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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Miriam do Prado Giacchetto Maia Nomura Os relatos de Daniel Kidder e a polêmica religiosa brasileira na primeira metade do século XIX Dissertação apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em História Social. Versão Corrigida Orientador: Prof. Dr. Flavio de Campos São Paulo 2011

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    Miriam do Prado Giacchetto Maia Nomura

    Os relatos de Daniel Kidder e a polmica religiosa brasileira na

    primeira metade do sculo XIX

    Dissertao apresentada ao Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social. Verso Corrigida

    Orientador: Prof. Dr. Flavio de Campos

    So Paulo

    2011

  • 2

    Osny e Marina

    Douglas e Maria Isabel

  • 3

    ndice

    Resumo .............................................................................................................. 4

    Abstract .............................................................................................................. 4

    Agradecimentos ................................................................................................. 5

    Introduo .......................................................................................................... 6

    Captulo 1 A construo do Estado brasileiro .............................................. 10

    1.1) O Estado e o direito do Padroado.......................................................... 19

    Captulo 2 Viagens e viajantes: Daniel Parish Kidder .................................. 32

    2.1) Kidder e as tendncias religiosas do sculo XIX ...................................... 37

    2.2) A misso de Daniel Kidder ....................................................................... 43

    2.3) Kidder e as prticas catlicas ................................................................... 52

    Captulo 3 A polmica religiosa ................................................................... 65

    3.1) O projeto reformista de Diogo Antnio Feij ............................................. 70

    3.2) Daniel Kidder e a questo da abolio do celibato ................................... 85

    3.3) Os ideais reformistas de Kidder ................................................................ 97

    Concluso ..................................................................................................... 114

    Anexo ............................................................................................................ 117

    Referncias ................................................................................................... 118

  • 4

    Resumo

    A construo do Estado brasileiro na primeira metade do sculo XIX foi um

    momento de debates polticos intensos em torno dos diversos projetos para a

    nao fundados no iderio liberal. A Igreja Catlica, unida ao Estado sob o

    regime do Padroado Rgio e ocupando uma posio central durante todo o

    perodo colonial, sofrer forte ataque de parte dos membros do clero, entre os

    quais se destaca o padre Diogo Antnio Feij, que defendia o regime regalista,

    desencadeando uma crise entre a Igreja brasileira e a Igreja de Roma. Estes

    conflitos perpassam a obra do viajante Daniel Parish Kidder que viveu no Brasil

    entre 1837 e 1840, a servio da Sociedade Bblica dos Estados Unidos,

    procurando difundir seus princpios religiosos de acordo com os padres da

    modernidade.

    Palavras-chave: padroado, relatos de viagem, misses protestantes, Igreja

    Catlica, Estado moderno.

    Abstract

    The Brazilian States construction in the first half of 19th century was a moment

    of intense political debates around various projects for the nation based on

    liberal ideas. The Catholic Church united with the State under the Royal

    Patronage holding a central position during the entire Colonial Period would

    suffer a strong attack from some of the clergys members which stands out

    Father Diogo Antnio Feij in defense of regalist regime triggering a crisis

    between Brazilian Church and Roman Church. These conflicts pervade the

    works of Daniel Kidder who lived in Brazil from 1837 to 1840, serving the

    American Bible Society in order to spread his religious principals according

    modernity standards.

    Keywords: patronage, travel writing, protestant missions, Catholic Church,

    modern State.

  • 5

    Agradecimentos

    Devo imensa gratido ao professor Dr. Flavio de Campos por ter me

    dado a oportunidade de realizar este trabalho e confiar que eu seria capaz de

    faz-lo. Durante esta rdua tarefa, pude sempre contar com o seu apoio, sua

    franqueza e coerncia. Suas orientaes e erudio foram primordiais para que

    este estudo chegasse a um termo.

    Agradeo tambm a professora Dra. Maria Fernanda Lombardi pelas

    crticas, sugestes e consideraes que foram fundamentais para o resultado

    final deste trabalho. Contribuio muito importante foi o curso de Brasil

    Independente I da professora Dra. Miriam Dolhnikoff, a quem agradeo

    tambm as sugestes para o primeiro captulo.

    No setor de ps-graduao em Histria da Universidade de So Paulo,

    agradeo ao Nelson e ao Osvaldo pela ajuda e ateno.

    Mariane de Souza Barbosa agradeo as sugestes quanto s

    tradues. Fernanda Zambon Nunes, Leonardo Alves, Elisngela Sanches,

    Catia Benedito agradeo o auxlio. A todos os colegas da EMEF Jos Ferraz de

    Campos agradeo o incentivo.

    meus pais, Osny e Marina, agradeo pelo apoio durante este perodo,

    pelos bons conselhos, por todo auxlio que me prestaram, principalmente nos

    cuidados com minha filha e pela dedicao de toda uma vida. De igual modo

    minhas irms Andra e Sara e cunhados Fbio e Thiago, agradeo a ajuda.

    Ana Paula e Leonardo tambm expresso minha gratido. Alessandra, Joo

    Felipe e Marly agradeo dedicao.

    Este trabalho no teria se realizado sem o apoio de Douglas Nomura,

    meu marido, que ao longo destes trs anos acompanhou cada etapa deste

    curso, sempre com palavras de incentivo e fora. Sua pacincia, compreenso

    e amor foram essenciais para que eu pudesse superar as dificuldades.

    Agradeo sua leitura e sugestes. Dedico a ele e a Maria Isabel, nossa filha,

    no somente estas linhas, mas todo meu amor.

  • 6

    Introduo

    A medida que uma nao assume um estado social democrtico e que vemos as sociedades inclinarem-se para a repblica, torna-se cada vez mais perigoso unir a religio a autoridade, pois se aproxima o tempo em que o poder vai passar de mo em mo, em que as teorias polticas se sucedero, em que os homens, as leis, as prprias constituies desaparecero ou se modificaro a cada dia e isso no durante algum tempo, mas sem cessar.

    Alexis de Tocqueville1

    Assim expressava-se Alexis de Tocqueville sobre a aliana entre o

    Estado e a Igreja. Indagava o que seria da religio se no fosse colocada fora

    do mundo poltico. Sujeita ao fluxo e refluxo das opinies humanas, no meio

    das lutas de partidos, onde estaria o respeito que a ela era devido? 2 Tornar-

    se-ia efmera e frgil, igualando-se s instituies dos homens. Na busca por

    um destino mais honroso para a religio, o sistema democrtico norte-

    americano tema central das reflexes deste autor floresceu num Estado

    laico.

    Na sua investigao sobre a democracia, considerada o caminho

    irreversvel aberto pela Revoluo Francesa para a humanidade, a religio

    ocuparia um lugar imprescindvel para a organizao de uma sociedade com

    instituies livres, constituindo a base moral dos indivduos a partir dos dogmas

    do cristianismo. Essa idia no significava a defesa da Igreja detentora oficial

    do monoplio da moralidade que imporia padres de conduta aos homens

    como nos regimes absolutistas. Tocqueville defende um cristianismo

    compreendido luz da ilustrao, no submetido ao poder institucional ou

    autoridade, mas capaz de estabelecer-se no seio da prpria sociedade,

    segundo os imperativos racionais da tica.

    Essas idias eram recorrentes durante o sculo XIX. No Brasil, desde a

    chegada dos portugueses, Estado e Igreja permaneceram unidos pela

    1 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na Amrica: leis e costumes; de certas leis e

    costumes polticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrtico, v.1. 2 edio. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 351. 2 Ibidem, p. 351.

  • 7

    instituio do Padroado, como elementos que identificavam os sditos da

    Coroa. A partir da Independncia e durante o perodo de formao da nao

    sob a gide da ideologia liberal, o pacto entre bispos e reis sofrer alguns

    revezes, seguindo uma forte tendncia regalista que submetia a Igreja

    autoridade do Estado.

    Os diversos projetos para o Estado brasileiro, inspirados nas instituies

    europias e norte-americanas, produziram modelos que necessitavam ser

    alcanados por nossa sociedade, recm libertada do jugo colonial, de acordo

    com os padres modernos. Seus autores, na tentativa de atingir objetivos

    traados para a nao que ento se constitua, apontaram as inadequaes e

    entraves que de algum modo poderiam impedir que fossem estabelecidos.

    Assim, o aspecto religioso figurava como uma dimenso fundamental das

    reformas sociais.

    Este estudo tem como objetivo investigar alguns dos projetos e dos

    conflitos que marcaram o campo religioso brasileiro na primeira metade do

    sculo XIX, na perspectiva de dois representantes religiosos: Daniel Parish

    Kidder, missionrio norte-americano e autor de importantes relatos sobre o

    Brasil, e padre Diogo Antnio Feij, figura de grande destaque do Imprio

    durante o perodo de consolidao de nossa Independncia.

    No mbito interno, o catolicismo matriz ideolgica fundamental do

    projeto colonizador e religio oficial do Imprio de acordo com a Constituio

    de 1824 foi deslocado de sua posio tradicional, tornando-se alvo de

    disputas entre os representantes do Imprio brasileiro, os quais buscavam

    definir o direcionamento dado a esta esfera de poder a partir da nova ordem

    que ento se configurava. A Igreja Catlica vinha sendo duramente criticada

    por movimentos inspirados nos ideais da ilustrao, como smbolo do antigo

    regime absolutista em oposio nova ordem liberal e constitucional que

    definia a religio como um instrumento do Estado e um direito fundamental, a

    partir dos Direitos Humanos, numa perspectiva mais individualista da relao

    entre o homem e Deus.

    Alm disso, a consolidao dos Estados Unidos como pas defensor dos

    interesses do continente americano, guardio da liberdade e protetor dos

    estados recm-independentes contra as investidas da Santa Aliana, firmou o

    incio de sua hegemonia e de sua influncia ideolgica sobre a Amrica,

  • 8

    colocando, na perspectiva dos protagonistas que viviam neste perodo, em

    plos opostos a cultura anglo-americana e a cultura ibrica. Do ponto de vista

    simblico, o Brasil passou a integrar a rota das misses protestantes, levadas a

    cabo pela Inglaterra e Estados Unidos.

    Essas concepes perpassam os relatos de Daniel Parish Kidder,

    viajante norte-americano que viveu no Brasil no final de 1830 com o objetivo de

    difundir os princpios protestantes atravs da divulgao de Bblias na lngua

    portuguesa. Enquanto missionrio e representante da Igreja Metodista, a

    preocupao com o universo simblico dos brasileiros um dos traos mais

    marcantes de sua obra. Nessa perspectiva podemos compreender sua

    aproximao com o padre Diogo Antnio Feij, de quem se confessa

    admirador, tendo traduzido sua proposta de abolio do celibato clerical para o

    ingls e tornado-se um divulgador de suas idias.

