Villa da Feira 26

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Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604

Fax: 256 379 607Tiragem: 500 exemplaresEdição: N.º 26 - Outubro de 2010Pré-impressão, Impressão e Acabamento:Empresa Gráfi ca Feirense, S. A.Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da FeiraSede Social: Edifício Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa - 4520-283 Santa Maria da FeiraEmail: [email protected]ósito Legal: 180748/02ISSN: 1645-4480Reg. ICS: 124038Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia e Sá, 59 4520-208 Santa Maria da FeiraApoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira Irmãos Cavaco S.A. E. Leclerc Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira Patrícios, S.A. Centralobão.

Ficha Técnica

Título: Villa da Feira - Terra de Santa Maria

Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ®

Director: Celestino Portela

Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia

Colectivo Editorial - Fundadores LAF:

Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro;

Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro

Processamento de Texto: Carla Maria Costa Ferreira

Coordenação Científi ca: J. M. Costa e Silva

Supervisão Editorial e Gráfi ca: Anthero Monteiro

Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende

Periodicidade: Quadrimestral

Assinatura anual: 30 euros

Assinatura auxiliar: 50 euros

Este número: 15 euros

Pagamentos por:

Transferência bancária NIB 007900001127152910124

Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira

Capa: República. Escultura de C. Pinto, Colecção de Dr. Noé

Monteiro de Oliveira.

Fotografi as: Óscar Maia, J. M. Costa e Silva, Biblioteca Municipal,

Arquivos particulares, LAF e Fotos Web por José Correia

Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

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Para memória dos futuros deixou

“Outrora…Fornos – Capela da Lage”, “Outrora… Fornos”, “O Brasão de Fornos”, “Igreja Paroquial de Escapães”, “Sanfi ns de Sobre Feira”, “Evocação da Batalha de Souto Redondo”, “D. Crescónio, Bispo de Coimbra” esparsos por muitos jornais e revistas e muitos estudos que tinha em preparação.

Foi um dos nossos.

Esteve sempre connosco, com a sua cultura, o seu entusiasmo, o seu apoio, fazendo-nos sentir que o Caminho estava certo.

Temos muito orgulho no Companheiro que partiu.

Faz-nos muita falta.

A vida continua… e o seu exemplo acompanha-nos.

Morreu o Padre José Alves de Pinho

A Justiça Divina, porque perfeita não se compadece com a dilação humana, foi feita.

E fi cou-nos

“A mágoa, sem remédio, de perder-te”

“Saudade! gosto amargo de infelizes,Delicioso pungir de acerbo espinho,Que me estás repassando o íntimo peito,Com dor que os seios d’alma dilacera,– Mas dor que tem prazeres – Saudade!”

O seu exemplo

De cuidar espiritual e socialmente dos vivos e estudar-lhes o passado, mergulhando profundamente nas suas raízes, para memória, para orgulho, para os futuros;

Para os presentes conhecerem as difi culdades que surgiram no caminho, como as venceram

e aceitaram a transitoriedade da vida terrena;

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Poesia iluminada

Judite Lopes*

Escapa pelos claustros do peito

a urgência de infinito

atracada no cais da alma.

É serenata de lua

na véspera do amanhecer

da poesia iluminada.

Quebra-se a vigília do tempo

na fímbria das horas

e a febre do corpo

é sapateado de fogo

no marulhar profundo do silêncio

pela calada da noite.*Licenciada em Animação Sociocultural.Autora do livro de poemas Vislumbres.

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7 Mensagem

Francisco Azevedo Brandão*

Comemora-se este ano um século sobre a implantação da República em Portugal. É uma efeméride que os republicanos não querem deixar passar em branco e, por isso, por todo o país, desde as autoridades ofi ciais, passando por escolas, instituições públicas e privadas, até ao cidadão comum se tem assistido às mais diversas manifestações de regozijo e louvor ao regime republicano e, consequentemente, à depreciação do regime monárquico na altura, a passar por um dos seus piores ciclos. Mas, dentro do próprio regime republicano se tem assistido a intervenções polémicas pelos que se assumem como “donos” do regime, ao quererem rejeitar o período de quase cinquenta anos da ditadura de Estado Novo. Nestas comemorações também se tem assistido a intervenções nas quais se querem dividir e classifi car os portugueses em duas categorias; de um lado, os bons, os republicanos, do outro, os maus, os monárquicos. Num país com quase novecentos anos de história, oitocentos dos quais em regime monárquico, é caricato, provinciano, fora de tempo e de muito mau senso, arrogarem-se a paladinos de todas as virtudes cívicas e políticas, tentando fazer esquecer as páginas gloriosas de uma história ímpar, universalista, humanista e pioneira da globalização moderna.

Quem não conhece ou respeita o seu passado, não se sabe orientar no presente e não saberá trilhar, com dignidade, honestidade e espírito de servir, os caminhos do futuro. Sou patriota, conheço bem a história do meu país – os bons e os menos bons momentos – jurei a bandeira das quinas, lutei por ela com sacrifício, suor e lágrimas, por isso, acho-me no direito de proclamar que todos os portugueses, como preito de homenagem a si próprios e independentemente da ideologia política de cada um, deviam acima de tudo, comemorar os 900 anos da história que ajudaram a escrever à custa da sua própria vida. A história é nossa. De todos os portugueses, sem exclusão de ninguém. Fomos todos que a fi zemos e a estamos a fazer. Bem ou mal, todos nós somos responsáveis pelo nosso passado, pelo nosso presente e pelo nosso futuro!Viva Portugal!

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local, é autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um Político de Espinho, O Campo de Aviação de Espinho, O Culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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SUMÁRIO

Pórtico Liga dos Amigos da Feira 5Poesia Judite Lopes 6Mensagem Francisco Azevedo Brandão 7Uma Monarquia sem monárquicos e uma República sem republicanos Carlos Maduro 9Poesia António Rebordão Navarro 14A República Portuguesa Jorge Augusto Pais de Amaral 15Poesia Ilda Maria 20Os Deputados pelo Distrito de Aveiro às Constituintes de 1911 Francisco Ribeiro da Silva 21Poesia Anthero Monteiro 40 Jesuítas no foco da propaganda: A solução republicana e a exorcização da decadência José Eduardo Franco 41Poesia Edgar Carneiro 60 A Expulsão das Ordens Religiosas Pela I República Portuguesa: Rupturas e Continuidades no Plano Educativo em Portugal José Eduardo Franco - Rosa Maria Rodrigues Canarim Fina 61Mensagem Escrita João Rodrigues 68Por que sou monárquico Serafi m Guimarães 69Poesia H. Veiga de Macedo 72Padre José Alves de Pinho 73Em memória do meu irmão Joaquim Alves de Pinho 79Poesia Sérgio Pereira 82In Memoriam - P.e José Alves de Pinho Frei Acaribe 83Abade de Fornos - In memoriam - Francisco Pinho 85Uma Polémica Exemplar e Memorável Entre Aquilino Ribeiro e D. Sebastião Soares de Resende Manuel de Lima Bastos 87Poesia Sérgio Almeida 98Pedro Vilas Boas Tavares, Os Lóios em Terras de Santa Maria – do Convento da Feira à realidade nacional da Congregação, Município de Santa Maria da Feira, 2009 Francisco Ribeiro da Silva 99O Solar Feirense Comemorou 57 Anos Portugal Em Foco - Rio de Janeiro 105Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria. Sessão Solene comemorativa do 57º aniversário Ernesto Pires de Boaventura 111Ricardo Reis não morreu! Celestino Portela 113O Nome “Gião” Frei Acaribe 117Apresentação do Livro de Poesia de Anthero Monteiro, Sete Vezes Sete Nuvens Sérgio Almeida 119Apresentação da Obra Histórias de Mãos de Seda, Fada e Princesa, da Autoria de Maria Gracinda Coelho Sousa D. João Lavrador 123Intervenção de Maria Gracinda Coelho de Sousa 125Visitações de Pigeiros (Feira) Domingos Azevedo Moreira 127Poesia Manuela Correia 130Dicionário Biográfi co de Personalidades Feirenses Francisco de Azevedo Brandão 131Poesia Conceição Paulino 140Apresentação do livro de poemas Périplo de Edgar Carneiro Anthero Monteiro 141Poesia Edgar Carneiro 150Ainda sobre os Relatos de Viagens Padre António Vieira Maria do Carmo Vieira 151Poesia Sérgio Almeida 154Temas Luso-Brasileiros - Os Holandeses no Nordeste “Paraíso” que Não Houve João Alves das Neves 155Poesia Anthero Monteiro 158O carácter abstracto das CANTIGAS DE AMOR Maria da Conceição Vilhena 159Poesia Manuela Correia 172Na Alfândega de Christchurch Joaquim Máximo 173Problemática Linguística dos Topónimos Galaico-minhotos MEI e MEIS Domingos A. Moreira 175Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo 181Poesia António Madureira 185

Os artigos publicados são da responsabilidade científi ca e ética dos seus autores.

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9 Uma Monarquia sem monárquicos e uma República sem republicanos

Carlos Maduro*

O regicídio de 1908 foi o “epílogo cruento de uma tragédia que se viera arrastando nas misérias e traições da vida política que tinha sido a de Portugal nas últimas décadas da Monarquia Constitucional”(1). Estaria D. Carlos conscientemente apreensivo quando terá afi rmado que Portugal era uma «monarquia sem monárquicos»? Efectivamente, analisados os acontecimentos à distância, sem as paixões políticas e religiosas que envolveram todos os intervenientes, foi inegável um claro afastamento entre a Monarquia e a Nação. A família real, pelas mais diferentes razões, muitas delas provenientes do contacto com a modernidade vivida nas cortes estrangeiras, acabaria por dar uma imagem contrária, associada a tudo o que era retrógrado e conservador. Em momentos de crise, quando se esperava que da Casa de Bragança nascessem soluções para o país, os monarcas pareciam estar mais vocacionados para a vida artística. D. Luís olhava Portugal a partir das actividades náuticas, dos harpejos do violoncelo ou inclusive de traduções de Shakespeare. D. Carlos seguiria também esta educação requintada da Casa de Bragança no campo artístico, complementada, todavia, por uma sólida formação

1 Aníbal Pinto de Castro, O Regicídio de 1908, Porto, Civilização Editora, 2008, p. 5.

* Professor da Escola E.B. 2/3 Professor Doutor Carlos Alberto Ferreira de Almeida

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nas áreas da política e da administração pública.(2) A imagem de uma casa de Bragança em oposição à modernidade e à mudança, fazendo eco dum passado dinástico menos glorioso, não correspondia de todo à verdade. Depois do casamento com D. Amélia, assiste-se mesmo a uma aproximação muito curiosa por parte do jovem casal aos meios

culturais e aos movimentos de intelectuais que então começavam a dar nas vistas. Quando se fala com tanta frequência sobre os Escritores da República, a propósito das celebrações do centenário, é importante referir o movimento dos Vencidos da Vida onde a questão da Monarquia versus República não era de forma alguma consensual. De Oliveira Martins a Guerra Junqueiro, é abundante a documentação que demonstra uma vontade séria de mudar o país, facto que não implicava forçosamente uma mudança de regime. A Quinta do Relógio em Sintra ou Paço de Belém tornaram-se espaços onde, por momentos, se pensou nas linhas orientadoras do governo do futuro monarca, tido como um “Vencido da Vida suplente”(3). Importa assim, mais uma vez, refl ectir sobre aquilo que realmente o país desejava. Personagens da mais dura sátira à sociedade do tempo, como Eça de Queirós, não escondem uma dedicação total ao Rei e à Rainha. Para outros, suportar a Monarquia seria uma forma ordeira de aguardar que o povo português estivesse preparado para se governar a si próprio, através de um regime considerado superior ao monárquico. Neste contexto, o papel reconhecido ao rei, mesmo

entre aqueles que ocupavam cargos de importância na nação, continuaria a ser o de uma força conservadora que fazia eco de um passado, na expectativa da chegada do futuro politicamente moderno e progressista. Neste contexto, a monarquia, mesmo para os republicanos, apesar das inúmeras críticas que lhe faziam, caricaturando os momentos menos abonatórios da história, continuava a ser a face visível de uma súmula histórica que ninguém ousava rejeitar. Este será, aliás, um dos princípios que acabaria por salvar muitas das monarquias ocidentais. Alguma razão teria João Franco quando dava a entender que ser republicano ou ser monárquico era menos importante do que ser português. João Chagas ia ainda mais longe e

afi rmava em 1906 que entre monárquicos e republicanos, em Portugal, não havia diferença de crenças. Existia era a diferença de posições. Ocorre então uma dúvi-da, que crenças seriam estas que não dividiam os monárquicos dos republicanos. Eduardo Lourenço, nos seus incontor-náveis ensaios, faz desta temática um assunto re-corrente. “A república, con-junto de proposições políticas

2 É notável a formação de D. Carlos, como bem refere Aníbal Pinto de Castro, id. 11-14.3 A bibliografi a sobre D. Carlos é abundante e muito contraditória. Sugerem-se dois livros, um com maior proximidade temporal: Rocha Martins, D. Carlos, História do seu Reinado, Lisboa, ed. do autor, 1926; a segunda obra, mais actual, com uma perspectiva renovada: Rui Ramos, D. Carlos (1863-1908), Lisboa, Círculo de Leitores, 2006. Sobre a ligação deste monarca ao movimento dos Vencidos da Vida, F. A. Oliveira Martins, D. Carlos I e os “Vencidos da Vida”, 2ª ed., Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1942.

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de subversivo teor ideológico mas de reduzido âmbito social, aparece então como a forma de apropriação de um destino colectivo confi scado, como então se escrevia, pela Casa de Bragança (…)(4)” Assim se entende que todo o movimento republicano, como também defende Eduardo Lourenço, tenha sido um dos períodos mais patrióticos da nossa História. A exemplo do que já acontecera em 1820, é uma espécie

de arma ideológica que consegue a adesão popular. É esta postura que ajuda a entender um facto tão simples como a criação dos dois símbolos por excelência da República, o hino e a bandeira. Mesmo numa leitura superfi cial destes dois elementos da simbologia republicana, pode facilmente perceber-se uma presença fortemente monárquica na concepção dos mesmos. Realmente, os republicanos não souberam construir símbolos que identifi cassem tanto o hino como a bandeira com os valores do progresso, da liberdade ou mesmo da democracia, numa palavra, e no espírito de Oliveira Martins, de uma “Vida Nova”. E o motivo parece ser simples,

não os construíram pelo facto de não fazerem parte de uma herança efectiva, tanto ao nível do conhecimento como das convicções mais profundas. Toda a simbologia republicana foi em si mesmo uma simbologia do passado, uma simbologia monárquica anterior à Casa de Bragança, se assim o quisermos entender. Do hino, entenderíamos uma tradição camoniana, claramente inspirada

em Os Lusíadas, centrada, poderíamos ainda dizer na segunda dinastia. Na bandeira, o patriotismo monárquico dos republicanos foi ainda mais longe, embrenhou-se nos claustros de Alcobaça e de lá tirou a tradição de Ourique. Refazer a lenda de Ourique na bandeira da República é uma das maiores contradições do movimento republicano. Se fi zermos uma breve pesquisa num dos sítios da Presidência da República, pode ler-se com agrado uma breve história da Bandeira Nacional e da simbologia das cores, de autoria de Severiano Teixeira(5). Acompanha a explicação a oportuna narrativa acerca da escolha destas duas cores, decisão que não foi pacífi ca e que envolveu alguns dos intelectuais da época, nomeadamente Junqueiro. Contudo, se excluirmos o anátema do azul e do branco, associado à Casa de Bragança, diríamos que o coração da bandeira é monárquico, reconhecidamente identifi cado com a fundação da nacionalidade. Como se afi rma no sítio da Presidência “O escudo das quinas e a esfera armilar evocam os dois momentos mais altos da história portuguesa que o imaginário político republicano opunha à decadência do

constitucionalismo - a fundação da nacionalidade e a epopeia marítima. Marcam, pois, a matriz nacionalista e colonial do republicanismo histórico.” O caso torna-se ainda mais contraditório quando é observado à luz do anticlericalismo que caracterizou alguns dos principais actores do movimento republicano. Na verdade, Ourique(6) é a pedra angular de toda uma perspectiva da História de Portugal que acabaria por desembocar inevitavelmente

4 Eduardo Lourenço, “Psicanálise mítica do destino português”, in Labirinto da Saudade, 3ª ed., Lisboa, Gradiva, 2004, p. 31.

5 http://jorgesampaio.arquivo.presidencia.pt/pt/republica/simbolos/simbolica.html , consultado em 18-8-2010 [em linha].6 Sobre a lenda da Ourique e as diferentes versões ver Luís Filipe Lindley Cintra, “A Lenda de Afonso I, Rei de Portugal”, in Revista ICALP, vols. 16 e 17, Junho-Setembro de 1989, pp. 64-78.

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no Sebastianismo e no Quinto Império. Aceitar Ourique é reconhecer a Monarquia eleita, povo escolhido, nação santa. Retomar Ourique no coração da Bandeira Nacional é fazer eco das palavras que ainda hoje se cantam nas igrejas “Salve Nobre Padroeira do povo teu protegido entre todos escolhido”. Atrever-nos-íamos a dizer que as cinco chagas de Cristo e as trinta moedas que constituem o centro da bandeira identifi cadora da nacionalidade são um dos símbolos religiosos que mais deveriam incomodar os responsáveis políticos nacionais e europeus, tão preocupados em erradicar esta simbologia dos lugares públicos. Camões explica-a e a leitura do poeta não deixa margem para dúvidas.

Já fi ca vencedor o Lusitano, Recolhendo os troféus e presa rica; Desbaratado e roto o Mauro Hispano, Três dias o grão Rei no campo fi ca. Aqui pinta no branco escudo ufano, Que agora esta vitória certifi ca, Cinco escudos azuis esclarecidos, Em sinal destes cinco Reis vencidos,

E nestes cinco escudos pinta os trinta Dinheiros por que Deus fora vendido, Escrevendo a memória em vária tinta, Daquele de quem foi favorecido. Em cada um dos cinco, cinco pinta, Porque assim fi ca o número cumprido, Contando duas vezes o do meio, Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio.

(Lus. III, 53-54)

Se alguma crítica injusta houvesse à maioria dos políticos e intelectuais republicanos seria a de falta de conhecimento e de ignorância em relação aos nossos clássicos e à cultura portuguesa em geral. Esta explicação detalhada de Camões no canto III, a propósito do episódio da Batalha de Ourique, não deixa qualquer margem de dúvidas na questão da simbologia. Columbano, João Chagas e Abel Botelho, mas não só, poderiam não ser propriamente

crentes, mas de forma alguma recusam apropriar-se duma centralidade simbólica que deitaria por terra qualquer tentativa reformista que não lançasse as suas raízes, por mais ténues que fossem, na herança popular, cultural e, por que não dizê-lo, espiritual e religiosa do país. Se hoje coabitam pacifi camente republicanos e monárquicos, se esta geração dos primeiros republicanos reúne uma simpatia e, nalguns casos, uma manifesta admiração, isso não fi ca a dever-se ao movimento propriamente dito, mas a uma militância patriótica no sentido mais genuíno do termo. Na realidade, a maioria

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deles, no tradicional fadário do nosso país, de fi losofi a política, economia ou, nos sentidos mais modernos, de administração pública, pouco saberiam. Porém, para benefício de outros, foram homens de inegável talento no cultivo das letras. O país de poetas, como não poderia deixar de ser, deu-nos reis poetas e, com a mesma generosidade, também deu republicanos poetas. Que mais poderíamos esperar? A refl exão de Eduardo Lourenço pode parecer violenta, mas refl ecte com rigor um desnorte ideológico que o nosso país tem vivido e do qual não parece que consiga libertar-se tão cedo. As comemorações do centenário da República são legítimas e é justo que decorram com toda a solenidade e respeito que nos merecem. No entanto, seria também oportuno que fossem um momento muito sério de refl exão acerca do que signifi cou em termos de transformação do país todo este século de vivência republicana. Uma certeza existe, os republicanos de hoje não são os republicanos de 1910. “O que convém é saber como Camões e a sua obra, em particular Os Lusíadas, não são uma realidade intemporal e de signifi cação unívoca. Deslocá-los, arbitrariamente, da sua signifi cação própria, enquanto expressão exemplar de um momento da nossa existência histórica e da aventura mais vasta da expansão do Ocidente, para a falsa eternidade de um mito moral, histórico e ideológico,, cujas bases continuariam intocáveis, é celebrá-lo às avessas, querer que o dividido presente nosso tenha a claridade sublimada de um passado irrevogável no seu ser e nas suas coordenadas espirituais.(7)” Por isso Antero de Quental não era muito favorável a que o poeta da “Fé e do Império” fosse associado a comemorações teofi lianas-jacobinas. Da nossa parte, conscientes da radicalidade e exagero da afi rmação, retomamos as palavras de D. Carlos, teremos uma «república sem republicanos»? Nem tão pouco se conjecturam causas que possam levar à sua queda, independentemente de existir um movimento monárquico. É patente nos dias que correm um desejo de vida nova e quantos movimentos dos vencidos da vida não poderiam ser recriados. Mas parece correr-se um sério risco de entender a República e os seus símbolos como força conservadora que faz eco de um passado, na expectativa da chegada do futuro politicamente moderno e progressista. O ataque iconoclasta aos símbolos

religiosos ainda não teve a força sufi ciente para enfrentar a opinião popular. Mas temos sérias reservas de que a lenda monárquica de Ourique resista a mais um século. Se tal acontecer, João Chagas tinha toda a razão quando afi rmava que entre monárquicos e republicanos não há diferença de crenças. Sendo assim, honra seja feita aos republicanos que tiveram o bom senso de escolher uma bandeira que serviu à união de um povo. Essa é a sua principal fi nalidade. Que seja içada a bandeira e se cante o hino por muitos e bons anos. Terminamos com versos de Tirso de Molina, dignos dum hino nacionalista, numa peça de teatro intitulada Las quinas de Portugal (1638). Versos de considerável patriotismo, apesar de pertencerem a um frade espanhol:

Aqueste estandarte, amigos,estas armas consagradas,que, de los granates ricosde Ia redención del hombrepúrpura eterna ha tenido,bajó a honrar nuestra coronadesde el alcázar empíreo;sus ángeles lo pintaron,mi Dios su artífi ce ha sido;venárenlas por más noblesde hoy más los franceses lirios,Ias barras aragonesas,los leones y castillos;eternizarlas promete,por anos, lustros y siglos,Ia omnipotencia del cielo.Quien nos Ias dió fué Dios mismo.(8)

7 Eduardo Lourenço, “Camões no presente”, in Labirinto da Saudade, 3ª ed., Lisboa, Gradiva, 2004, p. 149. 8 Apud, Lindley Cintra, op.cit, p. 14.

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EMOÇÃO E SILÊNCIO

António Rebordão Navarro*

Para quê insistir?

Nas palavras dos versos

fica a biografia dos poetas.

O resto, melancólico

ou vibrante

violeta nocturna

ou rosa de esplendor,

é o timbre do tempo,

emoção e silêncio.

*Escritor. Poeta.

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15 A República Portuguesa

Jorge Augusto Pais de Amaral*

Comemora-se este ano o centenário da implantação da República Portuguesa e, por essa razão, sentimos que será oportuno lembrar algumas das mudanças levadas a cabo a partir de então. Num primeiro momento, começaremos por recordar alguns passos do desenvolvimento da própria revolução. Depois, poderemos abordar certos factos que se seguiram como consequência da mudança operada.

I - A ORIGEM DA REVOLUÇÃO Todas as revoluções emergem do descontentamento das populações. Forma-se geralmente um grupo ou vários grupos de insatisfeitos que se organizam com a fi nalidade de perpetrar o derrube do poder instituído. No tempo da monarquia, a sociedade portuguesa oferecia uma imagem desoladora. O partido republicano surgiu então com propósitos redentores. Nessa época escreveu Fuschini: “os jovens bacharéis que no tempo de Fontes e Braancamp se dariam por muito satisfeitos se lhes confi assem a função de chefes de secretaria, começaram a manifestar audaciosas aspirações”. Entre eles se singularizaram alguns que tiveram na política portuguesa papéis destacados, como João Franco. “Esses bacharéis, lê-

se ainda no testemunho daquele antigo ministro, lisonjeavam os chefes e alegavam serviços aos partidos, para obterem situações rendosas e as colocações que lhes conviessem”. Noutro passo, dizia o mesmo autor que os oligarcas do regime monárquico riem-se uns para os outros, como os augures romanos, e praticavam actos da mais desenfreada imoralidade. Perderam a noção da própria hombridade, servem-se reciprocamente com cínica franqueza, tratam dos seus interesses, com a maior assiduidade, desenvolvem a sua clientela política e colocam parentes e amigos. Quando alguém se levanta para protestar, pelos seus lábios responde, sempre, solene e grave, a voz da moralidade. (1)

“A decomposição moral do regime espraiava-se e contaminava a Nação sem que se vislumbrassem, até ao centenário camoniano, indícios de qualquer reacção propiciatória ou salutar. A cumplicidade tácita da coroa com o partido que, largo tempo, ocupou o poder desfrutando um monopólio absoluto, a desmoralização visível dos órgãos da administração, a putrefacção crescente das engrenagens do Estado que deviam assegurar efi cazmente o funcionamento deste, eram sintomas de um mal que se agravava a cada momento, decompondo as energias do povo e devastando progressivamente o seu corpo roído pela lepra dos escândalos impunes”.

*Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Jubilado.

1 Cfr. Editorial Século in História da República, pág. 28.

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“O recurso à dívida tornou-se regra corrente na administração pública. Regar o País com libras era o estribilho que o fontismo pôs em circulação sem explicar, porém, como e onde consegui-las, uma vez que os maus processos de arranjar dinheiro se estancassem, como sucedeu algum tempo depois. As obras realizadas não correspondiam às verbas gastas pelo tesouro, de forma que a diferença representava o pagamento de uma clientela ávida e desprovida de escrúpulos, a qual aumentava à medida que os seus benefi ciários estadeavam impunemente, com a fortuna indevidamente adquirida, o êxito dos processos suspeitos que estavam na origem dela. (2)

Dominado pela repugnância que esses processos lhe causavam, Oliveira Martins exprime-se do modo seguinte: “Há um mal estar geral que não se pode encobrir. O comércio sente embaraçado os seus movimentos, a indústria arrasta-se difi cilmente, a classe trabalhadora geme e foge da Pátria, a agricultura verga sob o peso das hipotecas, a navegação desnacionaliza-se, a economia geral do País depaupera-se e defi nha-se. E, cerrando os olhos a este espectáculo deveras lastimoso, simulando não ouvir os clamores que se erguem de toda a parte, tripudia-se numa bacanal desenfreada, repartindo-se entre os maiores as vitualhas que ainda restam, e atirando com os ossos esburgados para os cães que assaltam o tesouro, ora latindo famintos, ora lambendo submissos as mãos engorduradas dos magnates. A dívida fl utuante cresce, cresce sempre. Os orçamentólogos, tendo esgotado já todas as artes da falsifi cação, com o arrependimento de Satanás, proclamam a necessidade de uma economia feroz. Eleva-se a mais de 9 mil contos a dívida fl utuante. Neste sorvedouro somem-se, desaparecem todas as economias, todos os pequenos capitais disponíveis…”(3) “Nenhum serviço de interesse público fugia à regra da chatinagem organizada: os caminhos de ferro, as obras do porto de Lisboa, os tabacos, o crédito”. “Os manejadores de fundos denunciavam, publicamente, os políticos corruptos e diziam abertamente como os corrompiam” “Quando da concessão da empreitada das obras do porto de Lisboa, o conde de Burnay afi rmou ter recebido 145 contos para não se apresentar ao concurso, e o empreiteiro Hersant, que adjudicou as obras, respondeu revelando que distribuíra dinheiro a políticos corruptos. Foi o escândalo dos “bonds”

Hersant de que fi cou triste memória. Quando a opinião pública se irritava, para lhes dar satisfação os governos viam-se obrigados a meter na cadeia alguns agentes políticos da corrupção, como aconteceu ao marquês da Foz e a Moser, e mais tarde aos dirigentes do Crédito Predial. Mas não tinham coragem para quebrar a rede de cumplicidades que se alargava à sua volta e de fazer o mesmo aos políticos venais.” “A suspeição sobre ministros e parlamentares, lê-se na “História do Regime Republicano”, era geral. Os negócios particulares e os negócios públicos baralhavam-se de tal modo que a entrada nestes parecia condição somente para a defesa daqueles. Havia a impressão de que se procuravam as situações de ministro, deputado ou par do reino, e ainda os altos cargos do funcionalismo, exclusivamente para manobrar contra os cofres do Estado e a economia nacional a gazua das concessões e dos latrocínios”. “Em 1879, o auxílio prestado pelo Estado ao Banco Ultramarino revelou a existência, naquele estabelecimento de crédito, de graves irregularidades que o governo então no poder (Fontes) cobriu, fazendo depois rejeitar a proposta de inquérito aos acontecimentos ali ocorridos, pedido na Câmara dos pares pelo marquês de Sabugosa. O incidente deu lugar a violentas polémicas de Imprensa as quais não impediram que o escândalo se consumasse”. “Para explorar os caminhos de ferro criaram-se os sindicatos de Salamanca e Santa Apolónia, o primeiro manobrado pelo Conde de Burnay, tendo como agente político Lopo Vaz e o segundo pelos fi nanceiros Foz e Moser, tendo ao seu serviço Mariano de Carvalho. A luta entre eles dominou a sua época como mais tarde, no fi m da monarquia, aconteceu com a luta entre os grupos rivais dos Tabacos e dos Fósforos.O relato dos escândalos é muito longo. Ficamos por aqui, por considerarmos que esta amostra é já sufi cientemente elucidativa acerca da situação que na época se vivia. II – A Revolução Este estado de coisas contribuiu para gerar grande descontentamento entre os cidadãos e criar as condições propícias à sua alteração. Da preparação da mudança se encarrega geralmente um movimento, que vai engrossando pela adesão de novos adeptos. A revolução de que ora nos ocupamos pode dizer-se que é obra do Partido Republicano. Tendo começado de forma clandestina, com a colaboração da Maçonaria e aproveitando 2 Idem, pág. 29

3 Ob. e loc. cit.

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uma conjuntura favorável, foi divulgando os seus ideais e mobilizando diversas pessoas. Propunham-se aproveitar todas as oportunidades que se lhes deparassem, como geralmente acontece. O “Partido Republicano Português” organizou uma grande manifestação, em Lisboa, acusando o Rei D. Carlos e o Governo de terem traído os interesses dos portugueses em África. Começavam assim as hostilidades contra o regime Monárquico ao mesmo tempo que, através de jornais e revistas, se ia revelando os escândalos e se ia fazendo a propaganda dos ideais republicanos. Em 31 de Janeiro de 1891 teve lugar, no Porto, a primeira revolta armada contra a Monarquia. A Guarda Municipal venceu os revoltosos provocando um grande número de mortos. No dia 1 de Fevereiro de 1908 foram assassinados, em Lisboa, o Rei D. Carlos e o Príncipe herdeiro, D. Luís Filipe. Subiu ao trono D. Manuel II, então com 18 anos. Porém, muito pouco tempo havia de durar o seu reinado. Os Republicanos estavam apostados em acabar com a Monarquia. A revolução com vista à mudança chegou a estar marcada para o dia 15 de Julho de 1910, mas, depois de sucessivos adiamentos, foi fi nalmente acordada a data de 4 de Outubro, porque nesse dia os barcos iriam mudar de fundeadouro. A última reunião dos revoltosos teve lugar no dia anterior. A ela compareceram, entre outros, Cândido dos Reis, Afonso Costa, José Relvas, João Chagas, José Barbosa, Eusébio Leão, António José de Almeida e Inocêncio Camacho. Machado dos Santos já se encontrava a cuidar dos preparativos imediatos. Para lhe dar início foi acertada a 1 hora da manhã. Contava-se com a acção de grupos de civis armados para ocupar os quartéis. Grandes alterações e soluções de improviso foram impostas pelo desenrolar dos acontecimentos. Cândido dos Reis, tendo chegado a supor que a revolução tinha fracassado, pôs termo à própria vida. Entretanto foi decidido bombardear o Palácio das Necessidades, o que levou à rápida retirada do Rei D. Manuel II de Lisboa para Mafra. Logo que foi conhecido o embarque da Família Real na Ericeira, o Partido Republicano procurou tomar conta da situação. O Directório entrou no edifício da Câmara Municipal de Lisboa e, às 9 horas da manhã do dia 5 de Outubro, proclamava a República, o que foi imediatamente acolhido por todo o País.

III – Princípios orientadores da Revolução Pouco depois era constituído o primeiro Governo Provisório presidido pelo Dr. Teófi lo Braga, enquanto não fosse aprovada a Constituição e eleito o Presidente da República. Os ideólogos da revolução republicana tinham em vista implantar um regime em que fossem observados certos princípios: 1º - a igualdade civil e política; 2º - a liberdade em todas as suas manifestações; 3º - um governo do povo; 4º - a justiça democrática. Com base no princípio da igualdade pretendia-se abolir os privilégios pessoais, acabar com as assembleias legislativas fundadas no direito hereditário ou na inamovibilidade de funções, alcançar o direito de sufrágio universal e de representação das minorias. O princípio da liberdade devia englobar a igualdade de direitos civis e políticos para os cidadãos de todos os cultos, a liberdade de pensamento e de expressão, o casamento civil, o registo civil, etc. O princípio do governo do povo pelo povo devia assentar no sufrágio popular como forma de criar o poder legislativo, sendo o poder executivo exercido como sua delegação e sob a vigilância das Cortes. O princípio da justiça democrática teria de partir de uma organização judiciária que assegurasse o acesso ao direito e aos tribunais a todos os cidadãos, independentemente das suas possibilidades económicas ou do seu estatuto social.

IV – Alteração dos símbolos da Pátria As primeiras leis votadas pela Assembleia Nacional Constituinte foram no sentido de abolir a Monarquia, proclamando a República, criar a nova Bandeira e o Hino Nacional. A Bandeira Nacional já havia sofrido, ao longo dos tempos, várias alterações. Cingindo-nos apenas à imediatamente anterior, podemos dizer que em 1830, por decreto, a bandeira passou a ser partida de azul e branco, com o escudo das armas reais, sobre a divisão das cores. Em 1910 fi cou partida de verde e encarnado, com o escudo das quinas, sem qualquer timbre, sobreposto à esfera armilar. O escudo apresenta-se demasiado grande em relação à esfera. O verde e o encarnado foram as cores adoptadas no levantamento de 31 de Janeiro de 1891 acima referido, em alusão ao centro federativo ibérico. As bandeiras partidas, aliás, parecem ter uma origem maçónica.

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O ensaísta, fi lósofo e intelectual Eduardo Lourenço considera a esfera armilar a maior das nossas pretensões e diz mesmo que “não há nenhuma bandeira que tenha símbolo mais onírico e mais ambicioso do que esse” (cfr. Revista Única do Expresso de 3 de Julho de 2010, pág. 38). O Hino Nacional teve origem em A Portuguesa, que havia sido composta em 1890, quando do ultimato inglês, por H. Lopes de Mendonça, que escreveu a letra, e Alfredo Keil, que fez a música. Esta composição tornou-se muito popular sendo cantada em todo o País. Após a implantação da República foi adoptada como Hino Nacional em 1911, tendo sofrido apenas uma ligeira alteração da letra do refrão: em vez de contra os bretões, marchar, marchar”, “contra os canhões, marchar, marchar”. Alfredo Keil era fi lho de um casal alemão radicado em Portugal. Um seu descendente é uma prestigiada fi gura com ligação à Vila de Canas de Senhorim, do concelho de Nelas.

V – A Assembleia Constituinte O governo provisório, presidido por Teófi lo Braga, era constituído por elementos do partido a quem se fi cou a dever a revolução, o Partido Republicano Português. Cabia-lhe a iniciativa de criar as condições para que fosse votada a Constituição. A Assembleia Nacional Constituinte foi eleita por sufrágio em que só houve eleições em menos de metade dos círculos eleitorais. Na verdade, dos 50 círculos em que foram divididas as assembleias eleitorais do Continente e Ilhas, só em 22 se realizou o acto eleitoral. Quando, em determinada circunscrição não havia mais candidatos do que os lugares a preencher, eram esses candidatos proclamados “eleitos” sem que tivesse havido votação. Tendo sido determinada a dissolução e proibição da existência de partidos monárquicos, não havia oposição. Não houve sufrágio universal, tendo votado apenas os cidadãos alfabetizados e os chefes de família maiores de 21 anos.

VI – Amnistia Foi publicada uma amnistia geral para os crimes praticados contra a Religião, contra a segurança do Estado (para ilibar os regicidas e os bombistas), contra a desobediência, contra o uso de armas e bombas proibidas, declarando beneméritos da Pátria os que haviam lutado para implantar a República.

Logo no primeiro dia da República, Afonso Costa, Ministro da Justiça do Governo Provisório, requisitou ao Juiz, Dr. Almeida e Azevedo, o processo do regicídio de 1908, constituído por 4 volumes, cujo julgamento estava marcado para o dia 25 seguinte. O processo fi cou “guardado” no Ministério, tendo-se perdido o seu rasto. Diga-se, a propósito, que, embora tenha corrido o boato de que aos ministros da ditadura franquista seria aplicada a sanção que eles próprios haviam assinado para os revoltosos de 31 de Janeiro de 1891, tal não aconteceu. E ninguém foi afastado por ter estado do lado da monarquia. Paiva Couceiro chegou a pedir a demissão, mas não foi aceite.

VII – Alterações legislativas Publicaram-se diversos decretos revolucionários de conteúdo considerado avançado para aquela época. Foi abolido o juramento com carácter religioso. O empossado ou a testemunha, ao prestar depoimento, deixavam de ter de jurar por Deus, fazendo-o pela sua honra. Estabeleceu-se o ensino obrigatório e gratuito para todas as crianças de idade compreendida entre os 7 e os 10 anos. Procedeu-se à fundação das Universidades de Lisboa e Porto. Criaram-se jardins de infância e expandiu-se o número de escolas. Criaram-se leis de protecção à infância e à velhice. Foi extinto nas escolas primárias e normais o ensino da doutrina cristã. Passou a ser permitida a dissolução do casamento pelo divórcio (litigioso ou por mútuo consentimento). Estabeleceu-se a igualdade entre os cônjuges. Defendeu-se a igualdade entre fi lhos “legítimos” e “ilegítimos”. Foi publicada a lei da greve. Foi instituído o descanso semanal obrigatório. Procedeu-se à limitação dos horários de trabalho. Foi fi xada em 48 horas a semana laboral e criado o seguro obrigatório. Entrou em vigor a lei da separação da Igreja e do Estado, o que levou ao rompimento das relações com a Santa Sé. O decreto que estabeleceu a separação fi cou a dever-se a Afonso Costa, Ministro da Justiça. Devia ser ratifi cado pelo Parlamento, mas tal só veio a acontecer em Março de 1914, depois de muita controvérsia, o que não impediu a sua imediata aplicação que se estendeu, a partir de 1913, às colónias ultramarinas. Foi reposta em vigor a legislação pombalina sobre a expulsão dos judeus e extinção das ordens

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religiosas. Foram proibidas as procissões fora do perímetro das igrejas. Procedeu-se à estatização de bens do clero.

VIII – Laicização do Estado Em 20 de Abril de 1911, foi corporizada a lei que estabelecia a separação da Igreja do Estado. De um certo ponto de vista, colocava em pé de igualdade todos os credos religiosos. Pretendia-se, porém, restringir a esfera de infl uência da Igreja Católica. Afonso Costa previa que, com esta lei, no espaço de 2 ou 3 gerações, o catolicismo seria completamente erradicado do País. Entendia que a Igreja estava na origem do atraso dos povos. Foram perseguidos alguns bispos e outros foram expulsos ou mesmo suspensos dos seus direitos temporais. Foi o caso do prelado de Beja, D. Sebastião Leite de Vasconcelos. Como reacção, os bispos lançaram uma “Pastoral”colectiva defendendo a doutrina da Igreja acerca do respeito pelos poderes constituídos e protestando contra a violência de que eram vítimas. O governo proibiu a sua leitura, embora alguns tenham resistido divulgando o respectivo texto. Foi o caso do bispo do Porto, D. António Barroso, que por isso veio a ser chamado por Afonso Costa a Lisboa e, tendo sido exposto a insultos do povo, foi destituído das suas funções eclesiásticas.

IX – O Caos Qualquer revolução é levada a cabo com o entusiasmo daqueles que esperam uma radical mudança para melhor. A revolução republicana teve também esse mesmo ânimo a acalentá-la. Como dizia Eça de Queiroz, em Os Maias, pretendia-se uma República “governada por génios” e “a fraternização dos Estados Unidos da Europa”… Mas nas revoluções não participam exclusivamente os génios e, depois de concretizadas, muitos dos espíritos que as produziram desaparecem, sendo os seus lugares ocupados por espíritos de segunda ordem, que dela procuram tirar proveito pessoal. A revolução republicana não fugiu à regra. As mudanças que os revoltosos procuravam nem todas foram alcançadas. E, por outro lado, não foram capazes de criar um sistema com a estabilidade necessária ao progresso. Pelo contrário, assistiu-se a uma sucessão de 45 governos, 8 eleições gerais e 8 presidentes em pouco mais de 15 anos.

Busto comemorativo dos 100 anos da revolução de 5 de Outubro-1910.

A República Portuguesa tornou-se o regime parlamentar mais instável da Europa Ocidental. Esta situação constituiu o pródromo do “Estado Novo” que havia de durar até 25 de Abril de 1974.

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20“ASSIM, AMOR, ASSIM”

Ilda Maria*

E assim, amor, assim

Construímos a vida

Com um punhado de sol,

Um punhado de estrelas;

Nós fizemos as coisas mais belas

Que ninguém mais faria.

Assim, amor, assim

Fizemos crescer rosas

Onde só existiam

Plantas espinhosas

Que nunca floresciam;

E nós, com nossa alma unida,

Com nosso olhar ardente,

Fizemos nascer vida

No meu ventre.

Assim, sem ser mesmo preciso

Mais nada que o riso

Da nossa Primavera.

Tudo isso fizemos

Do que apenas era

O mais profundo sono,

O mais profundo sopro de abandono

Do tempo empobrecido.

Assim, amor, assim reverdecido

Por nós, por Deus também,

Viveremos o tempo construído

Cada vez mais além!...

*Poeta Faleceu em 20/07/1981

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21 Os Deputados pelo Distrito de Aveiro às Constituintes de 1911(1)

Francisco Ribeiro da Silva*

A região de Aveiro, tal como o Norte em geral, aderiu, sem tardança, à proclamação da República festejada em Lisboa em 5 de Outubro de 1910. A grande imprensa da época testemunha sufi cientemente a alegria espontânea pelas novas instituições, por parte das gentes da cidade e do distrito de Aveiro. O jornalista classifi ca de «louco» o entusiasmo que se manifestou e viveu nas ruas da cidade durante os dias 6 e 7 de Outubro de 1910. Não faltaram sequer duas bandas de música a interpretar e a exteriorizar a festa delirante dos aveirenses.(2) A 6 foi hasteada a bandeira republicana nos Paços do Concelho. No dia seguinte foi a vez do Quartel de Infantaria 24 e da Capitania do Porto assinalarem do mesmo modo a sua adesão ofi cial à República. A 8 tomou posse o primeiro Governador Civil republicano, Albano Coutinho, cerimónia a que compareceu

toda a ofi cialidade da guarnição. A mesma pronta anuência pode ser documentada relativamente aos diversos concelhos do Distrito como Espinho,(3) Mealhada, Anadia, Vagos, Águeda e até a pessoas singulares que haviam sido fi guras muito conhecidas na vigência do regime anterior.(4)

De resto, a imprensa regional existente no Distrito antes de 5 de Outubro e, sobretudo, a enorme quantidade de pequenos jornais que aí conheceram a luz do dia logo após a Revolução, elucidam-nos claramente acerca do entusiasmo da terra pelo novo regime.(5) Grande parte dessas publicações, sendo de curta duracão, como que nasceram justamente para proclamar, exaltar e difundir o ideal republicano da época, caracterizado por posições contra a Monarquia, contra a Igreja e o Clero, contra a corrupção política e as organizações e publicações monárquicas.(6) Tais temas, alimentando os sucessivos editoriais da nova ou renovada imprensa regional, constituíram uma linha programática generalizada.

*Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, jubilado.

(1) – O presente trabalho pretende continuar, no que toca ao Distrito de Aveiro, o estudo que o Prof. Luís A. de Oliveira Ramos lançou relativamente ao Minho: Memória sobre os Deputados do Minho às Constituintes de 1911, Braga, 1976 (Separata de Bracara Augusta. t. XXX, Julho-Dezembro de 1976).(2) – O Mundo, Lisboa, 10 de Outubro de 1910, p. 5, col. 4.

(3) – Jornal de Notícias, Porto, 7 de Outubro de 1910, p. 4. col. 5.(4) – O Mundo, Lisboa, dias 9 a 15 de Outubro de 1910.(5) – Num rápido levantamento feito a partir dos catálogos da Biblioteca Pública Municipal do Porto, pude constatar, na área do Distrito, a existência de 30 títulos de jornais locais, geralmente semanários, no período compreendido entre 1910-1914. Presumo que esta estatística não é exaustiva. É evidente que nem todos apoiavam abertamente a causa republicana. Grande percentagem autoproclamava-se de «independente».(6) – A. H. de Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa, Lisboa, s/d, p. 124.

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Aliás, «o entusiasmo pela liberdade, em Aveiro, vem de longe, data de 1820», aonde terão chegado as ramifi cações do Sinédrio portuense.(7)

Nas lutas entre absolutistas e constitucionais, estes sendo inferiores em número, eram convictos, audaciosos e sufi cientemente capazes de se imporem sacrifícios em prol do seu ideal político. As listas de nomes de liberais aveirenses que, oriundos de várias camadas sociais, sofreram perseguições por terem aderido à causa constitucional, é muito signifi cativo e concludente.(8)

Em 1910, os republicanos da região de Aveiro, não sendo numerosos, foram, mais uma vez, convictos, audaciosos e abnegados e, em consequência, conquistaram credibilidade e adesão às suas ideias.

Proclamada a República e abolido o regime monárquico multissecular, o Partido Republicano Português, credenciado pela Revolução, tomou conta do poder e constituiu imediatamente um Governo Provisório, presidido por Teófi lo Braga.(9) Um Governo Provisório, por defi nição, supõe a curto prazo a substituição por governo mais durável, enquadrado por uma Constituição, legitimado, de algum modo, por sufrágio popular. A organização de eleições demora o seu tempo. Todavia, ainda antes de expirado o primeiro semestre após a Revolução, foi publicado o Decreto que estabelecia e regulava o acto eleitoral.(10) O povo iria às urnas para eleger os seus deputados, encarregados de elaborar a Constituição da incipiente República Portuguesa.

Para gozar de capacidade eleitoral, o cidadão devia satisfazer determinados requisitos: ser português genuíno, ter vinte e um anos de idade em 1 de Maio de 1911, residir em território nacional, saber ler e escrever, ser chefe de família (determinando a lei o que, por tal, se devia entender) e não estar abrangido por circunstâncias impeditivas, concretamente especifi cadas na lei.(11) As restrições impostas, sugeridas pela

«preocupação em preparar um corpo consciente de cidadãos através da educação e em evitar o caciquismo tradicional» obstaram à formação de uma grande massa eleitoral. Com efeito, o número de eleitores recenseados não ultrapassou os 850 000 (20 % da população) e desses, apenas 60 % terão exercido o direito de voto.(12)

A organização das eleições

A lei eleitoral determinava que, à excepção de Lisboa, Porto, Angra do Heroísmo, Horta e Colónias, cada círculo elegeria 4 deputados,(13) sendo a eleição feita por sufrágio secreto, directo e facultativo. Cada círculo era designado por um número de ordem ou pela sua sede a qual, em princípio, seria o nome do Concelho mais central ou mais importante do círculo.(14)

O Distrito de Aveiro foi dividido em três círculos, com sedes em Aveiro, Estarreja e Oliveira de Azeméis a que correspondiam respectivamente os números 15, 16 e 17.(15) Ficariam integrados no círculo n.º 15 – Aveiro – os concelhos de Aveiro, Águeda, Anadia, Ílhavo, Oliveira do Bairro, Mealhada e Vagos. Aveiro, não sendo o mais central, era o concelho mais importante. Os eleitores dos Concelhos de Estarreja, Espinho, Ovar e Vila da Feira fi cariam pertencendo ao círculo n.º 16, com sede em Estarreja – que não era o Concelho mais central. Seria o mais importante? Finalmente, pelo círculo n.º 17, Oliveira de Azeméis, fi cavam abrangidos os concelhos de Albergaria-a-Velha,

Arouca, Castelo de Paiva, Macieira de Cambra e Sever do

(7) – Marques Gomes, Aveiro, berço da liberdade – A revolução de 16 de Maio de 1828, Aveiro, 1928, p. 5. (8) – Idem, p. 20/23. (9) – David Ferreira, «Governo Provisório Republicano» in Dicionário de História de Portugal, II VoI., Lisboa, 1971, p. 367.(10) – O Decreto sobre o acto eleitoral foi promulgado em 14 de Março de 1911, sendo posteriormente remodelado pelo de 5 de Abril de 1911.

(11) – Decreto de 5 de Abril de 1911, cap. lI, Art. 5. O artigo 6 nega capacidade eleitoral aos que «receberem algum subsídio de benefi cência pública ou particular», modifi cando substancialmente a primitiva redacção a qual não conferia direito de voto às praças de pré em efectivo serviço, aos indigentes e a todos os que não possuíssem meios próprios para a sua subsistência. Pelo referido artigo, são ainda incapacitados para o exercício de voto os pronunciados com trânsito em julgado, os interditos, por sentença, da administração de sua pessoa ou bens, os falidos não reabilitados e os incapazes de eleger por sentença penal e ainda os portugueses por naturalização.(12) – A. H. Oliveira Marques, Ob. Cit., p. 142. / 36 /(13) – Lisboa teria dois círculos, elegendo 10 deputados cada um. O Porto teria apenas um círculo cabendo-lhe 10 deputados. Os Distritos de Angra e Horta elegeriam, cada qual, 3 deputados. Cada círculo colonial elegeria 1 deputado. (Decreto de 5 de Abril de 1911, cap. I).(14) – Decreto de 5 de Abril de 1911, cap. V, art. 34.(15) – Decreto de 20 de Abril de 1911.

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Vouga. Oliveira de Azeméis pode ser considerado o centro deste conjunto territorial. A título de curiosidade, parece interessante referir ainda que, ao todo, estavam previstas no Distrito 52 Assembleias de voto, das quais, as 20 pertencentes ao círculo de Estarreja não funcionaram por não haver, aí, candidatos da Oposição.(16)

Recenseamento

Seria organizado por concelhos, sendo a respectiva comissão encabeçada pelo Presidente da Câmara e constituída pelos Presidentes das Juntas de Freguesia.(17)

Um primeiro trabalho era elaborado nas freguesias, cabendo ao Presidente da Junta a confecção do rol local. Mais do que «elemento de informação», servia de base ao novo recenseamento, o último realizado nos tempos da monarquia, do qual seriam suprimidos, obviamente, os nomes dos falecidos, dos já não residentes e dos que não reuniam os requisitos legais para exercerem o direito de voto. Acrescentar-se-iam, por motu próprio da comissão recenseadora ou a requerimento dos interessados, os nomes de novos eleitores, que, residentes na localidade à data do primeiro dia do recenseamento, se encontrassem nas condições legais exigidas para o exercício desse direito.(18)

Os cadernos eleitorais seriam afi xados em tempo oportuno, especifi cado na lei, prevendo o decreto a concessão de um período de quatro dias para eventuais reclamações.(19)

Listas e Candidatos

Segundo a lei eleitoral, dez dias antes da data marcada para as eleições, deveriam os cidadãos candidatos a

deputados fazer entrega por si ou mediante procurador, da declaração ofi cial da sua candidatura, a qual deveria obedecer a determinados requisitos.(20)

No distrito de Aveiro, houve listas electivas constituídas e apoiadas pelo Partido Republicano Português e em dois círculos houve candidatos independentes, extra partidários, ambos de convicções republicanas. Não foi fácil nem pacífi ca a elaboração da lista defi nitiva dos candidatos pelo círculo n.º 15 – Aveiro. Com efeito, a pesquisa, ainda que não exaustiva, pelos jornais aveirenses da época, revela-nos que: – As cúpulas do Partido Republicano Português pretendiam impor ao círculo nomes de candidatos, alguns dos quais sem qualquer afi nidade especial com a terra. – A delegação distrital do Partido defendeu tenazmente o seu direito de indicar, após eleição, os seus próprios candidatos, sem embargo de posterior sancionamento superior. – Não houve acordo nas bases quanto aos nomes de candidatos a apoiar, senão tardiamente.

Relatemos os factos.

A reunião efectuada em 29 de Abril de 1911, no Centro Escolar Republicano de Aveiro, para aprovação defi nitiva dos nomes a indicar como candidatos não resultou inteiramente satisfatória, porquanto se levantaram «dúvidas sobre o resultado da eleição e por haver protestos de algumas comissões que não foram ouvidas ou não receberam convites para a reunião...»(21) Note-se que as eleições para a Constituinte tiveram lugar a 28 de Maio de 1911, isto é, menos de um mês depois. Aliás, havia correntes de opinião que apoiavam o Dr. Marques da Costa, presidente da Comissão Municipal de Aveiro e o Dr. Samuel Maia, chefe do Partido Republicano em Ílhavo; outros apoiavam o Dr. António Breda.(22) Por outro lado, o nome do Dr. Sebastião de Magalhães Lima, que passara algum tempo da sua infância em Aveiro,(23) havia sido lembrado e votado. Não pôde aceitar, em virtude de se candidatar por

(16) – O Decreto de 11 de Maio de 1911 designava as seguintes Assembleias de voto: Círculo de Aveiro – Glória, Vera Cruz. Eixo, Póvoa do Valado, Águeda, Aguada de Cima, Valongo, Anadia, Avelãs de Caminho, S. Lourenço do Bairro, Ílhavo, Oliveira do Bairro, Troviscal, Mealhada, Vagos, Soja e Covão do Lobo.Círculo de Estarreja – Beduído, Avanca, Bunheiro, Canelas (Fermelã), Murtosa, Pardilhó, Salreu, Veiros, Espinho, Arada, Esmoriz, Ovar (lado nascente), Ovar (lado poente), Válega, Feira, Fiães, Canedo, Arrifana, Lamas e Oleiros.Círculo de Oliveira de Azeméis – Oliveira de Azeméis, Cesar, S. João da Madeira, Albergaria, Angeja, Pinheiro, Arouca, Alvarenga, Escariz, Rossas, Sobrado de Paiva, Caspelo, Macieira de Cambra, Sever, Pessegueiro.(17) – Decreto de 5 de Abril de 1911, cap. IV, art. 11. (18) – Decreto de 5 de Abril de 1911, cap. IV, art. 16.(19) – Ibidem, art. 23.

(20) – Ibidem, cap. VI.(21) – A Liberdade, Aveiro, 4 de Maio de 1911, p. 2, col. 3/4. (22) – Ibidem.(23) – Alberto Pimentel, As Constituintes de 1911 e os seus Deputados, Lisboa, 1911, p. 124.

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Lisboa.(24) Um outro cidadão era apresentado: o 2.º tenente da Armada, Jaime Pato. Ele próprio acabou por / 25 / não aceitar a candidatura, em virtude de certas intrigas que se teciam à volta da sua pessoa e das quais se defendeu em carta remetida e publicada no jornal aveirense “A Liberdade”. (25)

Como quer que seja, foi possível fi nalmente elaborar-se na referida reunião uma lista «verdadeiramente republicana», cujos candidatos eram, na totalidade, oriundos da região de Aveiro, a saber: – Albano Coutinho, ex-membro do Directório e primeiro Governador Civil da República, no Distrito. – Dr. Manuel Alegre, «o maior organizador revolucionário na província». – Dr. Cunha e Costa, colaborador da obra legislativa da República, advogado distinto e vereador da Câmara Municipal. – Alberto Souto. Administrador do Concelho de Estarreja após o 5 de Outubro, ex-membro do Comité Revolucionório da Província, estimado e apoiado pelo Dr. Sebastião de Magalhães Lima.(26) Candidato pela minoria.

Entretanto, o Directório do Partido Republicano recusava-se a sancionar o nome do Dr. Cunha e Costa, certamente para poder incluir na lista outro nome mais soante e vantajoso para o Partido, mas menos conhecido das gentes aveirenses – o que mereceu protestos veementes dos republicanos locais. Aliás, o próprio Dr. Cunha e Costa resolveu o impasse: em telegrama enviado ao Director de “O Aveirense”, tendo em conta a recusa do Directório em sancionar o seu nome, para evitar «uma situação irredutível entre Directório e comissões, terminando pela dissolução destas e exoneração do Governador Civil, a seu pedido», decide-se a desistir da candidatura ofi cial pelo Partido. Declara, no entanto, que aceitará candidatar-se como independente, «sendo-me indiferente a derrota, que prefi ro a uma vitória devida ao favor ofi cial».(27)

Diga-se, de passagem, que “O Aveirense” apoiava e continuou a apoiar o Dr. Cunha e Costa, não deixando de chamar a atenção dos leitores e eleitores para os seus

invulgares dotes de orador e indefectível republicanismo. Por isso, o jornal protesta contra a prepotência do Directório que, deste modo, impunha «ao Partido Republicano de Aveiro e à cidade, como noutro tempo o Ministério do Reino ou os conclaves dos partidos monárquicos, candidatos que Aveiro nunca viu nem reconheceu.(28)

Verifi cados estes contratempos, nova reunião foi necessária para apresentação e aprovação de lista dos candidatos. Realizada esta a 10 de Maio de 1911, no Centro Escolar Republicano de Aveiro, procedeu-se a uma votação cujo resultado, por ordem decrescente de recolha de votos,

(24) – A Liberdade, loc. Cit.(25) – A Liberdade, Aveiro, 11 de Maio de 1911, p. 3, col. 2. (26) – A Liberdade, Aveiro, 4 de Maio de 1911, p. 2, col. 3. (27) – O Aveirense, Aveiro, 14 de Maio de 1911, p. 2, col. 2.

Dr. Alberto Sousa

(28) – Ibidem.

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foi o seguinte: Dr. Manuel Alegre Alberto Souto Basílio Teles Albano Coutinho

Como os dois últimos haviam obtido o mesmo número de votos, realizou-se um desempate, cujo resultado foi favorável a Basílio Teles, pelo que Albano Coutinho passou para candidato da minoria. Refi ra-se que Sidónio Pais recolheu alguns votos não sufi cientes para vencer os quatro nomes referidos.(29)

Todavia, ainda desta vez a lista não logrou obter um sancionamento do Directório. Qual era então a lista preconizada pela cúpula do Partido?

Era a seguinte:

Dr. Manuel Alegre Dr. Sidónio Pais Basílio Teles Albano Coutinho, pela minoria.(30)

O grande ausente desta lista era Alberto Souto. O problema complicava-se, tanto mais que os republicanos aveirenses não estavam dispostos a ceder às pressões de Lisboa, que se recusava a apoiar Alberto Souto, jovem de 23 anos, estudante, director de “A Liberdade”, preferindo incluir nas listas o nome de Sidónio Pais «sem consultar sequer a comissão distrital nem ouvir nenhuma das comissões de Aveiro».(31)

A justifi cação ofi cial da recusa era que Alberto Souto era ainda um estudante. Mas, objectava-se, não era igualmente estudante quando fora nomeado Administrador do Concelho de Estarreja? Não havia dado provas de coragem e de grande fé no ideal republicano?

Despeitado mas não sucumbido, Alberto Souto não hesita em pedir a demissão do Partido, preparando-se para concorrer às eleições como independente e extra-partidário. Por seu lado, o Governador Civil do Distrito, Dr. Rodrigo Rodrigues

e o Presidente da Comissão Distrital enviam telegramas ao Directório, chamando a atenção para a gravidade do problema. Afi nal, tudo foi simples: Basílio Teles, um homem do 31 de Janeiro de 1891, que havia sido primitivamente proposto pelo círculo de Oliveira de Azeméis,(32) renunciou igualmente à candidatura por Aveiro(33), não chegando a concorrer por qualquer círculo. Com esta desistência, restou um lugar para a juventude de Alberto Souto que, fi nalmente e à última hora, viu sancionada a sua candidatura. Pelo que a lista defi nitiva pelo círculo de Aveiro fi cou assim constituída:

Dr. Manuel Alegre Dr. Sidónio Pais Alberto Souto Albano Coutinho, pela minoria.

O Dr. José Soares da Cunha e Costa, acima referido, concorreu como independente. As eleições, a julgar pela imprensa da região, foram muito concorridas, excedendo mesmos algumas previsões.(34) Em todas as assembleias de voto, a calma e a naturalidade foram características dominantes.

O quadro dos resultados é sugestivo:

(29) – A Liberdade, Aveiro, 18 de Maio de 1911, p. 1, c. 5. Foram ainda votados os nomes dos Drs. Júlio Sampaio, Samuel Maio e Paulo Falcão.(30) – Jornal de Notícias, Porto, 17 de Maio de 1911, p. 2, c. 7. (31) – A Liberdade, Aveiro, 18 de Maio de 1911, p. 2, c. 2.

(32) – O Radical, Oliveira de Azeméis, 13 de Maio de 1911, p. 3., c. 2.(33) – A Liberdade, loc. cit.(34) – Infelizmente não nos foi possível obter as estatísticas do recenseamento.

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Independentemente das conclusões fi nais, impõem-se, desde já, algumas observações: – M. Alegre, muito conhecido em todo o Distrito, recolhendo regularmente apreciável número de votos em todos os Concelhos do Círculo, venceu folgadamente na terra da sua naturalidade. – Albano Coutinho, que fora o primeiro Governador Civil da República em Aveiro, obteve um modestíssimo resultado no concelho que dá nome ao Distrito. Em compensação, ganhou esmagadoramente na zona dos seus domínios. Anadia. – Sidónio Pais, em regra, recolheu maior número de votos nas terras de fácil comunicação com Coimbra, em cuja Universidade era Professor. – Alberto Souto ocupou o primeiro lugar na terra da sua naturalidade: Aveiro. – Cunha e Costa, fi lho de Aveiro como o anterior, obteve aí um brilhante segundo lugar e venceu em dois concelhos afi ns da cidade: Ílhavo e Vagos.(36)

Parece de concluir que, neste Círculo, o factor naturalidade pesou signifi cativamente nos resultados parciais das eleições. Tudo foi mais simples no Círculo de Estarreja, em virtude de não concorrer qualquer candidato da oposição. Nestas circunstâncias e em conformidade com o artigo 39 da lei eleitoral, os candidatos propostos ou apoiados pelo Partido Republicano Português foram proclamados deputados no dia 18 de Maio, prazo limite para entrega dos documentos de candidaturas. Foram eles:

Dr. Elísio de Castro Dr. José Bessa de Carvalho António Valente de Almeida Dr. Egas Moniz, pela minoria.

Águeda Anadia Aveiro Ílhavo MealhadaOliv. doBairro

Vagos TOTAL

M. Alegre 1647 43 689 57 236 543 337 3552

Alberto Souto 905 28 991 169 282 536 353 3264

Albano Coutinho 640 1547 189 20 258 255 354 3263

Sidónio Pais 1070 35 381 99 440 517 105 2647

Cunha e Costa 599 29 752 204 250 2 389 2225

QUADRO 1– Resultados no Círculo de Aveiro (35)

(35) – Independência de Águeda, 3 de Junho de 1911, p. 2, c. 2. Refi ra-se que os diversos jornais não são coincidentes nos números de votos que, fi nalmente, atribuem a cada candidato. As diferenças, porém, não são signifi cativas e parecem mais devidas a trocas ocasionais de algarismos que a defi ciências ou incorrecções culposas. Cf. O Democrata, Aveiro, 2 e 9 de Junho de 1911; O Primeiro de Janeiro, Porto, 30 de Maio de 1911, p. 2, c. 4 e outros.(36) – O Dr. Cunha e Costa, mesmo derrotado, colaborou com as Constituintes, elaborando um projecto de Constituição da República Portuguesa. Cf. A Liberdade, Aveiro, 22 de Junho de 1911, p. 2, c. 1 e ainda Alberto Pimentel, ob. cit., p. 436/440.

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Refi ra-se, todavia, que, em primeira decisão, o Directório não sancionara a candidatura de Egas Moniz(37), acabando, porém, por ser proposto pela minoria, após reconhecimento ulterior do mesmo Directório.(38)

A feitura de listas no Círculo de Oliveira de Azeméis, sendo menos morosa e difícil que no círculo de Aveiro, exigiu, todavia, algum reajustamento. De facto, conforme foi dito atrás, Basílio Teles apareceu numa primeira lista como candidato por este círculo, por indicação das comissões de Castelo de Paiva (39).

A sua transferência para candidato por Aveiro ou a sua renúncia obrigou a uma reelaboração da lista que fi cou assim constituída:

Dr. Francisco Correia de Lemos Dr. António Brandão de Vasconcelos Dr. António Maria Marques da Costa Dr. José Maria Barbosa de Magalhães, pela minoria.

Quando bateram as três horas da tarde do dia 18 de Maio de 1911, hora a que encerravam, na Província, as repartições públicas, não havendo mais candidatos cujos documentos houvessem entrado na competente repartição, parecia que os únicos candidatos referidos se poderiam considerar deputados por força da lei. E assim o noticiou a imprensa local.(40)

Todavia, pouco após aquela hora, o médico Eduardo Ferreira de Oliveira conseguiu juntar todos os documentos requeridos e apresentou-se na repartição como candidato. O chefe, alegando atraso, recusou-se a receber os papéis. Porém, aconteceu que, em Lisboa e Porto, à hora de os escritórios públicos encerrarem, não estava concluída a tarefa de recebimento dos documentos de candidatura, em virtude de muitos se terem guardado para a última hora. Esta circunstância, ou outra mais ponderosa, motivou a publicação da lei de 22 de Maio de 1911, validando as candidaturas apresentadas depois da hora normal de encerramento das repartições públicas. Desta forma, não obstante os protestos

do jornal local, o cidadão Eduardo de Oliveira viu legalizada a sua candidatura e, em consequência, obrigou à realização de eleições(41)

A afl uência às urnas não foi dispicienda. A imprensa local mostrou-se optimista, tanto mais que muitos eleitores haviam sido informados de que não se realizaria o acto eleitoral por não haver candidatos além dos quatro acima referidos. A afl uência, o entusiasmo e o civismo das gentes oliveirenses foram interpretados como uma inequívoca legitimação da República.

Prof. Dr. José Maria Barbosa de Magalhães

(37) – Jornal de Notícias, Porto, 12 de Maio de 1911, p. 4, c. 1. (38) – O Ovarense, Ovar, 21 de Maio de 1911, p. 3, c. 1.(39) – O Radical, Oliveira de Azeméis, 13 de Maio de 1911, p. 3, c. 2.(40) – ldem, 20 de Maio de 1911. p. 2, c. 2.

(41) – ldem, 27 de Maio de 1911, p. 2, c. 2/3.

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Parece que o factor naturalidade, onde existe, continua a pesar no resultado local das eleições: Brandão Vasconcelos vence em Arouca (e Castelo de Paiva, ali ao pé) e Eduardo Oliveira triunfa largamente em Albergaria.

Os eleitos: linhas dominantes do seu perfi l sócio-político Em virtude do acto eleitoral de 28 de Maio de 1911, o Distrito de Aveiro enviou doze deputados às Constituintes. Recordemos o essencial de suas fi chas biográfi cas:(47)

QUADRO II – Resultados eleitorais no Círculo de Oliveira de Azeméis

Os resultados foram os seguintes:

Arouca

(42)

Alb.-a-Velha

(42)

C. de Paiva

(43)

Mac.ª

(44)

Oliv. deAzeméis

(45)

Sever do Vouga

(46)

TOTAL

Marques da Costa

358 1368 1210 979 648 5205

Correia de Lemos

_1368 1400 836 1043 4971

BrandãoVasc.

1750 1490 894 430 4685

BarbosaMagalhães

_

1302 150 1363_ 979 4487

EduardoOliveira 2010 _ 700 17 477

3196

(42) – Jornal de Notícias, Porto, 30 de Maio de 1911, p. 2, c. 6. (43) – O Mundo, Lisboa, 31 de Maio de 1911, p. 3, c. 5.(44) – Idem, 29 de Maio de 1911, p. 2, c. 3.(45) – O Radical, Oliveira de Azeméis, 31 de Maio de 1911, p. 3, c. 1.(46) – Infelizmente não me foi possível encontrar na imprensa central ou do concelho, os números relativos a Sever do Vouga. Não seria difícil, de resto, completar o quadro por dedução, se as estatísticas fossem absolutamente seguras e a questão sufi cientemente importante. Não me parece ser o caso. É indispensável o manuseamento das Actas das Assembleias de Voto para confi rmar ou corrigir os números. Parece-me, todavia, que os totais estão mais ou menos certos, pois são referidos em várias fontes. O mesmo não se poderá afi rmar dos resultados parciais: somem-se, por exemplo, os números relativos ao último concorrente e compare-se com o total fornecido pelas fontes.

