildeo estudadas essencialmente agrave luz de suas proacuteprias diretrizes e o cotejamento destas

serviraacute a alguma anaacutelise comparativa dos diversos resultados

153 NOWOTTNY Winifred The language poets use London The Athlone Press 1972 p 3 154 Andreacute Malta Campos eacute professor de liacutengua e literatura grega na FFLCH da USP estudioso e tradutor

da obra homeacuterica

145

A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade

A poesia homeacuterica eacute entendida hoje como resultante de um processo oral de

composiccedilatildeo ligado agrave tradiccedilatildeo de uma cultura marcada pela oralidade Segundo

Havelock155

[] presume-se que o tipo de composiccedilatildeo oral no qual os gregos se comprazeram

e pode-se dizer que aperfeiccediloaram deve ter sido uma histoacuteria milenar recuando ao

fundo da experiecircncia de todas as sociedades preacute-letradas mas civilizadas e suas

regras fundamentais deitam raiacutezes nessa histoacuteria O estranho poder dos claacutessicos

gregos arcaicos deve-se em primeiro lugar natildeo agrave inspiraccedilatildeo mas ao que eles tecircm

de comum com a teacutecnica e com o propoacutesito desse modo preacute-histoacuterico de

composiccedilatildeordquo (1996 14)

Desde a famosa tese de Milman Parry e seus trabalhos posteriores156

ndash que

procuram estudar o estilo da obra homeacuterica identificando de modo ldquopraacuteticordquo os

elementos que o caracterizam ndash a ldquofoacutermulardquo eacute definitivamente vista como um

componente fundamental do meacutetodo oral de composiccedilatildeo podendo-se conceituaacute-la como

uma expressatildeo usada de forma regular sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas a fim de

expressar uma ideia essencial Como demonstra Parry seguindo a esteira de Duumlntzer

(1872) as foacutermulas apresentam um aspecto funcional no caso dos epiacutetetos sempre que

no poema se vincular um atributo a determinado heroacutei em determinada extensatildeo do

hexacircmetro dactiacutelico (padratildeo meacutetrico da eacutepica grega)157

seraacute usada a mesma expressatildeo

formular Como seu emprego eacute funcionalmente ligado agraves necessidades e agraves

peculiaridades da composiccedilatildeo oral a foacutermula integraraacute o aspecto ornamental do poema

sem que precise ter significado especiacutefico em certa passagem assim seratildeo relevantes

antes suas caracteriacutesticas esteacuteticas do que semacircnticas

155 HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Campinas Papirus 1996 156 Referecircncia ao texto ldquoLacuteacuteEpithegravete traditionelle dans Homerrdquo publicado originalmente em 1928 e os

demais estudos do autor recolhidos (numa versatildeo em liacutengua inglesa) por Adam Parry no volume The

making of homeric verse ndash collected papers of Milman Parry Oxford 1971 157 O hexacircmetro dactiacutelico (verso formado por cinco peacutes daacutectilos e um cataleacuteptico ou seja falto de uma siacutelaba) eacute o padratildeo utilizado na eacutepica grega pode ser representado basicamente com a silaba breve

simbolizada pela braacutequia (U) e a siacutelaba longa pelo maacutecron (ndash) da seguinte forma ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU

ndash UU ndashU Mencione-se que duas siacutelabas breves podem ser substituiacutedas por uma longa em todos os peacutes

com exceccedilatildeo do quinto (a substituiccedilatildeo neste peacute ocorre muito raramente este fato eacute relevante para a

proposta que faremos em capiacutetulo posterior de possiacutevel padratildeo meacutetrico para a traduccedilatildeo da eacutepica) a

uacuteltima siacutelaba do verso breve tambeacutem pode ser uma longa integrando assim um daacutectilo

146

Ainda que como sustenta Havelock o essencial para Homero fosse ldquosem

sombra de duacutevidardquo a narrativa (A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia 1996 79) e

(conforme esse autor empenhou-se em demonstrar) sua poesia tivesse tambeacutem um

niacutetido papel ldquoenciclopeacutedicordquo ndash fazendo parte dela elementos didaacuteticos e informativos ao

cidadatildeo que incluiacuteam padrotildees de comportamento ndash tecircm sido objeto constante de

estudos apoacutes as descobertas de Parry ldquoo modo como aquela poesia foi feitardquo passando

ldquoa interessar menosrdquo ldquoo que aquela poesia nos contardquo (Oliveira 2006 xi) Ainda que se

possa criticar este ponto de vista ndash por implicar a menor consideraccedilatildeo do ldquoconteuacutedordquo

narrativo dos poemas ndash eacute evidente que as observaccedilotildees e constataccedilotildees de ordem formal

(que diga-se podem ir aleacutem da identificaccedilatildeo dos ldquomecanismos de oralidaderdquo) lanccedilam

luz sobre a natureza dessa poeacutetica bem como explicitam uma forma de utilizaccedilatildeo de

elementos esteacuteticos que por sua vez poderaacute servir de referecircncia a possiacuteveis

comparaccedilotildees com paracircmetros proacuteprios da ldquocultura letradardquo e particularmente da

cultura ocidental moderna (com seus conceitos acerca de poesia)

Segundo Peabody citado por Havelock o estilo oral especiacutefico de composiccedilatildeo eacute

ldquodetectaacutevel atraveacutes de criteacuterios que definem cinco tipos de lsquoredundacircnciarsquo ou

lsquoregularidadersquo na linguagem Vecircm a ser eles padrotildees fonecircmicos como rima ou

assonacircncia padrotildees formulares constatados em lsquofeixes morfecircmicosrsquo recorrentes

padrotildees perioacutedicos ou sintaacuteticos padrotildees temaacuteticos [] e lsquoindicador de cantorsquordquo (1996

150) Peabody examina a estrutura do hexacircmetro (como se refere Havelock) em termos

de coacutelon (ldquocombinaccedilatildeo de peacutes [] formando uma unidaderdquo158

) e de foacutermula Sobre esta

diz Havelock159

As foacutermulas (tornadas familiares [] pela obra de Milman Parry) satildeo examinadas

do ponto de vista da configuraccedilatildeo desses membros meacutetricos como constituiacutedas por

cola [plural de coacutelon] simples ou agregados de cola Os mais longos usualmente

formam hemistiacutequios [] Esses vaacuterios componentes do verso permite ao cantador

entoaacute-los apoiado no fato de que expressotildees e ritmos da fala ordinaacuteria [] se

refletem na sua composiccedilatildeo (1996 152)

158 MOISEacuteS Massaud Dicionaacuterio de termos literaacuterios Satildeo Paulo Cultrix 1978 159 HAVELOCK Eric A A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturais Satildeo Paulo

Unesp Rio de Janeiro Paz e Terra 1996

147

Para Havelock Peabody ldquose ateacutem com firmeza agraves realidades fonecircmicas

subjacentes ao processo de composiccedilatildeo genuinamente oralrdquo

Ele ouve o cantador que compotildee cola articulados em foacutermulas articula foacutermulas

em aglomerados temaacuteticos encerrando-os em hexacircmetros a aos hexacircmetros em

estacircncias a seguir o comando das formas foneacuteticas das palavras por uma espeacutecie

de automatismo psicoloacutegico (p 161)

Havelock observa que ldquoeacute nisso e natildeo na formaccedilatildeo ou busca de lsquoideiasrsquo como

enfatiza corretamente Peabody [para este a histoacuteria contada na epopeia eacute um traccedilo

secundaacuterio] que reside o segredo da composiccedilatildeo oralrdquo (p 161)

(Sendo assim a importacircncia da ldquoforma foneacutetica das palavrasrdquo e do esquema

riacutetmico-meacutetrico seraacute considerada neste estudo posteriormente em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees

escolhidas para discussatildeo)

Referindo-se agrave pesquisa de Parry e de Albert Lord com os cantadores

iugoslavos160

Havelock afirma que

A teoria da oralidade aplicada a Homero com analogias derivadas da poesia oral

balcacircnica estimulou o haacutebito de considerar a praacutetica oral e a letrada como

mutuamente exclusivas A escrita presume-se toma de assalto o espiacuterito da

composiccedilatildeo oral e corrompe-o de maneira que a originalidade dele daacute lugar agrave

repeticcedilatildeo mecacircnica (p 17)

Discordando desta visatildeo o autor considera que ldquoa Iliacuteada e a Odisseia satildeo

construccedilotildees complexas as quais refletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o

escrito parceria que se mostrou fecundardquo (ib) E esclarece que ldquoo espiacuterito integral da

literatura e da filosofiardquo por ele considerados mostra-se como uma ldquotensatildeo dinacircmicardquo

entre o oral e o letrado sendo tal ldquoo processo que nele a linguagem tratada de forma

acuacutestica segundo princiacutepios de ressonacircncia (eco) entra em competiccedilatildeo com a

linguagem tratada segundo princiacutepios arquitetocircnicosrdquo (procedimento que teria se

firmado depois de Platatildeo) (ib)

160 PARRY ldquoGreek and southslavic heroic songrdquo in op cit e Lord The Singer of TalesCambridge

Harvard University Press 1960

148

(Estas consideraccedilotildees tambeacutem poderatildeo servir de referecircncia agrave anaacutelise que se

pretende desenvolver aqui das diferentes versotildees de fragmentos da Iliacuteada eacute este

tambeacutem o caso das citaccedilotildees seguintes)

Acerca da modernidade e da maneira como esta concebe a poesia e referindo-se

agrave questatildeo da narrativa o mesmo autor afirma que

[] eacute caracteriacutestico de toda a tendecircncia da criacutetica moderna que o componente do

relato seja ignorado e o componente do artifiacutecio seja exagerado Nossa concepccedilatildeo

de poesia natildeo tem lugar para o ato oral de relatar e portanto natildeo leva em conta as

complexidades da tarefa de Homero A criaccedilatildeo artiacutestica no sentido que damos ao

termo eacute algo muito mais simples do que a declamaccedilatildeo eacutepica e implica o

afastamento do artista com relaccedilatildeo agrave accedilatildeo poliacutetica e social (Prefaacutecio 1996 108)

(Havelock refere-se no final do trecho diga-se ao papel social das informaccedilotildees

ldquoenciclopeacutedicasrdquo que a poesia eacutepica encerra) Em que pese a possibilidade de

divergecircncia acerca das colocaccedilotildees quanto ao niacutevel de complexidade da criaccedilatildeo oral e da

natildeo-oral eacute interessante registrar-se a diferenccedila entre ambos os modos em termos de

concepccedilatildeo e procedimento vinculada agrave sua proacutepria funccedilatildeo na comunidade em que se

insere

Em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre as culturas oral e letrada afirma Havelock que

numa obra escrita busca-se um miacutenimo de repeticcedilatildeo enquanto ldquoo registro oral requer

exatamente o processo opostordquo sendo que

os inteacuterpretes letrados que natildeo treinaram sua imaginaccedilatildeo para entender a psicologia

da conservaccedilatildeo oral iratildeo [] dividir recortar e amputar as repeticcedilotildees e variantes de

um texto de Homero ou de Hesiacuteodo para conformar o texto a procedimentos

letrados nos quais as exigecircncias da memoacuteria viva natildeo mais satildeo importantes (pp

109-110)

Como diz ainda Havelock ldquono campo circunscrito pela repeticcedilatildeo poderia haver

variaccedilatildeordquo161

e ldquoo tiacutepico pode ser reafirmado dentro de um acircmbito bastante extenso de

161 Eacute oportuno mencionar que por meio das gravaccedilotildees realizadas por Lord com cantores iugoslavos

constatou-se que estes variavam seu canto ainda que dissessem mantecirc-lo sempre igual

149

foacutermulas verbaisrdquo para ele o ldquohaacutebito de lsquovariaccedilatildeo do mesmorsquo eacute fundamental agrave poesia

de Homerordquo (p 110) Tal haacutebito integra o procedimento do poeta descrito nesta

passagem

A teacutecnica oral de composiccedilatildeo em verso pode ser vista como a que se constroacutei

mediante os seguintes recursos haacute um padratildeo puramente riacutetmico que permite que

versos sucessivos de poesia de extensatildeo temporal padronizada sejam compostos de

partes meacutetricas intercambiaacuteveis em segundo um enorme suprimento de

combinaccedilotildees de vocaacutebulos ou foacutermulas de extensatildeo e sintaxe variaacuteveis compostas

ritmicamente para que se ajustem a partes do verso meacutetrico mas que por sua vez

sejam tambeacutem compostas de partes meacutetricas intercambiaacuteveis dispostas de modo a

que tanto pela combinaccedilatildeo de diferentes foacutermulas quanto pela combinaccedilatildeo de

partes de diferentes foacutermulas o poeta possa alterar sua sintaxe sem alterar seu

ritmo Seu talento artiacutestico como um todo consiste desse modo numa distribuiccedilatildeo

infinita de variaacuteveis nas quais todavia a variaccedilatildeo eacute mantida dentro de limites

estritos e as possibilidades verbais embora extensas satildeo em uacuteltima anaacutelise

finitas (ib)

Considere-se ainda que para Havelock a teacutecnica formular teria nascido como

um artifiacutecio de memorizaccedilatildeo e de registro natildeo devendo ser considerada como um

simples auxiacutelio agrave improvisaccedilatildeo poeacutetica elemento este secundaacuterio ldquoassim como a

invenccedilatildeo pessoal do menestrel eacute secundaacuteria para a cultura e costumes populares que ele

relata e conservardquo (p 111) Natildeo eacute pertinente de seu ponto de vista a comparaccedilatildeo com

cantores de comunidades como as da Iugoslaacutevia e da Ruacutessia nas quais a teacutecnica oral

natildeo eacute mais essencial agrave cultura e o cantor ldquotorna-se primordialmente um homem de

espetaacuteculos e similarmente suas foacutermulas estatildeo destinadas agrave improvisaccedilatildeo faacutecil e natildeo agrave

conservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo magisterialrdquo (p 112) Desse ponto de vista o mesmo se

poderia dizer em relaccedilatildeo aos cantadores nordestinos do Brasil que se valem de padrotildees

riacutetmicos e de ldquofoacutermulasrdquo memorizadas em seus improvisos e ldquodesafiosrdquo executados em

apresentaccedilotildees populares

As colocaccedilotildees referidas apontam para diferenccedilas fundamentais existentes entre a

poesia oral tradicional e a poesia tal como a entendemos hoje com propoacutesitos esteacuteticos

No entanto eacute preciso ter em conta que ainda que a funccedilatildeo do aedo e de sua poesia

150

fossem prioritariamente ldquomagisterial e enciclopeacutedicardquo seu modo de concepccedilatildeo

composiccedilatildeo e execuccedilatildeo envolviam padrotildees esteacuteticos nitidamente definidos o que a

aproxima essencialmente por esta via da poesia conforme nossa cultura letrada a

entende O ritmo ndash um componente de ordem esteacutetica ndash eacute apontado da antiguidade agrave

contemporaneidade como um elemento essencial e caracteriacutestico da poesia

prevalecente na composiccedilatildeo poeacutetica desde suas origens ateacute o presente o que pelo

ldquoplano da expressatildeordquo assemelha toda e qualquer poesia independentemente da situaccedilatildeo

histoacuterico-cultural e dos conceitos compartilhados pelos indiviacuteduos inseridos no mesmo

contexto quanto ao que seja poesia e qual seja sua funccedilatildeo na comunidade Sobre o

ritmo lembremos a visatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica162

Por serem naturais em noacutes a tendecircncia para a imitaccedilatildeo a melodia e o ritmo ndash que

os metros satildeo parte dos ritmos eacute fato evidente ndash primitivamente os mais bem

dotados para eles progredindo a pouco e pouco fizeram nascer de suas

improvisaccedilotildees a poesia (1990 22)

Contemporaneamente Segismundo Spina163

afirma

O homem por natureza natildeo eacute somente um animal poliacutetico como diz Aristoacuteteles

[] eacute tambeacutem e sobretudo um animal riacutetmico [] Dentre todos os caracteres

geneacuteticos das artes foneacuteticas e da coreografia estaacute em primeira linha o ritmo []

O conto a narraccedilatildeo miacutetica primitiva foi foi-se desvencilhando gradativamente do

elemento riacutetmico tatildeo dominante na literatura primitiva Mas permaneceu na poesia

ateacute os nossos tempos A Poesia deve agrave Muacutesica em seu periacuteodo ancilar as suas leis

constitutivas (2002 127)

Considerando-se novamente uma concepccedilatildeo provinda da linguiacutestica estrutural a

de ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo tal como definida por Roman Jakobson poderemos

estender o que se observou em relaccedilatildeo ao ritmo para todos os aspectos natildeo-verbais que

integrem a estrutura linguiacutestica do poema (Revejam-se ndash agora relacionadas agrave poesia

oral ndash as proposiccedilotildees de Jakobson jaacute abordadas neste trabalho)

162 ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 2002

163 SPINA S Na madrugada das formas poeacuteticas Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2002

151

Jakobson procura descrever o que lhe parece caracterizar a poesia

independentemente de circunscriccedilotildees temporais situacionais ou culturais e note-se o

que ele aponta parece adequar-se tatildeo bem agrave poesia oral da antiguidade quanto agrave poesia

como a concebemos e praticamos hoje Isto exatamente porque ele reconhece elementos

constitutivos que independem da funccedilatildeo da arte na comunidade e da intencionalidade

de seu ldquoconteuacutedordquo Enfatiza ele sim a ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo o que se manteacutem

mesmo no caso das foacutermulas cuja funccedilatildeo no metro muitas vezes parece atribuir-lhes ndash

como demonstrou Parry ndash apenas funccedilatildeo formal associada ao esvaziamento de

significado na concepccedilatildeo jakobsoniana a tensatildeo entre som e sentido eacute o que promove o

alcance do poema como um todo significante (pleno de significado pois as duas ldquofacesrdquo

do signo satildeo indissociaacuteveis) Sobre isto diz Maacuterio Laranjeira ldquo[] as palavras os sons

as formas e a sua organizaccedilatildeo enquanto tais assumem a dianteira na expressatildeo poeacutetica

trocando o seu estatuto subalterno de veiacuteculo do sentido mero suporte ndash liacutengua natildeo-

poeacutetica ndash pelo de princiacutepio ativo gerador de sentidos nunca suspeitados porque

desvinculados do mundo exterior como referente diretordquo (2003 52)

As repeticcedilotildees e as correspondecircncias de posiccedilotildees (caso das foacutermulas) das

palavras acentos pausas etc como afirma Jakobson satildeo avaliadas em termos de

equivalecircncia participando portanto da criaccedilatildeo de sentido a projeccedilatildeo paradigmaacutetica

pode-se dizer amplia o sentido denotativo gerando a ambiguidade que muitos

consideram tambeacutem proacutepria da poesia Para Michael Riffaterre citado por Laranjeira

ldquoa poesia exprime os conceitos de maneira obliacutequa Em suma um poema diz-nos uma

coisa e significa outrardquo (2003 48)

Tendo-se em conta que como se disse os sons e o modo como as formas se

organizam geram sentidos ldquodesvinculados do mundo exterior como referente diretordquo

pode-se pensar nas foacutermulas homeacutericas (dada sua funcionalidade sonora e formal) como

produtoras de sentido apontado ao acircmbito interno do poema (ou seja da linguagem)164

desvinculado do referente o que as torna ldquodescompromissadasrdquo com a ldquoverdaderdquo

(considerada em relaccedilatildeo ao referente) (Esta abordagem diga-se redimensiona a

questatildeo da funccedilatildeo apenas de ldquoembelezamentordquo165

que uma visatildeo simplificadora atribui

164 ldquoNa funccedilatildeo poeacutetica [da linguagem] a mensagem se volta sobre si mesma para o seu aspecto sensiacutevel

para a sua configuraccedilatildeordquo (Campos 1975 41) 165 Referecircncia a uma das maneiras pelas quais os alexandrinos explicavam o uso das

adjetivaccedilotildees formulares Note-se que tambeacutem Parry (e antes dele Duumlntzer) ao atribuir aos epiacutetetos um

esvaziamento de sentido consideram o significado apenas em termos do referente de certa forma

desvinculando a funcionalidade sonora e riacutetmica da geraccedilatildeo de sentido

152

agraves foacutermulas para explicar o fato de que seu sentido muitas vezes parece natildeo se ajustar

ao contexto especiacutefico em que eacute empregado)

Uma vez abordadas certas caracteriacutesticas baacutesicas da composiccedilatildeo oral e uma vez

observado que estas embora possam ser peculiares mantecircm um canal amplo de contato

com o que se concebe genericamente como poesia eacute possiacutevel antever que a eacutepica

permitiraacute tambeacutem uma ampla faixa de leituras e interpretaccedilotildees possiacuteveis em

conformidade com ideias particulares que se possam ter sobre poesia e sobre poesia

grega arcaica bem como sobre a forma adequada de traduzi-la a diversidade existente

entre as diferentes versotildees seraacute teoricamente justificaacutevel e neste sentido os resultados

poderatildeo ser considerados em princiacutepio (ainda que isto seja discutiacutevel) igualmente

ldquovaacutelidosrdquo166

Entre tais leituras portanto a consideraccedilatildeo dos procedimentos proacuteprios de

composiccedilatildeo oral como fundamento do meacutetodo de traduccedilatildeo da poesia arcaica seraacute no

plano teoacuterico apenas uma das opccedilotildees possiacuteveis Mas deixemos para mais adiante a

questatildeo da diversidade e dos fundamentos que norteiam cada uma das versotildees aqui

focalizadas

A2 Iliacuteada fragmentos

Sinopse do poema

Antes de apresentarmos os fragmentos escolhidos para discussatildeo inserindo-os

no contexto do canto e tecendo um breve comentaacuterio sobre seus elementos e

caracteriacutesticas eacute conveniente incluir-se uma sinopse do argumento da Iliacuteada (composta

de XXIV cantos) A accedilatildeo se passa em torno de 1200 aC na planiacutecie de Troacuteia na Aacutesia

Menor transcorre entre o final do nono e o iniacutecio do deacutecimo ano da Guerra de Troacuteia

Agamecircmnon liacuteder do exeacutercito grego toma a escrava de Aquiles Briseida desonrando-

o o heroacutei entatildeo afasta-se dos combates Apoacutes uma seacuteria derrota (no Canto VIII)

Agamecircmnon admite seu erro e envia mensageiros a Aquiles oferecendo-lhe por

166 Acerca da diversidade de caracteriacutesticas das diferentes traduccedilotildees lembre-se o jaacute discutido conceito desconstrucionista hoje indispensaacutevel relativamente agrave atividade tradutoacuteria de que cada tradutor chega a

resultados proacuteprios a partir de suas convicccedilotildees de ordem esteacutetica e de seu ponto de vista sobre o que seja

a tarefa do tradutor (embora isto no meu modo de ver natildeo impeccedila discussotildees comparativas no plano

esteacutetico de realizaccedilatildeo ainda que relativizadas) Revejam-se os comentaacuterios de Rosemary Arrojo e sob

outra perspectiva os de Joatildeo Angelo Oliva Neto

153

intermeacutedio deles muitos bens como reparaccedilatildeo por seu ato a fim de convencer o heroacutei a

retornar ao campo de batalha Aquiles natildeo atende ao pedido mas cede mais tarde agrave

suacuteplica de seu mais proacuteximo e querido amigo Paacutetroclo que desejava lutar no lugar de

Aquiles com as armas do heroacutei para livrar o acampamento grego da proximidade

ameaccediladora dos troianos Paacutetroclo eacute morto em combate pelo filho do rei Priacuteamo Heitor

que se apodera das armas de Aquiles Este tomado pela ideia de vingar a morte de

Paacutetroclo retorna agrave luta (com novas armas feitas pelo deus Hefesto a pedido da matildee do

heroacutei Teacutetis) matando Heitor e ultrajando seu cadaacutever Por intervenccedilatildeo dos deuses

Aquiles concede a Priacuteamo mediante pagamento de resgate que este leve o cadaacutever de

seu filho de volta a Troacuteia para seus funerais

Em linhas muito gerais eacute este o assunto da Iliacuteada

Canto I

Embora nos proponhamos a analisar neste toacutepico apenas dois versos do Canto

I faccedilamos antes um resumo de seu argumento

Crises sacerdote de Apolo suplica a Agamecircmnon que lhe devolva a filha

Criseida mas este o afronta e se nega a devolvecirc-la Apolo em resposta agrave invocaccedilatildeo de

Crises envia como castigo uma peste que se apodera do exeacutercito grego matando muitos

dos seus integrantes O adivinho Calcas revela em assembleia convocada por Aquiles

que a devoluccedilatildeo de Criseida eacute o uacutenico remeacutedio para o mal Agamecircmnon a devolve mas

toma Briseida cativa de Aquiles Aquiles revoltado abandona a luta a conselho de sua

matildee Teacutetis que lhe promete vinganccedila Teacutetis pede a Zeus vantagem aos troianos e o deus

promete atender a seu pedido ateacute Aquiles obter reparaccedilatildeo Hera esposa de Zeus

ameaccedila-o Hefesto filho de Teacutetis e Zeus restabelece a harmonia entre os deuses

Os dois versos escolhidos do iniacutecio do canto referem-se ao momento em o

sacerdote Crises manifesta temor apoacutes a fala ultrajante de Agamecircmnon e se vai pela

praia antes de orar a Apolo

Iliacuteada I vv 33-34

154

(Hos ephatacute edeisen dacuteho geacuteron kai epeiacuteteto myacutethoi

be dacuteakeacuteon paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses)

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

Taciturno o anciatildeo treme e obedece

Busca as do mar fluctissonantes praias

(2003 27)167

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes

Isso disse ele medroso o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilas

e taciturno se foi pela praia do mar ressoante

(Sd 48)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Findou a fala e o anciatildeo retrocedeu medroso

mudo ao longo do mar de poliacutessonas praias

(2002 33)

A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem

Passemos entatildeo a uma anaacutelise um tanto detida das diferentes traduccedilotildees de tal

fragmento que embora restringindo-se a dois versos pode nos dar subsiacutedios para

consideraccedilotildees que por sua vez tambeacutem se aplicaratildeo agrave anaacutelise do fragmento do Canto

IX a ser estudado posteriormente Teratildeo lugar nesta anaacutelise inicial e nas posteriores

referecircncias teoacutericas acerca de cada um dos tradutores de modo a se construir

paulatinamente um conjunto significativo de informaccedilotildees acerca das diretrizes e dos

procedimentos que lhes satildeo proacuteprios

167Obs a numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego

155

Observe-se relativamente agraves diversas traduccedilotildees que a proacutepria imposiccedilatildeo de

regularidade meacutetrica ndash um dos elementos que integram o conjunto de caracteriacutesticas de

teor esteacutetico do poema original considerado por todos os tradutores independentemente

de sua oacuteptica diferenciada a respeito do traduzir ndash seraacute evidentemente um fator

determinante para que nenhum dos textos em portuguecircs se oriente de modo imperativo

pela ldquoliteralidaderdquo168

(jaacute dificultada no caso em princiacutepio pela grande distacircncia

existente no plano morfossintaacutetico entre as liacutenguas envolvidas) Cada um desses

tradutores agrave sua maneira procura recriar os versos em conformidade com o padratildeo

formal adotado cuja regularidade busca corresponder agrave uniformidade meacutetrica do

original isto jaacute representa uma opccedilatildeo comum por natildeo priorizar radicalmente uma

suposta ldquofidelidade de sentidordquo centrada na ideia de uma ldquoliteralidade semacircnticardquo

embora esta ideia se revele em niacuteveis diversos de intencionalidade entre esses

tradutores

No caso de Carlos Alberto Nunes a escolha por versos de dezesseis siacutelabas

tenderia a favorecer de certa forma devido agrave sua extensatildeo se natildeo a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo

possibilidades de correspondecircncia maior de sentido que poderia ser buscada por meio

de soluccedilotildees como a ldquotransposiccedilatildeordquo169

e a ldquomodulaccedilatildeordquo170

Observe-se ainda em relaccedilatildeo

a esse tradutor que a extensatildeo do verso natildeo se origina de um criteacuterio voltado ao aspecto

semacircntico mas sim obedece a uma transferecircncia matemaacutetica do hexacircmetro dactiacutelico

para o sistema silaacutebico-tocircnico de nossa liacutengua resultando portanto em seis segmentos

sendo cinco formados por uma siacutelaba tocircnica seguida de duas aacutetonas (correspondendo agraves

siacutelabas longas e breves do peacute grego) e um uacuteltimo por uma tocircnica seguida de uma aacutetona

(agrave semelhanccedila do uacuteltimo peacute do hexacircmetro) Podemos representar da seguinte maneira o

modelo meacutetrico adotado por Nunes utilizando-se os siacutembolos relativos a siacutelabas longas

e breves para representar as tocircnicas e aacutetonas

168 Entende-se aqui o termo ldquoliteralidaderdquo como relativo agrave ldquotraduccedilatildeo palavra-por-palavrardquo 169 A transposiccedilatildeo conforme a entende Francis Aubert acontece ldquo[] sempre que ocorrerem rearranjos

morfossintaacuteticosrdquo que podem envolver o desdobramento de uma palavra em duas ou a condensaccedilatildeo de

duas palavras numa soacute alteraccedilotildees na ordem das palavras (inversotildees e deslocamentos) A transposiccedilatildeo eacute

um dos desdobramentos da literalidade que segundo esse autor ldquomanifesta-se como um conjunto de

soluccedilotildees tradutoacuterias [] em que a passagem do texto original para o traduzido faz-se [] de forma direta valendo-se de soluccedilotildees configuradoras de uma certa sinoniacutemia interlinguiacutestica e interculturalrdquo AUBERT

Francis Henrik ldquoEm busca das refraccedilotildees na literatura brasileira traduzida ndash revendo a ferramenta de

anaacuteliserdquo In Literatura e sociedade no 9 Satildeo Paulo USP 2006 170 ldquoRegistra-se como modulaccedilatildeo a soluccedilatildeo tradutoacuteria que resulta em uma alteraccedilatildeo perceptiacutevel na

estrutura semacircntica de superfiacutecie embora retenha fundamentalmente o mesmo efeito geral de sentido

denotativo no contexto em questatildeordquo (AUBERT 2006)

156

ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashU

Sobre o hexacircmetro dactiacutelico e sobre sua opccedilatildeo meacutetrica ao traduzir a eacutepica

homeacuterica diz o proacuteprio Carlos A Nunes ldquo[] [a] medida exclusiva da epopeia grega o

hexacircmetro [] iria impor-se depois na literatura latina e em parte nas modernas

como o verso mais adequado para esse gecircnero de poesia (1962 38)rdquo Conforme o autor

explicita (revejam-se as citaccedilotildees do autor incluiacutedas na paacutegina 112 deste estudo) para ele

a caracteriacutestica riacutetmico-meacutetrica da eacutepica grega lhe eacute essencial e como tal deve ser

tomada como referecircncia para a traduccedilatildeo dos poemas gregos No entanto note-se que a

transposiccedilatildeo do hexacircmetro operada por Nunes pode corresponder ao metro grego em

medida mas natildeo poderaacute equivaler a este plenamente devido agrave proacutepria diferenccedila

fundamental entre as siacutelabas longas e breves por um lado e tocircnicas e aacutetonas por outro

A ldquomonotoniardquo a que o tradutor se refere como proacutepria do hexacircmetro aplica-se antes ao

verso correspondente em nossa liacutengua uma vez que as possibilidades de combinaccedilatildeo

entre as siacutelabas longas e breves satildeo muacuteltiplas no verso grego (devido agrave usual

substituiccedilatildeo de duas breves por uma longa) o que incluiacutea a diversidade no padratildeo fixo

aleacutem disso a proacutepria melopeia caracteriacutestica do verso grego (decorrente das elevaccedilotildees e

descensos determinados pela acentuaccedilatildeo) estabelecia uma dinacircmica que natildeo encontra

equivalecircncia no verso em portuguecircs

Observe-se a escansatildeo dos versos tomados para referecircncia marcando-se a

divisatildeo das siacutelabas com barra ( ) e as siacutelabas tocircnicas com sublinhas ( _ )

Is so dis se e le me dro so o an ci atildeo se cur vou agraves a mea ccedilas

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

e ta ci tur no se foi pe la prai a do mar res so nan te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

Diz Nunes que ldquouma traduccedilatildeo deve apresentar-se como criaccedilatildeo nova quando

natildeo for apreciada como obra original eacute porque falhou na finalidade de nacionalizar o

157

modelordquo (s d 143) Tal afirmaccedilatildeo aproxima sua oacuteptica em relaccedilatildeo ao traduzir daquela

que concebe a traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo (a ser apresentada quando abordar-se aqui a

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos) e ao mesmo tempo define-a como uma visatildeo que

encara o trabalho tradutoacuterio como associado agrave ideia de ldquonacionalizaccedilatildeordquo o que

suponho equivaleria a dizer que se busca inserir uma obra estrangeira na cultura local

de modo a fazer com que pareccedila escrita na liacutengua de chegada (neste aspecto como

veremos distingue-se da visatildeo de H de Campos acerca de recriaccedilatildeo poeacutetica) Eacute nesse

sentido pode-se entender que Nunes fala de ldquoobra originalrdquo embora este conceito

tambeacutem possa estender-se a uma ideia que desobriga o texto traduzido de ldquofidelidaderdquo

semacircntica absoluta em relaccedilatildeo ao original e isto se confirma pela prioridade que ele

estabelece ao padratildeo meacutetrico que como se disse impotildee inevitaacuteveis distanciamentos da

ldquoliteralidaderdquo

O verso longo de Nunes se por um lado facilita o arranjo semacircntico para dar

conta de todos os elementos envolvidos pela narrativa por outro tende a aproximaacute-lo da

prosa No entanto natildeo impede a ocorrecircncia de momentos de densidade sonora que

aleacutem do mais podem contrapor-se agrave monotonia que se costuma atribuir a suas

traduccedilotildees eacute o caso do verso ldquoe taciturno se foi pela praia do mar ressoanterdquo cujas

aliteraccedilotildees em p e em t atribuem-lhe uma concentraccedilatildeo sonora desejaacutevel ao verso

(considerando-se a do original) ainda que ldquomar ressoanterdquo enfraqueccedila a sonoridade da

expressatildeo formular

Na traduccedilatildeo do preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes o emprego

de versos decassiacutelabos (considerado desde o classicismo ndash eacute o modelo usado por

Camotildees em Os lusiacuteadas uma espeacutecie de ldquoreescriturardquo da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem

composta em hexacircmetros dactiacutelicos ndash um correspondente do verso heroacuteico capaz da

mesma dicccedilatildeo elevada) obriga a uma busca de siacutentese (e eacute como veremos tambeacutem

adotado por esta procura) que em princiacutepio pode levar a ldquoomissotildeesrdquo171

e que

ocasionou uma significativa diminuiccedilatildeo do nuacutemero de versos dos poemas eacutepicos por ele

traduzidos (no caso da Iliacuteada o nuacutemero de versos do original 804 desceu para 652) eacute

por isso a traduccedilatildeo que tende agrave menor ldquoliteralidaderdquo (correspondecircncia ldquopalavra-a-

palavrardquo ndash embora como se poderaacute ver nos fragmentos analisados costume manter toda

171 ldquoOcorre omissatildeo sempre que um dado segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo

podem ser recuperados no texto metardquo (AUBERT 2006)

158

a ldquoinformaccedilatildeo essencialrdquo ndash e sendo marcada por uma niacutetida procura de recriaccedilatildeo

esteacutetica conforme os padrotildees vigentes em sua eacutepoca isto natildeo impediu ndash como observa

de um ponto de vista criacutetico Haroldo de Campos ndash que obtivesse soluccedilotildees poeticamente

referenciais (como eacute o caso da sequecircncia ldquofluctissonantes praiasrdquo presente nos versos

aqui abordados) e no conjunto conserve hoje o atrativo de um texto com qualidade

esteacutetica inegaacutevel sobrevivente na modernidade

Mostra-se a seguir a escansatildeo dos versos de Odorico apresentados um heroacuteico

(com tocircnica principal na sexta siacutelaba) e outro saacutefico (com tocircnicas principais da quarta e

oitava siacutelabas) que ilustram a variabilidade do decassiacutelabo por ele utilizado ao modo

camoniano

O primeiro deles permite trecircs formas de escansatildeo conforme se opte ou natildeo

pelas diferentes elisotildees172

possiacuteveis

(Primeira possibilidade)

Ta ci tur no o an ci atildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Segunda possibilidade com sineacuterese ndash passagem de hiato a ditongo ndash em

ldquociatildeordquo natildeo se elidindo o e e o o de ldquoobedecerdquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Terceira possibilidade natildeo se elidindo o o e o an (de ldquoanciatildeordquo)

Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

O outro verso pode ser assim escandido

172 Elisatildeo ldquomodificaccedilatildeo foneacutetica decorrente do desaparecimento da vogal final aacutetona diante da inicial

vocaacutelica da palavra seguinterdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001

159

Bus ca as do mar fluc tis so nan tes prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Sobre Odorico diz tambeacutem Campos

Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o

preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares173

[]