    Nossa discusso, no primeiro captulo, partir de uma anlise

    historiogrfica sobre obras que tratam da construo do Estado brasileiro sob a

    influncia das doutrinas liberais, atestando que estes princpios no se

    restringiram apenas as elites letradas, mas sua abrangncia estendeu-se aos

    diversos setores sociais, devidamente adaptados s diferentes realidades.

    No mbito religioso, a Igreja Catlica, ainda sob a gide do regime do

    Padroado Rgio poltica de evangelizao que marcou profundamente a

    formao da instituio eclesistica catlica no Brasil , sofreria grandes abalos

    em decorrncia das transformaes que marcaram este perodo de formao

    da nao, dando origem a novas concepes sobre o fenmeno religioso

    inspiradas nas idias ilustradas e que estavam em pauta nos projetos polticos

    para o pas.

    As tenses da surgidas permeiam a leitura de Daniel Kidder sobre o

    universo simblico dos brasileiros entre os anos de 1837-1840. Este o tema

    do segundo captulo. Imbudo dos valores puritanos, da crena na

    superioridade de sua cultura, no progresso da civilizao, nas instituies

    liberais e na importncia dos princpios cristos na manuteno da ordem

    social, compreende que a sociedade brasileira, do ponto de vista religioso, vivia

    um momento de crise e necessitava de reformas que restaurassem a

    verdadeira f. Fundamentado nos padres protestantes defendia uma relao

    mais individual com o sagrado. Suas idias inserem-se numa nova perspectiva

  • 9

    religiosa, surgida na modernidade, a qual representava. Seguindo essa

    tendncia, podemos compreender o trabalho da Sociedade Bblica Americana

    de distribuio de Bblias na lngua verncula ao redor do mundo, principal

    propsito de sua vinda ao Brasil.

    A negao de sua proposta levada a Assemblia Legislativa de So

    Paulo em 1839 para a distribuio de exemplares do livro cristo nas escolas

    primrias pblicas, aps a anuncia de alguns de seus membros, conforme

    retratada nos relatos, demonstra as divergncias que havia entre os lderes

    polticos e os prprios dirigentes catlicos quanto aos rumos da religio

    brasileira, ao mesmo tempo em que revela a preponderncia da defesa do

    catolicismo como religio oficial e como um fator de unidade para o Imprio,

    no obstante essa perspectiva no fosse consensual.

    Diogo Antnio Feij ocupa lugar destacado entre os anos 20 e 30 do

    sculo XIX. Importante figura poltica desde a Independncia do pas,

    desempenhando as funes mais elevadas durante o Perodo Regencial, alm

    de representante de reformas federalistas no mbito poltico, era defensor de

    uma Igreja independente de Roma, sujeita ao Estado constitucional, com

    normas disciplinares estabelecidas dentro do pas. Essas questes e sua

    proposta de abolio do celibato clerical de 1828 sero tema do terceiro

    captulo, sendo entendidas como interface dos confrontos e dos dilemas do

    catolicismo brasileiro no perodo.

    A oposio religio convencional realizada por padre Feij despertou o

    interesse do jovem Kidder, confesso admirador de suas idias. Enquanto

    missionrio o viajante via essas divergncias como uma brecha para que seus

    objetivos evangelsticos fossem alcanados. Por isso, tomou conhecimento do

    debate religioso, posicionando-se em favor dos liberais catlicos que

    almejavam realizar uma reforma eclesistica, restringindo a influncia da Igreja

    romana no pas.

  • 10

    Captulo 1

    A construo do Estado brasileiro

    A primeira metade do sculo XIX caracteriza-se pelo processo de

    construo do Estado brasileiro como nao independente, buscando alcanar

    posio junto aos pases desenvolvidos Europa e Estados Unidos , a partir

    das novas doutrinas fundadas na soberania do povo. Esta era uma rdua tarefa

    tendo em vista os mais de trezentos anos de colonizao portuguesa. Este

    processo tem suas peculiaridades que o tornam um caso sui generis na histria

    dos povos independentes da Amrica Latina.

    A manuteno da unidade territorial do Imprio do Brasil uma das

    questes de maior destaque nas obras historiogrficas sobre este perodo.

    Entretanto, se ocorre uma convergncia em relao ao tema, h divergncias

    sobre os caminhos que conduziram integridade do pas.

    Ilmar Rohloff de Mattos3 destaca um aspecto que , sem dvida, um

    trao particular da independncia brasileira: a vinda da Corte Portuguesa para

    o Rio de Janeiro. O projeto modernizador com base no Reformismo Ilustrado,

    cujo centro era a cidade do Rio de Janeiro, sede do governo portugus na

    Amrica, defendido por D. Rodrigo Coutinho, entre outros, sara vencedor.4

    As transformaes que esta cidade sofreu durante este perodo foram

    essenciais para a importncia que o centro-sul adquiriu, ocasionando uma

    inverso do fluxo tradicional a partir do porto 5, atravs da abertura de

    estradas que facilitariam o escoamento da produo interiorana para a capital.

    Assim se delineara a hegemonia da cidade do Rio de Janeiro, como importante

    centro poltico, comercial e cultural do Imprio.

    No entanto, conforme demonstra Maria Odila Leite da Silva Dias a

    manuteno da integridade do Imprio foi uma conquista que ocorreu a partir

    3 MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquerema. So Paulo: HUCITEC; Braslia, DF: INL, 1987, p.

    3,4. 4 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorizao da metrpole e outros estudos. So Paulo:

    Alameda, 2005. 5 Ibidem, p. 51.

  • 11

    de uma imposio da Corte no Rio de Janeiro, e que se deu, segundo a autora

    a duras penas pela centralizao do poder e conseguida pelos portugueses

    enraizados do centro-sul, que empreenderam a difcil tarefa de reorganizar o

    novo Estado.6 Evaldo Cabral de Mello lembra, de igual modo que o emprego da

    fora bruta foi fundamental para garantir a adeso das provncias ao Imprio.7

    Outro fator que segundo Maria Odila teria contribudo para a unidade

    o sentimento de insegurana que predominava devido s manifestaes

    contrrias ao projeto de nao defendido pelos grupos hegemnicos, tambm

    pela preeminncia do Rio de Janeiro como centro do Imprio e ainda pelo

    chamado haitianismo o temor de uma rebelio escrava semelhana da

    que ocorrera no Haiti e que ameaava a segurana da classe de senhores de

    escravos. Desse modo, a Corte e o poder real atraram os grupos que estavam

    temerosos quanto manuteno da ordem do Estado.

    Miriam Dolhnikoff demonstra que havia foras que levavam disperso,

    como a ausncia de vnculos fortes entre as diferentes regies do Imprio, e

    ainda, interesses comuns que criavam laos mesmo que tnues como a

    manuteno da ordem escravista e a posio adquirida pela colnia a partir da

    vinda da Corte portuguesa. Para ela, por isso, a histria da construo do

    Estado brasileiro na primeira metade do sculo XIX foi histria da tenso

    entre unidade e autonomia.8

    Outra questo que objeto de anlise nos diversos estudos a da

    atuao das elites no exerccio do poder e na organizao do aparato poltico-

    institucional, promovendo a consolidao de um governo que pudesse exercer

    hegemonia sobre as demais regies, definindo seu papel nesse momento.

    Ilmar os identifica como os dirigentes saquaremas tanto a alta

    burocracia estatal como os proprietrios rurais, que por meio de sua ao

    exerceram uma direo intelectual e moral. Segundo o autor, este grupo

    desempenhou uma funo preponderante para a unidade do Imprio,

    6 Ibidem, p. 17,18.

    7 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independncia: o federalismo pernambucano de 1817 a

    1824. So Paulo: Editora 34, 2004, p. 12. 8 DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do sculo XIX. So

    Paulo: Globo, 2005, p. 11.

  • 12

    orientando suas aes de acordo com aos princpios da Ordem e Civilizao

    defendidos pelos dirigentes imperiais, se constituram diante dos incentivos

    econmicos da poltica joanina para o Rio de Janeiro promovendo o cultivo dos

    primeiros cafezais, importante produto de exportao, cujos proprietrios

    integraram a classe econmica dominante poucas dcadas depois.

    Jos Murilo de Carvalho tambm ressalta a ao da elite dirigente como

    crucial na construo do Estado. No entanto, ao contrrio de Ilmar, trata-se de

    uma elite poltica que se diferencia da elite econmica.9 Aponta que a

    preservao da unidade, a continuidade do sistema monrquico e a construo

    de um governo civil foram possveis graas ao tipo de elite que no Brasil foi

    responsvel pela implementao de um determinado modelo poltico para o

    pas. Esta elite foi constituda pela metrpole portuguesa e se caracterizava

    pela homogeneidade ideolgica e de treinamento.10 Segundo ele, quanto mais

    homogneo o grupo dirigente, mais estvel o processo de formao do

    Estado.11

    No caso brasileiro, esta homogeneidade foi adquirida atravs de uma

    formao universitria comum: o curso de direito da Universidade de Coimbra e

    as Universidades de Direito brasileiras. Alm disso, havia uma carreira poltica

    comum, comeando pela magistratura, depois circulavam em vrios cargos

    polticos em diversas provncias para ganhar experincia. O resultado deste

    percurso segundo Carvalho, um efeito unificador poderoso. 12 que ao fim e

    ao cabo culminaria numa diminuio dos conflitos intra-elite.

    Maria Odila afirma que a Independncia, em 1822, no coincidiu com a

    consolidao da unidade nacional, concluda em 1840-50, e tambm no foi

    um movimento nacionalista, uma reao de brasileiros contra portugueses.13 A

    identidade nacional no havia se constitudo. Por isso, os conflitos internos e a

    heterogeneidade regional e racial so evidentes para aqueles que viveram este

    momento. Deste modo s a ao de um grupo com um projeto conservador, de

    9 CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial. Rio de Janeiro:

    Campus, 1980, p.19. 10

    Ibidem, p. 21. 11

    Ibidem, p.29. 12

    Ibidem, p. 96. 13

    DIAS, Maria Odila Leite da Silva, op. cit., p. 7,8.

  • 13

    um governo centralizado e forte seria capaz de se sobrepor aos diversos

    interesses provinciais que tendiam para a fragmentao e manter a unidade

    nacional.

