Villa da feira 17 1 192

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Villa da Feira 17

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Ficha TécnicaTítulo: Villa da Feira - Terra de Santa MariaPropriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ®Director: Celestino PortelaDirector Adjunto: Fernando Sampaio MaiaColectivo Editorial - Fundadores LAF:Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim CarneiroProcessamento de Texto: Carla Maria Costa FerreiraCoordenação Científi ca: J. M. Costa e SilvaSupervisão Editorial e Gráfi ca: Anthero MonteiroColaboração do TOC, Belmiro da Silva ResendePeriodicidade: QuadrimestralAssinatura anual: 30 eurosAssinatura auxiliar: 50 eurosEste número: 15 eurosPagamentos por:Transferência bancária NIB 007900001127152910124Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da FeiraCapa: Eng. José Vitorino Damásio, por REGENS. Quadro a óleo s/tela, 119x90 cm, s/data. Propriedade da A.E.P., Porto.Fotografi as: Óscar Maia, Arquivos particulares, Círculo de Leitores, LAF e Fotos Web por José Correia Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604Fax: 256 379 607Tiragem: 500 exemplaresEdição: N.º 17 - Outubro de 2007Pré-impressão, Impressão e Acabamento:Empresa Gráfi ca Feirense, S. A.Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da FeiraSede: Edifício Associação Cultural Clube FeirenseVila Boa - 4520-283 Santa Maria da FeiraEmail: [email protected]ósito Legal: 180748/02ISSN: 1645-4480Reg. ICS: 124038Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia e Sá, 59 4520-208 Santa Maria da FeiraApoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira Irmãos Cavaco S.A. Zoo Lourosa - Parque Ornitológico Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso-Alemã, Lda Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira Patrícios, S.A.

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PÓRTICO

JOSÉ VITORINO DAMÁSIO é uma das personalidades Santamarianas que mais profundamente impressiona e emociona. Nascido no Concelho, mais precisamente no Rossio da antiga Vila da Feira, desde muito jovem que foi sempre uma fi gura de vanguarda. Conhecíamos dele o que a Enciclopédia nos refere: - “Nascido na Feira em 2-XI-1807... integrou o Batalhão Académico, é um dos Bravos a desembarcar no Mindelo, cobriu-se de glória nas lutas liberais, gravemente ferido e condecorado; curso de matemática e Filosofi a, Lente da Academia Politécnica do Porto; sócio fundador da Fundição do Bolhão; participou na construção da Ponte Pênsil no Porto; lente e Director do Instituto Industrial de Lisboa; fundador da Associação Industrial Portuense, membro do Concelho de Obras Públicas e Minas, Director Geral dos Telégrafos; fundador, no Porto, do Instituto Industrial Portuense; colaborador assíduo da Revista Obras Públicas e Minas...”

Teve em Lagos Escola Industrial com o seu nome. No plano editorial da Villa da Feira fi cou assente que no número de Outubro de 2007 evocaríamos o Bicentenário do seu nascimento em 2-XI-1807. Para ilustrar a Revista pedimos a certidão do seu nascimento e constatámos que nasceu no Rossio em 2-XI-1806, há 2001 anos. Este número evoca assim José Vitorino Damásio, o fundador da Associação Empresarial de Portugal em 1852 (A.I.P.), num tempo em que é Presidente da Direcção da Associação um outro ilustre Santamariano, o Senhor Engenheiro Ludgero Marques. E ainda a oportunidade de “honrarmos os Passados e servirmos aos Futuros”, de lembrar aos Presentes quem foi José Vitorino Damásio, sugerir a Homenagem que a Terra de Santa Maria lhe deve e agradecer ao Senhor Engenheiro Jorge Domingos Dias de Andrade a preciosa colaboração que nos prestou.

Executivo LAF

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SUMÁRIO

Pórtico Executivo Laf 5

Conquistar Novos Territórios Emídio Sousa 7

Centenário do Nascimento de Miguel Torga 9

Poesia Henrique Veiga de Macedo 9

Poesia Maria Fernanda Calheiros Lobo 10

“Trabalhar muito e falar pouco” Ludgero Marques 11

Elogio Histórico de José Vitorino Damásio Joaquim Filipe Nery Delgado 13

Poesia António Rebordão Navarro 41

Poesia Maria Virgínia Monteiro 42

José Vitorino Damásio Pedro de Aguiar 43

Biodisel: A Energia que se Planta Maria da Conceiçao M. Alvim-Ferraz 55

Poesia Judite Lopes 70

Cónego Ferreira Pinto, um Feirense a lembrar Padre Manuel Leão 71

Poesia Ilda Maria 74

O Sino da Minha Aldeia Serafi m Guimarães 75

Dicionário Biográfi co de Personalidades Feirenses Francisco Azevedo Brandão 77

Poesia João Pedro Mésseder 86

António Lamoso Centenário do Nascimento Carlos A. Moreira 87

Poesia Anthero Monteiro 100

Os Foliões do Espírito Santo Maria Conceição Vilhena 101

Antologia Prática de um Devocionário Tradicional Popular VII Padre Domingos A. Moreira 107

Contributos da Toponímia para a Arqueologia:

Estudo de Algumas Freguesias do Concelho de Santa Maria da Feira Filipe Pinto 115

A Elevação do Lugar da Praia de Espinho a Freguesia em 1889 Francisco Azevedo Brandão 139

Poesia Henrique Veiga de Macedo 146

Romeu e Julieta Joaquim Máximo 147

Jornal Correio da Feira Ceomar Tranquilo 151

Poesia Manuela Correia 174

Poesia Edgar Carneiro 176

À Sombra de Mestre Aquilino Manuel de Lima Bastos 177

Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo 181

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“CONQUISTAR NOVOS TERRITÓRIOS”

Emídio Sousa*

Consciente da qualidade do trabalho desen-volvido pela Liga dos Amigos da Feira, senti-me muito honrado pelo convite que me foi formulado para escrever na Revista Villa da Feira. A oportunidade de recolher e perpetuar as nossas memórias colectivas é um trabalho meritório e exigente para o qual é necessária a maior dedicação e entrega. Começo por isso por felicitar e aplaudir a LAF pela magnífi ca ideia e pela sua capacidade de a concretizar. Saindo talvez um pouco da matriz editorial da revista, entendi por bem abordar a actualidade da nossa terra e emitir a minha opinião sobre as expectativas de futuro para o Concelho e as suas gentes, atendendo aos grandes desafi os que temos pela frente. Ao longo da nossa história colectiva enfrentámos muitas situações difíceis, que ajudaram a moldar a nossa maneira de ser e que resultaram naquilo que hoje somos: gente valorosa, capaz de enfrentar as maiores difi culdades e que desenvolveu um fortíssimo espírito empreendedor em quase todas as áreas de

actividade, de que resultaram algumas das mais ilustres e proeminentes fi guras nacionais. Não será por acaso que Stª Mª da Feira acolhe alguns dos maiores grupos empresariais do país. Não sendo a nossa região pródiga em recursos naturais, desenvolvemos aquele que é o nosso maior recurso: as pessoas. Como já referi, enfrentamos talvez um dos momentos críticos da nossa história, por força da designada globalização, que mais não é do que o resultado do grande desenvolvimento científi co e tecnológico dos últimos anos e que transformaram o mundo num espaço/mercado acessível a todos, onde a informação, os transportes, a comunicação, a imagem, os negócios… colocam todos em contacto com todos e, da mesma forma, todos a competir com todos. Como refere Thomas L. Friedman em “O Mundo é Plano”, “…como nunca antes na história da humanidade, é agora possível que mais pessoas colaborem e concorram em tempo real com outras, em muitos mais tipos de trabalho, em muitos mais cantos do planeta e em pé de igualdade – recorrendo a computadores, e-mails, ligações em rede de fi bra óptica, teleconferências e software novo e dinâmico…” Ora é nesta grande difi culdade que me parece estar de facto a nossa grande oportunidade, pois que para vencer neste contexto é necessário ter

*Vereador da Câmara Municipal. Pelouros do Urbanismo, Obras Públicas e Ambiente.

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as qualidades que julgo serem intrínsecas às nossas gentes, que sempre estiveram viradas para o mundo, primeiro nos descobrimentos, depois na colonização e na emigração, sempre associada à ideia de regresso e mais recentemente na internacionalização em grande escala dos negócios. São marcas e características essenciais de sucesso no mundo actual. Para isso precisamos de ser ainda mais ousados nos negócios, potenciando as nossas características de receber bem e estabelecer bons relacionamentos, para gerar um forte movimento empreendedor associado à ambição de vencer no mercado global. Já existem alguns indícios claros e efectivos deste potencial, designadamente no relacionamento com os países de língua ofi cial portuguesa, na Europa e um pouco por todo o mundo. “Ir lá para fora” foi algo que sempre fi zemos bem, facto que é reconhecido internacionalmente. “Fazer melhor”, “Andar lá por fora” mas viver cá, é o que temos que fazer. Para isso são necessárias novas e melhores competências para estarmos aptos a vencer. Um território atractivo para o empreendedor, que proporcione liberdade num ambiente de segurança de pessoas e bens, serviços de saúde de vanguarda, educação, transportes, protecção social, oferta cultural (também na vertente de negócio), ambiente, lazer e infra-estruturas. É este o desafi o. São estes os novos “territórios” a conquistar e para os quais temos potencial comprovado. Mas são territórios novos e cheios de incertezas. Como referem Alvin e Heidi Toffl er em “A Revolução da Riqueza”, “…a terceira e mais recente vaga de riqueza, ainda a disseminar-se explosivamente, desafi a todos os princípios do industrialismo, já que substitui os factores tradicionais de produção industrial – terra, trabalho e capital – pelo conhecimento. Enquanto o sistema de riqueza da Segunda Vaga (industrialismo) trouxe massifi cação, a Terceira Vaga desmassifi ca a produção, os mercados e a sociedade.” Mas existem obstáculos que é preciso ultrapassar. Mudar ou substituir uma instituição da era industrial, encontra a resistência dos seus tradicionais

benefi ciários e aliados. Esta resistência cria uma drástica desigualdade dos ritmos de mudança. O que ajuda a explicar a razão pela qual tantas das nossas instituições mais importantes são disfuncionais, isto é, dessincronizadas do ritmo acelerado exigido por uma economia do conhecimento. A governação de hoje tem também um grave problema no que diz respeito ao tempo. Também estamos num tempo de desafi o às instituições. Em conclusão, direi que o nosso potencial está nas pessoas. Só é preciso juntar um bocadinho de ambição.

Emídio Sousa

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MIGUEL TORGA

POETA forte, denso, penetrante,Ideia e sentimento em comunhão.Transmontana vontade em luz e acção.Coisas... seres no verso culminante.

Poeta da raiz, algo distanteDa folha ou flor que murcha e cai no chão.Poeta que desvenda o coraçãoDos homens e da Terra em cada instante.

Poeta substantivo dos valoresDa vida, desnudados e sem cores.Poeta aberto e fundo que se outorga

Inteiramente à criatura humana.Telúrico Poeta que se irmanaCom o que de alto existe... e a rude torga.

Henrique Veiga de Macedo*

Comboio Guarda – Pampilhosa

31 de Janeiro de 1982

Coimbra - Placa evocativa na casa onde Miguel Torga teve consultório médico, encimada pela torga.

Vila da Feira, 30 de Novembro de 1983 - Inauguração de um Monumento a Fernando Pessoa.No fim da cerimónia, em que colaborei, ofereceram-me a bandeira nacional que o cobria. E vou guardá-la por duas razões. Por ser o símbolo da Pátria e por ter envolvido emblematicamente a glória do poeta. Glória pura que, como poucas, merecia a graça desse póstumo calor materno. Ninguém antes tinha realizado o milagre de criar de raíz um Portugal feito de versos.

MIGUEL TORGA1907-2007

Diário-Vol. XIV, 1ª Edição, pag. 70/71 *Ministro de Portugal. Escritor. Faleceu em 25-01-2005.

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SABEMOS TÃO POUCO…

Maria FernandaCalheiros Lobo*

Olhei e vi-te(mas não)Era a rotina

Do recordar.Estavas lá(a fotografia não mente)

* Universidade Sénior - Douro

MasQuem mente?Quem menteÉ a nossa MenteTentando-nosEnganar.

Que quemNão está cáQue nos sente

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*Empresário. Presidente da Associação Empresarial de Portugal. Presidente da Comissão de Vigilância do Castelo da Feira. Natural de Rio Meão.

“TRABALHAR MUITO E FALAR POUCO”

É para mim um enorme prazer escrever algumas palavras sobre o engenheiro, empresário e militar José Vitorino Damásio. Primeiro porque a obra do Homem, fruto da sua determinação, competência e personalidade ímpar exigem reconhecimento. Depois porque foi o fundador da Associação Industrial Portuense, hoje Associação Empresarial de Portugal a que tenho a honra de presidir procurando continuar aquela obra. Finalmente, porque como eu, José Vitorino Damásio é um homem nascido e criado na Vila da Feira, precisamente no seu centro histórico do Rocio. A Obra de José Vitorino Damásio foi amplamente conhecida e reconhecida pelos seus contemporâneos, porque marcou de forma decisiva a indústria, o ensino, as comunicações, as obras públicas e o associativismo do seu tempo, deixando marcas que se estendem até aos tempos de hoje. Mas, hoje, e com excepção de alguns

historiadores, alguns Feirenses e pessoas ligadas à AEP, é quase um desconhecido, e a divulgação do Homem e da sua Obra é uma tarefa que todos devemos assumir, porque o exemplo da sua vida e das suas realizações são uma lição para todos nós. O desconhecimento que existe sobre Vitorino Damásio também acontece porque ele era um homem de acção e de poucas palavras, nada preocupado com a visibilidade pública do que fazia. Como ele dizia: “Trabalhar muito e falar pouco” é o segredo do sucesso. A Vitorino Damásio, de que me sinto honrado ser sucessor na AEP, apenas posso dizer: se todos trabalharmos muito e falarmos pouco, como ele, com certeza que Portugal se desenvolverá e todos nós alcançaremos os nossos objectivos de vida.

Setembro de 2007

Ludgero Marques*

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Sede da A.E.P. na Rua da Vitória, Porto.

Sede da A.E.P. na Avenida da Boavista, Porto. No gabinete do Senhor Presidente da Direcção encontra-se o quadro que é motivo de capa.