Odorico [] soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente

onde os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas

qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo

a ideia de siacutentese [] seja para demonstrar que o portuguecircs era capaz de tanta ou

mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para acomodar em decassiacutelabos

heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para evitar as repeticcedilotildees e a

monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar com as terminaccedilotildees

diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas palavras ofereceria

na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado (1976 27)

O proacuteprio Odorico Mendes (citado por Campos) diz que ldquoSe vertecircssemos

servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a

pior das infidelidadesrdquo (ib) Como se pode notar o que outro tradutor poderia

considerar como caracteriacutestica essencial da obra homeacuterica a ser preservada numa

traduccedilatildeo eacute vista por Odorico ndash e por Haroldo de Campos que mostra compartilhar da

mesma visatildeo quanto a este aspecto ndash como indesejada devido agrave natureza diversa das

liacutenguas envolvidas de novo o aspecto da diversidade incorporada ao padratildeo repetitivo

natildeo encontra correspondente em nossa liacutengua e esta constataccedilatildeo orienta Odorico (e

tambeacutem ainda que com diferenciaccedilatildeo Campos) no sentido de recriar a eacutepica de modo a

173 Campos refere-se agrave criacutetica negativa em relaccedilatildeo a Odorico que prevaleceu desde Silvio Romero Este

diz em sua Histoacuteria da literatura brasileira ldquoQuanto agraves traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo

poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante

impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidadesrdquo (1949 35) O criacutetico qualifica de ldquoaacutesperas prosaicas

obscurasrdquo as traduccedilotildees do maranhense e chama de ldquopuerilrdquo sua ideia de ldquoprovar ser a liacutengua portuguesa

tatildeo concisa quanto o latim e o gregordquo aponta ainda outros defeitos da iniciativa do tradutor ldquoinventou

termosrdquo ldquolatinizou e grecificou termos o diabordquo ldquonum portuguecircs macarrocircnico abafou evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo Deve-se ressaltar que diversos dos defeitos apontados por Romero seriam

mais tarde considerados como suas principais virtudes por H de Campos coerentemente a pressupostos

seus como a concepccedilatildeo na natureza sinteacutetica da poesia provinda de Ezra Pound ou a ideia de ampliar os

limites da liacutengua de chegada por meio de criaccedilotildees lexicais realizadas a partir de elementos da liacutengua do

original Apoacutes a ldquorecuperaccedilatildeordquo criacutetica de Odorico a que se empenhou H de Campos sua obra tradutoacuteria

tem sido objeto de muitos estudos e referecircncias inclusive no acircmbito acadecircmico

160

natildeo envolver o que seria uma monotonia inexistente no original (para ele uma

ldquoinfidelidaderdquo) Neste sentido sua visatildeo ndash e a de Campos ndash opotildeem-se agravequela de Carlos

A Nunes quanto ao simples transporte de um padratildeo no caso o meacutetrico

Quanto agrave traduccedilatildeo de H de Campos os versos dodecassiacutelabos se natildeo permitem

um ldquoespaccedilo de manobrardquo tatildeo amplo como o possibilitado pela medida adotada por

Nunes (para o exerciacutecio de soluccedilotildees dadas pela transposiccedilatildeo e pela modulaccedilatildeo)

tampouco determinam uma restriccedilatildeo tatildeo grande quanto aquela imposta pelos

decassiacutelabos (mencione-se contudo que Campos lanccedilaraacute matildeo muitas vezes ndash agrave

semelhanccedila de O Mendes ndash de um procedimento sinteacutetico de criaccedilatildeo de neologismos

formando palavras correspondentes a compoacutesitos gregos) Espera-se portanto um

menor nuacutemero de omissotildees em seus versos que embora privilegiem o aspecto esteacutetico

ndash decorrentes que satildeo de uma concepccedilatildeo transcriadora ndash tambeacutem procuraratildeo

corresponder agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo caracteriacutesticas da funccedilatildeo poeacutetica da

linguagem na concepccedilatildeo jakobsoniana a qual natildeo seraacute perdida de vista pelo tradutor

ainda que este natildeo busque a ldquoliteralidaderdquo da equivalecircncia

Ficam assim os versos de Campos escandidos

Fin dou a fa la e o an ciatildeo re tro ce deu me dro so

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

mu do ao lon go do mar de po liacutes so nas prai as

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Em seus versos (no caso ambos alexandrinos pela cesura na sexta siacutelaba)

Campos adota procedimentos regulares de elisatildeo e sineacuterese (caso de anciatildeo) que

permitem (principalmente a uacuteltima) um certo ganho quantitativo relativo ao nuacutemero de

siacutelabas (ou seja com a providecircncia das sinalefas174

amplia-se um pouco o espaccedilo dos

versos) Seraacute possiacutevel conferir os procedimentos em exemplos futuros

Acerca da visatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica considere-se a

apresentaccedilatildeo de seu pensamento no segundo capiacutetulo deste trabalho

174 Sinalefa ldquofenocircmeno de transformaccedilatildeo de duas siacutelabas em uma por elisatildeo crase ou sineacutereserdquo

(Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001)

161

Voltemos a considerar as caracteriacutesticas das traduccedilotildees apresentadas a partir de

uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo (ldquopalavra-por-palavrardquo) dos citados versos gregos que pode ser a

seguinte

Quanto ao primeiro verso observamos que o primeiro segmento hos

eacutephatrsquo(assim ndash ou dessa maneira ndash dizia) um elemento formular muitas vezes repetido

ao longo dos poemas homeacutericos ndash natildeo encontra correspondecircncia literal em nenhuma das

trecircs traduccedilotildees consideradas pode-se apontar a versatildeo de Nunes (ldquoIsso disse elerdquo) como

a menos distante da literalidade por se referir ao que foi expresso antes (ldquoissordquo) e

conservar o verbo ldquodizerrdquo provavelmente a substituiccedilatildeo de ldquoassimrdquo (adveacuterbio) por

ldquoissordquo (pronome) tenha decorrido da necessidade de se iniciar o verso sempre com uma

siacutelaba tocircnica e de fato essa eacute a forma empregada pelo tradutor como correspondente a

tal foacutermula No caso de Odorico o segmento eacute omitido e no de Campos transforma-se

em ldquofindou a falardquo soluccedilatildeo que sugere a intenccedilatildeo antes de se criar um efeito aliterante

do que corresponder agrave foacutermula sob um ponto de vista da literalidade de sentido ndash e que eacute

coerente com a perspectiva da recriaccedilatildeo que visa as relaccedilotildees esteacuteticas internas aos

versos na liacutengua de chegada podendo corresponder isomorficamente agrave densidade de

relaccedilotildees do original sem no entanto a obrigatoriedade do cumprimento de regras fixas

advindas deste (como as foacutermulas em seu aspecto fixo e repetitivo) uma vez que o

ldquocorpo isomoacuterficordquo tambeacutem se estruturaraacute a partir de caracteriacutesticas que lhe satildeo

intriacutensecas Em relaccedilatildeo ao restante do verso embora tambeacutem natildeo se encontre

correspondecircncia literal em nenhuma das traduccedilotildees novamente eacute a de Nunes (ldquomedroso

o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilasrdquo) que conserva mais correspondecircncias de posiccedilotildees

relativas de seus elementos ldquoanciatildeordquo que no original aparece logo apoacutes o verbo ali

aparece apoacutes o adjetivo relativo a esse verbo ldquoagraves ameaccedilasrdquo aparece correspondendo a

(myacutethoi) (palavra discurso ordem) que estando no caso dativo envolve a

atribuiccedilatildeo representada em portuguecircs por ldquoagraverdquo e ldquose curvourdquo corresponde a

(epeyacutetheto) (imperfeito do indicativo voz meacutedia do verbo peitoacute persuadir

162

significando que o anciatildeo deixou-se persuadir pela ordem ou seja cedeu a ela usamos

ldquocedeurdquo na traduccedilatildeo referida como ldquoliteralrdquo o que pode ser considerado sinocircnimo)

Odorico inclui nesse verso um elemento que se encontra no verso seguinte

(recorrendo portanto a uma transposiccedilatildeo de palavra de um verso a outro) ldquotaciturnordquo

(relativo a (akeacuteon) calado mudo) e substitui metonimicamente o verbo

ldquotemeurdquo por ldquotremerdquo fazendo corresponder ldquoobedecerdquo ao sentido relativo a

(peitoacute) e omitindo seu complemento a ordem () (myacutethoi) H de Campos

utiliza como verbo do segmento ldquoretrocedeurdquo sugerindo com ele ao mesmo tempo a

desistecircncia o voltar atraacutes do anciatildeo (que alude portanto a seu cedimento) e o andar de

volta pela praia adota tambeacutem em lugar do verbo ldquotemerrdquo a mesma palavra

ldquomedrosordquo (usada por Nunes) encadeando-a com outro adjetivo que inicia o verso

seguinte ldquomudordquo o que permite natildeo soacute a associaccedilatildeo imediata de qualificativos

(concentrando e reforccedilando a imagem do estado do anciatildeo) como traccedilar uma sequecircncia

aliterante que envolveraacute tambeacutem a palavra ldquomarrdquo mais agrave frente

Sobre o segundo verso pode-se observar que a traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

tambeacutem eacute a que mais se aproxima da literalidade apenas recorrendo agrave mudanccedila de

ordem (transposiccedilatildeo) ldquofoi-serdquo corresponde a aoristo do verbo (andar

caminhar ir-se) ldquotaciturnordquo refere-se a ldquordquo (mudo calado taciturno) ldquopela praia

do mar ressoanterdquo pode-se considerar que corresponde integralmente a

(paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses) tendo-

se optado por uma palavra corrente na liacutengua (ressoante) em lugar de um possiacutevel

neologismo correspondente a invertendo-se a ordem do adjetivo e do

substantivo A traduccedilatildeo de Odorico Mendes emprega ldquobuscardquo para referir-se a (o

que permite dizer que se manteacutem no campo semacircntico de correspondecircncias) e altera a

sintaxe do segmento seguinte atribuindo o adjetivo ldquofluctissonanterdquo (de inegaacutevel

qualidade esteacutetica tendo-se em conta o composto grego) agraves praias e natildeo ao mar como

ocorre no grego (no original e ambos no genitivo estatildeo

associados) a sequecircncia ldquoas do mar fluctissonantes praiasrdquo em vez da mais esperada

em portuguecircs (as praias fluctissonantes do mar) provavelmente se tenha definido pela

questatildeo do metro bem como por outras razotildees de ordem riacutetmico-esteacutetica Haroldo de

Campos recorre agrave mesma alteraccedilatildeo sintaacutetica realizada por Odorico atribuindo o adjetivo

(ldquopoliacutessonasrdquo) a ldquopraiasrdquo e natildeo a ldquomarrdquo o que sugere mais uma vez o seu desapego (e

tambeacutem de Odorico) em relaccedilatildeo agrave literalidade eacute evidente neste caso como jaacute se

163

apontou antes a opccedilatildeo pela escolha de palavras e sequecircncias que atendam ao propoacutesito

central de (re)criaccedilatildeo de um verso que ofereccedila paramorficamente uma densidade

sonora compatiacutevel com a melopeia grega (isso natildeo impede obviamente que natildeo ocorra

por vezes o uso de elementos de correspondecircncia direta como eacute o caso de ldquoao longo derdquo

em relaccedilatildeo a que ao mesmo tempo se conforma perfeitamente ao encadeamento

de sons nasais ocasionando o efeito particularmente bem-sucedido de sua associaccedilatildeo

com ldquopoliacutessonasrdquo (on ndash on) Devido aos objetivos do tradutor e agrave sua competecircncia

poeacutetica obteacutem-se um verso plenamente realizado em termos esteacuteticos que permitiraacute a

visatildeo de sua superioridade (relativa agraves demais versotildees apresentadas) quando a avaliaccedilatildeo

for pelo criteacuterio (ou pela percepccedilatildeo) da ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo e da proacutepria

construccedilatildeo sonora que encerra

Em relaccedilatildeo agrave natureza oral da composiccedilatildeo homeacuterica a traduccedilatildeo que mais se

afina com seus elementos formulares eacute a de Nunes pois como se viu a soluccedilatildeo por ele

empregada inclui neste fragmento a repeticcedilatildeo da foacutermula na mesma posiccedilatildeo eacute o caso

de ldquoIsso disse elerdquo no iniacutecio dos versos O tradutor contudo variaraacute a posiccedilatildeo de

foacutermulas ndash caso de como se veraacute no fragmento do Canto

IX ndash visando a adequaccedilatildeo aos paracircmetros de seu proacuteprio verso Os demais tradutores

conforme esperado natildeo consideram a necessidade de manter repeticcedilotildees formulares

proacuteprias da eacutepica (independentemente de sua visatildeo acerca da natureza ndash oral ou escrita ndash

da composiccedilatildeo) voltados que satildeo antes (como jaacute se disse) agraves qualidades intriacutensecas de

seus proacuteprios versos

Tratando-se da assunccedilatildeo de paracircmetros da proacutepria eacutepica e da consideraccedilatildeo de

sua oralidade eacute interessante acrescentar-se ao conjunto de traduccedilotildees ateacute agora estudadas

a publicada mais recentemente por Andreacute Malta (que se dedicou a traduzir os cantos I

IX XVI e XXIV da Iliacuteada)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

Assim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceu

Partiu mudo pela praia do murmurejante mar

(2006 310)

164

Note-se primeiramente nesta traduccedilatildeo o padratildeo meacutetrico adotado segundo o

tradutor o metro proposto

corresponde no Brasil junto com o decassiacutelabo de Odorico Mendes o hexacircmetro

de Carlos Alberto Nunes o verso livre de Jaa Torrano e o dodecassiacutelabo de

Haroldo de Campos a mais uma tentativa de encontrar em nossa liacutengua um

equivalente para o hexacircmetro grego tatildeo estranho agraves nossas medidas de poesia

escrita Trata-se de uma linha elaacutestica e maleaacutevel de 14 a 17 siacutelabas em cuja base

estatildeo duas redondilhas maiores metrificadas com matildeo leve muitas vezes

imprecisa sem a cesura de praxe A validade do recurso a esse metro baacutesico de

sete siacutelabas ndash sem tradiccedilatildeo heroacuteica entre noacutes ndash reside no fato de ser largamente

verificado na poesia popular e oral e dessa forma se aparentar de algum modo agrave

eacutepica grega ndash aleacutem de servir ao nosso propoacutesito de buscar o simples e andar nos

arredores da prosa (2006 6)

O ponto de vista do tradutor considera como se pode ver as diversas propostas

tradutoacuterias como diferentes tentativas de equivalecircncia ao hexacircmetro grego por ser esta

sua oacuteptica relaciona traduccedilotildees como as de Odorico e de Campos a uma

intencionalidade estranha ao propoacutesito que lhes eacute inerente (como vimos estes tradutores

natildeo propotildeem propriamente equivalecircncia meacutetrica mas sim a recriaccedilatildeo no metro que

sob seu proacuteprio ponto de vista permite a realizaccedilatildeo esteacutetica mais satisfatoacuteria do poema

eacutepico dentro dos paracircmetros da poesia em sua proacutepria liacutengua ao mesmo tempo que

anaacuteloga ao original sob um certo ponto de vista esteacutetico) (Eacute a perspectiva desta

relatividade ndash jaacute referida neste estudo ndash que se mostra indispensaacutevel quando se aborda a

produccedilatildeo de um tradutor jaacute que coexistem diferentes visotildees acerca do que deve ser

considerado e priorizado em traduccedilatildeo poeacutetica e no caso na traduccedilatildeo da poesia eacutepica

arcaica em particular)

A realizaccedilatildeo de Malta utiliza como base um metro popular em nossa liacutengua a

redondilha maior por ser este caracteriacutestico das produccedilotildees orais em portuguecircs

revelando assim que considera essencial para a traduccedilatildeo da obra homeacuterica a

equivalecircncia agrave sua natureza oral adota portanto como princiacutepio ndash agrave semelhanccedila de

Carlos Alberto Nunes ndash um valor de referecircncia externo agrave proacutepria necessidade do verso

eacutepico em liacutengua portuguesa se pensada intrinsecamente agrave sua elaboraccedilatildeo Usa no

entanto por necessidade ligada agrave dimensatildeo semacircntica do longo verso grego um duplo

165

da redondilha aproximando-se em extensatildeo do verso nunesiano mas eacute soacute neste

aspecto que se pode assemelhar seu trabalho ao de Nunes uma vez que a maleabilidade

do verso (referida pelo tradutor) ocasionada pela variaccedilatildeo meacutetrica decorrente da

existecircncia ou natildeo de elisatildeo entre um verso e outro traz um dinamismo que praticamente

inexiste na recriaccedilatildeo de Nunes (restringe-se nesta apenas agrave alternacircncia das cesuras)

Note-se ainda que coerentemente agrave busca de equivalecircncia aos padrotildees da

epopeia grega a traduccedilatildeo de Malta eacute a uacutenica a trazer ldquoliteralmenterdquo a foacutermula ldquoAssim

disserdquo que eacute sempre repetida ndash assim como outras expressotildees formulares ndash da mesma

forma nos versos em que aparece

Sobre os versos pode-se constatar devido agrave sua coloquialidade a coerecircncia

entre o resultado e o propoacutesito do ldquosimplesrdquo e de ldquoandar nos arredores da prosardquo

ldquoAssim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceurdquo a natildeo ser pela inversatildeo do iniacutecio

aproxima-se de uma frase prosaica e mesmo oral pela repeticcedilatildeo sequencial dos verbos

e conjunccedilotildees o outro verso embora tambeacutem encerre uma inversatildeo mais marcante que

a anterior (as inversotildees parecem coexistir com o aspecto prosaico em funccedilatildeo de

imposiccedilatildeo meacutetrica) natildeo chega a perder o tom coloquial ditado por seu iniacutecio

apresentando uma sequecircncia aliterante que pode indicar a preocupaccedilatildeo do tradutor

tambeacutem com este aspecto ldquopartiu ndash praiardquo e ldquomudo ndash murmurejante ndash marrdquo tal

encadeamento ainda que se possa questionar sua adequaccedilatildeo no plano da relaccedilatildeo entre

som e sentido ao teor do verso (pela cadeia mu ndash mu ndash mu) constroacutei uma frase dotada

de densidade sonora

Canto IX

Siacutentese do argumento

Os gregos obrigados no Canto VIII a recuar a suas fortificaccedilotildees pelos troianos

estatildeo com o acircnimo dilacerado Setecentos homens posicionam-se entre a muralha e o

fosso para proteger o exeacutercito Nestor propotildee que se tente amainar a ira de Aquiles

com o objetivo de trazecirc-lo de volta agrave luta Agamecircmnon concorda dispondo-se a

devolver Briseida ao heroacutei aleacutem de lhe dar muitas e valiosas daacutedivas como reparaccedilatildeo

Nestor designa Fecircnix Aacutejax e Odisseu para irem ateacute Aquiles e realizarem a suacuteplica Os

visitantes encontram Aquiles e Paacutetroclo com a lira nas matildeos Aquiles canta Bem

166

recebidos pelo heroacutei Odisseu Fecircnix e Aacutejax discursam sempre seguidos de resposta de

Aquiles que natildeo aceita a retrataccedilatildeo recusando-se a lutar contra Heitor Odisseu e Aacutejax

retornam agrave tenda de Agamecircmnon e comunicam que Aquiles natildeo soacute natildeo lutaraacute como

ameaccedila voltar a Ftia sua terra natal Diomedes diz que natildeo deveriam ter suplicado a

Aquiles pois isto o tornou ainda mais insolente e incita os chefes agrave luta no dia seguinte

Veja-se a seguir o fragmento escolhido no original e nas quatro traduccedilotildees

(inclui-se agora entre elas a de Andreacute Malta)

IX 162-198

167

Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)

(A numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego)

130 Inda o Gereacutenio Soberano egreacutegio

Dons natildeo despiciendos lhe destinas

Legados sus ao pavilhatildeo de Aquiles

Aqui mesmo os nomeio e natildeo recusem

135 Feacutenix guie de Juacutepiter privado

O magno Ajax o sapiente Ulisses

E arautos Hoacutedio e Euribates com eles

Aacuteguas agraves matildeos freio agraves liacutenguas deprequemos

De noacutes se comisere o deus supremo

140 O aviltre aceitam linfa arautos vertem

E de urnas coroadas vertem servos

Dos auspicantes pelos copos vinho

Fartos de libaccedilotildees iam saindo

168

Nestor a cada um lanccedilando os olhos

145 E ao Laeacuterticles mais no empenho os firma

De abrandar o magnacircnimo Pelides

Pelas do mar fluctissonantes praias

Ao padre Enosigeu vatildeo suplicando

Que as entranhas do Eaacutecida comova

150 Jaacute no arraial dos Mirmidotildees o encontram

A recrear-se na artefacta lira

Que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros dEtion faccedilanhas

De valentes cantava e soacute Patroclo

155 Taacutecito agrave espera estaacute que finde o canto

Chegam-se agrave testa Ulisses e o Pelejo

Em peacute na sestra a lira estupefato

Com seu fido consoacutecio as destras cerra

Que urge a que vindes Bem que irado amigos

160 Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezo

(2003 216-217)

Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes (1897 ndash 1990)

Disse-lhe tudo o Gerecircnio Nestor condutor de cavalos

Filho glorioso de Atreu Agameacutemnone rei poderoso

o que ofereces a Aquiles de fato natildeo eacute despiciendo

Ora sem perda de tempo emissaacuterios a jeito escolhamos

para os enviar com recados agrave tenda de Aquiles Peleio

Deixa que eu proacuteprio os nomeie ningueacutem objeccedilotildees anteponha

A direccedilatildeo tome o heroacutei predileto dos deuses Fenice

o grande Ajaz depois venha e Odisseu o divino guerreiro

Sigam tambeacutem como arautos Odio e o impecaacutevel Euriacutebates

As matildeos lavemos observe-se em tudo completo silecircncio

quando imploramos a Zeus que haacute de ter de noacutes todos piedaderdquo

Foi o discurso do velho Nestor agradaacutevel a todos

Fazem vir aacutegua e os arautos por cima das matildeos a despejam

Teacute pelas bordas escravos as taccedilas encheram de vinho

distribuindo por todos os copos as sacras primiacutecias

169

Logo que todos haviam comido e bebido agrave vontade

os emissaacuterios deixaram a tenda do Atrida Agameacutemnone

Observaccedilotildees a ecircles todos o velho Nestor faz ainda

acompanhadas de olhar expressivo a Odisseu com mais ecircnfase

socircbre a maneira melhor de suadir o divino Pelida

Ambos entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

preces alccedilando a Posido que os muros da terra sacode

para que focircsse possiacutevel dobrar o Pelida altanado

Quando chegaram agraves tendas e naves dos fortes Mirmiacutedones

aiacute enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora

de cavalete de prata tocircda ela de bela feitura

que ecircle do espoacutelio do burgo de Eeciatildeo para si separara

O coraccedilatildeo deleitava faccedilanhas de heroacuteis decantando

Em frente decircle sogravemente calado encontrava-se Paacutetroclo

Pacientemente a esperar que o Pelida concluiacutesse o seu canto

Ambos entatildeo avanccedilaram servia Odisseu como guia

Param defronte do heroacutei Espantado de vecirc-los Aquiles

sem que o instrumento soltasse a cadeira de um salto abandona

O mesmo Paacutetroclo fecircz ao notar a presenccedila de estranhos

A ambos Aquiles veloz cumprimenta dizendo o seguinte

Salve Bem grave eacute sem duacutevida a causa de aqui terdes vindo

Ainda que muito agastado sois ambos os que eu mais distingo

(S d 208)

Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos

Neacutestor entatildeo ginete exiacutemio redarguiu

Glorioso Atreide rei-dos-homens Agamecircmnon

natildeo despreziacuteveis dons ofereces a Aquiles

Mas raacutepido emissaacuterios de escol para a tenda 165

do filho de Peleu se dirijam Avante

Aqueles para os quais acene me obedeccedilam

Fecircnix seja o primeiro em comando cariacutessimo

a Zeus Entatildeo o grande Aacutejax Odisseu divo

e os arautos Odio e Euriacutebates os dois 170

Que se lavem as matildeos em silecircncio augurai

170

Roguemos a Zeus Pai piedade para os Gregos

Falou Palavras gratas aos ouvintes todos

Os arautos de pronto versam aacutegua agraves matildeos

e os mais jovens coroaram de vinho as crateras 175

ateacute as bordas e a todos encheram as copas

Feitas as libaccedilotildees aos deuses todos bebem

de coraccedilatildeo agrave larga e da tenda do Atreide

Agamecircmnon se vatildeo Neacutestor Gerenio exiacutemio

ginete faz apelos de olhar a eles todos 180

sobretudo a Odisseu encarece persuada

Aquiles o Peleide imaacuteculo Entatildeo eles

pelas praias do mar polissonoras marcham

muitas preces erguendo ao deus circum-terrestre

a Posecircidon Tremor-de-terra que movesse 185

o coraccedilatildeo de Aquiles Junto agraves naus e tendas

dos Mirmidotildees o encontram Tangia uma lira

mdash cordas presas em trave de prata mdash artefato

dedaacuteleo que o enlevava do espoacutelio de Eeciatildeo

e a cujos sons cantava gestas de heroacuteis Paacutetroclo 190

soacute silencioso senta-lhe defronte e espera

que ele termine o canto Odisseu guiando os nuacutenciacuteos

chegam agrave frente dele e param O Peleide

sustendo a lira salta abismado do soacutelio

onde sentava Paacutetroclo ao vecirc-los levanta-se 195

Aquiles peacutes-velozes daacute-lhes as boas-vindas

Salve Eis aqui guerreiros amigos Algum

motivo urgente grave eacute que vos traz a mim

Ainda que irado sois-me entre os Gregos cariacutessimos

(2002 339)

Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta

E respondeu-lhe em seguida Nestor velho cavaleiro

Atrida assinaladiacutessimo senhor de homens Agamecircnon

daacutedivas natildeo indevidas daacutes ao soberano Aquiles

Mas vamos seletos homens incitemos que depressa 165

171

se dirijam agrave cabana dele do Pelida Aquiles

anda aqueles em quem eu puser os olhos acatem

que primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frente

e entatildeo em seguida Max grande e o divino Odisseu

dentre os arautos que Odio e Euriacutebato os acompanhem 170

Trazei aacutegua para as matildeos e solicitai silecircncio

para que oremos a Zeus Cronida a ver se tem pena

Disse assim e proferiu fala grata a todos eles

Os arautos de imediato vertem aacutegua sobre as matildeos

os jovens enchem entatildeo as crateras de bebida 175

e as distribuem a todos mdash libando antes com os caacutelices

Apoacutes libar e beber quanto o acircnimo queria

se apressaram da cabana dele do Atrida Agamecircnon

E a eles muito ordenou Nestor velho cavaleiro

(olhando pra cada uni) sobretudo a Odisseu 180

que tentassem convencer ao ilibado Pelida

E partiram pela praia do murmurejante mar

ambos clamando muitiacutessimo ao Terra-tem Treme-terra

por convencer facilmente o grande acircnimo do Eaacutecida

E chegaram logo agraves naus e agraves cabanas dos mirmiacutedones 185

o encontraram deliciando o acircnimo com lira liacutempida

bela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)

que apanhara dos despojos destruiacuteda a polis de Eeacutecion

Com ela se deliciava cantando as gloacuterias dos homens

Sozinho com ele Paacutetroclo sentava em frente em silecircncio 190

aguardando quando o Eaacutecida terminasse de cantar

Os dois avanccedilam mdash agrave frente vai o divino Odisseu mdash

e param diante dele atocircnito Aquiles se ergue

a lira ainda nas matildeos deixando o assento em que estava

Paacutetroclo do mesmo modo ao ver os heroacuteis levanta-se 195

E saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquiles

Salve Entrai sim como amigos (sim eacute grande a precisatildeo)

voacutes que a mim sois mdash mesmo irado mdash os mais caros dos acaiosrdquo

(2006 334)

172

Comentaacuterios sobre o fragmento

Passemos ao largo de algumas questotildees importantes relativas ao episoacutedio para

nos atermos agravequelas ligadas a esse breve fragmento (e particularmente como as vecircem

alguns dos tradutores escolhidos) antes de procedermos agrave anaacutelise das traduccedilotildees

Um aspecto do fragmento a se ressaltar jaacute muito discutido por estudiosos da

obra homeacuterica eacute a questatildeo do uso repetido de verbos na forma dual (proacutepria para a

dupla) a partir do verso 182 uma vez que foram trecircs os enviados agrave tenda de Aquiles

(Fecircnix Aacutejax e Odisseu) Sobre este tema (compartilhando em sua explicaccedilatildeo da visatildeo

de Denys Page manifestada no apecircndice agrave sua obra History and the homeric Iliad

1959) diz Carlos Alberto Nunes

O que importa eacute chegarmos ao verso 182 no ponto em que se diz que como os

componentes da embaixada se puseram a caminho depois de ouvidas as uacuteltimas

recomendaccedilotildees de Nestor ldquoAmbosrdquo entatildeo pela praia do mar ressoante se foram

Como se eram trecircs os embaixadores Dez linhas adiante encontramos novamente

o dual quando os emissaacuterios chegam agrave tenda de Aquiles e tambeacutem na saudaccedilatildeo

com que este os recebe num misto de surpresa e alegria ainda que muito agastado

ldquosois ambosrdquo os que eu mais distingo

Os partidaacuterios da unidade a todo custo dos poemas de Homero recorrem a

subterfuacutegios para explicar a irregularidade mas o fato eacute que o Canto IX da Iliacuteada

tal como nos foi transmitido deixa perceber as suturas por que passou o episoacutedio

da embaixada ao ser incorporado na trama do poema [] No primitivo traccedilado os

embaixadores eram apenas dois Ajaz e Odisseu [] Aleacutem do mais as falas dos

dois primeiros se diferenciam estilisticamente da de Fenice []

Mas natildeo eacute tudo dizer-se que o canto da embaixada sofreu retoques todo ele soacute mui

tardiamente foi incorporado agrave Iliacuteada

Ao abordar esta questatildeo Andreacute Malta considerando outras hipoacuteteses relativas a

ela175

observa que ldquoFecircnix natildeo segue com eles [Aacutejax e Odisseu] pois fora na frente o

que explica a repetida conjugaccedilatildeo dos verbos no dual a partir desse pontordquo

esclarecendo que ldquodevemos [] simplesmente entender que no texto (v 168

hegesaacutestho) estaacute indicado que Fecircnix foi na frente (e natildeo agrave frente) e natildeo avisou Aquiles

175O referido autor menciona a ediccedilatildeo de Jasper Griffin do Canto IX ndash Homer Iliad IX Oxford 1995 e a

obra de Pierre Chantraine Grammaire homeacuterique Paris 19481953

173

da vinda dos companheirosrdquo (2006 295) Para o autor assim a duacutevida se resolve

mediante a atribuiccedilatildeo do significado de ldquoir na frenterdquo equivalente a ldquoir antesrdquoagrave forma

verbal (hegesaacutestho) (imperativo aoristo voz meacutedia do verbo

egeacuteomai)) sentido considerado em sua traduccedilatildeo Escapa ao foco de interesse

deste estudo a discussatildeo acerca de tal hipoacutetese sendo-nos pertinente apenas consideraacute-

la como uma interpretaccedilatildeo determinante176

no caso de um aspecto da soluccedilatildeo

tradutoacuteria comparando-a com aquelas dadas pelos demais tradutores relativamente a

esta questatildeo (o que seraacute feito adiante)

Outro aspecto a ser apontado eacute o uso da mesma expressatildeo formular encontrada

no verso 34 do Canto I (paragrave thicircna

polyphloiacutesboio thalaacutesses) tal emprego possibilitaraacute tambeacutem a observaccedilatildeo comparativa

do procedimento adotado pelos tradutores em relaccedilatildeo agraves foacutermulas homeacutericas

Encontra-se neste fragmento a significativa passagem de Aquiles cantando ao

som de sua lira177

cena cuja descriccedilatildeo permitiraacute especialmente observar

procedimentos dos tradutores escolhidos Mas eacute a diversidade relativa aos dois versos

finais do fragmento que nos traraacute uma possibilidade clara de anaacutelise das soluccedilotildees

tradutoacuterias agrave luz da interpretaccedilatildeo em termos semacircnticos norteadora de cada uma dessas

soluccedilotildees inserida na oacuteptica ldquogeralrdquo de cada tradutor Sobre esses versos comenta Malta

acerca do uso da palavra (khreoacute) ldquoprecisatildeordquo (na afirmaccedilatildeo (eacute

ti mala khreoacute) traduzida por ele como ldquosim eacute grande a precisatildeordquo) que tal substantivo

176 Diga-se apenas que a possibilidade de tal interpretaccedilatildeo pode se dar a partir da definiccedilatildeo do verbo

encontrada em Lidell amp Scott ldquoto go before lead the wayrdquo ainda que ldquobeforerdquo tambeacutem possa

ter o sentido de ldquoagrave frente na dianteirardquo ou ldquona vanguardardquo encerra o significado de ldquoantesrdquo (Houaiss

1982) ldquolead awayrdquo (ldquolevar (conduzindo)rdquo id) eacute o outro sentido possivelmente atribuiacutedo agrave mesma

expressatildeo tomado por Page e outros 177 Dada sua relevacircncia inclua-se um comentaacuterio acerca de seus possiacuteveis sentidos a partir das

observaccedilotildees de Malta (2006) Este autor parte da colocaccedilatildeo de Bryan Hainsworth ndash segundo a qual a

motivaccedilatildeo para o canto de Aquiles seria ldquorealizar pela palavrardquo o que natildeo podia ldquorealizar em atosrdquo uma

vez que desonrado havia se afastado da luta ndash para estender a motivaccedilatildeo a um apego do heroacutei ao

ldquomecanismo de ordenaccedilatildeo e significaccedilatildeo do mundo que satildeo as palavras das Musas mecanismo

oportunamente reclamado diante de sua posiccedilatildeo de heroacutei desonradordquo tal canto consistiria num ldquocanto

pronunciado por um heroacutei que busca exatamente na glorificaccedilatildeo de feitos humanos uma sustentaccedilatildeo para

sirdquo reafirmando assim o proacuteprio ldquovalor do canto da Iliacuteada por que apontaria para o fato de que na iminecircncia da des-significaccedilatildeo eacute o canto divino que traz orientaccedilotildees (claras ou obscuras) para a vida

humanardquo Para Malta (cuja obra aqui referida tem por tema central a (aacutete) ndash definida por ele como

ldquoperdiccedilatildeordquo ndash na Iliacuteada) esse ato de Aquiles encerra um paradoxo ldquo[] a entoaccedilatildeo de um eacutepico por parte

de Aquiles aleacutem de se identificar com a afirmaccedilatildeo de seu eacutepico e de seu significado identifica-se

tambeacutem contrariamente com a negaccedilatildeo de seu eacutepico ou com a afirmaccedilatildeo de sua falta (para ele Aquiles)

de sentido por lhe surgir como grande farsa e soacute pode lhe surgir de tal modo porque o heroacutei no

momento passa a ser incapaz de perceber o alcance de seus atosrdquo (2006 150-153)

174

ldquonos remete a seu emprego pelo mesmo Aquiles no Canto I quando entatildeo afirmou aos

arautos de Agamecircnon que um dia haveria ldquoprecisatildeordquo (v 341) de que ele afastasse a

ruiacutena ultrajante dos acaios A precisatildeo de agora seria portanto a precisatildeo jaacute prevista

pelo Pelida atraacutesrdquo a presenccedila dos heroacuteis que lhe foram enviados permitiria a ele

ldquoafirmar com indisfarccedilaacutevel satisfaccedilatildeo que era chegado o momento de os acaios

reconhecerem seu valorrdquo Segundo Malta o mesmo verso no entanto tambeacutem pode

referir-se agrave ldquoprecisatildeo que o proacuteprio Aquiles tinha dos amigosrdquo ldquotanto os acaios

precisam vir a ele e lhe suplicar porque dele precisam quanto ele precisa que os acaios

a ele venham e lhe supliquem porque a suacuteplica eacute uma oportunidade de reconhecimento

do seu valorrdquo (2006 143-155) (Cabe relembrar aqui que a poesia considerada

genericamente do ponto de vista da linguagem e independentemente das

especificidades de determinada poeacutetica tem na ambiguidade uma de suas

caracteriacutesticas por este acircngulo a soluccedilatildeo da duacutevida sobre a quem se refere a palavra

ldquoprecisatildeordquo natildeo soacute natildeo eacute obrigatoacuteria como eacute indesejada pela possibilidade de ampliaccedilatildeo

de sentido que a ambiguidade proporciona (como se vecirc pela citaccedilatildeo acima))

Feitas tais consideraccedilotildees realizemos a seguir uma breve anaacutelise das traduccedilotildees

do fragmento localizada em alguns de seus pontos e caracteriacutesticas

De maneira geral a traduccedilatildeo menos voltada agrave literalidade eacute a de Manuel Odorico