    A idia de um grupo dirigente que detm o poder e impem modelos

    para a organizao do Estado, cabendo a uma maioria, membros deste mesmo

    Estado, apenas a sujeio reverencial tem sido desconstruda por pesquisas

    mais recentes que demonstram que esta viso no corresponde ao governo

    representativo que se erigiu nos primeiros anos do Imprio.

    Evaldo Cabral de Mello defende que seria um reducionismo pensar que

    a Independncia e a construo de um Estado unitrio teria sido obra de

    alguns indivduos bem dotados de enorme viso poltica geralmente nascidos

    no tringulo Rio-So Paulo-Minas.14 Este autor ressalta o protagonismo de

    outras regies, em especial de Pernambuco.

    Nesta perspectiva, Miriam Dolhnikoff defende que a unidade do Imprio

    do Brasil no se deveu hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais

    provncias, a partir de um governo forte que aglutinasse os conflitos regionais,

    mas resultou da implementao de um arranjo institucional por meio do qual

    essas elites se acomodaram 15, garantindo sua participao nas decises

    polticas.

    Desse modo, a autora ressalta o papel decisivo que as elites provinciais

    desempenharam na formao do Estado, constituindo-se tambm como elites

    polticas. Assim, o arranjo de tipo federativo caracterizado por uma relao

    entre o centro e as partes, representadas no Legislativo. Portanto, h

    centralizao governo central e tambm descentralizao municpios.

    Considerando o momento seguinte a independncia, em 1830, parte da

    historiografia defende que a vitria conservadora nos primeiros anos da

    independncia, demonstrada por diversos estudos sobre esse perodo, sofreria

    uma inverso aps a abdicao de D. Pedro I em 1831. A partir da sada do

    14

    MELLO, Evaldo Cabral de, op. cit., p.11. 15

    DOLHNIKOFF, Miriam, op. cit., p.14.

  • 14

    monarca e do fim de um governo autoritrio, inicia-se um perodo da tomada de

    poder pelos liberais.

    O Perodo Regencial definido, na maior parte das anlises, como um

    momento nico, quando o projeto liberal aplicado de fato. Na Regncia surge

    um novo modelo poltico. Conforme afirma Srgio Buarque de Holanda, os

    brasileiros, afinal, haviam chegado ao poder.16

    Para Jos Murilo as reformas constitucionais da dcada de 30 tinham

    por objetivo eliminar os resduos absolutistas da Constituio 17, com base

    nos princpios federalistas norte-americano. O Ato Adicional de 1834 aprovou

    as Assemblias provinciais, a diviso de rendas e a eliminao do conselho de

    Estado. Porm, as rebelies que eclodiram durante este perodo foram

    determinantes para a reao conservadora movimento conhecido como

    Regresso da dcada de 40.

    Maria Odila afirma que a gerao da dcada de 30, diferentemente da

    gerao da independncia, era mais republicana e entusiasta das instituies

    norte-americanas.18 Entretanto ressalta que embora fundamentadas nos ideais

    liberais estas reformas no resultaram numa ampliao da participao poltica,

    que ficaram restritas s classes dominantes nas suas respectivas localidades.

    A autora fala de uma intelligentsia urbana incipiente, de origem nativa, que

    inspirada nos princpios estadunidenses, tentava adquirir poder poltico,

    representando os interesses dos novos comerciantes. O ncleo de liderana

    poltica da Corte permanecer at ento predominantemente em mos de

    funcionrios e burocratas formados em Coimbra.19 Assim, estas reformas

    assumiram um carter arcaico e ambguo, dando origem ao mandonismo local

    e de outro lado culminariam na centralizao administrativa.

    Jos Murilo de Carvalho defende que tanto liberais quanto

    conservadores eram avessos a uma mudana radical e os abalos polticos e

    16

    HOLANDA, Srgio Buarque de. Brasil-Estados Unidos, 1831/1889, in: HOLANDA, S.B. de (org.). Histria Geral da civilizao Brasileira. Declnio e queda do Imprio. 4 ed, .t.2, v.4, SP: Difel, 1971, p. 181. 17

    CARVALHO, Jos Murilo de. Pontos e bordados: escritos de histria poltica. BH: Editora da UFMG, 1999, p. 164. 18

    DIAS, Maria Odila Leite da Silva, op. cit., p.141. 19

    Ibidem, p. 142.

  • 15

    sociais que ameaaram a unidade do pas durante o perodo regencial foram

    experincias marcantes que os faziam ver com cautela projetos mais

    audaciosos.

    Em contrapartida, Miriam Dolhnikoff compreende o processo de

    construo do Estado brasileiro como algo contnuo, do ponto de vista que o

    projeto federalista no foi extirpado pelo modelo de Estado centralizado,

    liderado por uma elite de princpios conservadores. Desde o momento da

    Independncia havia um enfrentamento dos partidrios destas idias. A opo

    pelo federalismo estava delineada tanto em 1824 quanto nas reformas

    constitucionais da dcada de 30 e 40.

    Os federalistas brasileiros tomavam como referncia o modelo norte-

    americano, mas devidamente adaptado realidade do pas, reconhecidamente

    diferente. Em primeiro lugar, a defesa da autonomia provincial e um regime

    representativo, mas garantindo a participao apenas de grupos dominantes.

    Assim, podemos dizer que este federalismo de tipo norte-americano estava

    devidamente expurgado de seu contedo democrtico e de sua natureza

    republicana.20 Em segundo lugar, enquanto o federalismo norte-americano, em

    substituio a Confederao, tinha o objetivo de fortalecer o poder central, no

    Brasil, estava direcionado a fortalecer o poder dos governos provinciais, aps a

    outorga da Constituio de 1824, elaborada com forte tendncia centralista.

    O fechamento da Assemblia Constituinte em 1824 deu incio

    centralizao do Primeiro Reinado, mas j em 1826, a Cmara dos Deputados

    voltou ativa e a oposio D. Pedro I se organizou. Aps a abdicao,

    durante o Perodo Regencial, os projetos federalistas foram colocados em

    prtica, nas reformas liberais adotadas no Cdigo do Processo Criminal de

    1832, que na viso de Thomas Flory, a mais alta expresso da filosofia

    judicial produzida na dcada liberal, garantindo a ampliao dos poderes do

    juiz de paz reafirmava o compromisso liberal para uma justia local

    independente21 e no Ato Adicional de 1834, tributrio do Cdigo supracitado. 22

    20

    Ibidem, p. 15. 21

    FLORY, Thomas. Judge and jury in Imperial Brazil (1808-1871): social control and political stability in the new state. Austin: University of Texas Press, 1981, p.64. 22

    DOLHNIKOFF, M., op. cit., p. 86.

  • 16

    Conforme Miriam Dolhnikoff descreve no Ato Adicional as provncias

    representariam governos autnomos e atuariam unilateralmente com poderes

    irrevogveis pelo governo central. A autonomia provincial incidia sobre a

    tributao, as decises referentes a empregos provinciais e municipais, obras

    pblicas, fora policial, de modo que os governos das provncias dispunham de

    capacidade financeira para autonomamente decidir sobre investimentos (...). 23

    Esta autonomia estava atrelada ao governo central, preservando a unidade

    territorial. Assim dava-se o funcionamento do arranjo institucional.

    Dolhnikoff argumenta que a reviso conservadora da dcada de 40 no

    alterou a participao das elites provinciais no governo central, mas apenas

    promoveu a centralizao do judicirio. O que se viu foi as elites provinciais se

    constituram como elites polticas comprometidas com o novo Estado, evitando

    assim a fragmentao.24 Portanto, nesse momento as reformas polticas

    federalistas foram efetivadas.

    Assim, h outros atores que participam da construo do Estado

    brasileiro, que no mera dominao de uma minoria localizada do centro-sul

    sob uma maioria dispersa pelo vasto territrio. A questo da existncia ou no

    de um governo representativo e da demarcao de seus limites numa

    sociedade escravista e de forte herana colonial, central historiografia que

    trata deste perodo.

    Srgio Buarque de Holanda afirma que grande parte da populao

    brasileira estava margem do processo poltico e a independncia no

    resultou em mudanas significativas para a populao escrava e para a

    populao livre pobre. Havia um descompasso entre as idias revolucionrias

    que chegavam e a condies sociais de sua efetiva aplicao, por isso, ainda

    que eliminado o absolutismo e oficializada a independncia, parte da

    organizao estabelecida durante o processo de colonizao no foi alterada e

    assim sendo, a democracia s haveria de ser por fora aparncia v.25

    23

    Ibidem, p. 18. 24

    Ibidem, p. 19. 25

    HOLANDA, Srgio Buarque de. A democracia improvisada. In: HOLANDA, S.B. de. (org.). Histria Geral da Civilizao brasileira do Imprio Repblica. 4 ed., tomo II, 5 vol., SP, Difel, 1985, p. 80.

  • 17

    No sistema constitucional brasileiro, alm dos trs poderes foi

    acrescentado um quarto poder, que originalmente formulado por Benjamin

    Constant, seria um poder neutro ou real, cuja funo seria mediar, tutelar,

    moderar, distinguindo-se do poder executivo. No entanto, no Brasil, Holanda

    aponta que na Constituio de 24 este poder colocado numa posio central,

    como a chave de toda a organizao 26, fortalecendo, portanto, o poder

    pessoal do imperador e o executivo em detrimento do poder legislativo.

    Ilmar Mattos fala tambm de uma interpretao particular dada ao quarto

    poder, num jogo de semelhanas que a condio de monarquia hereditria

    propiciava aproximando a Constituio do Brasil aos princpios constitucionais

    de pases como Inglaterra e Frana e de diferenas, j que as instituies

    brasileiras no tinham o grau de perfeio das naes europias, fortalecendo

    a figura do monarca, titular do poder moderador.27

    Predomina a idia de que o governo imperial, embora constitudo a partir

    de referenciais liberais, no os colocou em prtica de modo efetivo. Jos Murilo

    fala de uma engenhosa combinao de elementos importados inspirada no

    constitucionalismo ingls, da poltica centralista de Portugal e Frana e das

    instituies norte-americanas como a justia de paz, o jri, e uma limitada

    descentralizao provincial. Porm s ao final do Imprio a formao da nao

    e a participao da populao foram discutidas.28

    Pesquisas recentes confirmam a diversidade de projetos para a nao

    em pauta no debate poltico durante a construo do Estado Nacional.

    Considerando o campo das idias, o liberalismo doutrina hegemnica da

    primeira metade do sculo XIX, interpretado pelos diversos grupos sociais,

    adaptando-se a diferentes realidades e interesses. Miriam Dolhnikoff lembra

    que o termo liberal denominava grupos heterogneos que se dividiam quanto

    s solues que deveriam ser aplicadas ao estado em construo.