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Joaquim Filipe Nery Delgado**

Senhores e colegas:

O ano de 1875 roubou do nosso grémio, entre outras preciosas existências, a de um respeitado colega, que para alguns nos foi dedicado amigo, para

muitos mestre e conselheiro, para todos modelo digno de imitar-se. Esse espelho de virtudes e sabedoria, a que jamais a mínima sombra empanou o brilho, chamava-se José Vitorino Damásio. Encarregado pela ilustre direcção transacta, em sessão de 6 de Novembro, de vir comemorar nesta ocasião solene os factos mais notáveis da vida do nosso consócio, aceitei sem hesitar o honradíssimo convite, não por confi ar nas próprias forças, que são diminutíssimas, mas esperançado em que os meus ilustrados colegas supririam com as suas luzes a defi ciência quase absoluta da escolha que tinham feito. Se algum título, na verdade, determinou a preferência do menos habilitado de entre todos para tão difícil encargo, foi certamente a respeitosa admiração e quase cega veneração, que sempre votei a esse nobilíssimo carácter, e não menos as íntimas ligações que desde a infância me prendem a um outro colega nosso, que, pelas suas relações de parentesco com o ilustre fi nado, melhor poderia haver os esclarecimentos precisos para me desempenhar desta tarefa. Aceitei pois o encargo, e venho cumprir um dever de honra, prestando esta derradeira homenagem ao que, ainda não há muito, sentado entre nós, iluminava com o seu vasto saber as deliberações desta assembleia Muitas foram as pessoas que tiveram a bondade de auxiliar-me neste trabalho. Citando em primeiro lugar a respeitabilíssima viúva do nosso malogrado consócio, a ex.ma sr.ª D. Maria Tereza Ripamonte Damásio, que teve a insigne generosidade de me confi ar todos os documentos guardados por seu ilustre marido; devo mencionar também mui especialmente o sr. João José da Costa Basto, cunhado do general Damásio, e os nossos colegas, os srs. Carlos Ribeiro, José de Parada e Silva Leitão e Valentim do Rego, que todos me prestaram valiosíssimos esclarecimentos. É a eles que a associação deverá considerar como os verdadeiros biógrafos do nosso egrégio consócio; a mim compete-me patentear-lhes a expressão do mais profundo a sincero reconhecimento. O general de brigada José Vitorino Damásio, fi lho de José António Damásio e da sr.ª D. Maria Madalena Damásio, nasceu na Vila da Feira, aos

* - “Discurso lido perante a Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, por ocasião da inauguração do retrato do ilustre general na sala das suas sessões em 30 de Dezembro de 1876.”** Joaquim Filipe Nery da Encarnação Delgado.Nasceu em Elvas, 26-05-1835 e faleceu na Figueira da Foz, 3-8-1908.Engenheiro e Militar, Geólogo e Professor. General de Divisão. Foi sócio efectivo da Academia Real das Ciências, da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, da Sociedade de Geografi a de Lisboa, da Sociedade Antropólogica de Berlim, do Instituto Geólogico de Viena de Austria, das Sociedades Geológicas de Itália e França e outras.

ELOGIO HISTÓRICO DE JOSÉ VITORINO DAMÁSIO*

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Alexandre Herculano. Um Bravo do Mindelo.

2 de Novembro de 1806a. Descendente de pais honestíssimos, se não herdara deles a nobreza que dão os títulos hierárquicos, possuía, o que mais vale, a que dão a virtude e os merecimentos. Como Eugénio Flachat, o grande engenheiro enciclopédico, o nosso consócio veio ao mundo nos alvores deste século, sob o infl uxo da majestosa convulsão que abalava a Europa nos seus antigos alicerces pelo seu pensar, pelo seu espírito infatigável, pela sua índole laboriosa e benéfi ca, pode dizer-se que bem pertencia a este século. Os primeiros anos da sua adolescência passou-os em Aveiro, e depois em Coimbra, onde estudou humanidades, entrando para a universidade, e matriculando-se nas faculdades de matemática e fi losofi a, no ano lectivo de 1826-1827. Achava-se pois cursando o segundo ano destas faculdades, quando rebentou no Porto o movimento liberal de 1828. José Vitorino Damásio, cedendo aos impulsos

da sua alma generosa e entusiasta, pronto abraça o movimento revolucionário e vai alistar-se no corpo de voluntários académicos, como cabo da segunda companhia, em 20 de Maio daquele ano. É então que o vemos entrar na vida pública, praticando desde esse momento uma série não interrompida de façanhas, que para sempre inscreverão o seu nome indelevelmente entre os dos nossos mais ilustres compatriotas. Na vida de José Vitorino Damásio temos que considerar uma tríplice existência: primeiro a de soldado; mais tarde a de revolucionário (digamos sem hesitação o termo, de que ele se ufanava, e que exprime uma das feições dominantes e mais profícuas do seu carácter) e no último e mais largo período da sua vida, e também preenchendo os ócios da quadra precedente, a de homem de ciência. Sob estes três as- pectos o consideraremos, apontando um ou outro rasgo, que nos patenteie com a verdade, que ele tanto prezava, aquele ser privilegiado.

Livro de assentos de nascimentos de Vila da Feira, 1806

a- No original, 1807.

O Rossio, na Vila da Feira, onde nasceu José Vitorino Damásio.

15 Alistado no batalhão académico, e tendo assistido à acção da Cruz dos Morouços, retira para o Porto com o exército liberal, distinguindo-se já então pela serenidade e sangue frio com que expõe a vida, cobrindo na retaguarda do exército uma leva de presos políticos e prisioneiros, que fora encarregado de custodiar. Como é sabido, o movimento militar de 1828, para restaurar a carta constitucional, abortou. Quando a junta do Porto, por motivos ainda hoje mal defi nidos, se vê forçada a abandonar a sede do governo, emigrando para Galiza, José Vitorino Damásio acompanha-a. Depois, seguindo para o exílio, embarca no Ferrol para Plymouth, e não passados seis meses parte para a ilha Terceira, onde desembarca em Fevereiro de 1829, iludindo a vigilância do bloqueio inglês. Nos Açores toma parte nas expedições para a tomada das ilhas do Pico, de S. Jorge e de S. Miguel, junto a essa plêiade de bravos, que três anos depois vem assegurar no continente o triunfo das ideias liberais, desembarcando nas praias do Mindelo. Neste primeiro acto da sua vida militar há que registrar um facto notabilíssimo, que atesta a grandeza de alma, a inquebrantável coragem e abnegação sem limites, de que o nosso consócio era dotado. Quando a divisão constitucional retirou do Porto, fê-lo tão precipitadamente, que nem tempo houve para

recolherem alguns dos seus destacamentos e piquetes avançados. Um desses destacamentos, pertencente ao batalhão académico, não tendo recebido aviso algum, fi cou abandonado e em situação arriscadíssima na margem esquerda do Douro, como que entregue ao inimigo. Quando isto constou aos académicos, que, se primavam em valor, não primavam em disciplina, todo o batalhão, de voz em grita, reclamou do seu comandante a salvação do destacamento. O comandante com prudentes razões, tentou dissuadi-los da sua exigência, ponderando-lhes que o destacamento cumprira o seu dever não se retirando sem prévia ordem, mas que para lha transmitir seria necessário sacrifi car, e inutilmente, mais gente, porque a cidade estava já dominada pelo inimigo. Não se acomodando os académicos com estas exortações, o comandante disse-lhes que não ordenava a ninguém que fosse avisar o destacamento, mas se alguém se quisesse aventurar a fazê-lo ele não se oporia. Mal tinham soado estas palavras, José Vitorino dá dois passos em frente, e com o assentimento do comandante e pasmo dos camaradas parte a cumprir a brilhante missão, que se havia imposto. Ora, para realizar o intento, tinha não só de atravessar a cidade de norte a sul, mas também de passar o Douro, o que não podia fazer pela ponte de barcas, que já estava tomada. Este impossível relativo venceu-o a tenacidade a imperturbável sangue-frio do nosso herói, que enfi m conseguiu salvar os seus camaradas, desembarcando em Massarelos, e rompendo com eles a custo por entre a populaça infrene, que já aclamava o exército realista à sua entrada triunfal no Porto.1

Tendo sido despachado segundo tenente do primeiro batalhão de artilharia por decreto da regência da ilha Terceira de 10 de Novembro de 1831, assistiu como ofi cial a todas as acções do cerco do Porto, deixando inscrito o seu nome com letras de oiro na história dessa luta memorável. Os serviços, que então prestou, são bem conhecidos de todo o exército,

1 É uma das praças desse destacamento e nosso consócio, o sr. José de Parada e Silva Leitão, que deveu, assim como os seus companheiros, a vida a José Vitorino Damásio, que faz esta narrativa; apelando para o testemunho de alguns outros académicos, ainda vivos, que faziam parte do mesmo destacamento, e citando especialmente o nome do sr. conselheiro José Silvestre Ribeiro, o que era aliás desnecessário, porque para asseverarmos o facto basta-nos a respeitável autoridade do nosso colega.

Almeida Garrett. Um Bravo do Mindelo.

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o seu comportamen-to, sempre exemplar, tocou muitas vezes as raias do heroísmo. Duas vezes ferido gravemente e uma vez contuso, teve parte na mais gloriosa das acções que se feriram nos dias 24 de Janeiro, 4 e 24 de Março, 5 e 25 de Julho para a defesa da cidade do Porto. No dia 4 de Março, comandando a artilharia de campanha no alto da Pasteleira, viu cair ao seu lado, mortos ou feridos,

todos os artilheiros que comandava; e gravemente ferido, varado por uma bala, não consentiu em ser substituído no seu posto de honra: só o foi quando a perda de sangue o prostrou desfalecido junto das suas peças. O seu brioso comportamento neste dia e nas acções de 24 de Janeiro e 24 de Março, valeu-lhe um elogio especial do marechal Saldanha, o posto de primeiro-tenente por distinção e o grau de cavaleiro da Torre a Espada, que bem poucos alcançavam naquela época. No dia 25 de Julho, estando doente de cólera no hospital, mal sabe que o vencedor de Argel quer acrescentar as suas glórias militares à custa das liberdades portuguesas, levanta-se da cama, e corre a apresentar-se no reduto de Wanzeller, o ponto mais fortemente atacado por Bourmont, e aí toma o comando de uma divisão de artilharia. Pela suacoragem e impavidez, José Vitorino Damásio muito contribuiu para se obter a vitória nesse memorável dia, em que se feriu uma das acções mais renhidas de todo o cerco do Porto. Esperando, sem se perturbar com a presença de forças muito superiores, o momento em que mais profi cuamente poderia empregar a sua arma, tão acertadamente o fez, que desde logo a vitória se declarou pelo lado dos liberais. Certifi cam este facto

os seus companheiros de armas, e confi rma-o a nomeação de ofi cial da Torre e Espada, que por esse motivo obteve2. Na histórica ordem do dia de 8 de Abril de 1833, em que se galardoaram os feitos mais notáveis daquela luta ingente e se distribuíram recompensas aos mais bravos de entre os bravos, José Vitorino Damásio é o único que recebe duas distinções; um posto de acesso e o grau de cavaleiro da Torre a Espada! Nessa mesma ordem o coronel graduado Francisco Xavier da Silva Pereira, o depois bem conhecido barão conde das Antas, obtinha simplesmente o hábito de Nossa Senhora da Conceição, por ter atacado intrepidamente (na acção de 24 de Março) a posição das Antas, obrigando o inimigo a abandoná-la, conduzindo-se com a sua costumada bravura. Cessam as lutas daquele tempo, e o nosso consócio retoma os estudos na universidade, cursando com distinção as duas faculdades de matemática e fi losofi a e recebendo o grau de bacharel em 15 de Junho de 1837. Nesse mesmo ano, em 27 de Novembro, foi despachado lente da terceira cadeira da academia politécnica do Porto (geometria descritiva e suas aplicações); mas só tomou posse deste lugar em 14 de Fevereiro de 1838, conservando-se até então no serviço militar, certamente em consequência das ocorrências políticas que nessa época se deram e em que desempenhou um papel importante, militando sempre no campo das ideias mais avançadas. Entregue aos deveres do magistério, José Vitorino Damásio foi um dos ornamentos da corporação

2 Trasladaremos para aqui textualmente, com a sua singela eloquência, o que dizem os documentos ofi ciais, que tivemos ocasião de consultar.Na ordem do dia n.º 71 de 8 de Abril de 1833, publicada no n.º 85 da Crónica Constitucional do Porto, lê-se o seguinte:Artilharia – Estado maior – Primeiro tenente, o segundo-tenente do mesmo batalhão (1°), José Vitorino Damásio, por seu valor e distinto comportamento no mesmo dia (4 de Março) comandando duas bocas de fogo de campanha no Alto do Pasteleira.Pelas acções de 24 de Janeiro, 4 e 24 de Março. – Com o grau de cavaleiro da antiga e muito nobre ordem da Torre a Espada, do Valor, Lealdade a Mérito: O segundo-tenente de artilharia, José Vitorino Damásio – por se haver conduzido de um modo superior a toda a expressão; tendo sido atravessado com um bala, apenas se lhe fez a primeira cura, voltou ao seu posto, tornou a tomar o comando da sua peça, e só à força de repetidas ordens expressas consentiu em se retirar.

D. Pedro IV, o Rei Liberal. Foto: Arquivo Círculo de Leitores.

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estudo das máquinas; no segundo ano, da construção das estradas e pontes; e no terceiro ano, princípios de hidráulica e construções hidráulicas, sendo leccionadas na primeira parte do ano lectivo a mecânica e a geometria descritiva. Foi isto o que o conselho resolveu, mas para ser executado temporariamente, enquanto o governo não tomava uma resolução, porque bem conhecia que esforço sobre-humano isto não comportava. Para dar, porém, melhor desenvolvimento ao estudo, José Vitorino regia duas aulas diariamente, uma de mecânica ou de geometria descritiva, e outra de construções públicas, ampliando ainda este curso com o estudo da construção das máquinas de vapor e locomotivas. E como se este colossal trabalho não bastasse para dar pasto à sua portentosa actividade, obedecendo aos generosos impulsos do seu coração magnânimo, ofereceu-se para reger gratuitamente a cadeira de um seu colega, António Luís Soares, que se vira forçado a ausentar-se de Portugal depois dos desgraçados acontecimentos de 1847, obstando por esta forma à sua demissão. Um semelhante acto de fi lantropia tinha já praticado anteriormente para com outro seu colega,Diogo Kopke, que substituiu temporariamentena regên-cia da cadeira de astronomia, para lhe ser conservado o vencimento durante uma grave enfermidade, de que

a que pertencia; e ao trabalho assíduo nesse período tranquilo da sua vida deveu o grande cabedal de conhecimentos teóricos a práticos, que adquiriu, e que ao depois tão admiravelmente soube utilizar. Tendo vagado, pela demissão voluntária do respectivo lente, a sexta cadeira do curso da academia, nas quais se ensinavam construções públicas, o nosso consócio, por amor da ciência e do estabelecimento em que servia, ofereceu-se para leccionar estas disciplinas, o que executou, sem receber nenhum estipêndio, desde 1840 até 1851, época em que a sua saúde profundamente deteriorada o forçou a sair do Porto, indo buscar nos ares da Madeira alívio aos seus padecimentos. Sendo defi nitivamente suprimida a sexta cadeira por decreto com sanção legislativa de 20 de Setembro de 1844, o conselho académico deliberou que o curso de construções fosse de facto incorporado na terceira cadeira, que Damásio tinha de propriedade, fazendo o objecto da segunda parte de cada ano lectivo: tratando-se no primeiro ano da resistência dos materiais empregados nas construções, estabilidade destas e

D. Miguel, o Rei Absolutista

Embarque dos Bravos na Ilha Terceira, rumo a Portugal, em 27 de Junho de 1832.