Mendes No caso deste trecho seu compromisso com a siacutentese eacute particularmente

visiacutevel e se torna mesmo um caso notaacutevel de realizaccedilatildeo nesse plano usando de

transposiccedilotildees e modulaccedilotildees (notadamente inversotildees caracteriacutestica de sua dicccedilatildeo) e

evidentemente de omissotildees ndash sem contudo suprimir o que parece ldquoessencialrdquo ao

sentido e nem mesmo o detalhe em prata da lira ndash obteacutem uma descriccedilatildeo breve

dinacircmica e concentrada para a cena de Aquiles tocando seu instrumento ldquo[] o

encontram A recrear-se na artefacta lira que travessa une argecircntea insigne presa

Dos raros muros drsquoEtion faccedilanhas De valentes cantava e soacute Paacutetroclo Taacutecito agrave espera

estaacute que finde o cantordquo Note-se na passagem a alta concentraccedilatildeo tambeacutem sonora

urdida principalmente de aliteraccedilotildees que aceleram o ritmo dos versos agrave densidade do

sentido soma-se a densidade focircnica compondo uma relaccedilatildeo peculiar entre ambos que

introduz um clima contraditoriamente vibrante e tenso a uma situaccedilatildeo anunciada como

deleitosa mas ao mesmo tempo coerente com a intensidade de um canto feito de fatos

heroacuteicos a tensatildeo pode tambeacutem prenunciar a chegada abrupta dos mensageiros numa

sequecircncia igualmente admiraacutevel pela concisatildeo ldquoChegam-se agrave testa Ulisses e o Peleio

175

Em peacute na sestra a lira estupefacto com seu fido consoacutecio as destras cerra ldquoQue

urge a que vindes Bem que irado amigos Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezordquo

As aliteraccedilotildees (principalmente em t p e c aleacutem da trilha de fricativas) associadas agraves

assonacircncias e panonomaacutesias (como entre testa e sestra) perpassam tambeacutem esses

versos engendrando nesse niacutevel a continuidade das cenas e conservando sua tensatildeo

esta de certo modo culmina com o cerramento da matildeo direita (inexistente no original

um acreacutescimo portanto) e este por sua vez liga-se agrave ira pelo heroacutei referida subjacente

agrave alegria que manifesta pela chegada dos amigos natildeo me parece absurda a leitura de

que pela associaccedilatildeo som-sentido esta traduccedilatildeo arma (independentemente da

intencionalidade de seu autor) um quadro de conflito adequado ao momento paradoxal

vivido por Aquiles e agrave ldquocegueirardquo (ou ldquoperdiccedilatildeordquo) ndash (aacutete) ndash em relaccedilatildeo agraves

consequecircncias de seus atos (Sobre o original ainda que natildeo se possa afirmar que haja

neste trecho uma especial concentraccedilatildeo de aliteraccedilotildees elas estatildeo presentes de forma

clara e ateacute onde me eacute dado perceber a tensatildeo sonora estaacute presente na passagem ainda

que de forma inerentemente menos compacta que a dos decassiacutelabos de Odorico)

Tensatildeo sonora semelhante se pode perceber nos versos de Haroldo de Campos

densos envolvendo tambeacutem sequecircncias aliterantes que aceleram seu ritmo como em

ldquo[] Tangia uma lira ndash cordas presas em trave de prata ndash artefactordquo ou ldquosustendo a lira

salta abismado do soacutelio onde sentavardquo A siacutentese eacute igualmente caracteriacutestica desta

versatildeo coerentemente aos pressupostos que a orientam Quanto a este aspecto as

demais traduccedilotildees tambeacutem de modo coerente aos pressupostos de seu meacutetodo satildeo mais

analiacuteticas tendendo agrave literalidade Embora a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes possa

ser como jaacute se viu em relaccedilatildeo ao fragmento do Canto I considerada proacutexima da

literalidade eacute na traduccedilatildeo de Andreacute Malta que esta mais se realiza como no

versokalecirc daidaleacutee epigrave drsquoargyrion

zygoacuten een) traduzido como ldquobela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)rdquo em que

apenas com o recurso da transposiccedilatildeo e do acreacutescimo de uma pontuaccedilatildeo conservam-se

todas as palavras do original (ainda que com alguma modulaccedilatildeo)

Como jaacute se disse a medida dos versos usados por Malta e por Nunes tende a

favorecer a literalidade mas o primeiro parece ater-se mais a este propoacutesito associado agrave

priorizaccedilatildeo do sentido baseando-se para tanto principalmente em sua leitura

interpretativa do original fundamentada por sua vez em questotildees apontadas por

especialistas na obra homeacuterica este ponto de vista (que inclui a preocupaccedilatildeo com a

176

natureza oral da eacutepica e seu aspecto ldquopopularrdquo) eacute determinante de seu meacutetodo e do

consequente resultado distinguindo-a claramente das demais quanto ao modo de

abordagem de duacutevidas em relaccedilatildeo ao significado do original e suas ambiguidades

Vejamos este aspecto ao tratar de pontos levantados anteriormente sobre o fragmento

No caso das foacutermulas evidencia-se mais uma vez a preocupaccedilatildeo de Malta em

mantecirc-las inalteradas a cada ocorrecircncia o que natildeo sucede sempre nas demais traduccedilotildees

Campos conserva a forma de epiacutetetos (no caso ldquoAquiles peacutes-velozesrdquo ndash

correspondente a (poacutedas okys Akhilleuacutes) como estaacute no verso

196 constante do fragmento aparece por exemplo no verso 48 do Canto XVI pode

surgir no entanto em posiccedilotildees diversas e mesmo independentemente de figurar no

original como no caso do verso 166 do mesmo canto) mas natildeo de outras expressotildees

formulares como se pode constatar na foacutermula relativa ao mar se nos versos do Canto I

aparecia para (paragrave thicircna polyphloiacutesboio

thalaacutesses) ao longo do mar de poliacutessonas praias no verso 183 do Canto XIX aparece

ldquopelas praias do mar polissonorasrdquo (mesmo que se considere como foacutermula apenas a

expressatildeo (polyphloiacutesboio thalaacutesses) haacute portanto

mudanccedila) Opccedilotildees como esta que evidenciam a natildeo-obrigatoriedade da perspectiva

deste tradutor de correspondecircncia com o aspecto imutaacutevel da foacutermula tambeacutem podem

indicar o compartilhamento da visatildeo de Odorico Mendes de ldquoevitar as repeticcedilotildees e a

monotoniardquo (agrave qual estaria mais sujeita uma liacutengua natildeo-flexionaacutevel) A mesma foacutermula

tambeacutem eacute modificada por Odorico neste fragmento conservando-se no entanto em sua

principal parte em vez de ldquoBusca as do mar fluctissonantes praiasrdquo presente no Canto

I encontra-se agora ldquopelas do mar fluctissonantes praiasrdquo (fica mantida assim a

sonoridade apontada anteriormente acrescida de uma aliteraccedilatildeo entre ldquopelasrdquo e

ldquopraiasrdquo) na versatildeo de Nunes a foacutermula ldquopela praia do mar ressoanterdquo se conserva

variando apenas sua colocaccedilatildeo na frase (a mesma expressatildeo eacute usada por ele contudo

para a construccedilatildeo (regmini thalaacutesses) no verso 67 do Canto XVI o

que revela o desapego agrave repeticcedilatildeo exata do sintagma original indicando um criteacuterio de

escolha e coerecircncia interno agrave traduccedilatildeo) Quanto ao epiacuteteto atribuiacutedo a Aquiles ele

sequer aparece na traduccedilatildeo de Odorico em Nunes surge a forma ldquoAquiles velozrdquo no

verso 196 do Canto IX enquanto no verso 48 do Canto XVI estaacute ldquoAquiles de peacutes muito

raacutepidosrdquo evidenciando a flexibilidade com que satildeo trabalhados os epiacutetetos pelo

177

tradutor No caso de Malta coerentemente a suas diretrizes conserva-se a forma e a

posiccedilatildeo da foacutermula ldquoo peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo nos versos em que ela acontece nos

fragmentos que traduziu

A respeito do uso da forma dual nos versos gregos vinculado aos embaixadores

de Agamecircmnon a soluccedilatildeo apontada por Malta (relativa ao entendimento de

(hegesaacutestho) como ldquona frenterdquo) eacute exclusiva de sua traduccedilatildeo que conteacutem a

sequecircncia ldquoque primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frenterdquo ldquoE partiram []

ambos clamando []rdquo ldquoOs dois avanccedilam ndash agrave frente vai o divino Odisseu ndashldquo ldquoE

saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo Nunes manteacutem a contradiccedilatildeo gerada

pela compreensatildeo da referida palavra como ldquoagrave frenterdquo ldquona dianteirardquo ldquono comandordquo

utilizando ldquoambosrdquo para corresponder ao dual quando este surge ldquoA direccedilatildeo tome o

heroacutei predileto dos deuses Fenicerdquo ldquoAmbos entatildeo pela praia [] ldquoAmbos entatildeo

avanccedilaram servia Odisseu como guiardquo A ambos Aquiles veloz cumprimentardquo

Odorico passa ao largo do conflito desconsiderando a existecircncia do dual ldquoFecircnix guie

de Juacutepiter privadordquo ldquovatildeo suplicandordquo Chegam-se agrave testa Ulisses [] ldquoE o peleio []

com seu fido consoacuteciordquo Campos agrave semelhanccedila de Odorico elimina a contradiccedilatildeo ao

natildeo levar em conta a forma dual ldquo[] Entatildeo eles pelas praias do mar []rdquo []

Odisseu guiando os nuacutencios chegam agrave frente dele e paramrdquo Aquiles peacutes-velozes daacute-

lhes as boas vindasrdquo

Eacute de se supor no caso da soluccedilatildeo adotada por Nunes que sua intenccedilatildeo eacute manter

o que para ele representa uma evidecircncia da agregaccedilatildeo posterior de elementos a um texto

mais antigo no caso daquelas adotadas por Odorico e Campos a questatildeo pode-se

tambeacutem supor passa a ser secundaacuteria diante de seus objetivos mais voltados agrave recriaccedilatildeo

de um poema de modo a considerar sua dimensatildeo estrutural proacutepria ainda que como

afirma Campos ndash e talvez por isto mesmo ndash sua configuraccedilatildeo se defina

paramorficamente em relaccedilatildeo ao original (este aspecto seraacute tratado ainda de modo

mais detido adiante)

Quanto agrave questatildeo relativa ao emprego da palavra (khreoacute) (ldquonecessidade

falta desejo saudaderdquo ndash Isidro Pereira) no verso 197 apenas Malta manteacutem utilizando

o vocaacutebulo ldquoprecisatildeordquo a ambiguidade por ele apontada em relaccedilatildeo ao sujeito da

necessidade ldquo[] (sim eacute grande a precisatildeo)rdquo Odorico emprega a noccedilatildeo de necessidade

encerrando-a na forma de pergunta soluccedilatildeo que lhe permite uma construccedilatildeo sinteacutetica

ldquoQue urge A que vindes []rdquo tal soluccedilatildeo claramente opta pela atribuiccedilatildeo da urgecircncia

178

aos visitantes e natildeo a ele proacuteprio Eacute num sentido tambeacutem ligado a ldquourgirrdquo ldquourgecircnciardquo

(ldquosituaccedilatildeo criacutetica ou muito grave que tem prioridade sobre outrasrdquo ndash Dicionaacuterio

Houaiss 2001) que Nunes constroacutei seu verso ldquo[] Bem grave eacute sem duacutevida a causa

de aqui terdes vindordquo a soluccedilatildeo de Campos aproxima-se semanticamente das de Nunes

e Odorico ldquoAlgum motivo urgente grave eacute que voz traz a mimrdquo

Feita esta raacutepida anaacutelise comparativa das traduccedilotildees do fragmento do Canto IX

voltemos a questotildees fundamentais acerca de sua diversidade O que as distingue

essencialmente eacute a opccedilatildeo por considerar ndash ou natildeo ndash suas caracteriacutesticas ditadas pela

cultura e pela liacutengua gregas como absolutas no sentido da referecircncia formal agrave

composiccedilatildeo Tais caracteriacutesticas ligadas agrave natureza oral da poesia eacutepica satildeo ndash ou natildeo ndash

tomadas como padratildeo composicional pelos tradutores (independentemente inclusive da

convicccedilatildeo acerca de tal oralidade) Inseridos na cultura letrada que deteacutem conceitos

proacuteprios acerca de arte literatura e poesia o tradutor pode guiar-se por conceitos que

lhe satildeo externos ndash no caso advindos da cultura oral ndash ou orientar-se pelos padrotildees de

sua proacutepria cultura acerca da composiccedilatildeo poeacutetica recriando dentro destes padrotildees o que

seria anaacutelogo ao original provindo de cultura diversa naquilo que ele considera

essencial a este do ponto de vista esteacutetico

Se como vimos a partir de Havelock a praacutetica oral e a letrada natildeo satildeo

mutuamente exclusivas e os poemas homeacutericos satildeo ldquoconstruccedilotildees complexasrdquo que

ldquorefletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o escritordquo a tensatildeo entre estes dois

ldquopoacutelos opostosrdquo permitiraacute do ponto de vista da leitura (entendida em seu sentido amplo)

do original e de sua traduccedilatildeo ou uma diretriz a partir de suas caracteriacutesticas que satildeo

proacuteprias do mundo oral ou outra na qual a consideraccedilatildeo dos elementos do poema se daacute

a partir da cultura letrada e de sua visatildeo acerca do fenocircmeno poeacutetico que inclui como

vimos aquilo de comum que haacute ndash do ponto de vista da linguagem ndash entre as

composiccedilotildees de eacutepocas tatildeo distantes como a antiguidade e a nossa Evidentemente

ambas as diretrizes encontram-se no plano de intersecccedilatildeo entre a oralidade e a escrita

(entre os aludidos ldquopoacutelosrdquo) o que as distinguiria basicamente seria a adoccedilatildeo de um ou

outro referente para a definiccedilatildeo das regras orientadoras de sua recriaccedilatildeo o que envolve

inevitavelmente a funccedilatildeo da poesia numa ou noutra cultura (oral ou letrada)

Neste sentido traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (principalmente pela

transposiccedilatildeo direta do metro grego) e Andreacute Malta (pela adoccedilatildeo de metro considerado

179

anaacutelogo ao original por suas caracteriacutesticas ligadas agrave oralidade) adviriam de um ponto

de vista que parte de padrotildees caracteriacutesticos da poesia na cultura arcaica ligados agrave sua

funccedilatildeo em sua cultura (jaacute que independentemente das convicccedilotildees de Nunes acerca da

natureza oral ou natildeo autoral ou natildeo da eacutepica grega ele incorporou um padratildeo fiacutesico

caracteriacutestico da poesia homeacuterica178

) Contudo mesmo que orientados por uma oacuteptica

que se pode considerar intriacutenseca aos padrotildees da composiccedilatildeo oral eacute inevitaacutevel que a

visatildeo da cultura em que se insere o tradutor e a maneira como concebe o fenocircmeno

poeacutetico bem como sua concepccedilatildeo acerca das criaccedilotildees de outras eacutepocas propiciada pelo

uso de instrumentos de anaacutelise e interpretaccedilatildeo de que dispotildee exerccedilam papel decisivo na

atividade tradutoacuteria no caso de Malta as hipoacuteteses voltadas ao esclarecimento de

contradiccedilotildees e ambiguidades do original grego satildeo ainda que investigativas fruto da

cultura contemporacircnea e do modo com esta pode ldquorefazerrdquo a loacutegica e a coerecircncia de

sentido onde elas natildeo se datildeo sem que se construa uma tentativa de explicaacute-las embora

tenha o objetivo de resgate de significados estes seratildeo sempre tambeacutem resultantes da

leitura que poderaacute envolver formulaccedilotildees hipoteacuteticas produtoras de sentido (uma vez

que o campo da incerteza e mesmo da mutabilidade do significado eacute intransponiacutevel)

Na teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash que considera o poema e a traduccedilatildeo

deste como ligados ldquoentre si por uma relaccedilatildeo de isomorfiardquo sendo ldquodiferentes enquanto

linguagemrdquo (a obra traduzida eacute uma ldquooutra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnomardquo) mas que

ldquocomo os corpos isomorfosrdquo cristalizam-se ldquodentro do mesmo sistemardquo ndash o original

natildeo eacute tomado como estrutura fixa o ato de traduzir eacute visto como uma ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto original jaacute preacute-formado

numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em reebuliccedilatildeo de lavardquo Como jaacute se disse

antes a dissolvecircncia de tal ldquodiamantizaccedilatildeordquo implica transformaccedilatildeo estrutural o sentido

do isomorfismo (ou do paramorfismo) envolve a noccedilatildeo de substacircncias diferentes e a

analogia de estrutura se daacute natildeo por paracircmetros fixos impostos externamente ao que se

recria mas ndash conforme entendo ndash pela reconstruccedilatildeo estrutural que se sustente como

178 C A Nunes dizia-se em relaccedilatildeo aos estudos da eacutepica grega filiado agrave corrente analiacutetica (para quem

nas palavras do tradutor ldquoeacute apenas aparente a unidade dos dois poemas [Iliacuteada e Odisseia] que se

formaram pela uniatildeo mal ajeitada de composiccedilotildees menoresrdquo (sd 10) Alertava no entanto que suas

conclusotildees pareceriam paradoxais uma vez que defendia ldquoa unidade de concepccedilatildeo da Iliacuteada e a pluralidade da Odisseiardquo atribuindo-lhes autoria diversa Para ele ldquoa Iliacuteada e a Odisseia representam a

fase uacuteltima do movimento eacutepico na Greacutecia firmando-se os dois poemas em copioso material preacute-

existente isto eacute em poemas de proporccedilotildees menores em sagas lendas mitos de origem variada que iam

sendo incorporados a conjuntos cada vez mais complexos Mas no caso da Iliacuteada um grande poeta ndash que

poderaacute ser o tatildeo discutido Homero histoacuterico ndash conseguiu uma siacutentese admiraacutevel com esse material

heterogecircneo a que imprimiu o cunho de seu grande gecircniordquo (id 11)

180

corpo autocircnomo paralelo e ao mesmo tempo anaacutelogo em suas relaccedilotildees constituintes

consideradas essenciais aquelas decorrentes da iconicidade do signo ou seja a teia de

relaccedilotildees sonoras e imageacuteticas que formam o conjunto cuja funcionalidade decorreraacute de

uma nova criaccedilatildeo de um novo cristal que ldquobrilherdquo (ou para usar outra analogia de

ldquoorganismordquo que funcione) independentemente no contexto em que surge (ou

ldquonascerdquo) Na oacuteptica de Campos portanto ndash que leva em conta tambeacutem o conceito

poundiano make it new (tornar novo) ndash o corpo isomoacuterfico teraacute um metro e outras

caracteriacutesticas proacuteprias da cultura em que a traduccedilatildeo se insere dentro das quais se recria

o conjunto de relaccedilotildees essenciais que tornam o conjunto uma informaccedilatildeo esteacutetica Isto

natildeo impede no entanto como jaacute se viu que se busque alargar os limites da proacutepria

liacutengua com criaccedilotildees vocabulares ou sintaacuteticas baseadas na liacutengua do original mas eacute

dentro da funcionalidade da obra na proacutepria cultura que se buscaraacute estender seus

paracircmetros Assim no caso particular do verso hexacircmetro dada a natureza diversa das

substacircncias sua consideraccedilatildeo como referecircncia fixa e sua simples transposiccedilatildeo

implicariam a perda de algo isto sim tido como essencial para o tradutor a dinacircmica

associada agrave siacutentese que do ponto de vista de Campos natildeo eacute estranha ao original a

concisatildeo nesta forma de pensar se daacute pela concentraccedilatildeo de efeitos pela densidade

poeacutetica pela relaccedilatildeo cerrada entre seus elementos (natildeo eacute difiacutecil perceber numa simples

leitura quatildeo densa eacute a relaccedilatildeo sonora presente nos versos gregos) Se em nossa liacutengua o

verso excessivamente longo pode levar agrave perda da musicalidade e agrave aproximaccedilatildeo com a

prosa outros valores se elevaratildeo para a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em vez da medida

original por exemplo a escolha baacutesica de um metro fixo sendo este metro adequado

aos padrotildees de sensibilidade do contexto da traduccedilatildeo ainda que este possa ser

ldquoalargadordquo em seus lindes

No caso de Odorico Mendes como vimos eacute niacutetida sua opccedilatildeo por guiar-se pelos

valores esteacuteticos de sua eacutepoca e de sua cultura tomando entatildeo o verso ldquoheroacuteicordquo como

padratildeo o que lhe permitiu levar a cabo seu objetivo de siacutentese radical para ele

tambeacutem a narrativa natildeo eacute priorizada em relaccedilatildeo agrave urdidura poeacutetica marcada pela

extrema densidade de efeitos

Para concluir este exerciacutecio reflexivo reafirme-se que nas diferentes traduccedilotildees

prevalece sobre a (por vezes buscada) ldquofidelidaderdquo ao original uma ldquofidelidaderdquo agraves

convicccedilotildees do tradutor a respeito da obra que traduz da proacutepria poesia e do que vem a

181

ser uma traduccedilatildeo Neste sentido recorde-se tambeacutem ainda que se possam distinguir ndash

sempre a partir de um ponto de vista criacutetico que tambeacutem relativiza seus julgamentos ndash

realizaccedilotildees mais plenas no plano esteacutetico todas as traduccedilotildees aqui consideradas satildeo

resultados vaacutelidos e proacuteprios de abordagens competentes embora diversas da eacutepica

grega Todas envolvem noccedilotildees de equivalecircncia mas compatiacuteveis com seus pontos de

vista a anaacutelise descritiva permanece por isso mais adequada como procedimento para

comparaccedilatildeo e estabelecimento de semelhanccedilas e diferenccedilas

A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise

Seratildeo abordados a seguir outros versos isolados e fragmentos de cantos da

Iliacuteada e da Odisseia Buscaremos introduzir alguns elementos agraves anaacutelises de modo a

caminhar no esboccedilo de possibilidades de desvendamento dos processos empregados

pelos diversos tradutores Incluiremos a traduccedilatildeo ldquopalavra-a-palavrardquo do grego como

iacutendice de sentido

Considerem-se os seguintes versos em grego dotados de particular sonoridade

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο (Iliacuteada I 46)

Ressoaram as flechas do ombro do furioso

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

terriacutevel ruiacutedo surgiu do prateado arco

Fazemos mais uma vez acompanhar os versos do que seria uma ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo (palavra-a-palavra) do grego tais palavras podem ser vistas como iacutendices da

construccedilatildeo das frases naquele idioma dando conta das informaccedilotildees delas apreensiacuteveis

ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquosentidordquo179

no entanto ao se ouvirem esses versos180

certamente algo do sentido pareceraacute perdido pela escolha das palavras

179 Se se quiser utilizar o referencial semioacutetico estariacuteamos no plano do siacutembolo da terceiridade (da qual

emergiram hipoiacutecones no processo de iconizaccedilatildeo do siacutembolo que buscaremos identificar tambeacutem nos

demais fragmentos estudados) 180 As observaccedilotildees feitas neste trabalho sobre a sonoridade dos versos e palavras em grego baseiam-se

na pronuacutencia mais habitual empregada nos cursos de formaccedilatildeo em liacutengua e literatura grega antiga

182

independentemente de sua ordem em portuguecircs Seguem-se novamente os versos

acompanhados de sua transliteraccedilatildeo

ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Marquemos as repeticcedilotildees aliterativas (consoantes ou grupos consonantais

similares)

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemonkhoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

Associadas agraves evidentes assonacircncias (repeticcedilotildees de vogais) as aliteraccedilotildees e

tambeacutem as semelhanccedilas de algumas palavras entre si colaboram para que se perceba

um efeito dos ruiacutedos referidos no plano do conteuacutedo segundo diferentes pontos de vista

teoacutericos diriacuteamos que a projeccedilatildeo paradigmaacutetica se realiza (funccedilatildeo poeacutetica) as palavras

parecem motivar-se os siacutembolos181

convertem-se em iacutecones (ou a rigor hipoiacutecones182

)

Nestes uacuteltimos termos advindos da semioacutetica de Peirce poderiacuteamos nos referir

a aspectos de primeiridade que emergeriam do contexto de terceiridade os sons que

ecoam reverberam nos versos aproximam-se por relaccedilotildees de contiguidade focircnica

formando-se uma tessitura sonora que sugere um caraacuteter qualitativo imageacutetico183

a

contiacutenua emissatildeo de flechas por Apolo em movimento Falariacuteamos inicialmente em

181 Observe-se que neste contexto adota-se o conceito de ldquosiacutembolordquo (e portanto de ldquosimboacutelicordquo)

proveniente da semioacutetica de Peirce diverso daquele empregado na semioacutetica oriunda da linguiacutestica isto eacute de Greimas e colaboradores (jaacute mencionado em capiacutetulo anterior em que se tratou de ldquorelaccedilotildees semi-

simboacutelicasrdquo) 182 Ver breve referecircncia agrave classificaccedilatildeo de signos por Peirce no primeiro capiacutetulo deste estudo 183 Seraacute utilizada como referecircncia para um possiacutevel exerciacutecio de anaacutelise a classificaccedilatildeo de trecircs tipos de

hipoiacutecones conforme apresentada por Santaella em Teoria geral dos signos (2000 119-120) a imagem

propriamente dita o diagrama e a metaacutefora

183

Aspectos de primeiridade ndash

Hipoiconicidade imageacutetica (contiacutenuo de sons sugerindo a accedilatildeo de Apolo)

1 Aliteraccedilatildeo

eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras portanto relacionam-se pela hipo-iconicidade)

2 Assonacircncia

eacuteklangxan drsquoaacuteroiumlstoigrave errsquo oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

(todas as palavras se ligam tambeacutem pelas assonacircncias claro estaacute que as aliteraccedilotildees e

assonacircncias se ligam interpenetrando-se ndash a ldquoseparaccedilatildeordquo eacute feita apenas para

evidenciaccedilatildeo)

3 Paronomaacutesia (repeticcedilatildeo de conjuntos de sons semelhantes)

oacutemon khoomeacutenoio

deinegrave degrave klangegravegeacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco

4 Onomatopeia a sequecircncia de consoantes oclusivas (k d t g b) em ambos os

versos ocasionam o efeito de som forte imitativo de golpes batidas accedilotildees que

percutem

Quanto a aspectos de secundidade ndash hipoiconicidade anagramaacutetica (ver nota

177) ndash pode-se entrever um ldquodiagramardquo das posiccedilotildees das ldquofontes sonorasrdquo envolvidas na

accedilatildeo por meio das palavras posicionadas em cada linha na primeira na qual haacute

referecircncia ao ressoar das flechas as palavras se alongam proacuteprias da posiccedilatildeo relativa a

essa fonte de ressonacircncia na segunda em que a referecircncia se faz ao estridente arco haacute

palavras mais breves secas raacutepidas contundentes a indicarem a posiccedilatildeo relativa ao

arco como emissor do som Uma leitura possiacutevel demonstrando-se as possibilidades de

184

reconhecimento de inter-relaccedilotildees produtoras de sentido ainda que este se crie (ou se

recrie) pela observaccedilatildeo

Sobre os aspectos da terceiridade (para completarmos nossa leitura com base

nessa referecircncia) dada a brevidade do fragmento temos a identificar a construccedilatildeo da

relaccedilatildeo entre o estado de fuacuteria do deus o ato de emissatildeo de flechas e seu ressoar

ecoando a proacutepria fuacuteria assim como a estridecircncia ou retumbacircncia do arco que a

representam em maacutexima intensidade Neste plano o sentido pelo niacutevel simboacutelico

estabelecem-se na ldquomente interpretanterdquo (para usar terminologia da semioacutetica) as

relaccedilotildees de analogia entre a fuacuteria e os ruiacutedos contruiacuteda num crescendo de intensidade

Voltando agrave dimensatildeo da primeiridade note-se que a sonoridade desses versos

portanto participa da composiccedilatildeo do ldquosignificadordquo Resultam da percepccedilatildeo das

qualidades focircnicas que por diferenccedila e semelhanccedila chamam nossa atenccedilatildeo para sua

ldquomaterialidaderdquo a leitura atenta poderaacute ldquodesvelaacute-losrdquo agrave primeira audiccedilatildeo A ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo portanto ainda que do ponto de vista da ldquoequivalecircncia semacircnticardquo esteja a

contento deixa muito a desejar como recriaccedilatildeo dos versos uma vez que o sentido pleno

se faz exatamente da associaccedilatildeo entre o som e o chamado ldquosentidordquo ou seja o

ldquosignificadordquo Em que medida se deveria priorizar a equivalecircncia (ou correspondecircncia

palavra a palavra) no caso de versos cujo alcance de sentido ultrapassa a prerrogativa da

literalidade

Vejamos as soluccedilotildees obtidas pelos tradutores que temos focalizado

Odorico Mendes

Tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota (45 = 46)

Terriacutevel o arco argecircnteo estala e zune (47 = 49)

Carlos Alberto Nunes

A cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechas (46)

[nos ombros largos ]

185

Do arco de prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso (49)

Haroldo de Campos

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas (46)

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo (49)

Comecemos por Odorico

Tratando-se da informaccedilatildeo semacircntica ndash ldquoRessoaram as flechas ao ombro do

furiosordquo ndash o verso ldquotinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frotardquo omite o significado de

ldquofuriosordquo (ldquoiradordquo ldquocoleacutericordquo etc) no mais corresponde ao sentido com o acreacutescimo

de conteuacutedo relativo aos versos seguintes Contudo natildeo se trata neste caso

propriamente de omissatildeo (relembre-se o conceito ldquoocorre omissatildeo sempre que um dado

segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo podem ser recuperados

no texto metardquo ndash Aubert 2006) ocorre sim falta de repeticcedilatildeo do adjetivo epiacuteteto de

Apolo o verso 44 (βῆ δὲ κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ) eacute traduzido por

Odorico para ldquoDo veacutertice do ceacuteu baixa iracundordquo A palavra ldquoiracundordquo corresponde no

caso a χωόμενος (khooacutemenos encolerizado) particiacutepio presente (voz meacutedia) do verbo

χωoμaι (khoomai ldquoestar irritado enfadar-serdquo ndash Isidro Pereira) que apareceraacute

novamente (com a variaccedilatildeo no modo que permite no grego a repeticcedilatildeo associada agrave

mudanccedila) no verso 46 (χωoμενοιo khoomenoio ndash optativo aoristo voz meacutedia) Odorico

procura evitar a repeticcedilatildeo como jaacute se viu conforme o procedimento que adotou

vinculado agrave ideia de concisatildeo e de natildeo tornar a obra pouco ldquoapraziacutevelrdquo A informaccedilatildeo

portanto fora dada dentro do conjunto dos versos proacuteximos Quanto ao aspecto da

sonoridade o verso nada deixa a desejar pela alta concentraccedilatildeo de efeitos aliterantes e

assonantes

tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota

186

A escolha do verbo ldquotinirrdquo (palavra que parece motivada) permite associar o som

agudo das vogais agrave consoante oclusiva estabelecendo uma perfeita relaccedilatildeo som-sentido

que inclui as demais aliteraccedilotildees e semelhanccedilas uma sequecircncia de cinco consoantes

grupos consonantais que podem ser associados com o ruiacutedo das flechas lanccediladas por

Apolo concentraccedilatildeo correspondente agrave das consoantes oclusivas no verso grego

Especialmente concentrado de efeito portanto uma vez que o verso decassiacutelabo

(heroacuteico no caso de ambos os versos) eacute bem menor que o hexacircmetro pode-se pensar

em proporcionalidade quantitativa pois as ocorrecircncias tendem a se aglutinar mais no

menor verso em si mais concentrado Claro que os versos em sequecircncia com uso de

enjambement tecircm seus limites relativizados mas num caso como o de Odorico (como

se viu e veraacute com outros exemplos) o niacutevel de reuniatildeo de efeitos costuma ser alto A

ideia de proporccedilatildeo associada agrave simples observaccedilatildeo (percepccedilatildeo) do efeito produzido

num verso envolve a flexibilidade da ldquoequivalecircnciardquo como categoria natildeo-absoluta mas

apenas referecircncia do comportamento do texto recriado sob determinado aspecto O

verso 45 de Odorico (correspondente ao 46 em Homero jaacute que o procedimento do

tradutor envolve a diminuiccedilatildeo do nuacutemero de palavras e de versos em relaccedilatildeo ao texto

grego) apresenta ocorrecircncia anaacuteloga de primeiridade ou seja de hipoiconicidade

imageacutetica

Sobre o outro verso em questatildeo ldquoTerriacutevel o arco argecircnteo estala e zunerdquo eacute

evidente a cadeia de consoantes oclusivas assim como de constritivas (fricativas e

vibrantes) entre outras associaccedilotildees possiacuteveis (como a seguida repeticcedilatildeo de ldquoarrdquo aleacutem

de efeitos mais sutis como a inversatildeo entre ldquoecircnrdquo e ldquonecircrdquo) A presenccedila da iconicidade eacute

flagrante sem que a mediccedilatildeo seja necessaacuteria para o convencimento pelo efeito Dentro

de seus propoacutesitos e procedimentos estes versos isolados satildeo um indicador da fatura

(ainda que possa ser um momento especialmente dotado de eficiecircncia) de Odorico

poderiam ser exemplos de uso da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem de relaccedilatildeo som-sentido

hibridismo iacutecone-siacutembolo etc

Prossigamos com Carlos Alberto Nunes

Por vezes como eacute de se esperar ndash e nesse sentido veremos uma breve

amostragem natildeo calcada em criteacuterios estatiacutesticos mas apenas em busca de alguns

paradigmas ou padrotildees que componham o modo composicional do tradutor ndash Nunes

187

parece ter de preencher o verso longo com palavras adicionais a fim de manter a

paridade de versos com o texto grego Certas adjetivaccedilotildees que poderiam consistir numa

uacutenica palavra desdobram-se outras natildeo presentes no poema homeacuterico atrelam-se agrave

sequecircncia A escolha pela manutenccedilatildeo do ritmo uniforme em esquema ternaacuterio

descendente impotildee necessidades de distribuiccedilatildeo agrave qual a palavra deve adequar-se o que

amplia o nuacutemero de exigecircncias para a escolha semacircntica e vocabular Assim os versos

ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo e ldquoDo arco de prata comeccedila

a irradiar-se um clangor pavorosordquo assumem um caraacuteter mais descritivo pela variedade

de palavras usada coerentemente com a colocaccedilatildeo das tocircnicas na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e

16ordf siacutelabas sendo niacutetida a superioridade da configuraccedilatildeo do segundo verso em relaccedilatildeo

ao primeiro a comeccedilar pela tocircnica naturalmente posta na primeira siacutelaba Do arco de

prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso Certamente a concisatildeo natildeo eacute uma das

precondiccedilotildees de Nunes a favor desta opccedilatildeo pode-se dizer que o verso grego natildeo tem

igualmente o propoacutesito de siacutentese e que a concisatildeo eacute uma procura proacutepria de uma

eacutepoca de um contexto e de um autor No entanto como se poderaacute observar e concluir a

partir de poucos exemplos de trechos e muito melhor com a leitura geral das obras os

versos gregos apresentam uma certa ldquocondensaccedilatildeordquo de efeitos que os torna densos

ainda que natildeo necessariamente sucintos por suas funccedilotildees narrativa e descritiva No

plano do conteuacutedo ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo deixa de

de fora ou melhor para depois a informaccedilatildeo ldquonos ombrosrdquo (levada ao verso seguinte ndash

a omissatildeo tambeacutem no caso deste verso eacute relativa de modo diferente pois natildeo visa a

evitar a repeticcedilatildeo) que passaraacute a contar com o adjetivo ldquolargosrdquo inexistente no verso

grego Haacute um detalhe de sentido a observar ldquoomonrdquo correspondente a ldquoombrosrdquo estaacute

no genitivo-ablativo (com ideia de origem) e portanto indicando que deles partem o

retinir da flechas ldquonos ombrosrdquo (soluccedilatildeo que seria coerente com a forma do caso

dativo-locativo) traz uma ambiguidade (a ideia de os ombros receberem as flechas) que

no entanto se resolve pela compreensatildeo do relato ldquoA cada passo querdquo eacute uma expressatildeo

para indicar movimento ldquodesdobradardquo em forma de peacutes daacutectilos acentuando-se o ldquoArdquo

(A ca da pas so que) O verso traz a informaccedilatildeo de ldquoiradordquo por meio da sequecircncia

tambeacutem natildeo sinteacutetica ldquocheio de irardquo assim como da informaccedilatildeo relativa ao ruiacutedo das

flechas Sob o aspecto da sonoridade o verso soa de outro modo reservando o uso de

siacutelabas iniciadas por consoantes oclusivas na associaccedilatildeo com o movimento aacutegil brusco

de Apolo que pode ser entrevisto pela sequecircncia aliterante ndash A cada passo que daacute ndash