    26

    Ibidem, p. 70. 27

    MATTOS, Ilmar R. de. La experiencia del Imprio del Brasil. In: ANNINO, Antonio e GUERRA, Franois-Xavier (coord.). Inventando La nacin: Iberoamrica siglo XIX. Mxico: Fondo de cultura econmica, 1994. 28

    CARVLHO, Jos Murilo de, op. cit., p. 90,91.

  • 18

    As revoltas que ocorreram durante este perodo demonstram que o

    liberalismo foi apropriado inclusive homens livres pobres, libertos que

    integravam as fileiras dos revoltosos e de escravos, combinados com

    elementos da cultura popular, formando uma idia prpria de cidadania, ainda

    que esta vivncia no se enquadrasse nas expectativas das elites polticas 29,

    conforme apontado por Mnica Dantas.

    Desse modo, a autora prope a superao da viso que esta

    participao na construo da nao tenha se restringido apenas a uma defesa

    de vivncias deslocadas diante das transformaes do pas de acordo com os

    princpios da sociedade burguesa, passando assim a enxerg-las como parte

    da sociedade no interior da qual o Estado estava sendo construdo e dentro da

    qual estes homens se mobilizaram e agiram tendo em vista valores e

    instrumentos prprios de insero social, mas tambm se apropriando de

    valores e instrumentos novos que estavam sendo constitudos a partir da

    organizao de um regime que se queria monrquico, constitucional e

    representativo.30

    Estes grupos posicionaram-se tambm em relao Igreja, contestando

    ou defendendo a ordem institucional estabelecida, demonstrando que o

    catolicismo era um elemento importante nas experincias cotidianas desta

    populao.

    Na historiografia sobre a construo do Estado Imperial, o nome do

    padre Diogo Antnio Feij surge como um dos maiores lderes liberais do

    Imprio, assumindo o maior cargo do executivo eleito para a Regncia Una, em

    1835, tendo antes ocupado o cargo de deputado, ministro da justia e senador.

    Feij liderou muitos projetos de reforma, entre os quais, de mudanas

    significativas na Igreja Catlica brasileira sob o regime do Padroado. Sua

    atuao demonstra que a organizao eclesistica no passou inclume diante

    das transformaes que incidiam sobre as estruturas polticas do pas.

    29

    DANTAS, Monica Duarte. Eplogo: homens livres pobres e libertos e o aprendizado da poltica no Imprio, in: DANTAS, Monica (org.). Revoltas, motins, revolues. Homens livres pobres no Brasil do sculo XIX. So Paulo, Alameda, no prelo, p. 4 30

    Ibidem, p. 7.

  • 19

    1.1) O Estado e o direito do Padroado

    A relao entre a Igreja e o Estado um tema presente em diversos

    estudos e debates que revelam sua difcil conciliao. Durante o perodo de

    construo da nao, na primeira metade do sculo XIX, s transformaes do

    pas corresponderam mudanas em cada uma destas instncias de poder,

    delineando um novo jogo de foras.

    Estas transformaes surgiram a partir das idias da ilustrao em sua

    forte oposio aos privilgios do clero e opresso religiosa que havia

    subsistido por sculos. A constituio dos Estados Unidos (1787) e da Frana

    (1791) pautavam-se pela idia de liberdade religiosa, provocando uma ruptura

    com a antiga identificao entre nao, nacionalidade e religio e fazendo

    surgir a concepo de estado laico.

    No Brasil a Constituio de 1824 no trouxe grandes alteraes quanto

    identidade religiosa do pas. O catolicismo permanecia com o status de

    religio oficial do Imprio. Porm, permitiu-se uma abertura a que outros credos

    pudessem ser praticados, ainda que de modo bastante discreto, constituindo

    um ambiente de tolerncia religiosa.31 De contratual, a liberdade de culto

    tornou-se constitucional.32 No entanto, o prncipe herdeiro concentrava os dois

    poderes temporal e espiritual sob sujeio, exercendo o direito de

    padroado.

    O padroado foi estabelecido ainda no perodo da Reconquista, em

    Portugal, em 15 de maro de 1319, a partir da fundao da Ordem de Cristo.

    Juntas, as Ordens de Cristo, Santiago e Aviz foram reconhecidas por seu labor

    em defesa da f crist. Porm este direito se consolidou no perodo das

    grandes navegaes, quando a Ordem de Cristo passou a exercer uma ao

    31

    Segundo o artigo 5 A Religio Cathlica Apostlica Romana continuar a ser a Religio do

    Imprio. Todas as outras Religies sero permitidas com seu culto domstico, ou particular em

    casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo. BRASIL. Constituio

    (1824). Disponvel em:

    . 32

    FONSECA, Alexandre Brasil de Carvalho. Secularizao, pluralismo religioso e democracia no Brasil: um estudo sobe evanglicos nos anos 90. Tese e Doutorado. Departamento de Sociologia. FFLCH, USP, 2002, p. 43.

  • 20

    missionria nos territrios descobertos e a Igreja de Roma lhe concedeu uma

    srie de direitos sobre as terras conquistadas.33 Conforme aponta Patrcia

    Ferreira dos Santos houve uma convergncia de sucessivos papas em

    conceder privilgios aos reis catlicos, com o objetivo de torn-los aliados da

    Igreja na luta contra heresias e ameaa protestante.34

    A Bula Inter Cetera de Calixto III de 13 de maro de 1456, confirmando a

    de Nicolau V, de 8 de janeiro de 1554, concedeu ao rei Afonso e ao infante D.

    Henrique a jurisdio espiritual das terras descobertas Ordem de Cristo e a

    Bula Aeterni Regis do Papa Xisto IV, de 21 de junho de 1481, confirmando as

    dos papas Nicolau V e Calixto III, concederam a D. Affonso, sobrinho de D.

    Henrique, a Ordem de Cristo a administrao espiritual de todas as terras do

    Ultramar, descobertas e por descobrir.35 Estas so apenas duas das 69 que

    dizem respeito ao domnio conferido aos reis catlicos, representantes

    mximos da Ordem de Cristo.36

    (...) e a dita Bula e ao nela contido em favor duma estabilidade mais firme daquelas coisas, e bem assim conceder perpetuamente sobredita Milcia e a essa Ordem espiritual e toda jurisdio ordinria, tanto nas referidas ilhas, terras e lugares adquiridos, como nos outros que para o futuro nas regies dos ditos Sarracenos, o sejam pelos mesmos Rei e Infante, ou pelo sucessor destes. (...) 37

    A jurisdio concedida aos monarcas referia-se tanto a autoridade

    espiritual quanto autoridade secular e era um direito hereditrio, sendo,

    33

    Entre as obras que consultamos citamos: SALGADO, Graa (org). Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. 2 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (publicaes Histricas; AZEVEDO, Thales de. Igreja e estado em tenso e crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia. So Paulo: tica, 1978; HOORNAERT, Eduardo. Histria da Igreja no Brasil, 1 v. Petrpolis: Vozes, 1983. 34

    SANTOS, Patrcia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). Dissertao de mestrado. Departamento de Histria. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. USP, 2007. 35

    SOARES, Jos Carlos de Macedo. Fronteiras do Regime Colonial. RJ: Jos Olympio editora, 1939, p. 40-56. 36

    Ibidem. Desde o tempo do infante D. Henrique, a chefia da Ordem era conferida a um membro da famlia real. BOXER, Charles. O imprio martimo portugus: 1415-1825. Cia da Letras, p.243. 37

    SOARES, Jos Carlos de Macedo Soares, op. cit., p. 41.

  • 21

    portanto, a origem do comando do rei sobre a Igreja. Charles R. Boxer num

    estudo sobre o direito de padroado, enumera cada uma das obrigaes do

    monarca:

    a) a erigir ou permitir a construo de todas as catedrais, igrejas, mosteiros, conventos e erimitrios dentro da esfera dos respectivos patronatos; b) a apresentar a Santa S uma curta lista dos candidatos mais convenientes para todos os arcebispados, bispados e abadias coloniais e para as dignidades e funes eclesisticas menores, aos bispos respectivos; c) a administrar as jurisdies e receitas eclesisticas e a rejeitar as bulas e breves papais que no fossem aprovados pela respectiva chancelaria da Coroa. 38

    Estas determinaes colocavam os membros do clero sob as ordens do

    rei, de modo que, um clrigo s poderia exercer o cargo com a aprovao da

    Coroa, dela dependendo para seu sustento. Entre a Igreja de Roma e a Igreja

    das colnias ibricas se coloca a instituio monrquica, representada pelo rei.

    A historiografia que trata deste tema destaca que a Igreja de Roma tinha

    pouco interesse pelas regies mais longnquas na frica, sia e Amrica. De

    acordo com Boxer, os papas da Renascena, estavam mais preocupados com

    o crescimento do protestantismo e com a ameaa turca e, por isso,

    concordaram em deixar nas mos dos monarcas ibricos a administrao

    eclesistica das colnias e to grande nmero de almas.39 A partir do sculo

    XVII reconhecia-se que estes direitos concedidos traziam inconvenientes a

    autoridade papal, porm no ocorreu nenhuma modificao.

    Quando da chegada dos portugueses, o Brasil ficou sob jurisdio da

    Ordem de Cristo. A partir de 1514, foi criada a Diocese de Funchal na Ilha da

    Madeira diocese que era responsvel por todas as terras portuguesas. Em

    38

    BOXER, C. A igreja e a expanso ibrica (1440-1770). Lisboa: Edies 70, 1981, p.100. 39

    BOXER, C. O imprio... Op. cit., p. 243.

  • 22

    1551 foi criado o Arcebispado da Bahia40, assumindo posio relevante durante

    todo o Imprio.

    Foi na Bahia que, em 1707, houve o 1 Snodo Diocesano para a

    promulgao das Constituies, com o objetivo de estabelecer leis diocesanas

    para o bom governo do arcebispado, direo dos costumes, extirpao dos

    vcios e abusos, moderao dos crimes, e reta administrao da justia (...) 41,

    sob a direo de D. Sebastio Monteiro da Vide, formado em direito cannico

    na Universidade de Coimbra e nomeado metropolitano do Brasil.42

    Alguns autores defendem que a Constituio Sinodal do Brasil insere-se

    na atuao da Igreja ps-tridentina na Amrica portuguesa, cujos decretos

    teriam subsidiado sua realizao, com o objetivo de uniformizar a prtica dos

    sacramentos, estabelecendo penas para as infraes cometidas por clrigos e

    leigos e exigindo-se algum tipo de registro. Batismo, crisma e casamento

    deveriam ser registrados em livros especiais.43

    Uma das funes da Igreja era estabelecer padres de conduta e

    normas que servissem de modelos para os habitantes da colnia, permitindo

    um maior controle por parte da Coroa. Antnio Cames Gouveia, ao analisar os

    resultados das medidas tridentinas em Portugal e os confrontos que ocorreram

    a partir dela afirma que o rei preocupava-se com o enquadramento de seus

    sditos e ainda, que o domnio do nmero significava o domnio do indivduo.