(47) – As notas biográfi cas referidas neste trabalho foram extraídas principalmente do livro de Alberto Pimentel, As Constituintes de 1911 e os seus Deputados, Lisboa, 1911. (A. Coutinho. pp. 47/48; A. Souto, pp. 58/59; M. Alegre, pp. 221/222; Sidónio Pais, p. 247; Egas Moniz, pp. 60/69; A. Almeida, p. 35; E. de Castro, p. 213; B. de Carvalho, pp. 207/208; A. Costa, p. 215; A. Vasconcelos, p. 248; C. Lemos, p. 82; B. Magalhães, p. 89).

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CÍRCULO DE AVEIRO

Albano Coutinho, viticultor e antigo jornalista, 63 anos de idade, natural de Lisboa. Alberto Souto Ratolla, proprietário, 23 anos, natural de Aveiro. Manuel Ribeiro Alegre, funcionário público, bacharel em Direito, 30 anos, natural de Águeda. Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais, lente da Universidade de Coimbra, 39 anos, natural de Caminha.

CÍRCULO DE ESTARREJA

António Caetano d’Abreu Freire Egas Moniz, lente da Faculdade de Medicina de Lisboa, 36 anos, natural de Avanca (Estarreja). António Valente de Almeida, proprietário, agricultor e comerciante, 32 anos, natural de Ovar. Elísio Pinto de Almeida e Castro, advogado e contador privativo do tribunal do Comércio do Porto, 42 anos, natural de Fiães, Santa Maria da Feira .(48)

José Bessa de Carvalho, advogado, 39 anos, natural da Baía (Brasil), muito ligado a Espinho.

CÍRCULO DE OLIVEIRA DE AZEMÉIS

António Maria da Cunha Marques da Costa, médico, 33 anos natural de Cacia (Aveiro). António Teixeira Brandão de Vasconcelos, médico, 45 anos, natural de Arouca. Francisco Correia de Lemos, juiz de Direito, Procurador da República junto da Relação de Lisboa, 59 anos, natural de Gavião (Portalegre). José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, advogado, 32 anos, natural de Aveiro.

Tentaremos construir o perfi l sócio-económico e ideológico-político dos deputados aveirenses, na mesma linha de pesquisa do estudo do Prof. Oliveira Ramos, citado no início deste trabalho: formulação dos possíveis critérios de escolha dos candidatos a deputados às Constituintes de 1911.(49) Adoptando a metodologia aí ensaiada com reconhecido êxito, analisaremos comparativamente alguns aspectos biográfi cos dos deputados, no intuito de carrear mais um subsídio para uma futura síntese global.

Gráfi co 1 – Profi ssões principais dos deputados

Situação económica e actividade profi ssional

Gráfi co 2 – Grupos profi ssionais (apenas a profi ssão principal)

(48) – O Correio da Feira, Vila da Feira, 8 de Outubro de 1910, p. 3, c. 4 chama-lhe «ilustre fi lho de Fiães».(49) – É importante referir aqui que o Directório, a quando da celeuma levantada pelo não sancionamento inicial da candidatura de Alberto Souto, inquiriu junto do Presidente da Comissão Municipal de Aveiro acerca do seguinte: quem é A. Souto, qual o seu carácter, quais as suas condições de neutralidade, o que tem feito, se é republicano antigo ou apenas um aderente. Cf. A Liberdade, Aveiro, 11 de Maio de 1911, p. 1, c.2.

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A leitura destes gráfi cos sugere-nos algumas conclusões:

– Grande contingente de deputados pertencia a um sector de profi ssões liberais, prestigiadas sociologicamente e de grande impacto e utilidade junto dos eleitores (2 médicos ou, se preferirmos, 3 médicos, dos quais um, Egas Moniz, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa e, já então, nome ilustre da Neurologia, havia encetado o caminho que, mais tarde, lhe proporcionaria as suas grandes descobertas – angiografi a cerebral e leucotomia pré-frontal(50); 3 advogados); – Outros são funcionários públicos de alto escalão (2 professores universitários, um dos quais era também ofi cial do Exército – Sidónio Pais; um juiz de Direito que, na altura, era Procurador da República junto da Relação de Lisboa – Correia de Lemos; um Conservador do Registo Predial; um advogado que acumulava a chefi a da 2.ª Repartição da Direcção Geral dos Negócios da Justiça – B. de Magalhães; um advogado que, além disso, era Contador Privativo do Tribunal do Comércio do Porto). – Bastantes pertenciam ao sector dos proprietários abastados (um viticultor, «grande proprietário em Mogofores e Anadia»(51) – A. Coutinho; dois proprietários de profi ssão; um advogado que herdara uma fortuna considerável – B. de Carvalho). – É maioritário o grupo das profi ssões liberais, seguindo-se-lhe, de perto, um lote de homens ligados à função pública e outro de agricultores e proprietários.

(50) – É sabido que a última descoberta mereceu a Egas Moniz, em 1949, o Prémio Nobel da Medicina. (51) – A Liberdade, Aveiro, 4 de Maio de 1911, p. 2, c. 3.

Gráfi co 3 – Idade dos deputados por grupos etários

IDADE

– No seu conjunto, o grupo situava-se, sob o ponto de vista socio-económico, nas camadas mais elevadas da média burguesia. As excepções, se as há, parecem apontar em sentido ascendente. Conforme se pode verifi car pelo gráfi co, a idade dos deputados eleitos no Distrito variava entre menos de 25 anos e mais de 60. Mais precisamente, o deputado mais jovem tinha 23 anos e o mais velho contava 63. A média situava-se nos 39 anos. A maioria dos deputados integrava o grupo etário dos 30 – 39 anos.

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A leitura do quadro III e os dados biográfi cos conhecidos permitem algumas conclusões:

– Sete dos deputados eram naturais do Distrito. – Desses, três exerciam actividade profi ssional na zona da capital.(53)

Terras do Distrito de fora

Águeda

Arouca

Avanca

Aveiro

Baía (Brasil)

Caminha

Cacia

Gavião (Portalegre)

Lisboa

Ovar

Porto

1

1

1

2

1

1

1

1

1

1

1

TOTAL 7 5

Naturalidade QUADRO III – Naturalidade dos Deputados(52)

(52) – A título de curiosidade parece interessante referir que sete naturais do distrito foram eleitos por outros Círculos, a saber:– Gaudêncio Pires de Campos, de Anadia, eleito pelo Círculo de Alcobaça.– Francisco Xavier Esteves, de Ílhavo, pelo Círculo do Porto. – Tomé J. de Barros Queirós, de Ílhavo, por Torres Vedras; – Alfredo Balduino de Seabra, de O. do Bairro, pelo Porto. – Adriano Augusto Pimenta, de V. da Feira, pelo Porto. – Severiano José da Silva, de Salreu, pelo Porto.– Ângelo R. da Fonseca, do Couto de Cucujães, por Coimbra.Cf. Alberto Pimentel, ob. cit., pp. 19, 49, 140, 157, 183, 237 e 243.(53) – Barbosa de Magalhães exercia a advocacia em Lisboa; Correia de Lemos aí desempenhava, então, importante função judicial e Brandão Vasconcelos era médico em Colares.

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– Quanto aos naturais de fora do Distrito, quatro estavam ou tinham estado em passado recente, ligados ao Círculo por onde iriam concorrer. – Apenas um parece não ter qualquer afi nidade com o Distrito: Sidónio Pais. Todavia, é bom lembrar que se tratava de um lente da Universidade de Coimbra, próxima de Aveiro e teria sido Professor de pessoas infl uentes no Distrito.

– Parece interessante referir que, no que toca ao Círculo de Oliveira de Azeméis, apenas um deputado era natural da área do Círculo. Todavia, os restantes eleitos eram sobejamente conhecidos, pois eram naturais da região de Aveiro ou haviam estabelecido grandes contactos com as suas gentes.

– Do exposto conclui-se que o Directório atribuía importância às ligações existentes entre os candidatos e a terra por onde iriam concorrer. Aliás, no caso concreto de Aveiro, temos razões para afi rmar que a não consideração por este factor no sancionamento dos candidatos pelo Directório, seria mal compreendida e mal recebida.(54)

A esmagadora maioria havia concluído um curso superior ou, pelo menos, frequentado a Universidade: os gráfi cos 4 e 5 são elucidativos.

Gráfi co 5 – Habilitações por cursos

Habilitações académicas

Gráfi co 4 – Habilitações em geral

(54) – Cf. A Liberdade, Aveiro, 18 de Maio de 1911, p. 2, c. 2.

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Cinco haviam concluído o Curso de Direito na Universidade de Coimbra: M. Alegre, Cor. de Lemos, B. de Magalhães, B. de Carvalho e E. de Castro. Alberto Souto concluíra apenas o 1.º ano da mesma Faculdade.(55) Três eram formados em Medicina pela mesma Academia. Sidónio Pais era doutor em Matemática, bacharel em Filosofi a e possuía o curso de Artilharia da Escola do Exército. Albano Coutinho frequentara o Curso superior de Letras e o Instituto Geral da Agricultura. Quanto a VaI. de Almeida, não pudemos dispor de dados precisos sobre as suas habilitações ou escolas que frequentou. Por isso, assinalamos com sombreado, nos gráfi cos 4 e 5, a porção correspondente. Podemos, no entanto, afi rmar que possuía um cabedal cultural acima da média, pois dirigiu politicamente um semanário de Ovar, “A Pátria” e colaborou literariamente no “Diário”, jornal que se publicava em Lisboa.(56)

Tratava-se, pois, de uma dúzia de homens que, na quase totalidade, pertencia à elite intelectual do país. A passagem pelos bancos da Universidade coimbrã tê-los-á convertido ou confi rmado nos ideais republicanos. Jovens na sua maioria, contestavam simultaneamente o trono e o altar que, a seus olhos, o dia-a-dia mostrava aliados e unidos. A muitos, Coimbra comprometeu defi nitivamente no combate pela liberdade, não lhes minguando jamais o ânimo e a convicção para lutarem até ao fi m. Uma breve análise do passado político destes cidadãos garante-nos isso mesmo. Passado político(57)

Os deputados pelo Distrito de Aveiro haviam dado provas das suas convicções republicanas antes do 5 de Outubro, alguns desde longa data. Analisemos caso por caso.

Manuel Alegre fora sempre conhecido como republicano e conspirador. Muito jovem, entrou para a Carbonária, onde desempenhou papel de relevo. Com 18 anos, destacado para a Junta da Carbonária do Centro com sede em Coimbra, foi encarregado de difundir aquela associação no distrito de Aveiro. Ao seu proselitismo se fi cou devendo a fundação progressiva de sete núcleos de acção: Anadia, Águeda, Oliveira do Bairro, Aveiro, Ovar, Oliveira de Azeméis, e Espinho. Além

disso, fora encarregado de estabelecer ligações com as Juntas de Braga e Viseu. (58)

Um dos seus feitos notáveis foi a aquisição de armamento, no que era coadjuvado pela conivência de alguns ofi ciais, por ele habilmente aliciados. Era um dos impacientes do movimento republicano, íntimo de Afonso Costa, João Chagas, António José de Almeida, Eusébio Leão, José Relvas e, em especial, de Cândido dos Reis, ansiava pela Revolução na certeza de que sairia vitoriosa.

Sidónio Pais, talvez hoje o mais conhecido dos deputados por Aveiro, mercê do seu papel político após 1911, em especial pela acção desenvolvida no movimento revolucionário de 5 de Dezembro de 1917 e pelas funções subsequentemente exercidas, empenhou-se, muito antes do 5 de Outubro, na luta antimonárquica, não obstante o reduzido espaço de manobra que lhe restava da sua condição de ofi cial do exército. Com efeito, ainda estudante, assinou, em 1891, um manifesto antimonárquico redigido por João de Meneses e, posteriormente, colaborou numa conspiração contra a Monarquia.(59)

Educado religiosamente, tendo até frequentado o Seminário de Coimbra.

Alberto Souto depressa se tornou notado pelas objecções fi losófi cas que opunha aos princípios em que fora instruído. Notabilizou-se muito cedo como agitador e chefe de grupos contestatários. Era fi gura sempre presente e sempre activa nos convívios e sessões de propaganda do Partido Republicano. Verdadeiro líder de massas que se deixavam fascinar e convencer pela sua juventude irrequieta e pelo seu entusiasmo corajoso.

(55) – Mais tarde, Souto licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, abrindo banca em Aveiro, em 1920.(56) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 35.(57) – Ver nota 47.

(58) – Independência de Águeda, Águeda, 3 de Junho de 1911, p. 1, c. 3.(59) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 247.

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Um episódio curioso, referido por Alberto Pimentel, foi o verifi cado por alturas da comemoração do Centenário de José Estêvão. A direcção da Associação Comercial de Aveiro resolveu comemorar a efeméride, promovendo um ciclo de conferências sobre aquela eminente fi gura de tribuno. Alberto Souto foi um dos oradores e dissertou sobre a índole revolucionária e o pensamento de José Estêvão. Estabelecendo um paralelo entre a sua época e a do patrono da conferência, atacou a monarquia e a ditadura franquista. Rematou mesmo com um apelo aos militares para que usassem a força para impor no país um regime livre e democrático. Parece que os organizadores, franquistas convictos, acharam por bem acabar com as conferências.

O seu espírito de lutador indomável contra as ditaduras, a favor da democracia, reaparece evidente aquando da visita de João Franco ao Porto. Alberto Souto compareceu na estação de Aveiro à frente de um grupo de manifestantes hostis ao ditador, tendo sido proibido de voltar àquele local por alturas do seu regresso a Lisboa. Não obedecendo a essa ordem, surgiu na gare a chefi ar novo grupo de manifestantes. Foi imediatamente preso e expulso da estação.

Republicano de muitos anos era o antigo jornalista, Albano Coutinho. Aos 24 anos fez a sua profi ssão de fé republicana na publicação “República Portuguesa”, editada em Coimbra por Alves da Veiga. Alves de Morais e Magalhães Lima (1872). Militou no Partido Republicano desde a primeira hora, pois foi um dos assinantes do manifesto que antecedeu a erecção do «Centro» em 1876. Opôs-se claramente ao obscurantismo religioso de algum clero coimbrão. Porém, o seu grande campo de batalha, onde lutou tenazmente pelas ideias republicanas, foram os inúmeros jornais em que colaborou.

Egas Moniz, um homem de ciência, não se divorciou dos problemas estruturais da sociedade em que viveu. Durante mais de dez anos, havia assumido no Parlamento, posições críticas relativamente à praxis ditatorial de certos ministros monárquicos, tornando-se progressivamente um dissidente. Esteve preso nove dias, juntamente com Afonso Costa e António José d’Almeida, em consequência do movimento revolucionário de 28 de Janeiro de 1908. No período fi nal da Monarquia, atacou duramente a actuação do Ministro da Fazenda, Manuel Afonso Espregueira, e denunciou com coragem a ditadura franquista, em discurso que fi cou célebre.(60)

Em oito de Outubro de 1910, aderiu ofi cial e publicamente à República.(61)

Bessa de Carvalho herdou do pai a fortuna e a devoção ao ideal republicano, militando desde muito novo nas hostes do Partido Republicano. Apoiou fi nanceiramente muitas publicações de propaganda republicana. Amigo íntimo de Afonso Costa, prontifi cou-se a colaborar generosamente nas iniciativas daquele.

Manuel R. Alegre

(60) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 61/69 transcreve a parte fi nal desse discurso.(61) – O Mundo, Lisboa, 9 de Outubro de 1910, p. 4, c. 3.

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Na mesma linha, Elísio de Castro desde os bancos da Escola evidenciou as suas convicções democráticas e lutou pela difusão e concretização de tal ideal político. Em 1907, organizou a Comissão Republicana do Concelho da Feira à qual obviamente presidiu. Após o 5 de Outubro, aparece-nos como Presidente da Comissão Municipal Administrativa do mesmo Concelho.

Valente de Almeida organizou, por sua vez, em 1906, o Partido Republicano na sua terra: Ovar. Além do empenhamento pela acção, não deixou de, nos seus artigos políticos no semanário ovarense “A Pátria”, difundir a causa republicana.

B. de Magalhães não parecendo poder exibir um passado de grandes feitos ao serviço da República. Havia, contudo, evidenciado as suas convicções progressistas em artigos de jornal. Semelhantemente, o médico arouquense António Brandão não aderira formalmente a qualquer partido mas professava e lutava pelas ideias republicanas, não apenas em tertúlias de amigos, mas em militância activa e comprometedora. Correia de Lemos era senhor de um notável curriculum de lutador antimonárquico. Testemunhas das suas convicções progressistas eram as muitas terras que, como magistrado, teve de percorrer. A sua nomeação para Procurador da República junto da Relação de Lisboa, em 20 de Outubro de 1910, terá certamente constituído um justo prémio dos seus combates.

Conclusão: parece não haver aqui republicanos de última hora, pese embora a adesão tardia de Egas Moniz. No grupo dos deputados aveirenses, não há nenhum que não haja dado sobejas provas das suas convicções progressistas, no período anterior ao 5 de Outubro. Parece evidente, pois, que o passado político terá sido uma circunstância muito ponderosa no recrutamento de candidatos a deputados e foi, sem dúvida, muito recordado nos comícios e sessões de propaganda que, no período pré-eleitoral se realizaram por todo o Distrito. De resto, é sabido que, nestes assuntos, mais que as palavras oportunisticamente pronunciadas, constituem índice magnífi co de credibilidade os actos concretos testemunháveis.

Destacados os factores de ordem sócio-profi ssional, etária, de naturalidade e passado político deste lote de

deputados, teremos reunido quantidade razoável de elementos capazes de nos permitir esboçar o modelo de candidato a deputado, idealizado ou realizado pelo Directório do Partido Republicano.

Todavia, uma análise mais pormenorizada das notícias biográfi cas disponíveis revela-nos novos traços que poderão esclarecer os contornos já delineados.(62)

A maior parte deste homens, não fazendo do jornalismo profi ssão principal, ligara-se estreitamente à imprensa periódica e diária como directores, fi nanciadores ou articulistas: Valente de Almeida dirigia politicamente “A Pátria”, semanário de Ovar e colaborou assiduamente no “Diário”, de Lisboa. Bessa de Carvalho foi proprietário do jornal portuense “O Norte”. Além disso, seguindo a tradição paterna, subsidiou várias publicações republicanas. Elísio de Castro, além de sócio de “O Norte”, foi dono de “A Voz Pública”, do Porto. Alberto Souto escreveu em “O Norte”, “Vanguarda” (de Magalhães Lima) e “Povo da Murtosa”. Foi director de “A Liberdade” e fundador de “O Democrata”, ambos de Aveiro. Vilhena Barbosa repartiu a sua colaboração por vários jornais políticos e dirigiu a revista jurídica “Gazeta da Relação de Lisboa”.

Albano Coutinho apresenta-se como antigo jornalista. Com efeito, começou a escrever aos 18 anos, tendo produzido trabalhos de doutrinação em quase todos os jornais do país, nomeadamente em “O Século”. Os seus artigos sobre questões agrícolas, no “Diário da Tarde”, de Lisboa e no “O Comércio do Porto” tornaram-no muito conhecido entre os lavradores letrados. Parece de realçar a grande campanha desencadeada no primeiro daqueles jornais, a favor da exportação, para a Argentina, de vinhos portugueses.

Após a sua fi xação em Mogofores, por morte do pai (1876), continuou a dedicar-se à actividade literária, publicando A Filha do Comendador, comédia em 3 actos, e o romance Divórcio. Aliás, anteriormente, ainda jovem, havia produzido folhetins na “Gazeta de Portugal”.

(62) – Cf. nota 47.

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Parece poder concluir-se que muitos dos candidatos detinham posições importantes, em alguns órgãos do meio de comunicação privilegiado da época: o jornal. Ontem como hoje, talvez mais ontem que hoje, dispor da Imprensa signifi cava possuir uma arma muito poderosa. Não é despicienda essa circunstância quando se buscam os possíveis critérios de escolha dos candidatos a deputados.

Outros predicados, de resto, os poderiam recomendar: alguns são muito conhecidos, respeitados e infl uentes devido às suas actividades de benemerência: Bessa de Carvalho, devotado à causa da instrução popular, sustentava à sua custa uma escola, em Espinho.

Depois, quando as Irmãzinhas dos Pobres tiveram que abandonar o Asilo de Velhos de Campolide por se recusarem a cumprir a ordem de abandono do hábito, Carvalho, muito amigo de Afonso Costa, aceitou servir gratuitamente na administração daquela instituição. Por sua vez, Valente de Almeida dedicara-se ao mutualismo, fundando a primeira mutual no Concelho de Ovar.

Estes pormenores, que não escaparam ao biógrafo, não deixaram de ser exemplarmente recordados ao corpo eleitoral.

A reconhecida categoria científi ca de outros foi igualmente digna de nota e fi cava bem no curriculum, a divulgar pelo grande público: assim, Egas Moniz era já um nome feito no domínio das doenças nervosas e mentais. Além de muitos artigos produzidos na imprensa da especialidade, já publicara a Vida Sexual e as Alterações anátomo-patológicas na Difteria, tema da sua tese de doutoramento(63). Os seus méritos científi cos suscitaram o convite para substituir, na direcção do Hospital de Doidos de Rilhafoles, o Dr. Miguel Bombarda, estupidamente assassinado. O convite foi declinado.

Sidónio Pais, professor Catedrático de Cadeira de Cálculo Diferencial e Integral, da Universidade de Coimbra, era autor de vários trabalhos científi cos: Teoria dos Erros das Observações e Série dos Números. Barbosa de Magalhães, um perito em questões de Direito Comercial, publicara a 3.ª edição do Código do Processo Comercial, devidamente anotado. Nesta obra, reunia o Código das Falências e um Comentário ao decreto de cobrança das pequenas dívidas.

Albano Coutinho, como foi referido, conhecia profundamente a problemática técnica e social da Agricultura. Podemos considerá-lo um especialista de viticultura. Aliás, as

Prof. Dr. A. C. Egas Moniz

(63) – Gehrard Koch, Egas Moniz, Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia – Vida e obra, Porto, 1950 (Separata de O Médico, n.º 3, 1950).

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e Suíça enriqueceram o seu cabedal de conhecimentos agrários. Participou no Congresso de Vinicultura de Lyon, em 1894. Refi ra-se, de resto, que os vinhos produzidos nas suas propriedades de Mogofores e Anadia obtiveram vários primeiros prémios, em certames da especialidade. Interessou-se, também, pela exploração de nascentes de águas minero-medicinais, na região da Cúria, de cuja Sociedade das Águas foi Presidente.

Empenhou-se, ainda, em interessada acção sindical como vice-presidente do Sindicato Agrícola do Distrito de Aveiro e como vogal do Conselho de Agricultura do mesmo Distrito.

No rescaldo da Revolução vitoriosa de Outubro, a nova Ordem instituída necessitou de quadros para preencher lugares da Administração central e local, uns vagos por demissões normais nestas circunstâncias, outros criados por exigência das novas estruturas. Ora, os deputados eleitos por Aveiro, logo após o 5 de Outubro, vão ocupar postos importantes na Administração ou na Direcção de Instituições de utilidade pública.

Assim, Albano Coutinho foi o primeiro Governador Civil de Aveiro, logo a seguir à proclamação da República: recorde-se que a 8 de Outubro teve lugar a cerimónia de posse. Algo contestado, pediu a exoneração em 22 de Dezembro do mesmo ano, sendo substituído efemeramente pelo Dr. Henrique Weiss de Oliveira, médico e republicano revolucionário,(64) mais contestado ainda. Aliás, em 25 de Janeiro de 1911, sucedeu-lhe nas funções o médico Rodrigo José Rodrigues, «fi nalmente escolhido d’uma maneira democrática, sem imposição nem desgostos» (65).

Alberto Souto, embora muito jovem, fora digno e querido Administrador do Concelho de Estarreja, até Abril de 1911. Marques da Costa exercia o cargo de médico municipal no Concelho de Aveiro. Elísio de Castro era o prestigiado presidente da Comissão Municipal Administrativa do Concelho da Feira. Correia de Lemos preencheu, como primeiro titular, o lugar de Procurador da República junto da Relação de

Lisboa. Barbosa de Magalhães fora nomeado para o cargo de Chefe da 2.ª Repartição da Direcção Geral dos Negócios da Justiça e era membro de várias Comissões de certo impacto e prestígio social: Comissão de Protecção de Menores em perigo moral, Comissão de Estudo da Lei do Inquilinato, Comissão jurisdicional das leis das Extintas Congregações Religiosas. Bessa de Carvalho aceitou um lugar na Administração do Asilo de Velhos de Campolide, não vencendo qualquer remuneração. Manuel Alegre exercia a função de Conservador do Registo Predial, em Santarém.

Certamente, antes de mais, o provimento nestes postos premiou, em cada caso, todo um passado de luta em prol da República. Mas, sob o ponto de vista político, a infl uência decorrente da posse destes cargos poderia constituir um trunfo importante para o resultado da disputa eleitoral.

Conclusões fi nais

Os deputados pelo Distrito de Aveiro eram, em regra, oriundos de famílias abastadas cujo fortuna alguns herdaram copiosamente. Todos puderam dispor de meios económicos para, desafogadamente, obterem diplomas universitários. Não foi por carência material que um ou outro não concluiu o Curso iniciado.

Quanto aos cursos frequentados, parece de realçar que, na generalidade, optam por Faculdades antigas, das mais antigas da Universidade Portuguesa: Direito e Medicina. Cursos a que poderíamos chamar técnicos aparecem timidamente representados: um ex-aluno da Escola do Exército, um ex-aluno do Instituto Geral de Agricultura.

Nesta perspectiva, acabada a aprendizagem escolar, exerceram profi ssões que, além de óbvia cotação social, lhes creditavam, nalguns casos, confortável remuneração. Não parece haver aqui nenhum caso de menino pobre e desamparado que, por audácia e sorte, se consegue alcandorar às grandes alturas da fi nança e do poder.

Debalde procuraremos, no grupo, algum representante dos trabalhadores manuais ou das camadas inferiores do funcionalismo público. Nos dois Círculos onde a Oposição se manifestou, ela parece pouco signifi cativa do ponto de vista

(64) – O Democrata, Aveiro, 30 de Dezembro de 1910, p. 2, c. 1. (65) – Independência de Águeda, Águeda, 28 de Janeiro de 1911, p. 1, c. 4.

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sociológico e até político, visto que os opositores são um médico (círculo de Oliveira de Azeméis, onde, signifi cativamente, dois colegas eram candidatos apoiados pelo Partido) e um advogado (círculo de Aveiro), aliás, Vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Ambos se proclamavam tanto ou mais republicanos que aqueles que mereceram o favor do Directório.Embora a amplitude etária se alargue dos 23 aos 63 anos, o grupo mais signifi cativo situa-se entre os 30 e os 40 anos: um lote verdadeiramente jovem.

Curiosamente, um dos candidatos era membro activíssimo da carbonária: Manuel Alegre. É de presumir que outros estivessem fi liados naquela agremiação ou na Maçonaria. Escasseiam-nos, todavia, os documentos que o permitam afi rmar com segurança. Por outro lado, os elementos de que dispusemos, não nos permitem concluir acerca de claras posições anti-clericais dos deputados, excepto no concernente a Albano Coutinho, o qual tomou manifesto partido contra a intolerância de certo clero coimbrão que negou sepultura eclesiástica à fi lha de um livre pensador francês, aí residente.(66) No entanto, a leitura dos órgãos da imprensa regional que apoiavam abertamente este ou aquele candidato, permite-nos a ilação de que o anti-clericalismo era uma componente assídua do ideário republicano desta dúzia de tribunos. É interessante referir que apenas um dos candidatos realizou parte da sua instrução em estabelecimento de ensino eclesiástico. Porventura nova documentação ampliará esta constatação.

A totalidade dos deputados era constituída por pessoas non-gratas ao regime monárquico. A alguns, a tradição familiar fi zera ferrenhos republicanos: Bessa de Carvalho era fi lho de um activo lutador(67). Outros haviam aderido ao republicanismo nos bancos da Faculdade e dele se tornaram apóstolos entusiastas, arcando com os prejuízos decorrentes da conjuntura política adversa. O próprio Dr. Egas Moniz não era um exemplo de monárquico «ortodoxo», no período que antecedeu imediatamente o 5 de Outubro.

Grande parte dos candidatos eram pessoas inseridos e prestigiadas no meio por onde iriam concorrer e, nessa medida, dispunham de apreciável credibilidade junto dos potenciais eleitores. No círculo de Estarreja, nenhum dos concorrentes se pode considerar estranho ao território respectivo. De resto, não surgiram aí opositores. No círculo de Aveiro, as circunstâncias apresentaram-se um pouco diferentes: Sidónio Pais não parece poder reclamar qualquer afi nidade com a terra. Talvez, por isso, terá sido o menos votado dos candidatos vencedores. O caso de Oliveira de Azeméis afi gura-se mais inesperado: na altura das eleições, nenhum dos candidatos residia na área do Círculo e apenas um era natural do território: o arouquense B. de Vasconcelos. Dos restantes, dois eram naturais do distrito (que não do Círculo) e o terceiro fora recentemente juiz da Comarca local.

Como sucede em todas as revoluções triunfantes, a substituição de quadros em lugares-chave da Administração e/ou da Política, benefi ciou candidatos do Distrito: na verdade, vários ocuparão postos infl uentes na Administração local: Governador Civil, Administrador de Concelho, Presidente da Comissão Municipal Administrativa. O desempenho competente das novas funções redundaria, possivelmente, em facilidade de recolha de dividendos políticos consideráveis. É evidente que a erosão e degradação da imagem pessoal e política seria um facto se, porventura, os novos autarcas não dessem boa conta de si e do seu programa. Terá sido por essa razão que Albano Coutinho, ex-governador civil, obteve tão insignifi cante resultado no Concelho de Aveiro?

De resto, a infl uência destes homens não lhes vinha apenas do exercício de determinadas profi ssões ou funções. Muitos deles guardavam óptimas posições na grande e na pequena imprensa. Os postos de proprietário, director e redactor são sempre um trunfo, quer se trate da imprensa de massas quer, mais modestamente, da despretensiosa folha local.

Curiosamente quase não há candidatos militares em todo o Distrito. Com efeito, Sidónio aparece mais como Professor do que como ofi cial de Artilharia. Esta constatação é interessante na medida em que o grupo profi ssional mais representado nas Constituintes de 1911 era, justamente, o das Forças Armadas: mais de 20 % no conjunto dos deputados.

(66) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 47.(67) – Com efeito, seu pai, Joaquim Bessa de Carvalho, um «brasileiro» benemérito da cidade do Porto, fora um «notável caudilho republicano» (cf. Alberto Pimentel, ob. cit., p. 207).

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Uma observação fi nal se impõe: os conclusões dizem respeito apenas o 12 deputados que, em relação ao total dos que tiveram assento nos tribunas, pouco ultrapassou os 5,5 %.

A Assembleia Nacional Constituinte, eleita a 28 de Maio de 1911, reuniu, pela primeira vez, em 19 de Junho do mesmo ano, tendo aí abolido ofi cialmente a Monarquia, decretado a República Democrático como forma de Governo em Portugal e declarado beneméritos da Pátria todos aqueles que lutaram e morreram para que a vitória fosse possível.(68)

Em 21 de Junho foi eleita a Comissão da Constituição, tendo sido escolhida, para a ela presidir, o deputado por Oliveira de Azeméis. Francisco Correia de Lemos.

A 3 de Julho, a Comissão da Constituição, depois de ter estudado os diversos projectos de Constituição, ofereceu à Assembleia Nacional Constituinte uma primeira redacção-base, a qual foi amplamente discutida.(69) A 21 de Agosto foi votada e promulgada a Constituição Política da I República Portuguesa (70). Três dias depois, por força do artigo 83 da Constituição, foi eleito o Presidente da República, sendo eleitores os deputados da Constituinte. No dia seguinte, em virtude do art. 84 da mesma Constituição, faz-se a eleição do Senado. Pelo Distrito de Aveiro, foram escolhidos para Senadores Albano Coutinho, Elísio de Castro e Francisco Correia de Lemos.(71) Os restantes deputados, de acordo com o § 1.º do art. 84, integraram a 1.ª Câmara de Deputados da República Portuguesa(72).

(68) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 374.(69) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 444.(70) – Mário Soares, Constituição de 1911, In: Dicionário de História de Portugal, voI. I, Lisboa, 1971, p. 679.(71) – Alberto Pimentel, ob. cit., p. 505/506.(72) – Ibidem, p. 489.

Dr. Elísio de Castro

Nota da Redacção

ELÍSIO PINTO DE ALMEIDA E CASTRO Nasceu na Quinta das Cavadas, em Fiães, a 6 de Janeiro de 1869. Foi o organizador e Presidente da primeira Comissão Repúblicana da Feira e o primeiro Presidente da Câmara Municipal da Feira, após a implantação da República. Eleito em novembro de 1911 Presidente do Senado Municipal até 1926. Em 1910 foi nomeado contador do Tribunal da Comarca do Porto. Em 1920 foi nomeado Governador Civil de Aveiro. Aposentou-se após o 28 de Maio de 1926. Faleceu no Porto a 12 de Novembro de 1956. In Francisco Azevedo Brandão, Villa da Feira, nº23, p.77

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40 Poema da tua mãoAnthero Monteiro*

este poema é para quem no apanhar

mas este poema nasce da geografia da tua mãoe na tua mão são duas as linhas da vidaaquela que te reservam os deuses perversose aquela que arquiteto nos meus sonhosonde os teus caminhos são esteiras de luzonde os teus anseios dobram o destinoe declaram nulos os divinos decretos

este poema é para quem no apanhar

mas se este poema veio da poesia da tua mãoeste poema já tinha dono antes de ser poemaseria uma pena que o vento o levasse para outra mãoque não fosse ao menos a paga mínimada poesia que soltas dessa palmade onde brotam ainda mil promessas e desabrocham pétalas de afago

este poema é para a mão que me apanhou. *Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros

de poesia e de ensaio.S. Paio de Oleiros, 9 de Maio 2010

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41 Jesuítas no foco da propaganda: A solução republicana e a exorcização da decadência1

José Eduardo Franco2*

A propaganda antijesuítica ao serviço da Ideia republicana

O movimento republicano e a sua concretização em regime político em Portugal, na sequência da Revolução de 5 de Outubro de 1910, utilizaram abundantemente o ataque aos Jesuítas e ao chamado Jesuitismo como um instrumento propagandístico privilegiado e recorrente para efeitos de mobilização político-social, na linha da melhor tradição pombalina de combate à Companhia de Jesus.

Cristalizando em torno da constelação tão efabulizada de receios e ameaças de que o jesuitismo3 era a sinédoque das causas da decadência nacional e do consequente atraso ou mesmo paralisação da marcha de Portugal em direcção à tão sonhada era do progresso assente na razão e na ciência, a propaganda republicana, cada vez mais secundada pela Maçonaria e pelos movimentos mais radicais do laicismo militante, apregoava e exigia com cada vez maior paixão o antídoto para este Portugal jesuitizado. De facto, o antijesuitismo era a grande bandeira desfraldada e atiçada pelas diversas correntes laicistas e antidinásticas (republicanas, socialistas, anarquistas, livre-pensadoras,...) que propugnavam soluções diversas para o futuro político e social do país por oposição à vigente monarquia constitucional4.

1 Artigo composto a partir da tese de doutoramento do autor sobre o antijesuitismo em Portugal e nos seus territórios ultramarinos, a qual foi defendida na École des Hautres Études en Sciencies Sociales de Paris, publicada sob o título: Le Mythe Jésuite au Portugal, au Brésil, en Orient et en Europe (XVIe-XIXe siècles), Préface de Bernard Vincent et Luís Filipe Barreto, Thèse de doctorat, Paris - Lisboa - São Paulo, Centre de Recherches Historiques ñ EHESS, Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa et Editora Arkê, 2008. A mesma foi trazida a lume em português pela Gradiva, editada em dois volumes nos anos 2006-2006. 2 Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidade de Lisboa ñ Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

3 Explica Michel Leroy que o mito jesuíta, como é característico dos mitos conspiracionistas em termos gerais, funciona como epicentro onde se cristalizam medos, preocupações e frustrações da psicologia colectiva, cuja propaganda que o divulga facilmente o instrumentaliza para efeitos de mobilização sociopolítica. Cf. Michel Leroy, Le mythe jésuite: de Béranger à Michelet, Paris, 1992, p. 10. 4 Cf. Fernando Catroga, ìO livre-pensamento contra a Igrejaî, in Revista de História das Ideias, Vol. 22, 2001, p. 342 e ss. As divergências sérias que se verifi cavam entre os diferentes movimentos ideológicos que contestavam o presente modelo político e social só encontravam um vector de unidade em que todos se reviam e se mobilizavam conjunta e concertamente, o combate ao jesuitismo nas suas vertentes clerical e congreganista.

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O Jesuitismo era a máquina da reacção por excelência. Pela história, pela poesia, pelo romance, pelo panfl eto, pelo discurso de ocasião ou do parlamento, os antijesuítas glosaram até à exaustão o tema da identifi cação do inimigo escondido, dado como difícil de detectar, sendo a sua arma principal a hipocrisia, usada com a metodologia diplomática da simulação, sob a qual congeminavam os mais terríveis atentados contra o bem da comunidade e de cada homem. Textos como A Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro (1850-1923), um dos textos mais lidos deste período5, evocam e vergastam no mesmo tom antijesuítico esta hipocrisia ou astúcia intriguista e demolidora, como é bem incisiva esta passagem tão atrabiliária: «Ó jesuítas, vós sois díum faro tão astuto/Tendes tal corrupção e tal velhacaria,/ Que é incrível até o fi lho de Maria/ Não seja inda velhaco e não seja corrupto,/ Andando há tanto tempo em tão má Companhia»6. O tema da hipocrisia jesuítica que tão fundo cavou raízes na nossa cultura, aparece ainda nos nossos dicionários como sinónimo tropológico do substantivo jesuíta. Este era de facto o reverso da ideografi a de Rousseau sobre o bom selvagem e do seu escopo proclamado de procurar a verdade sobre o homem e da sua simplicidade e inocência genesíacas, valores que também foram de algum modo assumidos como fundamentos da harmonia social da «Ideia Republicana» no plano de seu discurso utópico. O recurso à bandeira ideológica antijesuítica tinha sido usado desde muito cedo nos manifestos propagandistas de natureza eleitoralista do Partido Republicano Português (PRP). Um desses exemplos de panfl etos eleitoralistas antijesuíticos tinha sido publicado já em 1881 pelo Centro Republicano do Porto, contendo uma óptima síntese do teor das acusações do republicanismo militante dirigidas ao jesuitismo, no qual se encerrava redutoramente o reverso da «Ideia Republicana». O manifesto intitulado apropriadamente Democracia e Jesuitismo

publicado em formato de edital, apresenta como mote polémico a tese da traição do constitucionalismo monárquico às origens liberais deste regime para por em causa o statu quo político. A tolerância governamental em relação à presença dos Jesuítas em Portugal é vista em tom dramático como um atraiçoamento feito ao «sangue dos mártires» derramado pelos heróis do liberalismo na Guerra Civil de 1832-1834, desabafando, em função disso, a própria legitimidade do regime monárquico-constitucional. O Centro Republicano do Porto defendia a obrigação dos verdadeiros liberais se empenharem na defesa do regime representativo pelo combate sem tréguas ao jesuitismo. E explica a inacção do presente regime contra este inimigo da nação que tolera no seu seio, pelo facto do regime se ter tornado híbrido e democraticamente falso. O texto panfl etário dedica um espaço importante à caracterização dos Jesuítas em sintonia argumentativa com a ideografi a antijesuítica mais ortodoxa, isto é, atribuindo-lhes as habituais faces do universo funesto, da desestruturação social e da decadência. Estes religiosos são vistos como obstáculos ao progresso, autores de uma degeneração sem limites, formando a «seita fanática» dos militantes da conspiração «contra a liberdade», desagregadora da família, que «ensina os fi lhos a iludir os país, aconselha as esposas a abandonarem os maridos, infl uência no espírito dos moribundos para obter pingues heranças», congeminadora e executora dos «crimes mais repugnantes». Condensa-se aqui uma espécie de ladainha da criminalidade anti-liberal dos Jesuítas protegida pelo regime vigente, de modo a ensinar o povo a opor-se à monarquia em favor da adesão ao ideário político alternativo encerrado na solução republicana. Interessante, neste panfl eto, é a recorrente apologia que faz no sentido de afi rmar o republicanismo como depositário dos ideais mais genuínos do cristianismo, mormente os ideais da «fraternidade», da «liberdade» e da «igualdade». Fá-lo por oposição ao jesuitismo que é fi gurado como o anticristianismo que teria feito degenerar a verdadeira religião de Cristo, fazendo, portanto, apelo para a necessidade da sua recristianização pela via republicana7.

5 Cf. António Cabral, O talento e os desvarios de Guerra Junqueiro, Lisboa, 1942, p. 191 e ss. 6 Guerra Junqueiro, A velhice do Padre Eterno, Porto, 1885, p. 87. Junqueiro, no seu anticlericalismo visceral, explorou a imagem popular tradicional associada negativamente ao padre, fazendo-a ainda mais monstruosa, ao catalogar o sacerdote católico em geral de «Chimpanzé estúpido, bisonho, porco, preguiçoso, comilão, sensual e obsceno». Ver também na mesma linha a actividade propagandística do republicano João Chagas, Na Brecha (Panfl etos), 1893-1894, Lisboa, 1898.

7 A democracia e o jesuitismo. Manifesto do Centro Eleitoral Republicano do Porto, 2 de Fevereiro de 1881, Porto, 1881.

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A reclamação por parte do republicanismo da herança dos princípios do verdadeiro cristianismo era um dos tópicos muito repetidos pelo movimento antijesuíta reformista em geral que justifi cava, não poucas vezes, a sua luta contra a Companhia de Jesus pelo desiderato de depurar o catolicismo da degeneração da religião cristã operada pela infl uência do jesuitismo, o qual se teria tornado numa espécie de anticristianismo8. Este tópico ideólogico de matriz pombalina não deixou de ser assumido e reformulado pelos vários movimentos laicistas de pendor antijesuíticos9. Há a registar um dado novo acrescentado à argumentação antijesuítica feita neste panfl eto que temos vindo a analisar, que é apenas enunciado, mas não desenvolvido nem explicitado. Trata-se da comparação exemplifi cativa, apelando para a história, entre o ódio do povo francês aos Jesuítas no século XVIII, resultante dos seus abusos e fraudes no plano económico, e a aversão medieval da população portuguesa à minoria judaica, sem, todavia, tecer qualquer comentário à razão ou desrazão deste último sentimento de ódio anti-semita. Resta a dúvida se se pretendia comparar simplesmente uma semelhança de grau, ou também de génese do referido sentimento de aversão. Se se pretendesse comparar este último aspecto, o texto em causa deveria ser fi liado na linha ideográfi ca das praguentas invectivas feitas contra as comunidades judaicas acusadas de usura e de opressão social por via da exploração fi nanceira. Seja como for, esta comparação não deixa de evidenciar mais uma vez o paralelismo existente, e assim indicado num texto polémico, entre os traços ideográfi cos estruturantes do mito de complot jesuítico com os do complot semítico. Desde a década de 80 do século XIX, os republicanos tinham de facto incrementado a promoção dos seus ideais para o alargamento das suas bases de apoio em termos populares, incorporando o combate ao jesuitismo como um instrumento polémico e como móbil ideológico estruturante da sua propaganda que visava apresentar uma solução

alternativa ao regime vigente10. Já no início do século XX o veemente publicista antijesuíta José Caldas, no diagnóstico verrinoso que fazia sobre a infl uência nefasta do jesuitismo em Portugal no contexto do despoletar da questão congreganista em 1901, apresentava, de forma enfática e em tom revolucionário, a solução republicana como o antídoto mais efi caz para travar a expansão dos Jesuítas e os erradicar. Pois via nestes religiosos o maior mal que afectava a nação. Colocando claramente a questão política no centro do seu labor propagandístico, acusa o «coito com o jesuitismo» por parte da monarquia constitucional que não só tolerou como ardilou a ofi cialização da presença laboriosa do «inimigo» invasor no país11. Este sugestivo e virulento catecismo antijesuítico de orientação republicana, propagandeia, para fi ns de catequização e de mobilização política e ideológica, a imagem do total amancebamento entre o jesuitismo e o governo monárquico. A predominância jesuítica no centro do poder impedia-o de acertar caminho em direcção ao progresso. Esta imagem torna-se cada vez mais intensivamente recorrente no quadro destas campanhas antijesuíticas (que o mesmo é dizer antimonárquicas) à medida que a monarquia se ia fragilizando em direcção à sua derrocada com o advento do dia sonhado da revolução republicana. José Caldas dá, neste libelo, a solução almejada pelos republicanos para este formidável agrilhoamento da consciência nacional pelo jesuíta e para o serviço dos seus interesses obscuros. O enfeudamento de Portugal num jesuitismo avassalador era visto como responsável pelo estado de infelicidade social e familiar e pela inoperância política que o país alegadamente vivia. Para o autor, só a concretização da ìGrande Ideiaî era a única via certeira: «O caminho da República»12. A implementação de

8 Rodrigues de Freitas é também um caso de um crítico, mas este não totalmente radicalizado, da Igreja e do jesuitismo, que sem deixar de denunciar aquilo que qualifi ca como a «infi nita» separação entre a pregação de Cristo e da Igreja do presente, inscreve-se, todavia, num antijesutismo de carácter reformista que visa, por assim dizer, reaproximar os católicos das exigências da mensagem original de Cristo, isto é, apelando para o regresso às fontes do cristianismo. Cf. Rodrigues de Freitas, Páginas avulsas, Porto, 1906, p. 231 e passim.9 Cf. Vasco Pulido Valente, O poder e o povo. A revolução de 1910, 2ª ed., Lisboa, 1982, p. 34 e ss.

10 Para uma história da origem, formação e desenvolvimento do republicanismo em terras lusitanas ver a obra fundamental de Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal: ñ Da formação até o 5 de Outubro de 1910, 2 Vols., Coimbra, 1991. 11 Cf. José Caldas, Os Jesuítas e a sua infl uência na actual sociedade portuguesa: meio de a conjurar, Porto, 1901, p. 379. Este livro reúne uma colectânea de artigos publicados por este cronista no periódico dí O Norte entre Junto de 1900 e Abril de 1901. O mação José Joaquim da Silva Pereira Caldas, (1818-1903), era formado em Filosofi a e em Matemática, tendo exercido a actividade de professor do ensino liceal e jornalista no Centro e no Norte do país. Além da sua actividade intelectual e política muito activa contra o regime monárquico-constitucional, chegou a militar na Carbonária, tornando-se depois sócio-correspondente da Academia Real das Ciência de Lisboa. 12 Ibidem, p. 386.

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um regime deste género permitiria, na perspectiva do autor, o regresso de uma era de paz dourada pela prosperidade: «A concórdia entrará nos espíritos e nas consciências; a unidade moral da família, hoje mutilada»13. O jornalista republicano ilustra bem um dos aspectos paradoxais mais salientes dos construtores do mito jesuíta, adeptos da fi losofi a do livre-pensamento: o dogmatismo da sua mundividência e das suas soluções propostas para a vida do homem em sociedade. Usa o seu «livre-pensamento» para assumir posições e soluções radicais e autoritárias e mesmo repressivas no campo religioso, de tal modo que não é estranho que José Caldas tivesse chegado ao extremo de considerar «D. José mais liberal do que D. Carlos I»14. Recorde-se que D. José e o seu ministro Carvalho e Melo, mais conhecido pelo título Marquês de Pombal, assinaram a primeira Lei de Expulsão dos Jesuítas a 3 de Setembro de 1759. Perfeitamente fi el à visão de que os Jesuítas formavam uma enorme rede que agrilhoava o país e o asfi xiava, José Caldas pretendia, com esta «canonização» republicana de um monarca ultra-absolutista da história de Portugal, demonstrar que as leis antijesuíticas do Marquês de Pombal15 teriam sido, com base neste particular critério ideológico, mais liberais do que a legislação congreganista de Hintze Ribeiro. Pois estas leis mais tolerantes tinham permitido ofi cializar a situação de facto que era a presença dos Jesuítas e de outros religiosos em Portugal, reintroduzidos e reorganizados

nas suas comunidades e obras congreganistas. No fundo, o autor representava o ideário cada vez mais dominante entre os grupos anticlericais que pretendiam reduzir o liberalismo ao laicismo, depurador de toda a infl uência da Igreja e da religião em geral na sociedade16. Este ideário está bem condensado sarcasticamente nos versos de Gomes Leal escritos também no ano quente de 1901, apelando para a revogação total da velha ordem em favor da assunção, sem cedências nem compromissos, de outra totalidade ideológica substitutiva, a laicização radical da sociedade:

«Nada de convenções ñ falamos claro e alto.Quem traz, na hora actual, a Europa em sobressalto?É Loyola que rosna e Orleans que assobia,É Miguel dando o braço à D. Sacristia.(...)O Estado é essencialmente um ser laico e civil.Nada tem com o céu, cor-de-roa ou cor-de-anil,Com a alma, o outro mundo, a consciência, a fé,Com a barra de Balaão ou o asno Maomé.O Estado é o zelador civil unicamente,Que deve respeitar a opinião de toda a gente,Logo que não moleste e estorve o seu vizinho»17.

13 Ibidem, p. 380. 14 Ibidem, p. 4.15 Como o tinha feito a ideologia pombalina, o republicanismo pregava a urgência de refundar a nação depois de remover as suas ruínas e os seus alegados arruinadores, para criar uma sociedade nova, regenerada sobre os escombros do jesuitismo «anticientífi co». Esta doutrina fundamental e altamente mobilizadora era dominante no discurso republicano, fazendo parte da sua identidade revolucionária, e não era certamente uma mera excrescência como quiseram alguns analistas. Ver também a poesia de incitamento revolucionário de José Augusto de Castro, Para a revolta, Lisboa, 1904; e a peça de teatro para doutrinação popular contra a reacção, sonhando com o seu fi m: Verdadeira seita jesuítica. Um sonho fanthastico, Vingança Liberal, Évora, 1909. De Alexandre Braga, ver O processo monstruoso, Lisboa, 1902. E do muito profícuo mação e positivista de nome simbólico Lutero, ver Heliodoro Salgado, Através das Edades. Poemeto, Lisboa, 1899. Ter em conta também as suas obras de combate doutrinal contra a Igreja e a religião: Idem, O culto da Imaculada. Estudos críticos e históricos sobre a mariolatria, Porto, 1905; e Idem, A Religião da morte, Pref. Botto Machado, Lisboa, s.d. Também houve a preocupação de fazer eco em Portugal das «manobras destruidoras» do jesuitismo internacional, como foi o caso do célebre padre catalão, francisco Ferrer, condenado à morte em 1909 por ter fundado escolas de inspiração laica, sendo elevado depois à categoria de mártir do progresso pelos movimentos laicistas. Cf. O tempo, Nos. 29 e 30, 1909.

16 Esta propaganda de descredibilização dos Jesuítas feita especialmente por intermédio da imprensa periódica, também era acompanhada no terreno pelo esforço de desacreditação de jesuítas concretos e individualizados que, de algum modo, tenham alcançado fama e ascendência sobre a população. A título de exemplo, deve-se recordar a propaganda levada a cabo contra o Padre Grainha, jesuíta muito apreciado e infl uente pelo sucesso alcançado pelas suas missões populares. O cinzel antijesuítico voltou-se para esta fi gura em particular, explorando a sua hipocrisia e vícios secretos, a fi m de evitar que se voltasse «aos tempos de Gusman e Loyola, como à mitologia pagã ou ao culto das cebolas do Egipto». Ana de Castro Osório; Paulino de Oliveira, Uma missão do padre Grainha, Setúbal, 1901, p. 39. Note-se que as missões populares internas muito promovidas pela Igreja em ordem a revitalizar o Cristianismo nas velhas sociedades europeias, particularmente feitas através dos regulares das diferentes congregações, eram vistas pelos críticos com muita suspeita, como expressão da estratégia jesuítica para restaurar a velha ordem social de matriz católica e absolutista. A utilização deste instrumento pastoral, entendido pelos anticlericais como uma arma de reconquista da reacção, era tanto mais agravado pelo facto de serem os Jesuítas os seus protagonistas e agentes mais activos, como sublinha Fernanda Enes: «quando os missionários são jesuítas a reacção é considerada dupla e de um ultramontanismo por excelência». Fernanda Enes, Missionação: problemática geral e sociedade contemporânea, Separata do Congresso Internacional de História da Missionação Portugueses e Encontro de Culturas, Braga, 1993, p. 69; e cf. René Rémond, Líanticlericalisme en France: de 1815 à nos jours, Bruxelles, 1985, pp. 404-410. 17 Gomes Leal, Carta ao Bispo do Porto. O Jesuíta e o Mestre Escola, Lisboa, 1901, pp. 12 e 15.

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Mas reside aqui precisamente o paradoxo desta corrente marcada pelo livre-pensamento e apregoadora da democracia, que valorizava extremamente o papel tutelador e educador do Estado, mas altamente intolerante em relação aos largos sectores da sociedade civil dirigidos e infl uenciados pela Igreja. Tratava-se do ideário de uma minoria que se pretendeu impor ao sentir da maioria18. Justifi cava-se, porém, este anti-liberalismo intransigente e intrínseco às soluções laicistas, com base na ideia amplamente difundida de que essas organizações católicas estariam infectadas pelo espírito jesuítico, e cuja vontade não era verdadeiramente livre, nem sequer, por vezes, consciente, e muito menos patriótica, por isso não merecedora de ser creditada e tolerada pelo Estado. Fernando Catroga caracteriza a atitude e as posições deste grupo, que estava longe de ser representativo do «estado mental dominante», ou de servir o consenso da esmagadora maioria da população, pois era de facto uma minoria esse «vanguardismo iluminista do estado republicano»19. Esta vanguarda adoptava como modelo a matriz universal de todos os revolucionarismos modernos que era a Revolução Francesa, e, no plano nacional, a legislação regalista e antijesuítica do Marquês de Pombal e de Joaquim António de Aguiar. Nessa medida, tomava especialmente a fi gura do Marquês de Pombal como o percursor das revoluções portuguesas que puseram fi m ao velho despotismo monárquico. Donde o insistente apelo à restauração das leis antijesuíticas emanadas e executadas no reinado de D. José I. O mito de complot jesuítico era utilizado, deste modo, para

justifi car o anticongreganismo e o anticlericalismo, em geral, e até o anticatolicismo, que se associava ao antimonarquismo, para exigir a substituição revolucionária do regime político vigente. O jesuíta é, pois, fi gurado como o inimigo por excelência da nação e da humanidade, e, por isso, a revolução teria que ser feita especialmente contra ele. Para Caldas, o jesuíta, caracterizado na linha do já ilustrado organicismo positivista, deveria ser combatido com uma vontade política inamovível e com uma metodologia científi ca. A doença do jesuitismo já estava sufi cientemente bem diagnosticada, o tipo do jesuíta já estava defi nido e isolado cientifi camente: «O jesuíta está conhecido e totalmente constatado (...) assim como o poder da sua acção sinistra e deletéria no organismo de todas as sociedades humanas»20. Com base nesta concepção organicista da sociedade, a utopia prospectivada da existência social republicana deveria essencialmente consistir na substituição do organicismo religioso (afectado globalmente pelo jesuitismo, qual máquina em que os membros são autómatos, de acordo com a visão típica do complot) por um organiscismo de natureza laica. Aplicar este remédio para a doença estrutural do país seria o objectivo da guerra contra tão fabuloso inimigo. Destaque-se também neste ano de 1901 o aparecimento do jornal O jesuíta, publicado por Tomás Rodrigues Matias em Lisboa (que se situa na linha das edições de periódicos anteriores e tão efémeros como eles, especializados na propaganda antijesuíta como o Anti-jesuíta e a Semana de Loyola), do qual saíram 6 números entre Abril e Maio de 1901. Este periódico visava tecer uma crítica directa e mordaz à actuação do governo que protegia os religiosos da Companhia de Jesus e outras congregações religiosas presentes no país. Recheado de ilustrações, de crónicas, de comentários, de adágios, de poesia, complementados com textos de historiografi a antijesuítica (em especial da pombalina Dedução cronológica e analítica), O Jesuíta faz

18 Mas os Jesuítas e as congregações religiosas em geral, para falar apenas desta parte mais odiada da Igreja Católica, gozavam de opinião favorável da parte da esmagadora maioria da população rural que era majoritária no conjunto do país. Além disso, os Jesuítas encontravam fl ancos de apoio importante entre a alta nobreza e entre alguns sectores da burguesia abastada que lhe confi avam os fi lhos para efeitos de educação. Do outro lado da barricada, o movimento anticlerical laicista e antijesuíta agremiava os seus apoios entre as franjas sociais descontentes com o regime, em meios eruditos ligados à universidade e à imprensa, na classe média e nas classes operárias urbanas que viviam em difi culdades e aspiravam profundamente a uma vida melhor. Especialmente desde anos 90 do século XIX o movimento republicano ganhou progressivamente importantes apoios de organizações e fi guras da sociedade portuguesa, desde a Maçonaria à Carbonária. Também muitos adeptos do socialismo passaram a depositar as suas esperanças e os seus apoios para o derrube do regime vigente na solução proposta pela «Ideia Republicana». Cf. Vítor Neto, op. cit., p. 357; e Pedro Castro, Congregações religiosas. Documentos para a sua história em Portugal, Évora, 1910, pp. 31-34; César Oliveira, O operariado e a República Democrática, 1910-1914, Lisboa, 1974. 19 Cf. Fernando Catroga, O republicanismo, op. cit., Vol. 2, p. 371.

20 José Caldas, op. cit., p. XVIII. Ver também outras obras, além das que já temos vindo a analisar, na mesma linha ideológica de militância antijesuítica: Paulo Emílio, A lanterna. Opúsculo semanal de inquérito à vida religiosa e ecclesiastica portugueza, Lisboa, 1909-1910; Henrique de Carvalho, Cartas vermelhas ao Rei e ao Povo contra o jesuitismo e pela República, Lisboa, 1910; Nicolau da Fonseca, Dôna Filômena ou as vicissitudes da Seita..., Lisboa, 1908; Bernardindo Machado, Da monarchia para a República, 1883-1905, Lisboa, 1905; Fernão Boto, Crença e revolta, Lisboa, 1908.

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uma verdadeira sátira à legislação de Hintze Ribeiro e aos seus «protegidos» jesuítas.21 Este jornal é bem expressivo do carácter primário da polémica e da fobia antijesuítica, bem ao gosto popular22, que incendiava então o país e que se tornou mais efervescente com o rebentar da questão congreganista de 1901. Vale a pena citar um dos sonetos que recorta «um perfi l do jesuíta» e que dá bem a confi guração mítica que se erguia propagandisticamente desta fi gura tão vituperada para consumo popular: ìO que é o jesuíta? Um cancro tenebroso,Um tirano que afronta a triste Humanidade,Um tartufo sem nome, exímio de maldade, Que tem por capa Cristo, o Justo piedoso.

Um devasso que mancha o altar, o virtuoso;Que ergue os olhos ao céu e prega a caridade;Que tem na boca Deus, a velha santidade...Quando ele é: um bandido, um réptil asqueroso!...

Assassino de honra, um coração de ferro, Que os anjos prostitui, conduzindo-os ao erroDo triste lupanar, da torpe bacanal...

Um perverso do mundo, um apóstolo falso,Que devia acabar no inferno cadafalso,Queimado na fogueira ou rasgado a punhal!...23»

Ao longo da primeira década do século XX a exigência da erradicação do jesuitismo era cada vez mais o tema-chave, o pretexto mobilizador, o assunto incontornável das campanhas oposicionistas ao regime. Era o tema forte dos comícios,

das manifestações, dos motins, das comemorações, das homenagens às vítimas dos Jesuítas e dos frades em geral, das romagens aos cemitérios, dos congressos anticlericais que se sucederam com grande entusiasmo. Até mesmo muitas associações laicas para reivindicar o registo civil obrigatório e para promover outros projectos laicos de substituição de práticas sociais ligadas à religião, assumiram o adjectivo de antijesuíticas24. Os jornais deleitavam-se a relatar incidentes e crimes clericais reais ou imaginários, mas sempre generalizados e hiperbolizados, como sendo a ponta do iceberg da grande rede criminosa implantada pelo jesuitismo. O regime cada vez mais fragilizado, especialmente depois do regicídio operado pela carbonária que liquidou o rei D. Carlos em 1908, a quem sucedeu D. Manuel II, tinha cada vez menos força para conter o descontentamento amplamente explorado pelo movimento republicano25. O governo ditatorial de João Franco (1906-1908) tentou ainda suster a vaga de cheiro revolucionário encarnada no republicanismo, pela introdução no seu programa político de algumas exigências formuladas por este partido público; de modo particular a reafi rmação de um certo regalismo de Estado que se traduziu na proibição da fundação de novos seminários, na proibição de recrutamento de professores religiosos sem autorização governamental e proposição de um projecto para reforma do registo civil26.

Divergências católicas reforçam a opinião antijesuítica laica

Os próprios Jesuítas estavam a viver um momento de polémica no seio da Igreja portuguesa nas vésperas da sua terceira expulsão de Portugal. Era uma polémica em torno da questão do voto católico que se tinha acendido em 1908

21 Esta legislação publicada pelo ministro da Justiça Hintze Ribeiro em 1901 pretendia resolver a questão da ilegitimidade da presença de Ordens e Congregações Religiosas em Portugal, admitindo-as legalmente com o estatuto de associação com objectivos de educação e benemerência. 22 A. Gondomar, ìO anti-clericalismo em Portugalî, in Brotéria, Vol. 29, 1939, pp. 554-563. 23 Domingos Pereira, ìUm perfi l do jesuítaî, in O Jesuíta, 2 de Maio, nº 5, 1901, p. 2. Até em adágios para andarem de boca em boca de fácil memorização o jesuíta entrava para decalcar a imagem da sua perigosidade e dos seus crimes e ardis típicos: «Entre os Jesuítas e os potrosNão há ponto de contacto:Um comem ervas do mato,Boas heranças, os outros». Ibidem, 11 de Abril de 1901, p. 4.

24 Como foi o caso, entre outras, da Grande Comissão Antijesuítica criada em 1901 para combater a legalização do congreganismo e concertar esforços para promover a concretização do ideário de secularização total da sociedade. Cf. António Ventura, Anarquistas, republicanos e socialistas, op. cit., p. 61 e ss.; e Fernando Catroga, A militância laica laica e a descristianização da morte em Portugal, 1865-1911, 2 Vols., Coimbra, 1988, passim. 25 Cf. Rui Ramos, Liberal reformismo in Portugal: Oliveira Martins, the movement for a New Life and the politics of the constitucional monarchy (1885-1908), Tese de doutoramento apresentada na Universidade de Oxford, Oxford, 1997, cap. V-VI. 26 Cf. Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, 1998, p. 256; e Francisco Rocha Martins, João Franco e o seu tempo, Lisboa, 1925.

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com os Franciscanos de Montariol que editavam a revista Voz de Santo António. Ao mesmo tempo, membros da Liga do Clero Pobre, tinham criticado a Companhia de Jesus de querer monopolizar a formação do clero em Portugal. O que revela que os Jesuítas, as suas posições ideológicas e a sua forma de acção pastoral continuavam a não reunir consenso no seio do catolicismo, embora as críticas que lhe eram feitas por parte de alguns sectores católicos, neste período, não atinjam o grau das formulações jesuitofóbicas e complotísticas do antijesuitismo laico extra-eclesial. Mas teve maior impacto a controvérsia em torno da revista franciscana de Montariol. Esta discussão fi cou conhecida pelo nome de polémica modernista que colocou

em destacado confronto a Voz de Santo António e a revista dos Jesuítas intitulada o Novo Mensageiro do Coração de Jesus, publicada na casa de noviciado da Companhia de Jesus sediada no convento do Barro em Torres Vedras. Estava de maneira especial em causa uma questão de natureza política, isto é, o problema do equacionamento da relação do clero e dos católicos em geral com a política partidária. Alguns artigos publicados na revista franciscana veiculavam a posição doutrinária de que os católicos não deveriam identifi car-se com um partido específi co, nem o clero deveria utilizar o púlpito para fazer campanha eleitoralista em favor de uma determinada corrente política27. Esta posição era defendida contra a corrente que misturava religião e política e defendia a votação obrigatória dos católicos no Partido Nacionalista28, como sendo aquele que melhor defenderia os interesses e o ideário da Igreja Católica. A revista dos Jesuítas defendia esta última posição monolítica, segundo a qual cada eleitor católico deveria votar nesta opção política em nome da fi delidade ao seu credo religioso, apelando assim para o foro da consciência dos fi éis. Os contraditores da posição assumida pela revista franciscana, de que os Jesuítas se tornaram intérpretes e a face mais visível, levaram a Roma a acusação de modernismo contra aquele órgão de imprensa da Ordem dos Franciscanos Menores, acusação que levou à suspensão desta revista por parte da Santa Sé em 1910,

27 O texto que desencadeou a polémica tinha sido publicado em Fevereiro de 1908 na ìCrónica ligeiraî que fi gurava normalmente na contra-capa da revista. O cronista franciscano defendia a não vinculação exclusivista obrigatório dos católicos em relação a qualquer facção partidária. Defendia, pois, a liberdade de voto para os membros da Igreja Católica contra a arregimentação que alguns sectores do catolicismo português promoviam em favor de um só partido: «(...) não queremos que a religião se confunda com a monarquia nem com a democracia nem com nada (...). A religião nunca deu normas particulares de política, porque os programas políticos valem tanto quanto se adaptam às circunstâncias e às condições de vida de um país, ao passo que a ideia religiosa vale sempre (...). Se há partidos que se incompatibilizam com a Igreja é claro que em esses não voto, porque a minha consciência de católico mo proíbe. Mas se os há que são meramente políticos, posso dar-lhes a minha preferência. Depende disso dar minhas ideias políticas. Porque não é como católico que eu voto ou que vou ao parlamento: é como cidadão católico (...). Por outras palavras, não há política católica, nem partido católico, mas pode haver partidários e políticos católicos de valor». ìCrónica ligeiraî, in Voz de Santo António, Fevereiro de 1908, contra-capa. A esta tese política da defesa da liberdade do voto católico não eram também alheias outras questões de natureza teológica, como o tema central da chamada questão modernista, que discutia a problemática doutrinal em torno da imutabilidade do dogma e da refl exão sobre a possibilidade deste conhecer uma evolução do ponto de vista da sua formulação adaptada aos tempos históricos e aos desafi os da investigação científi ca. A tese mais progressista que defendia a possibilidade das doutrinas dogmáticas da Igrejas poderem e deverem sujeitar-se a alguma adaptação e evolução foram defendidas em Portugal pela Revista de Estudos Sociais do Centro Académico da Democracia Cristã, que, assim, se aproximava do ponto de vista da posições modernistas que eram defendidas pela revista Voz de Santo António. Embora em Portugal os Jesuítas, sem terem transpirado vozes discordantes no seio da Companhia, tenham manifestado um posicionamento conservador, a realidade não era assim tão aparentemente unânime na Ordem em termos europeus. Por exemplo, em França, contra a tendência dominante marcada pela intransigência no seio da Companhia, não deixaram de registar-se vozes moderadoras como Léonce de Grandemaison que defenderam a não rejeição pura e simples das teorias modernistas, mas que defendiam a importância de abrir portas ao debate e à refl exão séria sobre aquelas novas propostas teóricas. Estas vozes discordantes são, com efeito, percursoras das tendências de abertura, diálogo e adaptação ao mundo e à sociedade moderna que veio a ganhar grande audiência no seio da Ordem de Loyola na segunda metade do século XX. Cf. Dominique Avon; Philipe Rocher, Les Jésuites et la Société Française, XIXe-Xxe siècles, Toulouse, 2001, p. 101 e ss.

28 Alguns membros da Companhia de Jesus tinham-se, de facto, empenhado no favorecimento da criação do Partido Nacionalista em 1903, como partido católico, acreditando que a aglutinação dos votos católicos num só partido que defendesse os valores da Igreja era a melhor solução para contrariar a vaga anticlerical que grassava nos meios políticos e culturais do país. Este partido resultou da transformação do Centro Nacional constituído em 1901 para defender os interesses católicos no âmbito do regime vigente. Os defensores desta perspectiva de partidarização do catolicismo viam com animadversão as críticas provindas de sectores católico que discordavam desta opção, tanto mais que esta via não alcançou o sucesso que se esperava. Cf. Gomes dos Santos, O catolicismo em Portugal, Póvoa do Varzim, 1909, p. 106; e para o estudo da assunção deste partido ver Amaro Carvalho da Silva, O Partido nacionalista no contexto do nacionalismo católico, 1901-1910, Lisboa, 1996.29 Mas esta disputa e o seu desfecho favorável aos Jesuítas não pode ser apenas visto como um confronto entre uma revista franciscana e uma revista jesuíta e as ordens que as editavam, nem sequer uma disputa de terreno de infl uência e de hegemonia religiosa entre os seus movimentos de leigos, isto é, o Apostolado da Oração e a Ordem Terceira, mas foi «sobretudo um confl ito político em dois campos, não propriamente Jesuítas e Franciscanos, ou os respectivos apêndices laicais, mas sim nacionalistas católicos, por um lado, e democratas-cristãos, por outro». Manuel Braga da Cruz, As origens da Democracia Cristã e o salazarismo, Lisboa, 1980, p. 219. Tanto assim é que a corrente democrata-cristã não colhia apoios em toda a linha da Ordem Franciscana. Por exemplo, os frades do Convento do Varatojo divergiam dos seus confrades do Convento de Montariol em favor da tese perfi lada pelos Jesuítas do Novo Mensageiro.

