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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Miriam do Prado Giacchetto Maia Nomura
Os relatos de Daniel Kidder e a polmica religiosa brasileira na
primeira metade do sculo XIX
Dissertao apresentada ao Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social. Verso Corrigida
Orientador: Prof. Dr. Flavio de Campos
So Paulo
2011
2
Osny e Marina
Douglas e Maria Isabel
3
ndice
Resumo .............................................................................................................. 4
Abstract .............................................................................................................. 4
Agradecimentos ................................................................................................. 5
Introduo .......................................................................................................... 6
Captulo 1 A construo do Estado brasileiro .............................................. 10
1.1) O Estado e o direito do Padroado.......................................................... 19
Captulo 2 Viagens e viajantes: Daniel Parish Kidder .................................. 32
2.1) Kidder e as tendncias religiosas do sculo XIX ...................................... 37
2.2) A misso de Daniel Kidder ....................................................................... 43
2.3) Kidder e as prticas catlicas ................................................................... 52
Captulo 3 A polmica religiosa ................................................................... 65
3.1) O projeto reformista de Diogo Antnio Feij ............................................. 70
3.2) Daniel Kidder e a questo da abolio do celibato ................................... 85
3.3) Os ideais reformistas de Kidder ................................................................ 97
Concluso ..................................................................................................... 114
Anexo ............................................................................................................ 117
Referncias ................................................................................................... 118
4
Resumo
A construo do Estado brasileiro na primeira metade do sculo XIX foi um
momento de debates polticos intensos em torno dos diversos projetos para a
nao fundados no iderio liberal. A Igreja Catlica, unida ao Estado sob o
regime do Padroado Rgio e ocupando uma posio central durante todo o
perodo colonial, sofrer forte ataque de parte dos membros do clero, entre os
quais se destaca o padre Diogo Antnio Feij, que defendia o regime regalista,
desencadeando uma crise entre a Igreja brasileira e a Igreja de Roma. Estes
conflitos perpassam a obra do viajante Daniel Parish Kidder que viveu no Brasil
entre 1837 e 1840, a servio da Sociedade Bblica dos Estados Unidos,
procurando difundir seus princpios religiosos de acordo com os padres da
modernidade.
Palavras-chave: padroado, relatos de viagem, misses protestantes, Igreja
Catlica, Estado moderno.
Abstract
The Brazilian States construction in the first half of 19th century was a moment
of intense political debates around various projects for the nation based on
liberal ideas. The Catholic Church united with the State under the Royal
Patronage holding a central position during the entire Colonial Period would
suffer a strong attack from some of the clergys members which stands out
Father Diogo Antnio Feij in defense of regalist regime triggering a crisis
between Brazilian Church and Roman Church. These conflicts pervade the
works of Daniel Kidder who lived in Brazil from 1837 to 1840, serving the
American Bible Society in order to spread his religious principals according
modernity standards.
Keywords: patronage, travel writing, protestant missions, Catholic Church,
modern State.
5
Agradecimentos
Devo imensa gratido ao professor Dr. Flavio de Campos por ter me
dado a oportunidade de realizar este trabalho e confiar que eu seria capaz de
faz-lo. Durante esta rdua tarefa, pude sempre contar com o seu apoio, sua
franqueza e coerncia. Suas orientaes e erudio foram primordiais para que
este estudo chegasse a um termo.
Agradeo tambm a professora Dra. Maria Fernanda Lombardi pelas
crticas, sugestes e consideraes que foram fundamentais para o resultado
final deste trabalho. Contribuio muito importante foi o curso de Brasil
Independente I da professora Dra. Miriam Dolhnikoff, a quem agradeo
tambm as sugestes para o primeiro captulo.
No setor de ps-graduao em Histria da Universidade de So Paulo,
agradeo ao Nelson e ao Osvaldo pela ajuda e ateno.
Mariane de Souza Barbosa agradeo as sugestes quanto s
tradues. Fernanda Zambon Nunes, Leonardo Alves, Elisngela Sanches,
Catia Benedito agradeo o auxlio. A todos os colegas da EMEF Jos Ferraz de
Campos agradeo o incentivo.
meus pais, Osny e Marina, agradeo pelo apoio durante este perodo,
pelos bons conselhos, por todo auxlio que me prestaram, principalmente nos
cuidados com minha filha e pela dedicao de toda uma vida. De igual modo
minhas irms Andra e Sara e cunhados Fbio e Thiago, agradeo a ajuda.
Ana Paula e Leonardo tambm expresso minha gratido. Alessandra, Joo
Felipe e Marly agradeo dedicao.
Este trabalho no teria se realizado sem o apoio de Douglas Nomura,
meu marido, que ao longo destes trs anos acompanhou cada etapa deste
curso, sempre com palavras de incentivo e fora. Sua pacincia, compreenso
e amor foram essenciais para que eu pudesse superar as dificuldades.
Agradeo sua leitura e sugestes. Dedico a ele e a Maria Isabel, nossa filha,
no somente estas linhas, mas todo meu amor.
6
Introduo
A medida que uma nao assume um estado social democrtico e que vemos as sociedades inclinarem-se para a repblica, torna-se cada vez mais perigoso unir a religio a autoridade, pois se aproxima o tempo em que o poder vai passar de mo em mo, em que as teorias polticas se sucedero, em que os homens, as leis, as prprias constituies desaparecero ou se modificaro a cada dia e isso no durante algum tempo, mas sem cessar.
Alexis de Tocqueville1
Assim expressava-se Alexis de Tocqueville sobre a aliana entre o
Estado e a Igreja. Indagava o que seria da religio se no fosse colocada fora
do mundo poltico. Sujeita ao fluxo e refluxo das opinies humanas, no meio
das lutas de partidos, onde estaria o respeito que a ela era devido? 2 Tornar-
se-ia efmera e frgil, igualando-se s instituies dos homens. Na busca por
um destino mais honroso para a religio, o sistema democrtico norte-
americano tema central das reflexes deste autor floresceu num Estado
laico.
Na sua investigao sobre a democracia, considerada o caminho
irreversvel aberto pela Revoluo Francesa para a humanidade, a religio
ocuparia um lugar imprescindvel para a organizao de uma sociedade com
instituies livres, constituindo a base moral dos indivduos a partir dos dogmas
do cristianismo. Essa idia no significava a defesa da Igreja detentora oficial
do monoplio da moralidade que imporia padres de conduta aos homens
como nos regimes absolutistas. Tocqueville defende um cristianismo
compreendido luz da ilustrao, no submetido ao poder institucional ou
autoridade, mas capaz de estabelecer-se no seio da prpria sociedade,
segundo os imperativos racionais da tica.
Essas idias eram recorrentes durante o sculo XIX. No Brasil, desde a
chegada dos portugueses, Estado e Igreja permaneceram unidos pela
1 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na Amrica: leis e costumes; de certas leis e
costumes polticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrtico, v.1. 2 edio. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 351. 2 Ibidem, p. 351.
7
instituio do Padroado, como elementos que identificavam os sditos da
Coroa. A partir da Independncia e durante o perodo de formao da nao
sob a gide da ideologia liberal, o pacto entre bispos e reis sofrer alguns
revezes, seguindo uma forte tendncia regalista que submetia a Igreja
autoridade do Estado.
Os diversos projetos para o Estado brasileiro, inspirados nas instituies
europias e norte-americanas, produziram modelos que necessitavam ser
alcanados por nossa sociedade, recm libertada do jugo colonial, de acordo
com os padres modernos. Seus autores, na tentativa de atingir objetivos
traados para a nao que ento se constitua, apontaram as inadequaes e
entraves que de algum modo poderiam impedir que fossem estabelecidos.
Assim, o aspecto religioso figurava como uma dimenso fundamental das
reformas sociais.
Este estudo tem como objetivo investigar alguns dos projetos e dos
conflitos que marcaram o campo religioso brasileiro na primeira metade do
sculo XIX, na perspectiva de dois representantes religiosos: Daniel Parish
Kidder, missionrio norte-americano e autor de importantes relatos sobre o
Brasil, e padre Diogo Antnio Feij, figura de grande destaque do Imprio
durante o perodo de consolidao de nossa Independncia.
No mbito interno, o catolicismo matriz ideolgica fundamental do
projeto colonizador e religio oficial do Imprio de acordo com a Constituio
de 1824 foi deslocado de sua posio tradicional, tornando-se alvo de
disputas entre os representantes do Imprio brasileiro, os quais buscavam
definir o direcionamento dado a esta esfera de poder a partir da nova ordem
que ento se configurava. A Igreja Catlica vinha sendo duramente criticada
por movimentos inspirados nos ideais da ilustrao, como smbolo do antigo
regime absolutista em oposio nova ordem liberal e constitucional que
definia a religio como um instrumento do Estado e um direito fundamental, a
partir dos Direitos Humanos, numa perspectiva mais individualista da relao
entre o homem e Deus.
Alm disso, a consolidao dos Estados Unidos como pas defensor dos
interesses do continente americano, guardio da liberdade e protetor dos
estados recm-independentes contra as investidas da Santa Aliana, firmou o
incio de sua hegemonia e de sua influncia ideolgica sobre a Amrica,
8
colocando, na perspectiva dos protagonistas que viviam neste perodo, em
plos opostos a cultura anglo-americana e a cultura ibrica. Do ponto de vista
simblico, o Brasil passou a integrar a rota das misses protestantes, levadas a
cabo pela Inglaterra e Estados Unidos.
Essas concepes perpassam os relatos de Daniel Parish Kidder,
viajante norte-americano que viveu no Brasil no final de 1830 com o objetivo de
difundir os princpios protestantes atravs da divulgao de Bblias na lngua
portuguesa. Enquanto missionrio e representante da Igreja Metodista, a
preocupao com o universo simblico dos brasileiros um dos traos mais
marcantes de sua obra. Nessa perspectiva podemos compreender sua
aproximao com o padre Diogo Antnio Feij, de quem se confessa
admirador, tendo traduzido sua proposta de abolio do celibato clerical para o
ingls e tornado-se um divulgador de suas idias.