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afi nal sucumbiu. Assim, segundo a sua própria declaração, houve ano em que regeu simultaneamente três cadeiras, recebendo todavia retribuição somente por uma! Em 1842, durante a construção da ponte pênsil do Porto, examinou e vigiou constantemente os trabalhos, assistindo à abertura dos poços, à colocação dos cilindros de fricção e das amarras, e ao atracamento destas nos poços de amarração; e coadjuvou efi cazmente o engenheiro Bigot na resolução de todos os cálculos relativos à resistência das amarras, e à estabilidade e equilíbrio da ponte, empregando as fórmulas de Navier, e comparando os resultados obtidos com os que o mesmo engenheiro alcançara pelos processos gráfi cos,

usados na escola de artes e manufacturas. Organizada a companhia das obras públicas de Portugal em 1845, José Vitorino Damásio foi chamado para o seu serviço em 2 de Julho e encarregado superiormente da construção da estrada do Alto da Bandeira aos Carvalhos, onde revelou os seus altos dotes como engenheiro. Aí empregou o sistema de cilindragem de Polonceau (nessa época desconhecido em Portugal, e mesmo mal aceite par alguns dos nossos engenheiros superiormente colocados) e para esse fi m traçou os moldes e dirigiu a construção do grande cilindro de ferro coado, ainda há pouco, se não ainda hoje, empregado naquele distrito. Foi também par essa época, 1845-1846,

Desembarque na praia de Pampelido, em 8 de Julho de 1832.

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que o nosso consócio redigiu com mais três colegas o Industrial Portuense, primeiro periódico daquela índole que se publicou no nosso país e que ele teve a glória de fundar. Achando-se ao serviço da companhia das obras públicas, o qual aceitou para satisfazer a sua paixão pelo estudo das ciências aplicadas, teve de interrom-per temporariamente o serviço do magistério para desempenhar uma importante comissão no estrangeiro, para a qual fora convidado pela muita confi ança que a direcção depositava na sua ilustração e probidade. O nosso colega partiu efectivamente para França no princípio de Dezembro de 1845, munido de amplas instruções, pelas quais era encarregado da compra de diligências e de carros de transporte para servirem nas estradas do Minho; da escolha de modelos e compra de carruagens de posta e outros veículos mais acomodados às outras estradas do país; da inspecção dos estabelecimentos mais notáveis da Inglaterra, França e Bélgica com o fi m de se estabelecer no nosso país um arsenal de obras públicas onde houvesse máquinas de serrar e aparelhar madeira, de aplainar, furar e tornear peças de ferro para carruagens, wagons, locomotivas, etc; de estudar o sistema de administração e contabilidade empregado nestes estabelecimentos; enfi m, de escolher aqueles para onde se deveriam mandar artífi ces hábeis, para importar no nosso país a prática destas diversas indústrias Tão vasto problema não chegou porém a ser resolvido, porque os acontecimentos políticos do ano seguinte fi zeram suspender os trabalhos, e, como é sabido, a companhia das obras públicas teve de liquidar as suas contas com o governo. Regressando Damásio a Portugal, em Agosto de 1846, no meio da efervescência política que avassalava o país cessando os trabalhos produtivos de que fora incumbido, fecha os livros de professor, e ei-lo outra vez lançado na vida tormentosa da política. Como espírito convictamente liberal, José Vitorino Damásio pôs o esforço do seu braço e da sua robusta inteligência ao serviço da junta do Porto, prestando à revolução popular os mais assinalados serviços. Variadas e penosas comissões lhe foram incumbidas e de todas se desempenhou como cumpria ao seu provado zelo,

extremado valor e abalizados talentos militares. Foi encarregado de aprontar armas no Trem do Oiro; de artilhar as linhas do Porto; do comando da guarnição do Castelo da Foz, quando para ali foi conduzido preso o nobre duque da Terceira; e, nomeado chefe do estado-maior general, foi ele o ofi cial escolhido para dirigir as obras do cerco do castelo de Viana, de tal modo executadas, que a guarnição teve de abandoná-lo, apertada pela fome. A ilimitada confi ança, que a junta depositava no carácter impoluto de José Vitorino Damásio, levou-a a conferir-lhe o comando de uma coluna de operações no Alto Minho, que fez o assédio de Valença, com o desígnio de isolar esta praça do resto da província. Esta coluna, composta apenas de três batalhões de voluntários, pela fi rmeza a intrepidez do seu chefe, soube conter sempre em respeito a guarnição da praça, repelindo-lhes todas as sortidas. Deplorando, como devemos, os desvarios dessa época infausta das nossas discórdias civis, como quer que fossem extremados os campos que cada um abraçou, a verdade histórica pede que se diga que José Vitorino Damásio desempenhou nessa ocasião um papel eminente, pelo seu esforçado valor e acrisolado patriotismo. Homem de partido e de profundas convicções politicas, mas antes de tudo português de lei, não lhe sofreu o ânimo ver calcado o solo pátrio par um exército estrangeiro, que de mais assinalava a sua entrada em Portugal pela violação de um armistício, atacando sem prévia intimação as forças populares, e respondendo com duas descargas à queima-roupa sobre o seu chefe, que se adiantara para lhe notifi car a suspensão das hostilidades. Cabe aqui consignar um rasgo notável, que ao mesmo tempo expressa a bondade da sua alma e a energia do seu ânimo inquebrantável. Aproximava-se a divisão espanhola da fronteira portuguesa, e era já inevitável o levantamento do cerco. O seu antigo camarada, o coronel de artilharia Alexandre Pinto, por um sentimento assaz louvável, veio procurá-lo e diz-lhe: «Sabes, amigo, que forças vêm aí para te bater?»

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«Não. Quando fomos camaradas nos combates, contámos alguma vez os inimigos?» Deram-se um abraço e ambos se apartaram contristados. Poucos momentos depois era abandonado por dois dos batalhões que comandava, e restando-lhe apenas fi rme o segundo batalhão de artistas, com ele fez face ao ataque dos espanhóis em forças triplicadas às suas, batendo-se até esgotar as poucas munições de que dispunha. Por fi m, cobrindo com uma companhia a retirada daqueles bravos, foi ele o último a abandonar o campo, marchando sempre a bastante distância dos seus soldados para poder servir de alvo às balas inimigas! A bravura e estóica impavidez, que ostentou nesse dia memorável, em que, com heróica abnegação, tendo em nenhuma conta a própria existência, só pensou em salvar a honra do país vilipendiado pela afronta de uma invasão estrangeira, seria assunto bastante para lhe tecer uma coroa imarcescível, se a sua fronte não estivesse já laureada por tantos feitos brilhantíssimos. Da sua boca ouvimos, poucas semanas antes de falecer, e quando o julgávamos ainda no vigor da vida, a narração deste feito glorioso, que ele

acobertava com a maior modéstia e que depois vimos copiosamente desenvolvido em várias publicações contemporâneas e nos documen-tos que compulsávamos sobre que baseámos este escrito. O heróico comportamento de José Vitorino Damásio naquele transe angustioso, mereceu o reconhecimento da junta, que lho manifestou num documento honradíssimo, assinado pelos seus membros, e que lhe foi transmitido com uma carta do ministro da guerra. Também no ânimo do próprio general Concha causou tão funda impressão o seu procedimento, que, diz-se,

apenas chegado ao Porto, pediu para conhecer o que ele intitulava o «General Damásio».

Praia do Mindelo. Obelisco comemorativo.

Duque de Saldanha.

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Terminada a guerra civil, e assinada a convenção de Gramido, o nosso consócio abandona a vida militar e dá a sua demissão de ofi cial do exército por uma declaração escrita que vai ele próprio entregar no quartel general da divisão militar do Porto. Volve então à vida mais tranquila, entregando-se novamente ao professorado e dedicando o seu tempo, as suas forças e a sua superior inteligência ao aperfeiçoamento dos variados ramos da nossa indústria fabril. Foram muitos e importantíssimos os serviços que José Vitorino Damásio então prestou ao país e em especial a diversas fábricas e estabelecimentos particulares. Em 1848, de sociedade com dois outros cavalheiros, os srs. Joaquim Ribeiro de Faria Guimarães e Joaquim António da Silva Guimarães, fundou a fábrica de fundição do Bolhão, cuja direcção técnica assumiu, e onde introduziu a importante indústria do fabrico da louça de ferro fundido esmaltada e estanhada a banho. Foi neste estabelecimento por ele dirigido que se fez a primeira draga fabricada, que nós saibamos, no país, sendo toda a ferragem obrada unicamente à forja, sem o emprego de lima, inovação que então obteve os aplausos dos entendidos. A máquina da primeira fábrica de cordoaria mecânica, que se estabeleceu no Porto, também foi construída sob a sua direcção, vendo-se por esse motivo forçado a estudar nos últimos pormenores esta indústria. Foi igualmente debaixo das suas vistas que se procedeu ao assentamento da primeira máquina de vapor que teve o Porto, a da fábrica de fundição da rua do Rosário. Agora, ensina a um fabricante o modo de ondear a seda, mandando construir uma máquina muito simples e apropriada ao intento. Logo, explica a outro industrial o processo metalúrgico para o tratamento do estanho, dirigindo a construção de um forno e o seu trabalho nos primeiros ensaios. Enfi m, a sua fecunda inteligência amolda-se a todas as exigências, adapta-se aos mais variados misteres; e nunca um industrial ou operário recorre ao seu conselho, que não o obtenha seguro, esclarecido e dado sempre com a maior afabilidade e desinteresse. Para ainda avaliarmos os sentimentos patrióticos e inexcedível abnegação do nosso colega,

deve saber-se que em 1849 lhe fora oferecido pelo abastado industrial brasileiro, o sr. Ireneu Evangelista de Sousa, depois barão de Mauá, um importante lugar no seu notável estabelecimento, da Ponta de Areia, onde havia diferentes engenheiros, dirigindo ofi cinas de fundição propriamente dita, de serralharia, estaleiros de construção naval e um laboratório galvanoplástico, ocupando uns mil operários. Apesar das grandes vantagens pecuniárias e do atractivo que devera oferecer-lhe, mormente naquela época, tão vasto campo aberto às suas explorações, o nosso consócio muito cortesmente declinou o convite, alegando os seus compromissos na fábrica de fundição do Bolhão, onde, dizia ele, dois seus amigos tinham empenhada grande parte da sua fortuna; e o estar regendo na academia politécnica a cadeira de um seu amigo, que motivos políticos tinham obrigado a ausentar-se da pátria, obstando com este serviço gratuito à sua demissão. Em 1854 foi outra vez vivamente instado pelo mesmo industrial e por um seu amigo também residente no Rio de Janeiro, para tomar a direcção superior do mesmo estabelecimento, e novamente rejeitou a oferta. Também foi convidado (ignoramos a época precisa em que isso sucedeu) para ir assentar e fazer funcionar diferentes máquinas empregadas na indústria extractiva dos produtos agrícolas, em Espanha, oferecendo-se-lhe uma avultada remuneração: respondeu que, enquanto pudesse prestar serviços ao seu país, não iria para o estrangeiro. A quantos dissabores o nosso consócio não se teria poupado durante a sua vida, se não fora a sua abnegação e desinteresse. O movimento revolucionário de 1851, conhecido pelo nome de «Regeneração», vem encontrar Damásio no cumprimento dos deveres do professorado e nas suas ocupações industriais ; mas tinha sido funda a impressão que os acontecimentos de 1846-1847 lhe tinham gravado na alma, para que a menor faísca não pudesse reacender o seu entusiasmo político Estranho de princípio ao movimento revolucio-nário, quando vê periclitar a causa do marechal Saldanha, subitamente lhe desperta a natural energia e toma à defesa dela com todo o esforço a dedicação de

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que era capaz. Foi José Vitorino Damásio quem, com a sua poderosa iniciativa, mais contribuiu para que fosse restituído à pátria o nobre duque, já refugiado em Lobios; é a ele que principalmente cabe a honra insigne de ter, pela sua temerária resolução, salvado do exílio o ilustre general, que noutros tempos mais de uma vez o havia conduzido à vitória.3

O nobre marechal, profunda-mente reconhecido, por este inapreciável serviço, por diferentes modos quis manifestar a sua gratidão; porém, José Vitorino

com a maior delicadeza recusou-se sempre a aceitar qualquer signifi cação de recompensa. Qual outro Cincinnato, recolhendo-se à sua fábrica, não queria dos despojos da vitória senão a glória de ter para ela tão brilhantemente contribuído. O exímio general mandou então lavrar o seguinte decreto que honra tanto o agraciado como o dador, e que o nosso consócio devidamente apreciava como a maior

distinção que podia ser-lhe conferida: «Estado maior general. – Atendendo às eminentes virtudes cívicas e militares que tão especialmente brilham na pessoa do capitão que foi de artilharia, e actual lente da academia politécnica desta Invicta cidade, José Vitorino Damásio, e à privação que resulta ao exercício dos serviços de um ofi cial tão distinto pelos seus profundos conhecimentos, como pelo seu extremado valor: determino, em nome de Sua Majestade, a Rainha, que seja restituído à efectividade do posto de capitão da dita arma, como se uma tal demissão nunca tivera lugar, encarregando-o desde já da inspecção e direcção do arsenal e trem desta cidade do Porto. «Quartel general no Porto, 29 de Abril de 1851. Duque de Saldanha.» A Comissão a que este decreto alude, foi porém efémera ou fi ctícia; o nosso consócio continuou no serviço da academia politécnica ainda por algum tempo, até que o excessivo trabalho e a inalação de vapores metálicos nas fábricas lhe arruinaram a saúde ao ponto de dar os mais sérios cuidados à sua família e amigos, e ver-se forçado a partir para a ilha da Madeira. É interessante notar (e isto revela bem a seu génio pundonoroso e a sua quase incompreensível abnegação) que José Vitorino Damásio, abandonado já pela medicina e aconselhando-se-lhe aquela viagem como último recurso para salvar a vida, se negasse obstinadamente a sair do Porto, porque, alegava ele, não lho permitiam os seus deveres como lente e como engenheiro. Foi mister que os seus amigos, apelando para o carácter generoso do nobre duque de Saldanha, alcançassem, pelo Ministério da Guerra, uma nomeação para ele ir desempenhar naquela ilha uma comissão científi ca, recebendo ao mesmo tempo ordem terminante de seguir para o seu destino no primeiro navio que para ali se dirigisse.4

Os acontecimentos políticos desta época operaram todavia naquele ser extraordinário uma

José da Silva Passos.