188

enquanto emprega as fricativas quando a informaccedilatildeo semacircntica refere-se ao som das

fechas que passam a soar como um zumbido os objetos a produzirem sons ao passar

pelo ar ldquocheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo Uma possiacutevel sensaccedilatildeo de frouxidatildeo do

verso deve advir do efeito mais tecircnue menos contundente em relaccedilatildeo ao texto grego e a

uma soluccedilatildeo como a de Odorico Mendes Os versos no entanto ainda que tambeacutem

possam parecer desequilibrados nos agrupamentos de iacutecones sonoros e incertos no

sentido respondem a exigecircncias baacutesicas que podemos atribuir a Nunes da informaccedilatildeo

relevante agrave narrativa e ao padratildeo riacutetmico-meacutetrico

Vejamos em seguida a versatildeo de Haroldo de Campos

Entre os tradutores estudados Campos eacute o uacutenico cuja trajetoacuteria reflexiva

vincula-se agraves teorizaccedilotildees acerca dos signos da linguagem poeacutetica e da traduccedilatildeo de

poesia Assim seus pressupostos expliacutecitos permitem antever a valorizaccedilatildeo das relaccedilotildees

som-sentido ou da ldquoiconicidade do signordquo184

Haacute criacuteticas como uma recentemente

manifesta em livro185

que atribuem equivocadamente ao poeta e tradutor a convicccedilatildeo

de que para a traduccedilatildeo ser criativa eacute necessaacuterio e desejaacutevel que o ldquoconteuacutedordquo seja

desconsiderado ou modificado valorizando-se as traduccedilotildees que assim procedem A

criacutetica pueril revela desconhecimento do trabalho teoacuterico e tradutoacuterio de Haroldo que se

dedicou a demonstrar a inadequaccedilatildeo em traduccedilatildeo poeacutetica de se conferir a primazia a

uma suposta ldquofidelidade ao sentidordquo como jaacute se abordou neste estudo sem entretanto ndash

e evidentemente ndash deixaacute-lo de lado Vejamos as caracteriacutesticas destas soluccedilotildees do

tradutor considerando seu arcabouccedilo teoacuterico e convicccedilotildees sobre a praacutetica do traduzir

ldquoAgrave espaacutedua do iracundo retiniam flechasrdquo incorpora todas as informaccedilotildees do

verso grego (do ombro de Apolo irado ressoaram as flechas) e neste caso apenas elas

(embora Haroldo se valha frequentemente de enjambement) O uso do verbo no

passado embora no imperfeito guarda relaccedilatildeo com o uso homeacuterico que natildeo adota

verbos no presente como o fez neste caso Odorico Mendes chama a atenccedilatildeo a escolha

de verbo derivado daquele que Odorico empregou (tinir retinir) indicando a referecircncia

agrave traduccedilatildeo anterior considerada ldquotranscriadorardquo por Campos Tambeacutem se pode notar o

184ldquoA traduccedilatildeo criativa [] uma praacutetica voltada para a iconicidade do signordquo CAMPOS H ldquoTraduccedilatildeo

ideologia e histoacuteriardquo (1984) 185ABRAMO C W O Corvo ndash Gecircnese Referecircncias e Traduccedilotildees do Poema de Edgar Allan Poe Satildeo

Paulo Hedra 2011

189

uso da preposiccedilatildeo ldquoagraverdquo ligada a ldquoespaacuteduardquo soluccedilatildeo conveniente para dar a entender que

as flechas partiam do ombro apoliacuteneo recurso de que se valera tambeacutem Mendes (ldquoao

ombrordquo) O dodecassiacutelabo parece acomodar perfeitamente os elementos que dando

conta plena do sentido satildeo palavras que podem atender ao referencial do paramorfismo

relativo agrave dimensatildeo icocircnica do verso note-se a sucessatildeo de cinco oclusivas

Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas

A reiteraccedilatildeo atende em quase todo o verso agrave necessidade de presenccedila

onomatopaica com niacutetida presenccedila icocircnica as ocorrecircncias se dividem em dois grupos

se considerarmos a cesura na sexta siacutelaba trecircs antes desta e duas apoacutes sendo que

ademais a vogal aberta em ldquoflechasrdquo reverbera a vogal aberta em ldquoespaacuteduardquo

finalizando o verso com a ecircnfase desejada que sugere a ampliaccedilatildeo da accedilatildeo de Apolo A

escolha de ldquoespaacuteduardquo em vez de ombros chama a atenccedilatildeo embora o relativo

preciosismo vocabular natildeo seja estranho agrave assumida tendecircncia ldquobarroquizanterdquo da obra

do poeta e tradutor a opccedilatildeo pelo vocaacutebulo claramente sugere a preocupaccedilatildeo com as

ocorrecircncias aliterantes e assonantes aleacutem do mais o fonema a atribui forccedila agrave

ldquoexplosatildeordquo do p na segunda siacutelaba do verso promovendo a intensidade do iniacutecio da

accedilatildeo

Por sua vez o verso ldquoHorriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteordquo tambeacutem

encerra toda a informaccedilatildeo comunicada pelo verso homeacuterico (o ruiacutedo ou estrondo ou

estreacutepito que nasceu ou brotou ou surgiu do arco prateado) A escolha de ldquoclangorrdquo

enfatiza no plano semacircntico a natureza metaacutelica estridente do som envolvido na accedilatildeo

ao mesmo tempo em que o ldquosignificanterdquo traz a dimensatildeo grave ressoante das vogais

fechadas associadas agraves consoantes explosivas (ou oclusivas) O verso constitui um

verdadeiro modelo dificilmente superaacutevel de relaccedilatildeo som-sentido ou para

relembrarmos o referencial jakobsoniano de projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma

observem-se as notaccedilotildees (feitas com diferentes marcas) de correspondecircncias internas agrave

linha que procuram assinalar as reiteraccedilotildees de vogais consoantes fricativas e

explosivas e dos segmentos paronomaacutesticos

Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo

190

Novamente o uso de vocabulaacuterio ldquopreciosordquo sugestivo do veio barroco do

escritor serve para trazer elevaccedilatildeo ao verso adequada ao contexto eacutepico

Verifiquemos ainda com objetivo de complementaccedilatildeo a traduccedilatildeo de Andreacute

Malta Campos aqui incluiacuteda pelo interesse de sua especificidade meacutetrica e pela

preocupaccedilatildeo (jaacute referida) do tradutor em manter na recriaccedilatildeo as ocorrecircncias dos

epiacutetetos empregando para eles as mesmas palavras a cada apariccedilatildeo

[E jaacute dos cimos do Olimpo baixou encolerizado (44)]

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado (46)

[deus]

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado) (49)

Um elemento a se destacar nesta versatildeo eacute o uso do epiacuteteto ldquoencolerizadordquo

correspondente nesse verso agrave palavra grega χωoμενοιo (khoomenoio) Conforme jaacute foi

mencionado ocorre no verso 46 do poema homeacuterico a repeticcedilatildeo da palavra integrante do verso

44 χωόμενος (khooacutemenos) mas como se pode ver com mudanccedila de sua terminaccedilatildeo Fiel a

sua proposta de conservar em sua traduccedilatildeo a mesma palavra relativa agravequela que define um

epiacuteteto no texto grego o tradutor usa o mesmo adjetivo (forma do particiacutepio do verbo em

portuguecircs) nos dois versos em questatildeo como se pode ver nas citaccedilotildees O verso de Malta feito

de duas redondilhas maiores (conforme se comentou antes) apresenta uma cesura niacutetida apoacutes o

primeiro segmento que mais concentra o efeito sonoro referente ao clangor ou seja o aspecto

icocircnico do verso

estrepitaram as setas no ombro do encolerizado

A escolha da palavra ldquoestrepitaramrdquo permite por si soacute a recriaccedilatildeo de efeito

anaacutelogo ao do texto grego a seguinte repeticcedilatildeo de t (pela providecircncia da opccedilatildeo por

ldquosetasrdquo) e a ocorrecircncia de br que ecoa tr completam a sonoridade no entanto esta

perde forccedila com o uso do adjetivo resultando em desequiliacutebrio esteacutetico perceptiacutevel da

audiccedilatildeo atenta do verso O mesmo natildeo acontece com o verso 49

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

191

Como se pode ver o efeito do ruiacutedo distribui-se por todo o verso atribuindo

forccedila maior ao conjunto e maior equiliacutebrio que resulta em melhor resultado esteacutetico O

uso de ldquoterriacutevelrdquo cuja vogal tocircnica marca a cesura dos hemistiacutequios permite o efeito de

ecircnfase e agudeza sugerido pelo fonema i O tradutor adotou a soluccedilatildeo dos parecircnteses

ao que parece pela questatildeo sintaacutetica de independecircncia do verso de modo a evitar o

ponto final no proacuteprio verso e no anterior no grego os versos 48 e 49 terminam em

ldquoponto em cimardquo equivalente aos dois pontos em portuguecircs

ἕζετ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπάνευθε νεῶν μετὰ δ᾽ ἰὸν ἕηκε

δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)

Os dois pontos envolvem o prenuacutencio a soluccedilatildeo de Malta manteacutem a

ldquoautonomiardquo do verso 49 e ao mesmo tempo a expectativa ligada ao conjunto de dois

versos (48 e 49)

E entatildeo pondo-se bem longe das naus lanccedilou uma flecha

(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)

Esse procedimento ilustra a caracteriacutestica de apego agrave literalidade manifesta na

traduccedilatildeo de Malta coerentemente aos seus pressupostos de equivalecircncia (inclusive

quanto agrave versificaccedilatildeo) ao verso grego Como eacute faacutecil verificar os versos do tradutor

atendem ao criteacuterio de correspondecircncia de sentido com o original

Observemos em seguida os primeiros sete versos tambeacutem do Canto I da Iliacuteada

Mas antes eacute oportuno fazer-se uma observaccedilatildeo importante sobre o processo de anaacutelise

que estaacute em andamento

Natildeo eacute minha pretensatildeo exatamente propor um modelo de anaacutelise em meu

modo de ver anaacutelise tambeacutem eacute criaccedilatildeo ou re-criaccedilatildeo ainda que baseada em aspectos

intratextuais pois eacute um modo de leitura e esta sempre seraacute tambeacutem re-criadora O

objetivo pretendido aqui eacute tatildeo-somente indicar possibilidades (perseguidas de modo

um tanto erraacutetico sem a formulaccedilatildeo de procedimentos-padratildeo ou metodologia fixa) de

leitura analiacutetica que colaborem para o re-conhecimento de caracteriacutesticas do texto

192

poeacutetico original ou traduzido na dimensatildeo interna a uma estrutura tal como

identificada e na dimensatildeo comparativa entre estruturas de textos diversos

Iliacuteada I 1-7

ΜῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

A ira (duradoura) canta Deusa do Pelida Aquiles

οὐλομένην ἣ μυρί ᾽Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε

funesta que dez mil (miriacuteade) aos aqueus dores fez

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

muitas valentes almas no Hades lanccedilou precocemente

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν

de heroacuteis e a eles mesmos presa produziu para os catildees

οἰωνοῖσί τε πᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

e para as aves todas de Zeus cumpria-se a decisatildeo

ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε

desde que primeiro apartaram-se em discoacuterdia

Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

O Atrida chefe de homens e o divino Aquiles

E agora as traduccedilotildees de Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de

Campos

Odorico Mendes (I 1-6)

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

193

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Carlos Alberto Nunes

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Haroldo de Campos

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles (7)

Pensemos primeiramente na traduccedilatildeo de Odorico apenas para conferecircncia

faccedilamos a escansatildeo dos versos do fragmento assinalando-se suas siacutelabas tocircnicas

Can ta- me oacute deu sa do Pe lei o A qui les

A i ra te naz que lu tu o sa aos Gre gos

Ver des no Or co lan ccedilou mil for tes al mas

Cor pos de He roacuteis a catildees e a bu tres pas to

Lei foi de Jo ve em ri xa ao dis cor da rem

O de ho mens che fe e o Mir mi don di vi no

194

Os versos se dividem entre aqueles com tocircnicas predominantes na quarta e

oitava siacutelabas (saacuteficos) e aqueles com tocircnica predominante na sexta siacutelaba (heroacuteico)

contudo dois deles (quarto e quinto) permitem a leitura com acentos nas posiccedilotildees pares

o que ocasiona certa indefiniccedilatildeo em seu esquema meacutetrico-riacutetmico que favorece certa

aceleraccedilatildeo e ritmo mais marcado pelos reiterados acentos que ocasionam sequecircncias

binaacuterias (jacircmbicas) nos segundos hemistiacutequios caso este tambeacutem do terceiro verso

Note-se tambeacutem a sequecircncia ternaacuteria decrescente (dactiacutelica) no iniacutecio de todos os versos

do fragmento com exceccedilatildeo do terceiro com ceacutelula binaacuteria descendente (trocaico)

todos tecircm em comum portanto o acento na primeira siacutelaba (o uacuteltimo permite a leitura

do acento em ldquoordquo) Quanto agraves sinalefas elas se datildeo de maneira usual com elisotildees entre

vogais aacutetonas ou entre aacutetona e tocircnica ou semitocircnica (caso de ldquoA irardquo seria possiacutevel a

leitura sem a elisatildeo mas isso ocasionaria um esquema atiacutepico ndash acentuado na quinta

siacutelaba ndash do decassiacutelabo claacutessico usado por Odorico nas variantes de saacutefico e heroacuteico)

Tratemos agora do acircmbito semacircntico do trecho O iniacutecio da Iliacuteada eacute jaacute

revelador da concisatildeo do tradutor da eficiecircncia com que procura re-produzir o

ldquosentidordquo depreendido do texto grego186

exercitando uma espeacutecie de paraacutefrase187

poeacutetica com grande acuidade na escolha das palavras e com um engendramento

sintaacutetico que resulta em tom ao mesmo tempo elevado e contundente pela densidade Eacute

mesmo impressionante verificar-se que em apenas seis versos sem basear-se na noccedilatildeo

estrita de equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo Odorico alcance sugerir todo o sentido

essencial188

do que o texto grego comunica Fazendo-se outra paraacutefrase desta vez

apenas referencial ou seja no acircmbito da funccedilatildeo cognitiva da linguagem seraacute possiacutevel

evidenciar o que da informaccedilatildeo ldquooriginalrdquo se pode obter pelos versos concisos de

186 Relembrem-se as palavras de Nienkoumltter antes citadas 187Paraacutefrase ldquointerpretaccedilatildeo ou traduccedilatildeo em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua

letra metaacutefraserdquo (Houaiss) A palavra se origina do grego composta de (paraacute)ndash ao lado junto a

cerca de e (phraacutesis) ndash linguagem discurso frase Eacute nesse sentido natildeo vinculado a um

referencial teoacuterico especiacutefico que o termo eacute aqui empregado Mencione-se a diferenccedila em relaccedilatildeo ao

conceito de Newmark para quem a paraacutefrase escaparia a qualquer viacutenculo com o texto na liacutengua de

partida consistindo em ldquouma ampliaccedilatildeo ou re-escritura livre do significado de um periacuteodordquo (1981 apud

Barbosa 1990 54) 188 Sobre esse aspecto do ldquosentido essencialrdquo desapegado da literalidade cabe mencionar guardadas as devidas diferenccedilas de contexto e proposta a primeira etapa do modelo operacional proposto por Nida que

prevecirc trecircs etapas no processo tradutoacuterio ldquoreduccedilatildeo do texto original a seus nuacutecleos mais simples e

semanticamente evidentes transferecircncia do significado da liacutengua original para a liacutengua da traduccedilatildeo em

um niacutevel estruturalmente simples geraccedilatildeo de uma expressatildeo etiliacutestica e semanticamente equivalente na

liacutengua da traduccedilatildeordquo Para Nida ldquoo tradutor realmente competente traduz lsquounidades de significadorsquordquo em

vez de reproduzir ldquounidades estruturaisrdquo (1964 apud Barbosa 1990 33)

195

Mendes A paraacutefrase seraacute uma providecircncia de auxiacutelio agrave anaacutelise seu uso me parece um

modo de se verificar a presenccedila do sentido geral ou seja das informaccedilotildees ldquoessenciaisrdquo

na traduccedilatildeo cuja proposta natildeo eacute a ldquofidelidaderdquo em termos de equivalecircncia ldquopela letrardquo

isto eacute pela ldquoliteralidaderdquo (palavra-a-palavra) mas sim (como jaacute foi apontado) por um

processo de ldquoconstruccedilatildeo paralelardquo do conjunto de informaccedilotildees depreendido do texto-

fonte que se vale do uso de sinoniacutemia afim com o objetivo manifesto de siacutentese ou

concisatildeo e com o objetivo (dedutiacutevel pela observaccedilatildeo dos versos) de ldquodensidade

sonorardquo Diremos entatildeo parafraseando as notaccedilotildees ldquoliteraisrdquo (essas palavras consistem

apenas em algumas primeiras escolhas comuns usuais nos dicionaacuterios entre outras

possibilidades) que eacute feito o pedido agrave Deusa de que ela cante a ira funesta de Aquiles

Pelida (filho de Peleu) que dez mil dores trouxe aos aqueus (gregos) e que lanccedilou

prematuramente ao Hades muitas almas valentes de heroacuteis e as presas aos catildees e agraves

aves cumprindo-se a lei de Zeus desde que em discoacuterdia se separaram o chefe dos

homens o Atrida e o divino Aquiles

Segue-se nova paraacutefrase desta vez da traduccedilatildeo de Mendes o primeiro verso

saacutefico expressa perfeitamente a mensagem conativa agrave Deusa introduzindo o nome do

heroacutei para em seguida atribuir-lhe a ira tenaz (persistente) lutuosa aos gregos e informar

que ela lanccedilou verdes (jovens) no Orco (o reino dos mortos o Hades) mil almas fortes

corpos que satildeo pasto a catildees e abutres anuncia entatildeo que a Lei (cumprida) foi de Jove

(Juacutepiter versatildeo latina de Zeus) e aponta que estatildeo em rixa por terem discordado o chefe

dos homens e o Mirmidon (epocircnimo do heroacutei Aquiles)

Jaacute se pode perceber que o sentido geral estaacute mantido as informaccedilotildees relevantes

estatildeo todas presentes Ao menos o que podemos apreender hoje dos significados do

texto grego lido sob nosso ponto de vista189

Montemos contudo ndash para evidenciar as

relaccedilotildees entre um conjunto de informaccedilotildees e outro ndash uma relaccedilatildeo de correspondecircncias

entre as palavras ou grupo de palavras postos como traduccedilotildees ldquoliteraisrdquo junto aos

versos gregos (apenas uma escolha ldquoimediatardquo frise-se) e as palavras que a eles

correspondem usadas por Odorico

189 A observaccedilatildeo procura explicitar um ponto de vista sobre a problemaacutetica jaacute discutida Ainda que o

significado seja mutaacutevel como jaacute se comentou largamente o processo histoacuterico envolve a ldquofixaccedilatildeordquo de

significados de referecircncia que permitem o acesso sob a oacuteptica proacutepria de quem lecirc e do contexto ao qual

pertence

196

Notemos alguns pontos na primeira linha da ldquotabelardquo aparece de um lado a

palavra ldquoirardquo correspondente a (meacutenis) esta palavra pode ser traduzida

simplesmente por ldquofuacuteriardquo ldquoirardquo ldquocoacutelerardquo etc (no Greek-English lexicon de Liddell and

Scott190

μῆνις [] mdash ldquowrathrdquo) Em Odorico vemos ldquoira tenazrdquo Diga-se no entanto

que o significado eacute previsto no Dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira191

ldquoira

190 LIDDELL amp SCOTT Greek-English lexicon Londres Clarendon Press ndash Oxford s d (O dicionaacuterio

passaraacute a ser referido neste estudo como Liddell amp Scott) 191 PEREIRA ISIDRO S J Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego Porto Livraria Apostolado

da Imprensa 1984 (Ao longo do texto o Dicionaacuterio seraacute referido pela forma usual que toma o nome do

autor Isidro Pereira)

197

duradoira ressentimentordquo192

entre os significados de ldquotenazrdquo no Dicionaacuterio Houaiss

constam ldquodifiacutecil de acabarrdquo e ldquopersistenterdquo um caso em que o tradutor se vale de duas

palavras para abranger com ecircnfase o sentido de persistecircncia resistecircncia da ira do

heroacutei

Na segunda linha haacute ldquolutuosardquo correspondendo a ldquofunestardquo por οὐλομένην

(oulomeacutenen) acusativo feminino singular de οὐλoacuteμν no Liddell amp Scott

ldquodestructive banefulrdquo (segundo o Houaiss193

ldquodestrutivo mortiacutefero pernicioso

nocivordquo) no Isidro Pereira e no Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquopernicioso funestordquo

ldquoLutuosordquo segundo o Houaiss194

eacute o ldquoque evoca ou simboliza a ideia de morte

fuacutenebre luacutegubrerdquo a palavra eacute um dos sinocircnimos relacionados no Dicionaacuterio para

ldquofunestordquo (ldquoque causa a morte fatal mortalrdquo) Natildeo passa despercebida entretanto a

semelhanccedila parcial da palavra oulomeacutenen com lutuoso um possiacutevel iacutendice da razatildeo da

escolha do tradutor Aleacutem disso a escolha explicita o luto pela morte dos gregos

motivo das ldquodez mil doresrdquo (uma quantidade a sugerir o nuacutemero ldquosimboacutelicordquo

indefinido de ldquomuitasrdquo) que a ira provocou nos aqueus (ldquodez milrdquo mortes portanto)

passagem transformada ou concentrada por Odorico diretamente na afirmaccedilatildeo de ldquomil

fortes almasrdquo lanccediladas ao ldquoOrcordquo (ldquoo infernordquo segundo o Houaiss) ldquoVerdes no Orco

lanccedilourdquo ademais daacute conta da informaccedilatildeo correspondente a προΐαψεν (proiapsen)

verdes eacute soluccedilatildeo relativa a pro indicativo da precocidade prematuridade do

lanccedilamento ao Hades dos heroacuteis (mortos jovens portanto) O tradutor inclui a palavra

ldquocorposrdquo que associada a ldquopastordquo cumpre o sentido de que os heroacuteis almas atiradas ao

Hades tornaram-se presas dos catildees e aves embora em grego aluda-se a ldquotodas as avesrdquo

a opccedilatildeo por ldquoabutresrdquo permanece com o ganho de uma imagem intensa no mesmo

acircmbito semacircntico

Quanto agrave sonoridade observemos inicialmente correspondecircncias focircnicas nos

versos gregos transliterados

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Aquileos

192 A mesma definiccedilatildeo (ldquoira duradoura ressentimentordquo) eacute encontrada no recente Dicionaacuterio grego-

portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc vol 3 2008) Ambas as definiccedilotildees reportam ao Bailly ndash Dictionaire Grec-

Franccedilais ldquoμήνις [] colegravere durable ressentimentrdquo (Bailly Anatole Dictionaire Grec-Franccedilais Paris

Hachette 2005 (1ordf ediccedilatildeo 1895) 193 HOUAISS A (editor) Dicionaacuterio inglecircs-portuguecircs Rio de Janeiro Record 1982 194Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001

198

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

ἐξοὗδὴ τὰ πρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave ta procirc tadiasteacute tem epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

Seguem-se os versos com as unidades de correspondecircncia assinaladas com

diferentes notaccedilotildees de destaque

μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος

mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Akhileos

οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε

oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke

πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν

pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen

ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν

eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin

οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή

oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute

199

ἐξοὗδὴ τὰπρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε

eacuteksoudegrave tagraveprocirc tadiasteacute ten epiacutesante

Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς

Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes

As marcaccedilotildees ainda que limitadas e um tanto imprecisas podem indicar a

intrincada teia de correspondecircncias sonoras do texto grego Haacute como se pode ver

muitos aspectos de iconicidade que se sobressaem do signo verbal simboacutelico Para

efeito ilustrativo isolemos algumas das unidades demarcadas por exemplo a de

consoantes oclusivas sonoras surdas e aspiradas195

(satildeo incluiacutedas tambeacutem consoantes

duplas por envolverem dois sons consonacircnticos consecutivos o primeiro deles

oclusivo)

de Th P d kh

kh ge th k

p drsquo th os kh d pr ps

t t khek

t p D t t B

ks d t pr t d t t p t

tr d t ks dr k d kh

195 Haacute divergecircncias no acircmbito das hipoacuteteses acerca dos fonemas do grego antigo Para efeito praacutetico de

referecircncia adota-se aqui uma categorizaccedilatildeo usualmente aceita nos atuais cursos de liacutengua e literatura

grega antigas que pode ser assim representada (relativa agraves consoantes) (ver paacutegina seguinte)

Fonte Ribeiro Juacutenior W A Didascalia Portal Graecia Antiqua Satildeo Carlos Disponiacutevel em

wwwgreciantigaorg

200

Ira discoacuterdia morte os fonemas oclusivos sugerem uma batida belicosa uma imagem

de tensatildeo e conflito (primeiridade) Vejamos sob este aspecto restrito o que podemos

perceber do texto de Mendes mas antes assinalando tambeacutem algumas das diferentes

relaccedilotildees de semelhanccedila focircnica que se urdem no texto

Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles

A ira tenaz que lutuosa aos Gregos

Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas

Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto

Lei foi de Jove em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)

Repeticcedilotildees de consoantes oclusivas de constritivas fricativas ocorrecircncias de

primeiridade a sugerirem tensatildeo embate divergecircncia paronomaacuterias como ldquoirardquo e

ldquorixardquo ldquopeleiordquo e ldquoleirdquo a sugerirem tambeacutem oposiccedilatildeo De secundidade podemos

notar posiccedilotildees de palavras que indicariam correspondecircncias com a situaccedilatildeo a que o

texto se refere ldquoverdesrdquo no iniacutecio do verso em correspondecircncia exata com a palavra

ldquocorposrdquo inicial do verso seguinte a indicar a presenccedila prematura dos corpos lanccedilados

ao Hades como almas (palavra que ocupa posiccedilatildeo de final de verso oposta a ldquoverdesrdquo)

a palavra ldquorixardquo no meio do verso podendo indicar a intervenccedilatildeo de Zeus a pedido de

Teacutetis na guerra que assim teria se posto em meio agrave disputa de Agamemnon e Aquiles

posicionados de um lado e outro no verso seguinte (ldquorixardquo tem penso referecircncia

ambiacutegua no verso tanto pode referir-se agravequela entre os guerreiros como agrave participaccedilatildeo

do deus)

No texto grego chama a atenccedilatildeo a posiccedilatildeo intermediaacuteria de ldquoDiogravesrdquo no quinto

verso (para dizer de uma possiacutevel atribuiccedilatildeo de secundidade) centro do poder e

interventor nos destinos dos guerreiros e da guerra

Mas o deus que se intrometera antes e ocasionara a situaccedilatildeo que levaria agrave

discoacuterdia entre o ldquochefe de homensrdquo e o pelida fora Apolo filho de Zeus e Latona Seraacute

feito adiante algum comentaacuterio tambeacutem acerca dos dois versos seguintes aos

propostos para anaacutelise que se referem a Phebo

201

Prossigamos observando a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes conferindo o

esquema riacutetmico por ele adotado por meio da marcaccedilatildeo das tocircnicas do verso

Can ta- me a coacute le ra ndash oacute deu sa ndash funes ta de Aqui les Pe li da

cau sa que foi de os A qui vos so fre rem tra ba lhos sem

[ con ta

e de bai xa rem pa ra o Ha des as al mas de he roacuteis nu me ro

[sos

e es cla re ci dos fi can do e les proacute prios aos catildees a ti ra dos

e co mo pas to das a ves Cum priu-se de Zeus o de siacuteg nio

des de o prin ciacute pio em que os dois em dis coacuter dia fi ca ram

[cin di dos

o de A treu fi lho se nhor dos guer rei ros e A qui les di vi no

O primeiro verso eacute modelar por diversas razotildees Primeiro pela perfeita

prosoacutedia com coincidecircncia entre as posiccedilotildees das tocircnicas exigidas pelo esquema

hexameacutetrico (ternaacuterio descendente) e as siacutelabas tocircnicas das palavras Embora esta seja

uma condiccedilatildeo baacutesica que se repetiraacute em todos os versos em muitos deles na traduccedilatildeo

de Nunes a primeira siacutelaba meacutetrica tocircnica prevista pelo modelo do verso corresponde a

siacutelabas gramaticais aacutetonas caso dos versos 3 4 5 e 7 aqui apresentados iniciados pelos

conectivos ldquoerdquo ou pelo artigo ldquoordquo Este expediente no entanto eacute frequente em

adaptaccedilotildees do antigo sistema quantitativo para o sistema qualitativo a proacutepria

sequecircncia de versos marcados pelas tocircnicas poeacuteticas impotildee a leitura de modo a tornar

tocircnica a primeira siacutelaba de cada verso ainda que a ela natildeo corresponda uma tocircnica

gramatical veremos isso adiante quando tratarmos mais detidamente da questatildeo da

adaptaccedilatildeo do sistema quantitativo ao qualitativo e do hexacircmetro portuguecircs no toacutepico

relativo ao estudo para proposiccedilatildeo de um formato riacutetmico para a traduccedilatildeo da eacutepica

A que pese a apontada monotonia dos versos hexacircmetros de Nunes agrave

semelhanccedila dos versos baseados em peacutes nas liacutenguas anglo-saxocircnicas196

eacute como jaacute se

196 Diz Wolfgang Kayser sobre o assunto ldquoA analogia fez parecer possiacutevel a reproduccedilatildeo do verso antigo

nas liacutenguas germacircnicas as longas substituiacuteram-se pelas tocircnicas as breves pelas aacutetonas [] Na verdade o

encontro com a meacutetrica antiga foi de fatiacutedico significado para a meacutetrica germacircnica [] [Ele] levou agrave

restriccedilatildeo [] [da] liberdade [antes existente na meacutetrica germacircnica] e [] agrave construccedilatildeo com peacutes iguaisrdquo

202

disse notaacutevel a sua difiacutecil empreitada e a competecircncia com que a realizou Talvez este

seja o aspecto mais importante a se assinalar em sua recriaccedilatildeo da eacutepica por ser um

criteacuterio fundamental de correspondecircncia ao verso antigo que o distingue dos demais

tradutores estudados neste trabalho Sua noccedilatildeo de manter a organizaccedilatildeo do verso em peacutes

anaacutelogos aos do texto grego eacute fator determinante das caracteriacutesticas dos resultados por

ele obtidos

Sobre isso observe-se preliminarmente que de fato a medida em siacutelabas natildeo

deve ser vista como a referecircncia primeira em seus versos conforme observou J A

Oliva Neto (em trecho jaacute citado) em vez dela o fundamento de sua versificaccedilatildeo eacute a

ldquoceacutelula dactiacutelicardquo jaacute que estas se sucedem ininterruptamente pouco importando o ponto

em que cada verso termina ndash quanto a esse aspecto haacute a considerar tambeacutem os

enjambements frequentes na eacutepica que pela via semacircntico-sintaacutetica relativizam a

delimitaccedilatildeo dos versos Embora assim seja o alongamento decorrente da obrigatoacuteria

sequecircncia de seis daacutectilos em cada linha leva a um procedimento analiacutetico (termo

entendido aqui como oposto a ldquosinteacuteticordquo197

) na busca de correspondecircncia com o

original que envolve a inclusatildeo de acreacutescimos de significados em relaccedilatildeo a esse

Faccedilamos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo adotada como referecircncia e os elementos que a eles correspondem na versatildeo de

C A Nunes

KAYSER W Anaacutelise e interpretaccedilatildeo da obra literaacuteria Coimbra Armeacutenio Amado Editor Satildeo Paulo

Livraria Martins Fontes 1976 p 84 Este tema seraacute novamente abordado em outro toacutepico deste estudo 197 Conforme jaacute foi referido neste estudo e assinalou tambeacutem Oliva Neto a eacutepica grega de teor

narrativo natildeo se faz com base no valor da siacutentese natildeo sendo o procedimento de Nunes portanto avesso

aos poemas que traduz

203

_________________________________________________________________________

Embora natildeo tenhamos o propoacutesito geral de quantificaccedilatildeo mas sim de

identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas e de sua significaccedilatildeo para o resultado o uso que temos

feito das relaccedilotildees de correspondecircncia baseiam-se no procedimento de ldquotabelasrdquo agrave

semelhanccedila do que eacute proposto por P H Britto Natildeo se considera de interesse no

entanto propriamente enumerar todas as ocorrecircncias de aspectos identificados com

determinado referencial teoacuterico visando a um julgamento O reconhecimento de

aspectos qualitativos de procedimento pode contudo dar-nos alguma identificaccedilatildeo de

melhor realizaccedilatildeo tendo em vista como base de referecircncia a proposta de traduccedilatildeo e

sua coerecircncia interna

As traduccedilotildees ateacute agora vistas apresentam ndash para lembrarmos conceitos da

linguiacutestica contrastiva ndash transposiccedilatildeo e modulaccedilatildeo (ver notas 125 126 e 128) com

diversas ocorrecircncias Um caminho a seguir seria enumeraacute-las em cada uma das

204

traduccedilotildees mas essa perspectiva natildeo me parece promissora natildeo levaria a constataccedilotildees

frutiacuteferas para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo adotado a ocorrecircncia generalizada no entanto

ainda que em poucos exemplos atesta a importante obviedade (nem sempre

reconhecida) de que a traduccedilatildeo poeacutetica envolve a transformaccedilatildeo independentemente

dos procedimentos e criteacuterios de traduccedilatildeo adotados Aleacutem dos paracircmetros ldquoformaisrdquo que

determinam adequaccedilotildees e das soluccedilotildees semacircnticas e esteacuteticas definidas pela oacuteptica do

tradutor haacute a se considerar a proacutepria distacircncia entre as liacutenguas que ocasiona a

necessidade de abundantes ocorrecircncias como essas (duas palavras em vez de uma e

vice-versa inversotildees e deslocamentos ndash transposiccedilatildeo aparentes alteraccedilotildees na estrutura

semacircntica mas com o mesmo ldquoefeito geral de sentido denotativordquo ndash modulaccedilatildeo) Como

foi antes apontado o verso mais longo permite maior ldquoespaccedilo de manobrardquo ao uso

desses recursos visando agrave realizaccedilatildeo de seus objetivos de traduccedilatildeo seja no plano de

expressatildeo ou de conteuacutedo

A identificaccedilatildeo de omissotildees por sua vez ndash importante por dizer respeito agrave

presenccedila ou ausecircncia de informaccedilatildeo potencialmente relevante agrave narrativa ndash pode indicar

que estas tambeacutem ocorrem de modo independente da extensatildeo dos versos observemos

sua existecircncia nos hexacircmetros de Nunes Chama a atenccedilatildeo de imediato a ausecircncia da

informaccedilatildeo relativa a (pro) (de προΐαψεν proiapsen) ou seja da prematuridade do

lanccedilamento dos heroacuteis ao Hades ou da juventude desses heroacuteis (no verso de Nunes haacute

apenas a afirmaccedilatildeo ldquoe de baixarem ao Hadesrdquo) Haacute outro evento a se destacar a

informaccedilatildeo relativa a ἰφθίμους (iphthiacutemous) foi substituiacuteda por uma informaccedilatildeo diversa

ndash o sentido denotativo foi modificado portanto O adjetivo ἰφθμος (iphthimos) (que no

verso aparece no acusativo plural) eacute assim definido pelo Liddell amp Scott ldquostout strong

stal wartrdquo (palavras agraves quais se atribuem no Houaiss os significados de forte resoluto

corajoso decidido etc) assim eacute pelo Isidro Pereira ldquoforte robusto generoso

valenterdquo e pelo Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquovigoroso forte robusto valente

corajoso valorosordquo O sentido predominante de ldquovalenterdquo tratando-se de jovens heroacuteis

natildeo pode ser apreendido dos versos de Nunes em seu lugar aparece a palavra

ldquoesclarecidordquo que para o Houaiss significa ldquodotado de saber de conhecimentos que

possui nobreza ilustrerdquo Embora se possa aproximar o conceito de ldquopossuidor de

nobrezardquo agrave valentia do heroacutei o sentido denotativo imediato da palavra eacute bem diverso

daquele do adjetivo grego Estes dois eventos demonstram que embora com maior

ldquoespaccedilo de manobrardquo estes versos de Nunes trazem omissatildeo relativamente importante

205

(tendo-se em conta o conceito grego de heroacutei) e uma substituiccedilatildeo que tambeacutem o eacute (pela

mesma razatildeo)

Se haacute a possibilidade de se identificar uma omissatildeo nos versos de Odorico

Mendes (relativa a ldquodesde que primeirordquo [apartaram-se em discoacuterdia]) natildeo se pode

atribuir a ela a mesma importacircncia pelo teor quase redundante da informaccedilatildeo