    Controlar aqueles que nasciam, quando nasciam, quem os apadrinhava, quem

    lhes concedia o nascimento, ou seja, o proco que os batizava, era essencial

    (...)44 Essa funo da instituio eclesistica era ainda mais urgente

    considerando a diversidade da populao da Colnia lusitana.

    Assim, era fundamental uma Constituio eclesistica que,

    fundamentada nas Sagradas Escrituras, da Patrstica e do Conclio Tridentino

    40

    TORRES-LONDOO, Fernando. A outra famlia: concubinato, igreja e escndalo na colnia. SP: Loyola, 1999, p.111. 41

    AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 77. 42

    Ibidem, p. 77. 43

    TORRES-LONDOO, Fernando, op cit., p. 120; SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p.47. 44

    GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J. (dir.). Histria de Portugal, v. IV. Lisboa: Estampa, 1993, p. 292.

  • 23

    (Trento, 1545-1563) 45, tivesse sua origem no pas, levando em considerao

    as condies e hbitos dos habitantes do Brasil. Thales de Azevedo ressalta a

    importncia deste cdigo, adotado por todas as dioceses que se estabeleceram

    no territrio brasileiro, vigorando at 1899.46

    O direito do padroado surgiu como um pacto entre a Igreja e a Coroa,

    que, de acordo com vrios estudos, nunca foi ausente de conflitos. No Brasil

    colonial havia desentendimentos de ordens diversas como disputas por reas

    de jurisdio, o custo dos servios religiosos, alm das que envolviam a

    fiscalizao rgia.47

    No jogo de foras entre a instituio monrquica e a instituio

    eclesistica, Antnio Hespanha destaca que a Igreja, no Antigo Regime,

    ocupava uma posio privilegiada, tal qual nenhuma outra instituio nacional

    como formadora das conscincias e imagens da verdade.48

    A Igreja era mantida pelo Estado tanto na formao do corpo

    eclesistico, quanto na construo de templos, mosteiros, como tambm na

    normatizao das vivncias religiosas atravs do calendrio, dos dias santos e

    nas determinaes de dias festivos tinha total proteo do Estado,

    favorecendo, desse modo, sua ao.

    Num outro estudo sobre o Estado Moderno, Hespanha defende que

    durante o absolutismo monrquico em Portugal, a Igreja impunha limites ao

    poder real, na medida em que, ao lado do direito de rei havia o direito cannico

    e a vontade do monarca devia sujeitar-se s normas religiosas. O autor lembra

    ainda que a Igreja tinha o poder de excomungar o rei, o que implicaria no

    descumprimento do dever de obedincia dos seus sditos. Por isso, as crises

    com o Papado que se multiplicavam durante os reinados de D. Joo V e D.

    Jos eram politicamente to srias. 49

    45

    AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 78. 46

    Ibidem, p. 79. 47

    SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p. 15,16. 48

    GOUVEIA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J., op. cit., p. 295. 49

    HESPANHA, Antnio Manuel. O debate acerca do Estado Moderno. In: TERRAGUINHA, J. (coord.). A historiografia portuguesa, hoje. So Paulo: Hucitec, 1999, p. 143.

  • 24

    Sergio Buarque de Holanda, seguindo esta tendncia afirma que a Igreja

    gozava de uma situao vantajosa, e que aps a Independncia, a igualdade

    prescrita pelo liberalismo, condenava os foros privilegiados, no Brasil,

    representados pelo clero. Estes privilgios foram mantidos aps a

    independncia e foram abolidos nos anos da Regncia.50

    Os limites do poder monrquico no Brasil devem ser analisados tendo

    em vista as condies especficas pautadas pelo Padroado Rgio. Alguns

    estudos apontam diversos casos em que os reis tornavam-se uma espcie de

    super-bispos, de prelados espirituais do ultra-mar.51

    Durante a vigncia do padroado, alguns trabalhos defendem que o poder

    real promoveu o desenvolvimento de uma cultura do sagrado particular em

    virtude da ingerncia direta do poder monrquico. Nesse perodo, o catolicismo

    caracteriza-se pelas manifestaes exteriores como as grandes procisses. A

    arte sacra a demonstrao da grandeza da majestade de Deus e do rei. O

    poder do rei e o poder de Deus, configurado no poder da Igreja (...).52

    No estudo de Thales de Azevedo a Igreja sofreria uma subordinao

    forada, que acarretava muitos inconvenientes. Seguindo esta idia, o perodo

    do crcere de ouro da igreja como definido por Magalhes de Azeredo foi,

    segundo Joo Dornas Filho, pior no Imprio, quando o Estado foi o grande

    algoz da Igreja com a pretenso de proteg-la 53, dai nascendo o regalismo.

    Hespanha tambm relaciona a sujeio do poder espiritual em relao

    ao poder poltico com o regime regalista, forma poltica adotada pelos

    monarcas na segunda metade dos setecentos. O regalismo inseparvel da

    secularizao 54, j que os assuntos referentes religio e ao sagrado tinham

    uma importncia secundria dada primazia das razes do Estado. Este

    50

    S com o Cdigo de Processo, inspirado em suma nos mesmos ideais que iro ditar o Ato Adicional, que se firmar, ao cabo, o princpio da abolio dos foros privilegiados. HOLANDA, Sergio Buarque de. A herana colonial sua desagregao. In: S. B. de H. (Org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira, t. II, v.1, So Paulo: Difel, 1962, p. 36. 51

    AZEVEDO, Thales de Azevedo, op. cit., p. 26 e SANTOS, Patrcia Ferreira dos, op. cit., p.25,26. 52

    Ibidem, p. 298. 53

    FILHO, Joo Dornas. O padroado e a igreja brasileira. So Paulo: Editora Nacional, 1938, p. 19. 54

    GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: MATTOSO, J., op. cit., vol IV, p. 298.

  • 25

    regime consolidou-se graas ao enfraquecimento da Igreja, durante os conflitos

    entre o poltico e o religioso, e se fortaleceu na administrao de Pombal.

    Inspirado no reformismo ilustrado, o prncipe regente do Brasil, D. Pedro

    I, procurou manter o direito do padroado, enviando um representante Santa

    S, para que o renovasse, tendo em vista a nova conjuntura do pas como

    nao independente. O sumo pontfice, depois de alguma hesitao, em

    reconhecimento a evangelizao impulsionada pelos portugueses no Novo

    Mundo respondeu favoravelmente. Este episdio descrito por Dom Oscar de

    Oliveira:

    No dia 8 de agosto de 1824, Monsenhor Francisco Corra Vidigal, Encarregado dos Negcios do Brasil junto S. S, recebia suas instrues para as tratativas com Roma. Desejava ainda o governo regalista conseguir uma bula na qual apenas se declarasse o direito que j pretendia ter a dignidade de Gro-mestre das Ordens de Cristo, Santiago e Aviz, com todos os seus anexos e privilgios.55

    Eduardo Hoornaert afirma que este episdio demonstra uma diferena

    do conceito de padroado: Pedro I o tinha como direito, atribuio prpria do

    poder absoluto dos reis, quando Roma o considerava especial privilgio,

    concedido pelo papa, em decorrncia da evangelizao dos territrios

    conquistados. 56

    Sergio Buarque demonstra que num momento posterior, a Assemblia

    Geral negou o exerccio perptuo do ttulo de gro-mestrado, alegando que os

    soberanos de Portugal no tinham utilizado o direito de padroado como servos

    da Igreja, mas como reis.57 Houve um esvaziamento de sentido do direito do

    padroado, compreendido em sua dimenso poltica.

    55

    Esta concesso documentada na A Bula de Leo XII de 15 de maio de 1827. OLIVEIRA, Dom Oscar de, op. cit., p. 117. 56

    HOORNAERT, Eduardo, op. cit., 2 v., p. 78. 57

    HOLANDA, Sergio Buarque de. A herana colonial sua desagregao. In: S. B. de H.(org.), op. cit., t. II, v.1, p. 33

  • 26

    Numa anlise sobre a igreja como plo poltico em Portugal no sculo

    XVIII, Antnio Cames Gouvea demonstra que o regalismo acaba sendo aceito

    por parte dos membros do corpo eclesistico como uma proteo interna da

    Igreja, apesar da subordinao exigida desta para com o Estado. O essencial

    para os iluministas catlicos definir a atuao de cada uma das esferas.

    No mbito da definio dos papis do Estado e da Igreja defendia-se o

    epicospalismo doutrina que negava a Santa S a primazia da jurisdio, que

    deveria ser realizada pelo bispo da diocese. O epicospalismo combinado com

    o regalismo desembocava no princpio das igrejas nacionais. 58

    O Perodo Pombalino foi fundamental para compreenso das mudanas

    na religio tradicional do Brasil, pois permitiu a entrada das idias iluministas.

    Depois de fazer adeptos nas elites letradas de Portugal foram adotadas por

    segmentos educacionais e eclesisticos tanto portugueses, quanto

    brasileiros.59 Esta nova orientao seguia uma linha antiescolstica e

    antijeustica.

    A oposio Companhia de Jesus se intensificou a partir de 1750

    quando o marqus de Pombal, secretrio dos negcios estrangeiros do rei D.

    Jos, de Portugal, proclamou a liberdade dos ndios brasileiros, fazendo frente

    os direitos exclusivos que jesutas e colonos tinham sobre eles.60A expulso da

    Companhia de Jesus de Portugal e de suas colnias redundou na sada de 600

    padres61 com grandes prejuzos das funes eclesisticas, que estavam, na

    maior parte, em suas mos.