3 Quando os progressistas, de acordo com os partidários do nobre marechal Saldanha, trabalhavam no Porto para o triunfo da revolução, Damásio sustentou sempre que os sargentos e soldados a fariam, embora se opusessem os comandantes e ofi ciais. Dizendo-lhe um seu correligionário político que o nobre duque, bastante mortifi cado, se havia retirado para Espanha e que a revolução já não podia realizar-se, porque diversos ofi ciais com quem o marechal contava estavam presos, e outros elementos mais lhe tinham falhado, Damásio respondeu:«Pois se a revolução não se faz com os ofi ciais faz-se com os sargentos. E quando, presos na relação os sargentos de dois corpos, os mais animosos julgaram a causa perdida e os contrários já cantavam vitória perguntando-se a José Victorino o que havia a fazer naquelas circunstâncias, ele respondeu simplesmente : «agora faz-se a revolução com os cabos»; e assim sucedeu.Vitorino não querendo fi gurar ostensivamente à frente da revolução, apesar de muito instado para isso, foi todavia quem acompanhou a casa do sr. Miller, em Campanha, Salvador da França, o qual, convenientemente disfarçado, foi dali conduzido pelo braço dos dois, na noite da revolução, para uma casa no campo de Santo Ovídio, e depois introduzido clandestinamente no quartel com chaves feitas na fábrica do Bolhão. No trânsito os agentes da polícia surpreenderam-nos e a revolução ainda uma vez esteve perdida; porém José Vitorino com o seu habitual sangue frio, insistiu em que Salvador era um súbdito inglês, há pouco chegado do seu país, e assim puderam escapar-se.Ainda depois foi a enérgica atitude de Damásio que principalmente tolheu a contra-revolução no Porto, que ele estava disposto a impedir com o auxílio dos seus bravos artistas e outros operários das fábricas do Porto.

4 José Vitorino Damásio recebeu uma nomeação do Ministério da Guerra para ir à ilha da Madeira proceder à confecção de alguns trabalhos estatísticos sobre os produtos naturais, que mais conviesse explorar na dita ilha.O ofício, emanado do comando em chefe do exército, em que lhe foi transmitida esta ordem, é datado de 29 de Outubro e dirigido ao comandante da 3ª divisão militar, que deveria recebê-lo e dar dele conhecimento a Damásio, antes que

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profunda transformação. Votado de alma e coração à regeneração política do seu país, enquanto as forças e o ardor dos anos o chamavam àquelas rudes pelejas, realizado em parte o seu ideal, o nosso consócio entrega-se daí em diante aos labores plácidos dos estudos de gabinete e mais especialmente ao estudo das diversas questões da engenharia. Regressou Damásio da ilha da Madeira completamente restabelecido em Julho de 1852. A sua entrada no Porto, no dia 7, foi verdadeiramente triunfal: os seus amigos, industriais e artistas, em acordo unânime, tinham-lhe preparado uma recepção esplêndida e manifestaram-lhe as maiores demonstrações de afecto, respeito a gratidão. O pouco tempo que Damásio se demorou no Porto, até ser chamado para o serviço do Ministério das Obras Públicas, não o passou ocioso. Foi por essa ocasião, em Agosto de 1852, que por sua inteligente iniciativa se fundou a associação industrial portuense, na qual tantas outras associações tiveram depois a sua origem. Tendo recusado a presidência da direcção, mas autorizado por ela e com vários donativos que se obtiveram, criou um laboratório químico e aulas de desenho linear, de ornato, das línguas francesa e inglesa e da língua materna pelo método de ensino repentino, as quais, sendo frequentadas por grande número de alunos, pode dizer-se que foram os fundamentos sobre que o governo decretou a criação do instituto industrial naquela cidade. Vivamente impressionado pelo naufrágio do vapor Porto sucedido na barra do Douro em 29 de Março daquele ano, fez também Damásio pelo mesmo tempo na Foz várias experiências, com o fi m de descobrir o meio de lançar de terra um cabo de salvação para

um navio em perigo. O resultado dessas experiências se não foi inteiramente satisfatório para o fi m a que se propunham5, deu origem a uma interessantíssima descoberta, que, mal de nós, a sua modéstia ocultou por alguns anos, vindo depois a aparecer publicada em jornais estrangeiros, sem que nós possamos reivindicar a glória da prioridade que nos pertencia. Entretanto, convém que nos demoremos um pouco sobre este ponto, porque é para nós fora de dúvida que o nosso consócio foi quem primeiro descobriu um grave erro em que naquela época laboravam os engenheiros de todas as nações.6

A descoberta de Damásio consiste em que não pode estabelecer-se distinção precisa entre ferro fi broso e ferro granular, pois que o melhor ferro fi broso passa a granular por efeito de uma explosão instantânea. O nosso consócio chegou a este resultado, como disse, fazendo repetidas experiências para lançar um cabo à distância. Serviu-se para esse fi m de um

5 As experiências tendentes a lançar um cabo de salvação a embarcações em perigo por meio de tiros de morteiro, chegaram a bom termo; mas como complemento indispensável para a cabal solução do problema, era mister descobrir o meio de levar prontamente o barco salva-vidas com a sua tripulação a uma certa distância da costa, porque perto da terra o redemoinhar das vagas e ordinariamente a confi guração da costa tornariam demorada, perigosa, e muitas vezes mesmo impossível, a operação de o lançar à água. Submetida esta questão ao nosso engenheiro, ele sugeriu a ideia de um drop salva-vidas, ou aparelho análogo ao que os ingleses usam para a carga e descarga dos navios a distância dos portos, mas em águas tranquilas: fez o modelo e competente orçamento e depois de submetido à discussão e ao exame dos peritos, mandou-se construir. As novas experiências feitas com este aparelho sortiram excelente efeito, mas por motivos que nos são desconhecidos, o drop saIva-vidas foi depois desmanchado. Sabemos porém que o morteiro de bronze, que serviu às experiências, ainda hoje existe no estabelecimento do salva-vidas, na Foz.

6 Pede a verdade que se diga que não vi nenhum documento escrito sobre o qual baseie esta afi rmativa, a não ser a indicação que encontrei no diário de viagem de l856, durante o tempo que Damásio esteve em França, onde nas notas que se referem ao dia 15 de Maio, se lê que M. Calla (um ilustrado industrial parisiense, com fábricas de fundição e de construção de máquinas, o qual tinha aliás feito muitas experiências sobre a resistência do ferro) não conhecia nenhumas experiências sobre a mudança de contextura do ferro pela fractura produzida pela tracção de chofre, quando Damásio tinha adquirido já esse conhecimento pelas experiências feitas quatro anos antes na Foz. Damásio prometeu dar uma nota das suas experiências a M. Calla, bem como a um engenheiro de Rouen, com quem se encontrara nesta cidade no dia 5 de Janeiro. No mais reporto-me à narração feita pelo próprio Damásio a alguns dos nossos colegas, o que também eu lhe ouvi, e ao testemunho de vários operários da fábrica do Bolhão, que assistiram à fundição do morteiro e ao fabrico das correntes, que serviram às experiências.

este recebesse a portaria do Ministério do Reino com data de 30, em que lhe é concedida licença para estar ausente do exército da sua cadeira pelo tempo preciso para o seu restabelecimento.Vê-se, pois, que José Vitorino teve afi nal de ceder às instâncias dos seus amigos; e franco e verdadeiro, como era, depois de ter recebido a ordem do marechal Saldanha para tratar da sua saúde, julgou mais curial fazer um requerimento, como fez, pedindo dispensa do serviço, que aliás lhe era impossível executar.Ao sr. Parada, que teve a feliz iniciativa deste conluio, deve o país mais de vinte e três anos de serviços do nosso venerado colega, o que certamente é para ele motivo da mais grata satisfação.

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Rei D. Fernando II.

morteiro, que lançava uma bomba presa ao cabo por uma cadeia de ferro. Fez alguns tiros e em todos se partiram as cadeias, notando sempre que a fractura do elo apresentava a textura granular. Desconfi ando da qualidade do ferro, e atribuindo o mau resultado das experiências a esta causa, escolheu ele próprio varões de ferro fi broso da melhor qualidade e mandou fabricar com eles porções de cadeia, reservando de cada varão um pedaço, para poder comparar depois da experiência. Assistiu ao fabrico das cadeias, numerou estas e os restos dos varões, de que tinham sido feitas, e novamente procedeu às experiências. O resultado foi sempre o mesmo. As cadeias de ferro rebentavam puxadas pela bomba e mostravam na fractura a textura granular, posto que as barras apresentassem a textura fi brosa. Daqui concluiu que o ferro fi broso podia passar a granular pela fractura produzida pela tracção de chofre, ou devida a uma força instantânea, como a produzida pela infl amação da pólvora. Se Damásio não teve a glória científi ca desta

descoberta, gozou o prazer, para ele de certo mais íntimo, de ter salvo por este motivo um negociante honrado de uma pena infamante. Eis o caso: No dia 1 de Agosto de 1855 a cidade de Rouen foi dolorosamente surpreendida pela notícia da explosão de uma caldeira de vapor numa fábrica de fi ação, por efeito da qual catorze operários fi caram horrivelmente feridos, morrendo oito instantaneamente e três logo depois. Esta catástrofe consternou a cidade; os jornais ocuparam-se do assunto; e todos, e especialmente o dono da fábrica, se queixaram do fabricante da máquina, pois que, observada a fractura dos estilhaços, se reconheceu que mostravam a textura granular, o que atestava a má qualidade do ferro com que a caldeira tinha sido fabricada. O governo francês mandou sindicar do facto por uma comissão composta de um ou mais engenheiros, de um juiz e do maire de Rouen, e por acaso essa comissão achava-se na mesma hospedaria onde Damásio fora alojar-se. Discutindo sobre o assunto, todos os membros da comissão eram acordes na culpabilidade do fabricante, porque, tendo sido uma das cláusulas da encomenda o fabricar a caldeira de chapa de ferro fi broso, via-se que ele tinha faltado a esta condição do contrato, empregando ferro granular de má qualidade. Sendo reconhecido Damásio como engenheiro, e chamado a terreno, fundando-se nas experiências que quatro anos antes havia feito, expressou a opinião contrária, isto é, que o fabricante podia estar inocente; e como se prontifi casse a apresentar esta opinião por escrito, e mesmo a dirigir experiências tendentes a provar o seu asserto, o resultado foi a comissão adiar a sua resolução, que seria inevitavelmente fatal para o acusado. Regressando Damásio a Paris, poucos dias depois recebeu um ofício do Ministro do Comércio, o qual lhe comunicava a participação que tinha recebido do maire de Rouen, relativamente à conversa que havia feito suspender o voto da comissão de sindicância, e lhe perguntava se queria encarregar-se de dirigir uma série de experiências no sentido de provar a transformação do ferro fi broso em granular, quando sujeito a uma explosão fulminante. O nosso consócio prontifi cou-se a fazer as experiências, e para isso foi-lhe concedido um terreno próximo de um parque de artilharia, algumas peças, e

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Academia Politécnica do Porto.

o mais que requisitasse. Quando, porém, estavam as coisas preparadas, uma cheia inundou o terreno, onde haviam de fazer-se as experiências e, tendo Damásio de prosseguir na comissão de que havia sido incumbido pelo nosso governo, redigiu umas instruções, que enviou ao ministro, e não soube mais das experiências mas sim que o fabricante da caldeira tinha sido absolvido. Por decreto de 14 de Outubro de 1852, José Vitorino Damásio foi nomeado membro do conselho geral das obras públicas e minas; porém, demorou-se no Porto ainda alguns meses, tomando posse deste cargo somente em meado de Janeiro de 1853. Podemos asseverar que José Vitorino, só depois de muito instado pelos seus amigos, aceitou esta nomeação, rejeitando-a por muito tempo, porque, segundo ele alegava, os interesses do estabelecimento fabril que dirigia imperiosamente exigiam a sua permanência no Porto. Aceitou-a por se convencer de que o Estado carecia dos seus serviços e de que na sua nova posição talvez pudesse ser mais útil ao seu país. Não era ele homem a quem fascinassem maiores proventos, nem honras ou distinções que pudesse vir a alcançar: opunham-se a isso a magnanimidade da sua alma, a rectidão do seu juízo, a sua alta independência e o seu espírito, sinceramente democrático. Deu sempre em toda a sua vida sobejas provas de abnegação recusando terminantemente e por mais de uma vez nomeações que muitos se esforçam por alcançar, ainda por bem custoso preço. E para que lhe serviriam a ele essas honras, se na estima pública, no respeito e na admiração dos colegas e dos amigos e na consciência da própria valia, tinha o mais alto galardão, a que uma alma desinteressada, como a sua, podia aspirar? Como membro do conselho geral das obras públicas e minas e depois vogal da junta consultiva, o nosso consócio, no longo período de quase vinte e três anos em que exerceu estes cargos prestou ao Estado os mais relevantes serviços, consultado sobre variadíssimos assuntos, de que seria impossível dar conta, ainda que sucinta. Foram numerosas e de grande valor as consultas que redigiu com referência aos nossos caminhos de ferro já construídos, em execução ou em projecto, não baixando de vinte e seis as que se referem

só aos caminhos de ferro do norte e de leste. Em todas elas tratou com o necessário desenvolvimento e a sua costumada profi ciência as questões mais delicadas e importantes, relativas ao complexo problema da viação acelerada, como: a infl uência do traçado, da grandeza dos raios das curvas e dos declives, nas condições económicas da exploração, e na escolha dos tipos das locomotivas, segundo os destinos de cada linha e a natureza e extensão do tráfego e, bem assim, outros assuntos relativos à construção dos mesmos caminhos e, em especial, às pontes metálicas, ao estabelecimento das ofi cinas de grandes reparações, aos regulamentos de serviço, à administração e polícia, etc. Também foram estudados pelo nosso consócio,