Nossa discusso, no primeiro captulo, partir de uma anlise
historiogrfica sobre obras que tratam da construo do Estado brasileiro sob a
influncia das doutrinas liberais, atestando que estes princpios no se
restringiram apenas as elites letradas, mas sua abrangncia estendeu-se aos
diversos setores sociais, devidamente adaptados s diferentes realidades.
No mbito religioso, a Igreja Catlica, ainda sob a gide do regime do
Padroado Rgio poltica de evangelizao que marcou profundamente a
formao da instituio eclesistica catlica no Brasil , sofreria grandes abalos
em decorrncia das transformaes que marcaram este perodo de formao
da nao, dando origem a novas concepes sobre o fenmeno religioso
inspiradas nas idias ilustradas e que estavam em pauta nos projetos polticos
para o pas.
As tenses da surgidas permeiam a leitura de Daniel Kidder sobre o
universo simblico dos brasileiros entre os anos de 1837-1840. Este o tema
do segundo captulo. Imbudo dos valores puritanos, da crena na
superioridade de sua cultura, no progresso da civilizao, nas instituies
liberais e na importncia dos princpios cristos na manuteno da ordem
social, compreende que a sociedade brasileira, do ponto de vista religioso, vivia
um momento de crise e necessitava de reformas que restaurassem a
verdadeira f. Fundamentado nos padres protestantes defendia uma relao
mais individual com o sagrado. Suas idias inserem-se numa nova perspectiva
9
religiosa, surgida na modernidade, a qual representava. Seguindo essa
tendncia, podemos compreender o trabalho da Sociedade Bblica Americana
de distribuio de Bblias na lngua verncula ao redor do mundo, principal
propsito de sua vinda ao Brasil.
A negao de sua proposta levada a Assemblia Legislativa de So
Paulo em 1839 para a distribuio de exemplares do livro cristo nas escolas
primrias pblicas, aps a anuncia de alguns de seus membros, conforme
retratada nos relatos, demonstra as divergncias que havia entre os lderes
polticos e os prprios dirigentes catlicos quanto aos rumos da religio
brasileira, ao mesmo tempo em que revela a preponderncia da defesa do
catolicismo como religio oficial e como um fator de unidade para o Imprio,
no obstante essa perspectiva no fosse consensual.
Diogo Antnio Feij ocupa lugar destacado entre os anos 20 e 30 do
sculo XIX. Importante figura poltica desde a Independncia do pas,
desempenhando as funes mais elevadas durante o Perodo Regencial, alm
de representante de reformas federalistas no mbito poltico, era defensor de
uma Igreja independente de Roma, sujeita ao Estado constitucional, com
normas disciplinares estabelecidas dentro do pas. Essas questes e sua
proposta de abolio do celibato clerical de 1828 sero tema do terceiro
captulo, sendo entendidas como interface dos confrontos e dos dilemas do
catolicismo brasileiro no perodo.
A oposio religio convencional realizada por padre Feij despertou o
interesse do jovem Kidder, confesso admirador de suas idias. Enquanto
missionrio o viajante via essas divergncias como uma brecha para que seus
objetivos evangelsticos fossem alcanados. Por isso, tomou conhecimento do
debate religioso, posicionando-se em favor dos liberais catlicos que
almejavam realizar uma reforma eclesistica, restringindo a influncia da Igreja
romana no pas.
10
Captulo 1
A construo do Estado brasileiro
A primeira metade do sculo XIX caracteriza-se pelo processo de
construo do Estado brasileiro como nao independente, buscando alcanar
posio junto aos pases desenvolvidos Europa e Estados Unidos , a partir
das novas doutrinas fundadas na soberania do povo. Esta era uma rdua tarefa
tendo em vista os mais de trezentos anos de colonizao portuguesa. Este
processo tem suas peculiaridades que o tornam um caso sui generis na histria
dos povos independentes da Amrica Latina.
A manuteno da unidade territorial do Imprio do Brasil uma das
questes de maior destaque nas obras historiogrficas sobre este perodo.
Entretanto, se ocorre uma convergncia em relao ao tema, h divergncias
sobre os caminhos que conduziram integridade do pas.
Ilmar Rohloff de Mattos3 destaca um aspecto que , sem dvida, um
trao particular da independncia brasileira: a vinda da Corte Portuguesa para
o Rio de Janeiro. O projeto modernizador com base no Reformismo Ilustrado,
cujo centro era a cidade do Rio de Janeiro, sede do governo portugus na
Amrica, defendido por D. Rodrigo Coutinho, entre outros, sara vencedor.4
As transformaes que esta cidade sofreu durante este perodo foram
essenciais para a importncia que o centro-sul adquiriu, ocasionando uma
inverso do fluxo tradicional a partir do porto 5, atravs da abertura de
estradas que facilitariam o escoamento da produo interiorana para a capital.
Assim se delineara a hegemonia da cidade do Rio de Janeiro, como importante
centro poltico, comercial e cultural do Imprio.
No entanto, conforme demonstra Maria Odila Leite da Silva Dias a
manuteno da integridade do Imprio foi uma conquista que ocorreu a partir
3 MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquerema. So Paulo: HUCITEC; Braslia, DF: INL, 1987, p.
3,4. 4 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorizao da metrpole e outros estudos. So Paulo:
Alameda, 2005. 5 Ibidem, p. 51.
11
de uma imposio da Corte no Rio de Janeiro, e que se deu, segundo a autora
a duras penas pela centralizao do poder e conseguida pelos portugueses
enraizados do centro-sul, que empreenderam a difcil tarefa de reorganizar o
novo Estado.6 Evaldo Cabral de Mello lembra, de igual modo que o emprego da
fora bruta foi fundamental para garantir a adeso das provncias ao Imprio.7
Outro fator que segundo Maria Odila teria contribudo para a unidade
o sentimento de insegurana que predominava devido s manifestaes
contrrias ao projeto de nao defendido pelos grupos hegemnicos, tambm
pela preeminncia do Rio de Janeiro como centro do Imprio e ainda pelo
chamado haitianismo o temor de uma rebelio escrava semelhana da
que ocorrera no Haiti e que ameaava a segurana da classe de senhores de
escravos. Desse modo, a Corte e o poder real atraram os grupos que estavam
temerosos quanto manuteno da ordem do Estado.
Miriam Dolhnikoff demonstra que havia foras que levavam disperso,
como a ausncia de vnculos fortes entre as diferentes regies do Imprio, e
ainda, interesses comuns que criavam laos mesmo que tnues como a
manuteno da ordem escravista e a posio adquirida pela colnia a partir da
vinda da Corte portuguesa. Para ela, por isso, a histria da construo do
Estado brasileiro na primeira metade do sculo XIX foi histria da tenso
entre unidade e autonomia.8
Outra questo que objeto de anlise nos diversos estudos a da
atuao das elites no exerccio do poder e na organizao do aparato poltico-
institucional, promovendo a consolidao de um governo que pudesse exercer
hegemonia sobre as demais regies, definindo seu papel nesse momento.
Ilmar os identifica como os dirigentes saquaremas tanto a alta
burocracia estatal como os proprietrios rurais, que por meio de sua ao
exerceram uma direo intelectual e moral. Segundo o autor, este grupo
desempenhou uma funo preponderante para a unidade do Imprio,
6 Ibidem, p. 17,18.
7 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independncia: o federalismo pernambucano de 1817 a
1824. So Paulo: Editora 34, 2004, p. 12. 8 DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do sculo XIX. So
Paulo: Globo, 2005, p. 11.
12
orientando suas aes de acordo com aos princpios da Ordem e Civilizao
defendidos pelos dirigentes imperiais, se constituram diante dos incentivos
econmicos da poltica joanina para o Rio de Janeiro promovendo o cultivo dos
primeiros cafezais, importante produto de exportao, cujos proprietrios
integraram a classe econmica dominante poucas dcadas depois.
Jos Murilo de Carvalho tambm ressalta a ao da elite dirigente como
crucial na construo do Estado. No entanto, ao contrrio de Ilmar, trata-se de
uma elite poltica que se diferencia da elite econmica.9 Aponta que a
preservao da unidade, a continuidade do sistema monrquico e a construo
de um governo civil foram possveis graas ao tipo de elite que no Brasil foi
responsvel pela implementao de um determinado modelo poltico para o
pas. Esta elite foi constituda pela metrpole portuguesa e se caracterizava
pela homogeneidade ideolgica e de treinamento.10 Segundo ele, quanto mais
homogneo o grupo dirigente, mais estvel o processo de formao do
Estado.11
No caso brasileiro, esta homogeneidade foi adquirida atravs de uma
formao universitria comum: o curso de direito da Universidade de Coimbra e
as Universidades de Direito brasileiras. Alm disso, havia uma carreira poltica
comum, comeando pela magistratura, depois circulavam em vrios cargos
polticos em diversas provncias para ganhar experincia. O resultado deste
percurso segundo Carvalho, um efeito unificador poderoso. 12 que ao fim e
ao cabo culminaria numa diminuio dos conflitos intra-elite.
Maria Odila afirma que a Independncia, em 1822, no coincidiu com a
consolidao da unidade nacional, concluda em 1840-50, e tambm no foi
um movimento nacionalista, uma reao de brasileiros contra portugueses.13 A
identidade nacional no havia se constitudo. Por isso, os conflitos internos e a
heterogeneidade regional e racial so evidentes para aqueles que viveram este
momento. Deste modo s a ao de um grupo com um projeto conservador, de
9 CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial. Rio de Janeiro:
Campus, 1980, p.19. 10
Ibidem, p. 21. 11
Ibidem, p.29. 12
Ibidem, p. 96. 13
DIAS, Maria Odila Leite da Silva, op. cit., p. 7,8.
13
um governo centralizado e forte seria capaz de se sobrepor aos diversos
interesses provinciais que tendiam para a fragmentao e manter a unidade
nacional.
A idia de um grupo dirigente que detm o poder e impem modelos
para a organizao do Estado, cabendo a uma maioria, membros deste mesmo
Estado, apenas a sujeio reverencial tem sido desconstruda por pesquisas
mais recentes que demonstram que esta viso no corresponde ao governo
representativo que se erigiu nos primeiros anos do Imprio.