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pouco antes de rebentar a revolução republicana29. O pensamento político veiculado por esta revista era também defendido por destacados intelectuais católicos ligados aos sectores laicais do catolicismo, como é o caso de Abúndio da Silva (1874-1914), que se inscreviam na chamada corrente do catolicismo que simpatizava com as ideias da chamada democracia cristã. O publicista católico entrou em clivagem ideológica com a corrente católica que defendia o projecto de dogmatização e monopolização da consciência política dos católicos em torno de um partido único30. Este intelectual interpreta bem a opinião da corrente que se tinha demarcado dos Jesuítas, criticando a sua perspectiva conservadora de intervenção dos católicos na política que incentivava uma promiscuidade entre política e religião, defendendo antes uma posição mais vanguardista de separação e de salvaguarda da autonomia entre estas duas esferas31. Esta polémica e o seu desfecho tem importância para o nosso estudo, na medida em que é reveladora da tendência conservadora e intriguista que dominava a Companhia de Jesus neste período, em sintonia com a tendência dominante perfi lada pela direcção católica perfi lada pelo Papado e ainda mais acentuada, entretanto, com a ascensão ao trono pontifício de Pio X, depois de uma relativa abertura de Leão

XIII32. Curiosamente, no quadro destas polémicas, as vozes do movimento antijesuítico extra-eclesial não deixaram de explorá-las e instrumentalizá-las em favor das suas teses, atacando os Jesuítas e colocando-se ao lado dos Franciscanos. Foi uma oportunidade excelente para reafi rmarem, com uma comprovação real, as suas acusações de reacionarismo em relação aos Jesuítas, e para defender os Franciscanos e o seu espírito de abertura, apresentados como vítimas do jesuitismo no seio da Igreja33. Neste contexto, até o próprio governo chegou a repreender o Arcebispo de Braga por ter dado execução ao ofício da Cúria Romana que ordenava a supressão da revista Voz de Santo António34. Mas, sublinhe-se que aqui houve menos um intento de defender os Franciscanos, que para todos os efeitos formavam uma ordem religiosa que não veio a deixar de ser alvo do anticongreganismo efervescente, e mais uma oportunidade e uma mais-valia para exprobrar os Jesuítas. De sublinhar ainda é o facto de que nas vésperas da revolução, o ministro regenerador Teixeira de Sousa (simpatizante do movimento antijesuítico), pressionado pelo enfurecimento da propaganda anticongreganista, na sequência da muito badalada expulsão dos Padres da Aldeia da Ponte35, pediu aos governadores civis uma nova sindicância exaustiva sobre as condições de permanência das ordens religiosas no país e a averiguação do respeito destas pela legislação em vigor desde 1901.

30 Nesta época há que distinguir dois grandes movimentos dentro do próprio catolicismo. O Catolicismo constitucional e concordatário, portanto, em certa medida liberal, que optou por conformar-se e por ganhar espaço dentro do regime político vigente; e o catolicismo intransigente, legitimista e integralista, onde tendem a situar-se os Jesuítas. Cf. António Matos Ferreira, ìLiberalismoî, in Carlos Moreira Azevedo, Dicionário de história religiosa de Portugal., Vol. P-V, [Lisboa], 2000-2001, p. 432. 31 Este intelectual e jornalista católico assumiu primeiramente a defesa das posições da revista franciscana em crónicas publicadas no Correio do Norte. Criticava fortemente a corrente político-religiosa que defendia o alinhamento dos católicos num único partido, em favor da disseminação da participação católica em diferentes agrupamentos partidários e outras organizações de intervenção cívica na linha da chamada política de ralliement proposta no princípio da década de 90 do século anterior por Leão XIII aos católicos franceses e muito bem acolhida pelos sectores mais progressista do catolicismo liberal europeu. E não sem razão afi rma que no quadro da história do liberalismo português boa parte do «clero regular e secular, em vez de desfazer esta confusão do miguelismo com o catolicismo, explorava-a; foi ele que mais ajudou a alimentar essa demagogia infame do cacete; ele que calou a sua voz não erguendo um protesto contra as forças; ele que transformou o púlpito em tribuna de comício donde desferiu anátemas contra o Sr. D. Pedro e os seus sequazes». Ver Manuel Isaías Abúndio da Silva, Cartas a um abade. Sobre alguns aspectos da questão político-religiosa em Portugal, Braga, 1913, p. 67; Idem, Questões actuais, Porto, 1910; Idem, Política religiosa. Resposta a uma crítica, Braga, 1913.

32 Recorde-se que sob pontifi cado de Pio X a Igreja Católica tornou-se muito repressiva em relação ao movimento modernista que tinha despertado no seu seio, reafi rmando a ortodoxia católica e distanciando-se e até frustrando a «tentativa de actualização científi ca da instituição religiosa, levada a efeito no pontifi cado de Leão XIII». Cf. Vítor Neto, op. cit., p. 514. 33 Para um estudo sobre estas polémicas, ver: E. Nunes, ìA questão da Voz de Santo António: Alguns elementos para o seu estudo (1908-1910)î, in Refl exão cristã, Vol. 68, 1990, pp. 27-45; António Montes Moreira, ìO Colégio Franciscano de Montariol (Braga)î, in Itinerarium, Vol. 103, 1979, pp. 10-38; e Manuel Clemente, ìModernismoî, in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de História religiosa, op.cit., Vol. J-P, pp. 249-251. 34 Ver Portaria assinada por Manuel Joaquim Fratel no Diário do Governo, Nº. 150, 12 de Julho de 1910. 35 Os religiosos do convento da Aldeia da Ponte faziam parte da denominada, para efeitos civis, Associação dos Missionários do Sagrado Coração de Maria, que faziam parte a Congregação fundada pelo Pe. José Maria Claret, também conhecidos por Padres Claretianos. O convento da Aldeia da Ponte, Concelho do Sabugal, era de facto a sua Casa-Mãe, donde tinham dado início à sua implementação e expansão em Portugal, vindos da Espanha. Estes, à semelhança do que acontecia com as ordens religiosas em geral, eram considerados como sendo mais uma das metamorfoses dos Jesuítas pela propaganda anticlerical.

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Embora a averiguação ofi cial não tivesse sido concluída globalmente em virtude da deposição do regime monárquico a 5 de Outubro de 1910, antes disso chegaram às mãos do governo resultados preliminares do inquérito dirigido por Pedro de Castro e por Sebastião Sampaio às residências dos Jesuítas, que apresentavam provas de várias situações ilegais36. Encontraram instituições religiosas que não cumpriam os requisitos da lei de Hintze Ribeiro, pois deveriam ser apenas destinadas ao ensino, à assistência e à actividade missionária. Averiguaram a existência de práticas de noviciado no Colégio do Barro que também tinham sido proibidas, a subordinação de religiosos portugueses a superiores estrangeiros que ultrapassavam a obrigação da tutela pelo ordinário do lugar,...37 Perante esta situação de ilegalidade, o governo ainda teve tempo de ordenar o encerramento de comunidade dos Jesuítas instalada na rua do Quelhas, a 4 de Outubro de 1910, à boca da revolução republicana. E antes disso o governo, pela mão de Teixeira de Sousa, tinha chegado a apresentar ao monarca um projecto de lei para obrigar ao encerramento de todas as comunidades da Companhia de Jesus em Portugal a breve trecho. A promulgação desta lei foi recusada pelo rei, alegando o receio de perder o título de rei Fidelíssimo que lhe tinha sido atribuído pelo Papa ou de ser censurado pela Igreja por hostilizar as suas instituições38. Desta vez foi a monarquia moribunda que impediu, à beira do seu fi m, a reedição com a sua chancela, de leis dos monarcas antecessores contra a coluna jesuítica, que agora longe de ser um inimigo perigoso do regime monárquico constitucional, imagem ténue do que tinha sido a monarquia nos seus alvores do exacerbamento do seu poder, era agora um dos seus suportes e defensores contra os que ameaçavam derrui-la39.

A terceira expulsão da Companhia de Jesus

Tão profi cientemente catequizadas estavam as fi leiras republicanas por uma propaganda antijesuítica sistemática e intensiva, e tão medonho era o fantasma jesuítico construído e com o qual se povoou a susceptível imaginação popular, que não poderia ser nunca outra a solução tomada, aliás, com signifi cativa imediatez pelo regime revolucionário instituído pela revolta republicana de 5 de Outubro de 1910. Não seria de esperar outra via, sob pena de inconsequência e incoerência ideológica dos protagonistas e propagandistas do novo regime, que tinham feito do jesuitismo o inimigo número um a vencer. Nada mais urgente se apresentou do que exorcizar a fantasmagoria jesuítica, o bode expiatório do mal da nação. Com efeito, a Lei de expulsão dos Jesuítas à cabeça de todas as congregações que, com a Companhia de Jesus, foram expulsas, foi a primeira das medidas de grande dimensão e impacto tomadas pelo regime republicano implantado em 1910 em Portugal40. O governo provisório colocado no poder pelo movimento revolucionário estava pejado de militantes professos do antijesuitismo, e era presidido por um dos intelectuais mais críticos da Companhia de Jesus, Teófi lo Braga, que transformou o ideário laicizante da sociedade portuguesa em programa prioritário da política republicana. Neste programa emergiram como pontos programáticos centrais a extinção das congregações, o fi m da confessionalidade religiosa do país ou da religião ofi cial em termos constitucionais traduzida na separação ofi cial da Igreja em relação ao Estado; quando não o fi m da religião em si a médio prazo, como sonhava Afonso Costa41, o executor da política de restrição do catolicismo em Portugal. Afonso Costa, enquanto Ministro da Justiça42 praticou, na avaliação feita por João Medina, um «anticlericalismo de má consciência como se o novo regime fosse uma cruzada contra o túmulo de São Pedro»43.

36 Cf. Vasco Pulido Valente, O poder e o povo, op. cit., p. 38 e ss. ; e Idem, As duas tácticas da Monarquia perante a Revolução, Lisboa, 1974. 37 Ver José Ramos Preto, Relatório sobre o extinto colégio de São Fiel da Companhia de Jesus, Lisboa, 1911; Idem, Os Jesuítas na política. Minuta de recurso eleitoral, Castelo Branco, 1910. 38 Cf. Teixeira de Sousa, Para a História da Revolução, vol. II, Coimbra, s.d., p. 56; e Vasco Pulido Valente, O poder e o povo, op. cit.39 Já tinha havido uma tentativa falhada, a 31 de Janeiro de 1891, de depor a Monarquia pelas armas, na sequência do grande desaire nacional que foi o Ultimatum inglês e a perda de importantes territórios coloniais em África em favor do controlo da Coroa britânica. Mas esta tentativa de golpe militar foi asfi xiada. Desde, então, sem que o movimento republicano tivesse mudado o intento de derrubar o regime monárquico pela força, optou por enfraquecê-lo pela intensifi cação de uma campanha propagandística que visava desacreditar a monarquia, no qual processo a bandeira antijesuítica desempenhou um papel fulcral. Cf. Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa, Lisboa, 1971.

40 Cf. Vasco Pulido Valente, A ìRepública Velhaî (1910-1917), Lisboa, 1997, p. 23 e ss. 41 Este intrépido combatente do jesuitismo, este novo Pombal como alguns lhe chamaram, acreditava, como chegou a afi rmar, que com a implantação da República e a difusão dos valores cientistas e racionalistas inspirados no positivismo, a religião iria desaparecer da sociedade em poucos anos, como consequência natural do advento pleno do estádio científi co. Cf. Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal, op. cit., pp. 221-223.

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Com efeito, três dias depois de implantada a República, sem grande trabalho legislativo, decretou a expulsão dos Jesuítas e das outras corporações regulares. Mas não cria propriamente uma lei nova de expulsão, mas apenas recoloca em vigor a Lei de expulsão dos Jesuítas decretado pelo governo absolutista do Marquês de Pombal, pelo decreto do governo da República de 8 de Outubro de 1910: «Art.º 1 - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1759, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os Jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que, efectivamente, fossem expulsos de todo o país e seus domínios e para neles mais não poderem entrar». E no segundo artigo repõe em vigor o decreto de 28 de Agosto de 1767, pelo qual o governo josefi no reexplicava e reforçava a lei de 175944. Não prescinde também de declarar, no artigo 3, nulas todas as leis de espírito e de letra contrárias ao articulado anteriormente, visando expressamente a lei de Hintze Ribeiro de 18 de Abril de 1901, «que disfarçadamente autorizou a constituição de congregações religiosas no país quando pretextaram dedicar-se exclusivamente à instrução ou benefi cência ou à propaganda da fé e civilização no ultramar»45. O mesmo decreto, no seu artigo 6, impõe a extinção de todas as outras ordens, repondo em vigor o decreto de Joaquim António de Aguiar de 1834, e ordena o repatriamento dos religiosos de origem estrangeira, ao mesmo tempo que coagia os professos portugueses à redução ao estado secular46. A que se segue, como era já da praxe neste tipo de expulsão, a nacionalização de todos os bens dos institutos regulares agora extintos. Até a Constituição da República, promulgada mais tarde, não deixa de contemplar no seu articulado o reforço destas medidas, tornando assim o Estado português

constitucionalmente antijesuítico e anticongreganista: ìÉ mantida a legislação que extinguiu e dissolveu em Portugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela fi liadas, qualquer que seja a sua denominação e todas as Congregações Religiosas e Ordens Monásticas, que jamais serão admitidas em território português»47. Pouco depois, o ramalhete legislativo anticatólico compôs-se com o decreto de separação do Estado da Igreja e do fi m de todos os seus privilégios48, remetendo a prática religiosa para o foro privado e para o interior dos templos, proibindo-se quaisquer manifestações públicas de natureza religiosa49. Era dada, assim, consecução legislativa ao ideário republicano de laicização radical da sociedade. A estas medidas, que foram caucionadas massivamente pela imprensa afecta ao novo regime, estava subjacente o projecto de construção de uma sociedade sem Deus, em que a religião tradicional, degenerada pelo jesuitismo, deveria ser substituída pela religião laica do nacionalismo, a nova «transcendência que deveria congregar os ânimo patrióticos», em que a ideia de Portugal era marcada pela fé cientifi cista no progresso50.

42 Afonso Augusto Costa (1871-1937), que viria a ser também mais tarde presidente da República, foi a face executora das medias antijesuíticas e anticatólicas da I República. Era doutorado em Direito e professor da Universidade de Coimbra. Este militante republicano tinha sido eleito deputado em 1900 pelo círculo do Porto. Fez a sua iniciação na Maçonaria em 1905, na Loja O Futuro, onde adoptou o nome simbólico de Platão, percorrendo todos os graus da hierarquia maçónica. Este professor também tinha sido, por inerência da sua militância maçónica e republicana, um propagandista antijesuítico. Entre os seus trabalhos publicados contra a Igreja e o jesuitismo destaca-se o seguinte: Afonso Costa, A egreja e a questão social: analyse da encyclica pontifi cia de ëConditione opifi ciumí, de 15 de Maio de 1891, Coimbra, 1895. 43 João Medina, Oh! A República, Lisboa, 1991, p. 312. 44 Edmundo Gorjão (coord.), Decretos e leis sobre Jesuítas e Congregações Religiosas, Lisboa, 1910, p. 7. 45 Ibidem, p. 8. 46 Cf. Ibidem.

47 ìPrimeira Constituição da República Portuguesaî, in As constituições portuguesas de 1822 ao texto da actual Constituição, 2ª ed., Lisboa, 1984, Artº. 3ª, nº 12 . Veja-se os estudos publicados por Nuno Severiano Teixeira; António da Costa Pinto (ed.), A Primeira República Portuguesa: Entre o Liberalismo e o Autoritarismo, Lisboa, 2000. 48 Cf. Paulo F. de Oliveira Fontes, ìDa reacção à política laicizadora da I República ao projecto de reconquista cristã da sociedadeî, in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História religiosa, op. cit., Vol. III, p. 136 e ss. A promulgação desta Lei provocou uma forte reacção dos Bispos Portugueses através de um protexto formal e de uma pastoral colectiva, que depois foi corroborado pelo próprio Papa Pio X e pela sua Encíclica Jandudum in Lusitania de 24 de Maio de 1911. Cf. Manuel de Oliveira e Castro, A pastoral colectiva do episcopado português ao clero e fi éis de Portugal e o beneplácito do Estado, Coimbra, 1911. A imprensa republicana logo classifi cou esta reacção da hierarquia católica de «intransigente» e o texto papal de «documento jesuítico». O jornal O Século fez a pergunta retórica de quanto teriam pago os Jesuítas ao Vaticano para publicar aquela encíclica pontifícia anti-republicana, aliás em sintonia com a imprensa internacional pró-republicana, como foi o caso do jornal Le Figaro que também criticou o documento papal. Referido por F. A. da Cruz Correia, O método missionário dos Jesuítas em Moçambique, Braga, 1992, p. 329. 49 A ìLei de separação das Igrejas do Estadoî, que só foi promulgada a 20 de Abril de 1911 constituiu uma espécie de corolário de uma série de outras medidas laicizadoras. Cf. Carlos Oliveira, Lei de Separação do Estado das Igrejas anotada, Pref. Afonso Costa, Porto, 1914. Várias medidas laicizadoras tinham-se vindo, com efeito, a suceder logo após a implantação da República, entre as quais a proibição do juramento religioso a 18 de Outubro de 1910; a interdição do ensino de doutrina religiosa nas escolas a 22 de Outubro; a extinção da Faculdade de Teologia de Coimbra a 23 de Outubro; a proibição da participação das Forças Armadas em actos religiosos a 28 de Novembro; a instituição do casamento civil com carácter obrigatório a 25 de Dezembro; a proibição do uso de hábitos talares na via pública a 31 de Dezembro; e o Registo Civil torna-se obrigatório a 18 de Fevereiro de 1911.

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A lei de separação do Estado das Igrejas e todas as medidas laicizadoras da sociedade transportavam em si, no quadro do ideário republicano, muito mais do que uma mera distinção funcional dos dois poderes ou da distinção da sociedade religiosa em relação à sociedade civil. Representava o início de todo um programa de afi rmação do Estado e de uma nova cultura que deveria substituir-se progressivamente à infl uência da religião na sociedade, embora a sua tentativa de concretização nunca tenha tido o êxito esperado: «Laicizar o conhecimento, a natureza, a sociedade e a vida, tornar a escola gratuita e laica, dessacralizar o padre, civilizar os ritos de passagem, constituíram, assim, momentos de um processo descristianizador totalizante, cujo ponto nodal irá, centrar-se, porém, nas relações jurídico-políticas entre a Igreja e o Estado, isto é, na dimensão institucional do projecto laicizador»51. Embora se tivesse teorizado e tentado regulamentar a valorização da cultura patriótica, ou seja, todas as actividades, a produção artística e intelectual, toda a obra produzida pelos cidadãos tendo como referência a nação e o seu progresso, era o sentimento que deveria substituir e preencher o vazio do ëprimitivoí sentimento religioso52. Para levar a efeito tal ideário tão radicalmente transformador implicaria, como de facto se projectou, a supressão de todas as instituições de ensino a cargo da Igreja, inclusive os seminários. Só assim a República poderia libertar a infância e a juventude da matriz obscurantista veiculada pela instrução. Os republicanos transportavam consigo a convicção profunda de que a educação era um

poder crucial para a transformação da mentalidade, uma arma com a qual se jogava o futuro, o êxito do seu projecto político e cultural. Neste sentido, analisa António Nóvoa, destacando que a educação era para a República uma questão estrutural: «O interesse republicano pela coisa educativa não se funda numa preocupação essencialmente pedagógica, mas antes na convicção de que a ëverdadeiraí república só seria possível através de uma outra educação, pois as instituições revolucionárias não podem constituir-se a partir de um sistema escolar do passado»53. A educação juntamente com o incremento de cultura nacionalista e civilista deveria levar à assunção emancipada e plena do homo laicus, do cidadão devotado ao serviço da República, por oposição ao homo jesuiticus. A questão religiosa, em que emerge com especial ênfase a questão jesuítica a ela intimamente associada e nela empolada, sobressaiu de tal modo no processo revolucionário do estabelecimento da República em 1910 e nos anos subsequentes, que mais parecia que o novo regime tinha sido proclamado contra a Igreja e contra os Jesuítas do que contra a monarquia. Como comenta Braga da Cruz:

«A República, matricialmente maçónica e jacobina, desencadeou, logo após a sua implantação, uma vasta campanha anti-religiosa. O enfeudamento prático de signifi cativos sectores da hierarquia católica e das ordens religiosas ao regime monárquico e às forças conservadoras, nomeadamente ao partido nacionalista, favoreceu não só junto dos dirigentes republicanos, que o agitaram e sobretudo junto das massas populares dos centros urbanos, a identifi cação da religião com a ideologia monárquica»54.

50 Cf. Rui Ramos, A segunda fundação (1890-1926), José Mattoso (dir.), História de Portugal, op. cit., Vol. 6, pp. 496-499. Recorde-se que o Partido Republicano congregava em si uma constelação ideológico-política explosiva, a qual tentava unir sectores moderados e democráticos com sectores de feição jacobina e autoritária. Aqui juntaram-se muitos dirigentes e activistas das organizações secretas, ideólogos do livre-pensamento, como também elementos ligados à carbonária. 51 Fernando Catroga, ìO laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1991)î, in Análise Social, Vol. 100, 1988, pp. 211-273. 52 Cumprindo um dos aspectos do ideário laicista que era a substituição de todos os elementos de natureza religiosa que estruturavam a vida do homem em sociedade, em especial a ritualização do tempo, o governo republicano tentou implementar a substituição do calendário religioso por um calendário laico que valorizasse a comemoração dos valores, dos acontecimentos e dos heróis do novo regime. Para esse fi m, por exemplo, o dia 1 de Janeiro foi consagrado à Fraternidade Universal; o dia 21 de Janeiro aos mártires da República; o dia 5 de Outubro aos Percursores e Heróis da República; o dia 1 de Dezembro à autonomia da Pátria Portuguesa; 25 de Dezembro à Família... Sobre as estratégias de afi rmação do nacionalismo e da cultura nacionalista ver Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit., p. 353 e ss.; e Ernst Gellner, Culture, identity and politics, Cambridge, 1987.

53 António Nóvoa, História da Educação, Lisboa, 1994, p. 187. Mas rapidamente este ideário revolucionário republicano viu-se confrontado com na sua prática política com o desengano das realidades e com as conveniências e transigências que estas exigiam para salvaguardar minimamente a estabilidade nacional e a paz social. A breve trecho o governo concluiu que o país não tinha condições de dispensar totalmente as instituições religiosas sem excepção. E teve que limitar este projecto político de depuração católica. Desde logo, não arriscou aplicar a legislação anticongreganista nos territórios ultramarinos portugueses, da forma radical como tinha feito na metrópole, por considerar que isso colidiria com os interesses coloniais portugueses. Por isso, não mandou expulsar dos campos de missão portugueses os missionários nacionais e, mais do que isso, acabou por desenvolver uma política de feição regalista ao tentar nacionalizar o Padroado Português do Oriente. 54 Manuel Braga da Cruz, As origens, op. cit., p. 242.

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E tudo isto englobado num só conceito simplifi cativo que pretendia encerrar todo um passado, todo um modelo de sociedade e de homem, cuja página se queria virar: a página do Portugal jesuítico. O jesuitismo era a exacerbação exponencial do despotismo eclesial, concitando em si o ridículo, o odioso, o execrável: «o jesuitismo signifi cativa a anti-república»55. O jesuitismo era nome da ameaça mais imaginada e imaginária que real, a face do inimigo que a República precisou ou que continuava a precisar para melhor mobilizar as massas populares e os diferentes sectores ideológicos laicistas em favor da sua causa. Como acentua Rui Ramos, «o antijesuitismo era uma das poucas causas intelectuais e também populares»56. António Sérgio, historiador e ensaista que viveu com equidistância crítica esta época republicana, comentando, em carta a Raúl Proença, um discurso proferido por Afonso Costa em 1913, então chefe do governo, intitulado ìSocialismo e Catolicismoî57, faz uma análise bem sagaz da continuidade deste frequente recurso explicativo e redutor ao mito jesuíta pelos republicanos: «Leio nos periódicos coisas pardas: conferência do Afonso Costa sobre a greve, sem que se saiba o que ele diz ñ e sobre o catolicismo, o que se me afi gura manomania inútil e fi ctícia oportunidade. Enfi m, o jesuíta foi um mal para o país, mas bem para os nossos políticos e pseudo-sociólogos: fornece diagnóstico fácil e eloquente para todos os males da sociedade. E viva o simplismo!»58. O sentimento anticlerical era o elemento por excelência que unia os líderes e as massas populares, sendo, portanto, o elemento de coesão que tecia uma sintonia ideológica e de interesses mais emocional do que racional. Donde, esta propaganda e o mito que ela produziu da conspiração jesuítica, não tivessem sido uma «mera excrescência da acção do partido» republicano, mas sim uma das suas bases estruturantes e um dos seus motores mais mobilizador59.

Instituída a República e «ofi cializada» a luta contra o jesuitismo, assistiu-se mais uma vez à concretização extensiva do poder de efi cácia mobilizadora do mito de complot jesuítico doutrinado às massas populares durante vários anos de inculcação ideológica. O país foi varrido de Norte a Sul por uma «onda popular»60 de jacobinismo sem precedentes. Diversas casas das congregações religiosas foram fustigadas por diversos desacatos provocados por multidões enfurecidas e grupos desordeiros. Foram alvos preferenciais as instituições e as pessoas dos Padres da Companhia contra quem se procurou descarregar a fobia antijesuítica, as taças de ódio fabricados e acumulados pelas campanhas contra o jesuitismo, criando-se um clima de verdadeira caça ao jesuíta e ao frade. Ao mesmo tempo invadiram-se os imaginários antros secretos do jesuitismo, os seus colégios, residências, obras sócio-caritativas, para tentar confi rmar os vestígios da sua criminalidade, as formidáveis riquezas e tesouros escondidos e os subterrâneos das suas conspirações belicistas61, onde guardariam avultado armamento para subjugarem o país pela guerra62. Deu-se aso, assim, a um verdadeiro processo de exorcização em que o novo poder se aliou à doutrinada

55 Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit., p. 353. 56 Ibidem, p. 354.57 Cf. Afonso Costa, ìSocialismo e catolicismoî, in O Mundo, nº 4449, 27 de Janeiro de 1913, p. 1-2. 58 António Sérgio, Correspondência para Raúl Proença, Introd. de José Carlos González e estudo de Fernando Pideira Santos, Lisboa, 1987, carta nº 14, pp. 46-47. António Sérgio considerava-se livre-pensador, mas defendia um livre-pensamento tolerante contra a dimensão intransigente que o livre-pensamento tinha assumido contra Igreja e a Religião. Sérgio entendia que o livre-pensamento devia obrigar a Igreja a purifi car-se para cumprir uma importante missão moral na sociedade, e não atacá-la em vista da sua destruição. Cf. António Reis, Raúl Proença. Biografi a de um intelectual político. Vol. 2, Lisboa, 2000, p. 815.

59 O historiador Rui Ramos acrescenta pertinentemente, chamando a atenção para a importância nuclear da continuidade desta propaganda em Portugal sob a República: «A propaganda anticlerical não podia ser tratada como um subproduto, mais ou menos secundário, do republicanismo. Era, de facto, o cerne e a razão do movimento republicano de 1910. A história do movimento republicano tem sido viciada pela insistência dos historiadores em verem-no como uma mera tradução política de um preexistente movimento social, o que os tem levado a desprezar a sua propaganda como uma espuma mais ou menos irrelevante». Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit. 60 Cf. Vítor Neto, op. cit., p. 357. 61 No imaginário popular antijesuítico circulava a ideia fabulosa da existência de canais subterrâneos que ligavam as casas dos Jesuítas directamente ao palácio real, por onde tinha acesso directo às cúpulas do poder monárquico que alegadamente era dirigido pelas suas manobras conspiracionistas. 62 O Ministério da Justiça encomendou também um inquérito à realidade da vida regular em Portugal, em particular às obras dos Jesuítas. Aqui há a destacar as conclusões de uma sindicância apresentadas, em forma de relatório, ao ministro Afonso Costa pelo Dr. José Ramos Preto. Neste relatório, pouco mais se faz em termos de avaliação do que reproduzir com ênfase as invectivas antijesuíticas contidas nos libelos da propaganda republicana. Denuncia-se a exagerada acumulação de riqueza pelos Jesuítas nos seus colégios a pretexto do serviço da educação, a exploração das famílias através de propinas elevadas e de outras formas de captação de riquezas, etc. Portanto, trata-se, no fundo, de mais um libelo antijesuítico republicano para caucionar as medidas tomadas contra a Companhia de Jesus pelo novo regime. Cf. José Ramos Preto, Relatório sobre o extinto Colégio de São Fiel, op. cit. Este texto foi refutado ponto por ponto pelo jesuíta Cândido Mendes de Azevedo, O Colégio de S. Fiel. Resposta ao relatório de advogado Sr. José Ramos Preto, Madrid, 1911; e pelo seu confrade Luís Gonzaga Cabral, Os Jesuítas e a Contra-Revolução, Maestrich, 1911.

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vontade popular agora de mãos livres para operar o que anos e anos de campanhas antijesuíticas tinham sugerido. Revelou-se aqui o antijesuitismo popular mais violento na sua máxima expressão63. Ganhou especial destaque, como alvo preferencial da devassa revolucionária, o colégio de Campolide pertencente aos Jesuítas na capital lisboeta. Foi ocupado militarmente pelas tropas republicanas, os Jesuítas aí residentes foram presos e conduzidos sob custódia pelo exército em desfi le público para os calabouços do Estado, com grande concurso de população que proferia palavras de ordem contra estes religiosos. Ao mesmo tempo, os subterrâneos do colégio foram vasculhados a pente fi no para grande frustração dos militares que esperavam encontrar um grande arsenal bélico, como, de resto, estava bem inculcado no imaginário jesuítico64. O assanhamento das massas populares por todo o país (em especial nos centros urbanos de Lisboa, Setúbal, Porto, Coimbra e Covilhã) é bem revelador do efeito e do grau de assimilação e da paixão provocada por décadas de propaganda antijesuítica e do seu poder mobilizador65. Uma larga maioria de religiosos procurou dispersar-se e esconder-se da população em fúria. Uma boa parte evadiu-se para o estrangeiro, transpondo a fronteira espanhola. Os que não conseguiram escapar-se foram presos nas prisões de Caxias, do Limoeiro, nas cadeias do governo civil de Lisboa e no Aljube. Estes aprisionamentos foram explicados pelo governo como medidas de prevenção para salvaguardar os padres da ira popular66.

A «raça dos jesuítas» estudada cientifi camente em laboratório republicano

Na prisão de Caxias os Jesuítas foram submetidos a exames frenológicos. Através destes exames antropométricos tentou-se verifi car e testar, em jesuítas de carne e osso, as teorias escritas por Miguel Bombarda, que defi niam a condição de jesuíta como uma doença mental67. O psiquiatra Bombarda, tinha teorizado que determinadas confi gurações cranianas e determinados perfi s antropométricos eram mais predispostos a desenvolver este género de enfermidade. O tratamento dado aos jesuítas presidiários foi amplamente fotografado e publicado nos jornais e revistas, nomeadamente na Ilustração Portuguesa que publicou cenas da prisão dos Padres da Companhia, o encaminhamento destes sob escolta para os ergástulos e os ditos testes frenológicos68. Tudo isto acompanhado com textos que explicavam e apoiavam estas medidas republicanas, glosando os conteúdos das obras mais representativas da campanha antijesuítica levada a cabo durante a monarquia constitucional. Da forma como foi pensada pelos intelectuais eivados pelas suas teorias e convicções do cientismo e do positivismo, seguidores da escola bombardiana, concordamos até certo ponto com Rui Ramos, considerando os limites da diferente proporcionalidade, que o «antijesuitismo» funcionou como o equivalente português do anti-semitismo69. Anti-semitismo que se tinha tornado desde o fi m do século XIX um dos principais temas da política de massas na Áustria e na Alemanha, que

63 Para uma boa análise das expressões populares de anticlericalismo ver Georges Minois, ������������� ��, Lisboa, Teorema, 2004. 64 A desilusão dos soldados republicanos que procuraram sofregamente as riquezas dos Jesuítas como despojos de guerra com que esperavam enriquecer foi um dos aspectos mais frustrantes desta caça ao tesouro. Tanto mais que a realidade fi nanceira da Companhia de Jesus em Portugal na altura desta terceira expulsão não era muito famosa. A Província Portuguesa da Companhia de Jesus debatia-se de facto com problemas económicos, nomeadamente com difi culdade de pagar dívidas aos seus credores, em virtude do grande investimento feito pela Ordem na ampliação e criação de novas obras nos últimos anos. 65 Mas curiosamente nestes motins populares não ocorreram assassinatos de padres da Companhia de Jesus. Apenas foram mortos, por engano, dois padres lazaristas, confundidos com jesuítas: o Provincial da Congregação da Missão, o Pe. Alfredo Fargues, e notável engenheiro silvicultor e antigo ministro, o Pe. Bernardino Barros Gomes da mesma Congregação, os quais residiam na casa de Arroios na cidade de Lisboa. Cf. A. Ornelas, Breve História da Província Portuguesa da Congregação da Missão, (Texto dactilografado), Lisboa. s.d., p. 77 e ss. 66 Também o neo-regime republicano ordenou o enceramento de 150 padres seculares que desobedeceram às determinações legais que remetiam a prática do catolicismo para o foro privado e para o interior dos templos, continuando a usar símbolos de identifi cação religiosa e a realizar publicamente actos e rituais do culto católico tradicional. Esta política fortemente anticatólica do novo regime conduziu ao corte de relações entre o Estado Português e a Santa Sé. 67 O método de diagnóstico de Bombarda e de outros criminólogos portugueses desta época estava infl uenciado pelas propostas do médico e criminologista francês Alphonse Bertillon (1853-1914), Chefe dos Serviços de Identifi cação da Perfeitura de Polícia, que tinha criado um processo de identifi cação antropométrica que fi cou conhecido por bertilhonagem. 68 Estes exames frenológicos foram realizados no Centro Antropométrico de Lisboa, sediado na prisão de Caxias. Este centro tinha sido criado pelo Estado Português em 1898 e tinha entrado em funcionamento em 1901, depois da publicação do Regulamento das Cadeias a 21 de Setembro pelo então Ministro da Justiça e dos Cultos, Campos Henriques. Este género de exames, às luz das teorias psiquiátricas em voga no tempo, eram feitos habitualmente aos presos para testar a predisposição para determinados géneros de infracções e para estabelecer tipologias criminológicas. 69 Cf. Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit.

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conduziu à segregação, perseguição e depois à eliminação dos judeus no período do regime nazi. Todavia, a República acabou por não optar por aplicar as propostas de tratamento a dar aos jesuítas defendidas apaixonadamente por Miguel Bombarda, apesar da situação de radicalismo desenfreado que se tinha disseminado entre os apoiantes do regime. O governo provisório, depois de proceder à prisão preventiva para isolar estes religiosos durante algum tempo da comunicação com o exterior e ter procedido à realização dos ditos exames científi cos e feito diversos interrogatórios, alguns deles efectuados pelo próprio ministro Afonso Costa, acabou por optar pela velha solução pura e simples de expulsão dos Jesuítas70, os quais se foram juntar aos que tinham fugido para o estrangeiro. Na sua diáspora pela Europa e a América, reorganizaram-se rapidamente pela liderança do seu activo provincial que ao tempo era o Pe. Luís Gonzaga Cabral71. Deste modo, os membros da Província Portuguesa da Companhia de Jesus dispersaram-se pela Espanha, Gibraltar, Holanda, Bélgica e Brasil, continuando a existir a dita província canónica, que nunca se dissolveu, e a funcionar e a formar novos membros em situação de exílio, situação que durou sensivelmente até ao fi m do regime republicano72.

Reprodução do modus procedendi pombalino

A República procurou exorcizar o mito de complot jesuítico que tinha recriado pela matriz tradicional de que

Pombal foi o criador. O processo e o método foram os do despotismo iluminado. E aqui o paradoxo não deixa de ser evidente. O regime republicano, proclamador da democracia, adoptou sem escrúpulos os métodos mais emblemáticos do ultra-absolutismo. Transigindo em favor da velha convicção absolutista de que só com fortes medidas repressivas se podiam resolver os piores males da sociedade, minando assim a sua fé ideológica de que a sociedade estava destinada a transfi gurar-se, superando o seu estádio antigo, pela liberdade e pela educação. Aliás, a mitifi cação luminar da fi gura do Marquês de Pombal feita pelos republicanos, na sequência do que vinha acontecendo desde o liberalismo, só se compreende de forma cabal à luz do mito jesuíta. O governo republicano teve a preocupação de divulgar em edição bilingue (português e francês) um catálogo propagandístico ofi cial da expulsão dos Jesuítas, dando conta, em forma preambular, da história e das artes de infi ltração dos Jesuítas em Portugal, de modo a justifi car as medidas tomadas contra eles, as quais são devidamente apresentadas em anexo. O referido catálogo apresenta a decisão republicana inserida na tradição política antijesuítica que periodicamente expatriou estes religiosos de Portugal e de outros países, quando os governantes tomavam consciência do perigo intolerável que eles representam para qualquer nação:

«E qual o motivo deste movimento constante, quase isócrono, da história jesuítica? É que eles entraram modesta e humildemente, progridem lenta e capciosamente, mas,

70 Mas não se verifi cou, como tinha acontecido no tempo de Pombal, casos de maus tratos nem mortes de Jesuítas, que, como eles próprios reconhecem nos seus textos apologéticos entretanto divulgados internacionalmente, até recolheram algumas simpatias da parte de alguns soldados e guardas que tinham por missão assegurar a sua custódia nas prisões. O que lamentaram foi antes o vandalismo dos grupos desordeiros que invadiram as suas casas, roubando e estragando bibliotecas, instrumentos científi cos e pedagógicos, assim como colecções científi cas reunidas pelos seus investigadores durante muitos anos de trabalho. Sobre o processo de expulsão dos Jesuítas em Portugal e nas colónias ver documentação no APPCJ, História antiga, pasta 312, 1-17. 71 A Província Portuguesa dos Jesuítas contava então com o número signifi cativo de 360 membros, sendo 147 deles sacerdotes, 112 irmãos e 101 estudantes. À medida que o ímpeto revolucionário foi abrandando e o regime republicano foi serenando a sua intensa propaganda anticlerical muito intensa nos primeiros anos do novo regime, os Jesuítas foram aumentando os seus contactos com Portugal. Isto, de forma especial depois do restabelecimento das relações diplomáticas de Portugal com a Santa Sé em 1919. No fi m da I República em 1926, estes religiosos já tinham conseguido abrir residências e casas de formação em cidades próximas da fronteira portuguesa (Tuy, Ciudad Rodrigo, Salamanca), chegando até a abrir discretamente algumas casas em solo português antes do término do regime republicano: uma na Póvoa do Varzim em 1923, e duas em Braga e em Lisboa, em 1925. Também houve a preocupação de aumentar o número de jesuítas na sua missão de Goa, utilizando para tal residências em território colonial sob administração inglesa. Os Jesuítas revelaram, neste período, uma extraordinária capacidade de reorganização e de recomposição das suas estruturas formativas e pastorais, pois em situação de exílio continuaram a desenvolver actividade missionária, científi ca, educativa e editorial. Em torno da fronteira portuguesa estabeleceram as suas «bases» estratégicas, esperando reentrar em Portugal quando as condições políticas fossem mais favoráveis. O que aconteceu a partir do golpe militar de 1926 que pôs fi m ao o regime que os tinha expulso. É interessante notar que do exílio da Província Portuguesa da Companhia de Jesus não resultou uma diminuição dos seus membros, antes favoreceu o seu crescimento, dado que em 1925 esta Província já contava com 375 religiosos, dos quais 179 eram sacerdotes, 84 eram irmãos e 117 ainda eram estudantes. António Matos Ferreira, ìJesuítasî, in António Barreto; Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal (suplemento), Vol. III, Lisboa, 1999, pp. 304-306. 72 Cf. P. Joseph H. Foulquier, s.j., Jesuítas no Norte. Segunda entrada da Companhia de Jesus (1911-1940), Baía, 1940, p. 5 e ss.; Paulo Sérgio de Graça, ìOs Jesuítas e a Primeira Repúblicaî, in História, Vol. 151, Abril, 1992, pp. 90-96.

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quando se julgam fortes e dominadores, tornam-se irritantes e déspotas, descobrem os enormes tentáculos com que insensivelmente se foram enroscando e acorrentando às forças do país, e então os povos despertam e o primeiro arranco é sempre o de desfazer o terrível polvo sugador do bem-estar doméstico e da felicidade social»73.

O editor republicano, que introduz este catálogo publicado pela Impressa Nacional pertencente ao Estado, reproduz a visão estilizada e perfeita do complot jesuítico, em que o avanço capcioso do mal jesuítico assemelhado à serpente que se enrosca é proporcional ao crescimento do repúdio e da irritação por parte da colectividade nacional, dando origem a um movimento cíclico de expurgação desse mesmo mal que se torna sempre insuportável. Tenta assim justifi car a expulsão republicana dos Jesuítas como o cumprimento lógico desse movimento cíclico que salienta ser próprio da história da Companhia de Jesus, uma ciclicidade que encerra uma alternância histórica marcada pelo clássico esquema triádico subjacente à fi losofi a decadentista da história: prosperidade/decadência/restauração. Mas a exorcização do jesuitismo não se fez só através de medidas políticas, de manifestações e de vandalismo populares. Tornou-se o tema fundamental da imprensa afecta

ao novo regime. Jornais de divulgação nacional como O Século, O Dia, O Mundo, O Primeiro de Janeiro, A República, e a multidão de periódicos locais ligados aos centros republicanos fi zeram do antijesuitismo e do anticlericalismo o assunto obrigatório das suas edições, quer para apoiar e justifi car as medidas governativas, quer para intensifi car a campanha de denegrição da imagem dos religiosos extintos e dos padres em geral74. Faziam-no pela divulgação de histórias, de casos, de cenas, com provas alegadamente encontradas nos conventos da criminalidade do jesuitismo e da imoralidade que grassava nas comunidades religiosas, ou ainda respondendo polemicamente a textos fi lojesuíticos dos jornais católicos, ou editados no estrangeiro contra os procedimentos republicanos em relação à Igreja. Houve um investimento signifi cativo para «catequizar» o povo, traduzindo de forma simples a doutrinação antijesuítica desenvolvida nos tratados eruditos, em que a fi guração maniqueísta do tempo negro do jesuitismo era instrumentalizado para dar o tom contraste da utopia luminosa da nova era assente da ideologia republicana, como ilustra esta passagem de um manual de cidadania: «Era este nosso Portugal, esta nossa Pátria comida aos bocados por criaturas que pensavam mais nos seus interesses do que em nós todos. Roubaram-nos primeiro aos poucos, depois aproveitando a ignorância do povo (...) e da indiferença de muitos, passaram a fazer reunir para as suas algibeiras o dinheiro que nós e nossos pais trabalhando, ganhávamos com tanto esforço»75. A propaganda ofi cial ou ofi cialmente promovida visava fazer inculcar no espírito colectivo a ideia falsa de que a

73 Catálogo dos Jesuítas portugueses no ano de 1910, conforme o original latino encontrado na casa de Noviciado do Barro, Edição bilingue, Lisboa, 1911, p. 1. Esta edição apresenta e explica, para conhecimento e esclarecimento público, os textos legais de expulsão dos Jesuítas datados de 8 de Outubro de 1910, e o segundo decreto com data de 31 de Dezembro do mesmo ano, que reafi rmava o conteúdo do primeiro decreto, confi rmando a decisão de confi scar os bens dos Jesuítas em favor do Estado, à excepção daqueles que, tendo sido apreendidos, se provassem que não eram destes religiosos, mas que pertencessem a cidadãos particulares, e terem sido indevidamente apropriados por aqueles Padres. O mesmo Catálogo traz na contra-capa a informação de que «o governo da República Portuguesa fará publicar os documentos encontrados nas casas dos Jesuítas que se julguem mais interessantes para a história destes em Portugal». Este documento surge, deste modo, como o primeiro desta projectada série de edições que tinham em vista fazer parte da estratégia propagandística republicana para aquilatar o esforço de combate ideológico à instituição constituída como inimiga principal do novo regime. Antes de ter sido publicado em edição autónoma e comentada, este catálogo tinha já sido publicada no ano anterior no órgão de imprensa do Governo. Cf. ìCatalogo da Provincia Portuguesa da Companhia de Jesusî, Diário do Governo de 26 de Dezembro de 1910. Naturalmente, como se depreende, a escolha dos textos e o respectivo enquadramento analítico deveriam estar ao serviço do escopo ideológico-propagandísitico que lhe subjaz: denegrir a imagem da Companhia de Jesus. Mas este projecto de editorial de publicação de uma larga faixa de documentação não se cumpriu na dimensão concebida, fi cando-se pelos trabalhos de Manuel Grainha, e pouco mais, que foram feitos no quadro deste programa.

74 Todos os jornais de feição ideológica republicana promovidos pelos centros republicanos de todo o país bradaram com júbilo aquando da instauração do novo regime político. Entre os vivas à República e o anúncio de uma nova era para Portugal em tom messiânico, a luz dos novos tempos contrasta com a tenebrosa sombra do passado, estando os Jesuítas e o seu fanatismo sempre presentes para melhor acentuar o contraste. A imagem destes religiosos reproduz-se negra, venenosa e colada à monarquia derrubada pelos revolucionários, através de um exército de jornais republicanos e maçónicos que se publicavam nos vários concelhos do país. V. g. O Barrosão, O Montalegrense, O Combate, Diário do Alentejo, A voz da Democracia. Ver a recensão destes periódicos que então se publicavam por Vasco Pulido Valente, O poder e o povo, op. cit., p. 254 e ss. 75 Cf. José Eduardo Moreira; João Ribeiro Gomes, Manuel patriótico do cidadão e do soldado, Lisboa, 1911, p. 7. Até nos aforismos e nas máximas se prolongava a «missionação antijesuítica», como faz o antijesuíta Alberto Bramão no seu Breviário, elegendo o jesuíta como o modelo da falsidade mais seráfi ca: «O mundo é tão falso que até a própria verdade nem sempre é verdadeira. O caso do jesuíta que, para desviar a procura de um criminoso, meteu as mãos nas amplas mangas do hábito, dizendo serafi camente ñ ëpor aqui não passouí ñ é uma verdade mentirosa. Como esta há muitas falsas verdades». D. Alberto Bramão, O meu Breviário. Máximas e refl exões, Coimbra, 1922, pp. 92-93.

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expulsão dos Jesuítas e a laicização da sociedade tinha trazido a pacifi cação à sociedade Portuguesa, a nova era da Pax Respublicana76.

Formidáveis virtualidades explicativas do mito O novo regime tinha consciência da importância da utilização deste bode expiatório para projectar nele as difi culdades que o país atravessava e até as desilusões da política do novo regime77. Tanto mais que estava tão longe a sua sonhada meta da pacifi cação social, quando a política radicalista tinha contribuído para criar mais fracturas do que consensos. Não obstante a erradicação do mal por via legislativa, restava a consciência decorrente da natureza do próprio mito jesuítico de que havia que exercer sempre uma vigilância permanente e profi lática, pois, como doutrinavam os mais obsessivos autores jesuitofóbicos, o jesuitismo tinha o poder de renascer das próprias cinzas. Assim, era fácil atribuir as intrigas e os atropelos da política republicana a esses resíduos reincidentes de jesuitismo. Donde a conveniência de continuar a alimentar esse tão útil mito de complot, que distraía a opinião pública e desviava a sua atenção para os reais e complexos problemas nacionais e da política. Quem conspirasse contra o governo ou desenvolve-se manobras suspeitas de oposição à nova ordem corria o risco de lhe ser atribuída a qualifi cação oprobriosa de ëjesuítaí78. Associado ao medo e à ameaça do regresso da velha ordem, o jesuíta era o monstro, o fantasma do passado capaz de voltar sempre, cujo imaginário de terror que o envolvia era passível de ser explorado para assustar não

só os contestatários, mas até as próprias crianças79. No quadro desta fantasmática jesuitofobia efervescente, não deixou de ser reproduzido em Portugal o eco da afi rmação feita em França por Jean Jaurés, à beira da morte, no mês de Julho de 1914, que acusava os Jesuítas de terem desencadeado a I Guerra Mundial. De facto, Jaurés imaginou-os por de trás do ultimato dado pela Áustria à Sérvia, um golpe sujo dos Jesuítas, que despoletou um confl ito à escala mundial80. Um jornal português reproduziu esta explicação da Grande Guerra pela visão complotística da causalidade jesuítica. Emanuel Gomes Júnior escreveu no jornal local de Anadia que a guerra franco-prussiana, que deu origem à I Guerra Mundial, teria sido a «consequência lógica do avanço jesuítico no espírito do Imperador e da alta nobreza alemã»81. Mas não só a imprensa foi usada para a inculcação desta imagem mítica dos Jesuítas com uma função justifi cativa e profi lática. Este esforço de doutrinação «contra a corja negra» desenvolvida pela «mãe imprensa», que atingiu na I República um dos momentos mais paroxísticos em toda a história do antijesuitismo em Portugal (em certo paralelo com o que aconteceu nas campanhas antijesuíticas ocorridas no consulado pombalino), foi também secundada pela produção de historiografi a, estudos académicos, de manuais de formação popular para a cidadania republicana, de manuais de ensino, de libelos, de romances, de tratados jurídicos...82 Neste esforço propagandístico e de generalização de uma cultura e uma mentalidade antijesuítica, também se enquadrou a preocupação de assinalar a comemoração periódica do acontecimento nacional da expulsão da Companhia de Jesus83.

76 Cf. Carlos de Melo, A paz em Portugal. A religião e a sciencia. A Igreja e os Jesuítas. Portugal e a lei da separação, Lisboa, 1912. 77 Para um estudo interessante sobre o papel do mito de complot para o caso francês, mas com interesse teórico para a hermenêutica do caso português ver Fréderic Monier, Le complot dans la république, stratégies du secret: de Boulanger à la Cagoule, Paris, 1998. 78 Disto mesmo é expressivo a obra publicada por Gomes de Carvalho, Na república as infl uencias dos inimigos de hontem, não podem continuar lezando os que pela redenpção da patria portugueza expuzeram a vida, sacrifi cando tudo e tendo sido cruelmente perseguidos por serem sinceramente democratas, 2 Vols., Lisboa, 1911. As receitas da venda desta edição eram destinadas a fi nanciar a Associação Benefi ciente do Grémio Marquês de Pombal. 79 Conta o diplomata Eduardo Brazão, como testemunha vivencial, que na sua infância corria por toda a Lisboa o boato antijesuítico de que os Jesuítas andavam a raptar crianças para fazer com elas óleo humano. Eduardo Brazão, ìPombal e os Jesuítasî, op. cit., p. 341. Aliás, este é um dos temas imagético recorrentes em vários mitos de complot, nomeadamente no complot semita e mais recentemente em Portugal fez também parte do imaginário popular anticomunista, portanto, também integrado no mito do complot comunista. 80 Cf. Jesuítas na hora da contestação, Lisboa, 1971, p. 18. 81 Emanuel Gomes Júnior, ìNo teatro da guerraî, in Bairrada Livre, nº 191, 29 de Agosto de 1914, p. 2. 82 Ver entre outras, as seguintes edições: Eurico de Seabra, O Estado e o Clero, Lisboa, 1910; Teófi lo Braga, A Egreja e a civilização moderna, Lisboa, 1910; J. Carlos Mota Júnior, A reacção em Portugal, Porto, 1911; José Diogo Pereira, A perversidade jesuítica, Aveiro, 1912; José Agostinho, A escola sem Deus, Porto, [1912]; Idem, O cristianismo e a Pátria, Porto, 1912; Basílio Teles, A questão religiosa, Porto, 1913; Eurico Seabra, A Igreja, as congregações e a República. A separação e as suas causas, 2 ª ed., Lisboa, 1914; Thomaz da Fonseca, Cartilha nova. Para o José Povinho lêr à noite, ao serão, Lisboa, 1911; Idem, Sermões da Montanha I. A Religião e o povo, Porto, 1912. Eduardo de Aguilar, De profundis, Porto, 1912; A. Andrei, Os Jesuítas, Lisboa, 1913; Dá Mesquita, Infâmia. O jesuíta, Porto, 1914; José Caldas, A corja negra! Tosquia de um Charlatão, Porto, 1914 ; Maria OíNeil, Fóra as Congregações!, Lisboa, 1915.

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Propaganda internacional republicana e contra-propaganda jesuítica

Embora com muito menos amplitude do que a campanha internacional orquestrada por Pombal contra os Jesuítas, também na sequência da expulsão republicana dos Jesuítas de Portugal, o governo promoveu a tradução de algumas obras desfavoráveis à Companhia de Jesus para justifi car aos olhos das outras nações a severidade do novo regime português para com a Ordem de Loyola. Tanto mais que teve também necessidade de contrabalançar, de algum modo, uma vasta campanha levada a cabo pelos Jesuítas pela Europa fora, através de opúsculos, artigos e livros, para denunciar a alegada injustiça e atentados decorrentes da execução das medidas antijesuíticas republicanas, assim como da falta de fundamento das queixas e invectivas propaladas pelas campanhas antijesuíticas contra a Companhia de Jesus84. Os Padres desta Ordem exploraram habilmente um grande trunfo propagandístico a seu favor que deu a este seu investimento apologético a capacidade até de reunir apoios para a sua causa em meios donde não seriam normalmente esperados85. Denunciaram com enorme ênfase, através das suas redes internacionais, o esbulho e o extravio feito pelos adeptos amotinados do novo regime, com protecção policial, das colecções científi cas e dos laboratórios e gabinetes de investigação que tinham montado nas suas instituições de ensino86. Foi essencialmente, de facto, com base no seu curriculum científi co e pedagógico apreciado e valorizado

por diversas instituições de investigação de renome a nível Europeu que os Jesuítas reivindicaram a revisão das medidas de expulsão, pedindo, em nome da ciência, aos organismos culturais e científi cos do tempo que pressionassem o governo português no sentido deste readmitir os religiosos expulsos, ou pelo menos para lhes devolver os seus bens científi cos que lhes foram confi scados. De modo a contraminar a imagem de acientifi cidade que a propaganda antijesuítica fazia passar dos professores e intelectuais jesuítas, estes exaltaram, nesta campanha apologética em favor da sua causa, o contributo que eles tinham dado para o progresso da ciência, qualifi cando de crime de lesa-ciência o esbulho do produto das suas investigações87. A tradução mais signifi cativa feita pela política de propaganda antijesuítica republicana foi a edição de um

83 Ver por exemplo o periódico editado especialmente para comemorar o aniversário desta expulsão: Jesuítas: destinado a comemorar o primeiro aniversário da expulsão dos Jesuítas, do Club de Recreio, Número único, Caldas da Rainha, 1924. 84 Entre as peças mais importantes da contra-ofensiva propagandística dos Jesuítas são de destacar as seguintes: Luís Gonzaga de Azevedo, Proscritos. Revolução de Portugal de 1910, 2 Vols., Valladolid, 1911. O mesmo autor publicou em 1913 em Bruxelas os já citados 2 volumes do Jesuíta. Fases de uma lenda. Para refutar principalmente o libelo citado de José Caldas sobre a infl uência dos Jesuítas na sociedade portuguesa, Francisco Rodrigues escreve Jesuitophobia. Resposta serena a uma diatribe, Porto, 1917, a quem aponta diversos erros históricos, para não falar dos de perspectiva, a este sócio-correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa. Isto sem referir os diversos artigos que os Jesuítas portugueses com a colaboração dos seus confrades internacionais publicaram em várias revistas da sua Ordem para defender a sua causa, nomeadamente na Civiltà Cattolica e na Razón y Fé. 85E de facto conseguiram vários apoios para a sua causa da parte de várias instituições culturais e científi cas. Cf. José Eduardo Franco, Brotar Educação: História da Brotéria e do seu pensamento pedagógico, Lisboa, Roma Editora, 1999.

86 O texto mais emotivo, de maior carga enfática e que foi mais divulgado internacionalmente foi logo escrito pelo então Provincial dos Jesuítas para protestar junto das instituições científi cas e culturais europeias contra a «barbárie» praticada pelos republicanos portugueses contra as casas de ensino e de investigação científi ca da Província Portuguesa da Companhia de Jesus: Luiz Gonzaga Cabral, Ao meu paiz. Protesto justifi cativo a propósito da expulsão dos seus religiosos, Madrid, 1910. Este opúsculo ardente teve uma divulgação impressionante, como o demonstram as diversas traduções editadas em várias línguas que restam arquivadas na Biblioteca do Instituto Histórico da Companhia de Jesus em Roma: Espanhol, Francês, Italiano, Inglês, Árabe, Alemão, Holandês, Húngaro, Polaco, Russo e Latim. Isto demonstra que diferentemente do que aconteceu no tempo de Pombal, não restam dúvidas que na sequência da terceira expulsão da Companhia, os Jesuítas demonstraram muito mais capacidade de divulgação internacional de uma campanha em sua defesa, utilizando as redes da sua ordem em termos europeus, do que os republicanos em afi rmar as suas razões como se pode ver pela quantifi cação do esforço de tradução e da amplitude de divulgação de um lado e de outro. Cf. José Eduardo Franco, Brotar educação, op. cit., p. p. 43 e ss. 87 É signifi cativo deste tipo de argumentação apologética, além dos já referidos, um opúsculo redigido por um dos directores da revista Brotéria: Cândido Mendes, Brotéria no exílio, Lisboa, 1913. Em apoio dos Jesuítas expulsos de Portugal e da atitude do governo vieram também a públicos diversas personalidades que escreveram artigos, opúsculos e livros para denunciar, protestar e lamentar o tratamento dado aos Jesuítas. Podemos destacar aqui o advogado brasileiro Rodrigo Costa, natural do Amazonas, lente catedrático de Lógica no Ginásio Amazonense e do Instituto da Ordem de Advogados brasileiros. Protestou, em particular, contra o governo do Brasil pela sua resistência em aceitar inicialmente os Padres da Companhia expulsos de Portugal que requeriam direito de exílio neste país. Cf. Rodrigo Costa, Brado de Justiça, Manáos, 1912. Neste livro defensor dos Jesuítas, também são reunidos outros textos que fl anqueiam os inacianos portugueses, a saber, a Mensagem do episcopado brasileiro, o Protesto do Centro Católico do Brasil, a Denúncia da Congregação do Ginásio Amazonense e a Representação dos Estudantes Católicos da Universidade de Coimbra. Note-se que, curiosamente, os positivistas brasileiros se demarcaram das atitudes persecutórias dos republicanos portugueses. Cf. R. Teixeira Mendes, A República em Portugal e a atitude da Igreja Positivista do Brasil, Rio de Janeiro, 1911, p. 2 e ss.

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documento inédito dos Jesuítas relativo à história do seu colégio da capital portuguesa, devidamente anotado e enquadrado antijesuiticamente por Manuel Borges Grainha, a que deu o título de História do Colégio de Campolide88. A obra foi editada na língua diplomática internacional do tempo, isto é, em francês. Escrita expressamente para ser divulgada também nesta língua entre 1914 e 1915, foi editada também por este mesmo autor na Imprensa Nacional, uma outra obra de carácter historiográfi co a fi m de fundamentar e oferecer um fundamento erudito e razões de natureza histórica para a lei republicana de proibição da presença da Companhia de Jesus em Portugal: Les Jésuites en Portugal de 1540 à 1834: contribuition à líétude et à líinterpretation des lois de 8 de Octobre et 31 de Décembre de 1910. Avulta aqui o esforço, à semelhança do que tinha feito Carvalho e Melo dois séculos antes através dos seus catecismos anti-inacianos89, de explicar as medidas políticas antijesuíticas como corolário do percurso histórico desta ordem. O Marquês de Pombal e Joaquim António de Aguiar são apresentados como modelos e pioneiros iluminados deste combate que a República não fez mais do que seguir o exemplo, sinceramente convicta de que prestava um alto serviço ao triunfo do homem livre90. Manuel Borges Grainha, historiador e jornalista, tornou-se uma espécie de intelectual de serviço do regime emergente para justifi car aos olhos da Europa as tão drásticas medidas tomadas contra uma Província dos Padres da Companhia que tinha granjeado prestígio científi co até a nível internacional,

especialmente pela via da investigação, do ensino e da divulgação científi ca na área das ciências naturais91.

Desilusão da República e enfraquecimento do antijesuitismo

Embora diminuindo de intensidade com o passar do tempo e do aliviar do impacto revolucionário, a ideografi a antijesuítica ofi cializada pelo regime preponderou ao longo de toda a primeira República. Esta imagiologia foi sendo alimentada pelos intelectuais mais radicais do laicismo republicano e seus sequazes na imprensa, nos livros, nos discursos, nos comícios, nas manifestações públicas, nas comemorações, nomeadamente de fi guras ligadas ao imaginário antijesuítico como o Marquês de Pombal que se tornou um dos heróis mais ovacionados da República, ou a pretexto de certos acontecimentos que faziam recordar a reincidência da actuação críptica do mitifi cado dedo jesuítico, que queria, de forma costumaz, continuar a infl uenciar a deriva presente da história nacional. Os recuos do regime republicano em relação à execução do seu ideário laicista radical, a capacidade de recomposição e de refortalecimento revelada pelo catolicismo, o ìmilagreî de Fátima e o seu efeito religioso mobilizador92, até às próprias dissenções no seio da Maçonaria93, não deixaram de ser vistas, pelos propagandístas antijesuíticos, como sendo devido à reincidente conspiração de algum jesuíta, ou simplesmente devido à persistência ínvia do espírito jesuíta que ainda resistia em certos cidadãos94. O que é bem revelador da

88 Cf. Manuel Borges Grainha, História do Colégio de Campolide da Companhia de Jesus escrita em Latim pelos Padres do mesmo colégio onde foi encontrado o manuscrito, Coimbra, 1913. A edição em língua francesa foi feita na capital portuguesa no ano seguinte: Idem, Histoire du Collége de Campolide et de la Résidence des Jésuites à Lisbonne, Lisbonne, 1914. 89 O regime republicano desejou profundamente que o seu exemplo de expulsão dos Jesuítas fosse seguido, à semelhante do que aconteceu no tempo de Pombal, pelos outras países europeus, como expressa um jornal republicano na sequência da aplicação desta medida: «Seguiu para a Holanda a última leva de Jesuítas. Foi uma das boas obras do governo da República o livrar-nos de tão maldita praga. Que outras nações lhe façam em breve o mesmo é o que lhes apetecemos». Solidariedade, 6/11/190. Mas este voto que implicava agora muito mais do que a expulsão de uma Ordem, não teve o governo republicano o gozou de alcançar tão completamente como Pombal.90 Idem, Les Jésuites en Portugal de 1540 à 1834: contribuition à líétude et à líinterpretation des lois de 8 de Octobre et 31 de Décembre de 1910, Lisbonne, 1914-1915. Nesta obra, Grainha não faz mais do repescar o arsenal erudito e polémico que já tinha consignado nas suas obras antijesuíticas para desmerecer o papel da Companhia de Jesus em Portugal, reactualizando as suas invectivas e a inerente avaliação negativa da acção dos Jesuítas para efeitos de divulgação internacional.

91 Este antijesuíta ainda publicou outras obras historiográfi cas e propagandísticas de teor antijesuítico bem marcado que se tornaram uma referência para o estudo da Maçonaria em termos da sua história: Manuel Borges Grainha, História da Maçonaria em Portugal, op. cit.; Idem, A acção da Maçonaria Portuguesa, Lisboa, 1913. Nestas obra o autor sublinha o serviço prestado pelas lojas maçónicas no combate ao jesuitismo e à ascendência da Igreja na sociedade portuguesa, assim como o contributo para a afi rmação dos ideais de liberdade e de democracia. E que continuou a prestar, intervindo para combater o temido regresso da reacção: v.g. Mensagem do Grémio Lusitano aos poderes constituidos. A reacção clerical e o poder civil, s.l., 1913. 92 A propaganda anti-religiosa republicana acusou facilmente os Jesuítas de estarem por de trás da «invenção» das aparições da Virgem Maria em Fátima, como estratégia para recuperarem o seu domínio sobre as consciências dos cidadãos portugueses e, assim, melhor prepararem o seu regresso. Cf. António Teixeira Fernandes, O confronto de ideologias na segunda década do século XX. À volta de Fátima, Porto, 1999, p. 166 e ss.

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proteiformidade explicativa e das possibilidades de justifi cação das causalidades dos males sociais, grupais, políticos e institucionais à luz do mito de complot jesuítico, como recurso ideológico que nem a exorcização desencadeada pelo decreto de expulsão fez passar à história. Como os males da nação não foram dirimidos, como tinha prometido o discurso republicano, restava recorrer à velha lógica do mito da Companhia de Jesus e procurar a explicação na sua força e pregnância heterópica da reincidência incontível da sua doença, assim como da sua aliança para restaurar a velha ordem. Assim alertava Alfredo Pimenta, continuando a defender a necessidade de exterminar o jesuitismo reincidente que minava por dentro a República: «A Monarquia e o jesuitismo servem-se mutuamente e mutuamente se apoiam. Para destruir este, é preciso destruir aquele; para destruir aquele é preciso destruir este»95. O que não deixa de representar uma espécie de fraqueza de reconhecimento do regime em erradicar o seu inimigo principal reforçado pela fi guração da sobre-humanidade deste contra-poder republicano, bem como da falência da utopia da chegada idade positiva pela educação, pela ciência e pelo combate às velhas estruturas da religião e dos preconceitos tipicos do estádio ante-positivo. A República validava, assim, o poder surreal do mito pombalino dos Jesuítas que recriou. Com efeito, depois de um tempo breve de exaltação da vitória republicana, assistiu-se a uma progressiva desilusão em relação ao novo regime e à sua difi culdade em resolver os problemas reais do país (apesar de signifi cativos progressos verifi cados em algumas áreas), revolvendo-se em lutas

partidárias intestinas que o impediram de consolidar políticas e reunir consensos de longo prazo para as reformas que Portugal precisava para se tornar um Estado forte e moderno em termos internacionais96. Para justifi car esta inoperância do projecto republicano, o jesuitismo continuou a representar um recurso explicativo fácil, mas também cada vez menos credível a não ser para o cada vez mais pequeno número dos crentes na velha propaganda que a desilusão republicana foi fazendo diminuir drasticamente. Todavia, o imaginário que a propaganda republicana produziu em torno dos Jesuítas deixou marcas profundas na cultura e na mentalidade portuguesa que o tempo demorará em apagar totalmente.

93 Por exemplo, num processo de ruptura, por diferendos pessoais registado em 1924 na Maçonaria Portuguesa entre o historiador e erudito António Ferrão e o Grão-Mestre Magalhães Lima, aquele acusou a Maçonaria de estar a ser vítima de uma decadência sem precedentes e de «parecer mais uma aliada da Companhia de Jesus que a sua irreconciliável adversária». António Ferrão, ìCarta ao Dr. Magalhães Limaî, 31/5/1924, citada por M. de Riba Leça, ìA Maçonaria ëaliada da Companhia de Jesusí, in Brotéria, Vol. 74, 1962, p. 168. Neste artigo é divulgada correspondência encontrada no espólio da Loja Capitular chamada Madrugada, nº 339, que fazia parte do Grande Oriente Lusitano Unido. A clivagem verifi cada entre António Ferrão e o Grão-Mestre teria resultado simplesmente de uma questiúncula pessoal, concretamente pelo facto do referido chefe da Maçonaria se ter esquecido de elogiar o trabalho do intelectual maçónico no discurso de encerramento de um Congresso daquela associação secreta realizado entre 24 e 29 de Maio de 1924 com o tradicional tom antijesuítico e anticlerical que caracterizavam estas iniciativas. 94 O próprio poeta Fernando Pessoa, extremamente sensível às questões do esoterismo e fi lomaçónico confesso, não deixou de ver a Companhia de Jesus como uma organização secreta, que conspirava e concorria com as organizações secretas assim chamadas, conspirando contra elas para levar a cabo os seus fi ns. Valoriza assim um dos velhos mitemas pombalinos do mito do complot jesuítico: a dimensão secreta da Companhia de Jesus, classifi cando-a no sector associativo das organizações que se caracterizam pelo seu secretismo: «E é de notar que estando a S.J. dentro da O.C. e fazendo dela parte, os chefes secretos de uma e outra são, todavia, diferentes (diversos, distintos). O próprio nome S. J. não é senão o nome O.C. traduzido para a designação de uma ordem do Átrio (Pátio): onde está a Ordem em cima está a Sociedade em baixo; onde está Cristo em cima está em baixo Jesus, que é a encarnação de Cristo». Fernando Pessoa, A procura da verdade oculta. Textos fi losófi cos e esotéricos, Pref., org. e notas de António Quadros, Mem Martins, 1986, p. 228; Fernando Pessoa, A Maçonaria vista por (...), Porto, s.d., p. 7; Jorge de Matos, O pensamento maçónico de Fernando Pessoa, 2ª ed., Lisboa, 1997; Gilbert Ricardo Cavaco, Mensagem: Esoterismo e ideologia em Fernando Pessoa, Ann Arbor, 1997. 95 Alfredo Pimenta, Estudos sociológicos, Lisboa, 1913, p. 227. O fundo de realidade do mito jesuíta nesta fase, era de facto o enfeudamento e a colaboração dos Jesuítas em relação ao regime monárquico revogado pela República e às correntes que resistiram à ameaça das novas ideologias de matriz laica e anticatólicas. 96 Cf. António Costa Pinto, ìMuitas crises, poucos compromissos: a queda da Primeira Repúblicaî, in Penélope, Nos. 19-20, 1998, pp. 43-70

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60 MAS AINDA CANTO

Edgar Carneiro*

Sei da existência intérmina

do vento

do conúbio da noite

com o dia

da perene alternância

do frio e do calor.