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para expressar sobre eles o seu voto, entre outros, vários projectos de obras hidráulicas relativos às barras de Aveiro e da Figueira, aos portos de abrigo de Ponta Delgada e da Horta. Os projectos das magnífi cas pontes de Vila Nova de Portimão, de Abrantes, da Régua, da Portela e de Coimbra; a ponte cais da alfândega de Lisboa, e ainda outros, foram magistralmente estudados e criticados por José Vitorino, ostentando os seus vastos conhecimentos sobre o assunto. Não são menos notáveis as suas consultas sobre as provas destas pontes, da ponte pênsil do Porto, e de outras construídas nos nossos caminhos de ferro. Enfi m, são numerosíssimas, e muitas delas assaz importantes, as que se referem a pontes e estradas ordinárias e a outros variados assuntos, como: caminhos de ferro de via estreita; elevadores e guindastes hidráulicos; saneamento da capital; quebra-mar fl utuante; planos inclinados para reparação de navios e muitos outros que seria prolixo enumerar. Em 4 de Agosto de 1853 o nosso consócio foi nomeado director interino do Instituto Industrial de Lisboa e lente da sexta cadeira do mesmo Instituto. Os serviços que aí prestou às artes e às industrias do país foram tão notórios que ninguém há que os ignore. Este estabelecimento de ensino, que pode dizer-se obra sua, porque o criou desde os seus fundamentos, é o mais sólido padrão levantado à sua glória e o que melhor exprime as aspirações e as tendências daquele espírito esclarecido. Mas o que pouca gente sabe, e ele guardava com uma modéstia inimitável, é que o zelo e a dedicação com que José Vitorino trabalhava para a criação daquele viveiro de artistas, chegava ao ponto de se valer do seu crédito particular para levantar importantes somas, com as quais fez face algumas vezes a despesas daquele estabelecimento. Ainda mais: os vencimentos, a que Damásio tinha direito como professor do instituto, aplicava-os à compra de livros, de instrumentos e utensílios para o gabinete do engenheiro, o que mostra até que ponto o nosso consócio sabia aliar a um sublime desinteresse a mais estreme delicadeza. José Vitorino Damásio teve a direcção do Instituto Industrial até 6 de Outubro de 1859, data em

que lhe foi concedida a sua exoneração nos termos mais honrosos e que ele pedira por não poder por mais tempo desempenhar as penosas funções daquele cargo, conjuntamente com outros variados misteres ofi ciais que lhe estavam cometidos. Em fi ns de 1855, partiu Damásio para Paris, tendo sido nomeado vogal da comissão de estudo das diferentes artes e ofícios na exposição e, mais especialmente, incumbido de estudar os diversos sistemas de locomotivas, para se conhecer o que mais conviria adoptar no nosso país. Nessa ocasião foi também comissionado pelo governo da compra de máquinas e material circulante para o caminho de ferro de leste, que havia o maior empenho em abrir à circulação; e de máquinas, ferramentas e modelos para os institutos industriais de Lisboa e do Porto. Esta espinhosa e difícil comissão deu lugar a que o nosso consócio manifestasse, por mais de uma forma, os seus profundos conhecimentos como engenheiro. O seu incansável zelo em todas as comissões de que era incumbido, não lhe permitiu que descurasse o embarque das locomotivas que, atento o seu grande peso, oferecia sérias difi culdades, embora este serviço estivesse entregue a pessoas idóneas, devendo mesmo o capitão do porto assistir a esses trabalhos, quando, como no caso presente, envolviam uma certa responsabilidade. Depois de incríveis contrariedades e desgostos que o nosso colega sofreu e que seria ocioso relatar, quando em Rouen se fazia a manobra para suspender a primeira locomotiva na ocasião do embarque e, já as rodas do meio estavam quase a sair do cais, um dos cabos principais rebentou e a locomotiva caiu, fi cando estupefactos os indivíduos que dirigiam a manobra. Com grande custo a locomotiva foi recuada sobre o cais e teve de se preceder à reparação da cábrea. Damásio, contrariado por este sucesso, dispunha-se a fazer embarcar no Havre as outras locomotivas, mas, cedendo às instâncias do maire, do capitão do porto e do chefe das manobras, que viam empenhada neste assunto a sua honra, tomou ele próprio a direcção da manobra. Para esse fi m traçou numa folha de papel, ali mesmo no cais, o desenho da cábrea e indicou os reparos que era necessário

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fazer. Depois, auxiliado de umas tábuas, que sempre o acompanhavam, calculou a resistência das diferentes peças, a grossura e resistência dos cabos e forneceu os mais elementos necessários para a execução da obra. Tudo se fez então como ele ordenou, e o embarque das locomotivas executou-se com feliz resultado. Damásio completou esta árdua comissão e regressou a Lisboa em 6 de Junho de 1856. Reconhecidas as principais causas de insalubridade da capital, após as terríveis epidemias que assolaram Lisboa em 1855 e 1857, o governo decretou a construção de um cais geral e aterro da margem do Tejo entre a Ribeira Nova e a praia de Santos, conhecido depois pelo nome de «Aterro da Boa Vista». Era melindrosíssima a tarefa, e foi Damásio o escolhido para a executar. Toda a gente sabe que esta obra, além de ser aconselhada como medida sanitária, porque se extinguia assim um grande foco de infecção, produzido pela espessa camada de lodo, que, descobrindo na

maré baixa, estava por muito tempo exposta à acção directa do sol, era também extremamente útil, por oferecer comodidades ao comércio lícito, facilitar a fi scalização aduaneira, abrir uma nova via ao trânsito público e aformosear notavelmente aquela parte da cidade. Mas também grandes interesses particulares estavam a ela ligados e, que iam ser feridos; e por isso, não tardou que se levantassem os clamores, e daí os embargos, as intimações, as ameaças, as acusações na imprensa; a luta incessante, enfi m todas as armas de que o despeito e a intriga podem valer-se, tudo foi empregado; e, diga-se a verdade, eram elas bastante fi ntes para fazer esmorecer qualquer ânimo, que não tivesse a rija têmpera de quem estava acostumado a vencer em todos os campo as maiores difi culdades. Todavia o nosso colega com o mais fi no tacto e, ao mesmo tempo, com a maior prudência e energia, soube triunfar de todos os embaraços e, sem graves confl itos, levou afi nal os proprietários ofendidos a consentirem no trabalho.

Ponte Pênsil com vista para Vila Nova de Gaia.

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Mas não eram só estas as difi culdades que se opunham à execução da obra: a natureza mesma do trabalho e a rapidez com que devia de executar-se, forçaram o nosso engenheiro (não sem grandes censuras) a pôr de parte todas as regras e a fazer a construção imediatamente sobre a vasa, em partes com mais de 20 metros de espessura! Entretanto, as poucas precauções que pôde empregar, dando à muralha um perfi l apropriado às condições especiais da construção, asseguraram a solidez da obra, que os anos já decorridos se encarregaram de sancionar. Com tal actividade foram conduzidas as obras, apesar dos grandes estorvos que se lhe opuseram, que tendo tido começo em 1 de Maio de 1858 e fazendo-se entrega delas à Câmara Municipal em 5 de Maio do ano imediato, havia já construídos 700 metros de paredão, com 11 linguetas servindo de desembarcadouro, além de grande porção mais de alvenaria e do aterro correspondente. Em 1859, por ocasião do consórcio do senhor D. Pedro V, José Vitorino Damásio foi agraciado com o grau de comendador da Ordem de Aviz, por espontânea

deliberação do monarca, que conhecia e devidamente apreciava os peregrinos dotes morais e profunda ilustração do nosso colega; e por decreto de 7 de Março de 1865 foi-lhe conferida a carta do conselho de Sua Majestade, título inerente ao cargo de director geral dos telégrafos para o qual foi nomeado em 31 de Dezembro de 1864, sendo então ministro das obras públicas um nosso respeitável consócio e amigo íntimo de José Vitorino, que melhor do que ninguém podia apreciar a importância da nomeação que fi zera. José Vitorino Damásio tomou posse do cargo de director geral dos telégrafos em 22 de Abril de 1865, tendo antes assistido como delegado do governo à conferência telegráfi ca internacional de Paris, que abriu as suas sessões em 1 de Março deste ano. No curto período de dois anos que durou a sua gerência, com o assentimento do ilustrado ministro, deu grande desenvolvimento à telegrafi a e introduziu importantes melhoramentos neste serviço, o que fez dizer ao nosso digno consócio, actual director dos telégrafos, que o período da sua administração foi o período de desenvolvimento e aperfeiçoamento do

Ponte Pênsil com vista para o Porto.

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serviço telegráfi co. Achando todo o material deteriorado, ao ponto de não poderem as linhas funcionar, fez os maiores esforços para o substituir e pôs todas as diligências para que o serviço telegráfi co português estivesse a par do melhor das nações estrangeiras; e, para isso, abriu estações e construiu novas linhas, o que forçosamente ocasionou grandes despesas. Havendo no princípio de 1865 somente 72 estações abertas ao serviço público, dois anos depois este número tinha sido elevado a 108. Mais de 900 quilómetros de linha, com um desenvolvimento superior a 2000 quilómetros de fi o, foram construídos no mesmo período, sendo deste tempo a construção das linhas de Lisboa ao Porto e de Lisboa a Elvas, ao longo das linhas férreas de norte e de leste e o acabamento da

linha do litoral. Foi durante a sua gerência que se deu a organização civil aos telégrafos e se fez a unifi cação das tarifas telegráfi cas em todo o país, em substituição do antigo sistema de taxação por zonas, que aumentava excessivamente o preço dos despachos para os pontos distantes, como se dentro do mesmo país não devessem todos fruir iguais vantagens. Além das importantes comissões a que tenho aludido, o nosso consócio desempenhou muitas outras dependentes de diferentes repartições públicas, cuja simples enumeração, por incompleta que seja, basta para mostrar o elevado conceito moral e a vasta competência, que todos os governos desde 1852 lhe reconheceram. Mencioná-las-emos apenas, seguindo a sua ordem cronológica.

Em 1853, foi nomeado vogal da comissão central de máquinas de vapor e membro da comissão central de pesos e medidas, que tinha a seu cargo pôr em execução o novo sistema métrico-decimal. Em 1857, presidente da comissão incumbida de formular os regulamentos relativos à reforma da instrução pública. Em 1858, vogal do conselho de aperfeiçoamento da escola politécnica e presidente da comissão de administração do caminho de ferro de leste. Em 1859, membro do conselho de minas. Em 1861, inspector das obras públicas e vogal da comissão permanente, encarregada de examinar o material circulante da linha férrea de leste. Em 1863, vogal da comissão incumbida de formular um projecto de reforma do arsenal do exército. Em 1864, vogal da comissão encarregada de propor as bases para a classifi cação e graduação do pessoal técnico do Ministério das Obras Públicas e engenheiro chefe de 1ª classe do corpo de engenharia civil, criado por decreto orgânico de 3 de Outubro do mesmo ano. Em 1865, vogal da comissão encarregada de formular e redigir um plano geral de organização do serviço dos faróis. Em 1868, presidente da comissão de classifi cação dos condutores de obras públicas e Ponte Pênsil, colunas de suporte.

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presidente da comissão de avaliação do caminho de ferro de sueste e suas dependências. Em 1870, presidente da comissão encarregada de examinar o material fi xo e circulante do caminho de ferro Larmanjat e vogal da comissão de classifi cação do pessoal técnico do Ministério das Obras Públicas. Além disto, foi presidente, por assim dizer nato, do júri especial para os exames de habilitação da engenharia civil na Escola do Exército e encarregado de numerosas comissões especiais, como: vistorias de fábricas e de estabelecimentos insalubres; examinar o estado das obras das diferentes linhas férreas nos lanços sucessivamente abertos à circulação e, nomeadamente, das provas das pontes de ferro; etc. Por alvará do governador civil do distrito do Porto, de 29 de Julho de 1851, José Vitorino Damásio foi nomeado vogal de uma comissão encarregada de examinar o estado da indústria fabril e artística da cidade do Porto. Em 1855, por ofício do governador civil do distrito de Lisboa, foi convidado para dar o seu valioso voto sobre a escolha do local mais conveniente para o estabelecimento do novo matadouro, questão que havia sido anteriormente submetida pelo governo à apreciação da Academia Real das Ciências e do Conselho de Saúde Pública do Reino. Em 1863, foi incumbido pelo juiz competente de fazer uma vistoria nas obras do caminho de ferro do norte, para se decidir uma acção de libelo pendente no tribunal do comércio. Afora estas e muitas outras comissões ofi ciais,

o nosso consócio desempenhou ainda neste período da sua vida várias comissões particulares das quais só mencionaremos, como mais importantes, o seu serviço em 1858, como engenheiro director da Companhia das Águas de Lisboa e os importantes serviços prestados a fábrica de lanifícios de Arrentela de 1855 a 1860, fazendo parte do conselho fi scal da parceria de 1859-1860. A grande reputação científi ca e a inconcussa probidade do nosso colega, chegando a todas as estações, todos o julgavam assaz competente para resolver as questões mais complicadas e sempre ele se desempenhou condignamente das incumbências que lhe foram cometidas. Deixando para último lugar, e segundo a ordem cronológica, a comemoração dos serviços prestados a esta associação pelo nosso exímio colega, cumpre-me recordar como valiosíssimo título a nossa veneração, que José Vitorino Damásio teve parte importantíssima na organização desta sociedade, sendo vogal da comissão incumbida de redigir o primitivo projecto de estatutos, que lhe deu origem, e discutindo com vivo entusiasmo os alvitres que se propuseram para este fi m e para a fundação do nosso jornal. Todos vos recordais

Ordem de Avis.