Evaldo Cabral de Mello defende que seria um reducionismo pensar que
a Independncia e a construo de um Estado unitrio teria sido obra de
alguns indivduos bem dotados de enorme viso poltica geralmente nascidos
no tringulo Rio-So Paulo-Minas.14 Este autor ressalta o protagonismo de
outras regies, em especial de Pernambuco.
Nesta perspectiva, Miriam Dolhnikoff defende que a unidade do Imprio
do Brasil no se deveu hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais
provncias, a partir de um governo forte que aglutinasse os conflitos regionais,
mas resultou da implementao de um arranjo institucional por meio do qual
essas elites se acomodaram 15, garantindo sua participao nas decises
polticas.
Desse modo, a autora ressalta o papel decisivo que as elites provinciais
desempenharam na formao do Estado, constituindo-se tambm como elites
polticas. Assim, o arranjo de tipo federativo caracterizado por uma relao
entre o centro e as partes, representadas no Legislativo. Portanto, h
centralizao governo central e tambm descentralizao municpios.
Considerando o momento seguinte a independncia, em 1830, parte da
historiografia defende que a vitria conservadora nos primeiros anos da
independncia, demonstrada por diversos estudos sobre esse perodo, sofreria
uma inverso aps a abdicao de D. Pedro I em 1831. A partir da sada do
14
MELLO, Evaldo Cabral de, op. cit., p.11. 15
DOLHNIKOFF, Miriam, op. cit., p.14.
14
monarca e do fim de um governo autoritrio, inicia-se um perodo da tomada de
poder pelos liberais.
O Perodo Regencial definido, na maior parte das anlises, como um
momento nico, quando o projeto liberal aplicado de fato. Na Regncia surge
um novo modelo poltico. Conforme afirma Srgio Buarque de Holanda, os
brasileiros, afinal, haviam chegado ao poder.16
Para Jos Murilo as reformas constitucionais da dcada de 30 tinham
por objetivo eliminar os resduos absolutistas da Constituio 17, com base
nos princpios federalistas norte-americano. O Ato Adicional de 1834 aprovou
as Assemblias provinciais, a diviso de rendas e a eliminao do conselho de
Estado. Porm, as rebelies que eclodiram durante este perodo foram
determinantes para a reao conservadora movimento conhecido como
Regresso da dcada de 40.
Maria Odila afirma que a gerao da dcada de 30, diferentemente da
gerao da independncia, era mais republicana e entusiasta das instituies
norte-americanas.18 Entretanto ressalta que embora fundamentadas nos ideais
liberais estas reformas no resultaram numa ampliao da participao poltica,
que ficaram restritas s classes dominantes nas suas respectivas localidades.
A autora fala de uma intelligentsia urbana incipiente, de origem nativa, que
inspirada nos princpios estadunidenses, tentava adquirir poder poltico,
representando os interesses dos novos comerciantes. O ncleo de liderana
poltica da Corte permanecer at ento predominantemente em mos de
funcionrios e burocratas formados em Coimbra.19 Assim, estas reformas
assumiram um carter arcaico e ambguo, dando origem ao mandonismo local
e de outro lado culminariam na centralizao administrativa.
Jos Murilo de Carvalho defende que tanto liberais quanto
conservadores eram avessos a uma mudana radical e os abalos polticos e
16
HOLANDA, Srgio Buarque de. Brasil-Estados Unidos, 1831/1889, in: HOLANDA, S.B. de (org.). Histria Geral da civilizao Brasileira. Declnio e queda do Imprio. 4 ed, .t.2, v.4, SP: Difel, 1971, p. 181. 17
CARVALHO, Jos Murilo de. Pontos e bordados: escritos de histria poltica. BH: Editora da UFMG, 1999, p. 164. 18
DIAS, Maria Odila Leite da Silva, op. cit., p.141. 19
Ibidem, p. 142.
15
sociais que ameaaram a unidade do pas durante o perodo regencial foram
experincias marcantes que os faziam ver com cautela projetos mais
audaciosos.
Em contrapartida, Miriam Dolhnikoff compreende o processo de
construo do Estado brasileiro como algo contnuo, do ponto de vista que o
projeto federalista no foi extirpado pelo modelo de Estado centralizado,
liderado por uma elite de princpios conservadores. Desde o momento da
Independncia havia um enfrentamento dos partidrios destas idias. A opo
pelo federalismo estava delineada tanto em 1824 quanto nas reformas
constitucionais da dcada de 30 e 40.
Os federalistas brasileiros tomavam como referncia o modelo norte-
americano, mas devidamente adaptado realidade do pas, reconhecidamente
diferente. Em primeiro lugar, a defesa da autonomia provincial e um regime
representativo, mas garantindo a participao apenas de grupos dominantes.
Assim, podemos dizer que este federalismo de tipo norte-americano estava
devidamente expurgado de seu contedo democrtico e de sua natureza
republicana.20 Em segundo lugar, enquanto o federalismo norte-americano, em
substituio a Confederao, tinha o objetivo de fortalecer o poder central, no
Brasil, estava direcionado a fortalecer o poder dos governos provinciais, aps a
outorga da Constituio de 1824, elaborada com forte tendncia centralista.
O fechamento da Assemblia Constituinte em 1824 deu incio
centralizao do Primeiro Reinado, mas j em 1826, a Cmara dos Deputados
voltou ativa e a oposio D. Pedro I se organizou. Aps a abdicao,
durante o Perodo Regencial, os projetos federalistas foram colocados em
prtica, nas reformas liberais adotadas no Cdigo do Processo Criminal de
1832, que na viso de Thomas Flory, a mais alta expresso da filosofia
judicial produzida na dcada liberal, garantindo a ampliao dos poderes do
juiz de paz reafirmava o compromisso liberal para uma justia local
independente21 e no Ato Adicional de 1834, tributrio do Cdigo supracitado. 22
20
Ibidem, p. 15. 21
FLORY, Thomas. Judge and jury in Imperial Brazil (1808-1871): social control and political stability in the new state. Austin: University of Texas Press, 1981, p.64. 22
DOLHNIKOFF, M., op. cit., p. 86.
16
Conforme Miriam Dolhnikoff descreve no Ato Adicional as provncias
representariam governos autnomos e atuariam unilateralmente com poderes
irrevogveis pelo governo central. A autonomia provincial incidia sobre a
tributao, as decises referentes a empregos provinciais e municipais, obras
pblicas, fora policial, de modo que os governos das provncias dispunham de
capacidade financeira para autonomamente decidir sobre investimentos (...). 23
Esta autonomia estava atrelada ao governo central, preservando a unidade
territorial. Assim dava-se o funcionamento do arranjo institucional.
Dolhnikoff argumenta que a reviso conservadora da dcada de 40 no
alterou a participao das elites provinciais no governo central, mas apenas
promoveu a centralizao do judicirio. O que se viu foi as elites provinciais se
constituram como elites polticas comprometidas com o novo Estado, evitando
assim a fragmentao.24 Portanto, nesse momento as reformas polticas
federalistas foram efetivadas.
Assim, h outros atores que participam da construo do Estado
brasileiro, que no mera dominao de uma minoria localizada do centro-sul
sob uma maioria dispersa pelo vasto territrio. A questo da existncia ou no
de um governo representativo e da demarcao de seus limites numa
sociedade escravista e de forte herana colonial, central historiografia que
trata deste perodo.
Srgio Buarque de Holanda afirma que grande parte da populao
brasileira estava margem do processo poltico e a independncia no
resultou em mudanas significativas para a populao escrava e para a
populao livre pobre. Havia um descompasso entre as idias revolucionrias
que chegavam e a condies sociais de sua efetiva aplicao, por isso, ainda
que eliminado o absolutismo e oficializada a independncia, parte da
organizao estabelecida durante o processo de colonizao no foi alterada e
assim sendo, a democracia s haveria de ser por fora aparncia v.25
23
Ibidem, p. 18. 24
Ibidem, p. 19. 25
HOLANDA, Srgio Buarque de. A democracia improvisada. In: HOLANDA, S.B. de. (org.). Histria Geral da Civilizao brasileira do Imprio Repblica. 4 ed., tomo II, 5 vol., SP, Difel, 1985, p. 80.
17
No sistema constitucional brasileiro, alm dos trs poderes foi
acrescentado um quarto poder, que originalmente formulado por Benjamin
Constant, seria um poder neutro ou real, cuja funo seria mediar, tutelar,
moderar, distinguindo-se do poder executivo. No entanto, no Brasil, Holanda
aponta que na Constituio de 24 este poder colocado numa posio central,
como a chave de toda a organizao 26, fortalecendo, portanto, o poder
pessoal do imperador e o executivo em detrimento do poder legislativo.
Ilmar Mattos fala tambm de uma interpretao particular dada ao quarto
poder, num jogo de semelhanas que a condio de monarquia hereditria
propiciava aproximando a Constituio do Brasil aos princpios constitucionais
de pases como Inglaterra e Frana e de diferenas, j que as instituies
brasileiras no tinham o grau de perfeio das naes europias, fortalecendo
a figura do monarca, titular do poder moderador.27
Predomina a idia de que o governo imperial, embora constitudo a partir
de referenciais liberais, no os colocou em prtica de modo efetivo. Jos Murilo
fala de uma engenhosa combinao de elementos importados inspirada no
constitucionalismo ingls, da poltica centralista de Portugal e Frana e das
instituies norte-americanas como a justia de paz, o jri, e uma limitada
descentralizao provincial. Porm s ao final do Imprio a formao da nao
e a participao da populao foram discutidas.28
Pesquisas recentes confirmam a diversidade de projetos para a nao
em pauta no debate poltico durante a construo do Estado Nacional.
Considerando o campo das idias, o liberalismo doutrina hegemnica da
primeira metade do sculo XIX, interpretado pelos diversos grupos sociais,
adaptando-se a diferentes realidades e interesses. Miriam Dolhnikoff lembra
que o termo liberal denominava grupos heterogneos que se dividiam quanto
s solues que deveriam ser aplicadas ao estado em construo.