Vejamos agora o que se pode observar de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem ou de

iconicidade perceptiacutevel nos versos

Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos

e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados

e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio

desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos

o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Na linha de leitura que percorremos com a traduccedilatildeo anteriormente vista

destacamos inicialmente as consoantes que vislumbramos como potenciais participantes

das relaccedilotildees entre som e sentido Marcamos tambeacutem com as sublinhas as tocircnicas do

hexacircmetro

Embora este natildeo seja o foco do procedimento adotado recorramos a alguma

quantificaccedilatildeo a fim de buscar possiacuteveis explicaccedilotildees para um dado de percepccedilatildeo de que

falaremos pouco adiante As repeticcedilotildees prosseguem em todos os versos somando 52

ocorrecircncias de oclusivas no total com presenccedila predominante do d (20 ocorrecircncias)

seguida da do k (15 ocorrecircncias) da do p (7 ocorrecircncias) etc A versatildeo de Odorico

por sua vez apresenta o total de 28 ocorrecircncias de oclusivas sendo 9 de d 6 de k 6

de t 3 de p etc Considerando-se a proporcionalidade de ocorrecircncias com o nuacutemero

de siacutelabas poeacuteticas de cada um dos conjuntos de versos observados (no caso de Odorico

6 versos com 10 siacutelabas cada = 60 siacutelabas no caso de Nunes 7 versos com 16 siacutelabas

cada) chegamos ao resultado de que para os versos de Nunes terem a mesma proporccedilatildeo

de ocorrecircncia de fricativas que a dos versos de Odorico deveratildeo contar com 522

siacutelabas Como vimos os versos de Nunes contam com 52 siacutelabas ou seja uma

206

ocorrecircncia de oclusivas proporcional agravequela apresentada pelos versos de Odorico

Tambeacutem os fonemas predominantes satildeo na ordem decrescente d e k com a

diferenccedila de que o t aparece na mesma quantidade do k

Havendo a mesma proporccedilatildeo de ocorrecircncia dessas consoantes entre ambas as

traduccedilotildees seraacute considerada pelo criteacuterio da quantidade a mesma possibilidade de efeito

aliterativo ligado agrave ideia de embate conforme a nossa atribuiccedilatildeo interpretativa No

entanto o efeito parece menos niacutetido natildeo obstante a subjetividade da percepccedilatildeo a

distribuiccedilatildeo das oclusivas parece tornaacute-las menos marcantes e assim a citada relaccedilatildeo

som-sentido parece mais remota como perspectiva de leitura Algumas hipoacuteteses podem

ser consideradas mencionamos trecircs a maior quantidade de palavras natildeo possibilita

efeito anaacutelogo ao daquele ocasionado por uma quantidade menor delas ainda que na

mesma proporccedilatildeo a presenccedila marcante dos acentos uniformemente distribuiacutedos faz

recair a atenccedilatildeo auditiva agraves proacuteprias tocircnicas e a fonemas outros em que as tocircnicas

recaem a narrativa mais extensa favorece conforme a suposiccedilatildeo jaacute mencionada a

aproximaccedilatildeo dos versos longos agrave prosa deslocando a atenccedilatildeo agrave narrativa em si e

dificultando a apreensatildeo de efeitos sonoros Estamos num terreno em que a tentativa de

objetividade para avaliaccedilatildeo de resultados pouco pode colaborar ao menos ateacute onde

posso entrever suas possibilidades a afericcedilatildeo de qualidades esteacuteticas escapa agrave

mensuraccedilatildeo inevitavelmente recaindo em constataccedilotildees de ordem subjetiva

compartilhadas ou natildeo por outros leitores

De todo modo alguns efeitos satildeo ressaltados pela leitura atenta a paronomaacutesia

em ldquode Zeus o desiacutegniordquo quase anagramaacutetica a sucessatildeo dos d na sequencia ldquoos dois

em discoacuterdia ficaram cindidosrdquo em que as posiccedilotildees do fonema parecem indicar a

proacutepria separaccedilatildeo convertendo-se suas ocorrecircncias em iacutendices da posiccedilatildeo dos

discordantes Efeitos poeacuteticos que resistem ao fluxo narrativo e agrave aparente diluiccedilatildeo das

reiteraccedilotildees focircnicas

Passemos a examinar a traduccedilatildeo de Haroldo de Campos com a relaccedilatildeo de

correspondecircncias entre as palavras usadas por Campos e as da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo que

temos adotado como referecircncia

207

__________________________________________________________________________

De imediato sobressai no plano do conteuacutedo a variante relativa ao significado

de imperativo presente do verbo ndash(aeido ado) ao qual eacute

atribuiacutedo em primeiro lugar o sentido denotativo de ldquocantarrdquo ndash no entanto o Liddell amp

Scott registra aleacutem de ldquosingrdquo o significado de ldquochantrdquo que segundo o Houaiss pode

significar ldquocelebrar em versos ou cantordquo o Isidro Pereira por sua vez traz os

significados ldquocantar celebrar elogiarrdquo e o Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquocantar

celebrar cantar repetindo cantar refratildeo [etc]rdquo A opccedilatildeo de Campos eacute por ldquocelebrarrdquo

que permite ndash seratildeo feitas aqui diga-se observaccedilotildees de relaccedilotildees formais que podem

hipoteticamente ser determinantes nas escolhas do tradutor ndash dois tipos de ocorrecircncia

que seriam de interesse para o resultado de recriaccedilatildeo o primeiro a adequaccedilatildeo da

palavra ao esquema meacutetrico dodecassilaacutebico com a tocircnica da palavra ldquocelebrardquo

localizando-se na sexta siacutelaba do verso ou seja na posiccedilatildeo intermediaacuteria usual de pausa

(ou cesura) no dodecassiacutelabo segundo a repeticcedilatildeo de le (celebra do Peleio Aquiles)

208

em variantes aberta e fechadas Tambeacutem se nota a variaccedilatildeo dos significados comumente

atribuiacutedos a (oulomenen ndash conforme jaacute dito ldquoperdido arruinado

pernicioso funestordquo ndash Isidro Pereira) o tradutor prefere ldquoo irado desvariordquo

aparentemente ldquoafastando-se da letrardquo Entretanto eacute preciso considerar que o Liddell amp

Scott traz como referecircncia preliminar a seguinte indicaccedilatildeo para

(oulomenos) ldquoused as a term of abuserdquo (ldquousado como um termo de

abusordquo) o que sugere o ldquodesvariordquo na soluccedilatildeo de Campos (O adjetivo deriva-se do

verbo (ollumi ldquoto destroy make an end ofrdquo)) Uma hipoacutetese para a opccedilatildeo do

tradutor eacute a de que a palavra (oulomenen)manteacutem uma relaccedilatildeo

paronomaacutestica com (menin) lembrando que e

correspondem ambos a e em portuguecircs Ao utilizar ldquoo irado desvariordquo Campos inclui

a palavra ldquoirardquo por meio do adjetivo e a faz reverberar no substantivo numa disposiccedilatildeo

anagramaacutetica (desvario) criando uma dupla paronomaacutesia que pode associar-se na

leitura ao sentido de insistente persistente Um ganho portanto de iconizaccedilatildeo do

siacutembolo (na classificaccedilatildeo de Peirce um ldquolegissigno icocircnico remaacuteticordquo assim como

outros exemplos aqui dados) que permite a perspectiva de uma relaccedilatildeo som-sentido

Deve-se considerar ademais que a soluccedilatildeo adotada se adeacutequa agraves exigecircncias do padratildeo

meacutetrico com a tocircnica da palavra ldquodesvariordquo na posiccedilatildeo da cesura

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem a ausecircncia (omissatildeo) do sentido de ldquojovemrdquo tal

como na traduccedilatildeo de Nunes A despreocupaccedilatildeo de manter presente esse significado

talvez se deva em ambos os casos agrave relativa obviedade da informaccedilatildeo pelas

caracteriacutesticas da cultura grega no caso de Odorico no entanto essa informaccedilatildeo eacute

mantida e portanto escolhida para permanecer Se poreacutem haacute tal omissatildeo na versatildeo de

Campos natildeo haacute aquela de Mendes ldquodesde que por primeiro a discoacuterdia []rdquo manteacutem a

ideia de ldquoprimeirordquo de anterioridade do desentendimento que o uacuteltimo desprezou O

verso seguinte por sua vez eacute traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do verso grego ldquoO Atreide chefe de

homens e o divino Aquilesrdquo por ldquoAtreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutesrdquo

Algumas preacutevias suposiccedilotildees satildeo portanto relativizadas neste breve conjunto de

versos todas as traduccedilotildees apresentam omissatildeo a versatildeo de Odorico natildeo apresenta mais

omissotildees que as demais Campos acomoda diante dessa possibilidade uma

correspondecircncia palavra-a-palavra em seu dodecassiacutelabo mantendo aleacutem do mais

proximidade sonora com o original (como na opccedilatildeo por ldquoatreiderdquo) As ideias de

concisatildeo e concentraccedilatildeo de efeitos em Odorico e em Campos correspondem ao que

209

ocorre neste trecho em Nunes os ldquoefeitosrdquo tecircm presenccedila anaacuteloga agraves versotildees dos demais

(embora natildeo se associem agrave siacutentese e possivelmente por isso natildeo parecem causar a

mesma impressatildeo de concentraccedilatildeo) Mas para se afirmar isso devemos conferir a

ocorrecircncia das consoantes (oclusivas) tomadas como referecircncia potencial da poeticidade

pela repeticcedilatildeo

A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles

o irado desvario que aos Aqueus tantas penas

trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades

de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

desde que por primeiro a discoacuterdia apartou

o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles

De novo quantificando para estabelecer referecircncias as opccedilotildees do tradutor

parecem coerentes com o referencial por ele expliacutecito da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem

a frequecircncia das oclusivas eacute ligeiramente maior que a das demais versotildees (39

ocorrecircncias 15 a mais que as outras) como nos outros casos sua ocorrecircncia permite

engendramento de relaccedilotildees paradigmaacuteticas que compotildeem na leitura associaccedilotildees entre

som e sentido A destacar tambeacutem entre outros caminhos de identificaccedilatildeo

semelhanccedilas como a entre ldquopastordquo e ldquorapacesrdquo (que restringe o sentido como ldquoabutresrdquo

em Odorico) e toda a sequecircncia sonora desse verso

pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus

E ainda a observar ldquoa irardquo ldquopeleiordquo e ldquopastordquo satildeo escolhas tambeacutem de

Odorico possiacutevel ldquocitaccedilatildeordquo do trabalho considerado referencial pelo tradutor

Faccedila-se a seguir a escansatildeo dos dodecassiacutelabos marcando-se as tocircnicas e a

pausa na sexta siacutelaba e registrando-se as tocircnicas e semitocircnicas de modo a evidenciar as

variaccedilotildees no esquema riacutetmico dos versos

A i ra Deu sa ce le bra do Pe lei o A qui les

210

o i ra do des va rio que aos A queus tan tas pe nas

trou xe e in con taacute veis al mas ar ro jou no Ha des

de va len tes de he roacuteis es poacute lio pa ra os catildees

pas to de a ves ra pa ces fez- se a lei de Zeus

des de que por pri mei ro a dis coacuter dia a par tou

o A trei de che fe de ho mens e o di vi no A qui les

Com o mesmo iniacutecio de Odorico o verso tambeacutem faz elisatildeo em ldquoA irardquo

encontro entre uma vogal aacutetona e uma tocircnica esse tipo de elisatildeo seraacute um recurso

comum em Campos assim como em Odorico um modo (jaacute referido) de ldquoganharrdquo

elementos por meio de sinalefa Eacute (como jaacute se mencionou) frequente na Iliacuteada de

Campos o uso de sineacuterese (ldquopassagem de um hiato no interior da palavra a ditongordquo ndash

Houaiss) como em ldquoDes pre zo es sa tua coacute le ra ca ni na As simrdquo (VIII

484) e de sineacutereses associadas a elisotildees como em ldquoNatildeo me im por ta tua coacute le

ra ain da que te lan cesrdquo (VIII 478) A esse respeito vejam-se como referecircncia

ilustrativa duas paacuteginas manuscritas por Haroldo de Campos contendo a escansatildeo de

versos do Canto XXIV da Iliacuteada198

198 Estas paacuteginas integraratildeo tambeacutem o mencionado livro Transcriaccedilatildeo em preparo

211

212

Os manuscritos permitem constatar que poeta de longa experiecircncia Haroldo de

Campos natildeo desprezou a escansatildeo anotada de versos talvez um registro de seus

criteacuterios de metrificaccedilatildeo como se pode ver a cesura na sexta siacutelaba eacute um deles Fica

evidente tambeacutem a flexibilidade no uso dos diferentes modos de sinalefa como se tem

213

observado vejam-se por exemplo os versos (nos quais anoto tocircnicas e semitocircnicas

evidenciando-se mais uma vez a variaccedilatildeo riacutetmica)

e a Heacutector um mortal [] (XXIV 58)199

que eacute ho ra de res ga tar seu fi lho ao cam po a queu (XXIV 146)

e troi a nas seios fun dos sem te mor e sem

Nesses versos destacam-se a elisatildeo em ldquoe a Heacutectorrdquo e em ldquoque eacute ho (ra)rdquo e a

sineacuterese em ldquoseiosrdquo exemplos da referida flexibilidade incorporada aos criteacuterios do

tradutor200

Sobre o dodecassiacutelabo de Campos diga-se que natildeo corresponde ao padratildeo do

alexandrino claacutessico tatildeo utilizado pelos poetas parnasianos embora o tradutor tenha

optado por manter preferencialmente a pausa na sexta siacutelaba201

(um dos criteacuterios

relativos ao referido alexandrino natildeo seguido pela escola romacircntica que reagia ldquocontra

o rigorismo antigo deslocando muitas vezes a cesura central para outro ponto e fazendo

largo emprego do cavalgamentordquo202

) Campos coerentemente agrave composiccedilatildeo eacutepica (que

envolve a narrativa) emprega com frequecircncia o cavalgamento sem contudo abdicar da

cesura claacutessica Sobre os demais criteacuterios que definiriam o padratildeo claacutessico leia-se a

seguinte citaccedilatildeo do parnasiano Olavo Bilac sobre o verso ldquode doze siacutelabas ou

alexandrinordquo

Este verso compotildee-se geralmente de dois versos de seis siacutelabas poreacutem eacute

indispensaacutevel observar que dois simples versos de seis siacutelabas sem sempre fazem

um alexandrino perfeito [] A lei orgacircnica do alexandrino pode ser expressa em

dois artigos 1o quando a uacuteltima palavra do primeiro verso de seis siacutelabas eacute grave a

199 O verso que consta no manuscrito foi posteriormente modificado pelo tradutor aparece assim na

ediccedilatildeo da Iliacuteada de Homero ldquoe a Heacutector Mortal em peito de mulher mamourdquo Op cit vol II p 443 200

Faccedila-se tambeacutem uma observaccedilatildeo de outro teor o tradutor indica a repeticcedilatildeo para o verso 186 do

verso 157 do mesmo canto tais versos satildeo tambeacutem iguais no texto grego 201 Relembre-se a seguinte afirmaccedilatildeo do tradutor ldquo[] recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na

sexta siacutelaba ou mais raramente na quarta oitava e deacutecima-segunda)rdquo (1994 13) 202 ALI Said Versificaccedilatildeo portuguesa Satildeo Paulo Edusp 2006 p 108

214

primeira palavra do segundo deve comeccedilar por uma vogal ou por um h 2o a uacuteltima

palavra do primeiro verso nunca pode ser esdruacutexula (1910 68)

Bilac segue preceitos definidos por A F de Castilho em seu jaacute citado Tratado

de metrificaccedilatildeo sobre tais regras leia-se o que dizem Adriano L Drummond e J

Ameacuterico Miranda

Na concepccedilatildeo de Antocircnio Feliciano de Castilho soacute eacute alexandrino o verso que

conta doze siacutelabas de ponta a ponta ateacute a uacuteltima tocircnica O poeta portuguecircs

considerava ainda pelo padratildeo agudo de contagem que propunha verso de doze

siacutelabas apenas aquele que se compusesse de dois versos de seis siacutelabas Entretanto

havia restriccedilotildees a essa foacutermula o primeiro hemistiacutequio deveria ser agudo no caso

de ser grave o primeiro hemistiacutequio deveria terminar por vogal e o segundo

iniciar-se por vogal ou por ldquohrdquo de modo que a siacutelaba final do primeiro hemistiacutequio

se absorvesse por sinalefa na primeira siacutelaba do segundo Preenchidas essas

exigecircncias conforme os moldes da prescriccedilatildeo castilhiana a medida do verso

resulta invariavelmente em doze siacutelabas Denomina-se esse verso de doze siacutelabas

de alexandrino francecircs203

Afirma sobre o alexandrino e em defesa de seu uso o proacuteprio Castilho

Ao verso de doze siacutelabas chamam alexandrino e tambeacutem francecircs [] entre os

franceses eacute ele o heroacuteico como o de dez siacutelabas o tem sido em Portugal Castela e

Itaacutelia como entre os Latinos e os Gregos o fora o hexacircmetro [] Surda e

antimusical a sua lingua mas necessitando em poesia de uma medida que por sua

extensatildeo abrangesse maior suma de ideacuteas somaram dois versos de pausas assaz

constantes para a conseguirem se o verso heroacuteico se partisse como o nosso em

porccedilotildees deseguais deixaria de ser reconheciacutevel sem passar a ser prosa deixaria de

ser verso

Natildeo seraacute faacutecil atinar com a razatildeo porque um verso mais espaccediloso que todos os

outros por consequecircncia mais capaz de pensamento e com uma particcedilatildeo simeacutetrica

203 O trecho integra o artigo ldquoO alexandrino portuguecircsrdquo de Adriano Lima Drummond e Joseacute Ameacuterico

Miranda in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira vol 14 ndash Dossiecirc Literatura Brasileira do

final do seacuteculo XIX Belo Horizonte UFMG 2007 pp 15-28

215

o que para o espiacuterito de quem os faz e para o agrado de quem os lecirc eacute ainda uma

vantagem tem sido ateacute hoje tatildeo escassamente cultivado em nossa liacutengua204

Acerca do tema diz ainda Castilho

Depois que noacutes por inteiramente convictos do preacutestimo e das excelecircncias dos

alexandrinos nos entregamos desenganada e abertamente ao seu granjeio e

sucessivo aperfeiccediloamento em portuguecircs muitos dos nossos mais bem nascidos

poetas o tomaram tambeacutem a si e o tecircm jaacute na verdade subido a grande apuro sendo

jaacute hoje faacutecil prever que dentro em pouco este metro que tanto se aconchega agrave

elegacircncia da frase e do estilo haacute de pleitear ousadamente preferecircncias ao nosso

velho heroacuteico apesar da prescriccedilatildeo da sua posse ateacute o deixar afinal natildeo dizemos

destruiacutedo nem o desejamos mas quando menos suplantado205

Como se pode verificar nos versos de Haroldo de Campos aqui citados uma das

regras relativas ao alexandrino (o primeiro dos ldquoartigosrdquo mencionados por Bilac) nem

sempre eacute seguida ou seja natildeo haacute neles a preocupaccedilatildeo de que a siacutelaba seguinte a uma

palavra paroxiacutetona no final do primeiro hemistiacutequio ser sucedida por uma vogal ou h ldquoe

troi a nas seios fun dos sem te mor e semrdquo ou ldquoA i ra Deu sa ce

le bra do Pe lei o A qui lesrdquo

Como se apontou os versos de Campos transitam por diferentes esquemas

permitidos pelo dodecassiacutelabo Sobre os esquemas baacutesicos do alexandrino afirma Said

Ali que ldquoo movimento riacutetmico ateacute a uacuteltima tocircnica obedece em qualquer dos

hemistiacutequios a um destes quatro esquemasrdquo

Forma-se o alexandrino quer pela repeticcedilatildeo de um destes tipos quer pela

combinaccedilatildeo de dois diferentes206

204 CASTILHO A F op cit 1874 p 50 205 Id p 52 206 ALI Said op cit p 108

216

Rogeacuterio Chociay identifica as seguintes ldquopossibilidades acentuais do

alexandrino claacutessicordquo ldquoconsiderando-se a contiguidade dos hemistiacutequiosrdquo207

1-3-6-8-12 2-4-6-8-12 3-6-8-12

1-3-6-9-12 2-4-6-9-12 3-6-9-12

1-3-6-10-12 2-4-6-10-12 3-6-10-12

1-3-6-8-10-12 2-4-6-8-10-12 3-6-8-10-12

1-4-6-8-12 2-6-8-12 4-6-8-12

1-4-6-9-12 2-6-9-12 4-6-9-12

1-4-6-10-12 2-6-10-12 4-6-10-12

1-4-6-8-10-12 2-6-8-10-12 4-6-8-10-12

Como pudemos constatar nos poucos exemplos considerando-se tocircnicas e

semitocircnicas ocorrem em Campos esquemas como 1-4-6-8-10-12 1-3-6-8-10-12 etc

Algo a comentar complementariamente o verso seguinte aos vistos ou seja o

oitavo da Iliacuteada

Satildeo as seguintes as soluccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Nume haacute que os malquistasse O que o Supremo

[]

Carlos Alberto Nunes

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem

Haroldo de Campos

Que Deus posto entre ambos provocou a rixa

207 CHOCIAY Rogeacuterio Teoria do verso Rio de Janeiro Satildeo Paulo McGraw-Hill 1974 p 128

217

A registrar a extrema concisatildeo de Odorico com a comunicaccedilatildeo do sentido geral

do verso grego no primeiro segmento do decassiacutelabo heroacuteico ou seja ateacute a sexta siacutelaba

tocircnica a coerecircncia de Nunes com seu propoacutesito narrativo afim com a extensatildeo e a

explicitaccedilatildeo e especialmente a providecircncia de Campos em valer-se da disposiccedilatildeo dos

elementos do verso de maneira a criar a indicialidade da posiccedilatildeo da sequecircncia de

palavras referentes agrave divindade entre viacutergulas e entre dois extremos do verso de modo

anaacutelogo ao que seria a posiccedilatildeo no espaccedilo extriacutenseco ao poema ldquoposto entre ambosrdquo

passa a funcionar tambeacutem como um hipoiacutecone da divindade

Tomaremos como objeto de estudo agora fragmentos da Odisseia Antes no

entanto de abordarmos os poucos versos escolhidos apresentemos sucintamente o

argumento do poema

A Odisseia composta de 24 cantos eacute dedicada ao retorno de Odisseu a sua terra

Iacutetaca apoacutes sua participaccedilatildeo na guerra de Troacuteia Durante dez anos (apoacutes ter estado

tambeacutem por uma deacutecada na guerra) o heroacutei astucioso afrontou perigos na terra e no

mar antes de poder chegar a seu reino O poema compotildee-se de trecircs partes

1 A ldquoTelemaquiardquo (cantos I-IV) Telecircmaco parte agrave procura do pai diante

da situaccedilatildeo em que se encontra sua matildee Peneacutelope devido agrave ausecircncia de seu pai

pretendentes a sua matildeo usurpam o palaacutecio real

2 A ldquovolta de Odisseurdquo (cantos V-VIII) recolhido apoacutes um naufraacutegio pelo

rei dos feaacutecios Alciacutenoo ele relata suas peregrinaccedilotildees (cantos IX-XIII) que o levaram

ateacute os Lotoacutefagos os Ciclopes a feiticeira Circe o Hades o mar das Sereias e por fim a

ninfa Calipso

3 A ldquovinganccedila de Odisseurdquo (cantos XIV-XXIV) de volta a Iacutetaca o heroacutei se

disfarccedila de mendigo e chega ao palaacutecio invadido pelos pretendentes agrave matildeo de sua

esposa ela poreacutem declara que soacute se casaraacute com aquele que conseguir manejar o arco

de Odisseu ele entatildeo se revela e massacra os pretendentes auxiliado por Telecircmaco

Tambeacutem eacute apresentada a seguir uma adaptaccedilatildeo do resumo claacutessico do Canto I

a partir da ediccedilatildeo da Odisseia de Victor Berard (Les Belles Lettres)208

208 A mesma observaccedilatildeo se aplica a outras sinopses de cantos incluiacutedas neste trabalho

218

Canto I

Assembleia dos Deuses Conselhos de Atena a Telecircmaco Festim dos

Pretendentes

A Assembleia dos Deuses reuacutene-se e decide pelo o envio de Odisseu a Iacutetacaa

partirda ilha de Calipso Atena vai para Iacutetaca onde se apresenta a Telecircmaco

fazendo-se semelhante a Mentes rei dos Taacutefios Haacute uma conversa em que Atena

aconselha Telecircmaco a procurar por seu pai primeiramente em Pilo cidade de

Nestor depois em Esparta cidade de Menelau Ao partir ela daacute sinais de que eacute a

deusa Atena Acontece nesse iacutenterim a Festa dos Pretendentes

Segue-se o texto grego dos primeiros cinco versos do canto acompanhado de uma

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo agrave semelhanccedila das apresentadas anteriormente

Odisseia I 1-5

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

homem cantai-me Musa multiacutevioastuto que muitiacutessimas vezes

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

vagou porque de Troia sagrado baluarte destruiu

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

de muitos homens viu cidades e soube pensamento

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

e muitas ele no mar sofreu dores seu no acircnimo

(e no mar muitas dores sofreu ele em seu acircnimo)

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

tentando salvar sua vida e retorno de companheiros

219

Leiamos as recriaccedilotildees dos diferentes tradutores

Odorico Mendes

Canta oacute Musa o varatildeo que astucioso

Rasa Iacutelion santa errou de clima em clima

Viu de muitas naccedilotildees costumes vaacuterios

Mil transes padeceu no equoacutereo ponto

Por segurar a vida e aos seus a volta

[]

Carlos Alberto Nunes

Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito

peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia

muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes

como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros da alma

para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta

Haroldo de Campos

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus209

Verifiquemos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo

literalrdquo e os da traduccedilatildeo de Odorico Mendes com o referencial do acircmbito semacircntico

209 Fragmentos de cantos da Odisseia traduzidos por Haroldo de Campos foram reunidos no livro Campos H de Odisseia de Homero ndash Fragmentos Organizaccedilatildeo Ivan de Campos e Marcelo Taacutepia

Apresentaccedilatildeo Trajano Vieira Satildeo Paulo Olavobraacutes 2006 Na ediccedilatildeo consta relativamente ao fragmento

do Canto I (versos 1-37) a seguinte nota dos organizadores ldquoProvavelmente Haroldo de Campos natildeo

considerasse esta uma versatildeo definitiva de sua traduccedilatildeo da abertura da Odisseia a julgar pelos

manuscritos que deixou em que os versos iniciais do poema homeacuterico recebem outras formulaccedilotildees Feito

o registro consideramos mesmo assim interessante a publicaccedilatildeo do texto nesta oportunidaderdquo (p 9)

220

____________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Valendo-se basicamente do recurso da modulaccedilatildeo como se pode ver ndash e natildeo eacute

penso necessaacuterio explicitar detalhes do procedimento ndash o texto de Odorico daacute conta do

plano do conteuacutedo entendido como a comunicaccedilatildeo ldquoessencialrdquo do sentido depreendido

dos versos gregos Com suas habituais paraacutefrases atua de modo a recriar a mensagem

coerentemente a suas convicccedilotildees esteacuteticas e agravequelas que orientam sua escolha

vocabular inseridas em sua eacutepoca e em seu contexto esteacutetico-literaacuterio permanecendo

no campo semacircntico do original Diversos elementos podem ser destacados como a

opccedilatildeo por ldquotranserdquo para designar as ldquodores em seu acircnimordquo para a palavra escolhida o

Houaiss traz inicialmente os significados de ldquoestado de afliccedilatildeo anguacutestiardquo ou a

utilizaccedilatildeo de ldquocostumesrdquo para fazer corresponder a lugares (cidades) e a pensamentos

simultaneamente ou ldquorasa Iacutelion santardquo referindo-se agrave destruiccedilatildeo (rasa ldquoarrasardquo ndash

Houaiss) do sagrado baluarte (fortaleza praccedila forte) de Troacuteia (Iacutelion ldquoantigo nome de

Troacuteia []rdquo ndash Isidro Pereira) Siacutentese radical em parte ditada pelo metro adotado

associada agrave procura de manutenccedilatildeo do que se pode considerar o conjunto ldquofundamentalrdquo

de informaccedilotildees propiciadas pelos versos Nestes cinco primeiros versos Odorico

manteacutem a correspondecircncia quase verso a verso e portanto a mesma quantidade de

221

linhas diminuiraacute contudo um verso jaacute no conjunto dos dez primeiros versos do texto

grego fazendo corresponder a sua nona linha agrave deacutecima de Homero A fim apenas de

propiciar esta verificaccedilatildeo incluirei a seguir os versos de nuacutemeros 6 a 10 no original

(acompanhados da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo) e os que a ele correspondem de Odorico de

nuacutemeros 6 a 9 evidenciando o processo de siacutentese que decorria do posicionamento do

tradutor e que como jaacute se mencionou o torna ndash embora circunscrito a periacuteodo que vai

do iniacutecio a pouco aleacutem de meados do seacuteculo XIX ndash identificaacutevel com as postulaccedilotildees

modernas da condensaccedilatildeo como uma das propriedades da linguagem poeacutetica

ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ

mas nem assim companheiros resgatou desejando emboraainda que

αὐτῶν γὰρ σφετέρῃσιν ἀτασθαλίῃσιν ὄλοντο

deles mesmos (pois) proacutepria por loucuraestultiacutecia pereceram

(pois pereceram por sua proacutepria loucura)

νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο

neacutescios que vacas de Hiperiocircnio Sol (Heacutelio)

ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ

devoravam e ele lhes arrebatou do retorno dia

(e ele lhes arrebatou o dia do retorno)

τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν (10)

disso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutes

Baldo afatilde Pereceram tendo insanos

Ao claro Hiperiocircnio os bois comido

Que natildeo quis para a paacutetria alumiaacute-los

Tudo oacute prole Dial me aponta e lembra (9)

222

ldquoProle dialrdquo comente-se alude agrave Deusa agrave Musa descendente de Zeus provindo

a palavra ldquodialrdquo do vocaacutebulo (Di) ldquoZeusrdquo em grego

Vejamos em semelhante estabelecimento de correspondecircncias a traduccedilatildeo de

Carlos Alberto Nunes

______________________________________________________________________

Como se pode constatar a simples leitura comparativa a recriaccedilatildeo de Nunes

pode ser encarada como uma possiacutevel traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do texto grego natildeo omitindo

na passagem qualquer de seus elementos As soluccedilotildees vocabulares se datildeo de modo

coerente a seus procedimentos mais afeitos agrave anaacutelise ao resultado explicitador do que agrave

siacutentese adequando-se agraves necessidades ditada pelo esquema riacutetmico-meacutetrico do

hexacircmetro Natildeo se observa neste fragmento tambeacutem qualquer acreacutescimo

223

Apresente-se por fim a relaccedilatildeo de correspondecircncias estabelecidas pela traduccedilatildeo

de Haroldo de Campos

______________________________________________________________________

Conforme se pode verificar o texto de Campos permanece como os demais no

campo de sentido do texto grego empregando o recurso da modulaccedilatildeo nota-se a

transformaccedilatildeo da referecircncia homeacuterica agrave destruiccedilatildeo do ldquosagrado baluarterdquo ou sagrada

fortaleza de Troacuteia em saque a ldquoTroacuteia urbe sagradardquo coerente agrave visatildeo do tradutor como

sendo o plano semacircntico uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a tarefa da traduccedilatildeo neste

caso inclui-se um sentido explicitador do teor da destruiccedilatildeo referida nos versos de

Homero Os dodecassiacutelabos da recriaccedilatildeo natildeo trazem nesta passagem omissotildees ou

acreacutescimos A destacar a recriaccedilatildeo (por modo usual nos procedimentos do tradutor agrave

semelhanccedila daqueles praticados por Odorico Mendes) do epiacuteteto de Odisseu que

consiste em palavra criada a partir do termo grego utilizando-se para tanto neste caso

o mesmo antepositivo ldquopolirdquo ldquopoliengenhosordquo por ldquopolyacutetroponrdquo

Diga-se que curiosamente a traduccedilatildeo de Campos relativa aos cinco primeiros

versos do texto homeacuterico vale-se de seis versos para abranger o campo de sentido

224

daqueles como se pode ver no conjunto antes apresentado Contudo no conjunto dos

dez primeiros versos do Canto I a ldquotranscriaccedilatildeordquo realizada faraacute manter-se a

correspondecircncia numeacuterica conforme mostra a leitura de seus versos de nuacutemeros 7 a 10

incluiacutedos a seguir

Aos companheiros natildeo logrou poupaacute-los mesmo

querendo Por si proacuteprios perderam-se Loucos

predando os bois do Sol do retorno privaram-se

Comeccedila de onde queiras Deusa a nos contar (10)

Note-se que o deacutecimo verso corresponde de modo quase ldquoliteralrdquo ao verso grego

de mesmo nuacutemero (ldquodisso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutesrdquo)

eliminando-se apenas a informaccedilatildeo (com valor de epiacuteteto) referente agrave Musa (ldquofilha de

Zeusrdquo)

Antes de prosseguirmos a anaacutelise com observaccedilotildees de ordem formal relativas a

repeticcedilotildees identificaacuteveis no fragmento vejamos ndash para que natildeo seja excluiacuteda esta

referecircncia ndash os versos de nuacutemeros 6 a 10 na traduccedilatildeo de Carlos A Nunes

Os companheiros poreacutem natildeo salvou muito embora o tentasse

pois pereceram por culpa das proacuteprias accedilotildees insensatas

Loucos que as vacas sagradas do Sol hiperiocircnio comeram

Ele por isso do dia feliz os privou do retorno

Deusa nascida de Zeus de algum ponto nos conta o que queiras

Manteacutem-se na sequecircncia conforme eacute possiacutevel verificar a relaccedilatildeo praticamente

literal com o texto grego o deacutecimo inclui a informaccedilatildeo referente agrave Deusa embora

transformada Haacute a informaccedilatildeo cabiacutevel por deduccedilatildeo a partir do verso homeacuterico relativa

agrave vontada da Musa (agrave semelhanccedila do que escreveu Haroldo de Campos) permanecendo

portanto no campo semacircntico do original

Continuemos com breves comentaacuterios acerca do plano esteacutetico dos versos Para

tanto segue-se inicialmente o conjunto de versos gregos acompanhados de sua

transliteraccedilatildeo

225

ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

Localizaremos nossa anaacutelise num acircmbito decorrente de uma hipoacutetese de leitura

sustentada pela observaccedilatildeo de repeticcedilotildees focircnicas nos cinco primeiros versos homeacutericos

(por vezes aproximadas por semelhanccedila agrave maneira do que jaacute se fez neste estudo)

Destaquem-se com grifos as ocorrecircncias (entre outras de possiacutevel identificaccedilatildeo) que

tomaremos por base para a discussatildeo

aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave

plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen

pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno

pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten

arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron

A hipoacutetese de leitura fundamentada na projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o

sintagma eacute de que se constroacutei no texto uma teia de correspondecircncias entre elementos

contidos no epiacuteteto do heroacutei tecendo-se sua erracircncia por entre os versos As

manifestaccedilotildees de primeiridade efeitos sugestivos de marcaccedilatildeo riacutetmico-sonora

permitem a composiccedilatildeo da figura da erracircncia que em niacutevel de secundidade pode

226

corresponder a lugares pelos quais Odisseu teria peregrinado no anuacutencio de sua

muacuteltipla aventura

Relendo-se as traduccedilotildees em questatildeo agrave luz desta hipoacutetese conclui-se que a

ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos permite a observaccedilatildeo de teia comparaacutevel de

elementos icocircnicos assim como da indicialidade das posiccedilotildees do heroacutei errante

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

Se aleacutem das ocorrecircncias (aproximativas) no plano focircnico destacarmos as

ocorrecircncias de notaccedilatildeo ou seja pela semelhanccedila graacutefica ampliaremos a teia de

correspondecircncias

Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta

do que perambulou por muitas partes desde

que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo

de povos e de poacutelis viu e desvendou

padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago

para salvar-se e garantir a volta dos seus

227

Isoladas assim ficam as ocorrecircncias nas duas versotildees de destaque

Tomaremos como objeto de anaacutelise por fim um fragmento do Canto XI da

Odisseia Vejamos preambularmente uma sinopse do canto

Canto XI

Consulta aos mortos

[Apoacutes a morte de Elpenor (que cai do terraccedilo na casa de Circe) relatada no final

do Canto X] Odisseu conta como a conselho de Circe desce ao Hades a fim de

consultar o adivinho tebano Tireacutesias Encontra primeiro a alma de Elpenor que

reclama a proacutepria sepultura ouve depois de Tireacutesias o modo de salvar a si

mesmo e a seus companheiros Conversa com diversos heroacuteis e heroiacutenas com a

matildee que lhe daacute notiacutecias de Iacutetaca e com alguns da guerra de Troacuteia aleacutem de alguns

criminosos

228

Seguem-se os primeiros oito versos do canto em grego acompanhados de sua

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ao portuguecircs

Odisseia XI 1-8

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Depois quando ateacute o navio descemos e o mar

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

o navio primeiro puxamos ao mar divino

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

no mastro pusemos e velas navio negro

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

dentro as ovelhas tendo pegado fomos e noacutes mesmos

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

fomos (subimos) aflitos abundantes laacutegrimas vertendo

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

nosso agrave popa de navio de escura proa

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Circe de belas tranccedilas terriacutevel Deusa de voz harmoniosa (canora)