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sem dúvida do inexcedível zelo do nosso consócio no desempenho do cargo eminente que lhe conferistes, elegendo-o por duas vezes presidente da direcção. Eu, que tive a distinta honra de servir um ano como seu secretário, posso assegurar-vos que ninguém com mais vivo empenho do que ele o fazia e poderá cuidar dos interesses da nossa associação. O seu amor pela ciência e ao mesmo tempo o empenho pela instrução dos seus colegas menos favorecidos com os necessários meios de estudo, levou-o a pensar, pouco tempo antes de falecer, na transferência da sua magnífi ca livraria para as salas desta associação, o que não chegou a realizar, porque a sua saúde, já então muito debilitada, a isso se opôs. A Revista de Obras Públicas e Minas encerra nas suas páginas saber e infatigável trabalho, muitos artigos de grande valor científi co e sobretudo de imensa utilidade para grande número dos nossos consócios, porque ele cuidava incessantemente nos seus escritos de tornar a ciência acessível ao maior número, obtendo-se dos seus ensinamentos os mais profícuos

resultados. No último número do primeiro volume da Revista (Dezembro de 1870) encetou a publicação de uma série de artigos sobre o cálculo da resistência das pontes metálicas, a qual continuou em 1871 (Janeiro a Agosto). Segundo diz muito modestamente no primeiro artigo, que serve de prefácio a este importantíssimo trabalho, ele consiste na compilação das regras que deverão seguir-se na construção, extraída das melhores obras que se haviam publicado até então sobre esta matéria, e ensina a simplifi car a dedução das fórmulas, para que possam ser mais facilmente compreendidas por quem possui poucos conhecimentos das ciências matemáticas.

Ordem de Torre e Espada.

Raínha Dona Maria II, fi lha de D. Pedro IV.

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Depois de pedir vénia aos engenheiros seus colegas para ocupar as páginas da Revista com detalhes, que julga para eles desnecessários, fecha o artigo com as seguintes proféticas palavras: «É justo que os que estão a terminar uma carreira forneçam aos que a encetam algum fruto que colheram na prática dos trabalhos de que foram encarregados, e no estudo que fi zeram, contribuindo assim para atenuar as difi culdades que a miúdo os últimos encontrarão no seu tirocínio.» Mal pensava o nosso prezado consócio, e nós todos, que o seu termo estava tão próximo, que tão cedo havíamos de aqui reunir-nos para prestar esta merecida homenagem aos seus talentos e virtudes! Tendo sido encarregado de dar parecer sobre os projectos apresentados pela casa Harkort de Hamburgo, das pontes da Régua e da Portela, o nosso consócio viu que o engenheiro Liebe, autor do projecto, para determinar o trabalho do ferro nos cálculos de resistência e estabilidade destas pontes, empregava fórmulas empíricas, de que ele não tinha conhecimento. Tratou pois de deduzir teoricamente pelos princípios da mecânica aplicada fórmulas adaptadas àqueles casos; e coincidindo com pouca diferença os resultados que obteve com os dados pelas fórmulas empíricas,

logicamente concluiu que estas podiam ser adoptadas. Este estudo deu origem à sua publicação sobre pontes metálicas, que a associação mandou imprimir em separado em formato maior que o da Revista, e na qual se propunha a descrever, com a teoria desenvolvida e os respectivos cálculos de resistência, os principais sistemas de pontes de sobrestrutura metálica, que se têm empregado no nosso país. Este trabalho não foi, infelizmente, concluído e carecia de muito tempo para o ser; mas resta dele uma parte inédita, relativa aos cálculos da ponte da Régua, que dois nossos ilustrados colegas se encarregaram de rever e publicar. Sob o título Caminhos de Ferro Económicos publicou também o nosso consócio no segundo e terceiro volumes da Revista (Setembro de 1871 a Janeiro de 1872) uma série de artigos muito instrutivos, e que têm particularmente o valor de ser o primeiro trabalho metódico e de algum tomo que sobre o objecto apareceu nos anais da engenharia civil. Saindo à luz, porém, posteriormente diversas obras, que tratavam esta matéria com desenvolvimento, como as de Adhemar Level, Couche e outras, o nosso colega, vendo por esta forma preenchida a lacuna que ele se propunha a ocupar, cedendo aos ditames da sua excessiva modéstia, e além disso forçado pelos muitos afazeres a seu cargo, suspendeu a publicação. O quadro incompleto e imperfeitíssimo que fi ca traçado apresenta os lineamentos principais do varão insigne que me foi dado desenhar e um resumo dos

importantes serviços que prestou ao país na sua longa e laboriosa

carreira. Se é um dever salvar

do olvido os que praticaram acções meritórias, bem poucos como José Vitorino Damásio têm jus a essas homenagens. Causa com efeito

íntima satisfação o poder proclamar nesta hora solene,

com a mais

Visconde de Mauá.

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profunda convicção de verdade, que não se descobre na vida do nossa colega nenhuma acção que o deslustre; que foi sempre um modelo de generosidade, de abnegação, de modéstia, enfi m das mais preclaras virtudes, que podem exaltar uma criatura humana. Servindo a sua pátria como soldado, coma cidadão, como funcionário, a norma constante do seu viver foi sempre traçada pelos princípios da mais estrita probidade e do mais sublime desinteresse. Verdadeiro fi lantropo na acepção genuína do termo, poucas existências, como a dele, se consumiram na prática do bem, curando tão pouco das próprias conveniências. Carácter franco e generoso, bom amigo, excelente como chefe de família exemplar, as suas nobres e raras qualidades apresentam-no como modelo aos que quiserem seguir a espinhosa vereda da honra e da virtude. Quem o via tão afável e lhano no trato mal poderia adivinhar que rigidez de aço havia naquele ânimo inquebrantável. Homem de antes quebrar que torcer, como diziam os nossos maiores, nenhum perigo o intimidava, nenhum obstáculo esfriava o seu ânimo valoroso. A grande fi rmeza de carácter e convicções inabaláveis, que teve na política, refl ectem-se o mais benefi camente nos empreendimentos do engenheiro. Aquela energia infl exível do guerreiro transparece nos labores do gabinete, votando-se sem tréguas ao estudo das questões mais transcendentes da engenharia, ou mais complicadas da administração. De uma actividade incansável quase até aos últimos momentos da sua existência, via sucederem-se os dias e as noites, encerrado no seu gabinete, entregue ao estudo dos variados problemas, que a todo o momento lhe eram submetidos para resolver. Assim se foi minando pouco a pouco e sem disso se aperceber aquela preciosa existência, e a morte prematura veio roubá-lo subitamente aos desvelos da família, ao afecto dos amigos, e ao cultivo da ciência, que ele amava tão extremosamente. O passamento de José Vitorino Damásio deixou um vácuo que, por muito tempo, podemos afoitamente dizê-lo, não será fácil preencher. Prestante cidadão, honestíssimo funcionário e

abalizado engenheiro, deixou o seu nome vinculado a trabalhos de notável merecimento. Os anais da engenharia portuguesa come-morarão para sempre com luto indelével a infausta data de 19 de Outubro de 1875, do passamento do nosso ínclito consócio. Rendamos-lhe todos preito saudoso e que, no lugar eminente em que o seu talento e as suas virtudes o colocaram, nos sirva de exemplo e incitamento para as nossas acções, e teremos bem servido a pátria.

DOCUMENTOS

N.° 1

Tendo o Duque de Bragança, Regente, em nome da Rainha, e como grão-mestre da antiga e muito nobre ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, feito mercê a José Vitorino Damásio, segundo tenente de artilharia, de o nomear cavaleiro da mesma ordem, por decreto de 4 de Abril último, em atenção ao seu honroso comportamento e aos feitos especiais e distintos serviços praticados por ele na acção de 24 de Janeiro último; e nas subsequentes de 4 e 24 de Março, conduzindo-se de um modo superior a toda a expressão, por isso que, sendo ferido em uma delas fazendo-se-lhe a primeira cura, tomou de novo o comando da sua peça, e só o deixou à força de repetidas e expressas ordens: há por bem conceder-lhe faculdade para usar da respectiva insígnia. E para sua salva e guarda, se lhe passou esta, que vai selada com o selo das armas reais, e que deverá apresentar na chancelaria da ordem. Paço no Porto, 23 de Maio de 1833. Cândido José Xavier.

N.° 2

Por decreto de Sua Majestade Imperial de 15 de Agosto de 1833.O duque de Bragança, Regente, em

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nome da Rainha, tendo consideração aos importantes e assinalados serviços prestados na defesa da cidade do Porto, no dia 25 de Julho último, pelo primeiro tenente de artilharia José Vitorino Damásio: há por bem fazer-lhe mercê de o nomear ofi cial da antiga e muito nobre ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, de que se lhe passarão os despachos necessários. E há outrossim por bem conceder-lhe faculdade para usar da respectiva insígnia. E para sua salva e guarda se lhe passou a presente portaria.

Palácio das Necessidades, em 12 de Novembro de 1833 Joaquim António de Aguiar

N.º 3

Ilmo. sr. Em cumprimento ao que me é ordenado por memória de 18 do corrente, faço as seguintes declarações 1º - Desde que fui despachado pela regência da Terceira segundo tenente de artilharia por decreto de 11 de Novembro de 1831 até 31 de Julho de 1833, não recebi nestes meses mais que a prestação mensal. 2º - Não pedi, nem recebi dinheiro algum à conta da dívida a liquidar, nem mesmo pedirei tal dívida. 3º - Não apresentei à comissão da dívida militar títulos ou conta corrente, nem tenho requerimento algum afecto a Sua Majestade sobre tal objecto. Quartel em Coimbra, 26 de Dezembro de 1834. Ilmo. sr. - Braz António de Camolino. José Vitorino Damásio, capitão de artilharia.

N.° 4

Ilmo. sr. Achando-se terminadas as fadigas, que os honrados portugueses a si assumiram, em consequência dos novos louros que os sustentadores das pátrias liberdades alcançaram contra os revoltosos, que tanto desejaram aniquilá-las, cabe-me a dita de ir por esta ocasião transmitir a v. s.ª os meus cordiais agradecimentos, pela sua actividade e perícia,

com que se houve nas ocorrências, que felizmente terminaram, rogando a v. s.ª faça ciente disto os seus subordinados. Deus guarde a v. s.ª Quartel do governo militar do Porto, 11 de Outubro de 1837. Ilmo. sr. José Vitorino Damásio. O deputado da nação João Pedro Soares Luna, coronel do 1º regimento de artilharia.

N.º 5

Dona Maria, por graça de Deus e pela Constituição da Monarquia, Rainha de Portugal, Algarves e seus domínios, faço saber aos que esta minha carta virem, que, tendo consideração ao merecimento literário e mais partes que concorrem na pessoa do bacharel formado em matemática pela universidade de Coimbra, José Vitorino Damásio, e atendendo aos distintos serviços que ele prestou à sua pátria na luta da legitimidade contra a usurpação: hei por bem, conformando-me com a informação da Academia Politécnica da cidade do Porto, fazer mercê de o nomear para o lugar de professor proprietário do curso de geometria descritiva e suas aplicações na mesma academia, o qual emprego servirá na conformidade das respectivas leis e regulamentos, havendo com ele os vencimentos e prerrogativas, que legitimamente lhe pertencerem. Pelo que ordeno ao director da dita academia que, dando posse do mencionado emprego ao sobredito José Vitorino Damásio, e jurando ele previamente de satisfazer suas obrigações, lho deixe servir e exercitar. Foi admitido pela portaria do Ministério da Fazenda, de 24 do corrente mês de Janeiro, a satisfazer 350,000 réis de direitos de mercê por desconto da quarta parte do seu ordenado. E por fi rmeza do que dito é, lhe mandei passar a presente, que vai por mim assinada e selada com o selo pendente das armas reais.

Dada no Paço das Necessidades, em 31 de Janeiro de 1838. A Rainha. Júlio Gomes da Silva Sanches.

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N.° 6 Ilmo. sr. José Vitorino Damásio. Rio de Janeiro, 12 de Janeiro de 1849 Diversos amigos e conhecidos me têm aqui feito ver o alto merecimento de que v. s.ª é dotado, e como eu muito necessite de um indivíduo, que reúna às qualidades que adornam o carácter de v. s.ª os conhecimentos que o distinguem, para encarregar-se da direcção de alguns trabalhos dos que se exigem em uma grande fundição de ferro, ofi cina de maquinismos e construção naval, tenho nesta ocasião escrito ao meu particular amigo o Ilmo. sr. Manuel Augusto Ferreira de Almeida, para oferecer-lhe um lugar de engenheiro no meu estabelecimento da Ponta de Areia, e só me resta assegurar a v. s.ª que se não arrependerá de vir para o meu estabelecimento, pois o seu merecimento será devidamente apreciado; e sendo quanto por ora se me oferece Sou com respeito De v. s.ª muito atento venerador e criado Ireneo Evangelista de Sousa P. S. Em dúvida que o sr. Baldy está há mais de um ano no meu estabelecimento.

N.º 7

Ilmo. sr. lreneo Evangelista de Sousa. Porto, 6 de Abril de 1849. O Ilmo. sr. Manuel Augusto Ferreira de Almeida fez-me a honra de procurar-me e entregar-me a carta que v. s.ª me dirigiu, fazendo-me o convite para tomar parte como engenheiro nos trabalhos do grande estabelecimento da Ponta de Areia. O grande desejo de ver prosperar as artes industriais neste desgraçado país, e a paixão pelo estudo das ciências aplicadas às artes, tem-me feito empreender alguns trabalhos em diversos ramos da engenharia, nos quais não tenho sido infeliz, mas o merecimento destes trabalhos foi contado a v. s.ª pelos meus amigos com aquela exageração, que involuntariamente produzem as saudades da pátria e dos amigos. Se alguns comprometimentos, tais como estar montando uma fábrica de fundição e máquinas, na qual

têm dois meus amigos empenhada grande parte de sua fortuna; o ter-me habilitado como engenheiro das minas que pretende explorar o sr. José Ferreira Pinto Bastos, e reger na Academia Politécnica a cadeira do meu amigo António Luís Soares, que motivos políticos obrigaram a ausentar-se da pátria, obstando com este serviço gratuito à sua demissão; se não houvesse estes comprometimentos, com a maior satisfação eu partiria imediatamente para coadjuvar v. s.ª com todas as minhas forças, em tudo que lhe pudesse ser útil. Se por qualquer motivo sair deste país, dirigir-me-ei a v. s.ª a oferecer-lhe os meus serviços. Se v. s.ª julgar que neste país lhe posso prestar qualquer serviço ao seu estabelecimento, e independentemente de qualquer interesse, me quiser encarregar dele, me obrigará mais para com v. s.ª Com a maior estima e consideração. De v. s ª, etc. José Vitorino Damásio.