26
Ibidem, p. 70. 27
MATTOS, Ilmar R. de. La experiencia del Imprio del Brasil. In: ANNINO, Antonio e GUERRA, Franois-Xavier (coord.). Inventando La nacin: Iberoamrica siglo XIX. Mxico: Fondo de cultura econmica, 1994. 28
CARVLHO, Jos Murilo de, op. cit., p. 90,91.
18
As revoltas que ocorreram durante este perodo demonstram que o
liberalismo foi apropriado inclusive homens livres pobres, libertos que
integravam as fileiras dos revoltosos e de escravos, combinados com
elementos da cultura popular, formando uma idia prpria de cidadania, ainda
que esta vivncia no se enquadrasse nas expectativas das elites polticas 29,
conforme apontado por Mnica Dantas.
Desse modo, a autora prope a superao da viso que esta
participao na construo da nao tenha se restringido apenas a uma defesa
de vivncias deslocadas diante das transformaes do pas de acordo com os
princpios da sociedade burguesa, passando assim a enxerg-las como parte
da sociedade no interior da qual o Estado estava sendo construdo e dentro da
qual estes homens se mobilizaram e agiram tendo em vista valores e
instrumentos prprios de insero social, mas tambm se apropriando de
valores e instrumentos novos que estavam sendo constitudos a partir da
organizao de um regime que se queria monrquico, constitucional e
representativo.30
Estes grupos posicionaram-se tambm em relao Igreja, contestando
ou defendendo a ordem institucional estabelecida, demonstrando que o
catolicismo era um elemento importante nas experincias cotidianas desta
populao.
Na historiografia sobre a construo do Estado Imperial, o nome do
padre Diogo Antnio Feij surge como um dos maiores lderes liberais do
Imprio, assumindo o maior cargo do executivo eleito para a Regncia Una, em
1835, tendo antes ocupado o cargo de deputado, ministro da justia e senador.
Feij liderou muitos projetos de reforma, entre os quais, de mudanas
significativas na Igreja Catlica brasileira sob o regime do Padroado. Sua
atuao demonstra que a organizao eclesistica no passou inclume diante
das transformaes que incidiam sobre as estruturas polticas do pas.
29
DANTAS, Monica Duarte. Eplogo: homens livres pobres e libertos e o aprendizado da poltica no Imprio, in: DANTAS, Monica (org.). Revoltas, motins, revolues. Homens livres pobres no Brasil do sculo XIX. So Paulo, Alameda, no prelo, p. 4 30
Ibidem, p. 7.
19
1.1) O Estado e o direito do Padroado
A relao entre a Igreja e o Estado um tema presente em diversos
estudos e debates que revelam sua difcil conciliao. Durante o perodo de
construo da nao, na primeira metade do sculo XIX, s transformaes do
pas corresponderam mudanas em cada uma destas instncias de poder,
delineando um novo jogo de foras.
Estas transformaes surgiram a partir das idias da ilustrao em sua
forte oposio aos privilgios do clero e opresso religiosa que havia
subsistido por sculos. A constituio dos Estados Unidos (1787) e da Frana
(1791) pautavam-se pela idia de liberdade religiosa, provocando uma ruptura
com a antiga identificao entre nao, nacionalidade e religio e fazendo
surgir a concepo de estado laico.
No Brasil a Constituio de 1824 no trouxe grandes alteraes quanto
identidade religiosa do pas. O catolicismo permanecia com o status de
religio oficial do Imprio. Porm, permitiu-se uma abertura a que outros credos
pudessem ser praticados, ainda que de modo bastante discreto, constituindo
um ambiente de tolerncia religiosa.31 De contratual, a liberdade de culto
tornou-se constitucional.32 No entanto, o prncipe herdeiro concentrava os dois
poderes temporal e espiritual sob sujeio, exercendo o direito de
padroado.
O padroado foi estabelecido ainda no perodo da Reconquista, em
Portugal, em 15 de maro de 1319, a partir da fundao da Ordem de Cristo.
Juntas, as Ordens de Cristo, Santiago e Aviz foram reconhecidas por seu labor
em defesa da f crist. Porm este direito se consolidou no perodo das
grandes navegaes, quando a Ordem de Cristo passou a exercer uma ao
31
Segundo o artigo 5 A Religio Cathlica Apostlica Romana continuar a ser a Religio do
Imprio. Todas as outras Religies sero permitidas com seu culto domstico, ou particular em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo. BRASIL. Constituio
(1824). Disponvel em:
. 32
FONSECA, Alexandre Brasil de Carvalho. Secularizao, pluralismo religioso e democracia no Brasil: um estudo sobe evanglicos nos anos 90. Tese e Doutorado. Departamento de Sociologia. FFLCH, USP, 2002, p. 43.
20
missionria nos territrios descobertos e a Igreja de Roma lhe concedeu uma
srie de direitos sobre as terras conquistadas.33 Conforme aponta Patrcia
Ferreira dos Santos houve uma convergncia de sucessivos papas em
conceder privilgios aos reis catlicos, com o objetivo de torn-los aliados da
Igreja na luta contra heresias e ameaa protestante.34
A Bula Inter Cetera de Calixto III de 13 de maro de 1456, confirmando a
de Nicolau V, de 8 de janeiro de 1554, concedeu ao rei Afonso e ao infante D.
Henrique a jurisdio espiritual das terras descobertas Ordem de Cristo e a
Bula Aeterni Regis do Papa Xisto IV, de 21 de junho de 1481, confirmando as
dos papas Nicolau V e Calixto III, concederam a D. Affonso, sobrinho de D.
Henrique, a Ordem de Cristo a administrao espiritual de todas as terras do
Ultramar, descobertas e por descobrir.35 Estas so apenas duas das 69 que
dizem respeito ao domnio conferido aos reis catlicos, representantes
mximos da Ordem de Cristo.36
(...) e a dita Bula e ao nela contido em favor duma estabilidade mais firme daquelas coisas, e bem assim conceder perpetuamente sobredita Milcia e a essa Ordem espiritual e toda jurisdio ordinria, tanto nas referidas ilhas, terras e lugares adquiridos, como nos outros que para o futuro nas regies dos ditos Sarracenos, o sejam pelos mesmos Rei e Infante, ou pelo sucessor destes. (...) 37
A jurisdio concedida aos monarcas referia-se tanto a autoridade
espiritual quanto autoridade secular e era um direito hereditrio, sendo,
33
Entre as obras que consultamos citamos: SALGADO, Graa (org). Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. 2 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (publicaes Histricas; AZEVEDO, Thales de. Igreja e estado em tenso e crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia. So Paulo: tica, 1978; HOORNAERT, Eduardo. Histria da Igreja no Brasil, 1 v. Petrpolis: Vozes, 1983. 34
SANTOS, Patrcia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). Dissertao de mestrado. Departamento de Histria. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. USP, 2007. 35
SOARES, Jos Carlos de Macedo. Fronteiras do Regime Colonial. RJ: Jos Olympio editora, 1939, p. 40-56. 36
Ibidem. Desde o tempo do infante D. Henrique, a chefia da Ordem era conferida a um membro da famlia real. BOXER, Charles. O imprio martimo portugus: 1415-1825. Cia da Letras, p.243. 37
SOARES, Jos Carlos de Macedo Soares, op. cit., p. 41.
21
portanto, a origem do comando do rei sobre a Igreja. Charles R. Boxer num
estudo sobre o direito de padroado, enumera cada uma das obrigaes do
monarca:
a) a erigir ou permitir a construo de todas as catedrais, igrejas, mosteiros, conventos e erimitrios dentro da esfera dos respectivos patronatos; b) a apresentar a Santa S uma curta lista dos candidatos mais convenientes para todos os arcebispados, bispados e abadias coloniais e para as dignidades e funes eclesisticas menores, aos bispos respectivos; c) a administrar as jurisdies e receitas eclesisticas e a rejeitar as bulas e breves papais que no fossem aprovados pela respectiva chancelaria da Coroa. 38
Estas determinaes colocavam os membros do clero sob as ordens do
rei, de modo que, um clrigo s poderia exercer o cargo com a aprovao da
Coroa, dela dependendo para seu sustento. Entre a Igreja de Roma e a Igreja
das colnias ibricas se coloca a instituio monrquica, representada pelo rei.
A historiografia que trata deste tema destaca que a Igreja de Roma tinha
pouco interesse pelas regies mais longnquas na frica, sia e Amrica. De
acordo com Boxer, os papas da Renascena, estavam mais preocupados com
o crescimento do protestantismo e com a ameaa turca e, por isso,
concordaram em deixar nas mos dos monarcas ibricos a administrao
eclesistica das colnias e to grande nmero de almas.39 A partir do sculo
XVII reconhecia-se que estes direitos concedidos traziam inconvenientes a
autoridade papal, porm no ocorreu nenhuma modificao.
Quando da chegada dos portugueses, o Brasil ficou sob jurisdio da
Ordem de Cristo. A partir de 1514, foi criada a Diocese de Funchal na Ilha da
Madeira diocese que era responsvel por todas as terras portuguesas. Em
38
BOXER, C. A igreja e a expanso ibrica (1440-1770). Lisboa: Edies 70, 1981, p.100. 39
BOXER, C. O imprio... Op. cit., p. 243.
22
1551 foi criado o Arcebispado da Bahia40, assumindo posio relevante durante
todo o Imprio.
Foi na Bahia que, em 1707, houve o 1 Snodo Diocesano para a
promulgao das Constituies, com o objetivo de estabelecer leis diocesanas
para o bom governo do arcebispado, direo dos costumes, extirpao dos
vcios e abusos, moderao dos crimes, e reta administrao da justia (...) 41,
sob a direo de D. Sebastio Monteiro da Vide, formado em direito cannico
na Universidade de Coimbra e nomeado metropolitano do Brasil.42
Alguns autores defendem que a Constituio Sinodal do Brasil insere-se
na atuao da Igreja ps-tridentina na Amrica portuguesa, cujos decretos
teriam subsidiado sua realizao, com o objetivo de uniformizar a prtica dos
sacramentos, estabelecendo penas para as infraes cometidas por clrigos e
leigos e exigindo-se algum tipo de registro. Batismo, crisma e casamento
deveriam ser registrados em livros especiais.43
Uma das funes da Igreja era estabelecer padres de conduta e
normas que servissem de modelos para os habitantes da colnia, permitindo
um maior controle por parte da Coroa. Antnio Cames Gouveia, ao analisar os
resultados das medidas tridentinas em Portugal e os confrontos que ocorreram
a partir dela afirma que o rei preocupava-se com o enquadramento de seus
sditos e ainda, que o domnio do nmero significava o domnio do indivduo.