Quando de manhã cedo

me levanto,

ao sentir-me sem asas

sem chama sem vigor,

vejo que tudo em mim

anda a mudar.

E colado à frieza

do destino

relembrando o perdido

canto pra não chorar

* Nasceu em Chaves em 1913.Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra.Foi professor dos ensinos técnico-profissional e secundário. De 1967 a 1974, dirigiu a Escola D. Pedro V, a primeira a funcionar em Fiães, neste concelho.Reside há 36 anos em Espinho, foi distinguido pela Câmara local com a Medalha de Mérito.Tem 11 livros de poesia publicados, o último dos quais saiu a lume em 2003 e tem por título «Depois de Amanhã».

Edgar Carneiro, Périplo,Ribeirão, Edições Húmus, 2009

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61 A EXPULSÃO DAS ORDENS RELIGIOSAS PELA I REPÚBLICA PORTUGUESA: RUPTURAS E CONTINUIDADES NO PLANO EDUCATIVO EM PORTUGAL.

José Eduardo Franco1 Rosa Maria Rodrigues Canarim Fina2

“O Republicanismo surgiu e consolidou-se em Portugal, ao longo do século XIX, como esperança salvadora para a resolução dos graves problemas que afl igiam o país. (…) Para alcançar a «regeneração da pátria», tantas vezes referida nos discurso de propaganda republicana, a educação do povo seria condição indispensável ao ressurgimento nacional, pois só a instrução poderia contribuir para formar os novos cidadãos, capazes de analisar os males do país e responder à crise vigente pela aceitação dos novos ideais”. Maria Cândida Proênça3

A propaganda anticongreganista feita lei

A implantação da I República em Portugal no ano de

1910 teve como consequência uma nova edição das medidas radicais de expulsão das ordens religiosas presentes no país e o encerramento dos seus estabelecimentos dos vários níveis de ensino e de assistência social. Esta medida de supressão foi uma das primeiras tomadas pelo primeiro governo republicano. A legislação anticongreganista foi publicada logo a 8 de Outubro de 1910, três dias depois de ter sido proclamada a República. O novo governo pretendia erradicar do país as instituições religiosas que considerava incompatíveis com o novo modelo de sociedade que pretendia erguer à luz do seu ideário laico.4 Neste processo político de erradicação, os estabelecimentos educativos das ordens e congregações tornavam-se o alvo principal a abater, pois eram considerados, de forma dramatizada por uma intensa propaganda de décadas, os centros de infl uência e modelação social das gerações mais jovens à luz de ideários considerados contrários ao projecto republicano.5 Como nos explica o historiador Rui Ramos, o investimento propagandístico contra a presença em Portugal de Jesuítas e

1 CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa2 CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa3 Fernando Rosa e Maria Fernanda Rolo (Coords.), História da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Tinta da China, 2009, p. 169.

4 Cf. Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, IN-CM, 1998, p. 256 e ss. 5 Cf. José Eduardo Franco, Le Mythe Jésuite au Portugal, au Brésil, en Orient et en Europe (XVIe-XIXe siècles), Préface de Bernard Vincent et Luís Filipe Barreto, Thèse de doctorat, Paris - Lisboa - São Paulo, Centre de Recherches Historiques – EHESS, Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa et Editora Arkê, 2008, III parte.

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outros religiosos de outras ordens e congregações religiosas católicas, e mais vastamente, contra o clero católico em geral, foi de facto nuclear do movimento da Ideia Republicana e depois sob o regime republicano implantado: «A propaganda anticlerical não podia ser tratada como um subproduto, mais ou menos secundário, do republicanismo. Era, de facto, o cerne e a razão do movimento republicano de 1910. A história do movimento republicano tem sido viciada pela insistência dos historiadores em verem-no como uma mera tradução política de um preexistente movimento social, o que os tem levado a desprezar a sua propaganda como uma espuma mais ou menos irrelevante».6

Com efeito, três dias depois de implantada a República, sem grande trabalho legislativo, foi decretada a expulsão, em primeiro lugar dos Jesuítas e com eles todas as instituições religiosas ditas “regulares” ou congreganistas. Não é feita de raiz uma lei nova de expulsão, mas apenas recoloca-se em vigor a Lei de expulsão dos Jesuítas decretada pelo governo absolutista do Marquês de Pombal, pelo decreto do governo da República de 8 de Outubro de 1910: «Art.º 1 - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1759, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os Jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que, efectivamente, fossem expulsos de todo o país e seus domínios e para neles mais não poderem entrar». E no segundo artigo repõe em vigor o decreto de 28 de Agosto de 1767, pelo qual o governo josefi no reexplicava e reforçava a lei de 17597. Não prescinde também de declarar, no artigo 3,

nulas todas as leis de espírito e de letra contrárias ao articulado anteriormente, visando expressamente a lei do ministro Hintze Ribeiro de 18 de Abril de 1901, «que disfarçadamente autorizou a constituição de congregações religiosas no país quando pretextaram dedicar-se exclusivamente à instrução ou benefi cência ou à propaganda da fé e civilização no ultramar»8. O mesmo decreto, no seu artigo 6, impõe a extinção de todas as outras ordens, repondo em vigor o decreto de Joaquim António de Aguiar de 1834, e ordena o repatriamento dos religiosos de origem estrangeira, ao mesmo tempo que coagia os professos portugueses à redução ao estado secular9. A que se segue, como era já da praxe neste tipo de expulsão, a nacionalização de todos os bens dos institutos regulares agora extintos. Até a Constituição da República, promulgada mais tarde, não deixa de contemplar no seu articulado o reforço destas medidas, tornando assim o Estado português constitucionalmente antijesuítico e anticongreganista: “É mantida a legislação que extinguiu e dissolveu em Portugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela fi liadas, qualquer que seja a sua denominação e todas as Congregações Religiosas e Ordens Monásticas, que jamais serão admitidas em território português»10.

A importância dos colégios congreganistas

As ordens e congregações religiosas, reimplantadas no país a partir da década de 60 do século XIX depois da sua extinção pelo Estado liberal em 1834, tinham expandido a sua presença no campo do ensino.11 Além de uma rede imensa de escolas de primeiras letras associadas à benefi ciência e protecção da chamada “infância desvalida” (como as Ofi cinas de São José dos Salesianos), detinham importantes colégios de formação das elites cotados, em termos de modernidade de meios e métodos e resultados, entre os melhores do país. Entre os quais se destacavam os colégios de ensino médio dos Jesuítas, com especial destaque para o colégio de São Fiel em

6 Rui Ramos, A segunda fundação (1890-1926), José Mattoso (dir.), História de Portugal, Vol. 6, Lisboa, Estampa, 1994, p. 353. O esforço de laicização total da sociedade tentou abranger todos os campos, especial o campo simbólico e das ritualidades sócio-religiosas tradicionais. De algum modo, recuperando uma prática que distava da Revolução Francesa, para cumprir um dos aspectos do ideário laicista que era a substituição de todos os elementos de natureza religiosa que estruturavam a vida do homem em sociedade, em especial a ritualização do tempo, o governo republicano tentou implementar a substituição do calendário religioso por um calendário laico que valorizasse a comemoração dos valores, dos acontecimentos e dos heróis do novo regime. Para esse fi m, por exemplo, o dia 1 de Janeiro foi consagrado à Fraternidade Universal; o dia 21 de Janeiro aos mártires da República; o dia 5 de Outubro aos Precursores e Heróis da República; o dia 1 de Dezembro à autonomia da Pátria Portuguesa; 25 de Dezembro à Família... Sobre as estratégias de afi rmação do nacionalismo e da cultura nacionalista ver Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit., p. 353 e ss.7 Edmundo Gorjão (coord.), Decretos e leis sobre Jesuítas e Congregações Religiosas, Lisboa, 1910, p. 7.

8 Ibidem, p. 8. 9 Cf. Ibidem. 10 “Primeira Constituição da República Portuguesa”, in As constituições portuguesas de 1822 ao texto da actual Constituição, 2ª ed., Lisboa, 1984, Artº. 3ª, nº 12. Veja-se os estudos publicados por Nuno Severiano Teixeira; António da Costa Pinto (ed.), A Primeira República Portuguesa: Entre o Liberalismo e o Autoritarismo, Lisboa, Colibri, 2000. 11 José Eduardo Franco, “Das Ordens às Congregações Religiosas: Metamorfoses da vida Consagrada Católica”, in Brotéria, Vol. 168, 2009, pp. 119-135.

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Castelo Branco e de Campolide12 em Lisboa. Estes colégios eram frequentados por alunos de classes sociais com posses. As famílias da média e alta burguesia ou da nobreza tradicional procuravam colocar os fi lhos em escolas de elite capazes de oferecer uma formação qualifi cada que, na maioria dos casos, os estabelecimentos não poderiam garantir. Aliás, nestes colégios, como acontecia também no Convento de Montariol em Braga e noutras casas religiosas do país, dava-se uma especial atenção à investigação científi ca e cultural. Podemos afi rmar, com efeito, que jesuítas, franciscanos, espiritanos, lazaristas, entre outros, promoveram o desenvolvimento das chamadas ciências naturais, promovendo a criação de gabinetes e laboratórios científi cos, articulados com a troca de informações, conhecimentos novos, de recolha de dados, que a estrutura internacional destas ordens e a sua rede de missões presentes nos territórios coloniais facilitavam.13 Disso é expressão a edição de periódicos científi cos e culturais de grande qualidade como é o caso da Revista Brotéria fundada em 1902 (dividindo-se em séries de Ciências Naturais - Botânica e Zoológica - e de Vulgarização Científi ca) que granjeou signifi cativo reconhecimento internacional e o Mensageiro de Santo António sediado em Montariol. Contrariamente ao que a propaganda republicana pinta, entre as instituições de ensino portuguesas, as escolas religiosas congreganistas ofereciam em alguns casos exemplos de ensino altamente qualifi cado e avançado que era procurado por sectores ideologicamente adversos à presença das Ordens e Congregações no país.14

A imagem negra produzida pela propaganda antijesuíta, em particular e pela propaganda anticongreganista e anticlerical em geral, erguida em torno da educação regida pelos religiosos, como baluarte do retrocesso, do antiprogresso, é contradita por um conjunto de fi guras formadas nos colégios religiosos que se vieram a destacar na área das letras e das ciências em Portugal. Podemos avocar a título de exemplo bem emblemático do artista Almada Negreiros, ou o caso do republicano Egas Moniz, primeiro Nobel português premiado na área da medicina, que chegou a ser ministro de um governo da I República. Este cientista e médico deixou um testemunho bem positivo do nível de ensino ministrado no Colégio de São Fiel da Companhia de Jesus, onde fez os seus estudos pré-universitários15. Relevou as virtudes pedagógicas do ensino orientado pelos jesuítas e o seu investimento em equipamento científi co para subvencionar uma educação apostada na valorização da prática experimental, do qual diz ter benefi ciado muito em termos pessoais e profi ssionais. Distingue o nível do ensino dos Jesuítas em contraste com ensino público estatal catalogado como sendo de fraca qualidade, apesar daquilo que considera ser a excessiva importância dada à formação cristã: «No colégio, ao lado da exagerada vida religiosa que nos levava tempo e roubava actividade havia uma boa educação humanista e científi ca que, só por estar sujeita a programas ofi ciais, alguns deles pouco recomendáveis, não era mais perfeita. Devo a essa orientação muito do aproveitamento na carreira universitária. A disciplina mental a que obrigavam os alunos, em ciências exactas e afi ns, era bem orientada. Aos exercícios físicos já dava o colégio a sua atenção nesses tempos remotos (...). Mas eu aproveitei com o ensino que me ministravam na matemática, física, química e ciências biológicas. Davam certo desenvolvimento à parte experimental, o que contrastava com a maior parte do ensino liceal desse tempo. O laboratório de química e o gabinete de física estavam sufi cientemente apetrechados e o ensino baseava-se em experiências sempre que isso era possível»16.

12 Quando rebente a revolução republicano de 4 para 5 de Outubro de 2010, ganhou especial destaque, como alvo preferencial da devassa revolucionária, o colégio de Campolide pertencente aos Jesuítas na capital lisboeta. Foi ocupado militarmente pelas tropas republicanas, os Jesuítas aí residentes foram presos e conduzidos sob custódia pelo exército em desfi le público para os calabouços do Estado, com grande concurso de população que proferia palavras de ordem contra estes religiosos. Ao mesmo tempo, os subterrâneos deste colégio foram vasculhados a pente fi no para grande frustração dos militares que esperavam encontrar um grande arsenal bélico, como, efectivamente, estava bem inculcado no imaginário jesuítico. O amotinamento das massas populares por todo o país (em especial nos centros urbanos de Lisboa, Setúbal, Porto, Coimbra e Covilhã) é bem revelador do efeito e do grau de assimilação e da paixão provocada por décadas de propaganda antijesuítica e do seu poder mobilizador.13 Nuno Estêvão Ferreira, “Ordens e Congregações Religiosas: A problemática da missionação na I República”, in Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco (Coord.), Ordens e Congregações Religiosas no Contexto da I República, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 167 e ss. 14 Cf. Hermínio Rico e José Eduardo Franco (Coords.), Fé, ciência, cultura. Brotéria - Cem anos, Lisboa, Gradiva, 2003, passim.

15 No que respeita à frequência por Egas Moniz do colégio dos Jesuítas existe uma interessante documentação guardada no Arquivo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus em Lisboa, pasta 216, 8. 16 Egas Moniz, A Nossa Casa, Lisboa, 1950, p. 254; e cf. Gomes Zurara [=Domingos Maurício], “O primeiro Nobel português, aluno dos Jesuítas”, in Brotéria, Vol. 52, 1951, pp. 413-425.

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Egas Moniz insinuando o seu esforço de distanciamento em relação às polémicas que envolveram o ensino dos Jesuítas numa nebulosa suspeição completa a sua avaliação com este comentário: «Apraz-me deixar aqui exarado o meu depoimento imparcial»17.

Educação: ideário republicano versus ideal congregacionista

A legislação contra a existência em Portugal das Ordens Religiosas, a Lei de separação do Estado das Igrejas e todas as medidas laicizadoras da sociedade transportavam em si, no quadro do ideário republicano, muito mais do que uma mera distinção funcional dos dois poderes ou da distinção da sociedade religiosa em relação à sociedade civil. Representava o início de todo um programa de afi rmação do Estado e de uma nova cultura que deveria substituir-se progressivamente à infl uência da religião na sociedade, embora a sua execução estivesse longe de alcançar o êxito esperado: «Laicizar o conhecimento, a natureza, a sociedade e a vida, tornar a escola gratuita e laica, dessacralizar o padre, civilizar os ritos de passagem, constituíram, assim, momentos de um processo descristianizador totalizante, cujo ponto nodal irá centrar-se, porém, nas relações jurídico-políticas entre a Igreja e o Estado, isto é, na dimensão institucional do projecto laicizador»18. Embora se tivesse teorizado e tentado regulamentar a valorização da cultura patriótica, ou seja, todas as actividades, a produção artística e intelectual, toda a obra produzida pelos cidadãos tendo como referência a nação e o seu progresso, era o sentimento que deveria substituir e preencher o vazio do ‘primitivo’ sentimento religioso19. Para levar a efeito tal ideário tão radicalmente transformador implicaria, como de facto se projectou, a supressão de todas as instituições de ensino a cargo da Igreja, inclusive os seminários. Só assim a República poderia libertar a infância e a juventude da matriz obscurantista veiculada pela instrução.

O ideário republicano focava a educação como um campo de intervenção prioritário e acreditava que era pela aposta na formação do “homem novo” que poderia modifi car a face do país. Nesta esteira, escreve António Nóvoa, destacando que a educação era para a República uma questão estrutural: «O interesse republicano pela coisa educativa não se funda numa preocupação essencialmente pedagógica, mas antes na convicção de que a ‘verdadeira’ República só seria possível através de uma outra educação, pois as instituições revolucionárias não podem constituir-se a partir de um sistema escolar do passado»20. O movimento republicano e a sua prática política é fundada numa verdadeira fé na educação. Esta verdadeira crença no poder da educação bebia do pensamento pedagógico republicano marcado profundamente pela “pedagogia positivista”. Como explica Maria Cândida Proênça, à luz do pensamento de Augusto Comte e da sua escola de pensamento positivista, muitos ideólogos republicanos quiseram aplicar à “educação a lei dos três estados – religioso, metafísico e positivo – e, neste sentido, consideravam fundamental que se extirpasse da educação tudo o que tinha a ver com as primeiras etapas. Daí a sua crítica cerrada à infl uência da religião católica na educação (…). Ora, para que a instrução pudesse contribuir para o desenvolvimento intelectual do educando, tornava-se imperioso laicizá-la em todos os graus; caso contrário,

17 Egas Moniz, op. cit. Nestas suas memórias, o Nobel português da Medicina, destacou particularmente um professor jesuíta que o marcou e que muito apreciou, precisamente o contraditor de Miguel Bombarda na polémica analisada em torno dos Jesuítas e a ciência: «Tive um notável professor de matemática, o Padre Fernandes Santana». E confessa mais à frente referindo-se à Companhia de Jesus e à possibilidade de ter alimentado uma vocação para ser jesuíta: «A atmosfera da Ordem não me desagradava». Ibidem, p. 256. 18 Fernando Catroga, “O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1991)”, in Análise Social, Vol. 100, 1988, pp. 211-273.

19 Cumprindo um dos aspectos do ideário laicista que era a substituição de todos os elementos de natureza religiosa que estruturavam a vida do homem em sociedade, em especial a ritualização do tempo, o governo republicano tentou implementar a substituição do calendário religioso por um calendário laico que valorizasse a comemoração dos valores, dos acontecimentos e dos heróis do novo regime. Para esse fi m, por exemplo, o dia 1 de Janeiro foi consagrado à Fraternidade Universal; o dia 21 de Janeiro aos mártires da República; o dia 5 de Outubro aos Percursores e Heróis da República; o dia 1 de Dezembro à autonomia da Pátria Portuguesa; 25 de Dezembro à Família... Sobre as estratégias de afi rmação do nacionalismo e da cultura nacionalista ver Rui Ramos, A Segunda Fundação, op. cit., p. 353 e ss.; e Ernst Gellner, Culture, identity and politics, Cambridge, 1987. 20 António Nóvoa, História da Educação, Lisboa, 1994, p. 187. Mas rapidamente este ideário revolucionário republicano viu-se confrontado com na sua prática política com o desengano das realidades e com as conveniências e transigências que estas exigiam para salvaguardar minimamente a estabilidade nacional e a paz social. A breve trecho o governo concluiu que o país não tinha condições de dispensar totalmente as instituições religiosas sem excepção. E teve que limitar este projecto político de depuração católica. Desde logo, não arriscou aplicar a legislação anticongreganista nos territórios ultramarinos portugueses, da forma radical como tinha feito na metrópole, por considerar que isso colidiria com os interesses coloniais portugueses. Por isso, não mandou expulsar dos campos de missão portugueses os missionários nacionais e, mais do que isso, acabou por desenvolver uma política de feição regalista ao tentar nacionalizar o Padroado Português do Oriente.

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qualquer reforma educativa tornar-se-ia inútil”.21

Pode-se considerar que, de certo modo, aquela que podemos denominar como “ideologia da educação” substitui-se à religião como instrumento de conversão e transformação radical do homem. Juntamente com o incremento de uma cultura nacionalista e civilista o fomento sistemático da educação deveria levar à assunção emancipada e plena do homo laicus, do cidadão devotado ao serviço da República, por oposição ao homo jesuiticus. Na tentativa de substituir a religião pela educação como método de transformação mental e espiritual para edifi car o cidadão republicano em vez do fi el católico, não deixa de ser relevante a valorização social e cultural do professor, conferindo-lhe atributos e funções decalcadas do sacerdócio católico. Como bem escreve a historiadora citada, “o anticlericalismo da República passaria a atribuir ao professor funções importantíssimas, algumas até então reservadas aos padres”22. Por isso, é signifi cativo que muitas vezes se use epítetos do universo simbólico e institucional do religioso para designar a alta missão do professor no novo regime republicano, como é o caso da designação do professor como sacerdote da nova era ou do sacerdote do homem novo.23

Com efeito, no século XIX das ideologias que geraram as grandes utopias que vão mudar a face do mundo no século seguinte, a educação afi rma-se como tema central dos discursos em torno do ideário comum a todas as correntes em concurso de construção de uma nova sociedade e de um homem regenerado. A aposta na educação e no seu controlo afi gura-se cada vez mais decisiva para de algum modo garantir o futuro que se deseja. A educação apresenta-se como lugar de poder e assume foros mitifi cantes. O mito da educação é, pois, indissociável do mito/utopia da construção de um “homem novo” e de uma sociedade nova, que todas as correntes, à sua maneira e à luz dos seus pressupostos e princípios ideológicos, pretendiam edifi car. O discurso educativo da maioria dos movimentos ideológicos desta época transportava um ideário de perfectibilidade

humana de teor mais ou menos teleológico e alguns deles até de sabor escatológico antecedidos de análises de teor apocalíptico da situação presente24. O ideal de restauração católica assumido pelo chamado neo-catolicismo ultramontano, a Ideia republicana de revolução política consubstanciada no movimento republicano, as correntes positivistas, cientistas, a ideologia socialista, livre-pensadora e anarquista, a maçonaria através das suas várias obediências, todos viam na educação um instrumento decisivo para a transformação social na óptica da sua corrente de pensamento e acção. Em muitos aspectos fundamentais as correntes em concorrência divergiam, no entanto, todas eram unidas pela convicção, por vezes atingindo foros de crença, de que a educação produziria uma sociedade progressiva e um homem renovado. A educação era vista como o recurso de fundo e de longo prazo através do qual se acreditava infl uir orientativamente nas novas gerações, onde a escola emerge pouco a pouco como a instituição decisiva e central de todo o processo educativo. A mitologia ideológica da utopia de uma sociedade mais perfeita tinha infl uído fortemente na pedagogia desde Rousseau a Fourrier, de Tolstoi a Gramsci, de Marx a Hegel, ou de Dewey a Illich, como explica Franco Cambini: “foi um mito profundamente propulsor, inovador, capaz de activar críticas em relação às formas educativas existentes nas sociedades e, ao mesmo tempo, indicar metas para a projecção educativa, até ousadas, até mesmo ousadas demais, mas signifi cativas e radicais”25. Ora, o movimento republicano atribuía de facto à educação virtualidades redentoras. A política educativa deveria, pois, ser uma das prioridades e exercida com um fi m de garantir a assunção de uma sociedade totalmente laica. Com efeito, como analisa Luís Machado de Abreu “a restauração da vida católica de que as congregações eram a guarda avançada representaria uma ameaça à plena autonomia secular do regime e do poder político. Na antropologia cultural veiculada pela educação congreganista via-se fundamentalmente a

21 Fernando Rosas e Maria Fernanda Rolo (Coords.), op.cit., p. 170 e 171. 22 Ibidem, p. 183. 23 Cf. António Nóvoa, Le temps des professeurs, analyse socio-historique de la profession enseignante au Portugal (XVIII-XX siècle), Lisboa, 1987, Vol. 2 , 57 e ss.

24 Ver a este respeito, por exemplo, o estudo de Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e Regeneração. O Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura fi nissecular, Lisboa, Edições Cosmos, 1996.25 Franco Cambini, História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 392.

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negação pura e simples do “homem novo” e da “Pátria Nova” preconizados pela demopedia republicana”.26

Fieis ao seu ideário propagandeado pelo movimento da Ideia Republicana, retirar qualquer infl uência religiosa dos domínios do ensino constituiu uma preocupação dos primeiros governos republicanos que viam nas ordens e no seu empreendedorismo educativo um grande obstáculo ao projecto de laicização total.

A sobrevivência das Ordens na República Ao tempo do decreto da expulsão das instituições católicas de natureza congreganista pela República, segundo os resultados do estudo exaustivo de Artur Villares, existiam em Portugal, em 1910, 33 congregações e ordens religiosas, sendo 23 femininas compostas por 2399 religiosas e 10 masculinas compostas por 750 religiosos. Além de 18 seminários e outras casas de formação menos institucionalizadas, as ordens e congregações dirigiam 80 colégios, muitos deles votados à formação de alunos com problemas sociais. Todavia, no decurso dos dezasseis anos que durou o Regime da Primeira República em Portugal, o ideário secularizante de eliminação de toda a presença do religioso na educação do “homem novo” republicano e da formação de uma nova cidadania acabou por não se cumprir como se tinha projectado. Apesar da violência do discurso legislativo e propagandístico contra as congregações, de facto, algumas ordens e congregações religiosas formalmente expulsas continuaram a trabalhar na “educação e civilização” nas missões ultramarinas actuantes nos territórios coloniais portugueses. Mesmo em Portugal, antes do fi m do primeiro regime republicano em 1926, vários religiosos das ordens expulsas começaram a regressar e outras novas congregações surgiram com grande vitalidade, desenvolvendo iniciativas no plano educativo. Em situação de clandestinidade, de forma encapotada para fugir à fi scalização do Estado, durante a vigência do primeiro regime republicano em Portugal, as congregações religiosas ilegalizadas e proibidas continuaram a desenvolver

trabalho em estabelecimentos de saúde, hospitais e sanatórios, nas missões, tolerados em nome do interesse do país e para atender a necessidades para as quais o governo não tinha soluções alternativas. Se no campo da saúde e da missionação se possa compreender mais facilmente a permanência da acção das congregações afrontando as leis antigreganistas vigentes, mais surpreendente se torna quando se quantifi ca o número de colégios das ordens e congregações que conseguiram funcionar durante a vigência do regime, 26 colégios, portanto, mais de um quarto do total daqueles que existiam em 1910.27 A isto acresce um dado impressionante: fundaram durante o regime da Primeira República mais congregações portuguesas novas do que no período do regime anterior. Com efeito, entre 1923 e 1926, instituíram-se em Portugal cinco novas congregações, sendo quatro delas de fundação portuguesa (Servas de Nossa Senhora de Fátima (1923), Criaditas dos Pobres (1924), Religiosas Reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima (1926) e Oblatas do Divino Coração - 1926) e uma francesa (Irmãs da Apresentação de Maria - 1925), muitos deles com iniciativas no plano da educação.28

Como conclui Artur Villares na análise do seu muito útil estudo estatístico, “a própria República, embora até chegasse a ter uma inspecção anticongreganista, nunca teve uma ideia real e completa do verdadeiro fenómeno congreganista, para o período anterior ao 5 de Outubro, nem tão-pouco sobre a verdadeira presença e movimentação congreganista na República. A verdade é que, apesar do choque inicial, pudemos constatar que a República autorizou mesmo uma série de congregações a funcionar nas suas casas, principalmente em áreas de interesse social”.29 Esta realidade de reemergência com grande capacidade de resistência e vitalidade do fenómeno religioso e social congreganista durante o regime mais anticongreganista que existiu em Portugal revela a inefi cácia da propaganda republicana e a difi culdade em atingir o Portugal profundo no

26 Luís Machado de Abreu, “A Presença das Ordens na Ciência e na Cultura em Portugal (1820-1926)”, in Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco (Coord.), Ordens e Congregações Religiosas no Contexto da I República, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 43.

27 Ver o estudo estatístico bem documentado de Artur Villares, As Congregações Religiosas em Portugal (1901-1926), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 28 Ver José Eduardo Franco, Ana Cristina da Costa Gomes e José Augusto Mourão, Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afi ns em Portugal, Lisboa, Gradiva, 2010. Ver parte relativa às instituições católicas. 29 Artur Villares, Op. Cit., p. 281.

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plano cultural, religioso e mental. Por seu lado, a perseguição religiosa da Primeira República teria contribuído para revitalizar o catolicismo de algum modo adormecido do fi nal da monarquia. Aqui o fenómeno de Fátima30 e a proliferação de iniciativas e novos movimentos de espiritualidade católica contribuíram, ao lado do fracasso do regime republicano marcado pela incapacidade de desenvolver uma política coerente estável e reabilitadora do país (em 16 anos de regime houve mais de 40 governos), para dar um novo impulso ao catolicismo, criando condições de regresso e repotenciação das experiências de institucionalização congreganistas em áreas de intervenção importantes para o Estado e para a sociedade: Educação, Assistência e Missionação. A necessidade impôs-se ao ideal. O ideal de laicização total da sociedade propugnado pela propaganda e depois estatuído pela legislação republicana, tendo por mira fundamental a erradicação de toda a presença e infl uência de instituições congreganistas, nomeadamente na educação, será contrariada pelo realismo político e pela necessidade de tolerar instituições que desenvolvessem acção assistencial, e educativa que fossem supletivas da insufi ciente acção do Estado e que este não podia, de facto, dispensar sem prejuízo no atendimento a necessidades urgentes e estratégicas. Por isso, a política republicana, radical no discurso em relação às congregações, vai ser na realidade marcada por avanços e recuos no plano educativo31 que visava eliminar totalmente a presença actuante de religiosos nesta área decisiva de transformação de Portugal para cumprir o projecto de laicização total da sociedade. Recuperando mais uma vez as palavras de Luís Machado de Abreu, a dicotomia presença/expulsão das Ordens e Congregações em Portugal, para os Republicanos, era uma disputa, já que, na sua perspectiva, a “existência de regulares constituía uma ameaça à liberdade do cidadão”32. Contudo, a maior constrição do valor da liberdade foi feita aqui paradoxalmente pela República ao querer erradicar as congregações cujo património cultural e

pedagógico era tão modelador da sociedade, da cultura e da mentalidade portuguesas, tão fundas se arreigavam as suas raízes na história do país.

Conclusões provisórias

Uma das razões da inefi cácia do projecto republicano de laicização total da educação, começando pela dispensa do trabalho das Ordens e Congregações neste domínio, foi, pensamos nós, a incapacidade do novo regime criar uma linguagem totalmente nova para idealizar e aplicar o projecto de educação republicana. Se o conteúdo afi rmava o desejo de um tempo novo fi rmado por uma educação sistemática, a forma não dispensava o recurso aquilo que podemos chamar resíduos da linguagem e do campo semântico do religioso para apresentar o ideário e a sua prática. Talvez por isso, a República não conseguiu ir ontologicamente a fundo na mudança que pretendia e imprimiu aos discursos sobre a educação clichés religiosos e untou-os de foros de crença que tornou a educação um sucedâneo do religioso, mas menos mobilizador, porque esvaziado de toda a espiritualidade. Podemos, de algum modo, concluir que a política de exclusão, de combate às ordens religiosas e ao seu modelo educativo pelo regime republicano emergente, repete uma dinâmica que é comum à história da queda e assunção dos regimes. Qualquer regime, para se afi rmar revolucionariamente, precisa não só de abater o anterior com violência político-militar, mas também precisa de promover uma propaganda capaz de apresentar o regime que o antecedeu e as instituições que lhe eram mais emblemáticas como o negativo, como o quadro de ideários e valores colocados em aposição àqueles que o novo regime vencedor quer afi rmar. O combate ao ideário educativo das ordens e a imagem ofi cial estabelecida daquilo que se dizia que era a sua educação integra-se, de facto, neste processo estratégico mais ou menos consciente de afi rmar com maior vigor uma realidade nova, um projecto inovador pela militante negação daquilo que se queria apresentar como o seu contrário. Assim, desta estratégia de negação pretendia-se extrair força mobilizadora para a acção de afi rmar o projecto educativo que se queria fazer singrar e estender como caminho para uma transformação social totalizante.

30 Cf. José Eduardo Franco, “Fátima, o milagre da interpretação – II: O milagre do Sol”, in Brotéria, Vol. 165, 2007, pp. 471-498; Idem, “Fátima, o milagre da interpretação – I: Fases de abordagem gnosiológica”, in Brotéria, Vol. 165, 2007, pp. 345-356.31 António Nóvoa, “A República e a escola: das intenções generosas ao desengano das realidades”., in Reformas de Ensino em Portugal. Reforma de 1911, Lisboa, I.I.E., 1989, p. XVI e ss.32 Luís Machado de Abreu, Op. Cit., p.40.

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69 Por que sou monárquico

Serafi m Guimarães*

Não tenho palácios, nem títulos, nem anéis, nem pergaminhos. Entro na fi la dos plebeus puros.Se tivesse títulos, não os exibiria mas, também, não os enjeitaria. Além disso, não sou contra ninguém. Do meu lado, como em todos os lados, há quem justifi que aplausos e há quem mereça comiseração.

Um dia perguntaram à Amália se ela era monárquica ou republicana. E ela, com a intuição, a inteligência e a graça que a caracterizavam, respondeu: sou um bocadinho mais monárquica. Por que republicanos somos todos, é, exactamente, esse bocadinho que me faz, também, ser monárquico. Republicanos no sentido de defensores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, princípios que o cristianismo formulou, a revolução francesa adoptou como divisa e a carta dos direitos do homem propõe a todo o universo, somos todos! Essa ideia peregrina de absolutismos, de castas, de privilégios, de “sangue azul” que, ainda hoje, aqui ou ali aparece apensa à monarquia, nunca foi minha e creio que, a sério, já não é de ninguém.

Sou monárquico pelo bocadinho que a monarquia acrescenta à República. É que os nossos reis nasceram com a Pátria e a Pátria com eles. No caso português, Pátria e Rei fazem parte do mesmo acontecimento fundador. Ambos são, por isso, inerência e factor da identidade portuguesa. Os “genes fundadores” pertencem a ambos. Pátria e Monarquia arrancam dos mesmos alicerces e a seiva que lhes entrou por raízes comuns percorre-as e alimenta-as conferindo-lhes uma espécie de consanguinidade. Os Reis são um permanente carimbo de Pátria. Sei que foi com reis que fomos grandes. Sei que um rei não divide porque, sendo tão indiscutível como a Pátria, pertence a todos, como ela. Sei que um rei é um símbolo com marca de perenidade. E a simbologia, não sendo uma realidade substantiva é muito mais que uma fantasia alienante. Os símbolos dão, alimentam e orientam convicções e por isso, devem ser permanentes. Os símbolos não se mudam. Os hinos nacionais, as bandeiras das pátrias, não mudam ao sabor dos ventos e dos votos. O Rei anda mais ligado à noção de Pátria, entidade indiscutível e perpétua, o Presidente da República anda mais perto da noção de Estado, entidade variável no conceito, na organização, no conteúdo. Quantos Presidentes da República tivemos desde 1910?

* Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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Só depois do 25 de Abril tivemos seis! Alguém viu no Dr. Manuel de Arriaga, ou no Dr. Teófi lo Braga ou no Marechal Spínola, ou no General Costa Gomes um símbolo de Portugal? Quando muito um símbolo temporário de poder. Pode alguém comparar o que representa para Portugal D. Afonso Henriques, ou D. Dinis, ou D. João I, D. João II, D. Manuel I, D. Pedro IV, com algum dos Presidentes da República que já tivemos? Nem poder natural, nem simbologia. Podem ter cumprido o seu papel de forma inteligente, profícuo, digna mas são cidadãos sem vínculo natural e defi nitivo à Pátria, cidadãos que passaram e as Pátrias não passam. O Rei, por ter um percurso histórico paralelo ao da Pátria identifi ca-se com ela e, por isso, dela recebe e a ela dá carácter. Mais do que um representante, um Rei é um símbolo; um Presidente da República é, apenas um representante temporário. Enquanto que o Presidente da República emana de arranjos ocasionais e sempre fl uidos de partidos, sempre de uma só parte dos portugueses, o Rei arranca de um tronco que nos contém a todos e que foi a coluna vertebral da história. Os presidentes da República andam, como os governos, ao gosto das votações e das políticas. Não permanecem. Um Rei sucede a outro numa linha de continuidade que o torna, mais coerentemente, um símbolo. Pode mudar a pessoa do Rei, mas a sucessão é natural, imediata, fácil, incontroversa, como uma lei da natureza. Muda a pessoa, mas permanece a ligação orgânica, genética, às origens, a um sentimento, a uma educação, a uma relação quase familiar, aos sucessos de uma longa história em que foram protagonistas. A monarquia portuguesa é uma instituição que vem do início e com a qual convivemos durante tantos séculos, tem alicerces cavados com a mesma fundura e que exigiram os mesmos sacrifícios dos que foram feitos para criar a Pátria, e, por isso, identifi ca-se com ela. O Rei é um órgão de uma soberania contínua. Agora, que a Pátria portuguesa perdeu muita da sua independência, são necessários elementos que liguem o que fomos ao que queremos ser, num querer alimentado por valores eternos. A ideia peregrina de que somos todos iguais e, por isso, todos temos o direito de poder aspirar a ser Presidente da República é pouco mais que infantil. A probabilidade de alguém vir a ser Presidente da República seria, em Portugal

de 0.000 0001% se todos tivessem acesso a essa hipótese longínqua e demagógica. Mas não! De acordo com a nossa Constituição, só os nascidos em território nacional e maiores de 35 anos poderão candidatar-se e, além disso, qual foi o Presidente da República Portuguesa que não foi um político activo emanado de forças políticas organizadas, dos partidos. Quantos são os portugueses nessas condições? Onde é que está a igualdade nessa oportunidade? Argumento ridículo. Fala-se, também, no preço que a monarquia custaria ao País. Quantos Presidentes da República vivem hoje à custa do erário público? Vivem e Deus os conserve vivos e felizes durante muitos anos! Mas, vencimentos altos, carros, chauffeurs, staff, a multiplicar por 4! O outro argumento republicano recorrente é o de que a lei da hereditariedade pode oferecer-nos um mentecapto, um tarado, um energúmeno, um marcado pela natureza. Ninguém nega que é uma eventualidade possível. Tivemos numa história de oito séculos dois casos: D. Afonso VI e D. Maria I. Contudo, ambas as situações foram ultrapassados com a normalidade que a história regista. E de quantos casos temos notícia de monstros que, por via não hereditária, chegaram à chefi a dos Estados e dos governos, alguns mesmo pela via do sufrágio universal. Não é um exercício teórico. Não é preciso recuar muito no tempo, para encontrar dos mais desgraçados, dramáticos, tenebrosos exemplos de loucura que a história regista. Foi por esta via que os republicanos Ceaucescu, Karadsik e os mais emblemáticos chefes dos nossos dias, Hitler e Estaline, chegaram onde chegaram e fi zeram o que fi zeram! Não! Esqueçam, também, esse argumento. Acresce que a implantação da grande maioria das repúblicas fi cou ligada a actos de violência extrema; foi preciso matar e matou-se: assim morreram Luís XVI e Maria Antonieta em França, D. Carlos e o Príncipe Real D. Luís Filipe em Portugal, toda a família de Nicolau II na Rússia. E eu sou contra a violência!

Há, ainda, outro motivo que também conta muito para mim. É que meu Pai comparava muitas vezes aquilo que viveu durante os últimos dezasseis anos de Monarquia, com o que passou durante os dezasseis primeiros da República. Eu ouvi-o sempre com a atenção de um fi lho e, além disso, não posso deixar de comparar, hoje, o que se passa nas monarquias do

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norte da Europa com o que se vive nas repúblicas do Sul. Finalmente, haverá quem conceba que o vínculo místico que liga um Povo ao seu Rei, ilustrado neste poema imortal de Fernando Pessoa, possa, alguma vez estabelecer-se com um Presidente da República?

“Aqui ao leme sou mais do que eu;Sou um Povo que quer o mar que é teu;E mais que os mostrengo que me a alma temeE roda nas trevas do fi m do mundoManda a vontade que me ata ao leme,De El-Rei D. João Segundo

É por tudo isto que também sou um bocadinho mais monárquico!

Sei que a República apareceu da forma mais iníqua e repugnante. Sei que poderei não ter razões, mas tenho razão.

Tenho cá dentro memórias, razões, sentimentos que criaram um gene metafísico que transporta história.

Parte-se-me o coração, ainda hoje, quando releio as páginas que descrevem os últimos estertores da monarquia e os primeiros sobressaltos da república.

Para haver monarquia, não se matou nenhum republicano; para haver República assassinaram-se os dois primeiros monárquicos: o rei e o seu fi lho. É o contraste entre o azul de uma bandeira e o vermelho de outra.

Foi essa a Pátria em que nasciDe cupidos cegos, apontando as suas setasDe verões quentes, forcados e poetas

E que descobreUma luz que vai de Camões a António Nobre

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72 ÂNSIA DE CONTINUIDADE

H. Veiga de Macedo*

Vergastada do Sol, a terra ressequidaSofregamente bebe as primeiras chuvadas:No chão, as folhas outoniças, empapadas,Choram, inconsoláveis, a cor fenecida.

Molhada até aos ossos, ali a avenidaAbre-se chapinhando às rodas apressadas;Chapéus de chuva passam lestos; nas beiradasDas casas lacrimeja a água rebatida.

É quase noite a cinza-luz-indefinida,Obliquamente enfraquecida pelos fiosQue unem as nuvens prenhes às fontes e aos rios.

Na plenitude desta hora humedecida,Sinto que meu olhar se humedece de OutonoNa saudade do Inverno a que já me abandono.

Lisboa, 11 de Novembro de 1985

* Poeta. Foi Ministro de Portugal.Faleceu em 25-01-2005

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Padre José Alves de Pinho

Chave - 05/12/1935 Fornos - 10/06/2010Foto de J.M. Costa e Silva.

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Seminarista, aos 18 anos. Padre, coadjutor do Pároco de Lourosa. Seminaristas de Arouca no Seminário Diocesano do Porto.

Curso de Teologia do Seminário maior do Porto. D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese do Porto e ministro da ordenação, ordinando José Alves de Pinho no rito da imposição das mãos.

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José Alves de Pinho no rito da sagração das mãos.

Cortejo da Casa Natal para a Igreja de Chave. Missa Nova.

No rito da entrega do cálice e patena. No rito da imposição da casula.

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Momentos da apresentação dos livros Brasão de Fornos e Outrora... Fornos, edições Laf, no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Fornos

Entrega do Diploma e Emblema de Sócio Honorário da Liga dos Amigos da Feira. Uma dedicatória para Anthero.

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BODAS DE OURO SACERDOTAIS

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Igreja Paroquial de Fornos vista do Poente.

Pormenor da Igreja de Fornos.À saída da Igreja de Sanfi ns.

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79 Em memória do meu irmão

Joaquim Alves de Pinho*

Numa daquelas noites frias e longas que se seguiram ao Natal, após o jantar, numa ampla cozinha, as brasas produziam um calor brando que fazia fervilhar o tacho de cobre onde se apuravam os rojões. A louça que servira para jantar estava já lavada e arrumada, a digestão associada ao cansaço dum dia de trabalho, o embalo que o preguiceiro propiciava, aquele calor brando gerador dum inesquecível perfume, gerara no meu pai uma sonolência que lhe fechara os olhos e produzira aquele movimento de luta contra o sono, de balanço subitamente interrompido e logo reiniciado. O meu irmão tinha um bloco no regaço, uma caneta na mão para anotar alguma coisa que o meu pai lhe tivesse pedido para registar e olhava fi xamente o pai, com receio de que pudesse desequilibrar-se sobre aquele lume tão familiar. Duma vez, de braço estendido e mão aberta, acompanhou o movimento da cabeça do pai para o amparar, não fosse o sono vencer e fazê-lo tombar sobre as brasas. Mas fê-lo com tal vivacidade que o movimento despertou o pai, que se recompôs e se aprumou, e fi cou de olhos abertos, a perscrutar o lume, a mulher, os fi lhos e os serviçais, todos ensonados. Disfarçando a preocupação, o meu irmão, que se havia

inclinado e baixado a mão até quase junto do chão da lareira, apanhou um carvão que fi cara na borda da fogueira e fi cou a remirá-lo. Não demorou muito que o nosso pai, agora numa postura de verdadeira pose, voltasse a fechar os olhos. A mão esquerda do meu irmão segurava o bloco e os dedos da mão direita envolveram o carvão que, soprado, fi cou limpo de fogo e de cinzas. Seguiram-se uns poucos movimentos, rápidos e fi rmes, uma pausa, um repetido olhar para o rosto do meu pai e, de seguida, uns complementos, uns retoques, um aprimorar dum traço, um disfarce e eis que resulta um desenho fantástico do rosto do meu pai. Nunca mais esqueci aquele momento. Ainda criança, aquele momento gravou em mim a impressão de que o meu irmão era um artista. Aquele simples desenho gerou-me o sentimento de que aquela criatura era uma alma superior. Estaria o meu irmão a iniciar Teologia. Seguiram-se uns anos em que ouvi falar numas controvérsias dum Bispo com o Poder e dos conselhos que o meu pai dava ao meu irmão para que se não metesse em tais sarilhos. Teve o meu irmão como reitor do Seminário Maior do Porto uma fi gura proeminente no domínio da História da Arte, seu conterrâneo, D. Domingos de Pinho Brandão, que depressa lhe reconheceu uma “queda” espantosa para esse domínio. O meu irmão dedicou-se de alma e coração à descoberta desses Tesouros e foi um dos grandes obreiros que intervieram na criação dum museu

*Advogado.

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ligado à história da Arte no Seminário Maior do Porto. Já perto do fi nal do seu Curso, ouvi em casa o meu irmão a dar informação de que o Senhor Bispo D. Florentino se não mostrava receptivo a que o meu irmão cursasse Belas Artes, nem sequer Arquitectura, como teria manifestado vontade de cursar. E recordo ainda que a minha mãe explicava aos meus “porquês” que o Curso de Belas Artes era incompatível com um Padre por causa da exposição que os artistas tinham ao nu... Acabado o Curso e ordenado sacerdote, foi o meu irmão colocado em Lourosa, Santa Maria da Feira, como primeiro auxiliar do velho Padre Carqueja. Foi um tempo fabuloso de novas experiências, de contacto com um mundo cheio de crispações e em ebulição, onde se veio a gerar com o seu sucessor a já quase esquecida guerrilha, recentemente de novo relembrada com os episódios de recusa de acatamento da ordem do Senhor Arcebispo de Braga por parte dos paroquianos de Fafe e doutra povoação de Guimarães em aceitar a movimentação do pároco. Feito esse estágio, ainda cheio de jovialidade, foi enviado para a freguesia de Bustelo, em Amarante, de gente humilde, cheia de encanto e de histórias, moldada pela amplitude térmica e enormidade da serrania do Marão, a que pertence o lugar de Travanca do Monte, onde Teixeira de Pascoais teve casa apalaçada de repouso e onde muito se falava da valentia de António Cândido”, “Águia do Marão”. Nesta simpaticíssima terra de Bustelo teve oportunidade para conhecer as gentes,

os lugares e a serra, quantas vezes acompanhando pessoas que durante a noite fi cavam a velar junto dos campos de cultivo para impedir que os javalis, numa noite, dessem cabo do trabalho duma estação. Ali conviveu com o clero de Amarante, de Baião, de Mesão Frio, de Vila Real e tomou contacto com outras fi guras do Saber. E veio a breve prazo substituir o Senhor Padre Paiva, nas freguesias de Fornos e Sanfi ns, de Santa Maria da Feira onde permaneceu por mais de quarenta anos. Em Sanfi ns deparou-se com a construção do Centro Social e Paroquial, a que dedicou muita atenção, tendo contribuído decisivamente para o alargamento da área do arraial e completar uma obra que muito tem servido as suas gentes. Em Fornos abalançou-se a uma obra que fi cou notável. A remodelação da Igreja Paroquial de Fornos. Foi uma tarefa muito árdua para os paroquianos pelos valores envolvidos. Antes de mais, pelo rompimento de algumas peias culturais da Tradição. Não é fácil vencer a resistência à mudança: muito menos quando essa mudança implica gastos muito avultados para as posses de uma freguesia. Mas o povo de Fornos conseguiu superar essa difi culdade. O meu irmão, auxiliando e auxiliado por um condiscípulo - Padre João Bentes Pimenta, lisboeta de gema, já há muito falecido, que nunca conseguiu adaptar-se à vida de pároco - com ele idealizou a reforma da Igreja de Fornos, tendo elaborado um projecto que a Diocese aprovou. A veia artística do meu irmão encontra a máxima expressão nesta obra. Foi o Padre José Alves de Pinho quem estabeleceu as directrizes a que a remodelação deveria obedecer, quem acompanhou a elaboração e execução de tal projecto. Resultou uma obra digna, mesmo ímpar, de estética, de proporções adequadas, verdadeiramente merecedora de visita. Posso dizer que a igreja paroquial de Fornos fi cou um dos Templos mais belos e acolhedores da diocese do Porto, merecendo frequentes visitas de estudiosos. Após essa obra e agora com o apoio de dedicados paroquianos também se abalançou à criação do Centro Social e Paroquial de Fornos que concluiu; às obras de conservação da capela de Santo António da Lage e bem assim ao restauro da residência paroquial. A par desta vertente de criação material de obra nova, o meu irmão nunca abandonou o estudo das questões culturais, a par obviamente do desempenho do seu múnus pastoral.

De pé Lurdes, Armindo, Padre Zeca, Adelino (Pai), Quim, Joaquina Rosa (Mãe) e Lúcia. 02/09/1953

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A certa altura, numa conversa informal em que se achavam presentes várias personalidades com relevo na vida social e a propósito duma opinião emitida no sentido de que havia necessidade de consultar especialistas sobre a hermenêutica de determinada questão, o Senhor Bispo do Porto D. Armindo, apontando o dedo ao meu irmão respondeu ao seu interlocutor: “ Mas o Senhor tem na sua frente um especialista a nível nacional, sobre essa matéria !”. E, na verdade, o meu irmão tinha acesso na Torre do Tombo a documentos que apenas são acessíveis a especialistas. Documentos que lia com a facilidade de quem conhecia a língua latina, de quem tinha conhecimentos de grego, rudimentos de línguas indo europeias e sobretudo do português coevo da nacionalidade. Esta vertente cultural foi desenvolvida e aprofundada após impulsos que lhe advieram do contacto com o falecido Sr. Padre Alferes, um verdadeiro depositário do saber dos antiquários e do contacto com o renomado e insigne especialista (a nível mundial) Padre Domingos Moreira da freguesia de Pigeiros, um verdadeiro colosso linguista europeu. O meu irmão sempre procurou ter uma visão integral das terras que a si muito respeitavam. Dedicou a atenção a Sanfi ns por quem sempre nutriu um sentimento de profunda afeição; a Fornos - sede da sua paróquia - e à sua terra natal - Chave, concelho de Arouca. Nos estudos que dedicou a Fornos e a Sanfi ns, ao conhecimento da sua história, das suas gentes, das inúmeras casas senhoriais que albergam, das ilustres pessoas que a habitaram ou dela foram oriundas sempre se mostrou um profundo conhecedor, a ponto de conhecer mais da história de cada lar dos que os próprios familiares e componentes de cada agregado familiar. Escreveu inúmeros artigos que foram objecto de publicação; guerras liberais ocorridas nos limites da freguesia de Sanfi ns; um esboço da monografi a de Fornos; sobre o Senhor de Veiros, sobre a ponte da rainha, sobre a construção da igreja de Escapães, sobre a infl uência do Castelo da Feira na freguesia de Fornos, a par de outros estudos mais especializados e inúmeros artigos publicados na imprensa regional. Tinha um bojo de conhecimentos sobre esta região provindos das mais diversifi cadas fontes de informação histórica que abarcavam e ultrapassavam as terras de Santa Maria e lhe permitiam uma opinião avalizada sobre tudo o que era do passado e respeitava à região. Era um apaixonado

pelo conhecimento e interpretação do que o rodeava. Um verdadeiro Mestre em história da Arte. Não posso deixar de comentar a admiração com que duma vez fi quei quando em simples passeio a Santiago de Compostela entramos num Arquivo (museológico) e ali me ocupou uma tarde a ver documentos referentes à nossa terra natal (com a curiosidade de muitos dos lugarejos manterem ainda a mesma designação), levados para a Galiza no seguimento das fugas das populações às invasões árabes anteriores e contemporâneas do início da nossa nacionalidade. O meu irmão foi um Homem de saúde sempre frágil, dotado de superior inteligência, um curioso das artes, desde a música à linguística, que obteve a expensas próprias níveis de especialização nas mais diversas áreas da cultura, a nível universitário, sem jamais ter sido submetido a exames para a concessão de grau académico em tais domínios. Deixou a sua marca cultural neste rincão e a muitos uma visão do mundo que os aproximou de Deus e permitiu uma vida mais harmoniosa. Com a sua morte perdeu-se um cidadão de Cultura muito profunda, um Padre que mereceu da Diocese do Porto e do Clero uma referência, dos paroquianos uma grande consideração, dos amigos e familiares uma grande saudade, mas a mim, seu irmão mais novo e afi lhado, um sentimento de mágoa pela sua perda, que se não apagou e certamente se não apagará.

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82 Tons da cercania (para a Aurora)

Sérgio Pereira*

aspersão ritualizada do forno

sacode a penugem do planalto

da canseira da mina brotam

rosáceas e meteoros

convivência de ofícios no

refinar ancestral dos metais

timbre suculento do recife

arfagem das selhas na

aliteração rebelde dos campos

prenúncio subtil da coruja

arco-íris fundeado

no segredo do mármore

paradoxo das pegadas estelíferas

cegonhas atentas às

represálias da atmosfera

monda incontroversa

serpeando pelos socalcos

pudessem as nuvens jugular

a sede pedregosa do deserto

basta-me a largueza

da tua confiança

palavra rejuvenescida no

fulgor assimilável da montanha

testemunho da luz

na proximidade dos

gestos arbóreos

*Nasceu em 1958, na freguesia de S. João de Ver. Publicou seis livros de poesia: As Nove Visões do Xamã, Porto, Agosto Editores, 1996, Técnica do Escalpe, Porto, Agosto Editores, 1996, O Sol é Um Moccasin, Porto, Agosto Editores, 1996, Istmos e Hordas, Porto, edições Tomahawk, 1997, O Absoluto Reverso, edições Tomahawk, Porto, 1998, Convergência dos Ventos, Editora Ausência, 2000, (co-autor: António Teixeira e Castro).

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Frei Acaribe*

Em tempos idos, quando a fotografi a ainda não havia sido inventada, a humanidade, na ânsia de recordar os seus, ou as pessoas ilustres, recorria ao retrato não apenas registado na tela ou na escultura, mas também na descrição literária. Hoje, a fotografi a embora nos apresente uma realidade quase perfeita das pessoas, objectos e paisagens, pouco mais nos oferece do que a face objectiva, a realidade exterior. Pelo contrário, o retrato, tal como a escultura, vão mais além. Quando executados por um verdadeiro artista já nos permitem apreciar não apenas a objectividade exterior, mas também a subjectividade, a “alma”, sobretudo quando se trata da representação da pessoa humana. Tenhamos em mente, v.g. a estátua de “Moisés” de Miguel Ângelo, o “Desterrado” de Teixeira Lopes, etc. Todavia, onde melhor podemos penetrar em todo o “ser”, em toda, ou pelo menos em quase toda, a “alma” das pessoas é no retrato literário. E assim, quando pretendemos outorgar à posteridade a imagem mais completa de quem nos foi querido, ou de alguma personagem importante, nada melhor que a descrição, ou seja o retrato literário. Vêm estas considerações a propósito da sugestão que me foi

dirigida, (e que eu faço com todo o prazer e carinho), para escrever algumas palavras sobre o Rev.º Padre José Alves de Pinho. Começo por confessar que não tenho dotes de escritor e muito menos de escritor-retratista. No entanto, sempre consegui alguma coragem para exteriorizar o que me vai na alma sobre tão conceituado sacerdote. Não tive oportunidade de o conhecer na sua infância nem nos seus verdes anos do Seminário. Quando ele transitou dos estudos secundários para o Curso de Teologia no Seminário Maior do Porto, junto à Sé Catedral, já eu tinha deixado esse estabelecimento de ensino superior e estagiava em São João da Madeira. Recordo que foi ordenado sacerdote em Agosto de 1959 e de seguida nomeado coadjutor-estagiário na paróquia de Lourosa, deste concelho de Santa Maria da Feira, onde contactei com ele pela primeira vez. Só tive a honra e o prazer de conhecer melhor a sua personalidade e o seu carácter após a sua nomeação para as paróquias de Fornos e de Sanfi ns. Desde então, nos nossos encontros, quer nas actividades pastorais, quer e sobretudo nas tertúlias na casa do Sobral, em São João de Ovar, juntamente com outros colegas no sacerdócio e professores liceais, é que pude aquilatar da sua sabedoria e nobreza de espírito. A Igreja Católica atravessava então as grandes mudanças

In Memoriam - P.e José Alves de Pinho

* Professor. Historiador.

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levadas a efeito pelo Concílio Vaticano II. Os cristãos começavam a tomar consciência das suas responsabilidades em Igreja e tornavam-se cada vez (e muito bem) mais exigentes. Ser padre já não era tão fácil como no “antes-concílio”. Todavia, o P.e Pinho soube estar sempre à altura da sua missão. Jamais se poupou a sacrifícios para se entregar de corpo e alma e com toda a sua generosidade ao Povo de Deus que lhe tinha sido confi ado pelo seu Bispo. Mais que ser sacerdote, aquele que dá coisas sagradas, ele era o homem que semeava vida e, como tal, a todos acolhia e para com todos era compreensivo, independentemente dos seus credos políticos ou religiosos. A todos recebia e procurava guiar, (para não dizer aconselhar), com igual ternura de pai e pastor dedicado. E daí a grande admiração que todos nutriam pela sua pessoa. Sempre, como homem de Deus, e movido pela força do Espírito, ele soube estar atento aos sinais dos tempos. Sempre procurou acompanhar os que mais necessitavam da sua presença, do seu auxílio. Poderia dizer-se que o seu lema era “chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram”. (A dor partilhada é menos dor e a alegria mais contagiante). Sempre no seu rosto (o mal e o bem, à cara vem), se podia ler a alegria e a paz interior do seu dever cumprido.

Dele escreveu o P.e Machado, Pároco das Caldas de São Jorge, por ocasião das suas Bodas de Prata como Pároco de Fornos e Sanfi ns:.....”gentil, simpático, inteligente e empreendedor, exímio escritor, historiador e literato de uma cultura invejável com largos créditos e pergaminhos esparsos pelas Revistas Distritais de Aveiro e publicações concelhias… etc.” Na realidade, ele não se quedou nas suas lides apostólicas de Pastor dedicado ao seu povo na Liturgia dos Baptismos, Casamentos e Funerais, na organização da Catequese, na Proclamação da Palavra de Deus, no Campo Social... etc. Não. Ele foi muito mais longe. Quem lê os seus trabalhos de pesquisador e historiador que conseguiu publicar, v.g. “Outrora... Fornos”, “O Brasão de Fornos”, “Sanfi ns de Sobre Feira” etc., e os artigos vindos a lume na Revista “Vila da Feira”, da LAF, melhor conservará na memória quem foi e o que foi o nosso querido Padre Pinho: O” Homem” do Povo de Deus e o “Homem” dos Homens.

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Abade de Fornos - In memoriam -

Toda a vida foi pastorDo rebanho do SenhorPregando paz e amorPara salvação das almas.

Ainda na mocidadeJovem de tenra idadeViu traçado o seu destinoAo ver a dor de JesusCrucificado na cruzPelos pecados do mundo. Foi tão forte o chamamentoQue a partir desse momentoSe fez servo do Senhor.Desprezando honrariasBenesses e mordomiasQue a vida a todos promete,Foi pregar aos quatro ventos A religião do amor.

Pinho é, como eu souE em Fornos se fixouNesta terra que é minhaE este padre adoptou.Para uns é o padre PinhoPara outros com carinhoÉ o abade de Fornos.Muitas missas celebrouBaptizados, comunhõesCasamentos, funeraisE também muitos sermões.

Na confissão, confidenteEscutou histórias de genteDe pasmar e de corar.Histórias de gente boaDe amor e caridade,Mas também de sacanagem De miséria e de maldade,Que o ódio e o amorConvivem em sociedade.

Francisco Pinho*

* Director Comercial.

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Historiador preocupadoCom as coisas do passado,Vasculhou pelos arquivosAssentos e papéis antigosDifíceis de decifrar,Casamentos, baptizadosParentescos, uniõesE registos apagadosDe filhos não perfilhados ...Nomes de terras, brasõesEm alfarrabistas, leilõesLivros do patriarcado,Em português ou latimPor tudo quanto era lado.

Sem medo de intrigas vãsTomou firme decisãoDe modernizar a Igreja,Substituindo altaresDe talha barroca, douradaPor granito trabalhadoE painéis de azulejosAntigos e à mão pintados, Mantendo o templo cristãoMais moderno e apropriadoAo recolhimento e oração.

Pessoa de fino tratoDe educação esmeradaSensível à música erudita,Criou um grupo coralPara louvar o SenhorNa missa dominical.

Os dias de catequeseEram dias de alegriaCom sorrisos de criançasQue enchiam a sacristia,E o Padre Pinho encantadoEnsinando a oraçãoQue os jovens iam rezarNo dia da comunhão.

Preocupado com os velhosVencidos pela idade E alguns abandonadosPela nossa sociedade,Apoiou a fundação Dum lar da terceira idade Onde todos são estimadosCom amor e dignidade.

Chegado ao cinquentenárioDuma vida pastoralDedicada à comunidade,Quis o povo celebrarCom lustro e dignidadeAs bodas de ouro do padre,Rezando missa soleneE um banquete a preceitoPara agradecer ao padreTudo que ele tinha feito.

Nos bons e nos maus momentosQue a vida a todos reservaEsteve sempre presenteCom uma palavra amigaE a sua oraçãoConsolando os que cá ficamAbençoando os que se vão.

Ia o pastor já cansado De tão longa a caminhadaQuando o Senhor o chamouPara mandar descansarQuem já tanto trabalhou

Na hora da despedidaCom palmas, emocionados,Os amigos mais chegadosEm homenagem sentidaDe gratidão e carinhoDisseram adeus ao pastor- Obrigado Padre Pinho!.

Fornos , Junho de 2010

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87 UMA POLÉMICA EXEMPLAR E MEMORÁVEL ENTRE AQUILINO RIBEIRO E D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE

Manuel de Lima Bastos*

Para melhor se compreender a justa que pelos idos de 1940 se travou nas páginas do suplemento literário do jornal de orientação católica Novidades – de conhecido pendor salazarista que o seu director, Monsenhor Moreira das Neves, sempre lhe imprimiu e salvo as excepções de alguns colaboradores ainda que ocasionais como é o caso de D. Sebastião Soares de Resende, futuro primeiro bispo da Beira – comecemos por apresentar os contendores com uma breve resenha biográfi ca.

Eça de Queirós, pouco tempo depois de Antero de Quental falecer, tendo sido seu amigo e admirador desde os anos de estudo em Coimbra, acompanhando--o mais tarde em Lisboa na realização das célebres Conferências do Casino e mantendo durante toda a vida esse relacionamento afectuoso, escreveu um sentido in memoriam no qual invocou Antero como o poeta que foi um santo. Aliás era comum os amigos, ainda em vida do vate e fi lósofo açoriano, usarem chamar-lhe Santo Antero por ter exercido nas gerações do seu tempo um magistério moral e político de líder incontestado.

Permitam-me, a propósito do padre Dr. Sebastião Soares de Resende, talhado para vir a ser o futuro 1º bispo da Beira, que utilize expressão semelhante invocando-o neste texto também, e sem favor, como o bispo que foi um santo. Os que não conhecem a sua vida e a obra apostólica que realizou na formação e na defesa das populações negras em geral e das da diocese da Beira de que foi o primeiro prelado em particular, fi carão inteirados das razões que me levam a erguê-lo a essa suprema dignidade e a colocá-lo no supedâneo dos altares muito embora reconhecendo-me sem poderes para o efeito. Nem por isso deixa de ser santo do meu íntimo devocionário. Este bispo, meu conterrâneo das Terras de Santa Maria da Feira, nasceu a 14 de Junho de 1906 na freguesia de Milheirós de Poiares e, depois de ordenado, foi para Roma frequentar a Pontifícia Universidade Gregoriana onde obteve a licenciatura em Teologia e o doutoramento em Filosofi a acrescidos pelo curso em Ciências Sociais na Universidade de Bérgamo, no norte de Itália. Um percurso escolar praticamente idêntico ao da outra grande fi gura prelatícia das Terras da Feira, D. Moisés Alves de Pinho, bispo de Angola e Congo desde 1932 e depois primeiro Arcebispo de Luanda, natural da minha freguesia de Fiães e primo de minha avó paterna. Sendo mais velho que D. Sebastião, deu bem conta da violentíssima desumanidade com que o Estado Novo tratava as populações de cor logo que encabeçou esse bispado geral, e mais tarde o arcebispado

*Advogado. Devoto Aquiliniano** Este artigo foi publicado no número anterior com omissão de texto, pelo que procedemos à sua republicação. Do facto pedimos desculpa ao autor e aos nossos estimados leitores.

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luandense, durante trinta e quatro anos e resignando da dignidade em 1966 já muito depois do início da guerra colonial em Angola. Foram as duas fi guras eclesiásticas naturais das Terras de Santa Maria da Feira que deixaram mais indelével marca no século XX português quer pelo extraordinário gabarito intelectual quer pela obra de evangelização que levaram a cabo nas suas dioceses africanas à revelia do poder ditatorial da época. Um, D. Moisés, sempre com a mansidão que procura evitar o afrontamento mas com a fi rmeza na prossecução do que entendia ser o seu dever apostólico ao serviço dos mais desafortunados e desprotegidos que eram justamente os indígenas negros. O outro, D. Sebastião, mais combativo e mais apaixonado no que julgava ser exigência indeclinável da sua recta consciência de cristão perante a situação degradante dos negros na dita província de Moçambique que o ofendia na sua condição de homem e de sacerdote e perante a qual não podia nem queria fechar os olhos lavando as mãos farisaicamente como via fazer os seus colegas de outras dioceses que gozavam das mordomias e boas graças do poder político. Quem quiser dar-se ao trabalho de ler o seu Diário Íntimo, de que mais adiante se farão algumas citações, verifi cará a coragem e o denodo deste antístite e os trabalhos que lhe fi zeram passar por ter ousado pôr à frente dos interesses dos senhores do regime político os valores do humanismo cristão e os irrefragáveis ditames que a voz da sua consciência esclarecida lhe impunham observar. Regressado de Itália exerce o professorado no Seminário Maior do Porto sendo um ano depois nomeado vice-reitor. Em 1935, na companhia do Padre António Ferreira Gomes – que viria a ser bispo do Porto e deixou tão excelente memória que ainda hoje mora no coração dos portuenses crentes e não crentes por ter ousado erguer a voz perante a prepotência do regime bárbaro, o que lhe valeu prolongado exílio – ascenderam a cónegos da Sé Catedral. Feito 1º bispo da Beira em 1944, foi criar as estruturas da sua diocese a partir do nada pois nada existia. Nisso empenhou a sua inteligência, o seu esforço de homem franzino de físico e débil de saúde, mendigou auxílio económico para a obra de vulto na qual enterrou tudo quanto tinha, até a legítima que herdara de seus pais e disso dá conta no comovente testamento que deixou.