229

Leiam-se consecutivamente as traduccedilotildees do fragmento ao portuguecircs por

Odorico Nunes e Campos

Odorico Mendes

Deitado ao mar divino o fresco lenho

Dentro as hoacutestias o mastro e o pano armados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

Que invoca a deusa de anelado Crino (8)

Carlos Alberto Nunes

Quando chegamos agrave beira do mar e ao navio ligeiro

antes de tudo arrastando-o o metemos nas ondas divinas

mastro depois levantamos e velas no negro navio

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

Por traacutes de nosso navio de proa anegrada mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha (8)

Haroldo de Campos

Foi assim que baixamos para a nau mirando

o mar antes poreacutem lanccedilamos o navio

ao sacro sal aquoso o mastro e as velas todas

fazendo arborescer no barco escuro entatildeo

embarcamos carneiros e ovelhas Subimos

a bordo coraccedilotildees-cortados todo-laacutegrimas

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

230

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

de proa azul-cianuro Apoacutes os faticosos (10)

[]

Observemos a relaccedilatildeo de correspondecircncias entre a recriaccedilatildeo de Odorico e a

ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do grego

O texto de Odorico relativo agrave sequecircncia inicial do Canto XI eacute um exemplo

niacutetido de sua orientaccedilatildeo para a siacutentese as informaccedilotildees contidas nos oito primeiros

versos gregos satildeo trabalhadas pelo tradutor em apenas cinco O modo de composiccedilatildeo

evidencia pela radicalidade o teor paroacutedico da recriaccedilatildeo o objetivo parece mesmo ser

o de comunicar a informaccedilatildeo ldquoessencialrdquo agrave narrativa com a maior economia possiacutevel de

elementos Ao adotar por exemplo o particiacutepio para referir-se a uma accedilatildeo jaacute executada

ndash ldquodeitado o fresco lenhordquo ndash o tradutor vale-se de um recurso para dispensar a accedilatildeo

inicial descrita no poema homeacuterico meio para colocar o navio ao mar de modo

anaacutelogo utiliza a sequecircncia ldquodentro as hoacutestiasrdquo para comunicar que as ovelhas ou reses

231

(ldquohoacutestiardquo tem o significado de ldquoviacutetima expiatoacuteriardquo) foram levadas a bordo (incluindo

assim a denotaccedilatildeo da finalidade de uso das reses) Omitem-se a referecircncia agrave cor escura

do barco a qualificaccedilatildeo de ldquofavoraacutevelrdquo ao vento (informaccedilatildeo que se pode considerar

impliacutecita na seguinte ou seja de que o vento ldquoenfuna e soprardquo) o nome de Circe (que

apareceraacute no 17ordm verso) e parte de seus epiacutetetos (terriacutevel canora) Embora seja sempre

relativa a secundarizaccedilatildeo da importacircncia de sentidos atribuiacuteveis ao texto pode-se

considerar que tais informaccedilotildees natildeo sejam indispensaacuteveis ao plano de conteuacutedo do

poema Sobre a fatura poeacutetica a evidente e notaacutevel autonomia do conjunto com sua

coerecircncia condensante assentada sobre os decassiacutelabos e sua forte sonoridade como

seraacute referido adiante

Vejamos as correspondecircncias relativas agrave traduccedilatildeo de C A Nunes

Marcado por algum acreacutescimo associado agrave modulaccedilatildeo o texto de Nunes inclui

possiacuteveis composiccedilotildees semacircnticas de elementos decorrentes do sentido depreendido do

texto grego como ldquoentre suspiros magoadosrdquo referecircncia contiacutegua a ldquoaflitosrdquo A mesma

232

soluccedilatildeo diga-se encontra-se em sua traduccedilatildeo do final do Canto X no qual haacute verso

quase idecircntico no poema grego alterando-se apenas o verbo de sentido anaacutelogo

(baiacuteno210

no Canto XI eicircmi no canto X) do verso 572 desse canto mencione-se

tambeacutem Nunes colheraacute uma informaccedilatildeo que seraacute incluiacuteda na traduccedilatildeo do iniacutecio do

canto XI (vejam-se em seguida o referido trecho homeacuterico com a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo de

apenas dois versos em questatildeo)

A traduccedilatildeo de Nunes para os versos 570 e 572 eacute ldquoa derramar quentes laacutegrimas

entre suspiros magoadosrdquo e ldquotinha amarrado um carneiro e tambeacutem uma ovelha bem

negrardquo (2001 188) O tradutor segue a repeticcedilatildeo do verso em grego repetindo

igualmente o seu e utiliza a informaccedilatildeo das duas reses na composiccedilatildeo do verso 4 do

Canto XI ldquoe ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimosrdquo ndash a inclusatildeo da

palavra ldquoambasrdquo ndash que natildeo se apoacuteia no proacuteprio verso traduzido pois este traz em grego

o artigo e o substantivo no plural) permitiu aleacutem da referecircncia ao canto anterior211

a

perfeita acomodaccedilatildeo do hexacircmetro

Coerentemente a um projeto mais afeito agrave anaacutelise que agrave siacutentese a traduccedilatildeo natildeo

traz omissotildees

Segue-se o quadro de correspondecircncias referentes agrave traduccedilatildeo de H de Campos

210O Dicionaacuterio grego-portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc 2006-2010 5 volumes) traz para (baiacuteno) os

sentidos de ldquodar um passo andar colocar o peacute colocar-se ir descer subir colocar os peacutes para

avanccedilar ir embora partir morrer passar etcrdquo E para (eicircmi) ldquoir [] ir a dirigir-se a ir por

percorrer seguir o caminho percorrer etcrdquo 211 O tradutor supotildee serem as reses deixadas presas por Circe as uacutenicas a serem embarcadas cria-se uma

coerecircncia natildeo necessariamente presente no poema homeacuterico

233

______________________________________________________________________

Tambeacutem de maneira coerente com sua concepccedilatildeo de ldquocanto paralelordquo H de

Campos compotildee versos que envolvem o sentido geral ou ldquoessencialrdquo (para a narrativa)

do texto grego sem que se mostre pretensatildeo de correspondecircncia semacircntica direta Nesta

sequecircncia o ldquoconteuacutedordquo dos oito primeiros versos homeacutericos eacute trabalhado em dez

versos pelo tradutor natildeo havendo portanto correspondecircncia verso a verso ao longo do

fragmento do Canto XI traduzido por Campos no entanto ndash que vai ateacute o verso 137 ndash a

sequecircncia ajusta-se de modo a reinstalar a correspondecircncia

O primeiro verso introduz de outro modo a narraccedilatildeo com eficiecircncia anaacuteloga (em

vez de ldquodepois quandordquo usa-se ldquofoi assim querdquo) acresce-se a palavra ldquoaquosordquo a

ldquosacro marrdquo (als em grego ndash que aparece na forma do acusativo ala ndash designa o mar

assim como ldquoonda salgadardquo212

) um modo de distinguir da primeira referecircncia a mar

(thaacutelassa) cria-se uma imagem sugestiva ldquofazendo arborescer no barco escurordquo (a

212Dicionaacuterio grego-portuguecircs (2006-2010)

234

expressatildeo aleacutem do mais como veremos logo adiante teria funccedilatildeo sonora) O uso de

ldquocarneiros e ovelhasrdquo desmembra o sentido de ldquoovelhasrdquo ou ldquoresesrdquo em informaccedilatildeo

que diferentemente de C A Nunes natildeo supotildee os dois animais presenteados por Circe

como os uacutenicos a embarcarem ou natildeo considera o final do canto anterior ou natildeo se

baseia em suposta coerecircncia do texto grego o ldquofuncionamentordquo do conjunto de versos

sua elaboraccedilatildeo esteacutetica com base nas repeticcedilotildees focircnicas parece nortear as escolhas

como se prevecirc pela proposiccedilatildeo da ldquofidelidade agrave formardquo conceito integrante da teoria da

transcriaccedilatildeo A assinalar quanto agrave coerecircncia de procedimentos internos agrave traduccedilatildeo dos

fragmentos da Odisseia e de toda a Iliacuteada a criaccedilatildeo de adjetivos compostos por

simples justaposiccedilatildeo ldquocoraccedilotildees-cortadosrdquo ldquotodo-laacutegrimasrdquo ldquoazul-cianurordquo ldquoenfuna-

velasrdquo ldquobelas-tranccedilasrdquo ldquoclaravozrdquo

Antes de observarmos certos aspectos formais das traduccedilotildees vejamos algo dos

versos gregos Para tanto segue-se o fragmento acompanhado de sua transliteraccedilatildeo

lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν

Autagraver epeiacute rrsquo epigrave necirca katheacutelthomen edegrave thaacutelassan

νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν

necirca megraven ar pamproton eryacutesamen eis aacutela diacutean

ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ

em drsquo istograven titheacutemestha kaigrave istiacutea neigrave melaiacutene

ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ

em degrave ta mela laboacutentes ebeacutesamen an degrave kaigrave autoi

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες

baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes

ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο

hemin drsquoaucirc katoacutepisthe neograves kyanoproacuteroio

235

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon

Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα

Kiacuterke euploacutekamos deinegrave theograves audeacuteessa

Dada a alta concentraccedilatildeo de repeticcedilotildees (de fonemas de siacutelabas de palavras) o

fragmento apresenta particular densidade sonora no contexto sempre denso da eacutepica de

Homero Pode-se falar pelas sequecircncias aliterantes e reincidecircncias proacuteximas numa

aceleraccedilatildeo tensiva dos versos tensatildeo ligada ao momento aflitivo aceleraccedilatildeo ligada ao

movimento agrave accedilatildeo que se executa A leitura pode incluir a percepccedilatildeo de obstaacuteculos

reiterantes associados agrave marcaccedilatildeo dos passos da movimentaccedilatildeo Tatildeo abundante de

efeitos eacute o conjunto que me parece dispensaacutevel seu difiacutecil destaque Mas podemos

indicar como um verso de quase-cimo tensivo aquele referente agrave subida dos homens

aflitos tristes a bordo observe-se sua escansatildeo (evidenciando portanto o esquema do

hexacircmetro dactiacutelico213

)

(baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes)

βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες (5)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U U _ U

(Subimos aflitos abundantes laacutegrimas vertendo)

A alternacircncia padratildeo de longas e breves neste caso parece associar-se

perfeitamente agrave reincidecircncia dos sons e no plano semacircntico ao movimento referido no

verso mantendo-se a marcha a velocidade constante no conjunto de vogais

particularmente o repetido tal como se apresenta na sequecircncia pode colaborar na

sugestatildeo do aspecto sombrio depressivo da cena

O verso 7 no entanto apresenta outra configuraccedilatildeo ao dizer do vento favoraacutevel

213 Como jaacute se disse o hexacircmetro eacute composto por seis peacutes daacutectiacutelicos _UU (uma siacutelaba longa e duas

breves podendo as breves ser substituiacutedas por uma longa resultando num peacute espondaico)

236

(iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon)

ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον

_ U U _ U U_ _ _ UU _ U U _ U

(favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro)

Apesar de aparecerem as aliteraccedilotildees de oclusivas agrave semelhanccedila do anterior

surge a repeticcedilatildeo do fonema s que ameniza a sonoridade da frase e potencialmente

sugere iconicamente a passagem do vento o ritmo desacelera estende-se pela

sucessatildeo de siacutelabas longas entre o terceiro e o quarto peacutes transformando-se tambeacutem

num iacutecone de mudanccedila aliada agrave suavizaccedilatildeo variaccedilatildeo de tom de ritmo associada agrave

alteraccedilatildeo de perspectiva no relato

Abordemos sinteticamente a dimensatildeo formal das traduccedilotildees apresentadas

Em Odorico satildeo perceptiacuteveis relaccedilotildees entre som e sentido observemos como se

apresentam nos versos relacionados aos dois versos homeacutericos receacutem-destacados

Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos

Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa

O movimento do verso heroacuteico com tocircnica na terceira e sexta siacutelabas instaura

um ritmo ternaacuterio ascendente inicial a ser complementado pela ceacutelula quaternaacuteria

subsequente214

compondo uma sequecircncia adequada ao que se diz com a posiccedilatildeo das

tocircnicas a reforccedilar o significado de cada palavra

Em tris tiacutes si mas laacute gri mas par ti mos

214Pela tendecircncia paroxiacutetona e dos padrotildees riacutetmicos de nossa liacutengua ndash binaacuterio e ternaacuterio ndash um verso

acentuado na terceira sexta e deacutecima siacutelabas como eacute o caso pode) encaminha-se agrave subdivisatildeo binaacuteria agrave

maneira do martelo agalopado forccedilando-se uma tocircnica

237

As repeticcedilotildees das consoantes oclusivas e particularmente dos encontros

consonantais tr e gr marcam o passo e a dificuldade compatiacutevel com a situaccedilatildeo

aflitiva O verso seguinte (diferentemente do grego em que o ritmo parece desacelerar)

tambeacutem heroacuteico traz o padratildeo mais veloz do pentacircmetro jacircmbico ou seja composto de

uma sucessatildeo de cinco unidades binaacuterias ascendentes como que a reiterar o impulso do

vento

Bom soacute cio en fu na e so pra o ven to em po pa

A tecitura sonora reforccedila a accedilatildeo associando agrave sequecircncia a sucessatildeo aliterante de

fricativas tambeacutem a sugerir como primeiridades (hipoiacutecones sonoros) o efeito da

passagem do vento que amaina o ldquoclimardquo funesto movimento constante reiterativo da

accedilatildeo e sopro uma conjunccedilatildeo entre ritmo sonoridade e sentido que traz unidade ao

verso e consistecircncia ao conjunto

A traduccedilatildeo de C A Nunes por sua vez se natildeo pode valer-se de variaccedilotildees do

ritmo pelo padratildeo fixo utilizado pode dar a ilusatildeo de mudanccedila como no verso

e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos

Embora em padratildeo ternaacuterio descendente (dactiacutelico) o verso ndash pela cesura na

deacutecima siacutelaba coincidente com a final da oraccedilatildeo ou seja com a pausa sintaacutetica

marcada pelo ponto-e-viacutergula ndash parece inverter o sentido para o padratildeo ascendente ao

mesmo tempo em que eacute dito ldquoem seguida subimosrdquo accedilatildeo que ganha paulatinidade com

a repeticcedilatildeo uniforme Um momento feliz no processo composicional de Nunes que

mostra uma certa (ainda que diminuta) relatividade na fixidez do padratildeo Vejam-se

ainda os versos

a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados

[] mandou-nos

Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade

Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha

238

No primeiro ainda que se possa ter a sensaccedilatildeo de ldquolassidatildeordquo do verso como

frequentemente ocorre nos versos analiacuteticos e alongados do tradutor ndash a impressatildeo de

arrastar-se extensivamente com perda de forccedila e diluiccedilatildeo de efeitos ndash as repeticcedilotildees

colaboram para uma unidade em que se entrevecircem relaccedilotildees som-sentido a reiteraccedilatildeo do

fonema m da siacutelaba ldquomardquo repetida sugere murmuacuterio lamento os s sucessivos

reverberam a ideia de suspiro na palavra ldquomagoadosrdquo insinua-se a figura sonora da

ldquoaacuteguardquo (fazendo lembrar a proposiccedilatildeo de Jakobson quanto agrave sugestatildeo de proximidade

semacircntica a partir da semelhanccedila sonora) que por sua vez liga-se conceitualmente a

ldquolaacutegrimasrdquo O verso seguinte eacute feliz na distribuiccedilatildeo das tocircnicas entre vogais diferentes

que se sucedem (ẽ i eacute u ẽ atilde) marcando-se a repeticcedilatildeo do ẽ na palavra

referente a ldquoventordquo e traccedilando-se assim uma relaccedilatildeo sonora entre o iniacutecio e o fim do

verso No uacuteltimo podem-se reconhecer as aliteraccedilotildees nas fricativas v s e f que

como os demais casos convertem-se em iacutecones sugestivos do sopro do vento

Examinemos sob os aspectos da informaccedilatildeo esteacutetica alguns elementos da

traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Procurarei isolar alguns efeitos marcantes dos versos

O primeiro verso traz a tocircnica da palavra ldquobaixamosrdquo na sexta siacutelaba do

dodecassiacutelabo ou seja da cesura acentuando-se com o componente riacutetmico a accedilatildeo

principal enunciada Desde o iniacutecio pode-se perceber o criteacuterio de engendramento de

repeticcedilotildees de correspondecircncias internas ao texto entre o primeiro e o segundo a

paronomaacutesia mirando ndash mar em seguida outras semelhanccedilas entre palavras ou

segmentos sacro ndash sal arbo ndash barco ndash barca ndash bor car ndash cor ndash cor etc Pode-se assim

supor a tentativa de re-produccedilatildeo de uma densidade sonora anaacuteloga aos versos gregos A

sequecircncia ldquofazendo arborescer no barco escurordquo encontra proximidade na

concentraccedilatildeo com certas sucessotildees no texto homeacuterico provaacutevel razatildeo da escolha que

embora distante ldquoda letrardquo sugere fonicamente um reiniacutecio um tempo feacutertil a iniciar-se

a crescer no momento ateacute entatildeo sombrio definido pelo ldquobarco escurordquo ligado pelo

som a ldquoarborescerrdquo Nos versos

Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo

soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa

claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau

239

de proa azul-cianuro [Apoacutes os faticosos] (10)

eacute apreensiacutevel de imediato a sucessatildeo de fricativas (de novo iacutecones do vento) que

participam da ressonacircncia vocal de Circe (poderosa claravoz) e do efeito escurecedor

da expressatildeo ldquoazul-cianurordquo com sua duplicaccedilatildeo de u Mais uma vez eacute dedutiacutevel em

Campos a priorizaccedilatildeo da teia sonora como meio de composiccedilatildeo do sentido geral do

conjunto de versos

240

Capiacutetulo IV

A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio

o hexacircmetro em portuguecircs

O propoacutesito central deste capiacutetulo seraacute apresentar uma proposta de possiacutevel

opccedilatildeo riacutetmico-meacutetrica a se adotar em uma recriaccedilatildeo da eacutepica homeacuterica e por extensatildeo

da eacutepica greco-latina

Baseia-se primeiramente na ideia oacutebvia de que sempre os versos em portuguecircs

apresentaratildeo medidas sejam regulares ou natildeo assim como conteratildeo siacutelabas tocircnicas

quer haja ou natildeo algum propoacutesito em sua existecircncia e no modo pelo qual satildeo

distribuiacutedas nos versos Natildeo penso na necessidade de correspondecircncia exata com o

hexacircmetro dactiacutelico porque creio natildeo se justificar ndash pelo fato de que a traduccedilatildeo seraacute

sempre recriaccedilatildeo com outros elementos e em outro contexto ndash a predefiniccedilatildeo da

equivalecircncia ldquoabsolutardquo (seja no plano de conteuacutedo ou no caso no plano de expressatildeo)

em relaccedilatildeo aos poemas traduzidos A autonomia do texto recriado ainda que relativa

envolveraacute inevitavelmente suas proacuteprias regras internas que natildeo seratildeo as mesmas do

original ainda que se tenha tal propoacutesito

Satildeo diversas as possibilidades como se pocircde constatar neste trabalho de

adaptaccedilatildeo meacutetrica e prosoacutedica da eacutepica ao portuguecircs variando da transposiccedilatildeo

adaptativa de C A Nunes ao decassiacutelabo de O Mendes A escolha do dodecassiacutelabo

por H de Campos eacute muito bem sucedida do ponto de vista formal por manter-se dentro

do paracircmetro da poesia tradicional de liacutengua portuguesa (sem portanto aproximar-se de

uma extensatildeo que sugere ilimitaccedilatildeo como a da prosa) e por apresentar variaccedilatildeo

prosoacutedica associada agrave quase fixa presenccedila da cesura emulando de certa forma a

regularidade e a mutabilidade do verso grego Eacute bastante eficiente tambeacutem a soluccedilatildeo

de A Malta Campos tambeacutem por associar ainda mais nitidamente a regularidade e a

mutabilidade aleacutem de fazer corresponder ao verso grego subunidades de metro popular

em portuguecircs estabelecendo a relaccedilatildeo em niacutevel tambeacutem extratextual com a funccedilatildeo do

poema eacutepico se considerada sua contextualizaccedilatildeo de origem Uma possibilidade a ser

testada eacute a do verso hendecassiacutelabo por sua dinacircmica normalmente formada por uma

ceacutelula binaacuteria seguida de trecircs ternaacuterias de perfil dinacircmico e marcado ao mesmo tempo

a pesar contra essa medida a restriccedilatildeo de seu tamanho (com uma siacutelaba apenas a mais

241

do que o metro escolhido por Mendes uma das razotildees para sua praacutetica de contorccedilotildees

sintaacuteticas) e portanto de ldquoespaccedilo de manobrardquo do tradutor a menos que se aumente a

quantidade de versos

Por necessidade de escolha entre outras possiacuteveis parece-me interessante e

adequada a opccedilatildeo que exporei adiante Ela seraacute baseada antes no elemento mais

caracterizador do ritmo as tocircnicas do que na medida do verso Isto para valorizar-se

exatamente o aspecto riacutetmico e tambeacutem meloacutedico do verso (compartilhando desse

modo da ldquoessencialidaderdquo do verso grego) uma vez que pelo teor narrativo a medida

tende a dissociar-se das unidades de sentido que se completam amiuacutede nos versos em

sequecircncia

Embora o verso grego fundamente-se na distribuiccedilatildeo de siacutelabas longas e breves

e tenhamos em portuguecircs de considerar a tonicidade das siacutelabas podem-se entender

com certa liberdade os procedimentos como anaacutelogos215

Mesmo porque ainda que os

criteacuterios sejam de natureza diversa (uma quantitativa216

outra qualitativa) haacute

possibilidade de entrever-se a duraccedilatildeo diferenciada entre as siacutelabas tocircnicas e aacutetonas

como queriam Olavo Bilac e Guimaratildees Passos em seu Tratado de versificaccedilatildeo (1910)

que chegam a utilizar a terminologia ldquolongardquo e ldquobreverdquo para se referirem agraves siacutelabas do

verso em portuguecircs Diz o texto

O acento predominante ou a pausa numa palavra eacute aquela siacutelaba em que parecemos

insistir assinalando-a []

O som mais ou menos aberto da vogal natildeo influi sobre o acento a demora eacute na

pronunciaccedilatildeo o que o caracteriza []

A siacutelaba longa eacute que daacute agrave palavra o nome de aguda grave ou exdruacutexula []

Bilac e Passos assim como outros teoacutericos da versificaccedilatildeo encontram apoio na

liccedilatildeo de Antoacutenio Feliciano de Castilho (1800-1875) que em seu Tratado de

Metrificaccedilatildeo (1851) reconhecia siacutelabas longas e breves nas palavras

215Verdade eacute que os versos greco-latinos tambeacutem encerram acentos como eacute inevitaacutevel essa natildeo era

entretanto ndash conforme se considera ndash a base para a composiccedilatildeo riacutetmica 216 Ou seja relativa agrave duraccedilatildeo das siacutelabas (a longa dura duas vezes a breve) Os diferentes arranjos entre

os dois tipos de siacutelabas compunham alguns tipos baacutesicos de peacutes usados na poesia greco-latina Os

principais (aqui anotados a partir dos siacutembolos da braquia U relativo agrave siacutelaba breve e o maacutecron _

relativo agrave siacutelaba longa) satildeo o jambo ou iambo (U_) o troquseu (_U) o espondeu (_ _) o daacutectilo (_UU)

o anapesto (UU_) e o peocircnio (_UUU UUU_)

242

Acento predominante ou pausa num vocaacutebulo se chama aquela siacutelaba em que

parecemos insistir ou deter-nos mais v g em louvo a primeira em louvado a

segunda [etc]

Toda a palavra tem necessariamente uma pausa nem mais nem menos []

Levantamos tem a terceira siacutelaba longa seguindo-se-lhe por consequecircncia uma soacute

breve se juntando-lhe o complemento mdash nos mdash disserdes levantamo-nos sentireis

depois daquela siacutelaba longa natildeo jaacute uma soacute breve mas duas breves []217

Reforccedilam a ideia de duraccedilatildeo das siacutelabas os modos de abordagem do verso com

base na notaccedilatildeo musical conforme proposta de Geoffrey N Leech218

de M Cavalcanti

Proenccedila219

(que por sua vez menciona Spinelli e Echarri) e de Paulo Henriques Britto

em comum a esses autores a indicaccedilatildeo por meio de siacutembolos musicais convencionais

da ldquoduraccedilatildeo relativa das siacutelabas e [d]as pausas e [d]as separaccedilotildees entre compassosrdquo220

Veja-se como exemplo uma notaccedilatildeo apresentada por Leech (1969 108)

E tambeacutem a notaccedilatildeo por Cavalcanti Proenccedila de versos do ldquoHino ao sonordquo de

Castro Alves

217CASTILHO A F de Op cit pp 14-15

218 Leech G A linguistic guide to English Poetry London Longman 1969 219 Proenccedila M Cavalcanti Ritmo e poesia Rio de Janeiro Organizaccedilatildeo Simotildees 1955 220 BRITTO P H ldquoO conceito do contraponto meacutetrico em versificaccedilatildeordquo p 6

243

Antes de prosseguirmos com uma sugestatildeo de uso meacutetrico para a eacutepica ndash que

ademais seraacute mais uma alternativa entre as existentes ndash vejamos referecircncias agraves diversas

possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro em liacutenguas modernas Jaacute mencionamos a

adaptaccedilatildeo realizada nas liacutenguas anglo-saxocircnicas (inglecircs e alematildeo) que fazem

corresponder as siacutelabas tocircnicas do verso agraves siacutelabas longas das composiccedilotildees gregas e

latinas e as aacutetonas agraves siacutelabas breves221

Seguem-se alguns exemplos colhidos de

Kayser (1976)222

relativos (na ordem) a jambos troqueus daacutectilos e anapestos

221 O mesmo sistema foi usado como vimos por C A Nunes mas haacute antecedentes do procedimento nas

liacutenguas latinas como veremos adiante 222 Op cit pp 84-85

244

Sobre a conversatildeo do metro a liacutenguas neolatinas ndash que devo abordar para

fundamentaccedilatildeo do que seraacute proposto por fim ndash recorrerei a um esclarecedor artigo

publicado na revista espanhola Estudios clasicos (1971)223

de autoria de Francisco

Pejenaute que traz um panorama dos modos com que se adapta ou se adaptou o

hexacircmetro ao espanhol terei como uma das principais fontes tambeacutem comentaacuterio de

Castilho sobre o hexacircmetro portuguecircs

Pejenaute categoriza modos de adaptaccedilatildeo do metro identificando quatro

sistemas diversos de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

a) adaptacioacuten ldquoa la grecolatinardquo la de aquellos que despueacutes de admitir que la

cantidad puede ser tambieacuten en espantildeol elemento esencial em el verso y constitutivo

de ritmo y tras formular las leyes por las que se rige la cantidad en espantildeol han

intentado demostrar praacutecticamente su teoriacutea con alguacuten ejemplo b) sistema que

nosotros denominamos de yuxtaposicioacuten y que parte del deseo de imitar los

acentos del verso latino leiacutedo a la espantildeola [] los adaptadores por yuxtaposicioacuten

se han dado cuenta de que los acentos del hexaacutemetro latino [] formaban las maacutes

de las veces esquemas acentuales que divididos en dos hemistiquios teniacutean

parangoacuten acentual con determinados versos castellanos [] su sistema ha

desembocado finalmente em yuxtaponer dos versos castellanos dotando al segundo

de claacuteusula acentual hexameacutetrica c) sistema denominado legere por

L Alonso Schokel y ldquoriacutetmico-acentual intensivordquo por Huidobro [] simple

imitacioacuten de los acentos del verso claacutesico de modo que en el hexaacutemetro [] no

aparecen fijos maacutes que los dos uacuteltimos acentos mientras que los otros (dos tres o

cuatro) se distribuyen en el resto del verso caprichosamente [] d) sistema ldquopor

223 PEJENAUOTE F ldquoLa adaptacioacuten de los metros clasicos em castellanordquo In Estudios clasicos no 63

Madri 1971

245

ictusrdquo que Huidobro denomina ldquopor arsis y tesisrdquo y Schoumlkel scandere y que

intenta reconstruir el ritmo del hexacircmetro claacutesico tratando de reproducir [] los

ictus o tiempos marcados Aquiacute habraacute que hacer tres divisiones hexaacutemetro

dactiacutelico puro hexaacutemetro anacruacutestico y hexaacutemetro con sustituciones

A classificaccedilatildeo revela o quadro complexo de possibilidades adaptativas do

hexacircmetro conforme os referenciais que se adotam para a definiccedilatildeo do procedimento

fundamental relativo agrave composiccedilatildeo do ritmo do poema Mais uma vez instala-se a

multiplicidade de sistemas decorrentes de uma pluralidade de visotildees que buscam

coerecircncia do produto com seus propoacutesitos Nenhum dos sistemas como se sabe e se

veraacute poderaacute almejar a equivalecircncia ou a correspondecircncia completa entre os metros pela

ldquonaturezardquo diversa dos sistemas associados agraves diferentes liacutenguas por esta via de

constataccedilatildeo pode-se concluir da necessidade de soluccedilatildeo intriacutenseca agrave traduccedilatildeo que

busque diferentes niacuteveis de analogia com os esquemas proacuteprios dos modelos traduzidos

e natildeo o paradigma da correspondecircncia ldquofielrdquo a tais modelos Voltando agraves categorias

distinguidas por Pejenaute segue alguma explicitaccedilatildeo e alguma exemplificaccedilatildeo

(necessaacuteria para o que discutiremos)

a) Adaptacioacuten a la greco-latina

[] no hay maacutes ejemplo claro queel hexaacutemetro cuantitativo de D Sinibaldo de

Mas [] [Eacutel] defiende no soacutelo que existenlargas y breves en castellano sino que

esa cantidad [] es o puede ser [] um elemento constitutivo de ritmo []

Siguieacutendo [reglas de la cantidad en castellano] nos ofrece ldquohexaacutemetrosrdquo

cuantitativos como los siguientes

A tentativa eacute portanto de fazer valer a diferenccedila de duraccedilatildeo entre siacutelabas do

espanhol o comentaacuterio do ensaiacutesta aponta o que natildeo eacute difiacutecil antever ndash a natildeo-

246

funcionalidade do sistema diante de um padratildeo instalado de leitura com base em

tocircnicas

Si alguacuten ritmo tienen versos de este tipo proviene delos acentos que al final

aparecen seguacuten la foacutermula de laclaacuteusula hexameacutetrica []

Aqui uma questatildeo fundamental a assinalar a permanecircncia da ldquoclaacuteusulardquo224

seraacute

comum aos diversos sistemas o padratildeo de constacircncia ndash definido pela distribuiccedilatildeo de

tocircnicas proacutepria do sistema qualitativo portanto ndash conviveraacute em geral com variaccedilotildees

diversas de esquema acentual (mesmo que o criteacuterio natildeo seja o acento) No caso receacutem-

visto eacute apontado o papel determinante das siacutelabas tocircnicas (e natildeo das ldquolongasrdquo e

ldquobrevesrdquo) para a configuraccedilatildeo do ritmo Seguem-se informaccedilotildees referentes agrave categoria

seguinte

b) Adaptacioacuten por yuxtaposicioacuten

Para [Juan Gualberto Gonzaacutelez] en el exaacutemetro latino se encierran [] todas

nuestras combinaciones meacutetricas [] Toda su teoriacutea de la adaptacioacuten de los metros

claacutesicos tiene sus raiacuteces en este principio [] todo hexaacutemetro latino puede

descomponerse en alguacuten verso castellano maacutes algo (praacutecticamente en dos versos

castellanos) []

Los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola resultan ser una yuxtaposicioacuten de dos

versos ya conocidos del castellano []

Para adaptar en castellano el hexaacutemetro latino no hay maacutes que yuxtaponer dos

versos castellanos []

Incluem-se em seguida como exemplo versos do tradutor mencionado (nos quais

assinalo as siacutelabas tocircnicas finais para evidenciar a presenccedila do ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo)

El pastor Coridoacuten al bello Alexis amaba

delicias de su duentildeo mas esperar no teniacutea

En la espesura solo de unas altiacutesimas hayas

andaba de continuo dando a los montes y selvas

224 A sequecircncia _UU _U no final do verso (um peacute daacutectilo e outro interrompido) como jaacute se viu eacute

caracteriacutestica do metro utilizado nos poemas eacutepicos o denominado ldquohexacircmetro dactiacutelico cataleacutecticordquo (ou

seja ao qual suprimiu-se uma siacutelaba em seu final) Chamarei de ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo a sequecircncia (a

que Pejenaute chama ldquoclaacuteusula hexameacutetricardquo)

247

Sobre o terceiro e o quarto tipos de adaptaccedilatildeo diz o autor

c) Adaptacioacuten por el sistema ldquolegererdquo

[] se trata de [mediante este sistema] reproducir acuacutesticamente la sensacioacuten que

producen en nosotros los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola un ritmo

indefinido vago impreciso en la mayor parte del verso que se canaliza y encauza

al llegar al final mediante la dipodia dactiacutelico-espondaica claacuteusula del hexaacutemetro

claacutesico donde la mayor parte de las veces el acento veniacutea a caer en tiempo

marcado

d) Adaptacioacuten por el sistema ldquoscandererdquo

Intenta reproducir mediante el acento los ictus o tiempos marcados del hexaacutemetro

claacutesico [] Tenemos [las variantes] []

1Hexaacutemetro dacti l i co puro que seriacutea [] la imitacioacuten mediante el acento

del hexaacutemetro ldquoholodaacutectilordquo esto es un verso de 17 siacutelabas225

con acento riacutetmico

en las siacutelabas 1ordf 4ordf 7ordf10ordf 13ordf y 16ordf o lo que es lo mismo una serie formada por

cinco grupos prosoacutedicos ternarios seguidos de uno binario todos ellos acentuados

en la primera siacutelaba

Como se pode notar o verso utilizado por Carlos Alberto Nunes em portuguecircs

corresponde a este modelo a equiparaccedilatildeo exata do sistema qualitativo com o

quantitativo tambeacutem a ele corresponde o sistema usado na tradicional metrificaccedilatildeo

inglesa e alematilde Segue-se um exemplo de verso da Iliacuteada em espanhol de Pedro-Luis

Heller

Esta pues fue hacia eacutel y la criada seguia sus pasos

sobre su seno llevando al caacutendido tierno infante

hijo querido de Heacutector igual a un astro hermoso

al que su padre llamaba Escamandrio en cambio los otros

laquoRey-de-ciudadraquo porque soacutelo aqueacutel amparaba a Troya

225 Observe-se que o sistema meacutetrico espanhol adota o padratildeo do verso grave (paroxiacutetono) para contagem

isto eacute considera uma siacutelaba aleacutem da uacuteltima tocircnica para estabelecer o nuacutemero de siacutelabas do verso (o

sistema que era praticado no portuguecircs antes da proposiccedilatildeo por Castilho do padratildeo do verso agudo ndash

oxiacutetono ndash prevecirc a natildeo contagem da uacuteltima siacutelada de uma palavra esdruacutexula no fim do verso e o acreacutescimo

de uma no caso de o verso terminar com palavra oxiacutetona) Assim as 17 siacutelabas mencionadas equivalem a

16 siacutelabas na contagem praticada em liacutengua portuguesa

248

2 Hexaacutemet ro dactiacute l i co anacruacutestico Aquiacute los grupos prosoacutedicos ternarios no

son cinco sino cuatro seguidos tambieacuten por uno binario todos igualmente com

acento en la primera siacutelaba y al frente de dichos grupos abriendo verso una o dos

siacutelabas en anacrusis226

que forman una especie de pie volado imprescindible para

totalizar los seis pies de los que necesariamente se compone esteverso

El adaptador maacutes consciente y maacutes convincente decuantos han seguido este

sistema es sin lugar a dudas D Joseacute Manuel Paboacuten y Suaacuterez de Urbina

A respeito da traduccedilatildeo de Paboacuten diz o apresentador de ediccedilatildeo de cantos da