Controlar aqueles que nasciam, quando nasciam, quem os apadrinhava, quem
lhes concedia o nascimento, ou seja, o proco que os batizava, era essencial
(...)44 Essa funo da instituio eclesistica era ainda mais urgente
considerando a diversidade da populao da Colnia lusitana.
Assim, era fundamental uma Constituio eclesistica que,
fundamentada nas Sagradas Escrituras, da Patrstica e do Conclio Tridentino
40
TORRES-LONDOO, Fernando. A outra famlia: concubinato, igreja e escndalo na colnia. SP: Loyola, 1999, p.111. 41
AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 77. 42
Ibidem, p. 77. 43
TORRES-LONDOO, Fernando, op cit., p. 120; SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p.47. 44
GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J. (dir.). Histria de Portugal, v. IV. Lisboa: Estampa, 1993, p. 292.
23
(Trento, 1545-1563) 45, tivesse sua origem no pas, levando em considerao
as condies e hbitos dos habitantes do Brasil. Thales de Azevedo ressalta a
importncia deste cdigo, adotado por todas as dioceses que se estabeleceram
no territrio brasileiro, vigorando at 1899.46
O direito do padroado surgiu como um pacto entre a Igreja e a Coroa,
que, de acordo com vrios estudos, nunca foi ausente de conflitos. No Brasil
colonial havia desentendimentos de ordens diversas como disputas por reas
de jurisdio, o custo dos servios religiosos, alm das que envolviam a
fiscalizao rgia.47
No jogo de foras entre a instituio monrquica e a instituio
eclesistica, Antnio Hespanha destaca que a Igreja, no Antigo Regime,
ocupava uma posio privilegiada, tal qual nenhuma outra instituio nacional
como formadora das conscincias e imagens da verdade.48
A Igreja era mantida pelo Estado tanto na formao do corpo
eclesistico, quanto na construo de templos, mosteiros, como tambm na
normatizao das vivncias religiosas atravs do calendrio, dos dias santos e
nas determinaes de dias festivos tinha total proteo do Estado,
favorecendo, desse modo, sua ao.
Num outro estudo sobre o Estado Moderno, Hespanha defende que
durante o absolutismo monrquico em Portugal, a Igreja impunha limites ao
poder real, na medida em que, ao lado do direito de rei havia o direito cannico
e a vontade do monarca devia sujeitar-se s normas religiosas. O autor lembra
ainda que a Igreja tinha o poder de excomungar o rei, o que implicaria no
descumprimento do dever de obedincia dos seus sditos. Por isso, as crises
com o Papado que se multiplicavam durante os reinados de D. Joo V e D.
Jos eram politicamente to srias. 49
45
AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 78. 46
Ibidem, p. 79. 47
SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p. 15,16. 48
GOUVEIA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J., op. cit., p. 295. 49
HESPANHA, Antnio Manuel. O debate acerca do Estado Moderno. In: TERRAGUINHA, J. (coord.). A historiografia portuguesa, hoje. So Paulo: Hucitec, 1999, p. 143.
24
Sergio Buarque de Holanda, seguindo esta tendncia afirma que a Igreja
gozava de uma situao vantajosa, e que aps a Independncia, a igualdade
prescrita pelo liberalismo, condenava os foros privilegiados, no Brasil,
representados pelo clero. Estes privilgios foram mantidos aps a
independncia e foram abolidos nos anos da Regncia.50
Os limites do poder monrquico no Brasil devem ser analisados tendo
em vista as condies especficas pautadas pelo Padroado Rgio. Alguns
estudos apontam diversos casos em que os reis tornavam-se uma espcie de
super-bispos, de prelados espirituais do ultra-mar.51
Durante a vigncia do padroado, alguns trabalhos defendem que o poder
real promoveu o desenvolvimento de uma cultura do sagrado particular em
virtude da ingerncia direta do poder monrquico. Nesse perodo, o catolicismo
caracteriza-se pelas manifestaes exteriores como as grandes procisses. A
arte sacra a demonstrao da grandeza da majestade de Deus e do rei. O
poder do rei e o poder de Deus, configurado no poder da Igreja (...).52
No estudo de Thales de Azevedo a Igreja sofreria uma subordinao
forada, que acarretava muitos inconvenientes. Seguindo esta idia, o perodo
do crcere de ouro da igreja como definido por Magalhes de Azeredo foi,
segundo Joo Dornas Filho, pior no Imprio, quando o Estado foi o grande
algoz da Igreja com a pretenso de proteg-la 53, dai nascendo o regalismo.
Hespanha tambm relaciona a sujeio do poder espiritual em relao
ao poder poltico com o regime regalista, forma poltica adotada pelos
monarcas na segunda metade dos setecentos. O regalismo inseparvel da
secularizao 54, j que os assuntos referentes religio e ao sagrado tinham
uma importncia secundria dada primazia das razes do Estado. Este
50
S com o Cdigo de Processo, inspirado em suma nos mesmos ideais que iro ditar o Ato Adicional, que se firmar, ao cabo, o princpio da abolio dos foros privilegiados. HOLANDA, Sergio Buarque de. A herana colonial sua desagregao. In: S. B. de H. (Org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira, t. II, v.1, So Paulo: Difel, 1962, p. 36. 51
AZEVEDO, Thales de Azevedo, op. cit., p. 26 e SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p.25,26. 52
Ibidem, p. 298. 53
FILHO, Joo Dornas. O padroado e a igreja brasileira. So Paulo: Editora Nacional, 1938, p. 19. 54
GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J., op. cit., vol IV, p. 298.
25
regime consolidou-se graas ao enfraquecimento da Igreja, durante os conflitos
entre o poltico e o religioso, e se fortaleceu na administrao de Pombal.
Inspirado no reformismo ilustrado, o prncipe regente do Brasil, D. Pedro
I, procurou manter o direito do padroado, enviando um representante Santa
S, para que o renovasse, tendo em vista a nova conjuntura do pas como
nao independente. O sumo pontfice, depois de alguma hesitao, em
reconhecimento a evangelizao impulsionada pelos portugueses no Novo
Mundo respondeu favoravelmente. Este episdio descrito por Dom Oscar de
Oliveira:
No dia 8 de agosto de 1824, Monsenhor Francisco Corra Vidigal, Encarregado dos Negcios do Brasil junto S. S, recebia suas instrues para as tratativas com Roma. Desejava ainda o governo regalista conseguir uma bula na qual apenas se declarasse o direito que j pretendia ter a dignidade de Gro-mestre das Ordens de Cristo, Santiago e Aviz, com todos os seus anexos e privilgios.55
Eduardo Hoornaert afirma que este episdio demonstra uma diferena
do conceito de padroado: Pedro I o tinha como direito, atribuio prpria do
poder absoluto dos reis, quando Roma o considerava especial privilgio,
concedido pelo papa, em decorrncia da evangelizao dos territrios
conquistados. 56
Sergio Buarque demonstra que num momento posterior, a Assemblia
Geral negou o exerccio perptuo do ttulo de gro-mestrado, alegando que os
soberanos de Portugal no tinham utilizado o direito de padroado como servos
da Igreja, mas como reis.57 Houve um esvaziamento de sentido do direito do
padroado, compreendido em sua dimenso poltica.
55
Esta concesso documentada na A Bula de Leo XII de 15 de maio de 1827. OLIVEIRA, Dom Oscar de, op. cit., p. 117. 56
HOORNAERT, Eduardo, op. cit., 2 v., p. 78. 57
HOLANDA, Sergio Buarque de. A herana colonial sua desagregao. In: S. B. de H.(org.), op. cit., t. II, v.1, p. 33
26
Numa anlise sobre a igreja como plo poltico em Portugal no sculo
XVIII, Antnio Cames Gouvea demonstra que o regalismo acaba sendo aceito
por parte dos membros do corpo eclesistico como uma proteo interna da
Igreja, apesar da subordinao exigida desta para com o Estado. O essencial
para os iluministas catlicos definir a atuao de cada uma das esferas.
No mbito da definio dos papis do Estado e da Igreja defendia-se o
epicospalismo doutrina que negava a Santa S a primazia da jurisdio, que
deveria ser realizada pelo bispo da diocese. O epicospalismo combinado com
o regalismo desembocava no princpio das igrejas nacionais. 58
O Perodo Pombalino foi fundamental para compreenso das mudanas
na religio tradicional do Brasil, pois permitiu a entrada das idias iluministas.
Depois de fazer adeptos nas elites letradas de Portugal foram adotadas por
segmentos educacionais e eclesisticos tanto portugueses, quanto
brasileiros.59 Esta nova orientao seguia uma linha antiescolstica e
antijeustica.
A oposio Companhia de Jesus se intensificou a partir de 1750
quando o marqus de Pombal, secretrio dos negcios estrangeiros do rei D.
Jos, de Portugal, proclamou a liberdade dos ndios brasileiros, fazendo frente
os direitos exclusivos que jesutas e colonos tinham sobre eles.60A expulso da
Companhia de Jesus de Portugal e de suas colnias redundou na sada de 600
padres61 com grandes prejuzos das funes eclesisticas, que estavam, na
maior parte, em suas mos.
No incio do sculo XIX, o episcopado era pouco numeroso e insuficiente
para atender uma populao em crescimento. A maior parte das funes
religiosas era feita por leigos. O catolicismo brasileiro era leigo na
evangelizao, feita por indivduos, ou na famlia; no governo, atravs do
58
GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: Mattoso, Op. cit., vol IV, p. 298. O epicospalismo colocava a autoridade dos bispos ou de uma ordem pastoral, como no caso das igrejas anglicanas como superior a autoridade papal. Esta doutrina foi condenada pelo Conclio Vaticano I, que estabeleceu a infalibilidade Papal. 59
WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no sculo XIX: a Reforma de D. Antnio Joaquim de Melo (1851-1891). So Paulo: tica, 1987 (Ensaios 120). Cap. 1. 60
MENDONA, Antonio Gouva. Repblica e pluralidade no Brasil. Revista USP, So Paulo, n. 59, p. 144-163, setembro/novembro 2003, p.148. 61
Ibidem.