Participou nos longos trabalhos do Concílio Vaticano II fi cando conhecido como o participante com maior número de intervenções e poderemos concluir, sem receio de errar, que aderiu de alma e coração aos novos ventos que arejaram e renovaram a instituição que há séculos, provavelmente desde Trento, sofria do anquilosamento de se ter fechado sobre si própria ignorando os padecimentos da maior parte da humanidade a quem falta o pão, a justiça e a compaixão e ao serviço da qual é suposto que deveria estar. Chegado à Beira, logo se apercebeu que defrontava uma sociedade alicerçada no mais cruel e ostensivo esclavagismo. Do seu Diário Íntimo permito-me citar: A escravatura já passou à História e é preciso que cesse o abuso de se construir grandes fortunas com sangue de preto. Mais adiante: Impera na Beira a escravatura. Não há maneira de se convencerem que os pretos são pessoas humanas. Depois de se ter deslocado ao gabinete do governador da época, relata: Diz sua excelência que para si o depoimento de pretos não vale nada! Que bela fazenda jurídica! Desgraçados pretos regidos por homens destes! Ainda e novamente: A escravatura existe em Moçambique, não há dúvida e é em forma bem rígida. Finalmente porque o pano dava ainda para muitas mangas: Há necessidade de outro dia 1 de Dezembro para libertar Moçambique da canalha do Ministério do Ultramar a começar pelo ministro que se chama Ventura e que é uma autêntica desventura! Refere que Salazar está cercado de uma verdadeira canalha e já não diz que não. Recordo que também li algures que utilizou a palavra negreiro referindo-se ao então chefe de governo. E, coisa espantosa para a época – 1963 – afi rma que Moçambique tem os seus direitos e uma vez que isso seja possível deve tornar-se independente. Com negros e brancos a governar. Atente-se no arrojo da afi rmação e desculpe-se a ingenuidade dos brancos e negros a governar harmonicamente o país já que as feridas eram muitas e estavam longe de cicatrizar. Teria sido possível, sim, se umas gerações antes, talvez por fi nais da segunda guerra mundial e com a vitória dos aliados, Portugal se tivesse democratizado na metrópole e nas ditas províncias ultramarinas começando a construir um futuro na base da igualdade étnica e investindo na formação de quadros sem olhar à cor da pele. Esta visão do mundo colonial de então que o bispo da Beira não se cansou de denunciar quer pela sua própria voz quer pela voz do Diário de Moçambique que foi a tribuna que

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mais frequentemente utilizou apesar de sistematicamente amordaçado pela censura que lhe amputava as partes principais das pastorais no que contava com a miserável anuência do arcebispo de Lourenço Marques D. Custódio Alvim Pereira que, esquecendo a sua dignidade eclesial, não era mais que um sabujo lacaio do regime colonialista (disto o bispo da Beira não se coíbe de o dizer embora de forma mais amena). Para cúmulo da desvergonha desse arcebispo que agiu sem honra nem glória ao serviço do colonialismo mais retrógrado e abrutalhado, há poucos meses ouvi-o afi rmar na televisão – certamente em gravação mas de há poucos anos e no estado de resignatário – que de nada se arrependia pois nada lhe pesava na consciência e que voltaria a agir da mesma forma apoiando sem reservas o regime nefando. Lá saberá as linhas com que se cose e as explicações que dará quando lhe pedirem contas. Aliás diz-se que, com a vacatura do arcebispado de Lourenço Marques, a Cúria de Roma terá proposto ao governo português o nome de D. Sebastião Soares de Resende para o cargo. Salazar, com o seu reduzido e ultramontano sentido de humor, terá mandado responder ao Núncio da Santa Sé em Lisboa “que já lhe chegava um”! Referia-se obviamente ao caso do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, com o qual a Igreja Católica, por uma vez e para salvar a honra do convento – louvores ao Altíssimo! – se portou com coragem e fi rmeza ao persistir na recusa da sua substituição e nomeando administrador apostólico D. Florentino Andrade e Silva apenas para gerir provisoriamente a diocese dado o impedimento do seu titular de direito. Mais tarde, reintegrado D. António Ferreira Gomes no lugar que lhe competia, premiaram o administrador burocrata dando-lhe o osso, com uma pouca de carne para esburgar, do bispado do Algarve e tudo acabou em bem aos olhos de Deus e do mundo. Mas não foram duas nem três as vezes em que me foi dado assistir ao espectáculo indecoroso de prosélitos salazaristas que se afi rmavam católicos rilharem os dentes de raiva e de despeito quando D. Florentino de Andrade e Silva teve de levantar o rabo do cadeirão episcopal da Sé do Porto para que o verdadeiro dono do lugar nele tomasse assento. Ao longo dos quase vinte e cinco anos de episcopado na Beira – de 1943 até à sua morte aos 25 de Janeiro de 1967 vítima de cancro e após largo calvário – o bispo missionário de fi gura frágil e ascética manteve-se impertérrito na defesa e protecção dos seus diocesanos de cor e na denúncia

dos crimes que sobre eles a população branca e as forças de segurança repetidamente cometiam, o que lhe valeu o ostracismo e o desprezo do poder político local. Contudo esse magistério de infl uência moral teve consequências. Cito apenas duas: a quando duma visita a Nova Iorque entrevistou-se com o então senador pelo Massachussets, John Kennedy, que viria a ser pouco tempo depois eleito presidente dos Estados Unidos da América o qual, integrado numa comissão do Senado, queria obter informações fi dedignas da real situação nas colónias portuguesas e da veracidade da fi cção jurídica das províncias ultramarinas e da nação pluricontinental que os ideólogos do regime queriam impingir aos seus aliados, em particular aos governos dos países que integravam a Nato. O bispo da Beira descreveu a situação com lisura e verdade e o certo é que Kennedy, eleito presidente, alterou de imediato a política de certo apoio envergonhado á tese portuguesa de que as colónias de África eram o último bastião de defesa do mundo ocidental contra o comunismo o que fez pender defi nitivamente a balança diplomática para o lado dos movimentos a favor da autodeterminação e independência dos territórios sujeitos ao regime colonial. O outro episódio marcante ocorreu entre o bispo da Beira e o novo Ministro do Ultramar, Professor Doutor Adriano Moreira. Este teve a má lembrança de pedir ao prelado que lhe fi zesse chegar umas notas recomendando certas medidas que, do ponto de vista político e dentro do possível, aliviassem a insustentável situação de miséria em que se encontravam os indígenas de cor. O bispo anuiu e fez-lhe chegar as suas sugestões. O ministro, bem intencionado mas com rédea curta, teve a ainda pior lembrança de aceitar timidamente algumas, poucas, das sugestões do prelado. Não aqueceu o lugar ministerial porque Salazar reencaminhou-o, com guia de marcha imediata, para o professorado universitário donde viera. E assim lhe cortou cerces as veleidades reformistas. E então perguntem-me: era este D. Sebastião Soares de Resende um perigoso revolucionário provavelmente imbuído do espírito da dita teoria da libertação que proliferou mais tarde pelo terceiro mundo faminto e de que ele seria um prosélito e arauto avant la lettre? Ou faria parte daquele pequeno número de teólogos heresiarcas aos olhos do Vaticano que surgiram aqui e além como focos infecciosos defendendo que a missão eclesial que continha a verdadeira lição de Cristo era a de estar no meio dos pobres e dos oprimidos e abjurar do poder,

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da riqueza e das pompas do mundo? Não!!! O bispo que o regime salazarista mais temeu e odiou e com a sua acção mais solapou os fundamentos desse mesmo regime era considerado por seus pares como um conservador em matéria doutrinal e até um tomista ferrenho!Porém, sendo certo que o pior cego é o que não quer ver, a D. Sebastião Soares de Resende não lhe era possível, por rectidão de carácter e imperativo de consciência, negar a barbárie que os seus olhos diariamente tinham diante de si e pese embora a formação clássica conservadora. As suas intervenções conciliares condenando sem apelo nem agravo as ditaduras, fossem de que natureza fossem, bem como o colonialismo marcaram a diferença e mudaram as consciências de muitos dos participantes na magna assembleia vaticana. Desde que foi indigitado para a prelatura e até à sua morte, na Beira ou noutra parte do mundo para onde viajou, na saúde ou nos anos fi nais da doença que o vitimou e até durante os trabalhos conciliares, sempre foi acompanhado pela polícia política como se fora um perigoso agente subversivo – que o era realmente pois são homens destes que, na perseverança das suas convicções, fazerem cair as ditaduras – tendo sido encontrado o seu processo, volumoso de mais de quatrocentas páginas, após o 25 de Abril. Mas foi este homem de origem rústica e humilde que entrou para a pequena plêiade dos privilegiados que tiveram a honra de, na sua esfera de acção e pensamento, imprimirem dedada indelével na época em que lhes coube viver. O seu testamento consigna que os poucos e desvaliosos objectos pessoais que deixou fi cariam pertença da Igreja a quem já tinha dado tudo o que lhe coubera neste mundo: o pequeno património herdado, o seu trabalho iluminado pela rara inteligência e amor ao próximo, até a sua saúde exaurida pela doença quando cumpria sessenta anos. Deixou escrito que queria ser enterrado no cemitério da Beira em campa rasa e onde colocassem uma pequena pedra dizendo que ali jazia Sebastião, primeiro bispo da Beira. Exarava também o desejo de que o seu caixão, em algum momento, fosse levado aos ombros por cristãos africanos. Parece que o acompanharam nessa última jornada mais de 30.000 negros e umas dúzias de brancos, quase todos seus colaboradores e colaboradoras e dizem que ainda hoje, mais de quarenta anos volvidos, a sua campa humílima raro é que se não encontre coberta de fl ores silvestres. O novo poder político da nação moçambicana teve

o decoro de respeitar a obra de apostolado que deixou e de manter o seu nome na memória das gerações que lhe sucederam. E tenho para mim que as humildes fl ores que sempre lhe vestem a campa ou vêm das mãos de fi lhos e netos de negros agradecidos ou nascem sponte sua das cinzas do homem bom que ali jaz agora integradas no seio eterno da mãe natureza.

Foi com este notável Dr. Sebastião Soares de Resende, ao tempo vice-reitor e professor do Seminário Diocesano do Porto, que Aquilino Ribeiro se travou de razões nas páginas do suplemento Letras e Artes do jornal católico Novidades em brava mas correcta polémica contida em três artigos publicados por cada contendor em resposta ao do antagonista embora tenha sido o futuro bispo da Beira o primeiro a sair à estacada e a dar lugar à controvérsia. Que dizer de mestre Aquilino Ribeiro, já na época unanimemente considerado o maior prosador das letras portuguesas do século XX, com nome feito e autor de obra de tal vastidão e qualidade que foi – e ainda hoje é – tida como um dos primeiros monumentos literários da língua portuguesa com qual talvez só possa ombrear a que nos foi legada por Camilo Castelo Branco? Enquanto o então cónego Dr. Sebastião Soares de Resende era fi gura pouco conhecida e por isso impôs-se que nas páginas anteriores lhe desenhássemos o esquisso a traço de carvão grosso embora com algum detalhe, já o mesmo se não justifi ca fazer em relação a mestre Aquilino Ribeiro, tão sobejamente é conhecido o seu nome, certas obras e algumas ocorrências da sua vida. Contudo, face ao percurso escolar e ao curriculum de D. Sebastião, é preciso acentuar que o escritor em nada lhe fi cava atrás em conhecimentos e altura intelectual. Aquilino, além de ter frequentado durante quatro anos o curso de Filosofi a na Sorbonne durante o seu primeiro exílio em Paris, foi um autodidacta a quem todos os campos do conhecimento humano interessavam e adquiriu cultura e saber tão vastos que poderemos considerá-lo um enciclopédico. Foi também um apaixonado cultor de línguas vivas pois, como forma de ganhar a vida nos anos da sua juventude, traduziu diversas obras em voga na época do francês, do espanhol e do italiano. A sua primeira tradução foi desta última língua: Il Santo do escritor italiano António Fogazzaro. Mais tarde, a sua versão do castelhano para o português da obra-

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prima de Cervantes D. Quijote de La Mancha foi considerada exemplar pois ao génio do espanhol juntou-se o génio de Aquilino Ribeiro que, em tradução um pouco livre, nos trouxe o verdadeiro espírito da obra cervantina que constitui, com outra dúzia e meia de livros, o cerne do património literário da humanidade. Mas foi sobretudo um profundo conhecedor do latim e do grego tendo deixado traduções de qualidade ímpar, quase sempre precedidas de proémios do maior interesse para a compreensão dos textos. Apenas a título de exemplo, refi ro a a tradução modelar da obra do grego Xenofonte, Anabase, que Aquilino verteu para português sob o título A Retirada dos Dez Mil. Também são bem conhecidos o carácter e o modo de ser do escritor. Se à sua proverbial honradez, procura incessante de criar obra original, utilização da língua pátria com inigualável maestria e pureza com o recurso sistemático às fontes do vernáculo juntarmos o trabalho denodado e sem descanso de quem viveu uma vida inteira, sentado à sua banca de trabalho, apenas dos precários e magros proventos da escrita, desenha-se o contorno do seu vulto. Acrescendo a tudo isto a independência e braveza de feitio resultantes da sua condição de serrano da Beira Alta pobre, isolada do mundo e ignorada pelos poderes públicos, começa a entremostrar-se o interior deste homem. Vivendo a maior parte do ano na cosmopolita Lisboa desde a juventude até à sua morte em 27 de Maio de 1963 e não considerando o tempo dos vários exílios em que penou pelo estrangeiro e, mais tarde, de algumas viagens que por lá fez (Inglaterra, Brasil, etc.) é uma surpresa constatar – como eu pude constatar ao ouvir, dezenas de anos mais tarde, a sua voz numa gravação que possuo duma entrevista radiofónica que concedeu a Igrejas Caeiro – que o tom e a forma de falar continuam a ser os de um escarrado labrego das serranias beiroas pese embora o longo contacto citadino do perfeito civilizado culto que Aquilino sempre foi. Ouvindo apenas o seu falar de rústico, já tão longínquo no tempo, ninguém tal juraria. Como natural consequência deste somatório psicológico - e se os meus pios leitores me consentem a expressão brasileira - o escritor não era homem para levar desaforo para casa. Não sendo um colérico e impondo-lhe a sua condição de homem inteligente, culto e educado que não estrebuchasse por caso menor ou por uma bagatela qualquer, para mais

conhecendo como poucos a natureza ignara, naturalmente atrevida e displicente do português vulgar de Lineu, não ia às do cabo por dá cá aquela palha. Mas, sendo um insofrido com pouca paciência, às vezes nenhuma, para aturar os dislates do compatriota que se permitia incomodá-lo, algumas vezes saiu do seu sério e pegou do pau de lódão do Malhadinhas para varrer da feira alguns impertinentes ou malcriados. Foi o que sucedeu, e confi gurou com certeza o episódio mais sério de todas as disputas que travou, com certo fi gurão que era ao tempo professor catedrático numa faculdade de letras, politicão indefectível do regime e do seu chefe e que gostava de exercer o ofício de crítico literário onde bolsava a sua pesporrência professoral usando o pseudónimo de todo abstruso de Mazulipa. Fartou-se este fulano de zurzir o escritor sem descanso na imprensa afecta ao salazarismo chegando ao descoco de afi rmar que o mestre da língua deixava muito a desejar quanto à qualidade da sua prosa e dando como exemplo que Aquilino frequentemente usava da adjectivação com impropriedade.O escritor foi aguentando com paciência que se diria evangélica se não fora a sua proclamada condição de materialista mas tudo tem um limite e o tal crítico de meia tigela, Mazulipa como se auto-crismou, acabou por passar as marcas do humanamente suportável. Não sendo o escritor do género de oferecer a outra face, para grande azar do desenvergonhado Mazulipa, cruzaram-se uma manhã no Chiado. Aquilino levava na mão um guarda-chuva prevenindo-se do tempo sarrafusco. Quando o escritor se apercebeu da presença do caluniador a pouca distância de si e que há anos o azucrinava impiedosamente, deve ter pensado: nem é tarde nem é cedo, hoje é que vamos acertar as contas todas. E vai de lhe aplicar no lombo gordafulho umas quantas guarda-chuvadas à boa maneira camiliana até a cana do abrigo pluvial tocar a rachado. Parece que o crítico borra-botas encenou a sua apresentação num hospital para receber tratamento ao canastro mal ferido, levantou-se longo babaréu nas hostes situacionistas com senhoras do regime a levarem fl ores à vítima e mais acções de desagravo pela cobarde agressão, enfi m toda a parafernália habitual a que deitavam mão os politiqueiros da época quando um dos seus apanhava, ainda que em sentido fi gurado, para seu tabaco. Aquilino fi cou na sua, terá reconhecido para com os seus

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leitores que agira mal mas em desespero de causa por já não poder aturar mais os coices que o indíviduo lhe propinava a torto e a direito e concluiu, com a sua manhosice de beirão que não renegava das palhas onde nascera, que o seu remorso pelo incidente não ia além de pensar que só se perderam as que caíram no chão. Ora não é que, poucos meses andados, vai desta para melhor o Mazulipa em cujo costado o escritor tão desenfadamente aplicara o guarda-chuva vingador? Soube da notícia quando estava a dar uma entrevista ao Rádio Clube Português, se a memória me não falha. É claro que o jornalista entrevistador não perdeu a excelente ocasião para lhe pedir um comentário sobre o infausto decesso. O mestre prosador, com a consabida voz de labrego das alturas das serras da Nave e da Lapa, deu-lhe uma resposta repentina de um humor tão cáustico que nem à veia ácida do próprio Camilo Castelo Branco ocorreria: vão verifi car que o defunto tinha uma qualidade de que mais ninguém se gaba. A morte não lhe vai aumentar a podridão! Com o que fi ca dito, afi gura-se que o pio leitor poderá fazer o seu justo juízo da valia intelectual dos dois polemistas. Um, declarado materialista mas sempre homem de espírito, de cultura e honradamente frontal, limpo de carácter e de consciência. O outro, sacerdote católico, exibindo idênticas virtudes morais e com estatura intelectual e cultural em nada inferior à do seu antagonista à parte a divergência das convicções, sinceras e fi rmes em ambos. Feitas as apresentações, vamos então à polémica famosa que só não deu mais brado por não ter havido nem bofetadas nem bengaladas, antes e apenas o mais sereno e delicado contrapor de ideias e argumentos. É o próprio Aquilino Ribeiro que nos conta que, nos princípios do século XX e logo depois da implantação da República em Portugal, quando frequentava o curso de Filosofi a na Sorbonne entre 1910 e 1913, deu-se ao trabalho de fazer a tradução da obra de António de Gouveia Responsio pro Aristotele, a que deu o título Em Prol de Aristóteles, tendo em vista a apresentação da tese no fi nal do curso e fazendo questão que tratasse de tema português dando a conhecer um autor que teve nome famoso na cultura clássica europeia. E nos intervalos da estúrdia parisiense anterior à primeira guerra mundial a que também dedicou boa parte do seu tempo lá foi fazendo a tradução que, com o regresso a Portugal sem concluir a licenciatura, fi cou quase trinta anos a jazer

esquecida no fundo de uma gaveta. António de Gouveia e seu irmão André de Gouveia eram naturais de Beja e de origem judaica. Foram reputados professores, humanistas e pedagogos bem conhecidos nos meios culturais da Europa de Quinhentos e especialmente em França onde exerceram a sua actividade. António de Gouveia, além da obra Responsio pro Aristotele de que Aquilino fez a tradução para português, é autor das Epistolae e da Opera Iuris Civilis que constituem as suas obras maiores. Leccionou em várias escolas francesas e na de Turim e manteve correspondência com literatos e fi lósofos do seu tempo ligados à reforma luterana. Quicherat fez-lhe o elogio chamando-lhe chevalier errant de l’éloquence et de l´érudition. Foi em Toulouse que leccionou durante largos anos e escreveu a maior parte da sua obra vindo a falecer em 1566. Seu irmão André foi nomeado reitor da Universidade de Paris em 1533 e em 1537 concederam-lhe o título de doutor regente de toda a Universidade para ler sempre publicamente a Sagrada Escritura em nome da dita Universidade. Quando D. João III decidiu empreender a reforma da Universidade de Lisboa e transferi-la para Coimbra, convidou André de Gouveia e mais alguns mestres portugueses que ganharam fama no estrangeiro – quase todos provenientes de famílias hebraicas – para introduzir no ensino universitário o novo pensamento pedagógico e fi losófi co mais em voga na Europa fi el a Roma. André de Gouveia foi encarregado de dirigir o Colégio das Artes na novíssima Universidade de Coimbra mas a sua sorte foi ter falecido em 1547 pois D. João III mandou às urtigas os bons propósitos de reformar o ensino logo que, ao fi m de uma batalha de anos na Cúria Vaticana, conseguiu a bula do pontífi ce Júlio VII que autorizava a instituição do Santo Ofício em Portugal. Os insignes professores portugueses chamados do estrangeiro para reformar a instituição agora instalada em Coimbra eram na sua maioria marranos, isto é, cristãos-novos e tiveram que rapidamente dar às de vila-diogo para escapar às garras aduncas do terrífi co tribunal eclesiástico. Alguns mais confi ados que se deixaram fi car por cá contando com a protecção do rei beato e de vistas curtas acabaram quase todos com o envoltório carnal reduzido á pouco agradável condição de torresmos mas com a alma eterna alvinitente e dealbada pelo lume das fogueiras da Inquisição.

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O próprio Damião de Góis, fi gura ímpar da cultura portuguesa de sangue limpo de cristão-velho, criado no paço real, companheiro dos folguedos de juventude de D. João III que durante largos anos chefi ou a Feitoria de Flandres e por isso contactou com fi guras gradas das novas correntes do pensamento fi losófi co, a começar em Lutero e a acabar no suavissimus Erasmus em casa de quem chegou a comer e dormir por várias vezes, sofreu a perseguição encarniçada de um jesuíta português que conhecera em Itália e com quem travara polémica de que saiu vitorioso. O religioso jamais lhe perdoou a superioridade intelectual e denunciou-o por três ou quatro vezes à Inquisição. Valeu-lhe a protecção do ao tempo inquisidor-mor, Cardeal Infante D. Henrique, para se safar com apenas meia dúzia de anos de cárcere na Batalha e, após essa longa detenção, lhe terem comutado a sentença de prisão perpétua em que havia sido condenado permitindo que regressasse à sua casinha de Alenquer onde acabaria por ser assassinado como demonstrou uma perícia médico-legal feita ao seu esqueleto quase quatrocentos anos depois e que detectou grande rombo num dos ossos parietais do crânio assim se demonstrando que foi vítima de morte violenta. Como um entalhador de madeira que, quando lhe dá na gana, se ocupa a fazer trabalhos para os quais não prevê utilidade imediata, o escritor foi sacudir o pó à sua tradução da obra de António de Gouveia e deu-a à luz titulada Em prol de Aristóteles e precedida por um preâmbulo no ano de 1940 em edição da Livraria Bertrand. Tinha esse pecúlio a um canto, movimento-o, é a razão que nos dá para a publicação. Neste mesmo ano de 1940 o mestre entregou também aos prelos a monografi a Oeiras e as novelas que compõem a obra O Servo de Deus e a Casa Roubada. De tudo isto e mais algumas coisas dá notícia Aquilino Ribeiro no capítulo IX da obra Abóboras no Telhado que tem o subtítulo Crítica e Polémica. Será esse capítulo, neste texto, o bordão de cego que nos guiará pelo caminho a seguir e muito em particular os passos da controvérsia com o então cónego Dr. Sebastião Soares de Resende a propósito do preâmbulo introdutório que antecede a tradução do texto Em prol de Aristóteles de António de Gouveia. Logo a abrir o referido capítulo Aquilino dá-nos conta que publicou no falecido (em má hora, pois foi o meu jornal durante algumas décadas) Diário de Lisboa as razões que o levaram a publicar a tradução de obra e de autor já perdidos

na lonjura do tempo e para mais tratando de tema que muitos certamente vão considerar demodée e sem interesse cultural na actualidade. Justifi ca-se nesse artigo jornalístico sustentando que Aristóteles é uma coluna de bronze do entendimento humano. Quando cair, acabou-se o mundo. E faz a si próprio a pergunta: E António de Gouveia? António de Gouveia é um grande nome do panteão nacional, corriqueiro nos meios eruditos. Relembra que a tradução remonta aos seus tempos de moço estudante de vinte e poucos anos que estudava na Sorbonne parisiense calcorreando os caminhos árduos da fi losofi a. Que a obra em si, como súmula do debate que o autor António de Gouveia travou com Pierre de la Ramée - Petrus Ramus - em torno da obra maestra de Aristóteles, o Organon, não traz nada de novo uma vez que já foi dito praticamente tudo sobre o Estagirita acrescendo que não há debaixo da rosa do sol coisa alguma de novo a dizer sobre Aristóteles como se poderia ler no Eclesiastes. Mas sobre António de Gouveia está na convicção de que descobriu algumas ninharias novas. Sustentando muito embora que a polémica quinhentista entre os referidos contendores teve o mérito considerável de clarifi car a questão do ensino da lógica afi rma que foi como se limpassem uma bela estátua de mármore, uma estátua de Fídias, sepultada há séculos debaixo da terra, da ganga aderente. Na época da sua publicação o livro de Gouveia Responsio pro Aristotele não suscitou qualquer interesse passando desapercebido no meio do pensamento fi losófi co do tempo. A própria polémica entre Gouveia e Pierre de la Ramée foi pouco conhecida na altura pois pode considerar-se como fazendo parte dum dos ramos secos da árvore da ciência humana uma vez que o aristotelismo lógico entregara-se a esse labor insano e fútil comparável no resultado a querer vindimar uma vinha vindimada. Diz Aquilino que a tradução com seu prefácio fez nos meio intelectuais menos barulho ainda que uma pedra jogada a um lago profundo e adormecido. Pergunta a si próprio, com certa razão, se verdadeiramente existe uma cultura portuguesa e se nos meios universitários não há mais que uma espuma iriada dessa cultura advinda do papaguear das sebentas e dum ou doutro esvaído eco do movimento das ideias através do mundo em ebulição. Onde realmente a tradução provocou alguns engulhos foi nos meios afectos à Igreja. Melhor dizendo: a tradução

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não suscitou quaisquer críticas nem no meio eclesiástico em geral nem ao futuro bispo da Beira, seguramente por ter sido considerada idónea e, por isso, meritória. O que provocou o evidente enfado desse sector religioso proveio do prefácio e foi este que, ao fi m e ao cabo, deu exclusivamente origem à polémica acirrada mas correcta e cortês entre ambos, escritor e sacerdote. Aquilino justifi ca o teor do proémio, que deu origem ao subsequente debate de ideias, por ter contendido com a visão que certos dignitários religiosos tinham da época e do seu circunstancialismo histórico mas argumenta que não poderia deixar de situar o debate pré-renascentista nesse portal do tempo português e europeu com especial relevo para o papel constritor e intimidatório que a existência da Inquisição desde logo provocava no modo de vida e na obra intelectual dos que lhe receavam o exame censório, quase sempre o passo antecedente para lhes vestirem o sambenito ritual com que percorriam o caminho que levava à fogueira expiatória de pretensas heresias. Casos houve em que, cumprindo o supliciado os deveres mínimos de cristão, a acusação apenas se fundava em falta de zelo na assistência a actos de culto baseada na denúncia de que não era sufi cientemente misseiro! Os Gouveias, de Beja, chegaram a despir a samarra de judeus e a envergar a roupeta de sacerdotes para melhor governar a vidinha na terra de fanáticos e obcecados que era Portugal ao tempo de D. João III, o rei pio que dava o cavaquinho por assistir ao espectáculo odioso da queima do pretenso herético, se rebolava de gozo quando o penitenciado antes de exalar o último suspiro no meio das chamas pedia perdão e reconhecia os seus pecados e chorava de raiva e rangia os dentes quando nem o lume conseguia obter as palavras fi nais de arrependimento. Sincera ou não, a adesão deste António de Gouveia à fé católica, na qual recebeu ordens sacerdotais, fi zeram-no representar na polémica com La Ramée o papel de português fi el à doutrina ofi cial da Cúria romana em pugna brava com um cientista de Paris, inovador e iconoclasta. Refere ainda mestre Aquilino, em defesa do que verteu no prefácio, que não se podia ignorar a obra cavilosa dos jesuítas que, vistas bem as coisas, foram o poder absoluto neste país desde D. João III até D. José contra os desgraçados professores portugueses, quase todos cristãos-novos de origem hebraica, que foram contratados para leccionar e tirar a ramela nos

olhos do entendimento escolástico da universidade portuguesa com o seu saber moderno e depois abandonados sem dó nas garras do Santo Ofício que cevou o seu ódio nos que não conseguiram pôr-se a salvo da infame perseguição que lhes moveu. Diz o prosador emérito que estes estrangeirados eram os lídimos portadores da inteligência e memória nos tempos dos escravos e da pimenta com Lisboa por mercearia universal. Por todas estas razões Aquilino entendeu ter o dever de consciência de as abordar no prefácio da obra o que, ao cabo e ao resto, foi o que chamou a atenção de intelectuais do pensamento católico ligado à Igreja e em particular do Dr. Sebastião Soares de Resende que saiu em defesa da sua posição de teólogo conservador e tomista ferrenho. O escritor, no capítulo da mencionada obra onde explica as várias incidências da polémica, aceita a reacção porque no prefácio contendi com eles. Tinha de ser. Portugal, igreja, história, pensamento, letras, salvo raros parêntesis, são uma e a mesma coisa. Aceita que daí partiu a pedra atirada ao meu telhado em que naturalmente havia telhas de vidro.

Deu-me na ideia sintetizar a controvérsia entre o então cónego Dr. Sebastião Soares de Resende e Aquilino Ribeiro sob a forma de discurso directo, isto é, vertendo as razões de um e de outro contendor através de diálogo imaginário travado entre os dois o qual é de meu alvedrio e de minha responsabilidade. Desnecessário é dizer que, merecendo-me ambos igual admiração intelectual, a ambos protesto de igual modo o meu preito e faço vénia ao procurar ser de íntegra isenção, o que poderia jurar sobre os Evangelhos. Se aqui ou além o não fui, com benevolência leve o leitor magnânimo à conta de me ter falecido o engenho e nunca por parcialidade que é manha que não mora em minha casa. Saiu primeiro à estacada o Dr. Sebastião de Resende (SR) naturalmente após ter lido a tradução do livro e o seu prefácio com um primeiro artigo publicado no dito suplemento do jornal Novidades; contestou Aquilino Ribeiro (AR) aduzindo as suas razões; replicou com segundo artigo o sacerdote o qual mereceu nova resposta do escritor; fi nalmente treplicou o futuro bispo da Beira e assim se encerrou o dá cá, toma lá. Vamos então, sob a forma de diálogo libérrimo mas sintético e exacto na substância, ao que foi dito: SR – Li com grande interesse e cuidado a sua tradução

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da obra de António de Gouveia Responsio pro Aristotele e, se a tradução não me merece qualquer reparo, já o mesmo não posso dizer do prefácio. AR – E em que se funda o meu reverendo senhor para tal? SR - Começa por afi rmar que o Organon de Aristóteles, que a Universidade de Paris tinha erigido em doutrina própria, era estéril e conduzia à esterilidade. AR – Perdoará mas não atentou devidamente no que escrevi. Digo: o que tem de sólido e de vantajoso para o exercício da razão e boa disciplina das artes e das ciências, o vero e assombroso autor do Organon (que é o) código completo e defi nitivo do espírito humano. SR – Mas acrescenta que a dialéctica tinha-se tornado arte tão abstrusa que lhe chamavam ponte dos asnos como se para resolver qualquer questão fosse preciso passar necessariamente por aí. AR – Há um mal entendido entre mim e o Sr. Sebastião Resende. Sendo, como me informam, professor de um estabelecimento católico, de antemão aceito que tenha uma sensibilidade melindrosa para tudo o que contende com a base da religião. SR – Mas o certo é que o conteúdo do prefácio da obra acaba por redundar em menoscabo do pensamento do Estagirita. AR – Mas foi esse mesmo argumento que provocou o mal entendido que referi. Eu também admiro Aristóteles mas a dialéctica que me merece reservas é a mesma que o Sr. Sebastião Resende encerra neste conceito: Após duradoiro período de esplendor surgiu, para o sistema escolástico, a época decadente caracterizada principalmente pelo desvio da seriedade e profundeza das questões para a discussão ridícula de bagatelas científi cas. SR – Admito que o seu prefácio possa conter a distinção entre o apreço pelo pensamento de Aristóteles expresso no Organon referindo-se a crítica apenas à fase absurda e esterilizante que mais tarde o seu estudo provocou. Mas por que diminuir António de Gouveia na polémica travada com Pierre de La Ramée dizendo que a sua doutrina apouca tanto o cérebro como o carácter? AR – Faça o favor de, mais uma vez, atentar nas minhas palavras a propósito do português: Gouveia não acudiu a levantar a luva em nome dos azeméis da Ponte dos Asnos; mas em nome de Aristóteles, a imensa cerebração sem os soterramentos clássicos…E digo mais em louvor do nosso

fi lósofo quinhentista: António de Gouveia, sem receio de desmentido, um dos espíritos mais bem formados do tempo, jurisconsulto insigne celebrado por Cujas, fi lósofo de vasta cultura bebida directamente nos autores gregos e romanos, escreveu na língua latina com tanta elegância, riqueza e precisão, que é bem daqueles em quem no extraordinário século XVI ressurge a antiga e gloriosa época dos Césares. Até o classifi co como espírito luminoso e inquieto do Renascimento. Que poderia dizer mais em seu louvor? SR – Mas não acha que é escarnecer de Gouveia como eminente professor afi rmar que lê na aula sentado sobre os calcanhares ou em faixas de palha? O decoro não sairá mal ferido do ridículo da postura? AR – Reverendo Dr. Resende: não inventei o retrato que vem referido noutras obras nem tenho culpa de que não tivessem na época ainda inventado os maples. Por certo que a postura não era julgada indecorosa ou apoucadora da envergadura do mestre mas revelava apenas hábitos resultantes da parcimónia quanto ao mobiliário. Mas não estará a exagerar no seu lusitanismo chamando ao adversário do fi lósofo, professor e jurisconsulto português - Pierre de La Ramée ou Petrus Ramus, como era por ambos os apelidos indistintamente conhecido - pelo nome vulgarote de Pedro Ramos como se este fosse um simples compadre de Alcabideche? SR – A crítica não colhe de forma alguma. Se os estrangeiros adaptam às suas línguas os nomes próprios de outras origens, porque razão não nos será lícito proceder de igual modo? Aliás diga-se que não inventei nada: o historiador de a Monarquia Lusitana, Barbosa Machado, dá ao antagonista do Gouveano esse preciso nome de Pedro Ramos pelo que o remoque é descabido. AR – Concedo e aceito a reprimenda. SR – De minha parte, para ser absolutamente razoável, devo acrescentar nesta altura da discussão que não será difícil interpretar de outro modo o proémio do Sr. Aquilino Ribeiro desde que se lhe juntem como apostilhas ou glossas os seus dois artigos publicados neste jornal por modo a ressalvar a sua intenção e provavelmente o seu pensamento também. AR – Aceito de boa mente que no preâmbulo da tradução da obra de António de Gouveia, até para não o alargar para além do que é razoável, não tivesse explanado com sufi ciente minúcia e clareza a minha posição quanto ao mérito indiscutível do português ilustre que foi António de Gouveia e o

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mesmo dizendo quanto ao apreço intelectual que me merece Aristóteles e o seu Organon. De fora desse preito fi cam os abusos e excessos que em seu nome e na interpretação do seu pensamento mais tarde se cometeram. E quanto a este último aspecto parece não haver divergência entre nós. Parece-lhe bem fi carmo-nos por aqui? SR – Como não havia de parecer se, clarifi cado o essencial da contumélia, ressalta que nos é comum a admiração, o respeito e o apreço – a cada um na sua justa medida e proporção – pelo Estagirita e pelo Gouveano?

Gostaria que o pio leitor tivesse a consciência exacta de que o diálogo entre o escritor e o sacerdote refl ecte apenas um pequena parte do que foi expresso nos artigos que cada um publicou nas páginas do Novidades e que não esteve na nossa mira fazer relato exaustivo dos seus conteúdos. Por um lado, a maior parte da discussão fi losófi ca não terá interesse de maior se o leitor não tiver conhecimentos fora do comum na matéria versada pois trata-se de tema especializado; por outro, a intenção foi dar uma ideia do cerne da divergência por forma simples e acessível fazendo sobressair a maneira amável, elegante e cortês como decorreu e terminou. Temos por incontroverso que o aspecto mais gratifi cante do relato dessa polémica no capítulo IX das Abóboras no Telhado, ela mesma com o seu quê de aridez resultante do próprio tema tratado, foram os faits divers da pequena história descritos com o primor estético da pena de mestre Aquilino Ribeiro mas deve reconhecer-se também que o cónego Dr. Sebastião Soares de Resende dignamente esteve à altura embora não se lhe possa exigir idêntica qualidade da prosa já que o contendor na circunstância era um dos mestres da língua portuguesa com o qual, em toda a nossa história literária, talvez só Camilo, Eça e poucos mais estarão à altura de emparelhar. Também tenho por certo que o motivo maior de interesse do debate reside no facto de se ter travado entre dois homens de enorme altura moral e intelectual mas que, pese o facto de professarem convicções diametralmente opostas, se trataram com uma serenidade tão fraternal e com tal respeito pelas ideias de que assumidamente divergiam que acabaram o litígio sem qualquer azedume e felicitando reciprocamente o adversário pela elevação e pela cordialidade do confronto. As citações exaradas a seguir disso são prova cabal.

Seguindo de perto as Abóboras no Telhado, como atrás se advertiu, o escritor dá-nos retrato sucinto do contendor: Antes tivera um rápido e cortês cruzar de fl orete – prelados batalhadores houve e há na grande cristandade e hábeis manejadores do ferro – com o Padre Sebastião Resende, actualmente bispo da Beira, autor do belo livro O Sacrifício da Missa em D. Frei Gaspar do Casal. Essa polémica, pelo tom curial que reinou entre os contendores, raro entre nós, partindo de arraiais opostos, permitimo-nos registá-la nesta edição parcialmente, certos de que D. Sebastião não nos negará o seu beneplácito. No seu segundo artigo jornalístico, replicando à resposta que Aquilino Ribeiro no mesmo local fi zera publicar, o futuro prelado desde logo faz notar: em abono da verdade, devo dizer que me sensibilizou profundamente a delicadeza e a elevação dos termos com que o signatário da carta julgou o meu artigo e me causou imenso regozijo a franqueza das suas afi rmações. Bem se vê que lhe saiu do fundo da alma e ditado por séria convicção o comentário (…). Aquilino Ribeiro conclui o seu último artigo, ou carta ao periódico, da seguinte maneira: Tive um grande prazer em travar conhecimento com o Sr. Sebastião Resende a cuja cortesia, agilidade mental, ardor combativo rendo preito sincero, preito de homem que começa a descer a colina da vida, admirador pelo gosto de admirar, depois deste breve encontro numa das ruazinhas que levam ao Liceu, deambulatório de sábios e alameda de belas sombras. Atente-se na resposta do Dr. Sebastião Resende: Nada há-de ser mais terrível do que a polémica renhida em que se combate com nervos crispados, a jactos de bílis, dardejando ironias, recordando ou inventando factos pessoais pouco lustrosos, improvisando, a cada instante, o baquear do contendor. Ao contrário, porém, nada é mais deleitável ao espírito do que a discussão serena dum ponto de doutrina, discussão conduzida pela inteligência calma e forte, no domínio puro da objectividade, sem outras intenções que as de fazer brilhar a luz e sem outro fi m que o de conseguir a verdade. Uma discussão assim converte-se em espécie de jogos fl orais do espírito e se assemelha a reuniões periódicas duma arcádia literária. É por isso que eu me confesso cada vez mais grato ao Sr. Aquilino Ribeiro por me ter proporcionado o ensejo de experimentar este belo prazer intelectual. E conclui desta forma tocante: A minha pena tem ainda uma gota de tinta que não posso deixar secar em silêncio.

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Dirijo-me ao Sr. Aquilino Ribeiro. A encosta da vida que diz ter começado a descer tem-se convertido para muitos numa viagem triunfal. A experiência, as ilusões desfeitas e a força das realidades contempladas seriamente são tirocínio esplêndido para um magistério efi caz. Algum magistério já existe porque dele colhi eu uma lição oportuna que jamais esquecerei. Foi a lição da serenidade, da elevação e da justiça com que se deve proceder até nos debates da inteligência. E o escritor não pode deixar de referir, para que se possa comparar e medir a atitude intelectual, um outro artigo saído na revista Brotéria, também de índole católica, que numa coluna a que chamavam Tribuna de Consultas utiliza o subterfúgio com o rabo de fora: um leitor de Brotéria pede-nos que lhe dêmos a nossa opinião… sobre a tradução de Em prol de Aristóteles. Começa por chamar a Aquilino grande escritor para acabar por lhe pôr o rótulo de trabalho lamentável e desastrado mas sem demonstrar tais proposições. O mestre da língua é que não estava interessado, concluído que fora o debate de inigualável correcção com o futuro bispo da Beira, em levantar luva tão suja. Sem perder tempo com o moscardo insignifi cante e impertinente, sacudiu-o do ombro onde pousara e não deu mais conversa.

Aquilino RibeiroD. Sebastião Soares de Resende, desenho de Alfredo Luz.

Como agora me agradam mais as antigualhas do pretérito que as frivolidades do presente, aqui fi cam estas páginas onde me aprouve procurar fl ores que há muito tempo murcharam e fi caram secas para todo o sempre. Mas tem acontecido - pelo menos comigo já várias vezes ocorreu - pegar de um livro que há muito tempo nenhuma mão visitava e, no folhear das páginas, saltar de repente uma dessas fl ores que se diria mumifi cada e que alguém em eras distantes lá colocara. Quando lhe pego e vem ao meu encontro, assim tão esmaecida e volátil, o simples contacto dos dedos, por mais ligeiro que seja, a desintegra em pó que sobe no ar como fumo leve que não deixa rasto. E não é que, procurando em vão aspirar-lhe o extinto perfume, ainda assim nos traz ao teatro da memória os aromas de outros tempos? Ficamos absortos e quedos como se alguém que supúnhamos já não ser deste mundo, a desoras, nos batesse à porta pedindo para entrar e inesperadamente se sentasse a nosso lado. Como se fora uma sombra e sem dizer uma palavra.

Abel Manta, óleo sobre tela, 1985, 81×65cm - Colecção Livraria Bertrand, Lisboa

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98 Avenida Brasil

Sérgio Almeida*

O tempo detém-se na curva do horizonte

Crianças perseguem as sombras, desconhecedoras da sua

utilidade

Gaivotas desenham no ar mapas de felicidade acintosamente

ignorados por todos

Homens de gestos largos e com a lua na boca disputam os

sorrisos ignaros de quem passa

Torsos gregos em movimento permanente lutam em vão por

libertar-se da asfixia do nylon

Na sôfrega imperfeição de quem conhece de cor os manuais

imprecisos da beleza, rodeia-me o esplendor de devir

Aguardam-me, judiciosas, as palavras de Cícero e demais

mestres mas prefiro quedar-me um instante mais

O mundo corre solto à minha porta.

* SÉRGIO ALMEIDA nasceu em Luanda no ano de 1975. Reside em Espinho. É autor dos livros “Análise Epistemológica da Treta” (contos), “Armai-vos uns aos outros”, “Como ficar louco e gostar disso” (prosa poética), “Ob-dejectos” (prosa poética).Participou nas antologias de contos “São João do Porto” e “Fora deJogo”. Coordenou o volume “Poesia de Luiza Neto Jorge Traduzida”. É membro fundador do colectivo de intervenções poéticas Sindicato do Credo. É jornalista do JN.

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99 Pedro Vilas Boas Tavares, Os Lóios em Terras de Santa Maria – do Convento da Feira à realidade nacional da Congregação, Município de Santa Maria da Feira, 2009.

Francisco Ribeiro da Silva*

Apresentação do Livro – 18 de Janeiro de 2009 Auditório do Museu Convento dos Lóios

1) Saudação e exórdio

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira Senhor Professor Pedro Vilas Boas Tavares Minhas Senhoras e Meus Senhores É um agradável evento este que nos reúne aqui, neste fi nal de tarde, nas instalações do Museu Convento dos Lóios. Agradável e muito reconfortante para os que prezam e valorizam o património da Terra de Santa Maria. Uso o vocábulo «património» em duas direcções: por um lado, o património monumental, histórico e cultural de Santa Maria da Feira, ou seja, o edifício onde se instalaram os Cónegos Seculares de São João Evangelista da Vila da Feira e o espírito que nesta terra difundiram é objecto de estudo no livro que aqui hoje

é apresentado. Por outro lado, o livro em si é um objecto com existência própria que passa a fazer parte do património de Santa Maria da Feira. Creio que foi por assim o entender que a Câmara Municipal, através do seu Presidente, Senhor Alfredo Henriques, não só incentivou a produção do livro como aceitou presidir a esta sessão.

Os Lóios fazem parte do imaginário e do simbólico das gentes deste Lugar. Nos dias de hoje em que uma parte do edifício conventual foi recuperada, e muito bem, para o Museu Municipal, é importante que não se perca a memória da função original do Convento e dos serviços ulteriores que nele se foram instalando após o decreto de 30 de Maio de 1834 que extinguiu as Ordens Religiosas masculinas e nacionalizou os seus bens. Quanto a mim, por exemplo, sempre que subo as escadas da ala sul que dão para o antigo claustro, recordo a imagem da antiga Conservatória do Registo Civil que se gravou na minha memória de criança. O que quero dizer com isto é que, o próprio edifício onde está instalado o Museu Municipal, na sua materialidade e nos serviços que albergou, é ele próprio uma exposição permanente do Museu e como tal deve ser entendido e explicado aos que o visitam. Aliás, o nome ofi cial que se lhe deu – Museu Convento dos Lóios – não signifi ca outra coisa. E o livro que hoje aqui se lança vai ajudar decisivamente na perpetuação da sua Memória fundacional, na sequência de um outro, lançado no ano passado que é o

*Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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excelente Catálogo Geral do Museu, ao qual o Autor deste deu também a sua importante colaboração.

2- O Autor

Mas antes de falarmos sobre o livro de hoje, parece curial que apresentemos o Autor, já que, segundo creio, não será conhecido da maioria dos presentes. Se bem que, os mais atentos ao que se publica sobre a história do nosso Concelho, há muito conhecerão o nome do Doutor Pedro Vilas Boas Tavares, porque há décadas que escreve sobre o antigo Convento dos Lóios da então Vila da Feira. Se não estou equivocado, foi em 1986 que, pela primeira vez, dedicou algumas linhas aos Cónegos Azuis de Santa Maria da Feira na dissertação de cerca de 200 páginas que teve que elaborar

para a sua Prova de Aptidão Pedagógica e de Capacidade Científi ca, prova que durante algum tempo foi obrigatória na transição de Assistente Estagiário para Assistente na carreira de Professor Universitário. Mais tarde, em 1991 escreveu um ensaio que publicou na Revista «Humanística e Teologia» que intitulou A fundação e a construção da Igreja do Convento da Congregação de S. João Evangelista de Vila da Feira. Anos depois, em 1997, voltou ao tema na entrada Lóios que escreveu para o Dicionário de História Eclesiástica de Portugal. Recentemente em 2007, fez uma comunicação oral num Colóquio de Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade (a que pertence e de que é sócio-fundador) a que deu o sugestivo título de Morrer na Feira. Legados, capelas e bens de alma, em que mais uma vez o fundo temático dos Lóios é primordial.

O autor, Alfredo de Oliveira Henriques e Francisco Ribeiro da Silva.

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Por conseguinte, Pedro Vilas Boas Tavares, natural da cidade do Porto e, por isso, não sendo indígena desta terra, há mais de vinte anos que a frequenta e a conhece, não apenas como visitante, mas como estudioso da sua história e da sua cultura. Este é o momento de reconhecermos a valia e a grande utilidade das muitas e muitas horas dedicadas a essa tarefa não só no Arquivo Histórico do Concelho que bem conhece mas em muitos outros, tanto do Porto como de Lisboa como do estrangeiro. O Autor, depois de ter iniciado a carreira de Professor Universitário na Universidade do Minho, é actualmente Professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciou em História. Pertenceu, aliás, ao primeiro grupo de alunos que tive na dita Faculdade, em 1976. Doutorou-se em Cultura Portuguesa, em 2002, com uma dissertação que intitulou Beatas, Inquisidores e Teólogos. Reacção Portuguesa a Miguel de Molinos (2 tomos) a qual felizmente se acha publicada. Actualmente lecciona História de Portugal e Cultura Portuguesa no 1º ciclo do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos e colabora profi cuamente nos Mestrados e Doutoramentos do mesmo Departamento. Posso testemunhar que é um Professor

dedicadíssimo aos seus alunos e à função docente. Sobre a efi ciência da sua capacidade de investigador, que é a outra face obrigatória do universitário que quer ter futuro, bastará recordar que, no conjunto, o Doutor Pedro Tavares publicou cerca de cem títulos, fundamentalmente sobre as matérias de sua predilecção que são as respeitantes à História da Cultura Portuguesa e à História e à Literatura da Espiritualidade. O livro que hoje aqui lançamos, para além de enriquecer notavelmente o Curriculum Vitae do seu Autor, é um contributo importante para o conhecimento dos Lóios precisamente na sua vertente de agentes e produtores de cultura. Sendo um apaixonado pelas matérias da cultura, não circunscreve a sua actividade à Faculdade de Letras. É também Director do Círculo Dr. José de Figueiredo que é uma Associação, cujos Estatutos remontam a 1940, e se dedica ao desenvolvimento da cultura e das artes, e à defesa do património cultural português. Visando especialmente a valorização do Museu Nacional de Soares dos Reis, onde tem a sua sede, o Círculo Dr. José de Figueiredo procura editar obras em que se divulgue o património do Museu mas também tudo o que respeite à Arte Portuguesa, à Museologia, à Museografi a e à História da Cidade do Porto. Para além de outros meios, o Círculo Dr. José de Figueiredo edita uma Revista chamada precisamente MUSEU que vem sendo publicada desde 1942 e da qual é actualmente Director precisamente o Prof. Pedro Tavares. Para além disso, é investigador e integra o Conselho Científi co do Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica Portuguesa, em cuja Faculdade de Teologia prestou serviço docente. Para além disso, Pedro Vilas Boas Tavares é um humanista de formação e de convicção. Sendo um humanista personalista é um ser humano profundamente honesto e com preocupações humanitárias, como ao longo da sua vida tem demonstrado diversas vezes e de diferentes modos. Refi ro aqui apenas o seu compromisso com a causa da liberdade e autodeterminação de Timor Leste, da qual desde a primeira hora, quando poucos nela acreditavam, foi activo militante, tendo promovido acções de sensibilização, conferências, mesas redondas e debates, para além da organização da «Missão Rezar pela Paz em Timor», levada a efeito em Roma, em Abril de 1993, contando com o envolvimento directo da comunidade timorense e com o apoio da Revista Forum Estudante.

Intervenção do autor.

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3- O livro

Desvendado um pouco do percurso existencial e académico do Autor, debrucemo-nos agora sobre a obra que aqui nos congrega: Os Lóios em Terras de Santa Maria – do Convento da Feira à realidade nacional da Congregação. À primeira vista é uma obra de história local. Mas, sendo isso, é muito mais que isso, como o subtítulo anuncia. Aliás, a História local só se compreende e quase só se justifi ca quando se procura inserir o assunto tratado na história nacional e geral. É o que faz o Prof. Pedro Tavares, neste volume. Vejamos: estuda com imensos pormenores a instalação da Congregação dos Lóios na Feira, as difi culdades fi nanceiras e outras que tiveram de superar e informa o leitor sobre as actividades-tipo por eles desenvolvidas. Mas não se limita nem se podia limitar a estudar os Cónegos Azuis na sua organização interna e nas suas especifi cidades como congregação religiosa autónoma. É que eles inseriram-se num determinado meio, numa determinada comunidade, neste caso a Vila da Feira, interagindo com ela. Ora, para compreender a relação estabelecida, o Autor esforça-se por conhecer essa Comunidade, como estava organizada, como era gerida, em que se ocupava. Necessariamente a

família dos Condes da Feira, como patronos incontornáveis da Congregação feirense e senhores da terra desde o séc. XIV, merecem no livro um papel importante correspondente ao lugar que ocuparam na fundação e na consolidação do Convento. Pedro Tavares explica de modo convincente as razões que levaram os Condes a preferir os Lóios. Mas, para além delas, era sinal de importância da terra ter ao menos um mosteiro de frades ou de freiras. É que o «ranking» das vilas e cidades (não formal, mas formado por uma espécie de opinião pública) tinha em conta o número e a qualidade dos fi dalgos nela residentes e também o número dos mosteiros. Com base nesse argumento, durante séculos, Évora reivindicou a categoria de segunda cidade de Portugal em disputa com o Porto que se lhe contrapunha invocando a sua pujança económica.

Se os Senhores da Terra (e, neste caso, também as Senhoras) estão sempre presentes na narrativa, do mesmo modo as autoridades administrativas e a administração municipal não poderiam deixar de fi gurar. É que, no Antigo Regime, mesmo nos concelhos senhoriais, nada do que acontecia ou interferia na vida das comunidades era completamente estranho ao Senado municipal. Por outro lado, embora ao longo do discurso não perca de vista o Convento da Feira, o Autor nunca se esquece que os Cónegos de São João Evangelista constituíam um ramo de uma família religiosa muito mais vasta, distribuída por nove casas que se disseminavam pelo país de Norte a Sul e que apresentavam características comuns que identifi cavam como uma família religiosa diferente das demais: Vilar de Frades, Recião – Lamego, Lisboa (Hospital de Santo Elói), Xabregas, Évora, Porto, Arraiolos, Coimbra, Feira. Não será que estas terras estabeleceram contactos entre si através da mediação dos Cónegos? Que tipo de relações?

Os Lóios da Feira são enquadrados no conjunto da Congregação. Mas não só. Os Lóios são relacionados com outras famílias ou Ordens religiosas. Achei pessoalmente interessante a linha de continuidade que o Autor parece estabelecer entre os campos de actuação dos Lóios e alguns

O Senhor Presidente da Câmara encerrou a Cerimónia.

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dos que os Jesuítas trilharam. Do mesmo modo, parecem-se sugestivas e de aprofundar as comparações que aqui e além sugere com os Jerónimos e a Congregação do Oratório. Mas no livro existe um outro fi lão: é que embora se trate de uma Congregação portuguesa, de matriz italiana, o Autor muito justamente e muito sabiamente situa o surgimento dos Cónegos de S. João Evangelista no contexto europeu da Reforma que sacudiu toda a Europa no decorrer do séc. XVI mas cujas raízes mergulham mais atrás, pelo menos no séc. XV, numa altura em que a religião ocupava verdadeiramente o centro da vida das pessoas, mas em que o clero era ignorante em termos culturais e pouco edifi cante no seu comportamento quotidiano. Como afi rma o Autor, a Congregação é fundada no séc. XV como manifestação e protesto contra a ignorância e o baixo nível moral do clero. Ignorância, que não era só do clero mas também de todo o povo fi el. Não admira que muitas Congregações religiosas que surgiram nesta época tenham erigido a pregação, a catequese e o esplendor litúrgico como pontos programáticos essenciais e como caminho certo para operar a verdadeira reforma religiosa.

Nessa perspectiva, o livro contribui para o melhor conhecimento da espiritualidade e das preocupações pastorais da Congregação e nisso ajuda a preencher uma lacuna notória, visto que os Lóios têm sido pouco estudados não só quanto ao tipo de acção que desenvolveram como também quanto aos escritos que alguns dos seus deixaram, especialmente Frei Francisco de Santa Maria (Céu aberto na terra) e Frei Jorge de São Paulo. O Autor estabelece com ambos uma simpática cumplicidade e utiliza-os no seu livro porque ambos, nos seus textos, se referem a Feira. É verdade que a historiografi a da Congregação dos Lóios, como a de outras ordens e institutos religiosos, anda associada a uma certa dose de panegírico e de elogio da própria Congregação. Isso é normal mesmo nos escritores seculares, por exemplo nas descrições das suas cidades. Quem conhece a história do Porto, não pode ignorar os escritos de Manuel Pereira de Novais, mesmo sabendo (e é bom que o saiba) que ele utiliza cores demasiado favoráveis e recorre frequentemente a hipérboles. Mas descontando o exagero, as informações podem ter um fundo verdadeiro. Quem estuda a história dos séculos passados não pode desprezar essas fontes. Tão mau como desprezá-las seria

aceitá-las incondicionalmente. Mas esse é o trabalho do historiador. Tem que usar de todo o espírito crítico de que é capaz, porque raramente as fontes são quimicamente puras. Um dos autores celebrados neste livro, Frei Jorge de S. Paulo, que o Autor nele divulga, foi Reitor do Convento dos Lóios da Feira entre 1636 e 1638. Escreveu o manuscrito Epilogo e Compêndio da origem da Congregação de S. João Evangelista. Embora nele por vezes misture o rigor histórico com intenções apologéticas e hagiográfi cas, a Congregação deve-lhe muito não só pelo que deixou escrito mas também porque desenvolveu um enorme esforço para organizar os Arquivos da Congregação. Tendo sido Reitor do Convento da Feira, se não pela sua acção ao menos pelo que escreveu, provavelmente merecerá que o seu nome fi gure numa das ruas da cidade, se é que essa homenagem ainda não lhe foi feita. Aqui fi ca a sugestão. É interessante, por outro lado, a constatação de que um dos pontos fortes da espiritualidade dos Lóios era a devoção a Nossa Senhora. Esse traço não é exclusivo dos Lóios. Mas não deixa de ser relevante constatar e reafi rmar que a fi gura de Maria era sufi cientemente sugestiva para inspirar não apenas a oração e as devoções, mas também para comprometer os cristãos na acção concreta em favor dos mais pobres e abandonados, como foi o caso das Confrarias de Nossa Senhora da Misericórdia. Talvez os Cónegos Azuis tenham encontrado na Virgem o estímulo e a inspiração para fazerem da assistência social uma das suas actividades marcantes, ainda que, como diz o Autor, a ela se tenham dedicado mais por razões de imperativo social do que por índole vocacional da Congregação.

Normalmente uma obra destas abre pistas de investigação que cabe aos estudiosos da História de Santa Maria da Feira assumir e desenvolver, ainda que provavelmente as fontes sejam escassas:

- uma é a da actividade docente dos Cónegos em favor da comunidade. Sabemos que o ensino era um dos traços do seu labor apostólico. O Autor refere expressamente que em Arraiolos e em Lamego organizaram cursos de Artes. Por outro lado, a condição que a Câmara da Feira pôs para, nos fi nais do século XVII, consentir num imposto sobre a venda de vinho ao quartilho durante cinco anos, para obtenção de fundos para a construção do corpo da Igreja, foi que o convento pusesse um

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mestre de latim para toda a pessoa do concelho, de qualquer qualidade que fosse, pudesse aprender. Latim não era apenas a língua de Cícero. Pôr um mestre de latim era o mesmo que fundar uma Escola.

Ora o que nós gostaríamos de conhecer era o alcance do contributo efectivo dos Lóios para a alfabetização e escolarização dos jovens da Feira e do seu Termo. Porque o compromisso foi assumido. Com que resultados? Nada sabemos sobre isso. A Congregação não era muito numerosa e esse dado pode ter difi cultado a concretização das boas intenções. Se bem captei o que nos ensina Pedro Tavares, o número de Cónegos nunca excedeu a dúzia, embora o objectivo tivesse sido chegar às duas dezenas. Para dispormos de um termo de comparação direi que os Lóios do Porto durante o séc. XVII contaram a média de com 35/40 sacerdotes.

- outra pista é a da Assistência – como provavelmente a fundação da Misericórdia da Feira é mais ou menos da mesma época da implantação dos Lóios, terá havido algum tipo de colaboração entre as duas instituições, por exemplo na assistência hospitalar? O Autor, de resto, abre boas perspectivas nesta frente.

- a terceira é a da Festa das Fogaceiras. O autor confessa-se impressionado com o quase total silêncio das fontes conventuais, impressas e manuscritas, sobre o teor, a forma e a evolução da festa das fogaceiras. E, dado esse vazio, propõe novas pistas de investigação que passariam pela interligação e pela exploração explicativa de três dados objectivos: o facto de a Rainha Santa ter recebido em arras (bens dotais do noivo à noiva no caso de esta lhe sobreviver) o Castelo da Feira e de ser uma impulsionadora do culto ao divino Espírito Santo; o facto de, no local da capela-mor, ter existido em tempos anteriores uma capela consagrada ao Espírito Santo e o facto de na Vila ter existido um antigo hospital de S. Sebastião. Relacionando tudo, o Autor propõe uma hipótese engenhosa que é, resumidamente a seguinte: pode ter acontecido que a festa de S. Sebastião tenha absorvido traços de anteriores manifestações públicas de devoção ao Espírito Santo, que passavam por bodos e por práticas religiosas de partilha comunitária.

4) Palavras fi nais

Acabada a minha leitura da obra, reafi rmo que ela traz um contributo substancial para o conhecimento da fundação, expansão e caracterização dos Cónegos de S. João Evangelista nesta Terra de Santa Maria. É uma achega notável para o conhecimento de vários aspectos da nossa História, cultural e religiosa, dos modos de convivência espiritual e dos tipos de sociabilidade religiosa.

E é um excelente Guia de Visita do Museu. Vai ser também um instrumento de trabalho precioso para os Guias profi ssionais. Sobre o monumento em si (conjunto Igreja e Convento) e sobre a Igreja em especial, não só na sua feição monumental, mas também no seu interior, nos altares, nas capelas, nas confrarias e associações religiosas. Uma palavra fi nal para enaltecer, uma vez mais, o papel fulcral e proactivo da Câmara Municipal que incentivou e fi nanciou a produção deste livro e que, para além de descobrir o Autor certo, deixou para esse mesmo Autor o encargo de escolher técnicos competentes, tanto na fotografi a como no design. O resultado fi nal foi que, garantida a riqueza de conteúdo e a idoneidade dos colaboradores, o livro é uma beleza para os olhos e uma verdadeira peça artística. Parabéns a todos. E muito obrigado pela oportunidade que me foi dada de tomar parte activa neste evento histórico-cultural.

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105 O Solar Feirense Comemorou 57 Anos*

Numa sessão solene, que teve a presença do Excelentíssimo Sr. Dr. José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, realizada no dia 16 de Julho, a Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria comemorou 57 anos de sua existência. A mesa de honra estava constituída, além do Dr. José Manuel Durão Barroso, pelo Presidente da Casa, Sr. Ernesto Pires de Boaventura e pelo Dr. Francisco Gomes da Costa, Presidente do Liceu Literário Português, que por motivo de viagem do Dr. Antonio Gomes da Costa foi o representante da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, sendo também o apresentador do “Mui digno” orador da noite, Dr. Celestino Portela, representante da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e Presidente da Liga dos Amigos da Feira. Também compuseram a mesa: Dr. Albano da Rocha Ferreira, Presidente do Conselho Deliberativo da Casa da Vila da Feira e Vice-Presidente Administrativo da Real Benemérita Sociedade Portuguesa Caixa de Socorros D. Pedro V; Dr. Adérito Figueiredo das Neves, Presidente da Comissão Fiscal da CVFTSM; Sr. Adão Ribeiro dos Santos, actual Presidente da Assembleia Geral da CVFTSM; Sr. Hermenegildo Martins dos Santos, Vice-Presidente do Conselho Deliberativo da CVFTSM; Sr. Antonio Simões da Conceição, Vice-Presidente

da Assembleia Geral da CVFTSM; Sr. Antonio da Silva Correia, Vice-Presidente de Património do Real Gabinete Português de Leitura; Sr. Tuninho Aires, Assessor do Secretario Chefe da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro; Sr. Agostinho da Rocha Ferreira, Presidente da Obra Portuguesa de Assistência; Dr. Nelson Coelho da Luz, Presidente da Casa dos Poveiros, onde foram realizadas as primeiras reuniões, depois da fundação da Casa da Vila da Feira; pela Vereadora Teresa Bergher e pelo Deputado Estadual Gerson Bergher. O Presidente Ernesto Pires de Boaventura, após a execução dos hinos nacionais de Portugal e do Brasil, referiu-se à importância da efeméride e destacou a grande importância para todos os feirenses, pois exactamente há vinte anos estreitou-se o relacionamento entre a Casa da Vila da Feira, que deixava de ser para muitos uma simples sala de encontros, para ser na verdade uma “Embaixada Santamariana” em terras brasileiras pela sua grandiosidade. Falou ainda da sua preocupação com o futuro das nossas instituições para que não percam mais cedo ou mais tarde suas identidades. O director do cerimonial, Sr. Pedro Paulo, agradeceu e enunciou diversas mensagens recebidas. O Sr. Ernesto Pires de Boaventura convidou o Dr. Francisco Gomes da Costa para fazer a apresentação do Dr. Celestino Portela, orador da noite. Usando da palavra o Dr. Celestino Portela enalteceu

* Portugal Em Foco - Rio, 22 de Julho 2010. Com a devida vénia.

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o Excelentíssimo, Sr. Dr. Durão Barroso, que presidia às Cerimónias comemorativas de mais um Aniversário da Fundação da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, fruto de grupo de feirenses que teve essa feliz ideia, concretizada em 1953: “Quero expressar a Vossa Excelência, aqui, neste País Irmão, a minha admiração, com voto das maiores felicidades nas altas funções de que está investido, para bem da Europa e do Mundo. E apresentar minhas felicitações pela concessão do titulo Doutor Honoris Causa, atribuído pela Universidade Estácio de Sá, pelo contribuição para a integração europeia, a cooperação dos povos e a paz mundial”. Ao fi ndar o seu discurso foi calorosamente aplaudido. O Presidente Ernesto fez a entrega do Título de Sócio Honorário da Casa da Vila da Feira ao Presidente da Comissão Europeia, Dr. José Manuel Durão Barroso. Procedeu-se depois à entrega da “Medalha de Mérito” concedida pela Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, pelo seu representante Dr. Francisco Gomes da Costa, ao Dr. Durão Barroso, como prova de reconhecimento da comunidade pelo seu admirável trabalho não só na Presidência da Comissão Europeia – para orgulho de todos os portugueses – mas também ao longo da sua actuação marcante na Política, na Universidade e na Administração. Tivemos ainda a entrega pelo Presidente Ernesto do título de Sócio Honorário ao orador da noite, Dr. Celestino Portela. Neste momento o Dr. Celestino fez a entrega ao Sr. Antonio da Silva Correia, do título de Cidadão Feirense, concedido pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, como prova do reconhecimento da valiosa colaboração que tem dado à Casa da Vila da Feira. Houve, como é de praxe, no dia do aniversário da Casa, a entrega de “Títulos Honorífi cos”, aqueles que se distinguiram pelo seu trabalho e colaboração, que foram entregues das mãos do Dr. José Manuel Durão Barroso. Foram distinguidos como Eméritos: Ana Paula Higino Amaral, Belmira da Silva e Souza e Carlos Alberto Madeira Júnior. Como Beneméritos: Afonso Bernardo Fernandes, João do Carmo Monteiro Martins e Márcio de Boaventura da Silva, representado por sua mãe a senhora Alice Boaventura da Silva. Não poderia faltar a homenagem a algumas senhoras: A Primeira-Dama, Roselene Boaventura, ofereceu fl ores à senhora Maria da Graça Leal Soares Leite Portela, esposa do orador, Dr. Celestino Portela; também recebeu fl ores das

mãos da Primeira-Dama a senhora Mart’Angélica da Costa, esposa do Dr. Francisco Gomes da Costa. A vereadora Teresa Bergher também foi homenageada pela Primeira-Dama. A senhora Cidália Oliveira dos Santos, esposa do Primeiro Vice-Presidente Administrativo, Sr. Dário dos Santos, ofereceu fl ores à senhora Carolina Olga Ramos Ferreira, esposa do Dr. Albano da Rocha Ferreira. A senhora Maria do Carmo Pinto Silva, esposa do Segundo Vice-Presidente Administrativo, Sr. Antonio Rodrigues Silva, prestou uma merecida homenagem à senhora Benvinda Maria, do jornal “Portugal Em Foco” Finalizando essas homenagens, a senhora Rosa de Boaventura Pires, a mais idosa componente do Departamento Feminino da CVFTSM, ofereceu fl ores à Senhorita Roselene Boaventura. O Dr. Celestino Portela ofereceu ao Dr. Durão Barroso, ao Sr. Ernesto Boaventura e ao Dr. Francisco Gomes da Costa algumas lembranças ofertadas pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira. Antes do encerramento da sessão solene, o Presidente da Comissão Europeia, Dr. José Manuel Durão Barroso, fez uma saudação especial à Comunidade Luso-Brasileira, sendo muito aplaudido. O Presidente Ernesto Pires de Boaventura agradeceu a presença de todos e declarou encerrada a sessão solene, convidando a todos para um coquetel.

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Brasil - 16 de Julho de 2010

Presidente Ernesto Boaventura, sua fi lha Roselene e o neto Gabriel.

Durão Barroso felicita o representante do Município Feirense.

António da Silva Correia recebe o Diploma de Cidadão Feirense, das mãos de Celestino Portela.

O Presidente do Liceu Literário Português fez a apresentação do orador do Município Feirense. Ernesto Pires Boaventura presidiu à sessão Solene.

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Durão Barroso recebe lembranças do Município de Santa Maria da Feira.

João do Carmo Vireira Martins recebe o título de Sócio Benemérito da Casa da VIla da Feira, das mãos de Durão Barroso.

Celestino Portela apresenta a Durão Barroso o Livro de Maria Lucília Lencart, “ Raízes de Fernando Pessoa em Terras da Feira”.

Durão Barroso deixou uma mensagem no Livro de Honra da CVFTSM.

O Presidente da CVFTSM entregou a Celestino Portela o título de Cidadão Honorário.

Roselene, a primeira Dama, fez entrega de um ramo de fl ores a Maria da Graça.

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Durão Barroso com o Presidente Ernesto Boaventura, Filha e Neto. As bandeiras do Brasil, Portugal e da Casa da Vila da Feira apresentadas por membros do Rancho Folclórico Almeida Garrett.

Um aspecto do Salão Alfredo Henriques, que estava repleto.

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Os Ranchos Folclóricos da CVFTSM presentes na Cerimónia Religiosa. Na Igreja de S. Sebastião após a Missa.

O Presidente e a Primeira Dama com o Bolo do 57º. Aniversário.