Odisseia227

En vez de largas y breves una siacutelaba toacutenica seguida de dos aacutetonas en vez

de seis pies solamente cinco evitando asiacute la monoacutetona divisioacuten en

hemistiquios de tres pies [] Este ritmo resulta es cierto producto de uma

caprichosa convencioacuten pero es la maacutes perfecta imitacioacuten del hexacircmetro que

puede darse en nuestra lengua iquestQue a la larga resulta monoacutetono

Naturalmente Pero iquestno ocurre lo mismo con todos los metros y ritmos

[] los ensayos previos admitiacutean lo que el autor llama una anacrusis al

principio es decir los inicios de versos podiacutean ofrecer bien una o bien dos

siacutelabas aacutetonas [] e nesta versioacuten que ahora ofrecemos [] ha sido

eliminado este tipo de versos con una sola aacutetona para que no surja un

encabalgamiento con el cual la recitacioacuten se hariacutea maacutes monoacutetona y confusa

al empalmar unos versos con otros Se trata en general [] de pequentildeos

recursos para compensar la inevitable tendencia a la monotoniacutea que corre el

riesgo de producir la rigidez del sistema frentea la libertad del original con

sus daacutectilos y espondeos

O tradutor utiliza portanto a anacruse para instalar um componente de

variabilidade ao verso Conheccedilam-se algumas linhas de sua Odisseia marco as

anacruses e os hexacircmetros dos primeiros versos

226Anacruse ldquosiacutelaba (ou siacutelabas) inicial de um verso anteposta agrave aacutersis que natildeo eacute levada em conta para

que se tenha convencionalmente o mesmo nuacutemero de peacutes dos demais versosrdquo ndash Houaiss 227HOMERO Cuatro cantos de la ldquoOdiseardquo (IX XIII XIV XXII) Trad de Joseacute Manuel Paboacuten Com

introd de M F G Suplementos de Estudios Claacutesicos no 7 Madri 1969

249

Canto IX

Contestando a su vez dijo Ulises el rico en ingenios

Prez y honor de tus hombres Alciacutenoo sentildeor poderoso

halaguumlentildeo es sin duda escuchar a un cantor como eacuteste

semejante en su voz a los dioses Yo pienso de cierto

que el extremo de toda ventura se da soacutelo cuando

la alegriacutea se extiende en las gentes y estaacuten los que comen

Veja-se o tipo seguinte

3 Hexaacutemet ro dactiacute l i co con susti tuciones Al igual que en el hexaacutemetro

claacutesico los grupos silaacutebicos no van fijos maacutes que en 5ordf y en 6ordf posicioacuten

pudieacutendose dar alternancia de ternarios y binarios en loscuatro primeros pies De

cuantos sistemas se han seguido eacuteste nos parece el maacutes acertado y el que mejor se

amolda al modelo claacutesico El nuacutemero de siacutelabas oscila entre 13 y 17 los acentos

van formando grupos riacutetmicos de tres o de dos siacutelabas y terminan con la claacuteusula

hexameacutetrica

Como exemplo versos do colombiano Joseacute Eusebio Caro nos quais assinalo as

tocircnicas

Ceacutefiro rdpido laacutenzate Raacutepido empuacutejame y vivo

Maacutes redondas mis velas pon del proscrito a los lados

haz que tus silbos susurren dulces y dulces suspiren

[]

Na liacutengua portuguesa diversos tradutores praticaram a adaptaccedilatildeo do hexacircmetro

greco-latino Tem-se notiacutecia do ldquohexacircmetro portuguecircsrdquo por meio do escritor Antoacutenio

Feliciano de Castilho (1800-1875) no seu jaacute mencionado Tratado de metrificaccedilatildeo

portuguesa (1851) Nessa e em trecircs ediccedilotildees seguintes do livro assim expressa Castilho

sua opiniatildeo acerca do tema

250

[] A tentativa natildeo jaacute moderna mas em que tanto insistiu modernamente o nosso

aliaacutes bom engenho Vicente Pedro Nolasco de fazer versos portugueses

hexacircmetros e pentacircmetros eacute uma quimera sem o miacutenimo vislumbre de

possibilidade Carecendo de quantidades condiccedilatildeo indispensaacutevel para os onze peacutes

do diacutestico o portuguecircs nada mais pode que arremedaacute-lo [] insistir em tatildeo

evidente mateacuteria [] fora malbaratar o tempo que as satildes doutrinas estatildeo pedindo

No entanto em texto posteriormente escrito ndash destacado mencione-se pela

ensaiacutesta portuguesa Maria Leonor C Buescu em livro seu228

ndash o autor emenda outro

comentaacuterio reconsiderando seu pensamento sobre o assunto229

a complementaccedilatildeo eacute

publicada na ediccedilatildeo de 1874230

do Tratado constando a data de 1871 como aquela em

que o trecho foi escrito

Entretanto agora quatro anos depois da quarta ediccedilatildeo refletindo novamente

na mateacuteria confessamos que a exclusatildeo absoluta que faziacuteamos da metrifiacutecaccedilatildeo

latina para o portuguecircs jaacute nos natildeo parece tatildeo bem fundada Subsiste sim a objeccedilatildeo

de natildeo haver em nossa liacutengua as quantidades como havia no latim mas a essa

pode-se responder que os entendedores desse belo idioma dado o natildeo saibam

pronunciar nem por consequecircncia lhe possam conhecer as longas e as breves natildeo

deixam contudo de reconhecer a harmonia dos versos de Virgiacutelio ou de Oviacutedio

tanto assim que na leitura embora raacutepida estremam logo como quer que seja um

metro que por ventura escapasse mal medido Esta soacute ponderaccedilatildeo jaacute persuade que

o nosso ouvido que assim aprecia esses metros pronunciados sem a respectiva

prosoacutedia antiga e agrave portuguesa bem pode por analogia achar muacutesica aceitaacutevel nos

que em portuguecircs se lhes assemelharem

228 O referido texto estaacute incluiacutedo quase na iacutentegra ndash com o tiacutetulo ldquoMuacutesica aceitaacutevelrdquo ndash na seccedilatildeo

ldquoDocumentaacuterio antoloacutegicordquo do volume Buescu Maria Leonor Carvalhatildeo Aspectos da heranccedila claacutessica

na cultura portuguesa Biblioteca Breve Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1979 229 Sugeriu-me uma vereda de pesquisa relativa ao tema um alerta para a mudanccedila de opiniatildeo de Castilho

feita durante palestra por Joatildeo Acircngelo de Oliva Neto que desenvolve pesquisa na aacuterea 230 O trecho acrescentado consta de ediccedilatildeo revista e aumentada do Tratado

Castilho A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Seguido de consideraccedilotildees sobre a declamaccedilatildeo e

a poeacutetica 4ordf ediccedilatildeo revista e aumentada Lisboa Livraria Moreacute-Editora 1874 No entanto nesse fragmento cuja escrita eacute datada de 1871 Castilho refere-se a terem se passado quatro

anos desde a quarta ediccedilatildeo o que mostra tratar-se de ediccedilatildeo nova ainda que permanecesse como

ldquoquartardquo

Trechos do volume em questatildeo em formato ldquoPDFrdquo estatildeo disponiacuteveis mediante consulta por palavras na

internet o texto integral do livro encontra-se acessiacutevel por meio de coacutepia digital (ldquofull textrdquo em formato

ldquotxtrdquo) as ediccedilotildees anteriores da obra tambeacutem podem ser lidas na iacutentegra

251

Uma vantagem grande e grandiacutessima poderia ter esta introduccedilatildeo se por uma parte

os hexacircmetros e pentacircmetros natildeo fossem feitos senatildeo por quem andasse bem

enfrascado na liacutengua do Laacutecio e possuiacutesse assaz de engenho para os imitar com

felicidade e por outra parte os leitores natildeo tivessem negaccedilatildeo ou completa falta de

conhecimentos para os apreciarem a vantagem repetimo-lo seria o muito maior

acircmbito que assim adquiriria a emissatildeo do pensamento poeacutetico O alexandrino tatildeo

guerreado jaacute afinal pegou e estaacute generalisadiacutessimo e por quecirc natildeo tanto pela sua

muita muacutesica como pela sua extensatildeo logo a mediccedilatildeo latina por inda mais

extensa muito melhor se acomodaria agrave ambiccedilatildeo de espaccedilo em que os poetas tantas

vezes laboram

Outra consideraccedilatildeo natildeo despicienda ao mesmo tempo que todos os nossos outros

metros satildeo obrigados a nuacutemero invariaacutevel de siacutelabas estes novos pela liberdade de

entremear ad libitum arremedos de daacutetilos e espondeus satildeo susceptiacuteveis de muito

maior focirclego O hexacircmetro pode constar de treze quatorze quinze dezesseis ou

dezessete siacutelabas isto eacute quatro siacutelabas mais que o opulento alexandrino e o

pentacircmetro de doze ateacute treze ou quatorze siacutelabas Mas deixando explicaccedilotildees

teoacutericas vejamos um fragmento de uma tentativa feita por poeta devidamente

versado no latim

Hexacircmetro

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrazada no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entreas sombras da tarde

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

ampc ampc ampc

252

Observemos os hexacircmetros (de autoria de Juacutelio de Castilho filho do autor)

citados como exemplo Primeiramente seraacute feita uma possiacutevel notaccedilatildeo dos peacutes daacutectilos

com base na ideia do sistema agrave maneira greco-latina (ldquoadaptacioacuten a la greco-latinardquo na

classificaccedilatildeo de Pejenaute) considerando a menccedilatildeo de Castilho a ldquodaacutectilos e

espondeusrdquo pode-se entender a variaccedilatildeo dos peacutes nos versos agrave possibilidade de

atribuiccedilatildeo do valor de ldquolongardquo ou ldquobreverdquo agraves siacutelabas o que implicaria a ocorrecircncia

potencial da sucessatildeo de duas longas Veja-se como ficariam os versos escandidos

conforme uma hipoacutetese baseada na configuraccedilatildeo dos peacutes pelo aspecto quantitativo

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

_ U U _ U U _ _ _ U U _ UU_ U

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U U_ U

Eneias brilha soacute triste Dido o teu mundo era Eneias

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

E Eneias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U U _ U

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

_ U U _ _ _ U U _ U U _ UU_ U

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

_ _ _ U U _ U U_ U U_ U U _ U

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

_ U U _ _ _ U U _ U U_ U U _ U

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

_ _ _ U U _ U U_ U U _ U U _ U

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

_ UU _ _ _ U U _ U U _ U U_ U

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exhala as profundas saudades em que arde

_ _ _ U U_ U U _ U U _ U U _ U

253

Todos os versos seriam assim hexacircmetros (isto eacute com seis peacutes daacutectilos cada)

um padratildeo adaptativo fundado no uso das siacutelabas do portuguecircs de modo anaacutelogo agraves

siacutelabas do grego ou do latim atribuindo-lhes portanto diferentes duraccedilotildees (longa

breve) independentemente de sua tonicidade No entanto considerando a leitura

tradicional e habitual dos versos das liacutenguas modernas baseada nos acentos (e no

nuacutemero de siacutelabas) realizemos uma escansatildeo ldquoconvencionalrdquo dos mesmos versos231

Antes poreacutem faccedila-se a ressalva de que haveraacute certamente diferentes possibilidades de

leitura interpretativa das configuraccedilotildees meacutetricas232

opto por aquela que me parece mais

efetiva na configuraccedilatildeo riacutetmica em portuguecircs e atende aos propoacutesitos deste estudo a

busca de um possiacutevel padratildeo adaptativo (ou seja anaacutelogo) para o hexacircmetro Tais

versos todos com 15 siacutelabas podem ser entendidos como formados por justaposiccedilatildeo de

dois hemistiacutequios um de seis siacutelabas233

e outro de nove contudo desde a pausa da sexta

siacutelada faz-se uma sequecircncia de trecircs daacutectilos234

e um uacuteltimo falto de uma siacutelaba

(incluindo-se no final portanto o ldquomoacutedulo dactiacutelicordquo _UU_U)

A bru ma do alto marsome ao longe o Real foragido

Chora-o de peacute na torre a constante a miseacuterrima Dido

Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas ideias

Eneias bri lha soacute tris te Dido o teu mundo era Eneias

E Eneacuteias vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

231 A razatildeo a ser logo reiterada eacute a provaacutevel inadequaccedilatildeo de um sistema quantitativo imposto no

contexto de nossa tradiccedilatildeo literaacuteria que natildeo inclui a referecircncia a padrotildees baseados em duraccedilatildeo silaacutebica 232 A definiccedilatildeo dos modos de composiccedilatildeo hexameacutetrica utilizados pode causar disparidades faccedilo uma

possiacutevel leitura do procedimento com base na observaccedilatildeo e na tipologia descrita para o espanhol ainda

que natildeo seja a considerada pelo autor dos versos Tratando-se de possibilidades de leitura Pejenaute

assim se refere agraves diferentes interpretaccedilotildees dos hexacircmetros de certo poeta

ldquoLa eacutegloga de Villegas Licidas Coridoacuten Poeta ha sido muy diversamente valorada en cuanto a sus

aspectos literaacuterio y formal Por lo que se refiere a la interpretacioacuten de los ldquohexaacutemetrosrdquo en que estaacute

compuesta las opiniones pueden alinearse en alguno de los apartados siguientes

1 Interpretacioacuten acentual Martiacutenez de la Rosa Narciso Alonso Corteacutes J M Pemaacuten T Navarro Tomaacutes

etc 2 Por yuxtaposicioacuten Huidobro 3 Acentualpor yuxtaposicioacuten Diacuteez-Echarri 4 Por largas y breves

Luzaacuten Saavedra Molina Garciacutea Calvo

La interpretacioacuten que maacutes nos satisface es la de Diacuteez-Echarri [] La repeticioacuten de octosiacutelabos por

ejemplo (de los dieciocho primeiros versos doce comienzan con tal grupo) maacutes el nuacutemero de acentos

que suele aparecer en el hexaacutemetro latino rematado todo ello con la claacuteusula final - - - es maacutes que

suficiente para explicar la laquocadenciaraquo que Alonso Corteacutes editor de Villegas encontraba en su poetardquo

Opcit p 226-227 233 O segmento inicial eacute semelhante ao praticado no verso alexandrino claacutessico 234 Pelo que se vecirc o moacutedulo dactiacutelico final pode ser identificado numa leitura com base nos acentos

porque haacute neste como nos demais casos (conforme se viu e veraacute) uma coincidecircncia com o padratildeo

acentual eacute cabiacutevel a hipoacutetese de que a opccedilatildeo pelo criteacuterio qualitativo no final dos versos se decirc com a

finalidade de definir a marcaccedilatildeo riacutetmica (lembre-se da observaccedilatildeo de Pejenaute sobre os versos com base

no criteacuterio qualitativo)

254

superna matildeo lhe aponta entre neacutevoas as plagas latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai soacute vecirc Troacuteia abrasada no escuro

O ma ru lho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e os sibilos do vento o estralar da fatal labareda

E olhando aleacutem Cartago a sumir-se enter as sombras da tarde

em gemidos exala as profundas saudades em que arde

Pode-se constatar nos versos a irregularidade da distribuiccedilatildeo das tocircnicas

iniciais e a regularizaccedilatildeo dos acentos a partir da sexta siacutelaba Como tambeacutem se vecirc

predomina a existecircncia de seis tocircnicas em cada um deles quantidade que varia para

cinco (mas com a possibilidade de se contar uma semitocircnica)235

A frequecircncia de tocircnicas nos exemplos ateacute agora vistos pode constituir uma

referecircncia na procura de analogia com o hexacircmetro quantitativo pois ainda que fosse

possiacutevel considerar duraccedilotildees independentemente dos acentos na praacutetica de liacutenguas

neolatinas como o portuguecircs e o espanhol as siacutelabas tocircnicas eacute que constituem o

principal determinante do ritmo (como jaacute foi apontado em citaccedilatildeo de Piejenaute) A

sucessatildeo de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ndash que ocasiona portanto a

definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias e ternaacuterias (conforme o padratildeo riacutetmico da liacutengua

portuguesa) ndash permite apesar das variaccedilotildees o estabelecimento da expectativa de

repeticcedilatildeo (condiccedilatildeo fundamental ao ritmo marcado) em versos mais longos Como

qualidade baacutesica comum a diversas das adaptaccedilotildees apresentadas a desejaacutevel (de meu

ponto de vista) associaccedilatildeo entre a constacircncia e a variabilidade que natildeo ocasiona a

criticada monotonia resultante da marcaccedilatildeo exclusivamente ternaacuteria no sistema

qualitativo

Mas retornemos a Castilho ele apresenta em seguida236

exemplo (do mesmo

autor) de outra possibilidade de composiccedilatildeo que consistiria em diacutesticos de hexacircmetros

e pentacircmetros

235Notem-se os acentos secundaacuterios assinalados com pontilhado (menor intensidade) ou linha

interrompida (maior intensidade) numa leitura possiacutevel 236

Op cit pp 31-32

255

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido

No rude turbilhatildeo que lhe agita as turbadas idecircas

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneas

E Eneas vai cortando (iacutempia sorte) as undosas campinas

matildeo superna lhe aponta as regiotildees latinas

Nada espera nem vecirc se interroga o cerrado futuro

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro

O marulho do Oceano os rugidos do incecircndio arremeda

e o uivar do largo vento imita a labareda

E olhando aleacutem Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde

em gemidos exala o acerbo amor em que arde

ampc ampc ampc 237

De iniacutecio examinemos uma possibilidade de escansatildeo238

baseada no criteacuterio

quantitativo ou seja de cinco peacutes (daacutectilos e espondeus) formados de siacutelabas longas e

breves

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias(1-3-6-9-(10)-12)

_ U U _ U U _ _ _ U U _ U

matildeo superna lhe a ponta as regiotildees latinas(1-3-6-(8)-10-12)

_ U U _ U U _ U U _ _ _ U

237 Castilho encerra seu comentaacuterio com uma exortaccedilatildeo ao trabalho em ldquoamplas formasrdquo ldquoSe as amostras

que deixamos transcritas lograrem a fortuna de persuadir aos espiacuteritos natildeo-hoacutespedes no latim que a

novidade pode ser prestadia a esses rogamos que ponderem que imensa facilitaccedilatildeo natildeo encontraria para o seu trabalho nestas amplas formas quem empreendesse dar agrave nossa literatura os grandiosos poetas

romanos Eacute ponto que vale a pena de ser meditado 30 de julho de 1871rdquo 238 A escansatildeo envolve a incerteza considerando-se a existecircncia de diversos modos de adaptaccedilatildeo do

hexacircmetro e o fato de eu natildeo ter obtido fonte explicitadora das possibilidades ou maneiras de aplicaccedilatildeo

de regras da metrificaccedilatildeo latina para a configuraccedilatildeo dos peacutes em portuguecircs conforme a praacutetica da eacutepoca

256

se inquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

_ U U _ _ _ U U _ U U _ U

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

_ U U _ U U _ U U _ U U _ U

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

_ _ _ U U _ U U _ U U _ U

Eacute evidente a coerecircncia da configuraccedilatildeo que reforccedila a hipoacutetese do sistema

empreendido pelo autor Mas adotando-se novamente a ideia de busca de

correspondecircncias identificaacuteveis nos padrotildees de metrificaccedilatildeo qualitativa vejamos como

poderiam ser ldquolidosrdquo deste modo os versos

Pode-se reconhecer tambeacutem nos pentacircmetros (a seguir isolados) a justaposiccedilatildeo

de dois segmentos desta vez hexassiacutelabos ambos entre parecircnteses ao lado de cada

linha as posiccedilotildees das tocircnicas e semitocircnicas (entre parecircnteses internos) evidenciando-se

padrotildees do dodecassiacutelabo em portuguecircs

Pranteia em peacute na torre a lamentosa Dido (2-4-6-(8)-10-12)

soacute o vecirc triste Dido era o seu mundo Eneias (1-3-6-9-(10)-12)

matildeo superna lhe a ponta as regiotildeeslatinas (1-3-6-(8)-10-12)

seinquire o que laacute vai vecirc Troacuteia a arder no escuro (2-(4)-6-8-10-12)

e o uivar do largo vento imita a labareda (2-4-6-8-(10)-12)

em gemidos exala o acerbo amor em que arde ((1)-3-6-8-10-12)

Todos os versos terminam com uma sucessatildeo de duas ceacutelulas binaacuterias

descendentes ou seja dois troqueus ldquoacentuaisrdquo (uma relativa exceccedilatildeo eacute o quinto verso

com acento secundaacuterio definindo a sequecircncia) e totalizam doze siacutelabas (Do ponto de

vista acentual haacute predominacircncia de versos nesse peacute uma vez que embora haja igual

nuacutemero de versos que se iniciam por ceacutelulas jacircmbicas e trocaicas os primeiros natildeo

prosseguem com um conjunto uniforme desse padratildeo) A soluccedilatildeo pentameacutetrica

257

portanto (que tambeacutem permite outras possibilidades de leitura) vista deste modo

(baseado em sistema qualitativo) parece definir-se pela variaccedilatildeo da posiccedilatildeo das tocircnicas

(cinco com possiacutevel adiccedilatildeo de semitocircnica) e pela presenccedila constante de uma sequecircncia

trocaica final

Vejamos mais alguns exemplos de adaptaccedilotildees do hexacircmetro ao portuguecircs

citando-se versos do jaacute mencionado ldquoantecessorrdquo de Odorico Mendes em versatildeo

decassilaacutebica da Iliacuteada (embora apenas do primeiro canto) Joseacute da Costa e Silva autor

tambeacutem de epiacutestolas239

Destas quase todas satildeo feitas em decassiacutelabos como no breve

exemplo seguinte (de versos heroacuteicos) dedicado ao tradutor da Eneida Barreto Feio240

Epiacutestola I (Epiacutestolas Livro V)

Da sepultada ineacutercia e do oacutecio rude

Diferenccedila natildeo faz Barreto amigo

Quando esconde seus raios a virtude

Disse ldquoquaserdquo porque a Epiacutestola VIII241

eacute composta em versos adaptados do

hexacircmetro e dedicados ao praticante dessa modalidade Vicente Pedro Nolasco da

Cunha citado como referecircncia por Castilho

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma242

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe 243

239 Veja-se Livro V ndash Epiacutestolas In Poesias de Joseacute Maria da Costa e Silva ndash Tomo III Lisboa

Typographia de Antoacutenio Joseacute da Rocha 1844 240 Assim eacute a dedicatoacuteria que antecede a epiacutestola ldquoAo Sr Joseacute Vigtorino Barreto Feio (Capitatildeo do

Regimento de Cavalaria n 3 e mais correcto Poeta que se dava a traduzir a Eneida em verso solto)rdquo Op cit p 112 241

Do mesmo livro IV das Poesias pp 232-237 242 Este verso e o seguinte aparecem assim no corpo do poema ldquoOh tu que do Tejo Cisne de cacircndida

plumardquo ao Tames voaste onde o teu canto divinordquo no entanto constam da ldquoErrata do terceiro volumerdquo

na qual se indica a forma que aqui consta como sendo a correta Op cit p 292

258

De ti inda folgo quando teus versos escuto

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)244

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recursos

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)245

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)246

Faccedilo a seguir possiacutevel escansatildeo de alguns versos com base em criteacuterio

quantitativo247

observe-se a invariaacutevel presenccedila do moacutedulo definidor do hexacircmetro

dactiacutelico no quinto e sexto peacutes

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

_ _ _ _ _ U U _ U U _ U U _ U

[]

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

243 Consta na ediccedilatildeo original a seguinte nota referente a esse verso ldquoAlusatildeo ao beliacutessimo Poema

Filosoacutefico de Darwin intitulado o Jardim Britacircnico que o Doutor Nolasco traduziu em verso e imprimiu

quando ainda estava em Lisboardquo Id p 232 244 Id p 233 Note-se na sequecircncia de versos o elogio do sistema praticado por Nolasco 245 Consta no livro relativa a esse verso a seguinte nota ldquoVerso do Doutor Nolasco no seu poema = O

Incendio de Moscourdquo 246 Corresponde a esse verso a seguinte nota na ediccedilatildeo ldquoO Incecircndio de Moscou foi o primeiro Poema Hexameacutetrico que em Portuguecircs se imprimiu Eacute de esperar que os amadores da verdadeira Poesia se natildeo

neguem a aperfeiccediloar e moldar ao Gecircnio da liacutengua uma tatildeo vantajosa metrificaccedilatildeordquo 247 Aqui como no caso anterior a escansatildeo traz incerteza Do modo como vejo resulta um nuacutemero

aparentemente excessivo de espondeus o que potildee em duacutevida a correccedilatildeo da leitura Seja como for

interessa-nos a diversidade da distribuiccedilatildeo e a presenccedila fixa da sequecircncia final de dois daacutectilos como

paracircmetro de identificaccedilatildeo do verso

259

De ti inda folgo quando teus versos escuto

_ _ _ _ _ _ _ U U _ U U _ U

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

_ _ _ _ _ _ _ _ _ U U _ U

Prosseguindo a busca de um caminho que se depreenda da transmigraccedilatildeo do

sistema quantitativo ao qualitativo como oacuteptica de interpretaccedilatildeo riacutetmica vejamos

agora como ficaria a escansatildeo dos versos com base nas tocircnicas

Oh tu do Tejo Cisne de cacircndida pluma

Que ao Tames voaste onde o teu canto divino

Os ares ventos ninfas Pastores namora

salve pios votos drsquoamigo Vate te buscam

Vate que (recorda) fora na Paacutetria noto

De Darwin o douto ao douto Inteacuterprete longe

De ti inda folgo quando teus versos escuto

Amor das Artes Gecircnio Febeia coroa

Peito que natildeo turbam drsquoalheia gloacuteria Luzes

Contigo me enlaccedilam fique a Tersites infame

Iacutenvido morder-se quando a Virtude se eleva

Na voz deprimindo o que imitar desejava

[]

De jugo livres livres drsquoacento tedioso (v 19)

Ou breve ou tarda a marcha traslado jucundo

Drsquoopostos Estos drsquoalma drsquoIlyso do Tibre

Sublimes metros de seus antigos Poetas

Mil que a modernos Vates faltaram recurSOS

Deram por impeccedilos brioso o Gecircnio rompe

260

[]

Do vasto esplendor drsquoAacutesia qual Troacuteia do cume (v 60)

[]

De novo estilo e canto credor se volvia (v 74)

Pode-se verificar da relativamente longa amostra que todos os versos

apresentam com o criteacuterio acentual (com apenas dois pontos que poderiam suscitar

duacutevida pela leitura em hiato de ldquogloacuteriardquo e ldquogecircniordquo) o dito moacutedulo hexameacutetrico Haacute

tambeacutem padrotildees da distribuiccedilatildeo das tocircnicas que se repetem (como U_ U_ U_ UU

_UU _U ou _ UU_U_UU _U U_U)248

com ocorrecircncia em quase todos os casos de

cinco tocircnicas no verso Desta como de outras observaccedilotildees acerca do comportamento e

possibilidades dos versos proporei a anunciada opccedilatildeo meacutetrica para um breve exerciacutecio

tradutoacuterio de fragmentos da Odisseia

248 Lembro para evitar confusotildees de leitura que temos usado a mesma notaccedilatildeo para distinguir as siacutelabas

no sistema quantitativo (breves e longas) e qualitativo (tocircnicas e aacutetonas)

261

A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio

A partir de tudo o que se considerou passo a fazer breve apresentaccedilatildeo de um

modo de conceber a traduccedilatildeo de poesia voltado a um exerciacutecio tradutoacuterio de fragmento

da eacutepica homeacuterica

Como conceito fundamental compartilho da visatildeo de traduccedilatildeo de poesia como

recriaccedilatildeo ldquoparalela poreacutem autocircnomardquo do texto de referecircncia Isso significaraacute reconhecer

os elementos que compotildeem o texto nos planos de conteuacutedo e de expressatildeo no entanto

considerando-se o que se buscou definir como referecircncias definidoras da linguagem

poeacutetica seratildeo observadas no texto as caracteriacutesticas que seratildeo tomadas

prioritariamente como fontes de recriaccedilatildeo Relativamente ao campo do sentido seraacute

buscada a reconstruccedilatildeo de informaccedilotildees com os elementos com que se trabalha visando

a abranger o maacuteximo possiacutevel das informaccedilotildees consideradas essenciais pelo tradutor

em decorrecircncia da leitura Para se ter esse paracircmetro ainda que se leve em conta a

mutabilidade do sentido e sua associaccedilatildeo inevitaacutevel com a sonoridade e outros

componentes icocircnicos da composiccedilatildeo seraacute feita inicialmente uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do

texto grego que serviraacute de base no plano de conteuacutedo agrave elaboraccedilatildeo do ldquocanto

paralelordquo Este por sua vez teraacute suas proacuteprias regras e qualidades internas de

composiccedilatildeo com a busca de estabelecimento de correlaccedilotildees analoacutegicas vistas num

amplo espectro de possibilidades quanto a isso nada de novo uma vez que

intencionalmente ou natildeo o que se faz seraacute sempre uma obra correlata mas com

identidade proacutepria definida pelo conjunto de referecircncias e de opccedilotildees de configuraccedilatildeo

do labor poeacutetico Seratildeo buscadas neste caso a dinacircmica e a densidade sonora que de

meu ponto de vista atendem agrave opccedilatildeo de analogia com qualidades do texto grego e

tambeacutem agrave proacutepria concepccedilatildeo de poesia voltada ao uso de repeticcedilotildees (focircnicas

semacircnticas riacutetmico-acentuais icocircnico-visuais) integrantes da pretendida teia de

relaccedilotildees entre som e sentido natildeo se teraacute como pressuposto a ideia de siacutentese ldquoradicalrdquo

que traz inconveniecircncias ao teor tambeacutem narrativo da composiccedilatildeo Diga-se

especificamente que natildeo seraacute considerada a obrigatoriedade de manutenccedilatildeo da mesma

forma de epiacutetetos e foacutermulas ao longo dos versos nem da posiccedilatildeo em que ocorrem

pensando-se na variabilidade como um conceito adequado agrave tradiccedilatildeo e agrave atualidade da

poesia de liacutengua portuguesa Adoto como os trecircs tradutores aqui estudados a opccedilatildeo

262

pelo tom elevado da composiccedilatildeo coerente segundo certos pontos de vista com o teor

heroacuteico do poema

O primeiro passo diante da tarefa de recriar o texto grego seraacute de meu ponto de

vista estabelecer o paracircmetro meacutetrico com que se iraacute trabalhar E neste aspecto

concentraremos nossa proposiccedilatildeo uma vez que o processo tradutoacuterio geral

compartilharaacute de accedilotildees comparaacuteveis agraves accedilotildees de leitura empreendidas durante as

anaacutelises feitas neste trabalho

Com base no que se discutiu no toacutepico anterior escolho um modelo de metro

para orientaccedilatildeo do exerciacutecio que poderaacute constituir-se num paracircmetro feacutertil para futuras

traduccedilotildees Natildeo penso diga-se jaacute no uso de modelo baseado em sistema que natildeo o

qualitativo pela profunda introjeccedilatildeo desse paradigma de leitura na cultura literaacuteria

moderna mas da observaccedilatildeo de possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas

como a nossa proponho o seguinte esquema riacutetmico-meacutetrico

Os versos natildeo teratildeo quantidade fixa de siacutelabas pois esta natildeo eacute uma condiccedilatildeo

fundamental na definiccedilatildeo do ritmo em versos que se sucedem em grande quantidade

envolvendo o fluxo de uma narrativa que contaraacute frequentemente com o enjambement

Mas teratildeo cinco ou seis acentos considerando a necessidade de marcaccedilatildeo que reforce a

expectativa constante como marcaccedilatildeo riacutetmica ao longo dos sucessivos versos

ldquonarrativosrdquo A constacircncia poreacutem se aliaraacute agrave diversidade como jaacute se disse a sucessatildeo

de tocircnicas em nuacutemero variaacutevel de cinco a seis ocasionaraacute a definiccedilatildeo de ceacutelulas binaacuterias

e ternaacuterias em conformidade com o padratildeo riacutetmico da liacutengua portuguesa Mas seraacute

tambeacutem regra baacutesica a presenccedila em cada verso do que denominei ldquomoacutedulo

hexameacutetricordquo ou seja (em termos acentuais) de um daacutectilo e um troqueu ndash ou de uma

ceacutelula ternaacuteria descendente e uma binaacuteria descendente ndash finalizando o verso

(considerando-se a relaccedilatildeo entre tonicidade e duraccedilatildeo pode-se entender que a uacuteltima

siacutelaba da ceacutelula binaacuteria poderaacute se prolongar exercendo tambeacutem o papel de pausa

realizando analogamente um espondeu) Todos os versos seratildeo portanto graves haacute

no entanto a possibilidade (natildeo praticada no exerciacutecio que apresento249

) da admissatildeo do

verso agudo cuja siacutelaba tocircnica final teria de ser seguida por siacutelaba aacutetona no proacuteximo

verso no fluxo dos versos o moacutedulo se manteria presente na impressatildeo propiciada pela

leitura Um modo de associar o mutaacutevel ao constante garantindo-se a identificaccedilatildeo do

249 Haacute uma uacutenica exceccedilatildeo um verso agudo terminado por reticecircncias a sugerir um ldquotempordquo adicional

compensador da siacutelaba faltante de todo modo o verso eacute seguido por siacutelaba aacutetona do verso contiacuteguo

263

paracircmetro ternaacuterio sem que se recorra a sua aplicaccedilatildeo invariaacutevel O esquema permite

frequentemente que se faccedilam versos dodecassiacutelabos de modo a compor um padratildeo de

meacutetrica irregular em torno de medida usual em nossa liacutengua aleacutem de ser escolha

defendida com propriedade para a recriaccedilatildeo da eacutepica (caso de H de Campos entre

outros)

Veja-se em seguida como resulta o exerciacutecio desenvolvido conforme o modelo

exposto250

Primeiramente eacute apresentada a traduccedilatildeo acompanhada do texto grego

depois inclui-se novamente a traduccedilatildeo desta vez assinalando-se as siacutelabas tocircnicas ( _ )

e por vezes tocircnicas secundaacuterias ()251

e anotando-se ao lado de cada verso o nuacutemero

de siacutelabas que a ele corresponde

250 Trata-se de work in progress passiacutevel de modificaccedilotildees e aperfeiccediloamento 251 Quando duas siacutelabas se juntam por elisatildeo e uma delas eacute tocircnica assinalam-se ambas para evidenciar a

contagem de uma uacutenica siacutelaba uma vez que natildeo se anota neste caso a separaccedilatildeo das siacutelabas a fim de

natildeo prejudicar a leitura Embora natildeo se indique ldquocom ardquo seraacute lido com ectlipse (ldquocorsquoardquo)

264

Odisseia XI

(1-83 180-208)

265

266

267

Odisseia

(XI 1- 83)

Quando depois descemos ao mar e ao navio (12)

primeiro ao mar divino o navio empurramos (12)

e da negra nau o mastro e as velas erguemos (12)

levadas a bordo as ovelhas pegas seguimos (13)

5 tristes aflitos vertendo laacutegrimas fartas (12)

Por traacutes da nau de escura proa Circe a terriacutevel (13)

deusa canora de belos cachos envia-nos vento (14)

propiacutecio a inflar as velas oacutetimo soacutecio (11-12 siacutelabas)

Cansados demais por cuidar de apetrechos do barco (14)

10 sentamos o vento e o piloto o navio guiavam (13)

Por todo o dia singramos velas infladas (12)

Pocircsto o sol cobriram-se de sombra os caminhos (12)

a nau atinge o limite do oceano profundo (13)

Laacute estatildeo a cidade e o paiacutes dos cimeacuterios (12)

15 pelo veacuteu das nuvens e das brumas envoltos (12)

Heacutelio raios-brilhantes nunca sob si os vislumbra (14)

nem ao subir ao alto do ceacuteu estelante (12)

nem ao baixar de novo do paacuteramo agrave terra (12)

estira-se a noite fatal sobre os pobres humanos (14)

20 Aportado o navio dele tiramos as reses (14)

retomamos entatildeo as ondas do oceano bravio (14)

ateacute chegar ao local predito por Circe (12)

Periacutemedes e Euriacuteloco nossas cabras pegaram (14)

e eu sacando da coxa a aguda lacircmina um fosso

268

25 cavei um cocircvado de lado a lado medindo (13)

e em volta verti libaccedilotildees a todos os mortos (13)

leite-mel a primeira um doce vinho a segunda (13)

e aacutegua a terceira espargi entatildeo alva farinha (13)

Jurei agraves muitas cabeccedilas ocas dos mortos (12)

30 que indo a Iacutetaca em sacrifiacutecio daria (13)

o melhor novilho fartando de bens nossa pira (14)

mataria uma recircs apenas para Tireacutesias (13)

negra de todo distinta entre nossas ovelhas (13)

Depois de preces e votos enviados aos mortos (13)

35 agarrei os dois animais degolando-os por sobre (14)

o fosso seu sangue quente ensombrado escorria (13)

almas subidas do Eacuterebo em torno se uniram (12)

jovens esposas e anciatildeos por demais padecidos (13)

virgens tenras de coraccedilotildees receacutem-magoados (13)

40 muitos feridos por lanccedilas brocircnzeas homens (12)

mortos por Ares as armas tintas de sangue (12)

tantos por todo lado a correr ante o fosso (12)

com muito rumor fui tomado por liacutevido medo (14)

Eu entatildeo depois de incitar os parceiros (11)

45 mandei que esfolassem as reses por mim degoladas (14)

e ambas logo queimassem rogando agraves deidades (13)

ao poderoso Hades e a Perseacutefone torva (13)

tomando da coxa a aguda espada sentei-me (12)

e natildeo deixei que as cabeccedilas ocas dos mortos (12)

50 o sangue alcanccedilassem antes que ouvisse Tireacutesias (13)

Veio primeiro a alma de Elpenor meu amigo (12)

ele natildeo estava ainda sob a terra tatildeo vasta (13)

por termos deixado seu corpo no paccedilo de Circe (14)

insepulto e natildeo-pranteado novas dores urgiam (14)