27
padroado; na administrao, pelas irmandades e ordens terceiras; na
assistncia social, pelas casas de misericrdia; nas devoes, de carter
privatizado. Mesmo o clero estava bastante laicizado.62 O relacionamento
entre a Igreja brasileira e Roma era quase inexistente.63
Esse distanciamento entre as duas igrejas fica evidente quando
lembramos que o reconhecimento da independncia do Brasil pela Santa S
deu-se somente em 1827.64 O distanciamento tambm existia entre os
membros do corpo eclesistico, considerando o tamanho do pas, a
precariedade do transporte e das vias terrestres de comunicao, resultando
no enfraquecimento da instituio. Ademais, a formao do clero brasileiro era
precria, pois no haviam sido criados no Brasil seminrios permanentes, com
docentes capazes e exemplares e cursos apropriadamente planejados.65
A formao de muitos padres brasileiros deu-se de forma independente,
atravs de sua adeso aos servios da Igreja, no contato direto com outros
clrigos no exerccio de seu ofcio nas parquias. Este o caso do padre Diogo
Feij e do grupo dos Padres do Patrocnio, de Itu, o qual integrava.66
A poltica praticada por D. Pedro I, herdeiro direto da casa de Bragana,
em relao Igreja criava uma aproximao, em alguns aspectos situao
vivida pela antiga metrpole portuguesa. Ao regime regalista levado adiante
pelo monarca brasileiro somava-se as doutrinas racionalistas do perodo:
jansenismo, galicanismo, maonaria, que entraram com toda fora no pas e
foram responsveis por um esvaziamento do transcendente, criando uma
religio civil, ressaltando sua funo moral e moralizante.
No anexo includo no final deste trabalho, um artigo de 26 de agosto de
1833, cuja autoria no revelada, do jornal Correio Oficial, estabelece-se um
padro para a religiosidade do Imprio do Brasil. Observando o documento,
62
Citao de P.A.R. de Oliveira. Religiosidade popular na Amrica Latina. In: HOONAERT, Eduardo, op. cit., v. 2, pp. 13,14. 63
Ibidem, p.15. 64
AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 123. 65
Ibidem, p. 129. 66
Naquela poca no havia seminrios em regime de internato, e bastava ser aprovado numa avaliao ministrada pelo bispo para sagrar-se padre. RICCI, Magda. Assombraes de um padre regente: Diogo Antnio Feij (1784-1843). Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT-IFCH, 2001, p. 214.
28
encontramos informaes importantes que iluminam a compreenso do campo
simblico do perodo. A religio, reconhecida como parte essencial do homem,
est veiculada muito mais a uma conduta moral que as obrigaes ritualsticas
ou ao cumprimento de normas. Valoriza-se mais a razo que o sentimento
religioso. Virtuoso no aquele que vive cercado por regras, mas aquele que
est comprometido com seu prximo. O dever dos homens est muito mais
relacionado ao desempenho de suas responsabilidades na sociedade.
Ainda, aparece a identificao entre razo, religio crist e moral que
recorrente ao longo de todo o sculo XIX. A religio perde parte de seu
componente mstico e torna-se mais prtica. Estes trs itens serviro de
parmetro para avaliar o estgio de desenvolvimento de um pas.
possvel perceber alguns indcios do incio do processo de
secularizao da sociedade brasileira, que ser completado no final do sculo
XIX, atravs da emergncia de um discurso que se opunha superstio
religiosa e a ignorncia, em defesa de uma religiosidade racional, cuja crena
manifestar-se-ia na vida social cotidiana, atravs de uma atitude moral.
Jos Bonifcio, um dos articuladores da Independncia, lder do projeto
civilizatrio e centralizador, defendia um governo forte, fundamentado no
Reformismo Ilustrado67, era um crtico da aliana entre o Estado e a Igreja: O
clero quando no pode ser amo, escravo dos reis. 68 Ele acreditava que o
Padroado Rgio era desfavorvel para a Igreja e nesta frase est implcita a
idia de uma separao de poderes, de acordo com o modelo adotado pelas
naes desenvolvidas e que almejava, um dia, incluir o Brasil.
interessante observar que nos registros histricos e historiogrficos
recorrente a idia que a Coroa no cumpria com diligncia suas obrigaes,
comprometendo a qualidade religiosa dos fiis. Esta crtica pode estar
associada a prpria primazia que a religio tinha enquanto instrumento do
Estado em detrimento de sua ligao com o transcendente.
67
SILVA, Jos Bonifcio de Andrada e. Projetos para o Brasil. In: DOLHNIKOFF, M. (Org.) So Paulo: Cia das Letras, 1998. Introduo. 68
Ibidem , pp. 322-324.
29
Diversos relatos de viajantes estrangeiros que descrevem nossa
sociedade neste perodo, tratam deste assunto apontando inmeras
deficincias da Igreja e das manifestaes religiosas dos habitantes do Brasil.
Boxer menciona os inmeros pecados de omisso imputados ao
padroado na sia, segundo o prelado italiano Francesco Ingoli ainda no sculo
XVII, entre os quais: fundos insuficientes para a manuteno das igrejas, o fato
de bispados serem deixados vagos e uma crtica habitual aos portugueses:
serem excessivamente devotos dos aspectos exteriores da Igreja e negligentes
quanto ao desenvolvimento espiritual do indivduo.69
Sobre o padroado brasileiro, Thales de Azevedo desenvolve uma
opinio semelhante a do frade Ingoli sobre a religiosidade portuguesa as
parquias so extentssimas, alargando-se para os sertes, escassamente
servidas de procos; (...) ingnua e pouco instruda sustentada por um culto
externo brilhante e multitudinrio... 70
Dom Oscar de Oliveira, ao tratar dos dzimos, afirma que os reis
abusavam quase sempre da generosidade dos Romanos Pontfices,
ultrapassando os limites destas concesses. Faziam doaes dos dzimos
eclesisticos a igrejas, mosteiros e pessoas nobres, como se lhes
pertencessem.71 O gro-mestre podia dispor, sua vontade, do remanescente
das rendas da O. de Cristo depois de ter cumprido os encargos dela.72
Na Europa catlica, o pagamento dos dzimos foi extinto a partir da
Revoluo Francesa: na Frana, em 4 de agosto de 1789. Em Portugal
somente em 30 de julho de 1832. No Brasil, os dzimos foram suspensos aps
a abdicao de D. Pedro I e segundo D. Oscar de Oliveira fora padre Feij que
havia proposto sua extino. Durante o 2 reinado raras provncias ainda
pagavam os dzimos.73
69
Sobre o padroado na sia. BOXER, C. O imprio... Op. cit., p. 249. 70
AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 85. 71
OLIVEIRA, Dom Oscar de. Os dzimos eclesisticos no Brasil nos perodos da Colnia e do Imprio, Citao de Souza Lobo. Dissertaes sobre os dzimos eclesisticos. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1964, p.105. 72
Ibidem, p. 112. 73
Ibidem, p. 119.
30
No se restringia apenas aos dzimos as crticas que envolviam o
padroado. Este regime que conferia ao monarca o direito de ingerncia nos
assuntos eclesisticos foi considerado malfico instituio eclesistica por
grande parte da historiografia, promovendo crises ao longo de todo o perodo
que vigorou, tendo seu pice na primeira metade do sculo XIX, durante o
processo de consolidao da independncia.
Alguns autores ressaltam que a predominncia dos interesses do Estado
em detrimentos das necessidades da Igreja no Brasil ainda mais intenso,
considerando que grande parte dos representantes da nao no legislativo e no
executivo eram clrigos que acumulavam funes, alm de pequenos
proprietrios e donos de escravos. Desse modo, estavam profundamente
comprometidos com a ordem social e laica.
Surge uma forte tendncia formao de uma igreja nacional, com uma
legislao prpria, considerando as caractersticas peculiares dos membros
catlicos brasileiros. A primeira metade do sculo XIX , portanto, marcada por
graves conflitos entre o Estado e a Igreja, desta com a Santa S e, no mbito
interno, pelo confronto entre os membros do corpo eclesistico.
ausncia de uma unidade religiosa e a subordinao ao poder poltico
pelo regime do padroado, dificultavam o cumprimento de sua misso espiritual,
evidenciando os limites de sua atuao. De outro lado, o regime de padroado
propiciou que no Brasil se praticasse um catolicismo mais independente das
bulas e decretos, das determinaes da Igreja de Roma, favorecendo a idia
de uma Igreja Catlica independente.
Foi durante os anos aps a Independncia do pas que projetos desta
natureza foram levados adiante, entre os quais se destaca a atuao do padre
Diogo Antnio Feij, que Srgio Buarque de Holanda afirma que tinha uma
mania de descatolizar o Brasil. Seu projeto combinava uma postura contrria
ao celibato clerical um nativismo exarcebado que, se aprovado, teria levado
ao desligamento de Roma.74
74
HOLANDA, Srgio Buarque de. A herana colonial sua desagregao in: HOLANDA, S.B. de (org.), op. cit., p.35
31
A construo do Estado do Brasil a partir das idias liberais trouxe novas
perspectivas e novos problemas para a ao da Igreja. Os projetos para a
nao traziam em seu bojo projetos de mudanas para a instituio eclesistica
que desde o incio da colonizao era uma esfera de poder fundamental na
prpria constituio do sistema colonial portugus, na evangelizao das
populaes indgenas e na ocupao do espao das terras ultramarinas.
No surpreende que na constituio da autonomia nacional fosse
adotada uma poltica nativista em relao a uma Igreja, cujo corpo eclesistico
era formado por grande nmero de padres portugueses e cujas regras tinham
uma origem que era distante e ausente como era o caso da Sede romana.