    No incio do sculo XIX, o episcopado era pouco numeroso e insuficiente

    para atender uma populao em crescimento. A maior parte das funes

    religiosas era feita por leigos. O catolicismo brasileiro era leigo na

    evangelizao, feita por indivduos, ou na famlia; no governo, atravs do

    58

    GOUVEA, Antnio Cames. O enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso. In: Mattoso, Op. cit., vol IV, p. 298. O epicospalismo colocava a autoridade dos bispos ou de uma ordem pastoral, como no caso das igrejas anglicanas como superior a autoridade papal. Esta doutrina foi condenada pelo Conclio Vaticano I, que estabeleceu a infalibilidade Papal. 59

    WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no sculo XIX: a Reforma de D. Antnio Joaquim de Melo (1851-1891). So Paulo: tica, 1987 (Ensaios 120). Cap. 1. 60

    MENDONA, Antonio Gouva. Repblica e pluralidade no Brasil. Revista USP, So Paulo, n. 59, p. 144-163, setembro/novembro 2003, p.148. 61

    Ibidem.

  • 27

    padroado; na administrao, pelas irmandades e ordens terceiras; na

    assistncia social, pelas casas de misericrdia; nas devoes, de carter

    privatizado. Mesmo o clero estava bastante laicizado.62 O relacionamento

    entre a Igreja brasileira e Roma era quase inexistente.63

    Esse distanciamento entre as duas igrejas fica evidente quando

    lembramos que o reconhecimento da independncia do Brasil pela Santa S

    deu-se somente em 1827.64 O distanciamento tambm existia entre os

    membros do corpo eclesistico, considerando o tamanho do pas, a

    precariedade do transporte e das vias terrestres de comunicao, resultando

    no enfraquecimento da instituio. Ademais, a formao do clero brasileiro era

    precria, pois no haviam sido criados no Brasil seminrios permanentes, com

    docentes capazes e exemplares e cursos apropriadamente planejados.65

    A formao de muitos padres brasileiros deu-se de forma independente,

    atravs de sua adeso aos servios da Igreja, no contato direto com outros

    clrigos no exerccio de seu ofcio nas parquias. Este o caso do padre Diogo

    Feij e do grupo dos Padres do Patrocnio, de Itu, o qual integrava.66

    A poltica praticada por D. Pedro I, herdeiro direto da casa de Bragana,

    em relao Igreja criava uma aproximao, em alguns aspectos situao

    vivida pela antiga metrpole portuguesa. Ao regime regalista levado adiante

    pelo monarca brasileiro somava-se as doutrinas racionalistas do perodo:

    jansenismo, galicanismo, maonaria, que entraram com toda fora no pas e

    foram responsveis por um esvaziamento do transcendente, criando uma

    religio civil, ressaltando sua funo moral e moralizante.

    No anexo includo no final deste trabalho, um artigo de 26 de agosto de

    1833, cuja autoria no revelada, do jornal Correio Oficial, estabelece-se um

    padro para a religiosidade do Imprio do Brasil. Observando o documento,

    62

    Citao de P.A.R. de Oliveira. Religiosidade popular na Amrica Latina. In: HOONAERT, Eduardo, op. cit., v. 2, pp. 13,14. 63

    Ibidem, p.15. 64

    AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 123. 65

    Ibidem, p. 129. 66

    Naquela poca no havia seminrios em regime de internato, e bastava ser aprovado numa avaliao ministrada pelo bispo para sagrar-se padre. RICCI, Magda. Assombraes de um padre regente: Diogo Antnio Feij (1784-1843). Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT-IFCH, 2001, p. 214.

  • 28

    encontramos informaes importantes que iluminam a compreenso do campo

    simblico do perodo. A religio, reconhecida como parte essencial do homem,

    est veiculada muito mais a uma conduta moral que as obrigaes ritualsticas

    ou ao cumprimento de normas. Valoriza-se mais a razo que o sentimento

    religioso. Virtuoso no aquele que vive cercado por regras, mas aquele que

    est comprometido com seu prximo. O dever dos homens est muito mais

    relacionado ao desempenho de suas responsabilidades na sociedade.

    Ainda, aparece a identificao entre razo, religio crist e moral que

    recorrente ao longo de todo o sculo XIX. A religio perde parte de seu

    componente mstico e torna-se mais prtica. Estes trs itens serviro de

    parmetro para avaliar o estgio de desenvolvimento de um pas.

    possvel perceber alguns indcios do incio do processo de

    secularizao da sociedade brasileira, que ser completado no final do sculo

    XIX, atravs da emergncia de um discurso que se opunha superstio

    religiosa e a ignorncia, em defesa de uma religiosidade racional, cuja crena

    manifestar-se-ia na vida social cotidiana, atravs de uma atitude moral.

    Jos Bonifcio, um dos articuladores da Independncia, lder do projeto

    civilizatrio e centralizador, defendia um governo forte, fundamentado no

    Reformismo Ilustrado67, era um crtico da aliana entre o Estado e a Igreja: O

    clero quando no pode ser amo, escravo dos reis. 68 Ele acreditava que o

    Padroado Rgio era desfavorvel para a Igreja e nesta frase est implcita a

    idia de uma separao de poderes, de acordo com o modelo adotado pelas

    naes desenvolvidas e que almejava, um dia, incluir o Brasil.

    interessante observar que nos registros histricos e historiogrficos

    recorrente a idia que a Coroa no cumpria com diligncia suas obrigaes,

    comprometendo a qualidade religiosa dos fiis. Esta crtica pode estar

    associada a prpria primazia que a religio tinha enquanto instrumento do

    Estado em detrimento de sua ligao com o transcendente.

    67

    SILVA, Jos Bonifcio de Andrada e. Projetos para o Brasil. In: DOLHNIKOFF, M. (Org.) So Paulo: Cia das Letras, 1998. Introduo. 68

    Ibidem , pp. 322-324.

  • 29

    Diversos relatos de viajantes estrangeiros que descrevem nossa

    sociedade neste perodo, tratam deste assunto apontando inmeras

    deficincias da Igreja e das manifestaes religiosas dos habitantes do Brasil.

    Boxer menciona os inmeros pecados de omisso imputados ao

    padroado na sia, segundo o prelado italiano Francesco Ingoli ainda no sculo

    XVII, entre os quais: fundos insuficientes para a manuteno das igrejas, o fato

    de bispados serem deixados vagos e uma crtica habitual aos portugueses:

    serem excessivamente devotos dos aspectos exteriores da Igreja e negligentes

    quanto ao desenvolvimento espiritual do indivduo.69

    Sobre o padroado brasileiro, Thales de Azevedo desenvolve uma

    opinio semelhante a do frade Ingoli sobre a religiosidade portuguesa as

    parquias so extentssimas, alargando-se para os sertes, escassamente

    servidas de procos; (...) ingnua e pouco instruda sustentada por um culto

    externo brilhante e multitudinrio... 70

    Dom Oscar de Oliveira, ao tratar dos dzimos, afirma que os reis

    abusavam quase sempre da generosidade dos Romanos Pontfices,

    ultrapassando os limites destas concesses. Faziam doaes dos dzimos

    eclesisticos a igrejas, mosteiros e pessoas nobres, como se lhes

    pertencessem.71 O gro-mestre podia dispor, sua vontade, do remanescente

    das rendas da O. de Cristo depois de ter cumprido os encargos dela.72

    Na Europa catlica, o pagamento dos dzimos foi extinto a partir da

    Revoluo Francesa: na Frana, em 4 de agosto de 1789. Em Portugal

    somente em 30 de julho de 1832. No Brasil, os dzimos foram suspensos aps

    a abdicao de D. Pedro I e segundo D. Oscar de Oliveira fora padre Feij que

    havia proposto sua extino. Durante o 2 reinado raras provncias ainda

    pagavam os dzimos.73

    69

    Sobre o padroado na sia. BOXER, C. O imprio... Op. cit., p. 249. 70

    AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 85. 71

    OLIVEIRA, Dom Oscar de. Os dzimos eclesisticos no Brasil nos perodos da Colnia e do Imprio, Citao de Souza Lobo. Dissertaes sobre os dzimos eclesisticos. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1964, p.105. 72

    Ibidem, p. 112. 73

    Ibidem, p. 119.

  • 30

    No se restringia apenas aos dzimos as crticas que envolviam o

    padroado. Este regime que conferia ao monarca o direito de ingerncia nos

    assuntos eclesisticos foi considerado malfico instituio eclesistica por

    grande parte da historiografia, promovendo crises ao longo de todo o perodo

    que vigorou, tendo seu pice na primeira metade do sculo XIX, durante o

    processo de consolidao da independncia.

    Alguns autores ressaltam que a predominncia dos interesses do Estado

    em detrimentos das necessidades da Igreja no Brasil ainda mais intenso,

    considerando que grande parte dos representantes da nao no legislativo e no

    executivo eram clrigos que acumulavam funes, alm de pequenos

    proprietrios e donos de escravos. Desse modo, estavam profundamente

    comprometidos com a ordem social e laica.

    Surge uma forte tendncia formao de uma igreja nacional, com uma

    legislao prpria, considerando as caractersticas peculiares dos membros

    catlicos brasileiros. A primeira metade do sculo XIX , portanto, marcada por

    graves conflitos entre o Estado e a Igreja, desta com a Santa S e, no mbito

    interno, pelo confronto entre os membros do corpo eclesistico.

    ausncia de uma unidade religiosa e a subordinao ao poder poltico

    pelo regime do padroado, dificultavam o cumprimento de sua misso espiritual,

    evidenciando os limites de sua atuao. De outro lado, o regime de padroado

    propiciou que no Brasil se praticasse um catolicismo mais independente das

    bulas e decretos, das determinaes da Igreja de Roma, favorecendo a idia

    de uma Igreja Catlica independente.

    Foi durante os anos aps a Independncia do pas que projetos desta

    natureza foram levados adiante, entre os quais se destaca a atuao do padre

    Diogo Antnio Feij, que Srgio Buarque de Holanda afirma que tinha uma

    mania de descatolizar o Brasil. Seu projeto combinava uma postura contrria

    ao celibato clerical um nativismo exarcebado que, se aprovado, teria levado

    ao desligamento de Roma.74

    74

    HOLANDA, Srgio Buarque de. A herana colonial sua desagregao in: HOLANDA, S.B. de (org.), op. cit., p.35

  • 31

    A construo do Estado do Brasil a partir das idias liberais trouxe novas

    perspectivas e novos problemas para a ao da Igreja. Os projetos para a

    nao traziam em seu bojo projetos de mudanas para a instituio eclesistica

    que desde o incio da colonizao era uma esfera de poder fundamental na

    prpria constituio do sistema colonial portugus, na evangelizao das

    populaes indgenas e na ocupao do espao das terras ultramarinas.

    No surpreende que na constituio da autonomia nacional fosse

    adotada uma poltica nativista em relao a uma Igreja, cujo corpo eclesistico

    era formado por grande nmero de padres portugueses e cujas regras tinham

    uma origem que era distante e ausente como era o caso da Sede romana.