55 Ao vecirc-lo irrompi em pranto e apiedando-me dele (13)

passei a dizer-lhe as seguintes palavras aladas (14)

ldquoElpenor como vieste agrave treva brumosa (12)

269

Chegaste a peacute antes de mim que vim com a nau negrardquo (13)

Assim falei ele lamentando-se disse (12)

60 ldquoFilho de Laertes oh Odisseu astucioso (13)

afetou-me um mau nume aleacutem do vinho inebriante (13)

deitado no quarto de Circe natildeo cogitei em (14)

usar a grande escada para descer (11)

caiacute direto do eirado quebrei o pescoccedilo (13)

65 e minha alma entatildeo buscou o caminho do Hades (13)

Suplico-te pelos ausentes que vivem no alto (14)

por tua esposa e por teu pai que com zelo criou-te (13)

e por Telecircmaco filho que em casa deixaste (13)

sei que para ires da morada de Hades (12)

70 agrave ilha Eeia teraacutes um navio bem feito (12)

imploro senhor que te lembres de mim ao chegares (14)

Natildeo me deixes assim natildeo-pranteado e insepulto (12)

ao partires para que os deuses natildeo se ressintam (13)

mas queima-me junto a meus pertences e armas (12)

75 e ergue-me um sepulcro na praia do mar pardacento (14)

lembranccedila deste infeliz aos que viratildeo algum dia (14)

ao fim de tudo finca sobre a tumba o meu remo (13)

aquele que usava junto a meus companheirosrdquo (12)

Assim me falou e eu em resposta lhe disse (12)

80 ldquoTais coisas oh infeliz farei como queresrdquo (12)

Nos sentamos trocando palavras muito doiacutedas (14)

De parte eu mantinha a espada sobre o sangue das reses (14)

O espectro do outro lado lamentava deveras (13)

(XI 180 ndash 208)

[hellip]

180 Disse-me entatildeo em resposta minha matildee veneranda (14)

ldquoEla resignado coraccedilatildeo ainda persiste (14)

em teu palaacutecio satildeo-lhe sempre penosos (11)

270

os dias e as noites que passam laacutegrimas verte (13)

Ningueacutem tomou ainda o teu nobre domiacutenio (12)

185 Telecircmaco o comanda e tambeacutem frequenta as festas (13)

tal como conveacutem a quem reparte justiccedila (12)

Muitos o convidam Teu pai ainda se encontra (13)

no campo e nunca desce agrave poacutelis jamais utiliza (14)

cama nem cobertores ou mantos macios (12)

190 no inverno dorme com os escravos em casa (11)

na cinza junto ao fogo soacute veste farrapos (12)

Mas se vecircm o veratildeo e o outono abundante (12)

ali sobre o inclinado terreno da vinha (12)

deita em seu leito feito de folhas caiacutedas (12)

195 Vive sofrendo com sua grande dor progressiva (13)

agrave tua espera chega-lhe a dura velhice (12)

Foi assim que morri o meu destino seguindo (13)

a haacutebil arqueira252

natildeo me matou no palaacutecio (12)

jaacute que natildeo me atacou com suas flechas amenas (12)

200 nem de fato atingiu-me a doenccedila que tanto (12)

sofrimento horriacutevel faz e os membros definha (12)

tua falta o anseio por ti Odisseu grandioso (13)

e teu afeto levaram-me a vida meliacuteflua (13)

Assim dizia inquietando-me quis a meu peito (13)

205 estreitar a alma triste de minha matildee morta (12)

Trecircs vezes lancei-me pelo peito impelido (12)

trecircs vezes ela voou-me das matildeos como sombra (13)

e sonho Uma dor atroz o coraccedilatildeo machucou-me (13)

[]

Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia

252 Referecircncia a Aacutertemis (Odisseu tambeacutem perguntara a sua matildee se esta teria morrido por accedilatildeo das

flechas da deusa)

271

Conclusatildeo

Iniciemos esta parte conclusiva com a rememoraccedilatildeo dos ldquodois sentidosrdquo

existentes segundo Haroldo de Campos (conforme exposto na Introduccedilatildeo deste

trabalho) no que seria a operaccedilatildeo semioacutetica envolvida na traduccedilatildeo a fim de refletirmos

brevemente sobre eles agrave luz do que aqui se desenvolveu Sobre o primeiro o de que a

traduccedilatildeo poeacutetica ldquovisa ao intracoacutedigo que opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo diga-se

que como se procurou demonstrar o chamado ldquointracoacutedigordquo sempre seraacute observado

ainda que se questione a existecircncia de propriedades intriacutensecas ao texto ou

independentes da leitura se de fato a leitura eacute determinante do coacutedigo ela se apoacuteia em

elementos por ela identificados ou seja existentes por seu desvelamento Eacute evidente

contudo que o ldquointracoacutedigordquo observado o seraacute conforme o ponto de vista da

observaccedilatildeo eacute inevitaacutevel a adoccedilatildeo de referenciais norteadores da escolha durante a

leitura e portanto durante a traduccedilatildeo Campos refere-se a um referencial (de que

compartilhamos) para identificaccedilatildeo do intracoacutedigo a funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson (cujo

ldquoespaccedilo operatoacuteriordquo seria o proacuteprio intracoacutedigo) que permite a identificaccedilatildeo de

componentes das relaccedilotildees icocircnicas (para valer-me de outro aporte teoacuterico aqui referido

uacutetil nas operaccedilotildees de leitura e de recriaccedilatildeo) perceptiacuteveis no texto as quais conforme

concepccedilotildees que permanecem frutiacuteferas para as operaccedilotildees de leitura anaacutelise e recriaccedilatildeo

ndash como aqui se pretendeu re-demonstrar ndash caracterizariam a linguagem poeacutetica

Pelas razotildees exploradas neste estudo relativas agrave diferenccedila das liacutenguas agrave

transitoriedade do sentido agrave impossibilidade da traduccedilatildeo como processo simplesmente

de ldquopassagemrdquo de uma liacutengua a outra ou da inviabilidade da equivalecircncia ldquoliteralrdquo

absoluta entre conjuntos de informaccedilatildeo esteacutetica etc a traduccedilatildeo de poesia seraacute como

define o outro sentido previsto por Campos da operaccedilatildeo semioacutetica um ldquocanto

paralelordquo O teor de ldquomovimento paroacutedicordquo da traduccedilatildeo poeacutetica eacute evidente na leitura

comparativa das diferentes versotildees da eacutepica em portuguecircs cada uma eacute obra diversa

autocircnoma que suscita discrepantes impressotildees ndash e compreensotildees ndash pela leitura Mais

uma vez constata-se o oacutebvio que ainda por vezes eacute questionado a inexistecircncia da

traduccedilatildeo ldquoneutrardquo da qual o tradutor estaria ldquoausenterdquo por submeter-se ao original de

modo a apenas transpocirc-lo fiel a seu sentido e a seu estilo a outro idioma a proacutepria

traduccedilatildeo revela desde a origem de sua realizaccedilatildeo as escolhas do tradutor que por sua

272

vez satildeo indicadoras de seus pressupostos de leitura e compreensatildeo do fenocircmeno

poeacutetico Reitere-se portanto que os diferentes cantos paralelos seratildeo tatildeo diversos (ainda

que apresentem caracteriacutesticas homoacutelogas aos poemas de partida) quanto o satildeo os

criteacuterios adotados por cada tradutor conforme se mostra neste estudo e conforme

postulou inapelavelmente a teoria desconstrucionista

A relatividade dos procedimentos tradutoacuterios contudo natildeo seraacute suficiente para a

total relativizaccedilatildeo das traduccedilotildees como igualmente vaacutelidas por precondiccedilatildeo a anaacutelise

descritiva e comparativa poderaacute servir agrave observaccedilatildeo dos resultados obtidos dentro de

determinada proposiccedilatildeo e perspectiva tradutoacuteria e da coerecircncia entre estes e objetivos

sugeridos pelos procedimentos identificados Seraacute de pouca valia no entanto segundo a

perspectiva que aqui se procurou defender a busca de estabelecimento de um criteacuterio de

superioridade ou inferioridade de traduccedilotildees com base numa avaliaccedilatildeo quantitativa de

equivalecircncias devido propriamente agrave incondicional natureza paroacutedica (no sentido

etimoloacutegico)253

da recriaccedilatildeo poeacutetica

Quanto agrave possibilidade de anaacutelise objetiva de resultados esteacuteticos os elementos

considerados por referencial anterior como ldquoefeitosrdquo ou recursos esteacutetico-sonoros

podem ser percebidos e mesmo quantificados resta no entanto como problema a

possibilidade de demonstrar objetivamente a superiodidade esteacutetica de uma obra sobre

outra sem se considerarem os referenciais ou criteacuterios previamente estabelecidos do que

deveraacute ser considerado esteticamente superior Isso natildeo elimina o fato de que ao se

ouvirem obras diversas por exemplo se possa (independentemente de anaacutelise) ter a

niacutetida sensaccedilatildeo de melhores soluccedilotildees sonoras em uma do que em outra versatildeo por

pessoas de diferentes repertoacuterios inseridas num mesmo contexto linguiacutestico-cultural

etc sobre isso relembrem-se as tatildeo exploradas regras de composiccedilatildeo para que versos

resultem ldquoagradaacuteveisrdquo ao ouvido254

Talvez a dificuldade ndash ou mesmo impossibilidade

ndash de se dar conta de processos quantificadores da qualidade esteacutetica se possa explicar

pela natureza impressiva da arte verbal (como das demais artes) dotada de

potencialidade ilimitada para a produccedilatildeo de sugestotildees podemos entender a questatildeo agrave

luz do conceito (do qual me vali repetidas vezes) de primeiridade relativa ao iacutecone

253 Gr paroidiacutea [] do gr paraacute ao lado de + oacuteidecircecircs ode pelo lat parodigraveaae id (Houaiss)

254 Sobre o assunto evoque-se Castilho em cujo Tratado de metrificaccedilatildeo consta o seguinte

ldquoInvestiguemos pois quais sejam os principais requisitos para o agrado do verso abstraindo da ideia do

afeto do estilo e da linguagem De todos estes requisitos o primeiro eacute que o verso natildeo seja duro nem

frouxo []rdquo Op cit 1874 p 66 (Ao trecho seguem-se as definiccedilotildees de ldquoverso durordquo e ldquoverso frouxordquo e

a identificaccedilatildeo dos fatores que os determinam)

273

segundo a teoria de Peirce tal plano semioacutetico refere-se agrave qualidade que nada

representa mas se apresenta (releiam-se os apontamentos sobre o conceito de iacutecone na

paacutegina 27 deste estudo255

) Sendo os aspectos esteacuteticos do poema ligados a formas

sonoras riacutetmicas visuais etc (a iacutecones portanto) considere-se (como jaacute se viu na

referida paacutegina) que o objeto do iacutecone eacute uma simples possibilidade do efeito que poderaacute

ldquoproduzir ao excitar nossos sentidosrdquo (Santaella 1983 86) e que ldquoo interpretante que o

iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera possibilidaderdquo (p 87) Assim

considerando-se o caraacuteter de primeiridade de iconicidade das formas e das relaccedilotildees

entre as formas que compotildeem o poema (e estabelecem as ditas relaccedilotildees com o sentido

num processo de hibridismo siacutegnico) e portanto a sua natureza eminentemente

sugestiva poderaacute ser compreensiacutevel a dificuldade de estabelecimento de processos

voltados agrave mediccedilatildeo objetiva universalizante de propriedades esteacuteticas de uma obra de

arte verbal Por essa mesma razatildeo atribuiccedilotildees de representaccedilatildeo que se fazem a

elementos utilizados em poesia como por exemplo a mencionada definiccedilatildeo de

sentimentos propiciados pelas vogais (em Castilho e Grammont) seraacute sempre incerta

ainda que seu caraacuteter sugestivo no plano perceptivo e emocional seja inegaacutevel

Sobre as competentes traduccedilotildees escolhidas como objeto de estudo pudemos

observar suas especificidades principais e desse modo os caminhos proacuteprios

percorridos no processo tradutoacuterio depreendendo-se de cada uma um paradigma

metodoloacutegico ora afeito agrave siacutentese mais radical vinculada a um verso mais breve ora agrave

explicitaccedilatildeo narrativa relacionada agrave cadecircncia fixa de um verso longo ora agrave preocupaccedilatildeo

evidente (e expliacutecita pela abordagem teoacuterica) de ldquotranscriaccedilatildeordquo pautada pela densidade

de efeitos sonoros associados ao campo do sentido em siacutentese semacircntica menos

draacutestica Paradigmas bastante diversos que ilustram modelarmente a grande e niacutetida

heterogeneidade que pode existir entre diferentes recriaccedilotildees do mesmo texto

exatamente por serem recriaccedilotildees a convergir entre as trecircs obras portanto o ponto

comum da criaccedilatildeo paralela que busca ainda que de modos distintos o estabelecimento

de construccedilotildees anaacutelogas aos poemas gregos em sentido e em forma (todas apresentam

em maior ou menor concentraccedilatildeo nos diversos fragmentos vistos resultados afeitos agrave

relaccedilatildeo entre sonoridade e significaccedilatildeo) Nenhum dos tradutores pelo que se pode

255 Nessa mesma paacutegina em nota haacute preliminarmente um breve comentaacuterio acerca da natureza incerta

da avaliaccedilatildeo de ordem esteacutetica

274

depreender de suas realizaccedilotildees buscou apenas a correspondecircncia de significados ou a

ldquoliteralidaderdquo do sentido

De minha parte a proposiccedilatildeo de mais um paracircmetro meacutetrico-riacutetmico de traduccedilatildeo

da poesia eacutepica veio a resolver ndash ou encaminhou a resoluccedilatildeo ndash de um antigo anseio

pessoal pela compatibilizaccedilatildeo do aspecto dinacircmico necessaacuterio aos versos e do aspecto

de repeticcedilatildeo de referecircncia fixa desejaacutevel a uma longa sequecircncia deles No caso do

metro diga-se parece-me infrutiacutefera (assim como o eacute a busca de equivalecircncia literal no

plano do conteuacutedo) a procura de correspondecircncia mais ldquofielrdquo ao metro greco-latino

dada a distacircncia entre idiomas poesias sistemas meacutetricos e por fim entre as culturas

envolvidas O interessantiacutessimo esquema proposto por Andreacute Malta (do qual aqui se

tratou ainda que marginalmente por sua importacircncia) apresenta qualidades riacutetmicas e

poeacuteticas independentes dos criteacuterios que nortearam fundamentalmente sua escolha

(voltados agrave tentativa de equivalecircncia funcional que consideraria fatores como a

popularidade do metro a natureza oral das composiccedilotildees etc) O que me levou agrave busca

de um esquema riacutetmico diferenciado foi antes uma soluccedilatildeo que conjuminasse meus

interesses de ordem esteacutetica considerados no plano interno ao poema resultante da

traduccedilatildeo que ele emerja de tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro a liacutenguas modernas eacute

esperado uma vez que muito se fez nessa aacuterea e muito se pensou a respeito do assunto

Ainda que guarde analogias desejaacuteveis com o metro antigo natildeo seraacute o princiacutepio

puramente de equivalecircncia sua motivaccedilatildeo mas o seratildeo sim pelo proacuteprio criteacuterio da

analogia (e de analogia ldquoflexiacutevelrdquo ndash assim como deveraacute ser penso a referente ao campo

semacircntico) as qualidades comuns de junccedilatildeo do instaacutevel com o estaacutevel do imprevisto

com o previsiacutevel

275

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ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Tomo terceiro 4ordf ediccedilatildeo Rio de Janeiro

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SANTAELLA Lucia O que eacute semioacutetica Satildeo Paulo Brasiliense 1983

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SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 8a ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1977

SPINA Segismundo Na madrugada das formas poeacuteticas Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2002

STAIGER Emil Grundbegriffe der poetik Berlim 1946

STEINER G Depois de Babel questotildees de linguagem e traduccedilatildeo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto

Faraco Curitiba UFPR 2005

SUZUKI Teiiti ldquoImpressotildees da viagem agrave China Pequim ndash fevereiro de 1980rdquo In Estudos

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TODOROV Tzvetan Estruturalismo e poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1976

TORRE Esteban Teoriacutea de la traduccioacuten literaacuteria Madrid Siacutentesis s d

VASCONCELLOS Paulo Seacutergio ldquoDuas traduccedilotildees poeacuteticas da Eneida Barreto Feio e Odorico

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WHORF BL Language thought and reality Massachusetts Cambridge 1956

Miacutedia eletrocircnica consultada

Site Perseus

TLG Musaios

282

APEcircNDICES

Trecircs accedilotildees criativas

1 Referente agrave discussatildeo sobre a especificidade da poesia

ldquoAo som de duas insocircniasrdquo conto que encerra a anguacutestia pela incerteza entre o

existente e o imaginado

2 Referente ao conceito de traduccedilatildeo como accedilatildeo paroacutedica

Traduccedilatildeo do poema ldquoCeasefirerdquo do poeta irlandecircs Michael Longley que faz uma

recriaccedilatildeo adaptada agrave forma de soneto inglecircs (em procedimento portanto radicalmente

paroacutedico) de episoacutedio particularmente marcante do canto XXIV da Iliacuteada no qual o rei

Priacuteamo de Troacuteia suplica a Aquiles que lhe entregue o cadaacutever (ultrajado) de seu filho

Heitor

3 Referente agrave proposiccedilatildeo riacutetmica associada ao meacutetodo tradutoacuterio

Aacuteudio da traduccedilatildeo por mim apresentada do fragmento do Canto XI da Odisseia (CD)

para evidenciar pela leitura o resultado do modelo meacutetrico proposto

283

AO SOM DE DUAS INSOcircNIAS

Je sentis ma gorge serreacutee par la main terrible de lacutehysteacuterie

Charles Baudelaire

Eis que coloquei minhas palavras em tua boca

Jeremias 19

Soacute sobrevivo se rio do que eacute seacuterio

Anocircnimo

Naquele dia do mecircs de marccedilo de 1909 Giovanni Pascoli havia recebido pela

manhatilde uma carta que o deixara inquieto Datada do dia 19 trazia um conteuacutedo

inesperado e a resposta a dar suscitava reflexatildeo embora natildeo pudesse tardar

Olhando a paisagem quieta do entardecer em peacute no poacutertico de sua bela casa em

Castelvecchio o poeta sentia um rebuliccedilo interior que o impedia de pensar com

clareza natildeo sabia se deveria responder agrave carta ou caso respondesse se deveria

fazecirc-lo de modo indefinido ou com decididas afirmaccedilotildees Optou por respondecirc-la

com evasivas cuidando contudo de natildeo alimentar esperanccedilas A despeito da

decisatildeo natildeo se tranquilizou por inteiro restando-lhe uma espeacutecie de tremor sutil na

matildeo direita suficiente para dificultar sua escrita restou-lhe tambeacutem um fio muito

fino e frio no abdome apesar da bebida quente que ingerira antes de se deitar A

estranha sensaccedilatildeo acabou permanecendo em sua noite insone povoada por

imagens de letras que se embaralhavam formando nomes a soar em sua mente

imersos em versos que natildeo conseguia delimitar e dos quais logo se esquecia numa

sucessatildeo de apariccedilotildees e perdas

Longe dali Ferdinand de Saussure depois de mais um dia dedicado agrave preparaccedilatildeo

da segunda seacuterie de conferecircncias sobre linguiacutestica geral que ministrava na

Universidade de Genebra tambeacutem natildeo pudera dormir e se dedicava a continuar

seus cadernos de estudo sobre anagramas sistematicamente preenchidos durante as

noites ateacute a hora em que o sono o impedia de prosseguir Nessa ocasiatildeo com a

insocircnia o trabalho avanccedilava ateacute um ponto em que sua vista se turvava e seu

pensamento se aturdia num misto de sonho e realidade que o tornava ainda mais

aflito quanto agrave veracidade de suas descobertas vinham-lhe agrave mente entatildeo a partir

de direccedilotildees difusas inauditos sons guturais enquanto sentia pouco a pouco a

garganta apertar-se Uma breve pausa e alguns goles de aacutegua sorvidos em silecircncio

num canto escuro eram suficientes para que se percebesse parcialmente refeito

retornando agrave sua longa tarefa

284

Apoacutes alguns anos de pesquisa incansaacutevel permanecia a duacutevida primaacuteria quanto agrave

proacutepria existecircncia do objeto de sua busca apesar do deslumbramento a que se

entregara por reconhecer tantos anagramas evidentes nas obras que examinava e

conseguir formular as regras que deveriam ter orientado os autores na realizaccedilatildeo

daqueles feitos poeacuteticos persistia nele um duro foco de incerteza imanente ao seu

estudo que se contrapunha ao encanto como um gume aguccedilado impiedoso a

introduzir-se cada vez mais fundo em seu espiacuterito Durante a madrugada aleacutem do

trabalho ocupava-lhe a imaginaccedilatildeo uma possiacutevel segunda carta dirigida a Pascoli

na qual formularia de maneira sucinta mas suficiente a questatildeo crucial que o

aliviaria pela resposta que obtivesse mesmo que negativa Lia e relia a primeira

carta enviada agravequele poeta um dos poucos a cultivar ainda a poesia latina e tantas

vezes premiado no Certamen Hoeufftianum da Academia de Amsterdatilde

Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propoacutesito da versificaccedilatildeo latina em

geral encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema ndash Certos

pormenores teacutecnicos que parecem observados na versificaccedilatildeo de alguns modernos

satildeo puramente fortuitos ou satildeo desejados e aplicados de maneira consciente

Entre todos aqueles que se distinguiram em nossos dias por obras de poesia latina e

que poderiam por conseguinte esclarecer-me satildeo poucos os que se poderia

considerar ter dado modelos tatildeo perfeitos como os seus e onde se sentisse tatildeo

nitidamente a continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo muito pura Eacute a razatildeo que me leva a natildeo

hesitar em dirigir-me particularmente ao senhor e que deve servir-me de justificativa

pela grande liberdade que tomo

Caso o senhor estivesse disposto a receber em pormenor minhas perguntas eu teria

a honra de enviaacute-las numa proacutexima carta

Saussure iniciara sua pesquisa sobre os anagramas em 1906 e a esta altura jaacute

havia preenchido seu 1170 caderno aleacutem de papeacuteis avulsos no momento fazia

anotaccedilotildees nas grandes folhas em que tratava dos poemas latinos de Pascoli e de

outro autor tambeacutem italiano e tambeacutem Giovanni Rosati Seus cadernos continham

essencialmente exerciacutecios de decifraccedilatildeo por meio dos quais buscava encontrar os

anagramas foneacuteticos que teriam sido incluiacutedos pelos versificadores um ou mais

versos comporiam uma certa palavra geralmente o nome de um deus ou de um

heroacutei ao escutar versos latinos Saussure ouvia levantarem-se pouco a pouco os

fonemas principais de um nome proacuteprio distribuiacutedos ndash acreditava ndash

intencionalmente e conforme normas definiacuteveis A cada lance de dados do olhar

surgia um premeditado arranjo anagramaacutetico a evidenciar a intervenccedilatildeo do

demiurgo uma inteligecircncia organizadora do caos que a sua proacutepria desvendava

285

divisados em toda parte os nomes insuflavam o seu acircnimo nunca serenado

todavia pela convicccedilatildeo

Pascoli professor da Universidade de Bolonha e portanto seu colega de ensino

acadecircmico seria seu salvador o deus vivo a revelar-lhe a proacutepria intenccedilatildeo

criadora a dar-lhe sustentaccedilatildeo agraves asas do seu vocirco a confirmar-lhe a determinaccedilatildeo

dos gestos por ele desvelados a dar-lhe a paz necessaacuteria agrave sua excitaccedilatildeo chatildeo a sua

descoberta sem limites

Ao raiar a aurora entrevendo por uma fresta um tecircnue raio de sol Saussure

adormeceu E teve um sonho curioso com estantes e estantes de livros numa delas

(onde seus olhos captaram de relance a palavra Ficccedilatildeo encerrada numa etiqueta)

apareceu-lhe num close a meia-luz ndash detalhe sobressaiacutedo em meio agraves contiacuteguas

ediccedilotildees na linha da prateleira ndash o tiacutetulo Sobre a psicopatologia da vida cotidiana

A inscriccedilatildeo o fez despertar lembrou-se logo de jaacute ter visto tal volume numa

livraria de Genebra sem chegar a folheaacute-lo ndash era sabia ele outra obra de Sigmund

Freud autor de A interpretaccedilatildeo dos sonhos que tambeacutem natildeo lera Tratava-se

aquele vislumbre de algo estranho e mero acaso como lhe pareciam ser quase

sempre os sonhos apoacutes deixar de lado os signos esvanecidos na memoacuteria voltou

ao seu mundo presente focalizando a resposta que receberia do poeta italiano

Maria irmatilde de Pascoli notou na manhatilde seguinte sua inquietude estava liacutevido

com as feiccedilotildees contraiacutedas visivelmente maldormido trazia uma expressatildeo rude

grave interrogativa aleacutem do habitual ar sombrio que se instalara nele desde o

assassinato nunca aclarado de seu pai Ruggero quando tinha apenas 12 anos Ela

ofereceu-lhe entatildeo um revigorante desjejum que ele mal tocou Ainda na mesa o

escritor relia versos seus de Ultima linea ndash Ergo Vergilius cecinit nova saecula

frustra frustra ego praedixi frustraque effata Sybilla est ndash de Senex Coricius ndash

Spectabat mare caeruleum de vertice collis mente Cilix tota Prope falx et marra

iacebant ndash e de Nestor na paacutegina casualmente aberta de Catullocalvos ndash sub

arbore umbra Nestoris sedet senis depois debruccedilou-se sobre versos de seus

familiares poetas latinos buscando neles tambeacutem possiacuteveis pormenores

teacutecnicos a que o linguista aludia Seriam procedimentos por ele ignorados E se

apareciam em seus proacuteprios poemas seriam fruto de uma consciecircncia misteriosa

que guiara sua pena uma consciecircncia alheia que o tornara um simples instrumento

de sua vontade Ou estaria tatildeo imbuiacutedo da poesia no idioma do Laacutecio que a criaria

em seus moldes como um meio transmissor de uma tradiccedilatildeo sem que isto se

286

limitasse agrave sua iniciativa Afinal ele Iohannis recebera medalhas de ouro do

concurso holandecircs o que revelava que aos olhos dos criacuteticos assim como aos do

proacuteprio Saussure seus versos eram legiacutetimos e destacados representantes da

poeacutetica latina Natildeo lhe agradava a ideia de natildeo saber coisas importantes acerca de

sua proacutepria obra composta com o maacuteximo de atenccedilatildeo labor dedicaccedilatildeo e controle

que podia oferecer a si mesmo naquilo que mais lhe importava conhecia e

estimava eacute claro os momentos em que lhe vinham soluccedilotildees sem que as

perseguisse as fases mais feacuterteis a inspiraccedilatildeo especial de alguns momentos sem

os quais acreditava ele natildeo seria um poeta mas a simples sugestatildeo de algo que

fizesse sem ter plena ciecircncia de que o fazia fincava-lhe novamente no abdome

um frio e fino fio como se a ponta delgadiacutessima de uma seta ou mesmo uma

agulha geacutelida estivesse cravando-se em suas entranhas Desencorajando o

interlocutor sobre a existecircncia de algo que natildeo identificava foi cortecircs o suficiente

em sua resposta para propiciar a nova e esperada carta com a questatildeo mais

definida acerca dos tais pormenores a mensagem natildeo categoacuterica dava-lhe a

alternativa de estar escondendo o que natildeo queria revelar em vez de atestar o

possiacutevel desconhecimento de algo que pudesse ser real

Ao receber a resposta de Pascoli Saussure inicialmente prostrou-se por natildeo lhe

indicar ela qualquer identificaccedilatildeo com suas sugestotildees Anteviu portanto a

negativa quanto agrave realidade de seus achados talvez apenas uma miragem uma

projeccedilatildeo de sua mente excitada sobre uma massa ou mancha que se prestava a

qualquer molde que a ela se impusesse Mas a chama de uma possiacutevel revelaccedilatildeo

vista a cada passo de seu empenho natildeo se apagava com mais uma incerteza e sua

iniciativa de escrever a segunda carta deu-se logo sem rodeios Era o dia 6 de

abril

Dois ou trecircs exemplos bastaratildeo para colocar o senhor no centro da questatildeo que se colocou

ao meu espiacuterito e ao mesmo tempo permitir-lhe uma resposta geral pois se eacute somente o

acaso que estaacute em jogo nesses poucos exemplos disso decorre certamente que o mesmo

acontece em todos os outros De antematildeo creio bastante provaacutevel a julgar por algumas

palavras de sua carta que tudo natildeo deve passar de simples coincidecircncias fortuitas

1 Eacute por acaso ou intencional que numa passagem como Catullocalvos p 16 o nome Falerni se

encontre rodeado de palavras que reproduzem as siacutelabas desse nome

facundi caacutelices hausere ndash alterni

FA AL ER AL ERNI

287

2 Ibidem p 18 eacute ainda por acaso que as siacutelabas de Ulixes parecem procuradas numa sequecircncia

de palavras como

Urbium simul Undique pepulit lux umbras resides

U UL U ULI X S S ES

assim como as de Circe em

Cicuresque

CI R CE

ou Comes est itineris illi cerva pede

A carta continuaria mas o essencial estava dito Se isto natildeo fosse como deixara

expliacutecito um procedimento consciente nada o seria e seu esforccedilo teria sido em

vatildeo A anguacutestia instalou-se nele com um suspiro indefiniacutevel pelo tempo que

durasse a espera de uma resposta que previa deseacutertica aacuterida vazia a consumir-lhe

o acircnimo

Sem prestar muita atenccedilatildeo agrave correspondecircncia Maria passou-a ao irmatildeo que

apanhou imediatamente dentre as diversas cartas a do mestre suiacuteccedilo Ela notou

mais uma vez que o desassossego tomava conta do poeta alccedilando-se pela

premecircncia de algo oculto a um niacutevel bem mais elevado do que aquele que percebia

nele desde os dias finais do uacuteltimo mecircs

Pascoli leu-a rapidamente e dirigiu-se como em busca de ar aos arredores de sua

residecircncia Uma neacutevoa discreta tomava conta do lugar fundindo-se a seu

pensamento curiosamente vago Natildeo pensara considerava-se certo disso em

espargir elementos de nomes nos poemas mas eles estavam ali e o remetente da

carta tinha razatildeo Desconhecia de fato algo que ele proacuteprio fizera Ou seu

conhecimento era maior do que supunha Por um instante pareceu-lhe natural que

tivesse engendrado tais palavras nos versos Seu devaneio ingressou numa

dimensatildeo mais interna a olhar para dentro buscando enxergar em meio agrave neacutevoa

que espelhava o exterior agora natildeo visto e viu um possiacutevel outro de si a rir de sua

ignoracircncia a ironizar sua cegueira Voltando novamente o olhar para o lado de

fora dominado por uma superfiacutecie vaporosa amena continuou a ver uma face de si

mesmo no eacuteter como um reflexo que natildeo obedecendo a seu gesto ria enquanto ele

franzia o cenho Seria este outro o autor daqueles gestos precisos de siacutelabas de

sons entremeando-se em seu ofiacutecio como uma linha que costura no tecido alheio

mas cede agrave fusatildeo de seu feitio Ou seu riso denunciava a natildeo-autoria de quem quer

que natildeo fosse a proacutepria escritura a gerar em seus meandros suas proacuteprias leis

288

dotada de um ceacuterebro motor da linguagem criador de urdiduras independentes do

veiacuteculo de sua concretizaccedilatildeo esta matildeo trecircmula

Natildeo havia resposta a dar sem partir-se sem negar a sua consciecircncia ou exaurir a

do outro ou afirmar o inexistente ou cegar-se diante da evidecircncia ou admitir que

sua poesia lhe era transcendente ou que se natildeo o era talvez fosse algo que natildeo

conhecia bem e se natildeo conhecia bem talvez natildeo existisse assim como sua

consciecircncia que agora lhe parecia demente com um teor indistinto de mentira a

roer-lhe desde dentro ndash e desde fora

Nada a responder A decisatildeo amainou-lhe a alma que clareava em seu centro

enquanto a neacutevoa se dissipava permitindo contornos mais niacutetidos O ar frio entrou

mais livremente em seus pulmotildees acalentando-lhe o peito revolto parecia

delimitar-se em raros traccedilos de vapor a face transluacutecida de seu pai sugerindo-lhe

com voz paacutelida e longiacutenqua que deixasse os misteacuterios se diluiacuterem nos vatildeos do

intelecto

No iniacutecio a ausecircncia de resposta intensificou a agrura de Saussure que febril jaacute

natildeo conseguia prosseguir a escrita em seus papeacuteis grandes As noites tornaram-se

vazias porque povoadas apenas de fantasmas Fantasmas satildeo nada vecircm e vatildeo agrave

mercecirc dos ventos de nossa fantasia emergem e retornam ao infinito das

possibilidades amorfas ao vazio das formas Soacute a intenccedilatildeo soacute o ato atento

determina a existecircncia do que se identifica o que apenas surge e some nada eacute

desprovido da determinaccedilatildeo da vigiacutelia Assim os sonhos incertos das noites em

Genebra quando a elas retornou o sono soacute reaparecido no momento em que os

cadernos foram definitivamente ocultados dos olhos exangues de seu autor num

moacutevel de soacutelida madeira

Marcelo Taacutepia novembro-dezembro de 2007

Nota Este conto foi motivado pelas informaccedilotildees contidas na obra As palavras sob as

palavras ndash os anagramas de Ferdinand de Saussure de Jean Starobinski (traduccedilatildeo de

Carlos Vogt) publicada em Satildeo Paulo pela editora Perspectiva em 1974 Os trechos das

cartas de Saussure foram retirados dessa ediccedilatildeo com alteraccedilotildees miacutenimas assim como dela

proveacutem alguma frase incorporada ao texto

289

POEMA DE MICHAEL LONGLEY256

Ceasefire

I

Put in mind of his own father and moved to tears

Achilles took him by hand and pushed the old king

Gently away but Priam curled up at his feet and

Wept with him until their sadness filled the building

II

Taking Hectorrsquos corpse into his hands Achilles

Made sure it was washed and for the old kingrsquos sake

Laid out in uniform ready for Priam to carry

Wrapped like a present home to Troy at daybreak

III

When they had eaten together it pleased them both

To stare at each otherrsquos beauty as lovers might ndash

Achilles built like a god Priam good-looking still

And full of conversation who earlier had sighed

IV

lsquoI get down on my knees and to what must be done

And kiss Achillesrsquo hand the killer of my sonrsquo

256 Nascido em Belfast em 1939 Michael Longley publicou entre outros os livros de poemas No

continuing city (1969) Man lying on a wall (1976) Poems 1963-1983 (1984) The ghost orchid (1995) e

Broken dishes (1998) Eacute membro da Royal Society of Literature

290

CESSAR-FOGO

I

Relembrando o proacuteprio pai lacrimoso Aquiles

Tomou a matildeo do velho rei com gentileza

Afastou-o mas Priacuteamo abraccedilou-lhe os peacutes

Choraram e a tenda inundou-se de tristeza

II

Tendo nas matildeos o corpo lavado de Heitor

Aquiles que respeito pelo rei nutria

Embrulhou-o numa tuacutenica qual presente

A ser ofertado a Troacuteia ao raiar do dia

III

Cearam juntos e entatildeo admiraram a

Beleza um do outro como o fariam amantes ndash

Aquiles qual um deus Priacuteamo ainda belo

E pleno de prosa ele que suspirara antes

IV

ldquoFaccedilo o que devo posto de joelhos me humilho

Beijo a matildeo de Aquiles que aniquilou meu filhordquo

(Traduccedilatildeo Marcelo Taacutepia)

Nota do trad ldquoCeasefirerdquo foi escrito segundo o autor quando ldquose rezava em seu paiacutes por

um cessar-fogo do Irardquo

  • DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUCcedilAtildeO DA EacutePICA HOMEacuteRICA COMO PARADIGMAS METODOLOacuteGICOSDE RECRIACcedilAtildeO POEacuteTICA
  • Resumo
  • Abstract
  • Sumaacuterio
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo I
    • 1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica
      • A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica
      • B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade
        • B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia
        • B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica
        • B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo
          • B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo
            • B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees
            • B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise
              • Capiacutetulo II
                • A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudoapresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo
                  • A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
                  • A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
                  • A3 Haroldo de Campos
                    • B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasilum trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais
                    • C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Camposa traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica
                      • C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo
                      • C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos
                      • C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura
                      • C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada
                          • Capiacutetulo III
                            • A Vozes para Homero
                              • A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade
                              • A2 Iliacuteada fragmentos
                              • A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem
                              • A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise
                                  • Capiacutetulo IV
                                    • A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio o hexacircmetro em portuguecircs
                                      • A 1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio
                                          • Conclusatildeo
                                          • Bibliografia
                                          • APEcircNDICES
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