Srgio Buarque de Holanda, ao tratar desse momento histrico afirma
que a Igreja est longe de sofrer grandes mudanas desde que comea a
desagregar-se o sistema colonial 75 Para ele, a permanncia do padroado
representa a continuidade de estruturas arcaicas de um passado que deveria
ser superado.
Para alm dessa idia, fica evidente que a abertura poltica do pas e a
entrada das ideologias liberais provocaram mudanas na maneira de
compreender e vivenciar a religio que entraram em conflito com o sistema do
padroado que at ento vigorou, provocando srios conflitos e crticas,
principalmente aps a Independncia, momento da construo da autonomia
da nacional.
Esta dimenso da vida social brasileira no passou despercebida pelos
viajantes estrangeiros que vieram ao pas no incio do sculo XIX e que
registraram suas percepes da paisagem religiosa do Imprio.
75
Ibidem, p.34.
32
Captulo 2
Viagens e viajantes: Daniel Parish Kidder
As viagens martimas so uma prtica que acompanha as civilizaes
desde tempos remotos, como meio de locomoo, de comunicao e de trocas
comerciais e culturais. Deram origem a mitos e heris que povoavam o
imaginrio e foram registrados nas obras de Homero, Plnio e Plato.76
Desde a Idade Mdia o movimento das Cruzadas contra mouros e infiis
conferiu a estas navegaes um carter expansionista e proselitista, tendo a
Pennsula Ibrica desempenhado papel crucial. No sculo XV, Portugal
assume o pioneirismo das grandes navegaes, ainda sob a gide da religio
catlica e da conquista dos povos pagos na frica, sia e Amrica.
A partir do sculo XVIII as navegaes so motivadas por outros
interesses que esto inseridos numa redescoberta a partir dos princpios da
ilustrao que engendraram novas formas de ver o mundo e outra configurao
dos povos.77 Predominava uma imagem depreciativa da Amrica e de seus
habitantes, herana das idias construdas sobre este continente em perodos
anteriores.
Estudos demonstram que entre as concepes hegemnicas sobre o
Novo Mundo havia a idia que os povos sul-americanos viveriam sua infncia
de acordo com a crena no progresso das civilizaes sob padres biolgicos
e que a Europa exerceria uma misso civilizatria, irradiando as luzes do
esclarecimento aos povos atrasados.78 Estes princpios compem o iderio
dos viajantes na virada para o sculo XIX.
Diversos trabalhos demonstram que a idia de progresso tornou-se forte
neste perodo: progresso cientfico, progresso industrial, progresso tcnico e
76
FERREIRA, Maria Isabel Rodrigues. Mitos e utopias na descoberta e construo do mundo atlntico. Coimbra: CEHA, 1999. 77
Sobre este tema: MACHADO, Maria Helena P. T. Brasil a vapor: raa, cincia e viagem no sculo XIX. Tese de livre-docncia. Departamento de Histria, FFLCH, USP, 2005 e LISBOA, Karen Macknow. Viajantes de lngua alem no Brasil: olhares sobre a sociedade e cultura (1893-1942). Tese de doutoramento. Departamento de Histria, FFLCH, USP, 2002, p.9. 78
LISBOA, Karen Macknow, op. cit., pp. 7-10.
33
progresso humano eram vises predominantes. Num mesmo sentido, podemos
compreender que a partir da Revoluo Industrial os investimentos
progressivos na velocidade tecnolgica provocaram uma transformao da
viso de mundo dos homens e de sua prpria natureza.79
Do ponto de vista tcnico, o aprimoramento das tcnicas de navegao
com a inveno do barco a vapor um marco do incio do sculo XIX,
facilitando os deslocamentos, os quais se tornaram mais curtos e menos
vulnerveis s oscilaes e influncia das correntes martimas. Os vapores
permitiam o transporte transocenico de milhares de pessoas e de cargas que
pesavam toneladas, possibilitando uma grande movimentao martima.80 Esta
nova tcnica de locomoo coadunava-se com a dinmica do progresso
humano e da velocidade das transformaes que incidiam sobre as sociedades
daquele perodo.
Paul Virilio compreende o mar, metaforicamente representando
liberdade de movimento81, superando os limites espao temporais impostos no
plano terrestre. Esta movimentao representa, segundo Virilio, a renovao do
capitalismo e a necessidade do fluxo de circulao terrestre e martimo, criando
um dmos martimo, do qual, de nosso ponto de vista, os viajantes fariam
parte certamente.
Assim, novas tcnicas foram utilizadas visando atender os desafios
expansionistas europeus. O barco a motor meio de transporte de grande
porte relaciona-se com a emergncia de uma nova forma de confronto no
mais deflagrado na terra, mas deslocado para o mar. Nesta perspectiva, Paul
Virilio, afirma tratar-se de uma nova idia da violncia que no nasce mais do
enfrentamento direto... 82
Em uma anlise sobre os relatos de viagem, Mary Louise Pratt acredita
que as viagens realizadas a partir de meados do sculo XVIII relacionam-se a
dois processos vivenciados pela Europa do norte: a emergncia da histria
natural como uma estrutura de conhecimento e o impulso a explorao
79
VIRILIO, Paul. Velocidade e poltica. So Paulo: Estao Liberdade, 1996, p. 12. 80
MACHADO, Maria Helena P. T. Machado, op. cit., p. 3. 81
O mar o mar livre... VIRILIO, Paul, op. cit., p. 49. 82
Ibidem, p.50.
34
continental, por oposio martima e que coincide com a consolidao de
formas burguesas de subjetividade e poder, a inaugurao de uma nova etapa
do capitalismo, marcada pela busca de matrias-primas.83
As expedies naturalistas inaugurariam uma nova fase para viajantes
escritores, influenciados pela natureza, foco da construo do conhecimento
nos projetos de histria natural e foco das observaes destes estrangeiros
que com base num procedimento racional empreenderiam uma anticonquista
uma apropriao discursiva sem a utilizao da violncia.84 Esta seria uma
caracterstica determinante nas viagens ao longo de todo sculo XIX.
Em seu trabalho sobre os relatos de viajantes britnicos, Luciana de
Lima Martins lembra que preciso atentar para as especificidades de cada
relato. No incio do XIX, a escrita estritamente cientfica era um gnero em
construo 85 e as expedies de viajantes eram compostas por pessoas
leigas, que foram responsveis tambm pela elaborao de discursos e
imagens da Amrica. O termo viajante ou relatos de viagem pode encobrir
caractersticas peculiares e interesses diversos que marcam cada uma destas
obras e que devem ser considerados numa anlise mais especfica.
Outro aspecto apontado pela autora e relevante para este trabalho no
ato de apropriao discursiva das regies visitadas a que se considerar a
subjetividade destes homens e mulheres que se lanaram ao mar em suas
expedies: o fascnio com o desconhecido, o medo e a averso, o anseio por
meios de comunicaes estveis, a doena, o fervor religioso, e os prazeres
fsicos da explorao, tudo se entrecruzava tornando-se parte da indagao e
deixando seus traos nos escritos. 86
Nesse sentido, os relatos de viajantes so resultado de um encontro
cultural e cabe ressaltar: os sujeitos tambm so transformados por esses
encontros.87 Sendo assim, os viajantes, ainda que tenham uma formao
83
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Imprio: relatos de viagem e transculturao. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p.35. 84
Ibidem, cap. Narrando a anticonquista. 85
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes. O olhar britnico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 30. 86
Gillian Beer. Open Fields, p. 59. Citado por MARTINS, Luciana de Lima, op. cit., p. 33. 87
Ibidem, p. 32.
35
ideolgica que determina sua viso, so confrontados pelas situaes e
vivncias inusitadas que a experincia em outro pas propicia e que engendra o
indito.
Estas questes nos levam a refletir sobre a experincia do desterro,
vivida voluntariamente por estes viajantes. Laura de Mello e Souza aponta que
o degredo esteve presente desde o nascimento da colnia portuguesa,
associando-o a um ato purificador, que permitiria a superao de enfermidades
e cumprimento de penas em virtude de pecados ou crimes. O desterrado
viveria num purgatrio, esperando remir suas faltas e retornar sua ptria.88
Nesse mesmo sentido, Michel Sot compreende o significado da palavra
peregrinao, mas estritamente em seu sentido religioso, definida como o
deslocamento de pessoas a lugares em que possam entrar em contato com o
sagrado e que supe uma prova fsica do espao, fazendo com que o
peregrino seja um estrangeiro. A peregrinao uma prova espiritual.89 O
autor ressalta que no Ocidente Medieval a nfase da peregrinao estava no
lugar que se queria chegar e que o peregrino obtinha benefcios espirituais e
fsicos de sua viagem.90
Ao refletirmos sobre as experincias vividas voluntariamente por estes
homens e mulheres, deixando o conforto de seu cotidiano para
experimentarem os limites do esforo fsico que s viagens transocenicas
requeriam e vivendo como estrangeiros, em um ambiente diverso, percebemos
que de alguma maneira lhes eram significativas.
Dentre todas as idias possveis que possam auxiliar na compreenso
desta opo, sem deixar de perceber as especificidades de cada discurso,
lembramos que h traos comuns que caracterizam estes viajantes: muitos
destes homens do sculo XIX estavam profundamente comprometidos com o
progresso cientfico, comercial e religioso da civilizao, imbudos da crena na
universalidade de seus valores. Portanto, esses viajantes estavam prestando
88
SOUZA, Laura de Melo e, op. cit., pp. 80,81. 89
SOT, Michel. Peregrinao. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; So Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 90
Ibidem, p. 353.
36
um servio sociedade qual pertenciam, o que os elevaria acima dos
percalos das longas distncias e das dificuldades de locomoo nas precrias
estradas do pas. Seus objetivos eram definidos previamente, e ainda que no
alcanados em sua totalidade, levavam consigo a sensao de terem cumprido
sua misso.