    Srgio Buarque de Holanda, ao tratar desse momento histrico afirma

    que a Igreja est longe de sofrer grandes mudanas desde que comea a

    desagregar-se o sistema colonial 75 Para ele, a permanncia do padroado

    representa a continuidade de estruturas arcaicas de um passado que deveria

    ser superado.

    Para alm dessa idia, fica evidente que a abertura poltica do pas e a

    entrada das ideologias liberais provocaram mudanas na maneira de

    compreender e vivenciar a religio que entraram em conflito com o sistema do

    padroado que at ento vigorou, provocando srios conflitos e crticas,

    principalmente aps a Independncia, momento da construo da autonomia

    da nacional.

    Esta dimenso da vida social brasileira no passou despercebida pelos

    viajantes estrangeiros que vieram ao pas no incio do sculo XIX e que

    registraram suas percepes da paisagem religiosa do Imprio.

    75

    Ibidem, p.34.

  • 32

    Captulo 2

    Viagens e viajantes: Daniel Parish Kidder

    As viagens martimas so uma prtica que acompanha as civilizaes

    desde tempos remotos, como meio de locomoo, de comunicao e de trocas

    comerciais e culturais. Deram origem a mitos e heris que povoavam o

    imaginrio e foram registrados nas obras de Homero, Plnio e Plato.76

    Desde a Idade Mdia o movimento das Cruzadas contra mouros e infiis

    conferiu a estas navegaes um carter expansionista e proselitista, tendo a

    Pennsula Ibrica desempenhado papel crucial. No sculo XV, Portugal

    assume o pioneirismo das grandes navegaes, ainda sob a gide da religio

    catlica e da conquista dos povos pagos na frica, sia e Amrica.

    A partir do sculo XVIII as navegaes so motivadas por outros

    interesses que esto inseridos numa redescoberta a partir dos princpios da

    ilustrao que engendraram novas formas de ver o mundo e outra configurao

    dos povos.77 Predominava uma imagem depreciativa da Amrica e de seus

    habitantes, herana das idias construdas sobre este continente em perodos

    anteriores.

    Estudos demonstram que entre as concepes hegemnicas sobre o

    Novo Mundo havia a idia que os povos sul-americanos viveriam sua infncia

    de acordo com a crena no progresso das civilizaes sob padres biolgicos

    e que a Europa exerceria uma misso civilizatria, irradiando as luzes do

    esclarecimento aos povos atrasados.78 Estes princpios compem o iderio

    dos viajantes na virada para o sculo XIX.

    Diversos trabalhos demonstram que a idia de progresso tornou-se forte

    neste perodo: progresso cientfico, progresso industrial, progresso tcnico e

    76

    FERREIRA, Maria Isabel Rodrigues. Mitos e utopias na descoberta e construo do mundo atlntico. Coimbra: CEHA, 1999. 77

    Sobre este tema: MACHADO, Maria Helena P. T. Brasil a vapor: raa, cincia e viagem no sculo XIX. Tese de livre-docncia. Departamento de Histria, FFLCH, USP, 2005 e LISBOA, Karen Macknow. Viajantes de lngua alem no Brasil: olhares sobre a sociedade e cultura (1893-1942). Tese de doutoramento. Departamento de Histria, FFLCH, USP, 2002, p.9. 78

    LISBOA, Karen Macknow, op. cit., pp. 7-10.

  • 33

    progresso humano eram vises predominantes. Num mesmo sentido, podemos

    compreender que a partir da Revoluo Industrial os investimentos

    progressivos na velocidade tecnolgica provocaram uma transformao da

    viso de mundo dos homens e de sua prpria natureza.79

    Do ponto de vista tcnico, o aprimoramento das tcnicas de navegao

    com a inveno do barco a vapor um marco do incio do sculo XIX,

    facilitando os deslocamentos, os quais se tornaram mais curtos e menos

    vulnerveis s oscilaes e influncia das correntes martimas. Os vapores

    permitiam o transporte transocenico de milhares de pessoas e de cargas que

    pesavam toneladas, possibilitando uma grande movimentao martima.80 Esta

    nova tcnica de locomoo coadunava-se com a dinmica do progresso

    humano e da velocidade das transformaes que incidiam sobre as sociedades

    daquele perodo.

    Paul Virilio compreende o mar, metaforicamente representando

    liberdade de movimento81, superando os limites espao temporais impostos no

    plano terrestre. Esta movimentao representa, segundo Virilio, a renovao do

    capitalismo e a necessidade do fluxo de circulao terrestre e martimo, criando

    um dmos martimo, do qual, de nosso ponto de vista, os viajantes fariam

    parte certamente.

    Assim, novas tcnicas foram utilizadas visando atender os desafios

    expansionistas europeus. O barco a motor meio de transporte de grande

    porte relaciona-se com a emergncia de uma nova forma de confronto no

    mais deflagrado na terra, mas deslocado para o mar. Nesta perspectiva, Paul

    Virilio, afirma tratar-se de uma nova idia da violncia que no nasce mais do

    enfrentamento direto... 82

    Em uma anlise sobre os relatos de viagem, Mary Louise Pratt acredita

    que as viagens realizadas a partir de meados do sculo XVIII relacionam-se a

    dois processos vivenciados pela Europa do norte: a emergncia da histria

    natural como uma estrutura de conhecimento e o impulso a explorao

    79

    VIRILIO, Paul. Velocidade e poltica. So Paulo: Estao Liberdade, 1996, p. 12. 80

    MACHADO, Maria Helena P. T. Machado, op. cit., p. 3. 81

    O mar o mar livre... VIRILIO, Paul, op. cit., p. 49. 82

    Ibidem, p.50.

  • 34

    continental, por oposio martima e que coincide com a consolidao de

    formas burguesas de subjetividade e poder, a inaugurao de uma nova etapa

    do capitalismo, marcada pela busca de matrias-primas.83

    As expedies naturalistas inaugurariam uma nova fase para viajantes

    escritores, influenciados pela natureza, foco da construo do conhecimento

    nos projetos de histria natural e foco das observaes destes estrangeiros

    que com base num procedimento racional empreenderiam uma anticonquista

    uma apropriao discursiva sem a utilizao da violncia.84 Esta seria uma

    caracterstica determinante nas viagens ao longo de todo sculo XIX.

    Em seu trabalho sobre os relatos de viajantes britnicos, Luciana de

    Lima Martins lembra que preciso atentar para as especificidades de cada

    relato. No incio do XIX, a escrita estritamente cientfica era um gnero em

    construo 85 e as expedies de viajantes eram compostas por pessoas

    leigas, que foram responsveis tambm pela elaborao de discursos e

    imagens da Amrica. O termo viajante ou relatos de viagem pode encobrir

    caractersticas peculiares e interesses diversos que marcam cada uma destas

    obras e que devem ser considerados numa anlise mais especfica.

    Outro aspecto apontado pela autora e relevante para este trabalho no

    ato de apropriao discursiva das regies visitadas a que se considerar a

    subjetividade destes homens e mulheres que se lanaram ao mar em suas

    expedies: o fascnio com o desconhecido, o medo e a averso, o anseio por

    meios de comunicaes estveis, a doena, o fervor religioso, e os prazeres

    fsicos da explorao, tudo se entrecruzava tornando-se parte da indagao e

    deixando seus traos nos escritos. 86

    Nesse sentido, os relatos de viajantes so resultado de um encontro

    cultural e cabe ressaltar: os sujeitos tambm so transformados por esses

    encontros.87 Sendo assim, os viajantes, ainda que tenham uma formao

    83

    PRATT, Mary Louise. Os olhos do Imprio: relatos de viagem e transculturao. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p.35. 84

    Ibidem, cap. Narrando a anticonquista. 85

    MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes. O olhar britnico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 30. 86

    Gillian Beer. Open Fields, p. 59. Citado por MARTINS, Luciana de Lima, op. cit., p. 33. 87

    Ibidem, p. 32.

  • 35

    ideolgica que determina sua viso, so confrontados pelas situaes e

    vivncias inusitadas que a experincia em outro pas propicia e que engendra o

    indito.

    Estas questes nos levam a refletir sobre a experincia do desterro,

    vivida voluntariamente por estes viajantes. Laura de Mello e Souza aponta que

    o degredo esteve presente desde o nascimento da colnia portuguesa,

    associando-o a um ato purificador, que permitiria a superao de enfermidades

    e cumprimento de penas em virtude de pecados ou crimes. O desterrado

    viveria num purgatrio, esperando remir suas faltas e retornar sua ptria.88

    Nesse mesmo sentido, Michel Sot compreende o significado da palavra

    peregrinao, mas estritamente em seu sentido religioso, definida como o

    deslocamento de pessoas a lugares em que possam entrar em contato com o

    sagrado e que supe uma prova fsica do espao, fazendo com que o

    peregrino seja um estrangeiro. A peregrinao uma prova espiritual.89 O

    autor ressalta que no Ocidente Medieval a nfase da peregrinao estava no

    lugar que se queria chegar e que o peregrino obtinha benefcios espirituais e

    fsicos de sua viagem.90

    Ao refletirmos sobre as experincias vividas voluntariamente por estes

    homens e mulheres, deixando o conforto de seu cotidiano para

    experimentarem os limites do esforo fsico que s viagens transocenicas

    requeriam e vivendo como estrangeiros, em um ambiente diverso, percebemos

    que de alguma maneira lhes eram significativas.

    Dentre todas as idias possveis que possam auxiliar na compreenso

    desta opo, sem deixar de perceber as especificidades de cada discurso,

    lembramos que h traos comuns que caracterizam estes viajantes: muitos

    destes homens do sculo XIX estavam profundamente comprometidos com o

    progresso cientfico, comercial e religioso da civilizao, imbudos da crena na

    universalidade de seus valores. Portanto, esses viajantes estavam prestando

    88

    SOUZA, Laura de Melo e, op. cit., pp. 80,81. 89

    SOT, Michel. Peregrinao. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; So Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 90

    Ibidem, p. 353.

  • 36

    um servio sociedade qual pertenciam, o que os elevaria acima dos

    percalos das longas distncias e das dificuldades de locomoo nas precrias

    estradas do pas. Seus objetivos eram definidos previamente, e ainda que no

    alcanados em sua totalidade, levavam consigo a sensao de terem cumprido

    sua misso.