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111 Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria. Sessão Solene comemorativa do 57º aniversário

Ernesto Pires de Boaventura*

Excelentíssimo Senhor Dr. José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, A quem, desde já, agradecemos a presença nesta solenidade, em nosso nome e em nome do Dr. Alfredo Henriques, presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, que lhe envia um forte abraço; Excelentíssimo Senhor Dr. Celestino Portela, Representante da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e presidente da Liga dos Amigos da Feira; Ilustríssimo senhor Dr. Francisco Gomes da Costa, Representante da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras e Presidente do Liceu Literário Português; Demais membros da mesa; Minhas senhoras e meus senhores.

É de grande importância para todos nós exaltar que exactamente há 20 anos estreitou-se o relacionamento entre esta casa e a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, que

deixava de ser para muitos uma simples sala de encontros, para ser, na verdade, uma “Embaixada Santamariana” em terras brasileiras pela sua pujança. Hoje quero falar do passado, presente e futuro. Sabemos que dentro de poucos anos, todas as obras de origem portuguesa passarão inevitavelmente para o comando das novas gerações, talvez luso-descendentes, às quais caberá prosseguir os rumos e o destino da portugalidade. Quero compartilhar com todos vós uma pergunta que não quer calar: o que devemos fazer por nossas instituições para que não percam mais cedo ou tarde suas identidades? Já se sente que cada vez somos menos, com o desaparecimento dos antigos emigrantes. É no presente que podemos modifi car as consequências do passado e mudar as perspectivas e possibilidades para o futuro. Como disse o poeta, “ser português é amar a pátria portuguesa e tê-la sempre presente. É gostar com muita fi rmeza da nossa gente e das nossas tradições. É ter orgulho da nossa história e dos nossos antepassados”. As nossas instituições não morrerão. A convivência nas associações; a etnografi a nos grupos folclóricos; as festas típicas, os valores e as tradições de um povo, tudo isso permanecerá no Brasil como marco do reconhecimento dos milhares de portugueses que vieram fazer sua vida neste país.

*Presidente da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria.

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A Portugal há de caber o usufruto do carinho e do bem-querer das futuras gerações. A Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria continuará a ser nesta cidade um foco de portugalidade, uma embaixada santamariana, pois nela se continuará a louvar os momentos maiúsculos da história dos dois países, a enriquecer os valores de uma cultura, a dançar o vira, a chula e a tirana. Nela se continuará a manter a liturgia da amizade entre brasileiros e portugueses. Amanhã pode não haver mais feirenses de berço para frequentar e dirigir esta casa. Mas o importante é que continue a existir o “solar feirense”, e que dentro dele, brasileiros e luso-descendentes não deixem apagar a “chama sagrada” da portugalidade e que ela permaneça para sempre, no coração tijucano, carioca e brasileiro. Não podemos fi car na dependência das iniciativas dos mais velhos. É preciso que recebamos, do outro lado do atlântico, o apoio e o estímulo necessário à preservação dos patrimónios e das tradições.

Por isso, contamos também com as autoridades brasileiras, pois daqui para o futuro tem que haver o compromisso de não deixar de colaborar com essas instituições para que continuem a ser focos iluminados a evocar as terras portuguesas de onde partiram tantos que ajudaram a construir este grande país. Estamos todos aqui hoje, cinquenta e sete anos depois, para dizer do nosso orgulho por ter feito o que se fez. Quero agradecer a Deus, aos meus companheiros de directoria, aos membros do conselho deliberativo, da assembleia-geral, do conselho fi scal, ao departamento feminino, aos componentes do Grupo Folclórico Almeida Garrett e do Rancho Folclórico Infanto-juvenil Danças e Cantares das Terras da Feira, aos funcionários, aos associados, aos amigos, à imprensa escrita e falada e a todos que fazem com que esta casa seja um marco de Portugal no Brasil. Para fi nalizar, quero fazer um agradecimento especial a toda minha família pelo apoio incondicional que me dão. Bem haja!

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Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão Europeia, Dr. Durão Barroso Foi com prazer que tomei conhecimento que Vossa Excelência, Sr. Dr. Durão Barroso, presidia às cerimónias comemorativas de mais um aniversário da fundação da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, fruto de grupo de feirenses que teve essa feliz ideia, concretizada em 1953. Quero expressar a Vossa Excelência, aqui, neste País Irmão, a minha admiração, com voto das maiores felicidades nas altas funções de que está investido, para bem da Europa e do Mundo; e apresentar minhas felicitações pela concessão do título Doutor Honoris Causa, atribuído pela Universidade Estácio de Sá, pela contribuição para a integração europeia, a cooperação dos povos e a paz mundial.

- Excelentíssimo senhor Dr. Francisco Gomes da Costa, ilustre presidente do Liceu Literário Português, em representação do Exmo. Sr. Dr. António Gomes da Costa, presidente da Federação das Associações Portuguesas e Luso Brasileiras e do Real Gabinete Português de Leitura.

A Federação que Vª. Exª. representa é a maior expressão da força anímica de todos os portugueses que um dia procuraram, neste Brasil, trabalho e aqui lançaram e fi xaram raízes familiares, culturais, a que, com orgulho, chamamos de Luso-descendentes, que a todos cumprimento com a maior afectividade fraterna. - Excelentíssimo senhor presidente da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, senhor Ernesto Pires de Boaventura. Saúdo em Vª. Excelência todos os sócios e seus familiares; e lembro, em preito de Homenagem, aqueles que em 12 de Julho de 1953 fundaram esta Casa e os que a serviram nestes 57 anos e se encontram já no reino da saudade.

Foi com viva emoção que recebi o honroso convite que me dirigiu o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Alfredo de Oliveira Henriques, para representar o Município nas cerimónias comemorativas do aniversário da fundação da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria. A minha primeira palavra é transmitir a todos os Feirenses, Santamarianos e Luso-descendentes a saudação Amiga das gentes da Terra de Santa Maria. É em nome deste Povo que, com entusiasmo, vos transmito a alegria de aqui estar – neste Brasil que todos temos no coração. E vós, meus queridos Santamarianos, sois o exemplo vivo deste esforço secular, e é com justifi cado orgulho que vos

Ricardo Reis não morreu!

Celestino Portela*

*Discurso proferido na sessão solene comemorativa do 57º aniversário da Casa de Vila da Feira e Terras de Santa Maria em representação do Município de Santa Maria da Feira. Rio de Janeiro, 16 de Julho de 2010.

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saúdo, e vos agradeço o terem sempre presente, no espírito e no coração, a Terra Mãe. E felicito-vos pela criação desta Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, que evoca no nome e na saudade, o que de mais sublime tem o homem, a sua sensibilidade espiritual. Essa geração formada por gente natural da Terra de Santa Maria e Terras próximas partiu com ânimo de trabalhar e triunfar, mas deixou o coração prezo às raízes, à família, à sua terra. Hoje, naturalmente, esta Casa vive com os Luso-descendentes, cujas raízes estão aqui, que podem nunca terem viajado a visitar e conhecer a terra dos seus maiores. Urge criar um intercâmbio entre as novas gerações, pois só o aprofundar o conhecimento pode fazer surgir o amor, o respeito e a admiração. E esse intercâmbio parece-me possível: - A concessão de bolsas de estudo que permitam que os jovens possam deslocar-se, frequentando cursos e aprofundando conhecimentos; - A deslocação de grupos musicais e ranchos folclóricos que realizem espectáculos e participem em festivais. - No plano desportivo poderá ser viável a realização de torneios internacionais com a participação de equipas juvenis, que serão novos elos de ligação. - Na revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, que temos muito prazer em enviar, fi cam as páginas à disposição de todos os que queiram abordar temas Santamarianos, da vivência da Casa da Vila da Feira e de cultura geral. O Município de Santa Maria da Feira e a Casa de Vila da Feira devem conjugar todos os esforços para que esta linda realidade de 57 anos seja sempre o farol a guiar os Feirenses para o encontro feliz, de paz, progresso e fraternidade. Este sentimento que enalteço tem também momentos de apoteose na celebração da Festa das Fogaceiras, que é um gesto de amor. Por tudo isso acalentei durante muitos anos a vontade, e o desejo de conhecer o Brasil, que já amava. Essa oportunidade surgiu há dez anos com a Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos. Partimos de Lisboa para Recife e seguimos o curso do Amazonas, após uma estada em Fernando de Noronha. Foi no mercado do rio, em Manaus, que encontrei uma preciosidade que me fascinou: um S. Sebastião, o Mártir em honra de quem é celebrada a Festa das Fogaceiras, com o

rosto de um índio. Enternecedora imagem que conservo como a mais bela recordação dessa inenarrável viagem. Estou certo que um factor que contribuiu decisivamente para o meu estado de encantamento foi a nossa língua comum. A facilidade de comunicação, o não ter que estudar a frase a proferir, a pergunta a fazer, pois tudo fl uía naturalmente, espontaneamente. Compreendi verdadeiramente Fernando Pessoa, o poeta Universal, tão apreciado no Brasil, quando no Livro do Desassossego escreveu: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa”. Fernando Pessoa nasceu no Largo de S. Carlos, em Lisboa, no dia 13 de Junho de 1888. Seu 3.º Avô Paterno, José António Pereira de Araújo e Sousa, nasceu em 23 de Agosto de 1746 na Quinta do Castelo, em Fermedo, que hoje integra o Concelho de Arouca, na Terra de Santa Maria.

“Prezado Dr. Celestino. Muito obrigado pelas palavras que resssuscitaram Ricardo Reis. Tony Correia. 16/07/2010.”

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José António assentou praça como Voluntário no Regimento de Artilharia do Porto, de onde passou para a formatura do regimento de Artilharia do Algarve, fi xando-se em Tavira; casou em Faro com Dª. Joaquina Mimoso, fi lha do Dr. António Nogueira Mimoso. E em 1808 vai casar na Sé de Faro sua fi lha D. Joana Xavier com o Doutor David Pessoa e Cunha; será deste casamento que irá nascer o futuro general de divisão Joaquim António Pereira de Araújo e Sousa que irá casar com D. Dionysia Perestrello de Seabra Pessoa. Deste casamento irá nascer Joaquim de Seabra Pessoa, pai de Fernando António Nogueira Pessoa, consagrado nas letras com o nome de Fernando Pessoa. As raízes de Fernando Pessoa estão em Terras de Santa Maria, em Terra de Feira, Quinta do Castelo, em Fermedo. João Gaspar Simões, no seu Vida e Obra de Fernando Pessoa refere as origens do Poeta no norte de Portugal, em Fermedo. O Padre Domingos de Azevedo Moreira, que escreveu a Monografi a de Fermedo, regista também as origens dos antepassados de Fernando Pessoa nessa terra antiquíssima. Relevo especial merece o Livro de M. Lucília Lencart, Raízes de Fernando Pessoa em Terras de Santa Maria, onde faz um exaustivo estudo sobre os antepassados de Fernando Pessoa, de que tenho o prazer de oferecer um exemplar à Casa da Vila da Feira. Confi rmadas as origens de Fernando Pessoa em Terras de Santa Maria, saliento o facto de um grupo de Feirenses terem constituído uma Associação, sob a sigla “Liga dos Amigos da Feira”, para a construção de um Monumento em sua Homenagem, que foi inaugurado em 30 de Novembro de 1983 pelo Senhor Presidente da República General Ramalho Eanes, precedida de um ciclo de conferências em que intervieram Salvato Trigo, Eduardo Lourenço, José Augusto Seabra, Clara Crabée Rocha e outros especialistas da obra Pessoana. Foi o primeiro Monumento em Honra do Grande Poeta que hoje tem Monumentos em Lisboa, S. Paulo, Bruxelas, Durban e outras cidades. A escultura é de Aureliano Lima e inspirada no tema “Um Monumento à unidade, diversidade e pluralidade da Obra Pessoana”. O trabalho de fundição em bronze foi executado por Fernando da Silva Lage, de Vila Nova de Gaia; tem cinco metros de altura, um metro e vinte centímetros de diâmetro,

e o peso de seis toneladas. Maria Lucília Lencart fala assim da escultura:“Não conheço o escultor que criou, modelou, cinzelou, deu forma ao monumento, mas ouso julgá-lo: soube bem interpretar Fernando Pessoa. Prumos e perfi s vários que se erguem para o infi nito e perdem as dimensões materiais que parecem limites, mas apenas materiais; mais não são que as perspectivas de dimensões outras que continuam a sua ascensão recusando o fi nito, o acabado, tal como Fernando Pessoa o recusou sempre, e dividido permaneceu na eterna dúvida, considerando as coisas como meras aparências de outras coisas... máscaras de outras máscaras... impossível de arrancar a última... por inexistente...como última.” Na Revista Villa da Feira, que existe na Biblioteca desta Casa da Vila da Feira, poderão acompanhar toda a magnifi cência de que se revestiu o acontecimento. E é motivo de orgulho para todos nós, Feirenses, Santamarianos e Luso-descendentes, o pioneirismo dessa iniciativa de homenagear o poeta dos heterónimos na Terra dos seus maiores. Espero que seja obrigatório quando em visita a Portugal conhecer o Monumento. Um dos heterónimos que Fernando Pessoa criou foi Ricardo Reis, médico, monárquico, de formação clássica, que, aquando da Revolução Monárquica de 1919, veio para o Brasil. Fernando Pessoa fez nascer esse heterónimo no Porto, terra próxima de Fermedo, onde nasceu seu avô paterno, em homenagem aos seus ascendentes, como, pela mesma razão incluiu, no seu Brasão, que ele próprio desenhou, as armas dos Pereira, donatários e senhores da Terra de Santa Maria, que viveram no Castelo da Feira e, pelo mesmo motivo, fez nascer Álvaro de Campos em Tavira. Na célebre carta de 13 de Janeiro de 1935 a Casais Monteiro descreve-nos Ricardo Reis como, um pouco mais baixo e mais forte do que Caeiro, mais seco, de um vago moreno mate.” Foi educado num colégio de Jesuítas, era médico e monárquico, vivendo expatriado no Brasil, desde 1919, data de uma falhada revolução monárquica no norte de Portugal. E Fernando Pessoa quis que Ricardo Reis fi casse para sempre no Brasil, que fosse mais um traço de união entre os dois Povos, que fosse um aglutinador de culturas, que permanecesse vivo como símbolo dessa Pátria única: a língua

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portuguesa. Esta Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria é o exemplo de quanto Ricardo Reis continua bem vivo neste Brasil de nossa Língua pátria. José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, recentemente falecido, contrariou a vontade de Fernando Pessoa; no romance o Ano da Morte de Ricardo Reis fez o poeta regressar a Lisboa, em 1936, onde fi cciona a sua morte. Depois de 400 páginas à volta dos problemas políticos e sociais vividos na Península Ibérica, nesse ano de 1936, descreve o último encontro entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis. “Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fi m, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se.” Quero clamar aqui, nesta mui nobre, benquista e benfazeja Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, que Ricardo Reis não morreu. - Foi enviado pelo seu criador para fi car aqui como elo de ligação entre culturas, civilizações, raças, um pluralismo que o torna cada vez maior, como ele próprio era plural, mais gigante, perante o universo, como elemento mátrio da língua gostosa que falamos, e para tornar o mar cada vez mais o traço de união entre as duas margens deste grande rio, o Oceano Atlântico, como de modo emblemático disse Pessoa:“Deus quis que a terra fosse toda uma, que o mar unisse, já não separasse”.O Admirável Mundo Novo está presente nos nossos dias. O louvor ao Homem, que tantas maravilhas tem criado, para nossa comodidade, nosso conforto, melhores condições de trabalho, para cuidar das doenças e aumentar a esperança de vida, deve ser dado em todo o tempo e lugar. Aqui perante vós, meus queridos Santamarianos, eu quero saudar a vontade forte de trabalhar e melhorar as condições de vida e da família, que fi zeram os vossos ascendentes, e alguns de vós próprios, atravessar o Atlântico – muitas vezes trazendo na bagagem a dívida contraída com a passagem – e fi xarem-se neste adorável Brasil, e que souberam transmitir aos descendentes esse brasão que honra o homem:

o Amor ao trabalho. Meus caros Santamarianos:Quero deixar aqui, com prazer e por dever, uma palavra de Homenagem à Mulher que vive o dia-a-dia do Trabalho, que acompanha o homem na vida, nos negócios, que é a fada do lar, a esposa, a mãe dos fi lhos, a educadora dos Homens de amanhã. Permitam-me que, na Exma. Senhora Dona Rose Boaventura, saúde e felicite a Mulher Brasileira, a companheira do homem, que torna o amor e a felicidade possíveis, essa coisa maravilhosa que é haver vida e o gosto de a viver. Quero acompanhar todos vós, minhas senhoras e meus senhores, nos “Parabéns Rose” por tudo quanto tem feito pelas crianças, pelo Rancho Folclórico Infanto-juvenil Danças e Cantares das Terras da Feira.

É por este exemplo, que a Vossa Vida em comunidade bem espelha, que tenho muita honra em ter vindo participar neste dia festivo, saudar-vos e transmitir o abraço amigo da Gente do Município de Santa Maria da Feira e agradecer, em meu nome e de minha mulher, todas as atenções com que nos têm distinguido.

Muito obrigado.

Roselene Boa Ventura, António Silva Correia, (Agraciado pelo Município de Santa Maria da Feira) Tony Correia, Celestino Portela, Maria da Graça e Rodrigo Correia.

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117 O Nome “Gião”

Frei Acaribe*

Embora o sufi xo “ão” quase sempre seja um aumentativo, (por exemplo: “cadeira » cadeirão”; “lameiro » lameirão”; “porta » portão” etc), algumas vezes porém é diminutivo, (por exemplo “estrada » estradão”, “ponte » pontão” etc). Vem esta introdução a propósito da palavra “Gião”. Segundo a opinião do célebre Professor de Filologia, Joseph M. Piel (alemão) (Vid. (Biblos” Vol. XXIII, 1947, pag.320), “Julianus” teve a sua origem na Palavra “Julius”, nome da “gens” (família) a que pertenceu Júlio César. Admitindo portanto, o princípio acima referido na introdução, o sufi xo “ânus” » ão, (porque Júlio César foi uma personagem importante, “grande”), poderia tratar-se dum diminutivo e por conseguinte “Juli(o)-anos” seria um fi lho de Júlio, um familiar de Júlio, ou qualquer outro descendente menos importante. Todavia, como “Julianus” aparece quase sempre ligado ao Santo (“São Julião » São Gião”), é mais plausível que se trate dum aumentativo e então poderemos concluir que o nome “Gião” é um nome muito distinto e São Julião » Gião um Grande Santo. E o que afi rmamos verifi ca-se pelo número de freguesias com este nome, ou com este Orago. Advertimos, todavia, que a forma mais usual, (e porque mais próxima do original latino), é São Juliano (no feminino

S.ta Juliana) e São Julião (forma mais evoluída). E talvez por este motivo, é raro encontrar pessoas e Santos com o nome Gião, mas muitíssimos com o de Juliano (Juliana) e Julião. No Hagiógrafo Católico deparamos com vinte e sete Santos com o nome Julião, sendo os mais conhecidos:-São Julião, mártir – em Beauvais – 8 de Janeiro; “ “ mártir – em Antioquia – 9 de Janeiro “ “ mártir – na Síria – 14 de Janeiro “ “ mártir – em Cuenca, Espanha – 28 de Janeiro; “ “ mártir – em Leão, França – 12 de Fevereiro; “ “ bispo – em Toledo, Espanha – 08 de Março; “ “ mártir – em Constantinopla – 09 de Agosto. No mesmo Hagiógrafo apareceram-nos doze Santos com o nome Juliano e dez na forma feminina Juliana. Apareceram-nos também dez com o nome São Júlio, nove Santa Júlia e três Santa Julita (Vid. “ANO CRISTÃO”, P. e Croiset, Vol. XIII, Tradução do P. e Matos Soares, pág.s 372, 373 e 374).

O certo porém, é que em 1258 já nos aparece a “Villa Juyan” (Cf. OM); “Gián” e “Giã” em Lugo, Galiza (Espanha); e “Jullan”, em Chantada, igualmente na Galiza.

O mesmo já citado Joseph M. Piel (vid. “Biblos”, Vol. XXV, 1949, pág.s 345), também perfi lha a opinião de que

* Professor. Historiador.

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“Sant, Julian”; “Santullan”; “Santillano”; “Santullão” e “Santullã”, são formas diferentes do povo se exprimir conforme as regiões em que vive e de acordo com o seu grau de cultura.

(Anotamos o que ainda em nossos dias acontece: - No Norte pronunciamos – rio, no Sul» riu; Entre nós: - “frio”, bem perto de nós – (não cito aldeia para não ferir)» “freio”; “Maria” » “Mareia”; “Ouvi-nos”» “Oubei-nos”; “Benedito”» “Bendito” » “Bento” etc.

Também J. Leite de Vasconcelos, (Vid. “Opúsculos, Vol. III, Coimbra – 193l), se refere à palavra “Santullan” e “Santullão” como familiar de “Sant,Iulianus” » “Santo Julião” » São Jião” » “São Gião”.

Concluiremos pois, que “Gião” terá a sua origem em “Júlio” ao qual se juntou o sufi xo “anus”»ão, (certamente aumentativo, dada a sua grande expansão e infl uência na cristandade), donde a evolução Julianus » Julião » Juião » Jião » Gião.

(Anotamos ainda que a maior parte das palavras de origem latina cuja 2ª letra é um “i”, se escrevem com “G”. (O Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, Vol. III – 1962, pag.s 551 a 564, apresenta-nos cerca de 520 com “G”. Pelo contrário, o mesmo Dicionário, nas pag.s 1042 a 1044, só nos apresenta cerca de 113 escritas com “J” e estas quase todas de origem Brasileira e Africana (Angola e Moçambique). De acordo com esta anotação, também desde tempos imemoriais e seguindo a tradição, se tem adoptado em português a escrita com “G”., e por conseguinte, escrever com “J”. não será erro grave, mas deve ser evitado. Podemos apontar exemplos como “Guisande” e “Guizande”; “Rosa” e “Roza”; Baptizar” e Baptisar” que também aparecem com as duas ortografi as.

Nós usaremos sempre a forma clássica “GIÃO”.

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119 APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE POESIA DE ANTHERO MONTEIRO, SETE VEZES SETE NUVENS*

Sérgio Almeida**

Se há livros que carecem de grande explicação, auxílios ou muletas, os de poesia serão certamente um deles. Não quero com isto retirar utilidade a todos quantos, sejam professores, ensaístas ou críticos, se dedicam a ler, estudar e analisar as obras poéticas, desnudando signifi cados que muitas vezes escapam ao próprio autor. O que pretendo afi rmar tão-somente é que tenho para mim que os livros de poesia são o reduto da liberdade por excelência, o espaço para o qual podem convergir as mais contraditórias interpretações sem que, mesmo assim, entrem em confl ito. Esta ausência de verdades absolutas tem um efeito óbvio, ou seja, a visão de um leigo em nada fi ca a dever à de um crítico encartado ou de um professor jubilado. A este propósito, ainda tenho bem presentes as palavras de um dos grandes poetas portugueses da actualidade, ainda hoje vivo felizmente, que me confessou certo dia, num desabafo por certo autêntico,

que a opinião mais certeira sobre os seus poemas que lhe foi dado ouvir não teve origem num académico consagrado nem nada que se pareça mas sim numa jovem estudante que, no fi nal de uma prelecção numa escola, o presenteou com um comentário tão pertinente que foi capaz de obscurecer e relegar para segundo plano os ensaios críticos e as teses sucessivas escritas sobre os seus livros. O que lhe foi dito em concreto por essa jovem nunca o soube, mas, como dizia, gosto de imaginar que o comentário em causa tenha sido de uma clarividência desarmante. “Escreve acordado ou a dormir?” ou “sabia que os seus poemas cheiram a frutos silvestres no Verão?” seriam as minhas observações predilectas. Isto, claro, partindo do princípio que o episódio em causa existiu mesmo – hipótese que não é propriamente infalível, porque, como dizia Heiner Muller, os poetas mentem em demasia; algo que, como jornalista, me deixa mais descansado, porque sempre pensei que a minha classe e a dos políticos eram imbatíveis nesse ponto. Posto isto, resta-me acrescentar que as breves palavras que se seguem são apenas, pois, uma das infi ndáveis interpretações passíveis de serem feitas acerca de “Sete Vezes Sete Nuvens”.

** SÉRGIO ALMEIDA nasceu em Luanda no ano de 1975. Reside em Espinho. É autor dos livros “Análise Epistemológica da Treta” (contos), “Armai-vos uns aos outros”, “Como fi car louco e gostar disso” (prosa poética) e “Ob-dejectos” (prosa poética).Participou nas antologias de contos “São João do Porto” e “Fora de Jogo”. Coordenou o volume “Poesia de Luiza Neto Jorge Traduzida”. É membro fundador do colectivo de intervenções poéticas Sindicato do Credo. É jornalista do JN.

*O lançamento deste livro de Anthero Monteiro ocorreu na Feira do Livro do Porto no dia 19 de Junho último, tendo sido de novo apresentado na Biblioteca Pública de Espinho no dia 16 de Julho e no Púcaros Bar, em Miragaia – Porto, no dia 21 do mesmo mês, estando previstas outras apresentações inclusive em Lisboa. Este texto de Sérgio Almeida reproduz a sua intervenção de apresentação na Biblioteca Pública de Espinho.

Sérgio Almeida

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Como o livro é marcado por esse número tão especial que asseguram ser o 7 (sobre isso, a numerologia, como tantas outras coisas aliás, pouco saberei dizer), destacarei em seguida as 7 características destes poemas que mais me impressionaram. Começaria pela liberdade formal. Há nos poemas de Anthero Monteiro uma abordagem inventiva e fortemente comprometida com o quotidiano, só passível de ser feita em quem, acumulando ao longo da vida vários saberes, recusa ser apenas um epígono mais, investindo com denodo na perseguição de uma individualidade bem vincada. Seja nos grandes espaços físicos ou no ainda maior espaço interior, onde tudo se decide, o poeta pode até estar, como confessa num poema, “só com todo o universo sobre os ombros” mas nunca está sozinho no sentido mais desesperançado da palavra, ao rodear-se de tudo aquilo que viveu até à data. O apelo da infância também me impressionou. Não me refi ro ao saudosismo estéril que tende a recusar tudo o que não seja passado, mas sim a uma evocação serena de

episódios, reais ou não pouco importa, que ajudam a tecer aquilo a que chamamos de memória. Os odores ainda presentes do que já não volta, a par da serena convicção da transitoriedade das coisas, incutem a estes poemas um forte lado de familiaridade, quaisquer que sejam as nossas origens. Um dos poemas a meu ver mais notáveis do livro chama-se precisamente “infância (e a ana também)”, que irei ler de seguida:

“a poesia / regressa sempre ao local / da infância / vou urdindo o poema / com tramas de memória / e o papel impaciente / acalmo-o / acaricio-o com o instrumento da escrita / uma quilha a romper as ondas de outrora / e é quando tudo promete / que um diabinho palrador / se aproxima e me pede colo / e lá se vão os versos sobre a infância / impossível resistir: que importa / perder um poema / quando se pode ter nos braços / toda a poesia do mundo”.

Entrelaçada com a memória de que falava surge a saudade, aqui presente em alguns poemas nos quais Anthero Monteiro recorda amigos já desaparecidos, como, entre outros, Juca Rocha e Joaquim Castro Caldas. A mágoa natural provocada pela separação física daqueles que aprendeu a gostar é sublimada pela evocação das suas facetas mais evidentes, como a rebeldia intransigente de Castro Caldas. “Bem sei que só cá vieste ver o sol / mas ninguém esquece como eras capaz / de acendê-lo numa cave à meia-noite / através da neblina dos cigarros dos copos e de todos os excessos / como fazias das segundas memoráveis domingos”.

Sérgio Almeida e Anthero Monteiro na Feira do Livro do Porto.

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Destaco também a relação com o divino. Não caberá aqui nestas escassas e mal amanhadas linhas abarcar a totalidade da concepção fi losófi co-religioso do autor. Refi ro apenas que, para Anthero, o questionamento da fi gura de Deus não é tanto um exercício provocatório ou gratuito como uma refl exão sobre o sentido da existência. Se “Deus escreve torto por linhas quaisquer”, “erra como os mortais” e é incapaz de aceitar um perdão, tal se deve em larga medida aos homens e aos seus eternos, que atribuíram a fi guras com paradeiro incerto poderes inimagináveis, só ao alcance, porventura, dos poetas. São os seus escritos mais obscuros estes, mas nem por isso fatalistas. “O cavalo da morte galopa sempre sob os meus versos”, justifi ca. Há também nestes escritos em particular uma violência e uma contundência óbvias, bem evidentes quando acusa o Senhor de ser o maior dos ateus, que abandonou aqueles que o amam sem remissão possível. Mesmo podendo ser considerados blasfemos, estes poemas jamais resvalam, como disse, para a gratuitidade, pois nunca deixam de lado o lirismo. A lucidez, título parcelar de um dos capítulos do livro,

merece também uma análise autónoma. “Optimismo é uma palavra simpática mas eu prefi ro a palavra lucidez”, escreve o autor, que explica de seguida a opção: “o optimista acredita sem mais que o sol vai doirar o dia / o lúcido consulta previamente o boletim meteorológico”, “o optimista confi a no futuro e inventa um deus para escorar essa desconfi ança / o lúcido avança pela estrada do futuro dentro e abre ao caminhar o próprio caminho” (fi m de citação). Talvez a lucidez seja uma forma mais humilde de evitarmos dizer a palavra sabedoria, que soa sempre a petulante, mesmo quando existem motivos para ser aplicada (e aplacada, já agora). Qualquer que seja a teoria certa, pelos poemas de Anthero Monteiro perpassa esse sortilégio de serenidade de quem soube extrair da vida as ilações necessárias para encarar o presente com um sorriso sempre posto. Apreciei também de forma particular a propensão erótica de um punhado de poemas aqui reunidos. A subtileza com que descreve gestos apaixonados e a envolvência que incute ao acto amoroso transmitem aos escritos de Anthero Monteiro uma elegância que se funde com o afecto. Passo a ler um excerto de erótica:

Apresentação do Livro na Biblioteca Municipal de Espinho.

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“Abres-me a porta e brotam dos teus braços

Mil portas descerrando o paraíso

Desabotoas largo o teu sorriso

Que enfl ora os meus sorrisos sempre escassos

Abres o quarto o cama o coração

Os corações pintados nos lençóis

Desafi velas tudo e me propões

Libertar da minha alma a cerração

Desabrochas as róseas fl ores do peito

As palavras mais sábias da ternura

Acendes uma fl or na fl ora escruta (fi m de citação)”

Para fi nalizar, gostaria de dedicar breves palavras ao diálogo permanente com o quotidiano, o que não exclui também, como vimos anteriormente, a propensão refl exiva. O cerrado hermetismo que por norma se atribui à poesia portuguesa, nem sempre de forma justa, encontra excepções e Anthero Monteiro é uma delas. Mesmo quando este autor recusa o sentido (como quando diz que “sei apenas que uma nuvem é uma espécie de poema e que um poema é naturalmente uma nuvem”) há um desejo comunicacional tão óbvio que nos faz de imediato cúmplices nesta jornada poética frutuosa que leva a cabo. Acima de tudo, o autor de “A lia que lia lia” aspira à completude de todas as coisas, ou seja, ambiciona uma visão do real despojada dos condicionalismos, atavismos e demais ismos que, em nome da política, da religião, mas não só, pretendem apenas agrilhoar o homem, anestesiando aquilo que ele tem de mais único: a individualidade.

Leitura de Poemas na Feira do Livro do Porto pelos diseurs Luís Carvalho e Ana Almeida Santos.

Apresentação nos Púcaros Bar, nas Arcadas de Miragaia, no Porto.

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123 Apresentação da obra HISTÓRIAS DE MÃOS DE SEDA, FADA E PRINCESA, da autoria de Maria Gracinda Coelho Sousa Ilustrações de Vasco Avillez

D. João Lavrador*

Agradeço o convite que me dirigiram para apresentar esta obra que a todos nos reuniu, «HISTÓRIAS DE MÃOS DE SEDA, FADA E PRINCESA», da autoria de Maria Gracinda Coelho Sousa. Foi uma oportunidade para saborear, antecipadamente, o conteúdo desta obra. Começo por felicitar a autora por mais esta obra que se inscreve no âmbito do conto, da fi cção e da mensagem, e da proposta de valores para a sociedade. Pelo que me foi dado ver, é fruto de uma aposta literária, já considerada abundante, dedicada às crianças, que a autora, dada a sua relação educativa e as funções que tem vindo a desempenhar no âmbito do ensino e dos cargos que lhe foram confi ados, sabiamente tem desenvolvido. Felicito, igualmente, o ilustrador, Vasco Avillez, pela beleza dos seus quadros que dão um sabor único e singular à leitura do texto. Quem lê esta obra é conduzido às histórias de infância, em estilo simples e muito agradável. É o mundo do sonho que está presente em cada criança e na criança que permanece

na gente. Os valores vão tomando corpo nas personagens que a fantasia vai criando e na narração do conto é um mundo de fi cção que vai conduzindo o leitor ou o ouvinte pelos labirintos das contradições e lutas entre a esperança e a realidade. Estão bem evidentes os problemas que caracterizam a sociedade e a cultura actuais, seja no domínio da natureza, seja no domínio das relações sociais, seja no domínio da convivência fraterna. A emergência de um conjunto de ameaças à verdadeira dignidade humana e a necessária actuação, para a qual as pessoas podem contar com um poder que está para além das suas forças imediatas, conduz à exigência de um compromisso de todos e de cada um. Entre a fantasia do método narrativo e o realismo da actuação, estamos implicados porque tudo acontece no nosso planeta terra, porque tudo acontece no nosso país Portugal, porque nos abre aos horizontes onde o clamor da violência, da fome, da guerra e da falta de respeito pela dignidade humana é mais sentida, se torna mais urgente no arco de abrangência do nosso coração e da nossa inteligência, a África, Oriente, América Latina, outros países! Paira sempre a esperança, a vitória do amor, da solidariedade e do sonho. Por isso, aqueles que se querem egoisticamente intrometer no caminho do bem-fazer são derrotados e os prisioneiros do egoísmo e da auto-sufi ciência dos homens são libertados. Permitam-me que cite alguns parágrafos da mensagem do

*Bispo Titular de Lupercia e Bispo Auxiliar do Porto.

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124Papa para o Dia mundial da Paz deste ano. Diz ele: «Com efeito, se são numerosos os perigos que ameaçam a paz e o autêntico desenvolvimento humano integral, devido à desumanidade do homem para com o seu semelhante – guerras, confl itos internacionais e regionais, actos terroristas e violações dos direitos humanos –, não são menos preocupantes os perigos que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos bens naturais que Deus nos concedeu. Por isso, é indispensável que a humanidade renove e reforce «aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho». Mais à frente refere-se a João Paulo II, dizendo: «Em 1990, João Paulo II falava de «crise ecológica» e, realçando o carácter prevalentemente ético de que a mesma se revestia, indicava «a urgente necessidade moral de uma nova solidariedade». Conclui, então, com a seguinte advertência: «Entretanto tenha-se na devida conta que não se pode avaliar a crise ecológica prescindindo das questões relacionadas com ela, nomeadamente o próprio conceito de desenvolvimento e a visão do homem e das suas relações com os seus semelhantes e com a criação. Por isso, é decisão sensata realizar uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento e também refl ectir sobre o sentido da economia e dos seus objectivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações. Exige-o o estado de saúde ecológica da terra; reclama-o

também e sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas há muito tempo que se manifestam por toda a parte. A humanidade tem necessidade de uma profunda renovação cultural; precisa de redescobrir aqueles valores que constituem o alicerce fi rme sobre o qual se pode construir um futuro melhor para todos». A situação do mundo actual a que normalmente denominamos de crise que, sendo global, atinge cada um dos países e continentes, mas com uma acentuação muito maior entre os povos com menos recursos, sendo de carácter económico, alimentar, ambiental ou social, no fundo são também crises morais e estão todas interligadas. No dizer do Santo Padre, elas obrigam a projectar de novo a estrada comum dos homens. Impõem, de maneira particular,

um modo de viver marcado pela sobriedade e solidariedade, com novas regras e formas de compromisso, apostando com confi ança e coragem nas experiências positivas realizadas e rejeitando decididamente as negativas. É o único modo de fazer com que a crise actual se torne uma ocasião para discernimento e nova projectação. Esta obra tem o mérito de se destinar a colaborar para projectos de solidariedade, nomeadamente para a biblioteca no bairro do papelão, em Uije, Angola. Fica, deste modo completo o ciclo deste conto, a fantasia do amor, como lhe designava João Paulo II, nos valores, na esperança e na aplicação com gestos concretos. Termino com uma citação de Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, que diz: «Herdeiros das gerações passadas e benefi ciários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever. Trata-se de uma responsabilidade que as gerações presentes têm em relação às futuras, uma responsabilidade que pertence também a cada um dos Estados e à comunidade internacional» (nº 17). Reforço as felicitações à autora desta obra, ao ilustrador e faço votos de um bom saborear da leitura por parte de todos os que vão ter acesso a esta obra.

Ludgero Marques, D. João Lavrador, Maria Gracinda Sousa e Pe Pires

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125 Intervenção de

Maria Gracinda Coelho de Sousa*

Ex.mo sr. Bispo Auxiliar do Porto, D. João Lavrador Ex.mo sr. Director da Associação Rosto Solidário, de Santa Maria da Feira, Padre Manuel Pires Ex.mo sr. Presidente da Assembleia Geral da Rosto Solidário, Engenheiro Ludgero Marques, Senhores, Senhoras, todos os presentes

Uma saudação inicial e um agradecimento pela vossa presença. Não me compete a mim falar do meu livro, ou melhor, do livro que já não é meu mas que escrevi e ofereci à organização não governamental Rosto Solidário, para a construção de uma Biblioteca, na Missão Passionista, no Uíge, em Angola. Sinto, porém, que devo fazer abordagem de alguns aspectos ligados ao trabalho que desenvolvi. Fui convidada em Fevereiro de 2009 para escrever um livro, com a fi nalidade de divulgação da temática dos Objectivos do Milénio (ODM) para o Desenvolvimento, junto do público mais jovem. Estes Objectivos visam a cooperação e educação para o desenvolvimento em países como Angola e Moçambique e outros, pretendendo conduzir à mobilização

para a participação dos cidadãos nesse processo. Perante tão importante temática e de acordo com os meus princípios e valores, aceitei o desafi o com satisfação, não sem estar convicta da responsabilidade de tal tarefa e da difi culdade que a mesma acarretaria pela sua profundidade, amplitude e complexidade, implicando prévia refl exão e estudo. Lancei mãos à obra, um trabalho que considero ter sido prazeroso, cativante, interessante, mas que se prolongou, pelos motivos apontados, por alguns meses. Devo dizer que tive difi culdade inicial, e em outros momentos do percurso de escrita, em construir uma estrutura capaz de comportar o carácter formativo e informativo do texto, sem desvirtuar a essência do literário, o que nem sempre foi fácil. Procurei, assim, criar planos de acção em que o lúdico, o mágico, o secreto, o belo e o imprevisto se entrosassem no tecido narrativo, de modo a despertarem, por um lado, a curiosidade do leitor e, por outro, a conseguirem cativá-lo, desencadeando e desenvolvendo momentos de encantamento, de leve, saborosa, divertida e agradável fruição de prazeres de leitura. Pretendi também que o texto fosse motivo de inspiração e de mobilização do leitor, conduzindo à criação do desejo e de vontades de responsabilização na assunção de compromissos de actuação cívica nas vivências pessoais dos quotidianos. Não há dúvida que o processo de escrita deste livro

* No Salão Nobre do Orfeão da Feira, em 6 de Março de 2010

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foi uma divertida e interessante viagem ao mundo do meu imaginário: uma mágica e ousada aventura literária com todo um leque de peripécias ao Reino do Planeta Azul, que, com inolvidável prazer, percorri, vivenciei e senti a pertença. Em mágicos momentos de vislumbre de luz dei vida e voz às personagens. Do som à palavra, da palavra à frase, fi o a fi o, fui tecendo o texto, construindo a narrativa. Num raio de sol que estendeu seus braços e se espreguiçou na frescura da aurora, surgiu Mãos de Seda, fada e princesa. Logo, de imediato, deu um toque mágico a varinha da Fada-Madrinha a anunciar a sua presença, qual anjo da guarda de Mãos de Seda, sua fi el companheira, guia, protectora e orientadora. Outras personagens foram surgindo no percurso mágico da narrativa. Direi que o livro é, através das suas principais personagens, um acto de fé, de autoconfi ança nas capacidades, por vezes ocultas, de cada um. Mãos de Seda é simbolicamente um alerta e um apelo à fada que existe no interior de cada um de nós, que tem enormes e diversifi cados poderes, uns mais visíveis, outros mais ocultos. Torna-se, pois, necessário escutar, saber descobrir e potenciar essas capacidades, indo ao encontro de nós próprios. Mãos de Seda é fada: tem nas mãos o toque mágico da varinha da vontade e do desejo de fazer mais e melhor por nós e pelos outros. Pelo trabalho, disciplina, criatividade, as mãos conseguem construir a mudança pessoal e a transmutação para um mundo mais solidário, mais justo, mais humano, mais fraterno e equilibrado. Mãos de Seda não só é fada como também é princesa. Como princesa, tem o poder alquimista da sua mente que crê nas capacidades de mudança, na possibilidade da construção de um novo reino. Alimenta a crença no “querer é poder”, no desafi o, na criação de expectativas positivas, perante um planeta que se apresenta mais cinzento e um mundo de desigualdades, de injustiças e de ganâncias. Mãos de Seda tem o poder e o desejo de renunciar aos medos e acomodações, às passividades e aos conformismos. Tem como objectivo lutar contra os obstáculos que vão surgindo e erguer a voz contra a violência e a opressão, de modo a estar ao lado dos mais desprotegidos e não ter medo da verdade. Simbolicamente a fada representa um acto de fé e a luz da esperança que não se apaga, em busca de caminhos de um mundo melhor. Não vou aqui saciar a curiosidade dos presentes, mas apenas abrir o apetite para uma saborosa e divertida leitura, não só para si próprio, como também para oferecer aos

amigos. Umas palavras de realce para as originais ilustrações de Vasco Avillez, imbuídas de harmonia, cor, beleza e criatividade. Elas são complemento importante no embelezamento do livro e mediadoras da passagem da mensagem para o público leitor. Representam, por outro lado, um contributo para a compreensão da leitura, visualização e interiorização do texto, alargando horizontes criativos e aguçando os prazeres sensitivos. Antes de terminar gostaria de ler algumas palavras do prefácio, da autoria de Luís Mah, coordenador da Campanha do Milénio das Nações Unidas – Objectivo 2015: «Mãos de Seda é uma princesa com um coração tão grande que só poderia ser a mensageira do Milénio mundo fora. Acompanhada da sua poção mágica e energética, Mãos de Seda parte em viagem pelo mundo fora anunciando princípios orientadores do Projecto Milénio. Trabalha arduamente para chamar a atenção para a necessidade de se alcançarem os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) até 2015 e assim termos um mundo mais justo e solidário». Este é para mim um momento gratifi cante. Manifesto um desejo profundo e intenso de que este livro cumpra e atinja rapidamente os fi ns desejados. Será este um prazer pessoal a aliar aos prazeres do percurso de escrita. Retomo, fi nalmente, as palavras da Nota Introdutória ao livro, do Padre Manuel Pires, director da Rosto Solidário:«Queremos tanto multiplicar a solidariedade que do livro vamos chegar a uma biblioteca. Uma biblioteca na Missão dos Missionários Passionistas em Angola, no bairro do Papelão (…). Cada livro desta edição vendido representará mais um livro na estante, mais um saco de cimento, mais uma telha… mas acima de tudo este livro representa o caminho de desenvolvimento para muitas crianças que contribuirão para um futuro diferente, um outro mundo, apenas e só porque sonham e graças a si podem alargar os horizontes!». É o sonho e o compromisso solidário de mãos dadas. Dê-nos a nós a sua mão para solidariamente darmos as mãos a essas crianças. Dar é também receber. Nós agradecemos e elas também.

Obrigada pela vossa presença.

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*Pároco de Pigeiros

Domingos Azevedo Moreira *

VISITAÇÕES

DE

PIGEIROS (FEIRA)

Vol. I (1769 – 1849)

Vol. II (1850 – 1873)

PIGEIROS 1990

A Rainha N. Sr. ª o mandou pellos seus Menistros abaixo asignados do seu Con. co e seus Dezembargadores do Passo. Balthezar Bezerra de Lima a fês escreuer em Lx.ª a 6 de Agosto de 1790. Gonçalo de Soto Mayor a fês escreuer. Manoel Niculao Esteues Negrão. Manoel Pedrozo Lima. DecretoSendo-me prezente q. em alguas Parochias do Arcebispado de Braga e do Bispado do Porto tinha intentado hua parte dos | 31 dos Parochianos eximir-se das prestaçoens com q. os seus antecessores e elles mesmos por antigo Uzo e Costume socorríão aos seus Párochos tais como as chamadas obradas ou oblatas, espórtulas de baptizados, offi cios, Funerais e bens de alma e outros desta natureza: Fui servida mandar-me informar in(di)vidualm. te sobre a just. ª e equidade destas prestaçoens p. ª as mandar conciderar e Rezoluer sobre ellas o mais justo em Benefi cio commum e Recíproco da Igr. ª, dos Parochos e Parochianos, emquanto nestes principios não der a de(ci)siua providencia. Sou outros(s)im servida porvizionalm. te (sic) (mandar) q. as ditas prestaçoens se Continuem (a dar) aos Párochos, como emthé (a)gora, sem q. em Juízo nem fora delle se admítão questoens possessórias ou plenarias dirigidas à exemção ou modifi cação das ditas prestaçoens por todos dependerem da dita providencia de(ci)siua q. me perponho (sic) dar com conhecimento da Cauza e sem q. haja attenção aos despachos ou Snn. ças q. a Respeito do Referido se tênhão proferido no

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po(sse)ssório. A meza do Dezembargo do Passo o tenha asim entendido e fassa obseruar expedindo os despachos nr. os às justissas a q. tocar. Palacio de Lx. ª, 30 de Julho de 1790. Com hua Rubrica de Sua Real Magestade».

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«Regni Portuccalie et Argarbiorum. Dominus Joannes de Almeida Mello et Castro, Minister plenipotentiarius Serenissimae Reginae Fidelissimae apud Sanctam Sedem Appostolicam nomine Majastatis (sic) suae San(c)tissimo Domino Nostro Pio Sexto Pontifi ci Maximo enixe suplicavit pro concessione universo clero Regnorum et Dominiorum eidem Reginae Fidelissimae subjectorum et Missae Dedicationis Basilicae Sanctissimi Cordis Jesu Ritu duplici primae classis cum octaua Pro elevatione |31v

Pro elevatione Ritus Offi cii Beatarum Sanciae et Thereziae Communiter nuncupatae Sanctae Reginae ad duplex maius predictis Regnis et Dominiis. Pro elevatione octauae Sanctissimi Corporis Christi ad Octavam previligiatam pro iisdem Regnis et Dominiis et demum pro facultate addendi in Cannone Missae Nomen Regnantis pro tempore, post verba et Antistite Nostro etc. San(c)titas sua referente R. P. D. Carolo Erittine, Fidei Promotore, ob peculiares circunstantias in supplicii Libel(l)o expositas, benigne indulsit, ut Festum Dedicationis Ecclesiae Sanctissimi Cordis Jesu Celebrari possit in urbe Olisiponensi Ritu duplici primae Classis et quoad Reliqua Regna et Dominis Ritu duplici mayori. Quoad Festum vero Beatarum Sanciae et Thereziae Ritu duplici minori. In Reliquis pro gratia. Die 9 Junii 1790 Joannes Cardinalis Archintus, Praefectus Izidoro Soares de Ataide».

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«O D. r Theodoro Pinto Coelho de Moura, Abb. e da Igr. ª de S. Nicolao, Men. º da Meza Eclesiastica q. de prez. te siruo de Provisor deste Bispd. º do Porto etc. Sua Ex. ca R. ma o S. r Bispo deste Bispd. º manda q. em todo elle se execute o Indulto Consoante ao treslado Incluso e juntam. te q. em todas as Missas Solemnes e Rezadas q. não forem de Requiem, no fi m da ultima oração | 31 bis oração antes de Epístola, secreta et post Communio farão a commemoração p. lo S. mo Pontífi ce

e Ex. mo R. mo S. r Bispo q. for deste Bispado, Reis deste Reyno, Rainha, Príncipe e Infantes e pella Igr. ª e Pouo na forma da Const. tam. Esta Ordem correrá a forma da Vizita e cada hum dos R. dos Par. os a fará copiar no 1.º dos Capp. tos com o m. mo Indulto e publicar p. ª constar do Referido, fazendo-o Remeter ao q. se seg(u)ir em termo breue asignando nas costas de como assim o executou e o ultimo a fará Remeter à Câmera. Porto, 7 de Feur. º de 1791 e Eu An. to J. e de Olivr. ª a sobscrevj. Theodoro Pinto Coelho de Moura».

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«O Altar de N. Snr. ª dos Remedios fi ca priviligiado por 7 annos. O D. r Theodoro Pinto Coelho de Moura, Abb. e de S. Nicolao, Min. º da Meza Eclez.ª q. de prez. te siruo de Provizor deste Bispd. º do Porto etc., etc. O S.mo P. Pio 6 às instancias do Ex. mo e R. mo S. r Bispo deste Bispd. º do Porto foi servido conceder a expecial graça de q. em todas as Igr. as Parochiais e Collegiadas deste Bispd. º haja hum Altar Priviligiado por cete annos a arbítrio do m. mo Ex. mo Senhor, e, p. ª q. se faça s(c)iente a m. ma graça, m. dou o m. mo S. r passar a prez. te e por elle determina q. em todas as Igr. as Parochiais e Collegiadas deste Bispd. º se destine hum Altar previligiado pello tp. º de cete annos, o qual será eleito pello R. do Par. º de cada hua das Parochias, e, hua vês eleito, não poderá a m. ma graça ser mudada p. ª outro. Esta Ordem correrá a forma da Vezita e cada hum dos R. dos Par. os a fará Remeter ao q. se seguir em termo breve, asignando de como assim o cumprírão a o último a fará Remeter à Cámera ecles. ª (deste Bispado. Porto, 2 de Outubro de 1792 a. E eu Antonio Joze de Olivr. ª a escrevi. Coelho) (46); Hoje nesta Igr. ª de S. Maria de Pigeiros, 15 de Outubro de 1792, principia esta graça e nomeyo o Altar de Nossa Senhora dos Remedios q. fi ca Previlligiado por estes primeiros Cete annos. Eu O Abb. e João Leyte de Bastos».

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| 31 bis v «Dom Lour. co Corr. ª de Sá, do Con. co de Sua Magd. e, Prelado da Sancta Igr. ª Patriarchal, Vigr. º Capitular e

(46) As palavras entre parêntese constam do livro de Visitações de Romariz, f. 89 verso; no texto de Pigeiros consta apenas a expressão “do Porto”.

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Governador deste Bispd. º do Porto etc. Fazemos saber a todas as pessoas Eclesiáticas e Seculares do Bispd. º do Porto q. por falecim. to do Ex.mo e R. mo Snr. D. Fr. João Rafael de Mando(n)ça, Bispo desta Dioceze, o¨ (47) Rd. º Cab. º em observancia do Decreto do Sacr. Conc. Trident. procedendo a constituir Vigr. º Capitular, Nos deputou p. ª exercermos plenam. te a jurisdição que se lhes devolveo pella morte do Ex.mo e R. mo Perlado (sic): E como não podemos obrar couza algua digna de felecid. e Eterna, em Benefi cio dos Fieis a Nós confi ados sem a inspiração, luzes e moção do Altíssimo, dependendo da sua Clemencia assistir-nos p. ª execução do bem, recorremos às fervorozas E Repetidas Oraçoens de todas as pessoas desta Dioceze, p. ª q. por meyo dellas O Senhor nos Ilustre e mova a procurar com aCerto o bem espiritual das Almas, q. nos estão commetidas. E porq. as distintas virtudes q. acommulou e tanto distinguírão o Ex. mo e R. mo Perlado (sic), q. a Sancta Gloria haja, não só excítão a mais viva saudade mas fazem tambem sumam. te Respeitáveis as suas justíssimas e Louváveis dispoziçoens, lembrados nós de q. não Edifi ca mas sim aRuína q. m se aparta das Rectas Constituiçoens de seus antecessores, Mandamos se observe inviolavelm. te tudo o q. o d. º S. r ordemnou p. las Suas Pastorais a determinaçoens, q. contivessem tracto sucessivo. Para conseguir hum tão s. to fi m em q. se intereça o bem comum Espiritual deste Bispd. º, Recomendamos ao Nosso D. r Provizor, ao Nosso D. r Vigr. º Geral e Menistros do Nosso Conssistorio pônhão hum particular cuidado em se não apartar das sábias, prudentes e Louváveis Rezuluçoens de Prelado tão exemplar q. deixou | 32 deixou nellas munumento (sic) perene do seu zelo Apostolico, da sua Re(c)tidão e da sua virtude. Como porém seríão frustadas todas as deligencias e perdidos Nossos bons dezejos se os Clérigo(s) deste Bispd. º se esquecesse(m) de servir de norma aos Seculares com o seu bom exemplo, Rogamos-lhe(s) pellas intranhas de Jesus Christo queira(m) de tal sorte preencher as obrigaçoens do seu menisterio q. Emsignando com a doutrina s. ta e sendo espelho sem mancha a q. se véjão os seculares e aprehender, digo, seculares, póssão estes Reformar os seus costumes e aprehender a modestia, a pureza, a humildade Christám e todas as virtudes. E porq. a decencia no vestido he tão Recomendade aos Eclesiásticos pellos Sagrados Cânnones e destes não esqueceo o Ex. mo e R. mo S. r Perlado falescido,

esperamos com gr. de confi ança q. de todos os Eclesiásticos deste Bisp. do particularm. te os desta Cid. e mostrem no seu traje q. são a sorte escolhida do Senhor, se conformem inviolavelm. te com as determinaçoens Repetidas vezes dadas sobre esta materia, pois veremos com gr. de mágoa do Nosso Coração q. séjão desprezados (sic) e procede(re)mos (48) com vigor contra os transgressores. Aos pastores da Segunda Ordem, os Rd. os Pár. os deste Bispd. º, lembramos tambem o gr. de e terrivel cargo q. lhes está imcumbido (sic) p. ª q. vigilantes dentinelas não deixem entrar o voraz lobo no Rebanho do S. r, já emsinando os Rudimentos da Fé com Zello e Fervor aos piquenos, já instrohindo aos adultos em tudo o q. devem saber como Christaons e como membros da Sucied. e (sic) Civil e já fi nalm. te conduzindo todos com o exemplo e com a doutrina pellos caminhos santos da Ley Evangélica inspirem as suas ovelhas ao amor da Religião, da pás e de justiça, a sugeição e obediencia à Nossa Augusta Soberana, o zelo do bem p. co e o feruor p. la felicid. e do Estado. | 32v Para conseguir tão sanctos e preciozos fi ns unan-sse a eles os cuidados e vigilancia dos Confessores e Pregadores deste Bispd. º mas com toda a paciencia segd. º p Con. co do Appóstolo poderão por isso rodos os Confessores e Pregadores continuar dignam. te o seu alto menisterio pello tp. º q. se lhe(s) facultou pello Ex. mo Prelado e Rd. º Cabido, fi cando Nós persuadidos com gr. de prazer do Nosso espírito q. saberão desempenhar fi elm. te tão sagradas funçoens. E p. ª q. venha à not. ª de todos e se cumpra, o q. tanto do fundo do Nosso Coração apetecemos, Mandamos passar o prez. te Edital q. será fi chado(49) nos lugares do Costume e Remetido a todas as Peróchias (sic) deste Bispd. º e os Rd. os Par. os a (sic) copiarão no L. º dos Capp. os da Vezita e publicarão a seus freguezes no primr. º Dom. º depois de a Receberem. Dado no Porto (e) Passo Episcopal sob Nosso Signal e Sello Capitular aos 23 de 8br. º de 1793 e Eu An. to J. e de Olivr. ª a sobscrevi. L. Vigario Capitular G. or. Ao ssello Nogr. ª. Foi publicada esta Pastoral supra em vós (sic) alta e inteligível na forma q. se me determinou, hoje de Dezembro 15. E(ra) 1793.

O Abb. e João Leyte de Bastos»

(47) No texto está “e”

(48) No texto está “procedemos”, mas no livro de Visitações de Romariz, f. 90, está “procederemos”.(49) Por “fi xado”.

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130 UMA ENCOSTA

Manuela Correia*

Quando os pássaros reunidos

habitavam o ventre da encosta

as manhãs vestiam de prata

as pétalas felizes do amor

E os dias cabiam inteiros

nas pedras que espelhavam o céu

na música intermitente das águas

no desprendimento dos pássaros

Agora as pedras submergem

no silêncio apodrecido das águas

e os dias descaem a medo

nos ninhos estilhaçados dos pássaros

A encosta encolheu de aridez

e as pétalas felizes do amor

são restos de penas e de restolho

(inédito)

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra,em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia.Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.

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* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local, é autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, Um Político de Espinho, O Campo de Aviação de Espinho, O Culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

Dicionário Biográfi co de Personalidades Feirenses

Francisco de Azevedo Brandão *

LAGO, Sebastião Pereira do (? - ?). Em 24 de Outubro de 1716 foi-lhe dado posse do cargo de Juiz dos Órfãos da Vila da Feira. Em 18 de Outubro de 1721 era vereador da Câmara Municipal da Feira. Era casado com D. Joana Maria Pereira, da qual teve três fi lhos: um fi lho de nome Sebastião Pereira do Lago e duas fi lhas.

Bibliografi a Roberto Vaz de Oliveira, Ainda a Praça Velha – Vila da Feira. Revista «Aveiro e o seu Distrito», n.º11, 1971.

LAMAS, Abílio da Silva (1867-1937). Nasceu em Cabomonte, da freguesia do Souto. Pertenceu ao Curso Teológico de 1885. Foi capelão no Hospital Conde de Ferreira, no Porto, e pároco da freguesia de Espargo, onde faleceu com 70 anos de idade.

Bibliografi a Jornal «Tradição», 25.9.1937 e 2.10.1937

LAMAS, Joaquim de Sousa (1929-2006). Nasceu em S. João de Ver a 10 de Abril de 1929, na Casa de S. Bento. Em 1940 entrou para o Seminário da Quinta de Trancoso, em Vila Nova de Gaia, tendo transitado dois anos depois para o Seminário de Vilar, no Porto, onde concluiu o Curso de Teologia. Foi ordenado Presbítero em 21 de Dezembro de 1952, na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. António Ferreira Gomes. Em 5 de Janeiro de 1953, foi nomeado Primeiro Coadjutor do pároco P.e António Soares Pacheco, da paróquia do Carvalhido, do Porto. Em Setembro de 1953, foi colocado em Rio Meão, como Vigário Cooperador, onde se manteve até 1962. Durante este período desempenhou funções de Capelão na capela de S. Miguel, em Lourosa, na capela da Praia de Esmoriz e na capela do Sameiro, em S. Paio de Oleiros. Foi pároco de Paços de Brandão em 1958/59 e 1970/71 e de Santa Maria de Lamas em 1978/80 e 1982/84 em acumulação com a paróquia de Rio Meão. De 1963 a 1965 foi Capelão Militar com o posto de Tenente, na Guiné-Bissau. Assume a paroquialidade de Rio Meão em 5 de Março de 1967, após o falecimento do pároco Padre Manuel Alves Ribeiro, ocorrido em 28 de Janeiro de 1967, aqui se mantendo durante 53 anos. A ele se devem alguns dos projectos mais importantes de Rio Meão: doou o terreno onde se implantou o campo de futebol, «Estádio Padre José de Sousa Lamas» e em parceria com a MACUR ergueu o salão paroquial, cujo terreno tinha sido por ele também doado. Foi

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o impulsionador da construção da nova igreja matriz. Faleceu a 25 de Junho de 2006, tendo sido sepultado em Rio Meão.

Bibliografi a Maria Natália Alves Rodrigues dos Santos, Jubileu Sacerdotal – P.e Joaquim Sousa Lamas. Homenagem da Paróquia de S. Tiago – Rio Meão, 2002

LAMOSO, António (1907-2005). De nome completo António Lamoso Regal de Castro, nasceu na Vila da Feira, a 19 de Novembro de 1907. Dedicou a maior parte da sua vida à terra, tendo posto o seu empenho a quase todas as associações de Santa Maria da Feira, «sobressaindo dele qualidades como a fraternidade e solidariedade». «Era a memória viva de todas as instituições da Feira, e, por isso, um fi el depositário de um conjunto de informações preciosas sobre a História local». Fez parte da Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Feira, após o 25 de Abril. Foi fundador e dirigente do Clube de Caçadores da Feira; Tesoureiro (1926), presidente da Assembleia-geral (1952) e presidente de Direcção (1963/1965), do Clube Desportivo Feirense; foi Secretário do Comando (1936), vice-presidente do Conselho Fiscal (1945), Secretário do Conselho Fiscal (1948), Tesoureiro da Direcção (1951), presidente da Direcção (1967-1969) da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Feira; foi tesoureiro da Comissão do Cortejo de Angariação de Fundos para a construção do Hospital (1958 e mesário (1968/1975) da Santa Casa da Misericórdia da Feira; foi Secretário e presidente do Conselho Fiscal da Associação de Futebol de Aveiro durante alguns anos. foi vereador da Câmara Municipal da Feira e foi, durante 30 anos o impulsionador do Teatro e cinema da Feira e dinamizado e sócio da construção do Cine-Teatro da Feira. Dele fi caram as recolhas escritas que fez sobre a História do concelho. Faleceu a 13 de Outubro de 2005.

Bibliografi a Artur Brandão, Morreu o Sr. Lamoso. Correio da Feira. 28.10.2005; «Terras da Feira», 20.10.2005

LAMOSO, Joaquim de Sá Pereira (1914-1988).

Nasceu na Vila da Feira em 1914. Antigo atleta do Grupo Desportivo Feirense, foi também componente activo do Orfeão Grupo Cénico da Feira. Aqui desempenhou vários papéis em muitas Revistas levadas a efeito no antigo teatro D. Fernando II e no palco da Casa do Povo. Escreveu uma Revista de cantares e outras de cariz regional . Era casado com D. Clotilde Sá Cruz, de quem teve os seguintes fi lhos: Maria Luísa, Izulia, Joaquim e António Lamoso. Era irmão de António Lamoso Regal de Castro. Faleceu em 20 de Fevereiro de 1988, com 74 anos de idade.

Bibliografi a Correio da Feira, 26.2.1988

LARANJEIRA, Manuel Fernandes (1877-1912). Nasceu no lugar da Vergada, freguesia de Mozelos, concelho da Feira, em 17 de Agosto de 1877. Era fi lho de Domingos Fernandes da Silva, pedreiro de profi ssão e de D. Maria Francisca Laranjeira. Matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto a 30 de Setembro de 1897, terminando o curso em 1904, defendendo tese apenas em 1907 com o seu trabalho «A Doença da Santidade (ensaio psicopatológico sobre o misticismo de forma religiosa)», com que obteve a classifi cação de 19 valores. Cedo foi morar para Espinho onde exerceu clínica e escreveu para jornais e revistas séries de artigos sobre política, crítica social, artística e literária. Colaborou no «Campeão», «Teatro Português». «Revista Musical», «Arte & Vida», «Ilustração Popular», «Serões», «Ilustração Transmontana», «Porto-Médico», «Pátria», «Norte» e «Jornal de Notícias»» 1902; «A Doença da Santidade» 1907; «A Cartilha Maternal e a Psicologia», 1909; «Comigo (versos de um solitário», 1912. Deixou ainda os seguintes manuscritos: «O Filósofo» (teatro), incompleto, 1898; «Artérias» (drama em um acto), 1905; «Almas Românticas» (peça em 3 actos), incompleta e «Naquele Engano de Alma» (farsa em um acto), 1911. Postumamente foram ainda publicadas «Cartas» (1943), «Diário Íntimo» (1957) e «Prosas Perdidas» (1958). Manuel Laranjeira faleceu em Espinho, na sua residência à Rua Bandeira Coelho, hoje Rua 19, com uma bala suicida a 22 de Fevereiro de 1912. Para homenagear aquele que tinha sido seu colaborador a «Gazeta de Espinho», de 24 de Março de 1912 publicou

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um número inteiramente dedicado à sua memória, com depoimentos de amigos e admiradores que ali evocaram o homem e o artista que ele foi. Subscreveram esses depoimentos as seguintes individualidades: Teófi lo Braga, Miguel de Unamuno, João Saraiva, João de Barros, João de Deus Ramos, José R. Carracido, J. Monteiro, Manuel de Castro, Alberto de Aguiar, Júlio Brandão Antero de Figueiredo, Teixeira de Pascoais, Ramiro Mourão, Fernando Matos, Montenegro dos Santos, Alfredo de Berredo, Florido Toscano, Ângelo Vaz, José Pinto Ventura, J. Valente Perfeito e Henrique de Sousa Montelobo,

Bibliografi a Eugénio Montoito, Manuel Laranjeira e o Sentimento Decadentista na Passagem do Século XIX, Europress Editores, 2001 Francisco Azevedo Brandão, Figuras ilustres/ Dr. Manuel Laranjeira, Boletim Cultural de Espinho, vol III, nº 11/ 12, 1981; Orlando Silva, Manuel Laranjeira, Vivências e Imagens de uma Época, Edição do autor 1992.

LEAL. António Luíz de Sousa (? -1808). Natural da freguesia de Arrifana, o desembargador Sousa Leal pertenceu ao Desembargo de Sua Majestade Real, da Relação do Porto e da Suplicação de Lisboa. Foi governador da província de Goiás, no Brasil, onde casou com D. Ana Leal Canelo de Sá. Regressado a Portugal, foi acusado falsamente de se ter vendido aos franceses e por isso foi morto por «um tumulto do povo», em Santo Ovídio, Gaia, como se diz no seu assento de óbito: «O Desmbargador António de Souza Leal. Aos vinte dias do mês de Março de 1808, foi morto por um tumulto do povo, levado desta até Santo Ovídio, onde acabaram de o matar e aí recebeu todos os sacramentos: O Desembargador António Luíz de Sousa, desta rua e freguesia (Arrifana), fi cou sua mulher obrigada aos bens da alma e para constar se fez este assento. Era ut supra. O abade Inácio José Lopes de Puga». «O pretexto da morte seria o facto dele não se ter alistado nas forças populares que defendiam o Porto, quando ele se encontrava na sua casa de Arrifana». Assim, a causa da sua morte teria sido a inveja e a vingança. Em Janeiro de 1814, D. Ana Leal comprou a quinta da Lebre, em Olival, Gaia e lá viveu muitos anos, perturbada da razão. O seu

fi lho mais velho, o «célebre morgado da Lebre» casou-se em 1831, datando dessa data a ida de D. Ana para a Quinta da Feiteira (Grijó), onde faleceu a 26 de Março de 1839, com 66 anos de idade e sepultada no adro do Mosteiro de Grijó.

Bibliografi a P.T. «Da Terra que Já Foi da Feira», jornal «Tradição», 23.2.1935

LEAL António Luíz de Souza (1807-1845). Era fi lho do desembargador do mesmo nome, de Arrifana. Nasceu naquela freguesia em 1807, tendo apenas ano e meio quando seu pai foi morto «por um tumulto de povo». Era conhecido como morgado da Lebre, título que vinha da Quinta da Lebre, Olival, por antes de 1750, Domingos de Freitas Guimarães, do Porto, ter instituído nessa propriedade um vínculo de morgadio. Esta quinta tinha sido comprada, em 1814, por sua mãe, D. Ana Leal Canelo de Sá, já então viúva. Mais tarde, o morgado vendeu a Quinta da Lebre a seu irmão José Luíz e foi residir para a Quinta da Feiteira, em Grijó. Casou com uma vendedeira de peixe, Teresa das Neves, em 13 de Junho de 1831, na igreja de Olival e foram viver para a Feiteira, «onde a vida dele foi um calvário». Houve um fi lho, nascido a 28 de Abril de 1838. O morgado da Lebre faleceu a 10 de Março de 1845, com 38 anos de idade e foi amortalhado com o manto da Ordem de Cristo de que era cavaleiro e Teresa das Neves faleceu a 4 de Novembro de 1849, também com 38 anos de idade.

Bibliografi a P.T., «Da Terra que Já Foi da Feira», Jornal «Tradição», 2.3.1935

LEAL, Jacinto José Pereira (? - ?). Vivia em 1754, segundo Provisão de Comissário de 25 de Janeiro 1754 que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «Sacerdote do hábito de S. Pedro, formado pela Faculdade dos Sagrados Cânones; natural da freg. de S. Pedro de Canedo, Feira, morador na vila de Arrifana do Sousa; fi lho de Sebastião Pereira do Lago, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, natural da freg. de S. Nicolau da Vila da Feira, e de D.