Ainda, conforme aponta Lilia Moritz Schwarcz ao tratar deste tema, as
viagens alteram e diferenciam o prprio mundo dos viajantes tornando-o um
estranho a si prprio. Desse modo, o ato de viajar proporciona o conhecimento
de si mesmo.91
As viagens martimas do sculo XIX foram realizadas, alm dos
europeus, por norte-americanos, fato nico at este momento. No incio deste
perodo, os Estados Unidos procuravam consolidar sua independncia,
desenvolvendo uma poltica de proteo dos interesses do continente, contra
as investidas da Santa Aliana, construindo sua hegemonia na regio nas
ltimas dcadas. Eram vistos como parte distinta do continente americano em
virtude de suas instituies polticas e sociais. Eram, nesse sentido, uma
extenso da Europa.92
Segundo Katherine E. Manthorne as imagens criadas pelos norte-
americanos, tem tanto a nos dizer sobre os Estados Unidos como o fazem
sobre a face que o Brasil apresentava aos seus visitantes. Alm da extenso
geogrfica reconhecidamente ambos so um dos maiores pases do
continente Brasil e Estados Unidos buscavam constituir sua identidade
nacional individual em relao aos europeus. 93
91
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Viajantes em meio ao imprio das festas. In: JANCS, Istvn e KANTOR, ris. (org.). Festa: Cultura & Sociabilidade na Amrica portuguesa, vol. II. So Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de So Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001, p. 616. 92
LISBOA, Karen Macknow, op. cit., p. 11. 93
MANTHORNE, Katherine E. O imaginrio brasileiro para o pblico norte-americano do sculo XIX. In: Revista da USP, n 1. So Paulo, SP: USP, CCS, 1989, p. 60.
37
2.1) Kidder e as tendncias religiosas do sculo XIX
Dentre os viajantes que estiveram no pas neste perodo e produziram
material escrito sobre suas experincias94, os relatos de Daniel Kidder se
diferenciam por seu vis religioso, considerando que o autor era um
missionrio protestante em atividade. Kidder nasceu em 1815 no estado de
Nova York. Formou-se pela Wesleyan University, em 1836, sob os preceitos do
metodismo.95
Os metodistas surgiram ainda no sculo XVIII na Inglaterra. John Wesley
iniciou o movimento que deu origem Igreja Metodista, uma dissidncia da
Igreja Anglicana. Em seus aspectos doutrinrios caracterizava-se pela
ampliao do sentido de salvao: de uns poucos eleitos para todos que
tivessem um desejo real de salvar as suas almas, atraindo a populao mais
pobre96. Tambm enfatizava o ato da converso, conferindo-lhe um carter
fortemente emocional. Alm disso, tinha um importante componente moral, por
meio de uma conduta metdica que caracterizava aquele que havia obtido a
salvao.97
Em sua obra A formao da classe operria inglesa, Thompson faz uma
anlise da classe operria inglesa entre 1780 e 1832 durante os anos de
tenso e do papel ambguo do metodismo que surgiu como uma influncia
94
Thomas Ewbank residiu no Rio at agosto de 1947. EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; So Paulo, Ed. da Universidade de So Paulo, 1976. AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil 1865-1866. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. AUBERTIN, John James. Onze dias de viagem na provincial de So Paulo com os Srs. Americanos Drs. Gaston e Shaw, e o major Mereweather 1865. Carta dirigida ao Ilm. E Exm. Sr. Baro de Piracicaba. So Paulo: Typ Allem de H. Schroeder, 1866. James Cooley Fletcher, reverendo protestante, residiu no pas entre 1852-1854, 1855-1856 e, posteriormente, em 1862. FLETCHER, James C. O Brasil e os Brasileiros (Esboo Histrico e Descritivo). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. 95
STROBRIDGE, Rev. G. E. D.D. Biography of the Rev. Daniel Parish Kidder, D.D.; LL. D. New York: Hunt &Eaton, 1894, e D. Kidder. Reminiscncias de Viagens e Permanncias nas Provncias do Sul do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1980. 96
THOMPSON, E. P. A formao da classe operria inglesa, v. 2. So Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 37, 38. 97
WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 126-130.
38
politicamente estabilizadora, mas, de outro lado, foi indiretamente responsvel
por um aumento na autoconfiana e na capacidade de organizao do
operariado.
O metodismo teve grande repercusso na Amrica do Norte. Seus
principais representantes empreenderam sua propagao pelos Estados
Unidos, atravs de grandes cultos ao ar livre. George Whitefield, eloqente
pregador das multides, promoveu a segunda fase do despertar religioso98,
conquistando adeptos, que em nmero, ultrapassava as denominaes
tradicionais dos presbiterianos, congregacionais e anglicanos. A reforma que
pregavam ia alm das fronteiras do religioso e da transformao do indivduo.
Exigiam mudanas na sociedade, atravs da busca de novos padres morais.
Essas idias geraram um grande movimento de reforma social. Os
grupos religiosos organizaram associaes voluntrias para combater os males
sociais e ganhar o mundo para Cristo. A maioria dos convertidos, ativos em
suas comunidades, procurava ajustar-se ao mundo da nova economia por
caminhos que no violassem a moral e os valores sociais. 99
Daniel Kidder foi autor do primeiro relato de um viajante norte-americano
sobre o Brasil. Chegou na cidade do Rio de Janeiro, enviado pela Sociedade
Bblica norte-americana, em 1837, aos 27 anos, permanecendo at 1840,
quando sua jovem esposa Cyntia H. Russel faleceu, deixando-lhe dois filhos.
Poucos anos depois, em 1845, publicou sua obra Sketches of residence and
travels in Brazil embracing historical and geographical notices of the Empire
and its several provinces, Vol I e II como resultado de suas observaes da
educao, moral e religio, as quais, na qualidade de missionrio cristo, lhe
eram mais imprescindveis.100 Tambm pretendia preencher a lacuna existente
98
MORISON, Samuel Eliot e COMMAGER, Henry Steele. Histria dos Estados Unidos. So Paulo. Edies Melhoramentos, s/d, tomo 1, p.116. 99
KARNAL, Leandro... [et al]. Histria dos Estados Unidos: das origens ao sculo XXI. So Paulo: Contexto, 2007, p. 120. 100
His attencion while there, was primarily directed to the important subjects of Morality, Education, and Religion, which, as a Christian missionary, it was his business to investigate fully. KIDDER, D. Sketches of resisdence and travel in Brazil, embracing historical and geographical notices of the empire and its several provinces. Vol. I. Philadelphia: Sorin, 1945, p.7.
39
no que se referia ausncia de informaes disponveis sobre o pas.101
Publicou ainda outras duas obras sobre o Brasil: So Paulo in 1839 e a
traduo em lngua inglesa do artigo de Feij Demonstrao da necessidade
de abolir o celibato clerical de 1844. Escreveu diversos livros sobre questes
teolgicas, destacando-se como um ilustre pensador da Igreja Metodista, nos
Estados Unidos.102 Morreu aos 76 anos, em 29 de julho de 1891, em Evanston,
nos Estados Unidos.
Sketches of Residence and Travels in Brazil, de 1845, foi dividida em
dois volumes: o primeiro descreve as regies de So Paulo e Rio de Janeiro, e
o segundo as provncias do norte. Foi editada pela Sorin & Ball, da Filadlfia e
pela Wiley & Putnan, de Londres, concomitantemente.
Esta obra foi traduzida para o portugus por Moacir N. Vasconcelos e
editada na Biblioteca Histrica Brasileira, pela Livraria Martins em 1940, com
o ttulo Reminiscncias de Viagens e Permanncias no Brasil, compreendendo
diversas notcias histricas e geogrficas do Imprio e das diversas provncias
(Rio de Janeiro e Provncia de So Paulo). Em 1943, foi editada a obra
referente s provncias do norte.
Em 1980, o relato foi tambm editado pela Editora Itatiaia e Edusp, na
Coleo Reconquista do Brasil, nova srie. No ano de 2001, o Senado Federal
publicou outra edio desta obra.103
Brazil and the Brazilians: portrayed in historical and descreptive
sketches, realizado em co-autoria com James Cooley Fletcher, tornou-se um
dos livros sobre o Brasil mais lidos nos Estados Unidos, contando com pelo
menos nove edies publicadas pela Childs & Peterson da Filadlfia.104 A
primeira edio de 1857. A segunda, terceira, quarta e quinta edies so de
1858 a 1866, publicadas tambm pela Little, Brown, de Boston. A sexta, stima
101
KIDDER, D. Reminiscncias de Viagens e Permanncias nas Provncias do Sul do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1980, p. 17. 102
Biografia consultada site www.virtualology.com no dia 25/10/10. 103
Informaes obtidas no site www.usp.br/index.phd/bibliotecas. 104
Notas bio-bibliogrficas de Edgar Sssekind de Mendona. In: KIDDER, Daniel P. e FLETCHER, James C. O Brasil e os Brasileiros (Esboo histrico e descritivo). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.
40
e oitava edies so, respectivamente, de 1866 a 1868.105 Em 1941, a
Companhia Editora Nacional, publicou este relato na Coleo Brasiliana,
traduo de Elias Dolianiti, em dois volumes.
Na historiografia brasileira no h nenhum trabalho mais especfico
sobre os relatos de Daniel Parish Kidder. Desde sua traduo em 1940, as
narrativas deste autor so analisadas em conjunto com as narrativas de outros
viajantes de diferentes procedncias, com o intuito de corroborar para a
construo de uma interpretao sobre a sociedade brasileira da primeira
metade do sculo XIX.
As misses protestantes na Amrica Latina e no Brasil esto
relacionadas a uma mudana profunda das concepes religiosas que
ocorreram a partir da Revoluo Francesa. Eric Hobsbawm em seu livro A Era
das Revolues, de 1977, ao analisar a religiosidade no perodo de 1789 e
1848, afirma que de todas as mudanas ideolgicas, foi de longe a mais
profunda.106 No obstante nas ltimas dcadas do sculo XVIII predominasse
uma atmosfera de intensa secularizao e uma oposio s formas tradicionais
de religio, foi tambm o perodo do nascimento de uma nova religiosidade
mais emocional e intensa. Dois movimentos tiveram uma expanso significativa
neste perodo: o islamismo pela frica e sia e o protestantismo
propagado por todo o mundo. O catolicismo sofria uma perceptvel estagnao.
Durante as guerras napolenicas e revolucionrias deu-se o incio da
atividade missionria e protestante, executada principalmente pelos anglo-
saxnicos.107 Esta ao promo