    Ainda, conforme aponta Lilia Moritz Schwarcz ao tratar deste tema, as

    viagens alteram e diferenciam o prprio mundo dos viajantes tornando-o um

    estranho a si prprio. Desse modo, o ato de viajar proporciona o conhecimento

    de si mesmo.91

    As viagens martimas do sculo XIX foram realizadas, alm dos

    europeus, por norte-americanos, fato nico at este momento. No incio deste

    perodo, os Estados Unidos procuravam consolidar sua independncia,

    desenvolvendo uma poltica de proteo dos interesses do continente, contra

    as investidas da Santa Aliana, construindo sua hegemonia na regio nas

    ltimas dcadas. Eram vistos como parte distinta do continente americano em

    virtude de suas instituies polticas e sociais. Eram, nesse sentido, uma

    extenso da Europa.92

    Segundo Katherine E. Manthorne as imagens criadas pelos norte-

    americanos, tem tanto a nos dizer sobre os Estados Unidos como o fazem

    sobre a face que o Brasil apresentava aos seus visitantes. Alm da extenso

    geogrfica reconhecidamente ambos so um dos maiores pases do

    continente Brasil e Estados Unidos buscavam constituir sua identidade

    nacional individual em relao aos europeus. 93

    91

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Viajantes em meio ao imprio das festas. In: JANCS, Istvn e KANTOR, ris. (org.). Festa: Cultura & Sociabilidade na Amrica portuguesa, vol. II. So Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de So Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001, p. 616. 92

    LISBOA, Karen Macknow, op. cit., p. 11. 93

    MANTHORNE, Katherine E. O imaginrio brasileiro para o pblico norte-americano do sculo XIX. In: Revista da USP, n 1. So Paulo, SP: USP, CCS, 1989, p. 60.

  • 37

    2.1) Kidder e as tendncias religiosas do sculo XIX

    Dentre os viajantes que estiveram no pas neste perodo e produziram

    material escrito sobre suas experincias94, os relatos de Daniel Kidder se

    diferenciam por seu vis religioso, considerando que o autor era um

    missionrio protestante em atividade. Kidder nasceu em 1815 no estado de

    Nova York. Formou-se pela Wesleyan University, em 1836, sob os preceitos do

    metodismo.95

    Os metodistas surgiram ainda no sculo XVIII na Inglaterra. John Wesley

    iniciou o movimento que deu origem Igreja Metodista, uma dissidncia da

    Igreja Anglicana. Em seus aspectos doutrinrios caracterizava-se pela

    ampliao do sentido de salvao: de uns poucos eleitos para todos que

    tivessem um desejo real de salvar as suas almas, atraindo a populao mais

    pobre96. Tambm enfatizava o ato da converso, conferindo-lhe um carter

    fortemente emocional. Alm disso, tinha um importante componente moral, por

    meio de uma conduta metdica que caracterizava aquele que havia obtido a

    salvao.97

    Em sua obra A formao da classe operria inglesa, Thompson faz uma

    anlise da classe operria inglesa entre 1780 e 1832 durante os anos de

    tenso e do papel ambguo do metodismo que surgiu como uma influncia

    94

    Thomas Ewbank residiu no Rio at agosto de 1947. EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; So Paulo, Ed. da Universidade de So Paulo, 1976. AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil 1865-1866. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. AUBERTIN, John James. Onze dias de viagem na provincial de So Paulo com os Srs. Americanos Drs. Gaston e Shaw, e o major Mereweather 1865. Carta dirigida ao Ilm. E Exm. Sr. Baro de Piracicaba. So Paulo: Typ Allem de H. Schroeder, 1866. James Cooley Fletcher, reverendo protestante, residiu no pas entre 1852-1854, 1855-1856 e, posteriormente, em 1862. FLETCHER, James C. O Brasil e os Brasileiros (Esboo Histrico e Descritivo). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. 95

    STROBRIDGE, Rev. G. E. D.D. Biography of the Rev. Daniel Parish Kidder, D.D.; LL. D. New York: Hunt &Eaton, 1894, e D. Kidder. Reminiscncias de Viagens e Permanncias nas Provncias do Sul do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1980. 96

    THOMPSON, E. P. A formao da classe operria inglesa, v. 2. So Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 37, 38. 97

    WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 126-130.

  • 38

    politicamente estabilizadora, mas, de outro lado, foi indiretamente responsvel

    por um aumento na autoconfiana e na capacidade de organizao do

    operariado.

    O metodismo teve grande repercusso na Amrica do Norte. Seus

    principais representantes empreenderam sua propagao pelos Estados

    Unidos, atravs de grandes cultos ao ar livre. George Whitefield, eloqente

    pregador das multides, promoveu a segunda fase do despertar religioso98,

    conquistando adeptos, que em nmero, ultrapassava as denominaes

    tradicionais dos presbiterianos, congregacionais e anglicanos. A reforma que

    pregavam ia alm das fronteiras do religioso e da transformao do indivduo.

    Exigiam mudanas na sociedade, atravs da busca de novos padres morais.

    Essas idias geraram um grande movimento de reforma social. Os

    grupos religiosos organizaram associaes voluntrias para combater os males

    sociais e ganhar o mundo para Cristo. A maioria dos convertidos, ativos em

    suas comunidades, procurava ajustar-se ao mundo da nova economia por

    caminhos que no violassem a moral e os valores sociais. 99

    Daniel Kidder foi autor do primeiro relato de um viajante norte-americano

    sobre o Brasil. Chegou na cidade do Rio de Janeiro, enviado pela Sociedade

    Bblica norte-americana, em 1837, aos 27 anos, permanecendo at 1840,

    quando sua jovem esposa Cyntia H. Russel faleceu, deixando-lhe dois filhos.

    Poucos anos depois, em 1845, publicou sua obra Sketches of residence and

    travels in Brazil embracing historical and geographical notices of the Empire

    and its several provinces, Vol I e II como resultado de suas observaes da

    educao, moral e religio, as quais, na qualidade de missionrio cristo, lhe

    eram mais imprescindveis.100 Tambm pretendia preencher a lacuna existente

    98

    MORISON, Samuel Eliot e COMMAGER, Henry Steele. Histria dos Estados Unidos. So Paulo. Edies Melhoramentos, s/d, tomo 1, p.116. 99

    KARNAL, Leandro... [et al]. Histria dos Estados Unidos: das origens ao sculo XXI. So Paulo: Contexto, 2007, p. 120. 100

    His attencion while there, was primarily directed to the important subjects of Morality, Education, and Religion, which, as a Christian missionary, it was his business to investigate fully. KIDDER, D. Sketches of resisdence and travel in Brazil, embracing historical and geographical notices of the empire and its several provinces. Vol. I. Philadelphia: Sorin, 1945, p.7.

  • 39

    no que se referia ausncia de informaes disponveis sobre o pas.101

    Publicou ainda outras duas obras sobre o Brasil: So Paulo in 1839 e a

    traduo em lngua inglesa do artigo de Feij Demonstrao da necessidade

    de abolir o celibato clerical de 1844. Escreveu diversos livros sobre questes

    teolgicas, destacando-se como um ilustre pensador da Igreja Metodista, nos

    Estados Unidos.102 Morreu aos 76 anos, em 29 de julho de 1891, em Evanston,

    nos Estados Unidos.

    Sketches of Residence and Travels in Brazil, de 1845, foi dividida em

    dois volumes: o primeiro descreve as regies de So Paulo e Rio de Janeiro, e

    o segundo as provncias do norte. Foi editada pela Sorin & Ball, da Filadlfia e

    pela Wiley & Putnan, de Londres, concomitantemente.

    Esta obra foi traduzida para o portugus por Moacir N. Vasconcelos e

    editada na Biblioteca Histrica Brasileira, pela Livraria Martins em 1940, com

    o ttulo Reminiscncias de Viagens e Permanncias no Brasil, compreendendo

    diversas notcias histricas e geogrficas do Imprio e das diversas provncias

    (Rio de Janeiro e Provncia de So Paulo). Em 1943, foi editada a obra

    referente s provncias do norte.

    Em 1980, o relato foi tambm editado pela Editora Itatiaia e Edusp, na

    Coleo Reconquista do Brasil, nova srie. No ano de 2001, o Senado Federal

    publicou outra edio desta obra.103

    Brazil and the Brazilians: portrayed in historical and descreptive

    sketches, realizado em co-autoria com James Cooley Fletcher, tornou-se um

    dos livros sobre o Brasil mais lidos nos Estados Unidos, contando com pelo

    menos nove edies publicadas pela Childs & Peterson da Filadlfia.104 A

    primeira edio de 1857. A segunda, terceira, quarta e quinta edies so de

    1858 a 1866, publicadas tambm pela Little, Brown, de Boston. A sexta, stima

    101

    KIDDER, D. Reminiscncias de Viagens e Permanncias nas Provncias do Sul do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1980, p. 17. 102

    Biografia consultada site www.virtualology.com no dia 25/10/10. 103

    Informaes obtidas no site www.usp.br/index.phd/bibliotecas. 104

    Notas bio-bibliogrficas de Edgar Sssekind de Mendona. In: KIDDER, Daniel P. e FLETCHER, James C. O Brasil e os Brasileiros (Esboo histrico e descritivo). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

  • 40

    e oitava edies so, respectivamente, de 1866 a 1868.105 Em 1941, a

    Companhia Editora Nacional, publicou este relato na Coleo Brasiliana,

    traduo de Elias Dolianiti, em dois volumes.

    Na historiografia brasileira no h nenhum trabalho mais especfico

    sobre os relatos de Daniel Parish Kidder. Desde sua traduo em 1940, as

    narrativas deste autor so analisadas em conjunto com as narrativas de outros

    viajantes de diferentes procedncias, com o intuito de corroborar para a

    construo de uma interpretao sobre a sociedade brasileira da primeira

    metade do sculo XIX.

    As misses protestantes na Amrica Latina e no Brasil esto

    relacionadas a uma mudana profunda das concepes religiosas que

    ocorreram a partir da Revoluo Francesa. Eric Hobsbawm em seu livro A Era

    das Revolues, de 1977, ao analisar a religiosidade no perodo de 1789 e

    1848, afirma que de todas as mudanas ideolgicas, foi de longe a mais

    profunda.106 No obstante nas ltimas dcadas do sculo XVIII predominasse

    uma atmosfera de intensa secularizao e uma oposio s formas tradicionais

    de religio, foi tambm o perodo do nascimento de uma nova religiosidade

    mais emocional e intensa. Dois movimentos tiveram uma expanso significativa

    neste perodo: o islamismo pela frica e sia e o protestantismo

    propagado por todo o mundo. O catolicismo sofria uma perceptvel estagnao.

    Durante as guerras napolenicas e revolucionrias deu-se o incio da

    atividade missionria e protestante, executada principalmente pelos anglo-

    saxnicos.107 Esta ao promo