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Joana Jacinta Leal Pacheco, natural da freg. de S. Martinho de Arrifana do Sousa, moradores em S. Pedro de Canedo, neto paterno de Pantaleão Pereira do Lago, natural de Baçar, freg. de S. Pedro de Castelões, e de D. Joana Maria Pereira, natural da Feira, freg. de S. Nicolau, e materno de António de Sousa Pacheco, natural do Casal do Frade, freg. de Mouriz, Paredes, e de Ana Leal, natural da freg. de S. Martinho de Arrifana do Sousa; irmão de D. Maria Joana Jacinta Pereira do Lago, mulher do Sargento-Mor Manuel Álvares de Castro e Araújo, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e Familiar do St.º Ofício, e sobrinho materno do Lic.º Jacinto Leal de Sousa, reitor da paroquial igreja de S. Pedro de Canedo e Comissário do Santo Ofício. Provisão de Comissário de 25 de Janeiro de 1754. A.N.T.T. – Jacinto –m.4, n.º57»

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício, Revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.129 (Janeiro, Fevereiro e Março), 1967

LEAL, Joaquim de Almeida Correia (1828- 1910). Nasceu em Paços de Brandão a 25 de Setembro de 1828. Era fi lho de João Bernardo Correia Leal, monteiro-mor e de D. Francisca de Almeida Correia Leal. Matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 1845. A sua carta de formatura data de 24.5.1851. Assenta banca de advogado na Vila da Feira, abandonando-a pouco depois para seguir a carreira da magistratura. Em 1854, foi nomeado delegado do procurador régio para a comarca de Ovar, por decreto de 18 de Janeiro desse ano. Por decreto de 20 de Fevereiro de 1863, foi nomeado juiz de Direito de 3ª classe da comarca de Sabugal e um ano depois na comarca de Arganil por decreto de 21 de Abril de 1864. Como juiz de 2ª classe foi nomeado para Trancoso, por decreto de 18 de Junho de 1868 e passa ainda pelas comarcas de Anadia (Decreto de 26.8.1869) e de Valença (Decreto de 2.9.1874). Como juiz de 1ª classe foi nomeado para a comarca de Silves (Decreto de 17.12.1874), lugar que não ocupou, sendo colocado no quadro da magistratura judicial sem exercício (Decreto de 1.5.1875). Em 17 de Fevereiro de 1876, tornou a retomar funções na comarca de Barcelos passando depois pela comarca de Braga (Decreto de 23.11.1876), e do Porto (Decreto de 7.6.1877, 1ª. Vara) de Decreto de 4.5.1882, 2ª. Vara). Por

decreto de 13 de Dezembro de 1883 foi provido na Relação dos Açores. Três anos depois, por decreto de 12 de Agosto de 1886, foi colocado na Relação do Porto, tendo exercido mais tarde (Decreto de 19.7.1901) o cargo de vice-presidente da mesma. Em 1902, por Decreto de 24 de Maio foi nomeado juiz-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Era casado com D. Ana Emília Pinto de Almeida, Senhora da Quinta de Baixo, em Paços de Brandão, de quem teve vários fi lhos, entre os quais D. Edwiges de Almeida Correia Leal, nascida a 17 de Outubro de 1862 e falecida a 10 de Setembro de 1944. À sua morte as propriedades daquele foram divididas por 3 herdeiros, um dos quais o Dr. Arménio que aí reside. Na sua vida política aderiu ao Partido Progressista, tendo sido eleito deputado pelo círculo uninominal da Feira nas eleições gerais de 1887. Vem mencionado no «Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1834-1910, vol. II (D-M), de Maria Filomena Mónica, no verbete assinado por Fátima Moura Ferreira, nos seguintes termos: «Eleito deputado aos 59 anos, desempenhou um papel sumário nos trabalhos parlamentares, circunscrito às comissões para que foi eleito: Legislação Civil (1887); Infracções (1887); Recrutamento (1887); Legislação Penal (1888). De salientar apenas a co-autoria num projecto de lei sobre matéria judicial (13.3.1888) e a apresentação de um requerimento de interesse particular de cidadãos da Vila da Feira (1889)». Os Serviços prestados pelo Conselheiro Correia Leal a Espinho foram recordados pelo Padre André de Lima num artigo publicado no «Espinho Ilustrado», de Maio de 1931: «Foi o Conselheiro Correia Leal que, juntamente com o Conde da Graciosa, conseguiu junto do Director Geral dos Caminhos de Ferro, o Engenheiro Espregueira, que Espinho fosse dotado de uma estação ferroviária que viria a ser inaugurada em 1874».O Conselheiro Correia Leal faleceu, na sua casa de Paços de Brandão, a 16 de Agosto de 1910.

Bibliografi a «Defesa de Espinho», 23.6.1973; «Espinho Ilustrado», Maio de 1931;Francisco Azevedo Brandão, Figuras Ilustres – Conselheiro Joaquim Correia Leal, Boletim Cultural de Espinho, vol. II, nº. 7, 1980; Francisco Azevedo Brandão, Anais da História de Espinho, vol. I , C.M.E., 1991;

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«Gazeta de Espinho», 21.8.1910;Maria Filomena Mónica, Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1834-1910, vol. II (D-M), Assembleia da República, 2005.

LEAL, Manuel de Beça (?-?). Vivia em 1683. Licenciado. Reitor do Mosteiro de S. Pedro de Canedo, Feira; natural de Arrifana de Sousa; fi lho do Lic.º António Leal de Sousa, Familiar do Santo Ofício, e de Brites de Beça Leal, naturais e moradores em Arrifana de Sousa; neto paterno de Pantaleão Rodrigues; fi lho de Cristóvão Rodrigues e de Catarina Fernandes, naturais da freg. de Cristelo, Arrifana de Sousa, e de Maria Leal, e materno de Belchior de Beça e de Maria Vicente, igualmente naturais e moradores em Arrifana de Sousa. Provisão de Comissário de 28 de Agosto de 1683. Manuel – m. 31, n.º 679. Deixou a paróquia de Canedo em 1706 para se recolher na Congregação de Oliveira do Douro.

Bibliografi a Arlindo de Sousa, Canedo. «Correio da Feira», 20.7.1963. Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.º154 (Abril, Maio e Junho), 1973.

LEAL, Manuel Pereira (? - ?). Foi pároco na freguesia do Souto em 1871. Era conhecido por «padre dos Pereiras da Pousada».

Bibliografi a Jornal «Tradição», 8.8.1936

LEAL, Simão de Sousa (? -?). Era pároco da freguesia de Lobão em 1720.

Bibliografi a Cónego A. Ferreira Pinto, S. Pedro de Canedo. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 15, 1938

LEÇA, José Francisco (? - ?). Vivia em 1763, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «capitão do aviso “S.ª Sr.ª da Esperança»; natural da freg. de S. João de Ver, Feira, e morador em Lisboa, na Bica, junto a S. João Nepomuceno; fi lho de Manuel Francisco, natural de Azevedo. Freg. de S. Jorge, Feira, e de Esperança Gomes, natural de S. João de Ver, e aí moradores; neto paterno de Manuel Francisco e de Antónia Soares, naturais e moradores em Azevedo, e materno de André Gomes, o «Novo», natural de Souto Redondo, freg. de N.ª Sr.ª da Conceição de Rossas, Arouca, e de Catarina Gomes, natural de S. João de Ver, e ai moradores.

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima, O distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício, Revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.º140 (Outubro, Novembro e Dezembro), 1969

LEITE. Agostinho Rodrigues (1898-1981). Foi pároco de da freguesia de Espargo (Feira) durante 52 anos. Faleceu em 19 de Agosto de 1981.

Bibliografi a Correio da Feira, 28.8.1981

LEITE, Armando Milheiro da Costa (1906-1983). Natural da freguesia de Escapães (Feira), «foi um cidadão de grande merecimento», Escapães deve-lhe muito, pois foi elemento preponderantede um elenco autárquico e membro activo da Fábrica da Igreja, trabalhando em favor da sua comunidade. Era casado com D. Laurinda Rosa de Lima, de quem teve 6 fi lhos: Manuel Milheiro, Maria Helena, Pedro Lima, Domingos Lima 8padre em Alpendurada) e Fernando Lima (padre prof. do seminário) e Maria Idália. Faleceu na sua casa da Granja, freguesia de Escapães, em 8 de Janeiro de 1983 com 77 anos de idade.

Bibliografi a Correio da Feira, 14.1.1983

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LEITE, Crispim Gomes (1889- 1965). Nasceu a 18 de Março de 1889 na freguesia de Mosteiro, concelho da Feira. Concluiu o curso teológico no Seminário Episcopal do Porto em 1910, sendo então nomeado fâmulo do bispo D. António Barroso, tendo-se conservado no paço episcopal até 1911, data da sua ordenação. Foi pároco nas freguesias de Fornos (1911-1914) e de Escapães, no concelho da Feira, na freguesia de Airães, em Felgueiras e do Souto na Feira e pela primeira vez na freguesia de S. Cosme de Gondomar, onde esteve durante 14 anos. Mais tarde foi nomeado pároco da freguesia das Antas, no Porto, transitando depois para Ovar, regressando à Sé do Porto. Daqui foi para pároco de Mosteiro, voltando pela segunda vez A S. Cosme de Gondomar. Aqui foi nomeado presidente da Comissão Administrativa de Gondomar, em 26 de Outubro de 1931, cargo que ocupou até 30 de Julho de 1932. A 16 de Abril de 1934, é nomeado presidente da Câmara Municipal de Gondomar, cargo que deixou em 10 de Novembro de 1937. Faleceu na freguesia de S. Cosme, Gondomar, em 27 de Outubro de 1965.

Bibliografi a Correio da Feira, 1.8.1959:Padre José Alves de Pinho, Outrora…Fornos. Edição da LAF Liga doa Amigos da Feira, 2005.

LEITE, Diogo (? -?).. Vivia em 1721, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «natural e morador em Oliveira de Azeméis; fi lho de Brás Fernandes e de Francisca Fernandes, naturais de Arrifana de Santa Maria da Feira; neto paterno de Pedro Fernandes e de Isabel Fernandes, e materno de Manuel Francisco e de Maria Francisca, todos de Arrifana de Santa Maria. Carta de Familiar de 27 de Fevereiro de 1721. Diogo – m. 19, n.º 206

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º113, 1963

LEITE, Francisco Oliveira (1870-1946). Nasceu em Paços de Brandão em 1870. Era casado com

D. Clementina do Génio e cedo se ligou à música, tendo estado na génese da fundação da Tuna estudantina, infl uenciado pelo seu amigo Joaquim Rosas, tendo actuado também na Tuna Velha até 1930 Tocava ocarina. Foi juiz de Paz de Paços de Brandão durante o regime monárquico, tendo sido membro do tribunal local pelos monárquicos no tempo da República.

Bibliografi a Informação fornecida pelo sr. Eduardo Rocha, actual correspondente do «Correio da Feira» em Paços de Brandão.

LEITE, Gualdino Gomes (1910-1947). Nasceu na Vila da Feira em 25 de Setembro de 1910. Foi secretário-dactilógrafo na Presidência do Conselho de Ministros de Oliveira Salazar, para onde tinha entrado com elevadas classifi cações profi ssionais e ali se manteve até à sua morte, no Sanatório da Guarda, em 5 de Setembro de 1947. Passados cinco anos após a sua morte, foi trasladado para a sua terra natal. O jornal «Correio da Feira», de 19 de Abril de 1947 transcreveu na íntegra, a palestra que Gualdino Leite proferiu na Rádio sob o título «A Minha Terra».

Bibliografi a António Lamoso Regal de Castro, Factos e Personalidades da Feira 1917 a 1950. Edição do autor, 1991: Correio da Feira, 19.4.1947

LEITE, Jerónimo Ferreira de Sousa (? - ?). Foi pároco de Fiães de 1746 a 1750, em pleno reinado de D. João V. Estabeleceu ali a Confraria de Nossa Senhora do Carmo em 1750.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940

LEITE, João Ribeiro (? -?). Era Alferes Granadeiro no Regimento de Milícias de Oliveira de Azeméis em 01.02.1811 e residente em Arrifana, donde devia de ser natural.

Bibliografi a Nuno Gonçalo Pereira Borrego, As Ordenanças e as Milícias

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em Portugal, Subsídio para o seu estudo. Edição Guarda-Mor, Edição de Publicações Multimédia, Lisboa, 2006 LEITE, José da Silva (1877-1963). Natural do lugar da Piedade, Vila da Feira, «foi um entusiasta componente da velha Tuna do «Zé Martins», da Feira» e presidente da Junta da Vila da Feira. Era casado com D. Felicidade Bragança de Assunção, da qual teve os seguintes fi lhos: Zulmira, Julieta, Maria, Berta, Madalena; Lino, Augusto, Ramiro, Manuel e Ernesto. Faleceu em 30 de Janeiro de 1963, com 86 anos de idade.

Bibliografi a Correio da Feira, 2.2.1963

LEITE, Lourenço Homem Carneiro (? - ?). Foi pároco da freguesia de S. Jorge, de 1753 a 1756.

Bibliografi a P.e José Inácio da Costa e Silva, A Freguesia de S. Jorge, jornal «Tradição», número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940

LEMOS, Alfredo Pereira Pinto de (1875-1945). Nasceu em 8 de Janeiro de 1875. Era fi lho de Francisco Pereira Pinto de Lemos, 1.º Conde das Devesas, e de D. Maria da Conceição Bandeira de Castro. Casou com D. Camila Machado dos Santos, nascida a 8.08.1878, fi lha de Vicente Ferreira dos Santos e de D. Camila Máxima Machado. Foi o 2º Conde das Devesas. Faleceu em 30 de Dezembro de 1945.

LEMOS, Ernâni Carlos Pereira Pinto de Castro e (1875 - ?). Nasceu em 1875. Era fi lho de Francisco Pereira Pinto de Lemos, 1.º Conde das Devesas e de D. Maria da Conceição Bandeira de Castro. Casou, a 6.3.1912, com D. Carlota Pimentel Maldonado Correia de Araújo, nascida em 3.7.1884, fi lha de Eduardo Alberto Correia da Silva (1852), 1.º Visconde Odivelas e de D. Palmira Pimentel Maldonado (1851). Foi o 3.º Conde das Devesas.

Bibliografi a Guarda-Mor. Edição de Publicações Multimédia, Lda.

LEMOS, Francisco Pereira Pinto de (1849-1916). Nasceu na freguesia de Sanfi ns (Feira) em 10 de Dezembro de 1849. Casou com D. Maria da Conceição Bandeira de Castro (nascida a 27.03.1853 e falecida a 20.11.1916), fi lha de Rufi no Joaquim Borges de Castro e de D. Henriqueta Augusta Bandeira. O rei D. Carlos atribuiu-lhe por decreto de 23.08.1890 e por carta de 23.10.1890, o título de 1.º Conde das Devesas. Foi proprietário da Quinta do Arco do Prado, em Vila Nova de Gaia, onde em 1923 foi implantada a fábrica de cerâmica do Carvalhinho que laborou desde essa data até 1974. Nesta data foi vendida em hasta pública a Serafi m Andrade «já numa fase de total decadência, acabando por encerrar defi nitivamente em meados da década de 80». Do seu casamento houve dois fi lhos: Alfredo Pereira Pinto de Lemos, 2.º Conde das Devesas e Ernâni Carlos Pereira Pinto de Castro e Lemos, 3.º Conde das Devesas. Faleceu a 2 de Novembro de 1916.

Bibliografi a Guarda-Mor. Edição de Publicações Multimédia, Lda.

LEODERIGUES, Vitiscilo (? - ?). Era fi lho de Leodorigo Gondesendes e de Ermengro. Depois de ter casado a primeira vez com Ausenda Zalamiz, adquiriu bens ao sul do Douro, em Pedroso, Fiães, Lobão e Lagoa (Ovar) e outros na região da Maia, em Canidelo, onde viveu mais tarde com a segunda mulher, Vistrígia Galindes. De Ausenda Zalamiz teve os seguintes fi lhos: Leodorigo, Sarracina, Tutadona e Sanha (morreram antes de 980 «e provavelmente sem descendência, porque seu pai herdou deles vários bens»), e ainda Godo, Sunemiro (que herdou bens em Fiães e Caldelas), Gondesendo (que herdou bens em Lobão, Lagoa, Colobal e Pedra Curua; teve uma fi lha, Ermentro Gondesendes que teve propriedades em Lobão e em Lagoa e vivia pelos anos 1031-1037 e casou com Guterre Trutesendes). Da segunda mulher, Vistrégia Galindes, Vitiscilo Leodorigues teve dois fi lhos: Alivergo e Vitiscilo Vitisciliz.

Bibliografi a José Mattoso, A Nobreza Medieval Portuguesa – A Família e o Poder. Editorial Estampa, 4.ª edição, 1994.

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LIBÓRIO, Bernardo António de Pinho (? - ?). Abade encomendado de Santiago de Rio Meão em 25 de Dezembro de 1849. Pertencia à família dos Libórios, de Souto Redondo, Freguesia de S. João de Ver. Seria irmão ou tio de Francisco António de Pinho Libório que casa, em 1846, em Rio Meão, com D. Margarida Rita de Pinho e Azevedo, da Casa e Quinta dos Azevedos de Rio Meão, a qual faleceu naquela casa em 25 de Dezembro de 1849.

Bibliografi a David Simão Rodrigues, Rio Meão, a Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001

LIMA, Artur Pinho de (1890-1974). Nasceu na Vila da Feira em 1890.Republicano e democrata colaborou sempre em iniciativas que contribuíssem para o engrandecimento da terra, tendo sido sócio fundador de quase todas as colectividades do seu tempo. Faleceu em 8 de Abril de 1974, com 84 anos de idade.

Bibliografi a Correio da Feira, 13.4.1974

LIMA, João Carneiro de (? - ?). Vivia em 1755, segundo Provisão de Comissário do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve:

«Abade da freg. de S. Martinho de Escapães, Feira; natural da freg. de S. Salvador de Fornos,Feira; fi lho de António Marques da Mata, natural de Fornos, e de Maria Carneira, natural de S. Tomé de Correlhã, Ponte de Lima, moradores em Fornos; neto paterno de João da Mata e de Joana Marques, naturais e moradores em Fornos, e materno de João Vaz e de Maria Carneira, naturais e moradores em Correlhã”. Provisão de Comissário de 17 de Outubro de 1755. A.N.T.T. – João - m. 113, n.º1838

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima. O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Arquivo do Distrito de Aveiro.

LIMA, Pantaleão da Costa (? -?). Vivia em 1750, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «médico aprovado pela Universidade de Coimbra e dos de partido de Sua Majestade, natural de Vilarinho, freguesia de S. Martinho de Aldoar, Porto, morador na cidade do Porto na freguesia de Santo Ildefonso; fi lho de João da Costa, natural de Albergaria, freguesia de S. João de Ver, Feira, e de Inácia da Silva, natural de Aldoar, e aí moradores; neto paterno de Manuel Fernandes, natural de S. João de Ver, e de Catarina Fernandes, natural de Albergaria, e aí moradores, e materna de João António e de Maria Antónia, naturais e moradores em Aldoar; casado com Ana Maria dos Anjos, natural de Passos, Aldoar, fi lha de João da Costa Correia, natural de Aldeia da Costa, freguesia de Sobrado, Valongo, e de Maria de Azevedo, natural de Passos. E aí moradores, neta paterna de João Fernandes e de Domingas Martins, ou Domingas João, naturais e moradores na Aldeia da Costa, e materna de Manuel de Azevedo, natural do Ouro, freguesia de S. Martinho de Lordelo do Ouro, e de Ana Antónia, natural de Passos, e aí moradores, irmã de António da Costa Azevedo, familiar do Santo Ofício, morador em S. João da Foz.Carta Familiar de 8 de Janeiro de 1750Pantaleão – m. 1, n.º22»

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 166, 1976

LOPES. Frei Braz (? – 1751?). Nasceu em Rio Meão Em 1672, é coadjutor de Cortegaça e em 1690 é cura de Maceda. Em 1701 vivia na sua casa, no Casal do Ermo, lugar de Alpoços, Rio Meão. Em 5 de Maio de 1702 fez parte de uma comissão que, partindo do alpendre da Capela de Santo António, foi para Arca Pedrinha e Arada para ali confrontarem e demarcarem as terras da Comenda de Rio Meão que cordeavam até à costa marítima alinhando com as do Cabido da Sé do Porto, com o qual a Ordem de Malta andava em pleito judicial por causa dos marcos.

Bibliografi a David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na

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História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.º130 (Abril, Maio e Junho), 1

LOURENÇO, Estêvão (? -?-). Era procurador na Feira do rei D. Dinis em 1284. Num documento de 2 de Junho daquele ano «havendo contenda entre D. Dinis, através de Estêvão Lourenço, seu procurador, e vários párocos, por causa de diversas propriedades detidas pelos clérigos nas povoações da Feira e Fornos (conc. Feira) e respectivos termos, que eram foreiras do Rei, o monarca ordena que os ditos abades lhe pagassem os foros devidos e proíbe-os de alienar estes bens da Feira o encabeçamento destas suas propriedades em casais».

Bibliografi a IANTT, 2.268 liv., 1042 mç., 34 cx., 165 proc.

LUCÍDIO, Mem; Guterres, Mem; e os senhores de Marnel. O rei Bermudo II, de Castela fez doação a estes cavaleiros, no ano de 900, das Terras de Santa Maria.

Bibliofrafi a Jornal «Tradição», número especial, «O Concelho da Feira nas Comemorações dos Centenários», Setembro, 1940.

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quantas vezes?

Conceição Paulino*

quantas vezes podeum humano coraçãopartir-se?

quantas vezes?

quantas vezes podeo humano coraçãoreconstruir-se?

e de cada vezque se partee de nós se apartamvoadores estilhaços…

que partesa nós retornam?

*Natural de Beja. Escritora. Publicou As Tarefas Transparentes (1993)

-O Luar da Espera (1994) - Falar Mulher (1997) - Salvador o Homem e

Textos Inconsequentes (2007) - O meu País é um sonho sonhado (2009).

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141 Apresentação do livro de poemas PÉRIPLO de Edgar Carneiro*

por Anthero Monteiro**

É uma enorme responsabilidade esta de ser o discípulo a apresentar uma obra do mestre. Nunca esquecerei que foi Edgar Carneiro um dos vários escritores que, numa noite pluviosa de 1997, apresentaram o meu primeiro livro de versos, o que constituiu para mim o grande incentivo para prosseguir a edição literária, encetada naquela altura. Depois disso, já eu tive também o prazer de poder falar publicamente de outras obras suas, pois que até me foi dado o honroso trabalho de prefaciar a sua Antologia Poética e de nela deixar uma minucioso resenha biográfi ca e uma recolha do que, sobre ele, tinha sido dito e escrito pela crítica literária. Li toda a sua obra, acompanhei de muito perto tudo o que produziu e tudo o que dele disseram os mais e os menos entendidos, fui seu companheiro em dezenas de tertúlias literárias desde o início da Onda Poética e pude emprestar-

lhe, não poucas vezes, os olhos e a voz para a leitura pública de poemas seus que sempre me foi confi ando. Todos estes privilégios não conseguirão apagar a dívida de gratidão que tenho para com ele nem este sentimento de respeito e de humildade para com o mestre, com quem me foi dado partilhar e aprender tanta coisa sobre este nosso interesse comum – essa matéria algo vaporosa e familiar aos deuses, que é a Poesia. Bem sei que ele me considera como um condiscípulo das letras, mas isso deve-se integralmente à fi nura de trato e à elegância moral que fez dele um poeta estimado por todos, dos mais novos aos que tentam apanhá-lo na escadaria da idade, o que não vai ser nada fácil. É que Edgar Carneiro, no limiar do número redondo que é a centena (e há-de lá chegar), já «deu a volta ao mundo, deu a volta à vida», como diz o fi lho pródigo no “Regresso ao Lar” de Guerra Junqueiro. Fez a sua viagem de circum-navegação, conheceu mares e continentes e ilhas e golfos e istmos e pode, portanto, neste livro que, por isso mesmo, intitulou de Périplo, (e “périplo” é também o relato duma longa viagem) dar-nos conta dessa aventura, que é a vida que viveu e que soube bem

**Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.

*Este texto reproduz a intervenção de apresentação do livro de Edgar Carneiro feita por Anthero Monteiro no auditório da Junta de Freguesia de Espinho, no dia 3 de Dezembro de 2009, evento organizado pela Universidade Sénior daquela cidade. Posteriormente, no dia 6 de Maio de 2010, o livro foi apresentado também por Anthero Monteiro na Biblioteca Pública de Chaves, terra natal do poeta, nas vésperas do seu 97.º aniversário.

Foto Anaas

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aproveitar, como nos sugere já o título de um dos seus livros, de 1991: Vida Plena. Vida Plena, porque não apenas passou por ela, mas viveu-a em todos os seus momentos, mesmo aquele que, como um «súbito relâmpago / se ilumina e desfaz / em menos de um segundo», e viveu-a, ainda para mais, com «o gosto de viver», como diz num dos poemas deste novo livro:

Enquanto o Sol abrire a fl or desabrochar;enquanto a aurorafor irmã do mar;enquanto o fruto dera cor ao sangue;enquanto o vento é sale a praia é grande;enquanto o véu subire só mostrar beleza;enquanto tudo istofor certeza;enquanto tudo istoacontecer,então a noite olvideo seu negrumee o galo canteo gosto de viver.

Este galo é o poeta, – e mais adiante há um melro que com ele também se identifi ca («O melro assobia / a pedir-me que eu cante / a beleza do dia) –, e da sua poesia já eu escrevi há onze anos (e mantenho o que disse) que se trata «de uma poesia eminentemente solar, diurna, luminar, simultaneamente telúrica, quase vulcânica. O Sol pontifi ca sempre na paisagem, como um desenho de infância, e a sua presença ou ausência tudo defi nem.» Na altura aduzi vários exemplos, mas não faltam em Périplo outros muitos, para além do poema que acabei de ler, que justifi quem que eu mantenha aquela afi rmação:

A luz sorveu a trevalibertando o meu sonode insegurae fatídica prisão.Agora sou felizsem pesadelos,sentindo ao despertaro grito dos espelhose a volúpia das rosasna brisa matinal.

É o poema do «despertar», onde a felicidade só desperta também com a manhã («Agora sou feliz») e a noite que passou,

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habitada de «pesadelos», surge equiparada a uma «insegura e fatídica prisão». Não, a noite, cujo espírito «entendia o mal sem nome» de Anthero de Quental, a noite, irmã e refúgio para tantos poetas, não deslumbra Edgar Carneiro, que opta claramente pela sua contrária e se regozija com ela:

A noite é beladizem os poetasem versos onde a vidaé toda luze as horas só de o seremjá são belas.

A vida é beladizem os amantesquando estão dentroe em cego impulsovêem as estrelas.

A vida é beladizem os doentesse deixam de sentira dor que os oprimia.

Também com todosdigo a noite é bela;mas quando ao romper d’albaabro a janelaencho os pulmões e grito:- É dia, é dia, é dia!

Edgar Carneiro segue, nesse particular, o mesmo sentimento diuturno e apolíneo de um Eugénio de Andrade e afi rma a sua predilecção pelo sol a prumo, o «do meio-dia em ponto / no momento exacto / de exaltar o tempo / sem demos, sem nuvens / só vida em redor.» Detestando a chuva («De tanto chover / a voz fi cou seca / e a lira molhada»), é o Sol o verdadeiro factor da vida. E a vida, identifi ca-a com o sonho, um sonho também ele solar, e é por isso até que

esta rosa brancaque se fecha ao ventoe se mostra esquivaao gosto da abelha;esta rosa alvapara além da alvura;esta rosa brancaé, ao gosto quentedo meu sonho vivo,para mim não brancamas sempre vermelha.

Sabe-se lá se não é esta visão positivista da vida o segredo da longevidade deste jovem quase centenário, que explica o seu procedimento num dos tercetos fi nais do livro:

Queimo a tristezaNa labareda vivaDa alegria.

E não é costume dizer-se que a sorte se procura? Não é por acaso que ele se considera alguém bafejado pela sorte, ou melhor, alguém que soube puxar a sorte para o seu lado:

Fosse por ter boa estrelae do signo andar a jeitoou da forma resolutade avançar o pé direito;

fosse de hoje não ser sexta,da ferradura encontrada,do trevo de quatro folhas,do degrau fi rme na escada;

fosse de não ser o trezeo meu dia natalício;da aposta ganha no jogopor acaso, não por vício;

fosse de tu existirese nos termos encontrado,sei que me sinto felize tenho a sorte a meu lado.

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Não se pense, todavia, que esta espécie de estado de graça se opera pela inconsciência, pela fuga às responsabilidades ou ao arrepio das coisas sérias e graves. O sujeito poético tem evidentemente consciência do seu destino mortal, da miséria do homem e a lucidez do tempo que se esgota destinado a um fi m. É como se, no cenário do fundo do palco da vida, estivessem escritas em letras descomunais estas palavras que servem de título a um dos seus mais lúcidos poemas: «No princípio era o fi m». Ele não esquece que «A vida tem seu custo» e que «Agora só nos resta ser Abel ou Caim», personagens que já não conheceram o Éden e que, como todos nós, (diz o poeta num dos mais belos textos da colectânea) se confrontam com essa realidade de «um paraíso perdido /que buscamos / por veredas estreitas / onde os anjos caminham de muletas». Aliás, também ele, autor, caminha de bengala, objecto que lhe é bem familiar e que ele estima, porque…

É ela que retém o meu olhar,guia fi el dos passosque me levamaonde os que eu mais dertambém vai dar.

É a lucidez que o leva a assumir outras fraquezas e a necessidade de outros arrimos: para além do homem e do poeta, destinado a «morrer de sede / mesmo vendo as fontes», acode-lhe «a saudade (…) dos calores que o sol dava antigamente» e, apesar da crença numa entidade que tem de ser o modelo da beleza, deixa-se também assaltar pela dúvida e pelo temor de, no outro mundo, «vir a ter saudades do degredo» aqui vivido. E, apesar da aparente alegria que sustenta a estrutura dos seus poemas, é uma grande contradição ter que confessar:

Para afogar as mágoascanto;para afastar o tédiocanto;se estou doridocanto;se fi co tenso, áridoinsegurocom medo à mortecanto.Canto, canto, cantoe não deploroPorque estou tristecanto,se fi co alegrechoro.

Porque lhe ouvi prometer há dias que não iria escrever mais nada (e isso não se deve à ausência da musa, que continua por perto, mas sim às difi culdades de visão), este seu 14.º livro, se contarmos com a obra de estreia (Caminhos de Fogo, que renegou por ser livro da juventude), e também com a Antologia Poética de 1998, é, como vimos o relato da sua viagem pelo mundo e afi gura-se-nos, assim, como um verdadeiro testamento poético. Deixa-nos, sobretudo à cidade de Espinho que adoptou como sua, um legado extremamente importante. Esse legado é reconhecido por vários autores, dos quais já falei no prefácio à Antologia, mas convém citar um ou outro para que não se julgue que é este amigo seu que quer favorecê-lo. Edgar Carneiro consta do vol. IV do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto do Livro e das Bibliotecas. Aí se diz: «Para Luís Miranda Rocha,

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“são dois os fundamentais motivos de interesse da sua poesia: o primeiro é o rigor da escrita – agilidade estilística, domínio de meios expressivos, economia discursiva, outras qualidades que à noção de rigor se associam; o segundo é a dependência no referencial em relação à realidade social, regional.” João Gaspar Simões via na sua poesia “através de um verbalismo que se ponderabilizou na escola dos poetas dramáticos (particularmente Torga) uma altura considerável no nosso lirismo.» Também o crítico literário Ernesto Rodrigues lhe dedica um capítulo inteiro no seu livro Verso e Prosa de Novecentos, onde podemos respigar vários outros preciosos elementos para o legado edgariano: poeta epicurista, de um hedonismo elementar e delicada e incontornável sensualidade; fé insofi smável na existência concreta, aqui e no Além; insinuante presença da vida nos seus versos; o solar a juntar-se ao sensual e também a presença do amor, enfi m, todo «um quadro escandalosamente afi rmativo e confi ado», muito pouco usual nos dias de hoje. Nos aspectos formais, Ernesto Rodrigues detecta em Edgar Carneiro uma simplicidade apenas aparente, com «o domínio pleno dos quebrados e da redondilha». Já noutro lugar o reputara «como o nosso melhor artista em verso curto». A isso acrescentaria eu, que estudei com alguma minúcia o que chamei “poética da brevidade”, que Edgar Carneiro é um dos nossos mestres, não apenas do verso curto, mas também da concisão, que é, afi nal, a difícil arte de escrever em exiguidade e em luminescência, ou seja, fazer com que poucas palavras se constituam um objecto pulsante, capaz de produzir um halo de sentido ou um prolongamento altamente signifi cante. O grande poeta americano Ezra Pound, que afi rmava sobre a sua escrita «I work in concentration», escreveu que «a poesia é a mais condensada forma de expressão» e defi niu «incompetência», como «o uso de palavras demasiadas». Concisão é, simultaneamente, leveza, rapidez e consistência (ou densidade), três das seis virtudes que Italo Calvino considerou como as «Seis Propostas para o Próximo Milénio», ou seja, para este. As outras eram Exactidão, Visibilidade e Multiplicidade. Ora, não faltam, na obra edgariana, modelos de concisão, o que acontece também neste Périplo, onde o número de versos de cada composição anda entre os 8 e os 21, fi cando a média entre os 10 e os 15. É exemplo de suma concisão o poema “O Beijo”, certamente o mais belo e sugestivo deste

colectânea, onde a essa característica essencial da boa poesia se junta ainda o ingrediente do verso curto:

Mais que um sorrisoum enleioum suspiroum desejo;mais que um impulsoum intentoum requebroum quebranto;mais do que um verbo,aquele beijonem curtonem seconem santo.

Mas o poeta quis ainda surpreender-nos nesse âmbito da concisão e da brevidade com uma parte fi nal a que deu o título de “Triptico”, porque se trata de uma colecção de tercetos soltos, sem qualquer ligação entre si, valendo cada um por si mesmo e onde encontramos algumas autênticas pérolas poéticas, os tais objectos vivos, autênticos, seminais, latejantes de vida e pletóricos de energia. Atentemos nos seguintes “poemínimos”, como eu lhes chamo, para além daqueles que já fui lendo:

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Não sigo exaustos modelos,escrevo os versos na areiae deixo ao vento dizê-los.

Bendita aquela árvoreque fl oresce e dá frutossem saber quem os come.

A noite recolheas pérolas soltasda concha do dia.

É do monte que vema mansidão dos riose o grito dos profetas.

Não creias na lua;o céu acende estrelaspara ti.

E, fi nalmente, mais dois tercetos que o poeta parece querer aplicar ao seu próprio caso:

O fogo acende a velamesmo se já é poucaa cera no pavio.

No fi naldá mais luza vela acesa.

Quanto a esse fi nal, de que fala este último terceto, ele é certo, como sabemos, mas é aos deuses que compete decidir o momento. Os muitos anos acumulados permitem-nos também acumular alguma sabedoria, coligir memórias e relatar périplos. Não tenho essa especial sabedoria de Edgar Carneiro nem uma tão enriquecida bateria de recordações, mas há uma muito especial que várias vezes reconto com prazer:

Conheci a poesia de Edgar Caneiro muitos anos antes de conhecer o poeta, e perdi, portanto, muitos anos sem provar o sabor da sua afabilidade, o gosto da sua simpatia, o prazer da sua cordial amizade. Terá sido nos anos oitenta que, andando

em serviço de formação pedagógica na zona de Vila Real, fi quei alojado em casa de um professor da Universidade de Trás-os-Montes. Colocaram um divã na biblioteca do professor e autorizaram-me a utilizar os livros existentes. O primeiro livro que me veio parar às mãos era um pequeno volume intitulado Poemas Transmontanos, datado de 1978 e da autoria de um tal Edgar Carneiro, que eu não conhecia de lado nenhum. Recordo-me que fi quei entusiasmado com aqueles versos e que até cheguei a transcrever para um caderno dois dos poemas. O primeiro intitulava-se “Bruxas” e era assim:

Que pó se levantano rolo do vento!São bruxas bailando,sinal agoirento.Benzei-vos, meninos,Rezai a S. Vito!Estoire o DiaboDanado e precito!Três cruzes na boca,Um sino-saimão, E sumam-se as bruxasAlém do Marão.

A partir de então, nunca mais esqueci o nome do poeta, que não era nome de diabo, mas algo que era digno de fi xar-se, como o tempo viria a confi rmar. Mal imaginava eu que iríamos viver esta proximidade e até viríamos a ser colegas de tertúlia. Tive muitas vezes a honra de ser o primeiro a ler os seus versos, acabadinhos de sair do laborioso forno da imaginação, ali no Café Palácio ou nalguma esplanada frente ao mar.

E há versos seus que nos acodem ao espírito em múltiplas situações da nossa vida, porque são modelares, sentenciosos e irrecusavelmente belos.

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Como professor, tantas vezes me assomaram aos lábios aqueles versos intitulados “Pedagogia”, concebidos pelo também professor Edgar e que encerram em si mesmos uma lição de vida para todos os pedagogos e, afi nal, para todos nós (“Pedagogia” in Faca no Pão, 1981)

Deram-lhe livros: rasgou,Porque não sabia ler;Deram-lhe penas: quebrou,Por não saber escrever;Como terras não teria,Bois e cangas recusou;Outras artes não sabiaOu, se sabia, esqueceu.Deram-lhe um cinto de balasE uma espingarda: matou!Foi tudo quanto aprendeu.Amar, ninguém lhe ensinou.

Os que amam a liberdade e alguma coisa terão feito por isso, amarão certamente também aqueles versos premonitórios, escritos numa altura em que, para falar de valores tão universais como esse, ainda era preciso recorrer a linguagens cifradas e enigmáticas, como acontece neste seu magnífi co poema em que essa palavra “liberdade” foi substituída pela palavra “laranjas” (o estudo deste poema dava, sem dúvida, um extenso tratado sobre a poesia):

São laranjas que trazem os navios.Alinham-se no cais. Circulam na cidade

São esta cor das ruas e dos montesinundam a manhã de claridade

Ladeiam os caminhoscomo quem volta aos ramos.

Em cada mão acendem a promessatão viva que magoa nos sentidos

E túrgidas se mostram. Ardem. Pulsam.No coração dos homens,redondas, como um gládio, amadurecem.

São poemas como estes argumentos mais que sufi cientes para termos a certeza de que estamos perante um grande poeta da língua portuguesa e de que tanto os fl avienses que viram nascer este seu fi lho, como os espinhenses que o adoptaram como seu, devem ter todo o orgulho em pronunciar o seu nome no meio do de poetas consagrados. Não resisto a lembrar-vos mais um argumento – o poema “Razão de Amar” (in Jogos de Amar, 1983):

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Por amarmos os pássaros voandoE tudo quanto é livre e natural;

Por amarmos os rios sem barreirasE o mar que banha a praia por igual:

Por amarmos o sol e o girassol;

Por amarmos a estrela mais distanteE o seu refl exo de ouro numa fl or;

Por amarmos a toda a humanidadeÉ que nós nos amamos, meu amor.

Esta cidade muitas vezes esquece e esqueceu o nome de insignes poetas e escritores e outros artistas que nela nasceram, viveram ou que nela passaram muitos dos seus dias ou que a cantaram simplesmente. Parece-me, porém que tem sabido ser minimamente grata a quem, como digo no prefácio à Antologia Poética, «deu a Espinho e às suas gentes muitos anos de uma aturada vida profi ssional, marcada indelevelmente nos espíritos dos jovens e dos colegas que passaram pela escola onde leccionou. Adoptou Espinho para viver e conviver. Cantou esta cidade e os que nela moram, este mar e os que nele labutam, estas praias e os que nelas vilegiaturam. Nesta dádiva, iluminou ainda mais esta paisagem, tornou-a mais habitável, deu-lhe a poesia que outros não lhe encontraram».

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Nós, que hoje quisemos estar com Edgar Carneiro e agradecer-lhe mais este livro que nos trouxe a sua juventude, não o esqueceremos mais, falaremos dele aos vindouros, se conseguirmos viver para além dele, e lembrar-lhes-emos a

permanente dívida de gratidão em relação ao poeta que nos deu tão comovedores versos, como são os desta “Balada de Espinho”:

Minha cidade amorosaÀ beira do mar sentadaMeu espinho doce espinhoQue lembra o nome de rosaArdendo na madrugadaMeu jardim de palma erguidaAo sol quente dos estiosMeu rio largo de esp´rançasFrente ao mar em desafioMeu tabuleiro de damasOnde os dias são jogadosE a vida renova o jogoSejam bons ou maus os fadosMemória excelsa de artistasDe pensadores e poetasMinha lira vai cantarEnquanto Deus me deixarE as Musas me forem certas.

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150 O MOMENTO

Edgar Carneiro*

É do momento incerto

que se fala

não movido por horas

ou por dias

mas apenas e só

do abrir e fechar

das asas e das flores,

do som, do tom, das cores

de tudo que se move

neste mundo

e como um círio

ou súbito relâmpago

se ilumina e desfaz

em menos de um segundo.

* Nasceu em Chaves em 1913.Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra.Foi professor dos ensinos técnico-profissional e secundário. De 1967 a 1974, dirigiu a Escola D. Pedro V, a primeira a funcionar em Fiães, neste concelho.Reside há 36 anos em Espinho, foi distinguido pela Câmara local com a Medalha de Mérito.Tem 11 livros de poesia publicados, o último dos quais saiu a lume em 2003 e tem por título «Depois de Amanhã».

Edgar Carneiro, Périplo,Ribeirão, Edições Húmus, 2009

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151 Ainda sobre os Relatos de Viagens Padre António Vieira

[...] porque é timbre da nossa nação, tanto que sai à luz quem pode luzir, tragá-lo logo, para que não luza. Vieira, 1670

Maria do Carmo Vieira*

Jesuíta, o Padre António Vieira herda uma experiência missionária e cultural, caracterizada por um efi ciente e frutuoso pragmatismo e um acentuado espírito de militância, que se impôs na sociedade portuguesa, cerca de meados do século XVI, e que ganhou novo ascendente quando os jesuítas, ao contrário das outras Ordens, manifestaram sem rodeios o seu apoio ao movimento da Restauração (1 de Dezembro de 1640), empenhando-se posteriormente na defesa do reino, através da oratória e da diplomacia. Foi o caso do Padre António Vieira cujo papel relevante, nas suas funções de embaixador, de conselheiro e de pregador ofi cial de D. João IV, foi reconhecido de forma peremptória por este último, nomeadamente na carta que lhe dirigiu, com data de 16 de Julho de 1650: [...] tudo o mais que tendes feito, e ides fazendo em meu serviço é muito conforme ao que de vós sempre tenho conhecido, e também estareis certo no

meu ânimo para tudo que vos tocar [...]. Apoiantes do rei e protegidos pelo rei, os jesuítas alargaram e acentuaram a sua esfera de domínio que se repercutiu não só numa intensa acção missionária pelos diferentes continentes, mas também na vocação docente e na arte oratória. O desejo, por exemplo, de escutar Vieira nas suas pregações foi tão intenso junto da sociedade nobre que se reservavam lugares na Igreja, donde o conhecido dito de: lançar de madrugada tapete em S. Roque. Numa época de contrastes, defi nidora do tempo barroco, evidencia-se, simultaneamente, a continuação do espírito renascentista e humanista cristão, na ansiedade de conhecer e na admiração e curiosidade do homem face à Natureza e ao Outro distante, e a reacção fanática contra atitudes igualmente renascentistas e humanistas, como o cosmopolitismo, a liberdade de consciência e de crítica, a actividade científi ca e o espírito de tolerância e de reconciliação humanitária. Em suma, uma época dominantemente «em fronteira com o seu contrário».(1) Destemido, Vieira não se coibirá de defender, junto do rei D. João IV, «a gente de nação» (os judeus), denunciando que [...] o santo tribunal da Inquisição, não só é temido e terrível aos homens de nação, mas aborrecido e odioso [...]. Uma atitude

1 Padre António Vieira, «Sermão da Sexagésima», pregado na Capela Real, no ano de 1655.

Foto de Clara Azevedo

* Licenciada em Filologia Românica, mestre em Literatura de Viagens e Professora do Ensino Secundário. Tem vários livros publicados sobre ensino e viagens; em 2010 publicou o Ensino do Português, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa.

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que lhe valeu o ódio da Inquisição e uma apertada vigilância, vindo a ser preso em 1667 quando se assumiu como um profeta português, divulgando as profecias de Bandarra, o sapateiro de Trancoso, a propósito da vinda do «Imperador do V Império», e as ideias de Esdras (judeu do séc. I d. C.) acerca das dez tribos de Israel. A sentença inquisitorial não se fez esperar: Seja privado para sempre de voz activa e passiva e do poder de pregar, e recluso no colégio ou casa de sua religião que o Santo Ofício lhe ordenar, e de onde, sem ordem sua, não sairá. Veemente e corajosa é também a sua denúncia em relação às injustiças praticadas pelos colonos sobre os índios do Brasil, os quais designa por «Brasis». No contexto de circulação cultural que as Descobertas determinam, gerando grande apetência por informações e novidades sobre as diferentes terras, paisagens e gentes do Ultramar, os jesuítas, entre os quais obviamente Vieira, revelaram-se extraordinários agentes, elaborando, com base na missionação e por obediência aos superiores, rigorosos e minuciosos relatos das suas viagens, hábito que fora instituído pelo fundador da Ordem, Santo Inácio de Loyola, e que tinha em vista uma organização efi caz do trabalho missionário. Estas cartas-relatórios eram normalmente constituídas por uma parte confi dencial, de interesse apenas para o Superior, e outra pública que podia ser divulgada para consumo (interno e externo) e para satisfação dos leitores. No fundo, não obedeciam apenas a directivas da Ordem, mas respondiam igualmente ao desejo de saber dos próprios missionários que as redigiam. A 16 de Janeiro de 1653, Vieira desembarca em São Luís do Maranhão, depois de uma viagem não desejada, e refl exo da falta de protecção do rei, conforme se deduz da carta (25/01/1653) escrita ao príncipe D. Teodósio, fi lho de D. João IV: Eu agora começo a ser religioso, e espero na bondade divina que... acertarei a o ser e verdadeiro padre da Companhia. Sê-lo-á, na verdade, pois fi el à sua consciência e aos ideais evangélicos reage sem temeridade à ganância que move os colonos contra os índios, tentando através de cartas alertar e obter o apoio do rei, como se pode verifi car na que dirigiu a D. Afonso VI, em 1657: As injustiças e tiranias que se têm exercitado nos naturais destas terras excedem muito às que se fi zeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram nesta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo.

Para além de cultivar a paciência no ensino da fé cristã «aos Brasis» − há-de-ser estar sempre ensinando o que está aprendido, e há-de-ser estar sempre plantando o que já está plantado (2) − associando-lhe a defesa do folclórico-tradicional, de acordo com a táctica advogada pela Ordem, tendo em vista a efi cácia missionária − viu-se bem com quanta razão dizia o Padre Nóbrega, primeiro missionário do Brasil, que com música e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si os gentios da América(3) − Vieira revela ainda a exigência de um estudo aturado e persistente que os missionários têm de fazer das várias línguas, para atingirem os objectivos da missionação: Se eu não entendo a língua do gentio, nem o gentio entende a minha, como o hei-de converter e trazer a Cristo? Por isso temos por regra e instituto aprender todas a língua ou línguas da terra, onde imos pregar; e esta é a maior difi culdade e o mais trabalho daquela espiritual conquista.(4)

Tornando-se também veículo de um saber, garantido pela experiência, e que é esperado no Reino com ansiedade por todos aqueles que se interessam pelo estudo, o Padre António Vieira, nas suas cartas-relatos aos Provinciais, demonstra esse gosto natural em partilhar com os ausentes as novidades, através do seu olhar atento e pormenorizadamente descritivo. A esse propósito isolo um extracto de uma das suas cartas, dirigida ao Provincial do Brasil, Francisco Gonçalves, datada de 1654, no qual Vieira, com a mestria e o engenho que lhe são característicos, concede ao leitor uma visualização fílmica e fotográfi ca da «pesca das tartarugas» que «saem do mar e do rio do Pará» e vão ter «às praias da viração», expressão atribuída pelos portugueses, conforme informação do missionário jesuíta. Não há, a meu ver, texto mais efi ciente do que este para um aluno aprender o que é a narração e a descrição, para além do privilégio que constitui a convivência com o autor e o prazer que poderá retirar da sua escrita engenhosa. No entanto, Vieira, autor clássico e o «maior artista da língua portuguesa», nas palavras de Fernando Pessoa, foi considerado «maçudo» e «pouco interessante para os alunos», numa tentativa, vã, de o «tragar» e «impedir de luzir». Votado à imortalidade, a sua voz luminosa persistirá no Tempo:

2 «Sermão do Espírito Santo».3 Vieira, «Relação da Missão da Serra de Ibiapaba».4 «Sermão da Epifania», pregado na Capela Real, no ano de 1662.

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Nos meses de Outubro e Novembro saem do mar e do rio do Pará grande quantidade de tartarugas, que vêm criar nos areais de algumas ilhas que pelo meio deste Tocantins estão lançadas. [...] Quando vêm a desembarcar nestas praias, trazem diante duas, como sentinelas, que vêm a espiar com muita pausa; logo depois destas, com bom espaço, vêm oito ou dez, como descobridores do campo, e depois delas, em maior distância, vem todo o exército das tartarugas, que consta de muitos milhares. Se as primeiras e as segundas sentem algum rumor, voltam para trás, e com elas as demais, e todas se somem num momento: por isso os que vêm à pesca se escondem todos atrás dos matos e esperam de emboscada com grande quietação e silêncio. Saem, pois, as duas primeiras espias, passeiam de alto a baixo toda a praia, e como estas acham o campo livre, saem também

as da vanguarda, e fazem muito devagar a mesma vigia, e, como dão a campanha por segura, entram à água e voltam, e depois dela sai toda a multidão do exército com os escudos às costas, e começam a cobrir as praias e correr em grande tropel para o mais alto delas. Aplica-se cada uma a fazer sua cova, e, quando já não saem mais e estão entretidas umas no trabalho, outras já na dor daquela ocupação, rebentam então os pescadores da emboscada, tomam a parte da praia, e, remetendo as tartarugas, não fazem mais que ir virando e deixando, porque em estando viradas de costas não se podem mais bulir, e por isso estas praias e estas tartarugas se chama de viração.

Páscoa, 4 de Abril de 2010

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154 Como uma armadura celeste

Sérgio Almeida*

E chega o momento em queo instante fixa a eternidade:quando as gotículas de orvalho se desprendem da tua armadura celeste (mas como, se as flores não suam?)e dos céus uma brisa imperceptível faz rodopiar o teu caule sem cessar, numa dança majestosaconvocada pelo vento,interrogo-me sobre os motivos de tanta beleza ainda conseguir resistir a decretospromulgáveis pelo tempo.Talvez porque do teu encanto marmóreo,levemente acobreado pelo sol,não tenham nascido tantas odes ou versoscomo as que celebrizaram flores menos bafejadaspelas graças cósmicas.Entardece.E entre a sombra estrelar das formas detenho-me com vagar no teu perfume,ciência de todas as coisas.

* SÉRGIO ALMEIDA nasceu em Luanda no ano de 1975. Reside em Espinho. É autor dos livros “Análise Epistemológica da Treta” (contos), “Armai-vos uns aos outros”, “Como ficar louco e gostar disso” (prosa poética), “Ob-dejectos” (prosa poética).Participou nas antologias de contos “São João do Porto” e “Fora deJogo”. Coordenou o volume “Poesia de Luiza Neto Jorge Traduzida”. É membro fundador do colectivo de intervenções poéticas Sindicato do Credo. É jornalista do JN.

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155 Temas Luso-Brasileiros

Os Holandeses no Nordeste

“Paraíso” que Não Houve

João Alves das Neves *

Figura tão contestada quanto enaltecida, o Conde de Nassau conta agora com mais um livro apologético, O Brasil, e os Holandeses (1630-1654), certamente um dos mais belos, entre todos, graças a centenas de ilustrações, algumas das quais da autoria de Franz Post, de Albert Eckout e de outros pintores, mas vários deles não conheceram o Brasil. De resto boa parte dos óleos, desenhos e gravuras nada têm a ver com este País. Assinale-se também, desde já, que não raras das ilustrações foram inicialmente divulgadas no livro de Gaspar Barléu, Histórias dos feitos recentemente praticados durante 8 anos no Brasil e noutras partes sobre o governo do ilustríssimo João Maurício, Conde de Nassau, ora governador de Wesel, tenente-general de cavalaria das Províncias Unidas sob o Príncipe de Orange, impresso em 1647 (a lª. edição em português foi do Ministério da Educação do Brasil, Rio de Janeiro, 1950, texto traduzido e anotado por Cláudio Brandão). É a partir deste livro que muitos outros surgiram,

certos dos quais com rasgados elogios a Nassau, que pagou a Barléu a “história” dos seus próprios feitos. Com o que não concordaram, aliás, os historiadores brasileiros que não se limitaram a relacionar as conquistas e, sim, as consequências da invasão ordenada pela Companhia das Índias Ocidentais, de quem Maurício de Nassau foi empregado, ainda que de nível superior. Na realidade, a C.I.O. (ou W.I.C., West Indische Compagnie), fundada em 1621, não representava juridicamente a Holanda, pois era uma empresa comercial, partilhada por 5 instituições, embora o alvo tivesse sido o da conquista e não da colonização, conforme explica um dos colaboradores do volume O Brasil e os Holandeses, o historiador José António Gonsalves de Mello: a C.I.O. desdobrava-se em vários setores, incluindo um “Alto e Secreto Conselho”, cujos participantes “sofreram grandes críticas e acusações de desonestidade e corrupção”. O organizador da colectânea, Paulo Herkenhoff, crê que “o regime de Nassau propiciou a presença no Brasil de uma cultura singular, de um género ímpar no período colonial”. E vai ao ponto de sugerir que o “seu padrão de governo é idealizado como uma espécie de paraíso perdido como uma queda mítica no curso da História”. Transcreve a visão fantasiosa de Nassau: “Pasmei e não acreditaria nestas maravilhas, se não as contemplasse com estes olhos”. Desdenha o prefaciador dos portugueses ao declarar que a Holanda visava “dar a

*Nasceu em Portugal, mas vive no Brasil desde 1958. Publicou mais de 20 livros sobre temas afro-luso-brasileiros.É professor-pesquisador na Faculdade de Comunicação Social Gaspar Libero e presidente do Centro de Estudos Fernando Pessoa (São Paulo)

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conhecer aquela porção territorial que Portugal até então procurara ocultar”, correndo atrás da adjectivação laudatória de Gaspar Barléu. Mais sóbrio, o historiador Evaldo Cabral de Mello refere miudamente as batalhas que os holandeses perderam e ganharam, salientando a fraqueza dos luso-brasileiros que resistiram à invasão, explicada pelo domínio de Portugal pelos castelhanos (1580-1640). Acrescenta Cabral de Mello que a construção de 2 palácios e 2 pontes, no Recife, não bastavam aos desígnios da C.I.O. “Nassau parecia um funcionário dispendioso; para o Conde, ela era uma empresa de sovinas, destituídos de visão política e militar.” Venceram os donos e, por fi m, Nassau foi afastado da administração. Politicamente, o governo dito holandês foi autoritário: protegia os calvinistas em prejuízo dos católicos, embora anunciasse o contrário; a queda do preço do açúcar ocasionou o endividamento dos senhores dos engenhos e dos lavradores de cana; e, segundo Gonsalves de Mello, a Câmara dos Escabinos, que substituiu as Municipais, acabou tendo mais holandeses do que luso-brasileiros, que foram obrigados a “apreender a língua heerlandesa e adotar os usos e cosctumes dos dominadores”. Até a Santa Casa de Misericórdia, de nítida inspiração católica, teve de acatar 3 holandeses na direcção, ao passo que as aldeias índias fi caram sob o comando de um chefe nativo e de um capitão…holandês. Por seu turno, Max Justo Guedes admite que foi “gigantesca a obra cartográfi ca” dos holandeses no Nordeste. E José Luís Mota Menezes analisa a Arquitectura e o Urbanismo, mas recorda que, quando chegaram a Olinda, os holandeses “já encontraram, sob o ponto de vista urbano, uma aglomeração defi nida, à maneira lusitana, com as características que se encontram em outras vilas e cidades do Brasil”. Flamenga foi a cidade de Maurícia (que não se perdia pelo nome, vaidade que a C.I.O. pode não ter apreciado), com 2 palácios faustosos, os jardins das Torres e as 2 pontes recifenses.

II

OS HOLANDESES NO NORDESTE, PERCURSO QUE NÃO HOUVE

Ronald Raminelli desenvolve um estudo em torno de “Habitus Caniba – os índios de Albert Eckhout”. De inegável interesse, mas sem ligação com os holandeses. E o mesmo

ocorre com o texto “Representação do negro nas Índias Ocidentais: Barléu, Post e Heckhout”, assinado por Paulo Heckenhoff. Nachman Falbel discorre acerca da vida do judeu português Menseh ben Israel, que terá mantido contactos com o Padre António Vieira e infl uenciado os judeus vindos da Holanda e que falavam português. Quanto ao estudo de Leonardo Dantas Silva, “Zur Israel – uma comunidade judaica no Brasil holandês”, historia a participação dos que vieram da Holanda após a derrota, foram para o Suriname, Curaçau, Jamaica, Barbados e outras regiões americanas, nomeadamente o Caribe e Nova Amsterdam, onde participaram da fundação de Nova Yorka, ao mesmo tempo que disseminaram o idioma português por onde passaram e até mesmo nas Antilhas… Holandesas, onde se fala o “papiamento”, vocábulo de clara raiz camoniana. O trabalho de Leonardo Dantas Silva esclarece pontos decisivos dos judeus portugueses que fugiram do Brasil, após o desastre das tropas da Companhia das Índias Ocidentais, a fi m de não serem punidos como “colaboracionistas”. Não menos oportuno é o inventário feito por Beatriz e Pedro Correia do Lago com as suas notas para um catálogo do “Brasil” de Franz Post, que terá pintado l50 óleos das pessoas, faunas e vegetação brasileiras, parte das quais foram oferecidas pelo pintor ao rei francês Luís XIV, certamente na expectativa de “alguma vantagem fi nanceira em retribuição do presente” – mas nada recebeu o artista Flamengo. E há que anotar, fi nalmente, os estudos de David Freedberg (“Ciência, comércio e arte”) e de Luiz Perez Oramas (“Franz Post, Invenção e Aura da Paisagem”) os quais, sob ângulos diferentes, somam mais informações aos estudos anteriormente citados. Seriam sufi cientes estas referências para documentar a importância histórica, artística – e gráfi ca – de O Brasil e os Holandeses, edição da GMF, que recebeu o patrocínio do Banco Real e a colaboração de outros técnicos e artistas. Evidentemente, os estudos ora publicados não corrigem os adjectivos ditirâmbicos de Gaspar Barléu, atribuídos ao Conde de Nassau. O historiador Varnhagen, que não censura abertamente os holandeses, não se inibe de afi rmar que Barléu, “como panegirista” do Conde, não foi historiador imparcial, pois “faltou-lhe obedecer ao preceito: audietur altera pars. “ Na sua História do Brasil, Rocha Pombo foi muito mais contundente e arrasa com “a obra” de Nassau: reescravizou os antigos escravos, perseguiu os não-calvinistas, não admitiu

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mestre-escola que não fosse calvinista e, em relação aos índios, os holandeses “foram de má fé tão requintada que chega a causar mesmo riso de nojo”… Nas mesmas águas navega Capistrano de Abreu, segundo o qual da “obra do administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na voragem do fogo e sangue dos anos seguintes; suas colecções artísticas enriqueceram vários estabelecimentos da Europa” – e não o Brasil. De seu lado Hélio Vianna critica “os erros veiculados a seu respeito, inclusive os que o dão como príncipe holandês e descendente de Guilherme o Taciturno”(…), considerando-o “homem inteligente”, porém “mercenário”: “O médico Pies, o botânico Marograv, os pintores Post, Eckout e Wagner, que aqui com ele estiveram, prestaram serviços úteis ao Brasil, que lhe devemos agradecer, sem que daí resulte qualquer benemerência à empresa corsária que superintendia o assalto à colónia portuguesa exclusivamente tendo em vista o apossamento das suas riquezas, em primeiro lugar a do açúcar, criadas pelos que realmente a descobriram, povoaram e colonizaram”. Para não irmos mais longe, salientamos as conclusões do historiador Mário Neme, nos dois livros, Fórmulas políticas no Brasil Holandês, e O Brasil Holandês no tempo de Nassau. O autor das Notas de revisão da História de São Paulo desfaz as lendas interesseiras de Barléu, cujo livro foi “feito por encomenda do próprio Conde”. Vale a pena reler as

conclusões do historiador que dirigiu o Museu Paulista e foi um dos grandes jornalistas que passaram pela redacção de O Estado de S. Paulo: “Da representação do Conde João Maurício como inexcedível chefe de Estado – esclarece Mário Neme – brotaram naturalmente todas as conclusões falsas que prevalecem a respeito das condições de vida e trabalho no domínio holandês do Brasil, as quais, por força das premissas estabelecidas, tinham de ser incomparavelmente superiores às existentes no tempo do rei.”

Bibliografi a O Brasil e os Holandeses (1630-1654), org. Paulo Herbenhoff;Francisco Adolfo Varnhagen, História Geral do Brasil;Capistrano de Abreu, História do Brasil;Rocha Pombo, História do Brasil;Hélio Vianna, História do Brasil;Mário Neme, Fórmulas Políticas do Brasil Holandês e do Brasil Holandês no Tempo de Nassau;Gaspar Barléu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, Conde de Nassau etc., ora Governador de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange (tradução e notas de Cláudio Brandão, Rio de Janeiro, Ministério da Educação, MCMXL).

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158 carpe diem

Anthero Monteiro*

aproveita o momento

quando os olhos falam uma língua que a língua não sabequando as mãos seguram o instantecomo se fossem avaras de eternidade quando os ouvidos apenas suportama música dos ansiados passose há um único aroma que se não repugnaquando o teu sorriso é o reflexo do sorriso à tua frentequando as estrelas são todas convocadaspara iluminar o rosto desejadoentão é a hora o minuto o segundo de fechar os olhos e ganhar asas

aproveita o momento

a vida só é curta quando não subimos o estribo da carruagem que partequando ficamos a ver passar todos os comboiosa vida só é aventura quando se busca a venturaque não tem pés para vir ter connoscoé preciso partir dar as mãos ao inéditoe assumir que quando caminhamosnem todo o terreno é um pântano assustador é preciso acreditar

aproveita o momento

porque outros momentos virãoem que nada pode acontecerporque o tempo resvala inexorávele o instante seguinte é muito tardee pelo menos tão desconhecido quanto esteporque os cabelos encaneceme as mãos ficam murchas de esperançae o peito qualquer dia é um assento de pedraporque só agora é agora e logo o sol já se deitoue amanhã já perdeste metade dos ensejos

aproveita o momento

e eterniza-o o mais que puderesaproveita o momentoe dá-lhe as boas vindassorri-lhe manda-o entrare adormece no seu ombro

In Sete Vezes Sete Nuvens, Porto, Egoiste, 2010

*Escritor e poeta natural de S: Paio de Oleiros. É autor de vários livros de

poesia e de ensaio.

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159 O carácter abstracto das CANTIGAS DE AMOR

Maria da Conceição Vilhena*

Ao fazermos uma leitura mais prolongada das nossas Cantigas de Amor, em breve somos tomados por uma sensação de fadiga e monotonia. Temos a impressão de ver passar diante dos nossos olhos a imagem distante de uma mulher bela, mas diluída num nevoeiro que lhe encobre os traços particulares. Temos a impressão de ouvir alguém que lhe tece elogios, mas que esse alguém tão pouco consegue lobrigá-la melhor que nós. E esta mulher bela, de «bon parecer» e «bon semelhar», passa deslumbrando a todos com o seu porte, despertando anseios e paixões, sem nada de concreto realizar, mergulhada no silêncio duma vida vazia de actos, de cores ou de dimensões:

Qual senhor devia fi lharquen a ben soubesse escolher,essa faz a min Deus amar,e essa me ten en poder,e essa est a mia senhor,e essa me faz o mayorben d’este mundo desejar:

O seu ben, que non á i par.Tan muito a faz Deus valerpor ben-prez e por ben-falar,per bon-sen e per parecer!E d’atal dona o seu bennon sei og’eu no mundo queno podesse saber osmar,

Nen a mia coit’, a meu coidar,en que m’og’eu vejo viver,ca m’ei d’atal don’a guardar(de qual mi-or’oístes dizer).de a veer, ca, se a vir,fará m’ela de si partirmui trist’e muit’a meu pesar.

CA 41

Passa a sorrir, encantando com o seu «bem falar» todo feito duma eloquência perdida no silêncio lacónico da poesia trovadoresca; «bem falar» feito de palavras sem som nem conteúdo, de palavras que o coração captava, mas que a memória não retinha:

Porque vus vejo falar mui melhorde quantas donas sei, e parecer,e cuid’en como sodes sabedor

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografi a e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

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de quanto ben dona dev’a saberEste cuidado ma fez destorvarde quant’al cuid’, e mon me quer leixarpartir de vos, nem de vus ben querer

CA 47

Passa generosa e dedicada, o coração pleno de nobres virtudes sem nome e sem projecção, virtudes que atraem e fascinam o trovador sem que contudo o inspirem e incitem a descrevê-las:

Porque vus fez Deus entenderde todo ben sempr’o melhor.E a quen Deus tanto ben deu,devia-s’a nembrar de seuomen cuitad’o, e a doer CA 42

… como pod’ o coraçon quitarde vos, nem os olhos de vus veer?Nen como pode al ben desejarse non de vos, quen sol oïr falaren quanto bem Deus en vos faz aver? CA 47

Passa «fremosa», cativando com o seu olhar incolor o trovador ávido de emoção e de ternura.

…e m’ar faz viver tan alongadod’u eu os olhos vi da mia senhor,e d’u eu vi o seu bon parecer.Se m’est a mi podess’ escaescer,logu’eu seria guarid’ e cobrado.

CA 43

Rosto resplandecente de beleza indescritível; beleza que deslumbra os sentidos, mas não estimula o engenho poético; beleza que se adivinha mais pelo emudecimento que provoca que pelas palavras que inspira:

Mais tolhe-m’én log’aqueste cuidarvosso bom prez e vosso semelhar,e quanto ben de vos ouço dizer.

CA 47

Passa esbelta, incendiando paixões e atraindo os olhares para um corpo de formas indefi nidas e de gestos imprecisos:

pero forçou-mi o seu amore seu fremoso parecere meteron-m’en seu poderen que estou, a gran pavor

CA 21

Beleza superior, incomparável, pois que «feze-a Deus parecer / melhor de quantas no mund’à»:

Qual dona Deus fez melhor parecere que fezo de quantas outras sonfalar melhor, e en melhor razone con tod’esto melhor prez aver, e mais mansa das que eu nunca vi.

CA 85

Que imagem poderá formar-se desta «senhor» «tan fremosa» e de «tan bon parecer» que sabe «tan bem falar» e cujo «prez» é superior ao de «todas as outras que no mund’a»? Era bela, é tudo o que sabemos. Mas os conceitos de beleza variam de época para época. Como seria a mulher bela de então: gorda ou magra? Alta ou baixa? Loura ou morena?Que falava bem, também o fi camos a saber. Mas o que dizia? Que assuntos lhe interessavam? Era virtuosa. Mas que virtudes praticava? O que era esse «ben» que Deus lhe deu? Era «sabedor de quanto ben dona dev’a saber». Mas qual era o «bem» que a mulher de então devia saber? Em que consistia a sua formação? Olhos sem cor, nem expressão, corpo sem dimensões nem forma, voz feita de silêncio (1). Ser sem nome e sem família, sem casa e sem terra.

1 Constituem excepção a cantiga de Guilhade, CA 229, que fala de «olhos verdes», e a de Payo Soares, CA 38, que emprega a expressão «mia senhor branca e vermelha».

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Sempre a mesma, sempre igual, sempre impessoal. Um ser concreto-abstracto que faz vibrar o poeta e é impulso único, necessário e sufi ciente da poesia portuguesa durante mais de dois séculos. Ser ideal e real, mulher-anjo que parece ter existido apenas na imaginação dos trovadores. No que toca à poesia provençal, Jeanroy acusa-a igualmente de «abstracta»; segundo o seu parecer, os trovadores criaram uma poesia que em nada refl ecte a realidade. A mulher cantada parece ser sempre a mesma, limitando-se cada um a repetir lugares comuns e fórmulas feitas (2). No entanto a «domna» do trovador provençal, não só tem sido identifi cada historicamente, como nos aparece como um ser real, com traços e gestos mais ou menos defi nidos:

E l’olh e l cil negre espesE.l mas qu’es en loc d’arbrier (3) .

Que roza de PascorSembla de sa colorE lis de sa blancor (4).

Bona domna, neus de portSembla la vostra blancors,E par de roza l colors;Qu aissi us fetz Deus de faissoQue natura.i pert razo (5).

Outras vezes o trovador recorre à intersecção dos campos físico e moral para melhor nos traçar o retrato daquela que é «grazida per tota gent et a Deu agradiva»:

Olhs de mercê, boca de chauzimen,Nulhs hom no-us ve que no.l fassatz [jauzen

Que restan no m’abelitCom sos adreitz cors leials,On son tug bon aip complitE tug ben senes totz malz

P.V. XI, 30

Del ric pretz nominatiuCreis tan sa fi na valorsQue no pot sofrir lauzorsLa gran forsa del ver briu.