N.º 8

Ilmo sr. Acabo de receber a carta que envio a v. s.ª da qual dei conhecimento ao sr. Faria Guimarães. Para lhe não diminuir o merecimento, resolvi dirigi-la tal qual a recebi, a fi m de que ela fosse ao mesmo tempo que as propostas a que se refere. O meu fi m é provar ao meu amigo que não desconsiderei a sua carta, e que me correspondi com v. s.ª directamente, sobre o ponto que se pretende, que eu mesmo poderia decidir se quisesse recordar o mesmo convite que v. s .ª já teve, e que recusou há anos.

Assim, pois, vou rogar a v. s.ª o favor de satisfazer o meu pedido, para, em vista da resposta, dar resultado da comissão que me incumbem. Desejando a v. s.ª bom estado de saúde, aproveito a ocasião para me assinar. Porto, 18 de Abril de 1854. De v. s.ª venerador e amigo obrigado Francisco José Coutinho.

N.º9 Ilmo. amigo.

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Rio de Janeiro, 15 de Março de 1854. Objecto da maior importância é o da presente que lhe dirijo, lembrado da sua intimidade com José Vitorino Damásio, a quem me consta que nesta mesma data são enviadas propostas e convites por parte de Ireneo Evangelista de Sousa, para tomar conta da direcção do notável estabelecimento da Ponta de Areia, e porventura de outras grandiosas empresas, à testa das quais está este sujeito. Muitas considerações se me oferecem, que cumpre declarar-lhe, a fi m de que, avaliando-as em sua sisudez, empregue os possíveis esforços a mover o amigo Damásio a aceder ao convite que, por vantajoso, como creio deve ser, atenta a pessoa por quem é feito, todavia não revela a soma de vantagens que ele aqui pode colher. Quanto a Ireneo tenho a ponderar-lhe que, como homem publico é um personagem; é o empresário da iluminação a gás, da navegação do Amazonas, da estrada de ferro de Mauá, e do sobredito estabelecimento da Ponta de Areia, que deu princípio à celebridade deste cavalheiro. É estimado com especialidade pelo imperador, que visitando o estabelecimento, tenho visto prodigalizar-lhe atenções; é íntimo amigo do actual presidente do conselho. Como particular é homem honesto, sisudo, probo, protector e generoso com os seus empregados, que são inumeráveis. Ponta de Areia está hoje em um ponto admirável; ocupa talvez em suas ofi cinas mil operários; o seu espantoso desenvolvimento nestes últimos tempos tem enchido de esperanças o Brasil inteiro, que já o considera como o primeiro estabelecimento. Conta hoje um considerável número de vapores; obra sua, e em produtos de fundição não tem inveja aos estrangeiros. José Vitorino ocupa, com efeito, actualmente uma posição elevada, mas não subiu a ela pelos sagrados meios que nos nossos, e nos corações de muitos, lhe tem granjeado desde muito veneração; não são a honestidade, dedicação e civismo que ali o conservam, nem tão pouco os relevantes serviços militares; mas sim conveniências desses mesmos políticos, que por vezes o têm arrojado ao vale das amarguras. O amigo que, como eu, o viu rapar as barbas, e renunciar aos direitos que adquirira com fadigas e riscos de vida, por certo concordará no que deixo exposto; bem como que um génio transcendente, como ele no Brasil, muito melhor que no actual Portugal, poderá dar expansão às suas

ideias, e preparar um brilhante futuro para si e sua família, e celebrar o seu nome. Dentre nós desapareceu a febre amarela, como por vezes lhe tenho participado, e ainda no próximo paquete revalidei. O estado sanitário do Rio exclui toda a ideia de temor. Sinto em verdade não poder realizar agora a promessa da visita, para pessoalmente promover a execução deste negócio, em que me empenho, não por sugestão alheia, mas por sincera e antiga afeição a José Vitorino; mas conhecedor do seu valioso préstimo, conto que nada poupará para que os meus desejos sejam coroados de um feliz resultado. Que continue no gozo das venturas que muito merece e lhe deseja. o amigo. Manuel Nunes de Almeida.

N.º 10

Ilmo sr. José Vitorino Damásio. Rio de Janeiro, 13 de Junho de 1854 Fui premiado com a obsequiosa carta de v. s.ª de 14 de Abril, e se bem que sentisse a resolução que v. s.ª tomou de não aceitar a oferta e rogativa que lhe fi z, todavia não posso deixar de apreciar os motivos nobres em que baseia a sua recusa, que aumentam e fi rmam a opinião favorável que faço do carácter de v. s.ª, e consequentemente o meu desejo de o contar no número dos meus amigos, ainda mesmo não tendo a fortuna de o conhecer pessoalmente. Vejo os importantes trabalhos em que está v. s.ª engajado em bem da sua bela pátria. Se não temesse abusar da bondade de v. s.ª, lhe rogaria o favor de transmitir-me com seu vagar, ou quando lhe for inteiramente conveniente, os estatutos, regulamento, ou o que v. s.ª tiver organizado a respeito do instituto industrial, bem como quaisquer ideias que v. s.ª tenha concebido sobre o objecto, pois mais tarde pretendo esforçar-me com o governo aqui para que alguma coisa se faça sobre tão importante assunto neste país Muito estimarei que em breve possa v. s.ª fornecer-nos hábeis operários para libertarmo-nos da tutela de engenheiros ingleses, que são às vezes difíceis de suportar. Como informei a v. s.ª, o estabelecimento da Ponta de Areia será uma companhia no 1.º do

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mês de Julho, porém continuará seus trabalhos no desenvolvimento da indústria do ferro, ainda em maior escala. Desejarei que esta carta encontre v. s.ª no gozo da melhor saúde, e que dê suas ordens a quem, com particular estima e consideração, é De v. s.ª, muito atento venerador e criado. Barão de Mauá. P. S. Dignou-se Sua Majestade Imperial honrar-me com o título no dia da abertura do primeiro caminho de ferro neste país.

N.º 11

Comando em chefe do exército — 1ª Repartição, 1ª Secção. Ilmo. e ex.mo sr. Havendo sido nomeado pelo Ministério da Guerra o major de artilharia José Vitorino Damásio, para ir à ilha da Madeira proceder à confecção de alguns trabalhos estatísticos sobre os produtos naturais, que mais convenha explorar na dita ilha; ordena-me s. ex.ª o marechal duque de Saldanha, comandante em chefe do exército, de assim o participar a v. ex.ª, para que se sirva neste sentido passar-lhe a competente guia, determinando-lhe que siga viagem para aquele destino no primeiro navio que se dirigir para aquele ponto. Deus guarde a v. ex.ª Quartel general na rua de Santo Ambrósio, em 20 de Outubro de 1851. Ilmo e ex.mo sr. comandante da 3.ª divisão militar. O chefe do estado maior do exército Barão da Luz.

N.° 12

Ministério do Reino — 1ª Direcção, 1ª Repartição: livro 9.°, n.º 378. Sua Majestade a Rainha, atendendo ao que lhe representou o lente da Academia Politécnica da cidade do Porto José Vitorino Damásio, sobre a grande enfermidade que está sofrendo, e sobre a necessidade de sair quanto antes para a ilha da Madeira, a fi m de tratar de sua arruinada saúde: há por bem, em vista

do documento com que se prova esta exposição, conceder licença ao suplicante para estar ausente do exercício da sua cadeira pelo tempo preciso para o seu restabelecimento. O que assim se participa, pela secretaria de estado dos negócios do reino, à Academia Politécnica do Porto para sua inteligência e fi ns convenientes. Paço das Necessidades, em 30 de Outubro de 1851. Rodrigo da Fonseca Magalhães.

N.º 13

Ilmo e ex.mo sr. Quando por decreto de 4 de Agosto do ano próximo passado houve Sua Majestade por bem nomear-me professor da 6ª cadeira do instituto industrial de Lisboa, julguei não dever meter-me em folha de pagamento, aproveitando as disposições do artigo 45.º do decreto com força de lei de 30 de Dezembro de 1852, que organizou o ensino industrial: moveu-me a isso o ser eu professor da 6ª cadeira da academia politécnica do Porto, e vencer o ordenado respectivo, sem poder exercer as funções deste cargo, em consequência das diversas comissões de que pelo governo havia sido encarregado. Não desejando, porém, estabelecer um precedente que se torne de futuro em prejuízo de outros, que porventura se achem em igualdade de circunstâncias, comecei a abonar-me da metade do ordenado da 6ª cadeira, conforme o referido artigo, desde o 1.° de Dezembro próximo passado. Permita-me, porém, v. ex.ª o informe do destino que tenciono dar àquele vencimento. As obrigações, que pelo regulamento provisório do instituto fi cam a cargo do professor da 6ª cadeira e engenheiro do mesmo instituto, são tão variadas e difíceis, que custosamente se poderão preencher, se à sua disposição não tiver os instrumentos próprios para facilitar o trabalho, os livros e jornais industriais, com especialidade os que tratarem de construções de máquinas, aparelhos, etc., que possam ser construídos em ofi cinas do instituto. Ainda que este venha a possuir uma boa biblioteca industrial não se podem dispensar os livros para uso especial do engenheiro, dos quais

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este se possa servir com a maior facilidade, fazendo-lhes todas as referências, que mais facilitem o estudo dele e dos que o substituírem. É pois para fornecer o gabinete do engenheiro do instituto, destes e de outros objectos, que aplicarei os referidos vencimentos, de que darei uma conta documentada, como se há-de fazer também com as despesas ordinárias, autorizadas para o instituto. Abonando-me, pois, aqueles vencimentos, tive em vista, não só, como já disse, não estabelecer precedentes, mas também em fazê-los reverter inteiramente em benefício daquele estabelecimento. Deus guarde a v. ex.ª Lisboa, 3 de Janeiro de 1854 Ilmo. e exmo sr. Joaquim Larcher, Director Geral da Repartição do Comércio e Indústria José Vitorino Damásio, Director Interino do Instituto Industrial de Lisboa.

N.º 14

Ilmo e exmo sr. Em conformidade com as resoluções tomadas em sessão de 31 de Janeiro último, tiveram lugar no dia 12 de Fevereiro, em presença da comissão fi scal e inspectora do estabelecimento do salva-vidas, presidida por v. ex.ª, os ensaios gerais: 1º do drop ou máquina para lançar o barco valente às aguas do mar em ocasiões de tempestade; 2º, do morteiro e da pequena peça; ambos de bronze, e máquinas relativas, para lançar um cabo a qualquer navio naufragado em distância, e por ele se estabelecer a comunicação com a praia; 3º, da máquina a vapor para aquentar banhos com prontidão. E fi nalmente de todos os aparelhos ali existentes e destinados para o fi m altamente humanitário e cristão, de acudirmos à salvação dos nossos irmãos em perigo. Em cumprimento do meu dever de secretário da comissão, cumpre-me relatar a v. ex.ª tudo o que por essa ocasião se passou, e qual o resultado de todas as experiências, as quais aliás foram presenciadas por um numeroso concurso de pessoas de todas as classes e hierarquias. Passarei agora a relatar o que a comissão observou dos exercícios, que afi nal puderam fazer-

se muito depois da hora marcada para eles. O barco salva-vidas achava-se suspenso nos turcos do edifício do drop: a gente que o devia tripular entrou nele, e ao sinal dado começou a baixar sobre as ondas, levando esta operação quatro minutos, porque o descimento foi embaraçado por uma estaca que havia esquecido retirar, e na remoção dessa se perderam dois a três minutos. O aparelho que prende o barco nas extremidades dos cabos de suspensão está tão engenhosamente imaginado e habilmente executado, que no instante em que o patrão julgou oportuno soltar o barco de suas amarrações, nesse mesmo instante o barco vogava livre e desembaraçado sobre as ondas, que foi acometer com a maior galhardia onde a sua arrebentação era mais violenta, e apresentando ora a proa ora o lado, nunca o mar o pôde sossobrar; nem mesmo depois de cheio de água deixou de vogar tão ligeiro como estando vazio dela. Quanto ao barco dúvida alguma pode haver de sua excelência, já comprovada por anteriores experiências em ocasiões de mais efi cazes ensaios; resta portanto saber se o drop corresponde ao seu fi m, e isso parece à comissão não oferecer outra dúvida senão quanto à probabilidade de aparecerem homens de intrepidez sufi ciente que o queiram tentar a primeira vez em ocasião de tempestade ou tormenta. A comissão é de parecer que outro sistema para lançamento do barco, menos dispendioso talvez, poderia ter sido adoptado; mas estando as obras, em grande progresso, respeitando de mais a mais, e como deve, à perícia e talento do exmo José Vitorino Damásio, de quem partiu o respectivo projecto, julgou do seu dever continuar e acabar a edifi cação, julgando, como julga, que mais conveniente foi gastar mais alguns centenares de mil réis, do que perder totalmente as avultadas somas já gastas, pela simples dúvida que teria sobre o bom serviço a colher da referida construção... Convém igualmente ponderar, que a referida construção excedeu o custo calculado pelo ex. mo engenheiro Damásio, porque o sr. engenheiro Luís Augusto Parada e Silva Leitão observou pela experiência que era precisa dar ao edifício uma construção muito mais valente do que queria dar-lhe o ar. Damásio, reconhecendo a necessidade de serem os turcos mais compridos, para poderem lançar o barco por fora dos rochedos, e igualmente para poderem resistir ao embate do mar, que se despenha contra