Que tan m’es bel e bon,Quan remir sas faissos [gestos]E.ls bels olhs amoros,Qu’eu no sai on me so

P.V. XXXIV, 108

Rassa, domna es frescha e fi na,Coinda e gaia e meschina:Pel saur ab color de robina,Blancha pel corps com fl ors d’espina,

Sei enemie son caitiuE sei amic ric e sors.Olh, front, nas, boch’e maissela,Blanc peitz ab dura mamela,Del talh dels fi lhs d’IsraelEt es colomba ses fel (6).

Cou de mol ab dura tetina,E sembla conil de l’eschina;A la fi na frescha color,Al bo pretz e a la lauzorLeu podon triar la melhor.

2 La poésie lyrique des Troubadours, I, p. 156.3 Os olhos, e as pestanas negras e espessas, o nariz em forma de arco…4 Ela parece uma rosa de Páscoa pela sua cor e uma açucena pela brancura.5 A vossa brancura lembra a neve das montanhas e a cor da vossa tez é como a da rosa; Deus vos fez tão bela que a natureza perde em vós, os seus direitos (Peire Vidal).

6 «O seu valor ultrapassa de tal modo o mérito habitual que o elogio é insufi ciente perante a força da sua verdadeira virtude. Os seus inimigos são miseráveis, os seus amigos poderosos e nobres. Olhos, rosto, nariz, boca e queixo, peito branco e seios rijos, ela tem o porte dos fi lhos de Israel e é uma pomba sem fel» (Peire Vidal, XVI, IV).

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Rassa, al ries es orgolhosa,E fai gran sen a lei de tosa,Que no vol Peiteus ni Tolosa,Ni Bretanha ni Saragosa,Anz es de pretz tan envejosaQu’als pros paubres es amorosa (7).

A «domna» provençal possui, como a «senhor» galego-portuguesa, uma virtude que eleva e intimida o trovador; na sua presença, o homem sente-se feliz e infeliz simultaneamente, mergulhado num sentimento de alegria triste que às vezes o atormenta e o faz estremecer, mas que o cumula de um prazer imenso, superior a todos os bens:

Que tan m’es bel e bo,Quan remir sãs faissosE Is bels olhs amoros,Qu’eu no sai on me so.

Ela é a «Car’amiga» douss’ e franca, Covinens, e bel’e Bona» que é digna de toda a admiração e de toda a felicidade:

Ben aj.l temps e.l jorn e l’an e.l mesCel dous cors gais, plazentiers, gen noiritz,per los melhors deziratz e grazitz,De lei qu’es tan complida de totz bes (8).

Mulher real, ela é dotada de uma beleza física, perante a qual «totz joys li deu humiliar et tota ricor obezir». Simpática e atraente, «per son belh aculhir e per son belh plazent esguar», ela incita o trovador a aproximar-se, embora timidamente, numa procura de prazer físico, avaramente concedido:

E pero li.beill semblane-il gent accuillir e-il doussorsdel sieu bel cors nou, prezan,

e-ill beutatz, et-il fresca colors,q’es sobre totas outras fl ors,la-m fant amar tant tememC’anc no-i l’ausei far parvenmon pensatacordat,ni-l fi n talendon m’atrais,mos cors gais –gran ardimen!Ardimen m’atrais trop gran,mas doptei q’en sia, clamorsquan la bella-m soferc tan -q’enqer sent las doussas sabors,qe de greu malananssa-m sors -qan li baisiei doussamenson bel, blanc col covinen,ab honratdous comjat,privadamen;adoncs fraislo doutz baisMon marrimen! (9)

Não são raras, na poesia provençal, as referências à troca de beijos ou a encontros fortuitos no quarto, ao deitar; no entanto o maravilhamento com que o trovador recorda esses momentos de intimidade e o desejo que mostra em que se repitam, fazem-nos crer que não se dessem com muita frequência:

Et eu per lonc esperarAi conquist ab gran doussorLo bais que forsa d’amorMe fetz a mi dons emblar,Qu’eras lo.m denh’ autrejar.

P.V. XXVII7 Rassa, é uma senhora fresca e fi na, amável, graciosa, muito jovem; de cabelos ruivos, cor de rubis, é branca de corpo como uma fl or (d’aubépine) (?); de braços macios e seios rijos, ela lembra um coelho pela sua agilidade. Pela cor fresca e fi na, pelo mérito e fama que tem, pode facilmente reconhecer-se que ela é a melhor de todas. A virtude é a sua principal preocupação; e por isso é terna para com os pobres (Bertrand de Born).8 Que ela seja feliz todos os dias e todos os meses do ano, a doce criatura alegre, simpática, bem-educada, desejada e querida pelos melhores, aquela que é adornada de todos os bens (Peire Vidal).

9 Apesar da sua beleza, do seu gentil acolhimento, da doçura do seu corpo jovem, elegante e esbelto, da sua cor mais fresca que todas as fl ores, amo-a timidamente e não ousei dizer-lhe o que penso, nem os desejos do meu corpo. No entanto, não pude resistir mais e beijei-lhe ternamente o seu belo pescoço branco, às escondidas (Gaucelm Faidit, 37, III-IV).

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E s’en grat servir vos poguesEntre.l despolhar e.l vestir,Ja mais mals no.m pogr’avenir P.V. XLII

Qu’un dous bais novelMe don per amor

P.V. XVII

É que a liberdade é limitada; há uma moral social que condena os excessos. À «domna» provençal que, mais sensual e menos recatada que a «senhor» portuguesa, concede entrevistas e beijos, nem tudo é permitido. Gaucelm Faidit acha mesmo que é mais nobre não se ser correspondido pela mulher honesta, a receber favores daquela que os concede facilmente e sem recato, a todos os homens:

… de pro dompna veraia,val mais c’on ric dan esperqu’aia don d’avol savaiaqu’om non deu en grat tener.

Q’ieu-n sai una q’es de tant frac usatgec’anc non gardet honor sotz sa centura -sieus es lo tortz s’ieu en dic vilanatge! -qe, senes geing e senes cobertura,fai a totz vezercum poing en se deschazer -E dompna q’ab tans s’essaianon cuich ja qe m’alezer,

que ja de lieis ben retraia,ni-m vuoill qe-m deia eschazer

G.F. 41, V-VI

Diante destas censuras já podemos ter uma ideia mais ou menos exacta do critério moral do trovador provençal e dos conceitos de virtude feminina que então aí predominavam. Não é mal ter apaixonados, o que é preciso é saber dominar-se e só a um aceitar:

Aissi cum mieills es en dompna beutatz,gens acuillirs et avinens cundia,e bels parlars, pretz a doussa paria,aissi deu mieills gardar sas voluntatz,que ren no val cors de doas meitatzni no es fi ns, puois i vaira colors,car una sol’amors taing la destreigna.-non dic ieu jes q’a dompna descoveignas’om la preja, ni a entendedors,mas jes non deu en dos luocs far socors!

G.F. 53, III

À «domna» provençal repugnam a insensatez, as atitudes sem mesura, as más intenções e as acções grosseiras:

a cui non plai poudatz,ni faitz desmesuratz,ni malvaz entendenssa,ni avols percatz.

G.F. 42, 69-72

No que toca aos princípios da «senhor» portuguesa nada sabemos. O apaixonado suspira, sofre, enlouquece e morre. Orgulhosa e altiva, a amada continua a viver impávida e serena, no seu castelo de silêncio e de pureza angélica.Também a «domna» provençal sabe falar bem, e de tal modo bem que a todos cativa com a doçura das suas palavras:

E quan respon ni apela,Sei dig an sabor de mel

E ja Deus nonca.m perdo,S’anc tan bela domna foNi d’aitan cortes semblan,

Ni anc hom tan gen parlanNe vi ni o fara mais:Que quant us motz l’eis del caisEt eu l’aug, sui tan licais,Qu’en cre morir talentos,S’al meins no l’en aug dir dos

P.V. XXXVI, 114

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Que diria? Palavras amorosas, cheias de ternura, certamente, pois que é ela a força impulsionadora que inspira o trovador a bem falar e agir:

E s’ieu sai ren d’avinen dir ni far,Vostra beutat et amor n’ochaiso

P.V. XLIV, 142

Mas nem só palavras doces e ternas ela pronunciava. Eloquente e culta, manifestava as suas opiniões e pareceres, pronunciava juízos de valor que eram bem aceites pelo homem. Nos «partimen»(10), era a ela que se recorria em última instância, a fi m da saber qual a decisão a tomar.Uma vez que Uc de la Bachallaria estava indeciso sobre se deveria ou não aceitar, às escondidas, o amor de uma dona já comprometida, Gaucelm Faidit aconselha-o a pôr o problema a Maria de Ventadour, para que seja ela a decidir:

N’Ugo, a pauc non consenque dreitz e razos seria -ab qe fassa-l jutjamena Ventadorn Na Maria,On es pretz e cortesia.

G.F. 45, VII

Maria de Ventadour era uma das três irmãs de Turenne, todas três célebres pela sua inteligência e beleza. Era casada com Eblon V de Ventadour e foi protectora dos trovadores. Poeta ela própria e inspiradora de poetas, à sua volta se reuniam os trovadores de então, formando uma espécie de corte literária. Numa tensão com Gui de Ussel, Maria discorre sobre a igualdade entre o homem e a mulher em matéria de amor:

Gui d’Uissel, be.m pesa de vos,Car vos etz laissatz de chantar;E car vos i volgra tornar,Per que sabetz d’aitals razos,Vusill qe.m digatz si deu far egalmenDompna per drut, qan lo qier francamen,

Cum el per lieis tot qant raing as amorSegon los dreitz que tenan l’amador.

Gui responde-lhe que entre amigos não há superiores nem inferiores; por isso a mulher deve fazer pelo homem o mesmo que ele faz por ela, sem olhar à diferença de classes sociais:

Gui, tot so don es cobeitosDeu drutz ab merce demandar,E dompna por o comandar,E deu ben pregar a sazos;E.l drutz deu far precs e comandamenCum per amiga e per dompna eissamen,E.il dompna deu a son drut far honorCum ad amic, mas non cum, a seignor.

Gui volta a insistir na situação de igualdade em que o amor estabelece os amantes. Maria, porém, recusa-se a aceitar tal teoria, pretextando que o apaixonado costuma prostrar-se de joelhos e declarar-se-lhe como seu «homme lige»; portanto, se se prontifi ca a «servir», é seu servidor; e, pretender ser seu igual, seria uma traição:

Gui d’Uissel, ges d’aitals razosNon son li drut al comenssar,Anz ditz chascus, qan vol prejar,Mans jointas e de genolos:

«Dompna, voillatz qe.us serva franchamenCum lo vostr’om; et alla ensaissi-l pren;Eu vo.l jutge per dreich a trahitorSi.s rend pariers e.s det per servidor.»

Esta «domna» real, tão bela e virtuosa, não deixa contudo, aliás como todos os seres reais, de ter um lado negativo. Aquele que vive extasiado na sua beleza não hesita em nos apresentar o reverso da medalha:

Sospirar e plorarMi fai mainta sazo,Qu’alegrar e chantarVolgra mais si.l fos boMas cor a de drago,10 Jogo que consistia em pôr problemas de natureza amorosa e a pronunciar

juízos.

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Qu’a me di mal e riAls autres deviro,E.m fai olh de leo

P.V. XX, 31-38

Embora seja uma «domna avinens» e pronuncie as suas palavras «cortezamen», não deixa de actuar sobre a alma do poeta como um «coutel» ou «lansa»:

Atressi m mor, mas plus d’a pas m’auciLeis que o sap far tan cortezamen.Car ges mo.m fi er de coutel ni de lansa,Mas ab bels ditz et ab plazen semblansa:Véus las armas ab que.m combat ancse.

P.V. XII, 35

Outras vezes é a sua «merce» que se transforma em crueldade e ingratidão:

Mas ar m’es esquiv’ e feraTornad’ e de brava guiza P.V. XXXI, 100

E o trovador reconhece e não duvida da insinceridade daquela «qui suau» o trai (11). Mulher bela e atraente, com defeitos e virtudes, capaz de amar e desamar, de fazer o bem e o mal, como todo o ser humano, como todo o ser limitado, sujeito às vicissitudes da falência. Ser real e contingente, digno de todo o amor, de toda a abnegação, mas de quem se pode esperar crueldade e traição.

Será realmente a «senhor» galego-portuguesa um ser abstracto, impessoal, ideal, fabricado pela imaginação do trovador? A falta de traços que a individualizem, a uniformidade com que o trovador traça o seu retrato, levam-nos realmente a esta convicção. No entanto, há pormenores que, bem analisados, nos conduzem a diversa conclusão.

Temos, por exemplo, a discussão entre trovadores e jograis, por causa da classe social da «senhor» que a cada um competia cantar. Abril Peres, rico-homem orgulhoso dos seus pergaminhos, lembra a Bernardo Bonaval que ele não tem o direito de servir «bõa dona», dada a sua condição de segrel:

Don Bernaldo, quero-vos conselharben, a creede-m’en, se vos prouguer:que non digades que ides amarbõa dona, ca vos non é mesterde dizerdes de bõa dona mal,ca ben sabemos, Don Bernaldo, qualsenhor sol sempr’a servir segrel.

CE 87

Joan Soares Coelho, igualmente trovador de alta estirpe, censura o segrel Garcia de Guilhade, por trovar a donas de condição social superior à sua e procura pôr cada um no seu lugar:

Ca manda ‘l-Rei, por que à en despeito,que troben os melhores trobadorespolas mais altas donas e melhoreso ten assi por razon, con proveito;e o coteife que for trobador,trobe, mais cham’a coteifa «senhor»;e andaran os preitos con direito.E o vilão que trobar souber,que trob’e chame «senhor» sa molher,e averá cada un o seu dereito. CE 236

Como uma excepção nos aparece João Soares Coelho, cantando o valor moral de uma mulher de baixa condição social:

E nunca vi cousa tan desguisadade chamar ome ama tal molhertan pastorinh’, e se lh’o non disserpor tod’ esto que eu sei que lh’aven:porque a vej’a todos querer ben,

11 «cela qui suau me trais»: aquela que com doçura me trai.

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ou porque do mund’é a mais amada.

CA 166

Ora sabemos bem quão violenta foi a reacção entre os seus colegas. Joan Soares volta a insistir nas qualidades da amada:

Ca, de pran, a fez parecer melhorde quantas outras eno mundo son,e mui mais mansa, e mais con razonfalar e rür, e tod’al fazer;e fezo-lhe tan muito ben saberque en todo ben é mui sabedor.

CA 171

Porém, acima das qualidades pessoais, o que então dava valor à «dona» era a nobreza do sangue. E o facto de trabalhar (mesmo que fi zesse bem feito o seu trabalho, como faz notar J. Soares Coelho com tanta insistência) em vez de ser considerado como um valor, constituía muito pelo contrário um aviltamento. Ouçamos o que a este respeito diz Garcia de Guilhade:

Cordas e cintas muitas ei eu dadas,Lourenç’, a donas e elas a min;mais pero nunca com donas tecinen trobei nunca por amas onradas;

Lourenço, di-lhe que sempre trobeipor boas donas e sempr’ estranheios que trobavam por amas mamadas.

CE 213

Em face de tais disputas, não nos pode restar dúvida de que a «senhor» pertencia a um meio social determinado e que seria, portanto, um ser real. Um outro aspecto que vinca igualmente este carácter (aparentemente) abstracto das nossas cantigas de amor é o do exagero e facilidade com que se morre de amor. Exagero não só para nós, gente do séc. XX, mas também para os seus contemporâneos, segundo o juízo dos próprios poetas de

então. Basta lembrar a cantiga de escárnio de Pêro Garcia Burgalês:

Roi Queimado morreu com amoren seus cantares, par Santa Maria;por ua dona que gran ben queria;e, por se meter por mais trobador,por que lh’ela non quiso ben fazer,feze-s’el en seus cantares morrer;mais resurgiu depois ao tercer dia.

R. Lapa, CE 380

O trovador era um infeliz, uma vítima inocente e impotente a quem Amor se comprazia de fazer sofrer:

Ed Amor nunc’a ome leal vi,e vejo muitos queixar con mi

CA 352

A dona era sempre um ser frio, altivo e distante, que desdenhava o amor, e não admitia que lho declarassem(12):

Se souber que lhi ben quero, ben seique ja mais nunca me querrá veer!

Om’a que Deus coita quis dar d’amor, nunca dev’a dormir.Ca ja, u sa senhor non vir,non dormirá; e se chegaru a veja, esto sei ben,non dormira per nulha ren:tant’à prazer de a catar CA 404

A que se reduz a vida de quem ama? A um lento e doloroso martírio:

12 As cantigas 318, 348 e 291 do CA podem considerar-se excepções: nas duas primeiras, o trovador sente-se feliz porque viu a sua «senhor»; na terceira, alegra-se porque foi fi nalmente correspondido.

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a) O apaixonado perde imediatamente o dormir:

E perdud’ei o dormir, e o sen perderei cedo…

Ca lhe quero tan gran ben que perdija o dormir; CA, II, p. 128 e 139

Om’a que Deus coita quis dar d’amor, nunca dev’a dormir.Ca ja, u sa senhor non vir,non dormirá; e se chegaru a veja, esto sei ben,non dormira per nulha ren:tant’à prazer de a catar

CA 415

b) Perde o «sen», perde a alegria, não tem «conselho», chora, suspira:

Meus amigos, pese-vus do meu malet da gran coita que me faz averua dona que me ten en podere por que moir’. E pois m’ela non val,morrerei ca, meus amigos, por én,ca ja perdi o dormir o sen.

CA 296

Vivo coitad’e sol non dôrmio rin,e cuido muit’e choro con pesar,porque me vejo mui coitad’andar. CA 293

Por quantas vezes m’ela fez chorarcon seus desejos, cuitando d’andar,quando a vir, direi-lhi, se ousar:«Senhor fremosa non poss’eu guarir?» CA 393

c) Dominado por um sentimento tirano contra o qual nada «val», que mais pode desejar senão a morte?

Contra mia desaventuranon val amar, nen servir;nen val razon, nem mesura;nen val calar, nem pedir

CA 307

Mia mort’e mia coita sodes, non á i al,e os vossos olhos mi fazen ben e mal.E mais… por quê vo-lo ei eu ja mais a dizer?Mia morte sodes, que me fazedes morrer!

CA 386

Ao lado das cantigas de sofrimento extremo, lágrimas e morte – a quase totalidade – outras nos surgem em que o trovador se ironiza a si próprio. Refl ecte sobre as vantagens de viver, descrê da possibilidade de morre por amor e até conclui que sem amor até passará melhor:

E veredes, eu o sei,como poss’eu sen vos guarir!

CA 321

Pero m’ora dar quisesse

quant’eu d’ela desegei,e mi aquel amor fezessepor que a sempr’aguardei,cuido que lh’o non quisesse.

CA 359

Esta reacção faz-nos crer que o trovador não canta um amor real, um sentimento vivido, mas que faz exercícios poéticos apenas ao sabor da sua imaginação. A existência duma «senhor fremosa de bon parecer e melhor semelhar» por quem diz sofrer imensamente, seria apenas um pretexto, uma fantasia, a matéria necessária ao prazer estético.Todavia, ao lado destes rasgos de desdém e de ironia, por

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vezes mordaz, nos aparecem igualmente testemunhos da sinceridade na poesia. João Airas crê que só pode cantar bem o amor aquele que realmente o sente e vive:

Ca nunca pod’o mentiral tan benJurar come o que verdade ten.

Nunes, C. Amor, CLXXX

Este problema da sinceridade nas cantigas de amor era já posto entre os próprios trovadores. É ainda João Airas que nesta mesma cantiga lhe faz referência:

Ouço dizer dos que non an amorque tan ben poden jurar que o an,ant’as donas, come mi ou melhormais, pero juren, non lhe creerán; Pormenor digno de nota é este «ant’as donas», que nos prova que o trovador dedicava a cantiga a uma determinada dona, ser com existência real, em presença da qual a deveria cantar. A afi rmação «non lhe creerán» também encerra um interesse particular para o presente trabalho. Se o trovador diz que não acreditarão, é porque havia a possibilidade de acreditarem; neste caso, a cantiga não deverá ser olhada apenas como um simples exercício de poesia, apenas como a procura de um prazer estético, mas como um meio de exprimir sentimentos sinceros para com uma determinada «senhor». Para Martin Soares, o simples facto de a «senhor» acreditar no seu amor era razão sufi ciente para que perdesse a «coita»:

Senhor, pois Deus non quer que min queiradescreer la coita que me por vos ven,por Deus, creede ca vus quero ben!E ja mais nunca m’outro ben façades!E se mi-aquesto queredes creer,poderei eu mui gran coita perder, e vos, senhor, non sei que i perçades.

CA 52

O próprio D. Dinis, tão volúvel nos seus afectos, censura aos provençais a necessidade de se inspirarem na beleza da

natureza. Reconhece-lhes os seus méritos - «soen muito ben trobar» - mas confessa descrer da verdade e intensidade dos seus sentimentos:

Proençais soen mui ben trobare dizen eles que é con amor,mais os que troban no tempo da fl ore non en outro sei eu ben que nonan tan gran coita no seu coraçonqual m’eu por mia senhor vejo levar.

Pero que troban e saben loarsas senhores o mais e o melhorque eles podem, são sabedorque os que troban, quand’a frol sazoná e non ante, se Deus mi perdon,non an tal coita qual eu sei sen par.Ca os que troban e que s’alegrarvan eno tempo que ten a colora frol consigu’e, tanto que se foraquel tempo, logu’en trobar razonnon an, non viven en qual perdiçonoj’eu vivo, que pois m’á de matar

CV 127; CBN 489

O que diz D. Dinis ao longo destas três estrofes? Diz que só precisa de se inspirar na paisagem primaveril aquele que não tem o seu coração possuído de sentimentos intensos e violentos. Que quem ama verdadeiramente não tem necessidade de procurar motivos exteriores à sua paixão. Pero de Ambroa, em tensão com Joan Baveca, censura-o por executar cantares de amor feitos por quem não sabe amar:

cantar d’amor de quen non sab’amar,que me digades por que lho dizedes,

CE, 339

Ao que Baveca responde que só diz cantares feitos por trovador «que troba ben e á coita d’amor»:

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Os cantares que eu digo fez quená grand’amor Portanto, aqui, a condição indispensável para bem trovar, mais do que o saber e a arte, é estar apaixonado. Ao novo ataque de Ambroa contra o autor das cantigas que executa, Baveca não se refere já ao «trobar ben», mas insiste em que esse trovador «à grand’amor.» Se o trovador amava com um amor verídico uma determinada «dona» do seu meio social, de quem, portanto, podia aproximar-se, porque se não terá deleitado em descrevê-la pormenorizadamente? Creio serem três os motivos principais: dois impostos pelo código amoroso da época – a mesura e a discrição; o outro – a mudez – originado pela própria natureza do amor, o qual se compraz num tormento constante, todo feito de lágrimas e de suspiros, de fi delidade e de desespero, de timidez e de pavor. A mesura e a discrição eram os dois princípios que o apaixonado devia observar em rigor, sob pena de incorrer na «sanha» da amada. Porquê? É difícil compreendê-lo com uma mentalidade do nosso século. Se uma das características da mulher é o gostar de ser admirada e amada, como se pode explicar que entrasse em «sanha» desde que o trovador ousasse declarar-lhe o seu amor? E, o que é certo, é que este horror do trovador, em deixar transparecer o seu amor, é quase uma constante na nossa poesia trovadoresca:

Pero que mia senhor non querque por ele trobe per ren,nen que lhi diga quan gran benlhi quero, vel en meu cantar,no-na leixarei a loar.

CA 346

se souber que lhi ben quero, ben seique ja mais nunca me querrá veer!

CA 404

Senhor fremosa, vejo-vus queixarporque vus am’e amei, pois vus vi;e pois vos d’esto queixades de mi…

CA, II, p. 138

Muit’aguisado ei de morrere non tenho mia mort’en ren;ante me prazeria én,pois sen meu grad’ei a fazera mia senhor mui gran pesar,ca lhe pesa de a amar.

Idem, p. 144 Senhor fremosa, pois pesar avedesde que vus amo mais ca min nen al

Idem, p. 151

O trovador tinha, pois, de ser muito prudente e não entrar em pormenores demasiados que pudessem denunciá-lo:Muitos me veen preguntar,mia senhor a quen quero ben?e non lhes quer’end’ eu falarcon medo de vos pesar én;nen quer’a verdade dizer,mais jur’e faço-lhes creermentira por vo-lhes negarCa o non pod’ome saberpor min, se non adevinhar.

CA 48

Que ben que m’eu sei encobrircon mia coita e con meu mal,ca mi-o nunca pod’ome oïr

CA 77

… moir’ e non ouso dizero de que moir’ ; e quen me faz morrer,non-o digu’eu, nen por min ome nado

CA 84

E por esto perdi o sempor tal dona que me non val!E pero non direi por quen

CA 21

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Ca ja m’en mayor coita ten por tal dona que non direi, Mentr’eu viver, mais guardar-m’eique mi-o non sábia mia senhor;c’assi estarei d’ela melhor,e d’ela tant’end’ averei:enquanto non souberen quenest a dona que quero ben,algua vez a veerei!

E averei muit’a jurarpola negar e a mentire punharei de me partirde quen me quiser preguntar

CA 28

Sucede, porém, que, por vezes, num momento de entusiasmo, esquece a mesura e deixa falar o coração; ou então são outros que revelam o seu segredo:

Ca non soubera que lhe ben queriaesta dona, se non por meu mal-sen,porque dixe que queria gran ben Joan’ ou Sancha, que dix’, ou Maria:e des que soub’esta dona por mica lhe queria ben, sempre des ime quis gran mal, mayor non poderia

CA 105

Mentre non soube por min mia senhor,amigos, ca lhe queria gran ben,de a veer non lhe pesava én;nen lhe pesava dizer-lhe «senhor»;mais alguém foi que lhe disse por mica lhe queria gran ben, e des ime quis gran mal, e non mi-ar quis veer.Confonda Deu’-lo que lh’o foi dizer !

CA 110

Pero Garcia Burgalês, pondo de parte a discrição, cita nomes em algumas das suas cantigas(13); fá-lo, todavia, não sem receio e um pouco sibilinamente. Garcia de Guilhade, depois de dizer que é em Segóvia que se sente morrer e que

aquela que lhe faz levar «coita de amor» é «fi lha de Maria», conclui desabridamente, numa atitude de protesto contra estes princípios que entravam a liberdade ao trovador:

E o que sempre neguei en trobar,ora o dix’ ! e pes a quen pesar,pois que alguen acabou sa perfi a!

CA 238

Vemos, pois, que a mesura e a discrição tolhiam de certo modo a liberdade do poeta medieval, pelas restrições que lhe impunham. E, uma vez que lhe vedavam a possibilidade de divulgar o nome ou outros sinais particulares que identifi cavam a «dona», tiveram larga contribuição na monotonia da cantiga de amor. No entanto, não podemos acusar apenas o convencionalismo como responsável da uniformidade e abstracção a que nos vimos referindo. Também na poesia provençal estas duas obrigações eram observadas; e, por este facto, ela não deixa de ser mais rica em pormenores e em descrições. Guilherme IX, o primeiro poeta provençal cuja obra chegou até nós, já fala em suas poesias no dever de dissimular e no receio de irritar a amada:

Ren per autruy non l’aus mandar,Tal paor ay qu’ades s’azir,Ni ieu mezeys, tan tem falhir,No l’aus m’amor fort assemblar

IX, 43-46

Para Peire Vidal, o homem apaixonado deve ser prudente e cortês, pois que o amor é mesura e generosidade:

A drut de bona domna tanhQue sia savis e membratzE cortes et amezuratz

Amors es mezur’e merces.

XLIII, 25-30

13 CA 89, 104, 105 e 108.

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Confessa que ninguém conhece os seus sentimentos por receio de ser indiscreta: «Si-m ten amezurat temers». A sua preocupação é de nunca infringir convenções e princípios: «no lh frais covens ni mandamens». Porquê esta preocupação? Não só para evita ferir a susceptibilidade da amada, como por receio de intrigas: «Quar plus qu’obra d’aranha / Non pot aver durada / Amors, pos es proada.» No entanto, muitas das «domnas» provençais puderam ser identifi cadas. Apesar do «segnal» sob o qual se lhes referem, há quase sempre um pormenor, uma alusão histórica ou geográfi ca, que permite o seu reconhecimento. Se a mesura e a descrição não parecem causas sufi cientes do «anonimato» das amadas, teremos de procurar uma outra razão mais forte – a intensidade da emoção que tira ao trovador toda a possibilidade de refl ectir, de observar, de raciocinar, de falar:

Ca nunca eu falei con mia senhorse non mui pouc’oj, e direi-vos al:non sei se me lho dixe ben, se mal;mais do que dixe estou a gran pavor, ca me tremi’assi o coraçon que non sei se lho dixe ou non.

Realmente, o que se poderá exigir a quem «ensandece» de amor? Segundo Payo Gomes Charinho, são as paixões não correspondidas e a intensidade da «coita de amor» que tiram ao trovador a capacidade de bem trovar:

Mas como pod’achar boa razonome coitado que perdeu o sem,com’eu perdi? E quando falo, renjá non sei que me digo, nem que non!E con gran mal non pod’ome trobar!E prazer, non ei se non en chorar!E chorando nunca farei bon son!

CA 247

Aix-en-Provence, 1971

BIBLIOGRAFIA

− Anglade, Les Poésies de Peire Vidal, Paris, 1966 (2.ª ed.).− Jeanroy, Les chansons de Guillaume IX, Paris, 1964 (2.ª ed.).− Michaëlis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, Halle, 1904.− Mouzat, Les poèmes de Gaucelm Faidit, Paris, 1965.− Nunes, Cantigas d’Amor, Coimbra, 1932.− Rodrigues Lapa, Cantigas d’Escárnho, Coimbra, 1965.

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172 CANSAÇO

Manuela Correia*

Já não tenho

mais destreza

para pensar

vou e venho

na correnteza

das ideias a tropeçar

Já são baços

os meus reflexos

e tudo ou nada é prioritário

e os meus olhos lassos

são lagos perplexos

entre o real e o imaginário

O meu corpo

já só reclama

a posição horizontal

mas um desvairo solto

agita-se inflama

e teima em manter-me na vertical

É-me indiferente

o tempo

o que passa e o que faz

se tudo é contingente

se existe ou se invento

as curvas que a vida traz

Os meus gestos

já são confusos

e adormecem no ar

e já tudo são restos

de pensamentos obtusos

onde desço a transviar...

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra,em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia.Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.

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173 Na Alfândega de Christchurch

Joaquim Máximo*

Decorria o ano 2001. Vindo de Sydney, na Austrália, de avião, o grupo de viajantes chegou, no fi m do dia 4 de Agosto ao aeroporto de Christchurch, a segunda maior cidade da Nova Zelândia e a sua maior cidade da sua Ilha Sul. Os viajantes começariam nesta cidade a visita às duas ilhas (Ilha Norte e Ilha Sul) que constituem o território deste país, depois do que regressariam a Portugal. Na sala da alfândega do aeroporto ocorreram três incidentes que vale a pena relatar. Como não tomei directamente parte neles, é natural que o meu relato deles se afaste, aqui e ali, um pouco da realidade. Mas, na sua essência, aquilo que descreverei foi real e, com certeza, todos concordarão em que eles se revestem de facetas inacreditáveis. Convém, no entanto, prestar aqui, previamente, um breve esclarecimento. É que não é permitido, por lei, a nenhum viajante, entrar na Nova Zelândia trazendo consigo qualquer artigo de natureza vegetal ou animal, incluindo artigos comestíveis, possivelmente para evitar eventuais contaminações. Um dos incidentes passou-se com o meu amigo e companheiro de quarto Zé Manel. Mal entrou na sala da

alfândega, logo lhe ordenaram que se dirigisse para uma zona da sala, da qual já não me lembro bem do nome, mas que era qualquer coisa parecido com “zona vermelha”. Aí, logo um funcionário o avisou: – O senhor não pode entrar na Nova Zelândia com isso! – E apontou para a haste de um guarda-chuva de papel que o Zé Manel tinha comprado em Bangkok. Então o Zé Manel perguntou: – Mas porquê? – E o funcionário logo o esclareceu: – É que isso, sendo uma cana, é portanto um artigo vegetal e, como tal, não a pode trazer para este país! – Então o Zé Manel, socorrendo-se de toda a sua lógica disponível, explicou: – Isto a que o senhor chama de cana, já foi cana, mas agora já não é cana. É que a primitiva cana foi transformada numa haste de guarda-chuva. Primeiro foi seca, depois, se calhar, foi toda desinfectada, depois, se calhar, foi toda polida e envernizada e, portanto, agora, de cana não tem nada, a não ser o aspecto! Agora é uma haste de guarda-chuva! – E, com este argumento, o funcionário fi cou convencido de que afi nal a haste do guarda-chuva não era cana nenhuma e deixou o Zé Manel em paz. Já a Isadora Padrão, nossa companheira de viagem, teve muito menos sorte. A essa saiu-lhe uma funcionária de uma antipatia extrema, que lhe ordenou: – Ponha já aqui o ovo!

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profi ssional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences” e da “Planetary Society”.

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– Eu pôr um ovo? Mas que ovo? – Perguntou a Isadora. Então a funcionária apontou para um ovo, que parecia de papel maché, mas que era um ovo de ema, todo decorado com motivos aborígenes, que a Isadora tinha trazido da Austrália. E a Isadora teve de por o ovo ali mesmo. E teve de pagar 21 dólares neozelandezes. E o ovo teve de ser enviado pelo correio para Portugal. E disseram-lhe que, antes disso, o ovo tinha de ser fumegado para desinfecção. E que não era da responsabilidade deles se o ovo sofresse danos no transporte para Portugal. Pior ainda foi o que sucedeu com o Fernando Silveira Ramos, também nosso companheiro de viagem. A esse, ao abrirem-lhe a mala, viram, nesta, duas maçãs. Oh, transgressão das transgressões! Contrabando ilegal de fruta! E, se calhar, contaminadíssima com imensos micróbios! E então a Fernanda, sua mulher, sugeriu, assustadíssima: – Mas eu posso resolver já o assunto. Como aqui já as duas maçãs e pronto! Fica o assunto resolvido! – Não pode ser! – esclareceu o funcionário – Para isso teria de ter comido as duas maçãs antes de entrar nesta sala! – E foi assim que o Silveira Ramos teve de pagar 100 dólares neozelandezes de multa e, além disso, teve de ser preenchida uma extensa papelada, ainda muito mais extensa do que aquela que temos de preencher aqui em Portugal para declaração de rendimentos para pagamento de impostos.

Os três incidentes ocorridos na alfândega do aeroporto de Christchurch em nada afectaram a boa disposição dos viajantes no decorrer da visita à Nova Zelândia, que terminou na cidade de Auckland. Aí teve lugar um almoço com a presença de todos os viajantes, em que o Celestino Portela formulou uma breve mensagem de agradecimento e despedida: – É um sentimento unânime, de todos nós, o de agradecimento à Associação Sindical dos Magistrados Portugueses, pela oportunidade que nos concedeu para esta única, inesquecível e indescritível viagem à Oceânia, acrescida da colaboração, direcção, conhecimento e experiência do sempre presente Augusto Santos. Mas alguém conseguiu, apesar disso parecer impossível, descrever tudo isto; alguém, que nos foi deleitando com intermináveis charlas, que começavam numa viagem e só terminavam no fi m dela, e que nós tínhamos de ouvir incessantemente, às vezes com muita paciência, mas que desta vez conseguiu, em 14 versos apenas, sintetizar tudo

isto. E é essa síntese que o nosso grande chefe Amaori Relvi Tutaki nos vai agora ler – E o Celestino, depois de ter dito tudo isto, apontou para mim, que comecei por esclarecer a assembleia: – Esses 14 versos são as 14 linhas de um soneto, muito modesto do ponto de vista literário, mas que tem algum valor porque me saiu do coração. E agora, falando bem alto, para que a minha voz possa se ouvida nos quatro cantos do mundo, vou passar a ler o que escrevi:

Adeus Oceânia

Deixamos-te agora. Adeus Oceânia.Repousas aqui nos confi ns do mundo,No Oceano Pacífi co, tão profundo! Pode ser que voltemos a ver-te um dia...

Bem hajas por todos teus mares de corais,Pelas tuas rochas, desertos, montanhas,Teus lagos, fi ordes e fl orestas tamanhas,E por todos os teus belos animais.

Deste-nos Oceânia toda a tua beleza, Que é de fi carmos a toda ela presa. Tu és o continente da felicidade!

Colheste do teu Sol raios brilhantes, Para os lançar sobre nós como diamantes,Semeando entre todos profunda amizade!

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175 PROBLEMÁTICA LINGUÍSTICA DOS TOPÓNIMOS GALAICO-MINHOTOS

MEI e MEIS

Domingos A. Moreira*

O topónimo galego Meis em Salnés (Pontevedra) já fi gura na expressão “Munio Gatus de Meys” do ano 1237 num documento do mosteiro de Armenteira (1) e mais tarde em 1487 na expressão toponímica “Sancti Martini de Meis”dum documento compostelano (2). Nas inquirições régias de 1258 (3) aparece registado o topónimo português (com o mesmo orago) na expressão “Sanct Martini de Mey” na região minhota de Arcos de Valdevez. Será portanto, no ambiente linguístico galaico-minhoto que tentaremos enquadrar linguisticamente os topónimos Mei e Meis.

Há um outro topónimo galego, bastante parecido, que é Mens, escrito “mosteiro de Santiago de Mêes” em 1344 (4) em Malpica de Bergantinõs (Corunha) mas a forma bem anterior “Menes” do ano 1174 a par das já evoluídas “Meens” em 1178 (5) e “sanctun Jacobum de mens” em 1199 (6) indica tratar-se doutra série diferente de nomes em Men – (com n) e, portanto, sem interesse para o nosso caso de Mei. Adiante falaremos do topónimo orensano Mein. O simples elemento Mei parece, à primeira vista, estar unido a outros elementos em formas compostas toponímicas. Quanto à Galiza, a Gran Enciclopédia Gallega cita, entre outros, os seguintes topónimos: Meigonte em Guimarei – Friol – Lugo e Meicente em Pastoriza – Arteixo – Corunha, cuja segunda parte ( - gonte, - cende) é bem conhecida, por constar também em nomes pessoais germânicos compostos (origem destes topónimos) tanto em Gund como Alagund, Amalgund, Manegunda, Ermegundis, Vulfgundis, e topónimos Bergontes, Argonte(7) bem como em Kind/Cend como nomes

*Pároco de Pigeiros

(4) – Maria Pilar Zapico Barbeito, Colección Diplomática do Moesteiro de Santiago de Mens, Corunha 2005, p. 16.(5) – Maria T. González Balasch, Tumbo B da la Catedral de Santiago, Santiago 2004, páginas respectivamente 556 e 545.(6) – António López Ferreiro, Coleccion Diplomática de Calicia Histórica, Santiago 1901, p. 83.(7) – Joseph M. Piel, Os nomes germânicos na toponísmia portuguesa, 1937-1945 Lisboa, p. 35 e Joseph M.Piel – Dieter Kremer, Hispano-Gotisches Namenhuch, Heidelberg 1976, p. 100.

(1) –Ermelindo Portela, La Colonización Cisterciense en Galicia, Universidade de Santiago de Compostela 1981, p.180.(2) -Maria Xosé Justo Martín, Manuel Lucas Alvarez, Fontes Documentais da Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela 1991, p. 481. É sabido ter havido no século XII doações à Catedral de Santiago (Gran Enciclopédia Gallega, vol. 20. p. 239).(3) – Portugaliae Monumenta Histórica, Inquisitiones de 1258, p. 384 e 419.

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pessoais Fridekind, Vidukind, Drutchind, etc.(8), Cendamiru, Cendulfus (9). Quanto a Portugal, ocorre em 1258 a expressão documental “fi lii de Meysavay” (10), cuja segunda parte (Savay) recorda o topónimo Savay relacionável com nomes pessoais germânicos em Sab - como Sabaricus, etc. (11). Por conseguinte, existência dum elemento Mei afi gura-se como dado real e verosimilmente de cepa germânica. Mas há outros casos em que a parte inicial Mei não é segura ou até não passa de aparência. Vamos referir-nos a alguns casos. No topónimo Meirins Monção (Portugal) e na expressão antroponímica “Johannes Meirim” na mesma zona no ano de 1258 (12), apesar de a hipotética segunda parte (- rin, - rins) lembrar os nomes pessoais germânicos em – Rin como Rinfrid, Hilperinus e topónimos galego Gondorín e português “Gonderim” em 1220 (13) é possível a relação com o nome pessoal Maiorinus (14). Só documentação mais antiga (por agora desconhecida) é que poderá confi rmar uma ou outra das duas hipóteses. Nos topónimos Meitiriz, Meixide (na Galiza Meijide), o tema inicial não é Mei porque ainda inclui a consoante seguinte, tratando-se portanto, respectivamente (15) do tema Mect/Meit que está, por exemplo, no nome pessoal Meitulfus e do tema Max/Meix do nome pessoal Maxitus que originou o topónimo Meixide, Repare-se que o ditongo ei de Meit e Meix não é originário mas procedente dos fonemas originários ec (Mect) e ax (Max). E um assunto a averiguar também para o caso dos nossos topónimos Mei e Meis. O topónimo Meidonín de Outeiro de Rei (Lugo) não deve ter relação com Mei, ao contrário da relação que outrora suspeitámos com nomes pessoais como Donegildus, Donisore, etc. (16), pois mais antigamente em 1641 tinha a forma “Mendonin” (17) que leva a relacionar-se com os nomes em Mend – (diferentes de Mei).

Passemos agora à questão de saber se no tema Mei o ditongo ei é originário ou evolução fonética doutra forma diferente. Dados positivos do primeiro caso não temos à disposição. Vamos agora observar várias hipóteses do segundo caso.

A) - Evolução fonética Ani> Ei. Nicandro Ares Vázquez (18) supõe que o topónimo Meigonte (do Lugo) supra-referido proviria dum nome pessoal Manigunda também acima citado. É sabido que na topo-antroponímia germânica há a alternância consonântica nd e nt, como se vê de casos como topónimos Gondariz e Gontariz, Nande e Nante (19). A mesma hipótese se poderia estender ao supra-referido topónimo Meicende. Trata-se realmente duma hipótese cientifi ca (só falta a confi rmação de documentação antiga) pois ela está documentada noutros casos como por exemplo no topónimo Meilán da mesma zona de Lugo que era “Manilani” no ano de 998 (20). Um simples nome hipotético * Mani terá originado Mei e Meis? Em Meilán é verdade ( e o mesmo pode ser em Meigonte). Mas importa atender ao facto seguinte também. Enquanto em Meilán o ditongo ei (de ani) é átono, em Mei já é tónico e a evolução não costuma ser igual nos dois casos. Como estamos a tratar de Mei tónico, observamos várias evoluções de áni tónico que na zona de Lugo evolui para ai e não ei (21) e para án noutras zonas da Galiza e ão em Portugal mas nunca ei (22). Eis os casos tónicos da zona lucense: Románi em 1220 hoje Romay, Paratáni em 1120 hoje Paraday, Orvezáni em 998 hoje Orbazay e Avezáni em 757 hoje Avazay perante Orbazán emVillalba e Abação em Monção e Guimarães (Portugal).

B) – Evolução fonética Ali> Ei ? ou Eli> Ei ? O caso do topónimo galego “Malitioso” hoje Meizoso (23) documenta a evolução ali/ei mas é em posição átona mas em forma tónica o l na palavra latina male hoje mal mantém-se (24), não havendo evolução. Förstemann (25) cita ralmente nomes pessoais germânicos em Mal: Malfred, Mallegundis, Malulf, Mellarid,

(8) – Ernst Förstemann, Altdeutsches Namenbuch, 3ª. ed., Bonn 1900, colunas 693 e 694 (quanto a Gund) e 365 (quanto a Kind).(9) – citado (na nota 7) Hispano – Gotisches…p. 188.(10) – Corpus Codicum Latinorum et Portugaliensiun, Portucale 1899, vol. I,p.503. (11) – Domingos A. Moreira, Nomes Tópicos em Ai no Noroeste Hispânico, Porto 1961, p. 70 (separata do vol. 24, fascículo ½ do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto).(12) – Citadas (na nota 3) Inquisitiones de 1258, p. 361.(13) – Ver I Colóquio Galaico-Minhoto, II Volume, Ponte de Lima, pag. 9 sgs.(14) – Biblos vol. 23, tomo II (1947) p. 322 e citados (na nota 7) Nomes Germânicos…p. 209.(15) – Citados (na nota 7) Nomes Germânicos… p. 207 e Hispano-Gotisches… p. 202; Biblos (citada na nota 14) p. 331.(16) – citados (na nota 11) Nomes Tópicos…p.35 e 37.(17) – Revista Lucensia do Seminário de Lugo, nº. 29 (2004) p. 268.

(18) – citada (na nota anterior) Lucensia 25 (2002) p. 301.(19) – citados (na nota 7) Nomes Germânicos…p. 156 e 161, 219,259,8, 21,33 (inclui Balde e Balte).(20) – Revista de Dialectología y Tradiciones Populares respectivamente V (1954) p. 209 e I (1945) p.654.(21) – citados (na nota 11) Nomes Tópicos… p.72(22) – Biblos vol. 23 (1947) respectivamente vol. II p. 377 e vol. I p. 183 (23) – citada (na nota 20) Revista de Dialectologia… V (1949) p. 638.(24) – Citados (na nota 7) nomes germânicos...p. 272.(25) – Förstemann ( citado na nota 8) coluna 1087

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Mellovicus, etc.. O ll duplo ou geminado costuma manter-se, não evoluindo como se vê da palavra latina vallu(m) hoje valo e até antes de i/e evolui para lh como se vê dos nomes pessoais Maurellus e Taurellus a originarem os topónimos correspondentes Mourilhe e Tourelhe (26). Nas formas simples mononolábicas de nomes pessoais há a tendência de geminar o l simples de Mal, o que vai dar no resultado dos referidos Mourilhe e Tourelhe, como se vê do caso de Wolf tornado Woffo, etc. (27). Assim a hipótese tónica de Ali/Ei em Mal(i) não revela grande alicerce. Nota-se o caso tónico da expressão latina “ipse sálit” hoje “ele próprio sai”.

C) – Evolução fonética Agi/Ei ou Egi/Ei, observada, por exemplo, nas palavras latinas rege(m), lege(m), hoje rei e lei respectivamente em portuguê, cfr. ainda Ragimundo/Reimundo. É bem possível que os topónimos portugueses Atei e Gomiei, com a primeira parte respectivamente dos nomes pessoais Atta, Atanagildus e Gomaldo, Gomarigo, etc. se relacionem quanto à fi nal – ei com o elemento inicial dos nomes pessoais Égilo, Egaredo (28), etc. O mesmo de dirá dos topónimos Recey e Baldey (28 b). Realmente, Joseph M. Piel cita nomes pessoais germânicos em Mag – como Magufridus, Magusinds (29). Por sua vez, Förstemann (30), referindo Maghald, Magulf, cita poucos casos com a variante Meg como Mégilo, Megisendis. Uma forma simples (ainda por documentar) * Mégi podia teoricamente evoluir em Mei. Mas agi pode em posição tónica evoluir para ai mas não para ei como acontece com magis/mais, ver nosso estudo (citado na nota 11) sobre os nomes tópicos em Ai. Por sua vez Mag/Meg aparece adicionado de n, que não pertence ao segundo elemento seguinte dum composto mas, sendo da desinência da declinação ( cfr. em latim homo “homem” a par de hómin-is “do homem”), pertence também ao tema (assim ampliado) e daí resulta até haver formas duplas como, por exemplo, nos nomes pessoais Heribaldus e Irimbertus, Agesendo e Agemfredus, Isbert e Isanbert (31)

e daí, com Mag/Meg, haver também Magifreda e Maifredus perante Maginfredus e Mainfredus, citado Magusindo perante Mainsinda (32), citado Magulfo perante Magnulfo e Meinulph (33). Neste condicionalismo temático seria de ligar o topónimo orensano Mein (34) em S. Clodio da Ribeira (Leiro).

D) – Evolução fonética Edi/Ei, observada em casos como latim mediu, medianu hoje meio, meão em português, cfr. o topónimo Rio Meão. Esta última hipótese a respeito de Mei e Meis, já observada por J. Piel (35), tem a seu favor a documentação do topónimo minhoto na região de Viana do Castelo em 1258 – 1262 “Medialbi (Meyaldi”(36) cuja segunda parte é conhecida da antroponímia germânica citada por Förstemann (37) como Albigunda, Albirich, Albisinda, Albulf (coluna 68 sgs.) e Aldofrid, Aldagondis, Aldulf (coluna (57). Desconheço exemplos com Alb e Ald na segunda parte. Uma forma hipotética * Medi podia evoluir em Mei tal como aconteceu com os topónimos galegos Vimaredi, Leoveredi, hoje Guimarey, Laborey (38) e português Recaredi hoje Recarei, etc. (39). Förstemann (40) cita alguns nomes pessoais em Mid (variante de Med) como Midiu, Mitbert, Mitvari, etc. O nome comum mid “médio” tem, apesar da rareza dos correspondentes nomes pessoais, uma boa tradição linguística não só dentro das línguas germânicas (como gótico midis, antigo inglês midde, antigo nórdico midja, etc.) mas também noutras líguas indoeuropeias aparentadas (grego mésos, russo mezem, etc. (41). O grego tem nomes pessoais com a palavra més(os) como Mésandros, Mesomêdes, etc. (42) que são comparáveis a Tímandros, Andromêdes, etc. Quanto à antropronímia latina, Iiro Kajanto (43) cita Medianus (p.301) e Medulla (p.340), isto

(26) – Biblos vol. 23, tomo II (1947) p. 329 e 373.(27) – citados (na nota 7), Nomes Germânicos…p.41 e 272.(28) – citados (na nota 7) Nomes Germânicos…p.39 e 152, 153 e 62.(28-B) – citados (na nota11) Nomes tópicos…p. 15.(29) – citados (na nota 7) Nomes Germânicos…p. 199.(30) – Förstemann (obra citada na nota 8) coluna 1068 sgs.(31) – Domingos A. Moreira, Enquadramento Onomástico de “Meinedo” (Lousada), Porto 1963, p. 25 (separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal do OPorto, vol. 26).

(32) – Wilhelm Bruckner, Die Sprache der Langobarden, Strassburg 1895, p. 282 e 283.(33) – citada (na nota 31) obra, p. 27.(34) – Gran Enciclopédia Gallega, vol. 20, p. 225.(35) – citados (na nota 7) , Nomes Germânicos…p.206.(36) – Revista Portuguesa de História 3 (1947) p. 260.(37) – Obra citada (na nota 8)(38) – V. Garcia de Diego, Elementos de Gramática Histórica Gallega, Santiago de Compostela, ed. de 1984., p. 38.(39) – citados (na nota 7) Nomes Germânicos…p.239.(40) – Obra citada na nota 8, coluna 1122.(41) – Friedrich Kluge, Etymologisches Wörterbuch des Deutschen Sprache, 22 ed., Berlim /Nova York 1982, p. 482; Julius Pokorny, Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, Berne e Munique 1959, p.706 – 707.(42) – August Fick, Die Griechischen Personennamen, Göttingen 1874 p.56 e 126, 102).(43) – Jiro Kajanto, The Latim Cognomina, Roma 1982.

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é, pessoa de meia idade em oposição a Maturinus e Senecius (senil, pessoa de idade madura) e, quanto a “jovem” temos o actual nome pessoal português Juvêncio Gaia Ferreira (44) e o gótico magus “rapaz” (45) dos nomes em Mag. A forma Méis aparenta ser , à primeira vista, um plural de Mei, isto é, paróquia “dos Méis” como agora se ouve dizer “aldeia dos Bernardos” etc. (grupo familiar ou étnico dum Bernardo). Se a população local ainda usar a palavra “os” antes de Méis, fi caria comprovada esta suposição. Como no gótico citado há a forma midis, a terminação is na variante *Medis, explicaria a forma actual Méis (sem necessidade de recorrer-se ao plural familiar), o que parece ser mais certo não só por a documentação medieval não registar a palavra “os” mas até pela presença de nomes pessoais em i e is na Idade Média como é o caso de Almundis e Aragunti (46), etc.

Marie – Thérèse Morlet (47) cita em França o uso de nomes pessoais germânicos em Mit como Mitbreht, Mitiwan, etc. que relaciona com os vocábulos do antigo alto alemão meta, mieta e med “recompensa”. Mas convém observar que uma coisa é a consoante t de Mit / Met ser originária (como o citado gótico mids) ou evolução doutra, pois entre nós um t originário entre vogais evolui em d como latim tota hoje toda enquanto um d originário nas mesmas condições desaparece como se vê do latim mediu (equivalente ao gótico mids) hoje meio. Quanto à suposta variante * Med de *Mid, ela é bem possível no quadro da dialectologia germânica, pois, como bem nota Hans Krahe (48), em sílaba tónica enquanto o gótico usa a vogal breve i, os outros dialectos germânicos usam a vogal e, como se vê de antigos nórdico, frísio e antigo saxão fell, antigo alto alemão fel perante gótico druts – fi ll, etc. e, além disso, consoante gótica dh (de midis) é t em antigo alto alemão (mitti equivalente ao gótico midis).

NOTAS SUPLEMENTARES:

Uma perspectiva de interpretação celta (é bem conhecida na Galiza a presença dos celtas) surgiu apresentada por E.R. Lujan (49) em atenção à palavra celta meion da inscrição de Chamalières na Gália , que deve ascender a um tema anterior * meih que Blanca Prósper indica signifi car “menor”(50), equivalente ao latim medius (hoje a vulgar palavra meio), sendo o oposto antonímico do topónimo galego Maiobre. (Ares – Corunha) onde estaria o tema celta mag- no sentido de “grande” (equivalente ao latim mag-nus “grande”), acrescentando Pokorny (51) a forma címbrica (País de Gales) mei- -ian. Apesar de sugestivas à primeira vista para o caso dos topónimos Meis (galego) e Mei (português), não nos trazem utilidade, pois só se documentam fora da Península Ibérica e mesmo lá são mais frequentes as formas em e ou i já em época antiga como se vê no topónimo Mediolanum”/ Milão, duma forma anterior * Médio-planum, rio Meduana, antigo irlandês mid, irlandês messa, que lembram as formas germânicas do gótico midjis e miduma, anglosaxónico medeme, etc citadas por Pokorny (52). Ora na Galiza só aparecem formas em e ou i, teónimo (Co)soe Meobrigo na zona de Compostela e topónimo Miobri nos Céltici Supertamárici (província da Corunha) e outro em Crecente-Lugo (53) e nada em ei. Por consequência, no meio deste conjunto linguístico, a interpretação pela antroponímia germânica parece ser a preferível. Curiosamente, o topónimo Teis de Vigo, parecido pela terminação com Meis mas palavra diferente, escrito “Tex” e “Teix” no século XII e XIII no “Becerro I” da catedral de Tuy (folhas 208 e 56), também parece condizer com a mesma interpretação germânica, em atenção ao topónimo Teinande (e outros) de Lugo, cuja fi nal - nande é bem conhecida da antroponímia germânica.

(44) – Jornal de Noticias 29-01-2010, p. 60.(45) – Citado (na nota 7), Nomes Germânicos…p. 199.(46) – Domingos A. Moreira, Miscelânea de Antropo – Toponímia Germânica na Galiza e Norte de Portugal, p. 44 e 60 (separata do vol. 32 do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto.(47) – Marie – Thérèse Morlet, Les Noms de Personne sur le Territoire de l’Ancienne Gaule du VI.e au XII.e Siècle, vol. sobre nomes germânicos Paris 1968), pag. 169.(48) – Hans Krahe, Lingüística Germânica, Madrid 1977, p. 61 (quanto às vogais i e e) e 94 (quanto às consoantes dh e t).

(49) – Real Academia Valenciana, Estúdios de Lenguas Y Epigrafi a Antiguas E.L.E.A., nº. 9, p. 226.(50) – Blanca Maria Prosper, Lenguas Y Religiones Prerromanas del Ocidente de la Península Ibérica, Salamanca 2002 pag. 226, 378 e 382.(51) – Obra citada (na nota 41) p. 707.(52) – Obra citada (na nota 41) p. 706 – 707.(53) – Obras citadas (nas notas 48 e 49).

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O topónimo Meixomence de S. Miguel de Ponce, Silleda (Galiza), escrito “Meisomemenz” a par de “Meisomenz” em 1085 além de “Megimenci” e “Mexemence”/”Meixime” no século XII (54) não contém o elemento independente supra referido Mei, pois parece comparável na sua composição nominal com um nome pessoal Bonimentius (“pessoa de boa mente”), que, apesar de não documentado, parece verosímil ter existido não só pela existência do parecido nome pessoal Bonememorius (“pessoa de boa memória”) mas também por a sua existência ser reclamada pelo topónimo galego Bolmente como refere J. Piel (55). Assim também, por comparação, poderia ter havido um nome pessoal Maximomentius (“pessoa de máxima mente”), ainda não documentado, que serviria para explicar a forma toponímica “Meisomemenz”.A simplifi cação das duas sílabas “me” e menz” da palavra “Meisomemenz” (onde há duas consoantes iguais no início de cada uma dessas sílabas) na forma simples “Meisomenz” é um facto que aparece em outros casos, ou seja, o fenómeno chamado haplologia pelos fonetistas José Joaquim Nunes (56), Edwin B. Williams (57), etc. que documentam com os exemplos de antiga forma pêrdeda (com duas sílabas iniciadas pela consoante igual d) hoje perda, jejuar perante forma popular juar, etc. Embora a composição nominal “Maximimentius”, ainda indocumentada, lembre outra em latim que é maximópere (“com máxima obra, trabalho”), os referidos autores não apresentam casos de duas sílabas iniciadas pela mesma consoante m e, por exemplo, a palavra memorare deu em português antigo a forma nembrar e hoje lembrar. Eis pois desde já a fragilidade da interpretação acabada de expor. Por outro lado, como mostrámos no nosso trabalho sobre os Nomes Tópicos em Ai (58), há casos de duplicado consonântico irreais mas fruto de lapso do escriba medieval como por exemplo as formas Pelalágio e Pelágio, subtutus e subtus, Vascoconcelos e Vasconcelos, Archacha e Archa, etc. Neste condicionalismo, teríamos de partir da forma só com um m que é “Meisomenz”, isto é, méisom - (de máximos)

adicionado do sufi xo – entius que aparece em nomes pessoais como Vincentius, Viventius, Fulgentius, Crescentius, etc. e assim um ainda não documentado Maxim-entius podia ser a chave interpretativa do topónimo Maxomence. No entanto, como adverte Piel (59), o sufi xo entius é abundante em temas verbais mas não nos nominais, e que já acontece com o não-documentado nome pessoal nominal Bonentius que é reclamado pelos topónimos galegos Boente e Bointe (60). Mas já consta documentado o nome pessoal Magnentius (derivado da forma nominal adjectiva magnus) que está na base do topónimo Manhente de Barcelos (61). Em latim a forma maxímitas admitiu um outro sufi xo (62), ignorando-se casos com outros sufi xos. Por conseguinte parece difícil ultrapassar o impasse das duas interpretações.

No colóquio de Salamanca em 2006, Eugénio R. Luján (63), quanto ao nome do castelo “Meidunio”, assim escrito numa inscrição romana peninsular” (64), dizia que à primeira impressão parecia ter como segundo elemento o conhecido vocábulo celta dunum “fortaleza, cidade” existente noutros topónimos como Caladunun, Segodunum etc. e assim o primeiro elemento seria Mei. Mas a existência do topónimo lusitano Meidúbriga, tendo como segundo elemento a conhecidíssima palavra celta briga “cidade (alta)”, existente noutros topónimos como Talábriga, Conímbriga, etc., mostra, neste segundo exemplo, haver como primeiro elemento “forma Meidu (diferente de Mei) e que, portanto, Meidunio é claramente comparável com Meidúbriga, não tendo como segundo componente o elemento dunum mas um sufi xo – Unio. Além disso, o facto de o topónimo Meidúbriga ter também e mais frequentemente a forma Medóbriga (com e e não com ei), afasta-nos tanto de Meid como de Mei, tal como acontece igualmente com o frequente nome pessoal Medúgenos perante

(54) – José Ignácio Fernández de Viana Vieites, Colección Diplomática do Mosteiro de Vilanova de Dozón, São Tiago de Compostela 2009, p. 24, 61,63.(55) – Biblos vol. 23. tomo I, Coimbra 1947, p. 189.(56) – Compêndio de Gramática histórica Portuguesa, 5ª. ed. Lisboa 1956, pp. 152-154.(57) – Do Latim ao Português, Rio de Janeiro 1961, p. 118-119(58) – Obra citada na nota 11, pag. 127 = 39 da separata.

(59) – citada, Biblos vol. 23, tomo I, p. 189.(60) “ “ “ “ “ I, p. 188.(61) - “ “ “ “ “ 2, p. 320(62) – Dicionários de H. Forcellini G(….) J. Perin, Lexicon totius Latinitatis; ou Cange, Glossariun Mediae et latimitatis(63) – Juan Luís Carcia Alonso (editor), Celtic ind Other Languages in Ancient Europe, Salamanca 2008, p. 75 e 72.(64) – António Tovar, Estúdios sobre las Primitivas lenguas hispánicas, Buenos Aires 1949, pag. 53.

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Meiduenus etc. (sem g, desaparecido como na palavra latina regina ao tornar-ae rainha, etc.) (65). Por outro lado, é bem conhecida, na região da Lusitânia, a evolução da vogal e no ditongo ei como já observaram em vários exemplos Blanca Maria Prósper (66), José Maria Vallejo Ruiz (67), Manoel Palomar Lapesa(68), Maria Lourdes Albertos Firmat (69): Bibalus e Veibalus, Medúgenus e Meidúgenus, arekoratas e areikoratas, Dobitena e Doviteina, Angetus e Angeitus, etc. Algo parecido se passa em celta goidélio e britónico, cfr. carotino e cairotine (Revue Celtique, vol. 38, 1920-1921, p. 146 sgs.) Além disto, a comparação do elemento Med com palavras parecidas de línguas indoeuropeias vizinhas como as supracitadas latim médius, grego mésos, gótico midis não é possível com a presença do ditongo ei, tanto se trate de Meid como até de Mei, pelo que não sendo originário (mas apenas evolução) o ditongo, fi ca sem base o caso do Mei. Alfred Holder (70), referindo o castelo “Meidunio”, documentado na região de Lamego numa inscrição da época romana (CIL II. 2520), cita ainda o topónimo francês Meidunum. È de notar que em França, em vários nomes próprios começados por Mey, o ditongo ei (e mesmo ai) não é originário mas evolução doutros sons diferentes como se vê, por exemplo, do nome do rio Mayenne, escrito Meduana no século IX, rios Meyronne em Lot e Mayronnes em Aude, escrito Matrona em 892(71) e até o topónimo medieval “Maidunun” (hoje Mehun) na zona de Loire, também escrito Maidun, aparece com a forma Magduni (72) com os bem conhecidos vocábulos celto- -gauleses magos “campo, mercado” e dunum “fortaleza”. Por isso, o ambiente onomástico francês não favorece nada a tese dum Mei originário e independente. Até o antigo irlandês meis que signifi ca “mau” nada adianta

por ser adjectivo e os nomes próprios só se sustentam em substantivos e assim, se, entre nós, há Rio Mau, não existe simplesmente e apenas Mau, aliás não se saberia a que se referia concretamente “mau”.A língua celto-galesa média (País de Gales, Inglaterra) tem o vocábulo meiau com o signifi cado de “jugo médio” (sentido difi cilmente adequado a um topónimo) mas o ditoago ei não é originário, pois trata-se duma palavra composta com o bem conhecido vocábulo celta med (artigo irlandês mide, antigo bretão med, etc) adicionado do vocábulo iau “jugo” do galês médio (iou em antigo galês) e que corresponde ao latim jugum “jugo” ( j e i iniciais são intra-relacionáveis como em português maior e major, João e Ivan em eslavo etc), ou seja, a primeira vogal do ditongo pertencia à primeira palavra med e a segunda vogal pertencia à palavra seguinte iau, isto é, trata-se não de mei-au (com uma palavra mei inicial) mas duma estrutura me-iau (74)

Xavier Delamarre no seu Dictionnaire de la Langue Gauloise, París 2001, p. 189, a propósito do vocábulo gaulês meion (já acima referido por Mª. Blanca Prósper), cita o nome pessoal Meius que lembra bem de perto os topónimos Mei e Meis. Esta perspectiva de interpretação parece logicamente mais razoável que a germânica acima referida. No entanto, historicamente padece de várias defi ciências. Por um lado, Meis que apresenta ter aspecto pluralizante pelo s fi nal, se proviesse do nome pessoal Meius, hoje deveria ter a forma Meios e não Meis como acontece na fala vulgar, (ctr. feio e plural feios e não feis, etc.). Por outro lado, além de não constar a sua existência documentada na Península Hispânica, verifi ca-se que os nomes pessoais donde procedem a maioria ou totalidade dos topónimos documentados na Idade Média e mencionados até hoje não são celtas mas sim latinos e depois germânicos como se pode ver nas listas estudadas por J. Piel (revista Biblos vol.-23, etc.), sinal de já estarem esquecidos ou desusados esses nomes pessoais dos antigos celtas, não tendo chegado até à Idade Média.

(65) – José Maria Vallejo Ruiz, Antroponímia Indígena de la Lusitânia Romana, Vitoria 2005, pa. 357.(66) – Lengua Y Religiones Prerromanas del Ocidente de la Península Ibérica, Salamanca 2002, p. 386 – 387.(67) – Obra citada na nota (64), p. 693.(68) – La Onomástica Personal Pré – Latina de la Antigua Lusitânia, Salamanca 1457, p. 134.(69) – La Onomástica Personal Primitiva de Hispânia, Salamanca, 1966, a p. 154. cfr. ainda Pierre-Yves Lambert, Georges-Jean Pinault, Gaulois et Celtique Continental, Genebra 2007, p. 262.(70) – Alt- Celtischer Sprachschátz, vol. I, Leipzig 1896.(71) – A. Dauzat e Ch. Rostaing, Dictionnaire Étymologique des Nomes de Lieux en France, Paris 1963, p. 443 e 437; obra citada na nota seguinte, p. 107.(72) – Auguste Vincent, Toponymie de la France, Bruxelas 1937. p. 91 e 96; obra citada na nota anterior, p. 445.

(73) – J. Vendryes, Lexique Étymologique de l’Irlandais Ancien, Dublin 1983, tomo MNOP, pag. M – 31. (74) – Ranko Matasovic, Étymological Dictionary of Proto – Celtic, Leiden – Bóston – 2009, p. 262 e 437.

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181 Postais do Concelho da Feira

Ceomar Tranquilo*

A – Postais Ilustrados

*Caminheiro por feiras, lojas e mercados.

85 – Paços de Brandão (Portugal) – Estação e a casa F. Alves. Datado de 13-8-1921.

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85 – A – Reverso do mesmo postalDirigido para a Exma Snrª. D. Maria da C. Martins Vidal. Rua 31 de Janeiro 25 Porto.“Minha boa amiguinha… peço desculpa de só hoje responder mas como mandei buscar um postal e não me trouxeram destes das vistas cá da terra eu então hoje mesmo fui eu buscá-lo…Obliteração de Espinho 13. AGO.21, com chegada ao Porto em 14-8-21, sobre três selos de 2 C., Amarelo, da emissão Ceres de 1917.

86 – Vista de Paços de Brandão.

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86 – A – Reverso do mesmo postal.Datado de Paços de Brandão 29-1º-1925Dirigido para a Exma Senhora D. Maria Gilda Gomes de Bettencourt. Calçada da Estrela, nº. 122 – 4º. Lisboa.Obliteração de Espinho. 29 JAN.25, sobre selo de 25 C. rosa, da emissão Ceres de 1923.

87 – Postal Recordação de Paços de Brandão.Com as Armas de Fernando Brandão, Fundador.Vistas da Capela da Póvoa, Monte de Cima, Escola, Vista parcial, Igreja, Estação e Colégio.

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87 – A – Reverso do mesmo postal.Dirigido em 24-8-49 para a Exma Senhora D. M.J.Ferreira, Rua de Pedrouços nº. 109 –A – 1º. Dtº. Lisboa.Obliteração de Porto. 24AGO.49 sobre selo de $50 da lª. emissão de selos Caravela, 1943.

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Escrevo

com a minha humilde lucidez

acordado

ou a dormir

Durmo para escrever sonhos

acordo para os viver

escrevo no futuro

desejando, encontrar-te no presente

O calor, que emana das minhas palavras

sai de mim

por ti

e num mítico espaço, te descubro

Suspendo esse tempo

para que se torne eterno

e nossos lábios jamais se cansem

de se beijarem

Palavras SuspensasAntónio Madureira*

*Nasceu em 1963, na freguesia de Massarelos, Porto.Actualmente reside e exerce a sua actividade profissional em Santa Maria da Feira.

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