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sua base de um modo pavoroso. Em conclusão direi que a parte mecânica está completa, porém acha-se o edifício desguarnecido, e por isso todos os aparelhos, madeiras, correntes e cabos, expostos aos rigores do tempo, e se assim se deixarem em breve se reduzirá tudo a ruínas... O resultado das experiências que se fi zeram com a peça e o morteiro foi o mais satisfatório: o primeiro tiro fez-se com a peça pequena dirigido ao sítio, onde o vapor Porto, na fatal tarde de 29 de Março de 1852, primeiro encalhou, e donde não teria largado se se lhe tivessem enviado os meios de bem amarrar. Junto à peça colocou-se uma bem imaginada máquina, na qual estavam enleiadas 140 braças de sondareza calabroteada e de fi o de pita, ou alvaçá do Brasil, material muito preferível por sua dureza ao linho, e principalmente porque não se embebe de água nem mergulha nela. O fuso, em que estava enleiada a sondareza, é de fi gura cónica, começando o desenvolvimento do fi o desde a ponta aguda para a base; e o projéctil para conduzir o fi o é uma planqueta de 2 palmos com bala em uma extremidade só. Este tiro desenvolveu cerca de 120 braças de fi o, e por isso alcançou um espaço mais que duplicado daquele que nos separava de nossos irmãos agonizantes naquela tarde fatal. O segundo tiro fez-se com o obus e um projéctil idêntico, porém de maior calibre, dirigido ao ponto onde aquelas vítimas da imprevidência ulteriormente pereceram, dando ao fuso cónico, como no primeiro caso a mesma elevação e direcção colateral da pontaria que se deu ao obus. Desenleou todas as 140 braças, e arrastou algum tempo o fuso, o que fez calcular em 200 braças a distância a que poderia ter chegado, se tivesse mais fi o: e provou a tenacidade da sondareza, e o quanto ela pode, sendo bem manufacturada como é. Ocupado, como estive, em observar estes processos, não pude calcular o tempo que se empregou desde que o lume se acendeu até que as tinas dos banhos se achavam fornecidas de água para qualquer temperatura; mas posso afi rmar que há os meios de se acudir com toda a exigível celeridade quando haja a aplicar este meio de socorro. É todavia indispensável fazer substituir as actuais banheiras por tanques próprios para o serviço, e de construção adequada; e bem assim resguardar os aparelhos, pintando uns, e cobrindo-se

outros, quando para isso haja meios. Tudo o mais que é essencial para socorrer os náufragos, e para fornecer a quem for em sua salvação as possíveis prevenções, existe no estabelecimento, e parece-me que v. ex.ª e a comissão em geral fi cariam satisfeitos com o emprego que se tem dado ao dinheiro despendido, conquanto seja ainda um problema a resolver, se o drop terá ou não a utilidade que se teve em vista quando a comissão nossa predecessora ordenou sua edifi cação e construção. Creio que não devemos chorar o dinheiro gasto com tão piedosas intenções, embora se não venham a colher tantas vantagens quantas se esperam; e é mais louvável o ter-me gasto qualquer soma com tais ensaios, embora nossas esperanças saiam frustradas, do que ter continuado a fi car de braços cruzados a ver o abismo aberto e pronto a tragar novas vítimas do nosso desmazelo e inércia Deus guarde a v. ex.ª Secretaria da Comissão Fiscal e Inspectora do Estabelecimento Salva-vidas no Porto, em 20 de Março de 1854. Ilmo. e exmo sr. Barão de Vallado, governador civil do distrito e presidente nato da comissão. Barão de Massarellos, secretário.

Nº 15

Ilmo. sr. Confi ado no reconhecido patriotismo de v. s.ª e nos seus conhecimentos sobre a matéria sujeita, e para poder informar o governo de Sua Majestade relativamente ao assunto das inclusas consultas do conselho de saúde pública e da Academia Real das Ciências, acerca da escolha do local mais conveniente para o estabelecimento do novo matadouro desta cidade, conforme me foi ordenado em portaria do Ministério do Reino de 29 do corrente, rogo a v. s.ª que por bem do serviço publico queira ter a bondade de me prestar o seu valioso voto sobre tão importante assunto, declarando-me qual dos locais indicados julga preferível para aquele estabelecimento, ou se algum outro haverá na cidade ou nas suas cercanias mais apropriado, e quais as circunstâncias que o fi zerem preferível a qualquer dos dois indicados.

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Deus guarde a v. s.ª Lisboa, 31 de Janeiro de 1855. Ilmo sr. José Vitorino Damásio. O governador civil, Conde da Ponte.

N.º 16 Ilmo sr. Havendo a câmara municipal de Lisboa nomeado uma comissão composta dos vereadores Braamcamp, Ayres de Sá, e Costa, para terem uma conferencia com D. Medelicot, na qualidade de representante de uma companhia, que pretende tomar a empresa do abastecimento de águas para esta capital; e achando-se designado o dia 4 do corrente, pelo meio dia, nos paços do concelho, para ter lugar a citada conferência; a câmara, bem certa no zelo e efi cácia com que v. s .ª se dedica ao serviço publico, me encarrega de rogar-lhe que tenha a bondade de comparecer naquele acto, a fi m de coadjuvar com os seus vastos conhecimentos a mesma comissão neste objecto tão transcendente. Confi o que v. s.ª se dignará anuir a este convite, no que prestará um relevante serviço ao município. Deus guarde a v.ª s.ª Câmara, 1 de Maio de 1855. Ilmo sr. José Vitorino Damásio Servindo de presidente, João de Matos Pinto.

N.º 17

Ilmo sr. A câmara municipal de Lisboa, tendo no devido apreço os muito valiosos e importantes serviços que v. s.ª se tem dignado prestar à mesma câmara, prontifi cando-se sempre da melhor vontade a dar o seu parecer em todos os assuntos da sua profi ssão, em que repetidas vezes tem sido consultado, faltaria a um dever se por tais motivos não tributasse a v. s.ª os mais cordiais agradecimentos, cabendo-me, a satisfação de em nome da mesma câmara assim o fazer constar a v. s.ª Deus guarde a v. s.ª Câmara, 25 de Maio de 1855.

Ilmo sr. José Vitorino Damásio. Como presidente, António Esteves de Carvalho.

Nº 18

Sua Majestade El-Rei, anuindo ao pedido da direcção da companhia do abastecimento das águas em Lisboa, há por bem autorizar o major de artilharia José Vitorino Damásio, para aceitar o cargo de engenheiro em chefe e inspector geral dos trabalhos da mesma companhia, com a condição porém de continuar a exercer as funções do seu emprego de director do instituto industrial, assim como as de vogal do conselho de obras públicas e minas. O que se lhe comunica, pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, para sua inteligência e devidos efeitos. Paço das Necessidades, em 24 de Maio de 1858 Carlos Bento da Silva

Nº 19

Ilmo e exmo sr. Comunico a v. ex.ª, para os fi ns convenientes, que, sendo eu lente da academia politécnica do Porto, pelo que percebo o ordenado de 700 réis anuais ou 58$333 réis por mês, e tendo mais de vinte e dois anos de serviço efectivo, competindo-me há muito por isso ser jubilado, prefi ro receber o ordenado de lente da dita academia, sendo-me descontado naquele que tenho de receber por este Ministério das Obras Públicas. Deus guarde a v. ex.ª Direcção Geral dos Telégrafos do Reino, em 29 de Setembro de 1866. Ilmo. e exmo sr. Conselheiro Chefe da repartição de Contabilidade do Ministério das Obras Públicas.

José Vitorino Damásio

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Sou um nome, Sou um território, Sou um país que não querem que seja,que não deixam que exista.

Sou ainda poema na saudosa, sangrenta e perpétua memória do nómada poeta Ruy Cinatti.

Sou uma criança, uma mulher, um velho, a esperança assassinada, a fome, o fogo, a morte face à força, à feroz indiferença e loucura do mundo. Sou Timor.

António Rebordão Navarro*TIMOR

(Poema inédito, escrito na Livraria ORFEU em Bruxelas. O manuscrito foi oferecido por Maria Manuel Gandra a Xanana Gusmão em Estrasburgo, em

15/12/1999.)

Bruxelas, 10-IX-99

* Escritor

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VEM!...

Vem!...esperar-te-ei ao fim do dia, a rubra cordo Sol a erguer brilhantes vãos castelos loirosquando na praia os grãos de areia são tesoirose os barcos lentos os fantasmas do amor

só para ti dançarei, fada ou nereidesob os pés nus recalcarei a espera a dora olhar em frente o mar/silêncio, o mar que eu hei-dena imensidão deste meu pranto ver maior

ah! dançarina do ballet do pensamentoem rodopio, em voo louco, sem caminhotomara eu à sombra morta do momento o mar em mim, o sono azul, sono marinho!

da funda noite em que te aguardo, vem então!estendo os braços nas memórias, voo lentoe em cada pássaro transviado em que te inventopercorro a espera, a desesperança, o tempo vão

eu, voadora de quimeras, emigrantedo pensamento, a vela solta, a solta asaleve, eu dançara à sombra erguida do instantee depois, longo, o mar em mim, na praia rasa.

Maria Virgínia Monteiro*

* Nasceu em Espinho em 1931.Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, tem trabalhos de poesia e prosa dispersos por jornais e revistas. Publicou:“Mulher de Loth”, “Ribeiro teu Indício”, “O Silêncio Todo”, “Precário Registo”, “As Cinzas e as Brisas”, “As Palavras, este Canto, este Rio”, “Les Brises les Cendres” e, em França,“Ces Quelques Lettres Portugaises”.

43 JOSÉ VITORINO DAMÁSIO*

Pedro de Aguiar **

Não é uma conferência científi ca, uma oração erudita, uma memória substanciosa, o que eu pretendo fazer. É, pelo contrário, uma palestra chã, onde mais anda o sentimento do que a erudição, numa narração de factos ou episódios sem desvirtuação do seu rigor histórico e portanto sem emitir opinião. E assim deve ser, porque concordante ou discordante das directrizes destes «Dois Homens», eles são tão grandes que prescindem bem da opinião alheia, para fazer ressaltar os seus valores positivos entre os homens ilustres do século passado. É esta a razão de me limitar à explanação umas vezes, à concretização outras vezes, dos valores que forma o somatório: José Vitorino Damásio e Carlos Ribeiro.

Desejo, pois, para que a identidade seja perfeita, e justa, somente relembrar estes dois nomes, que por estas terras nortenhas deram muito do seu valor, do seu saber, do seu coração, o que aliás fi zeram por todo o nosso Portugal, passando mesmo além-fronteiras, no vasto campo da ciência, nesse desperdício tão comum aos sábios, com a prodigalidade dos seus nobres caracteres.

Em nenhum lugar teria mais propriedade esta palestra do que aqui, nesta sala, nesta benemérita sociedade que tem por lema «Pelo Porto», pois que foi na Cidade Invicta que José Vitorino empregou por muitos anos a sua actividade e a adoptou como sua, como aqui foi que Carlos Ribeiro iniciou a sua vida científi ca e constituiu o seu lar.

De um e de outro lado, muitos dos seus directos representantes aqui vivem, aqui têm fundas raízes da família e do coração. E se não fossem sufi cientes estas razões, que bastas são, há de mim a gratidão por esta terra, onde fui, durante anos, acolhido benevolamente e onde deixei amizades que subsistem.

Estes dois homens são tão elevados, tão grandiosos, que das defi ciências notadas só eu sou culpado.

Por isso peço perdão!

José Vitorino Damásio e Carlos Ribeiro têm muitos pontos de contacto nas suas vidas, chegando por vezes no caminho a par. E para maior coesão, os laços de parentesco apertaram mais fortemente a amizade, quando já havia a comunhão de idealismos, de perseverança no trabalho e de nobreza de alma. Indistintamente se pode tratar de um ou de outro, sem direitos de prioridade, porque ambos se equivalem no campo da ciência, da carreira militar e no lar doméstico. Enveredando cada um por especialidades diferentes da engenharia, ambos honraram a Ciência com os seus estudos profundos e descobertas de renome; na vida das armas, cobriram-se de glória; na família, foram protótipos de chefes, amados pelos seus e venerados por todos. Mas se não há prioridade sensível, contudo

* Conferência proferida no Clube Fenianos Portuenses, em 28 de Dezembro de 1939.

** Pedro Liberato da Silva Aguiar. Nasceu em 1886.Investigador, Conferencista e Historiador.Casou com Dª Eugénia Ribeiro Damásio, sobrinha neta de José Vitorino Damásio e neta de Carlos Ribeiro; este casara com Dª Úrsula Damásio, irmã de José Vitorino Damásio.

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uma escolha se impõe. O jus da idade soluciona o problema. Começarei, pois, por José Vitorino Damásio, o mais velho.

Entre o Porto e Aveiro, nas lendárias «Terras de Santa Maria», ergue-se um dos mais belos castelos da nossa Pátria, a cujos pés se semeia o casario da vila, que de Feira tem o nome, numa paisagem v e r d a d e i r a m e n t e encantadora. Foi na Vila da Feira que, a 2 de Novembro de 1806,a nasceu José Vitorino Damásio,alegrando sua terna mãe D. Maria Madalena Alves Reis Damásio e seu pai José António Damásio, como parte de uma prole de treze fi lhos, sempre bem-vindos para o, até aí, feliz casal.

José Vitorino foi para Aveiro fazer os seus preparatórios, passando depois a Coimbra para continuar o estudo das humanidades, matriculando-se no ano lectivo de 1826 / 27 nas faculdades de Matemática e Filosofi a, iniciando assim a sua carreira universitária, que tem de ser interrompida em 1828 para se alistar no Batalhão Académico, seguindo então a sorte das armas.

Implantado o Constitucionalismo em 1834, retoma os estudos e, em 1837, conclui as suas formaturas, demonstrando tanta propensão para as matemáticas, que, nesse ano, foi promovido a lente de Geometria Descritiva para a Academia Politécnica do Porto, começando a sua vida de professor, e com tanta profi ciência e soma de conhecimentos que, no decurso da sua carreira no Magistério Superior, rege Construções Civis, Resistência de Materiais, Estabilidade, Máquinas, Estradas, Pontes, Hidráulica e Astronomia, isto é, um curso completo de engenheiro daquele tempo, numa

multiplicidade de assuntos que bem atestam o seu alto valor e a máxima competência. Mas José Vitorino, que era intrinsecamente um professor, um verdadeiro didacta, também era um prático, um homem que sabia executar o que ensinava. E tanto que, sendo nomeado, em 1845, engenheiro da Companhia das Obras Públicas, o encarregaram da construção do troço da estrada entre o Alto da Bandeira e os Carvalhos, e nela usou métodos novos neste ramo de engenharia até aí não empregados que, em vista da sua perícia e inteligência, foi comissionado a ir ao estrangeiro estudar tudo o que dizia respeito a viação, desde a carruagem de posta até à locomotiva a vapor, o que ele fez com superior critério na adaptação ao nosso País.

A Companhia cessa as suas obrigações com o Governo e José Vitorino não descura o seu senso-prático, dedicando-se ao estudo da indústria fabril, criando, em 1848, a Fundição do Bolhão, de sociedade com dois amigos seus, os capitalistas Joaquim Ribeiro de Faria Guimarães e Joaquim António da Silva Guimarães, desenvolvendo a produção de maquinismos industriais e introduzindo o fabrico de louça esmaltada e estanhada por meio de banho, indústrias estas que

Antigo Convento das Carmelitas onde funcionou a Escola Industrial Vitorino Damásio, em Lagos

a- No original 1807.

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ainda hoje, acompanhando a evolução, enriquecem a capital do Norte com fábricas de produtos desta espécie fornecedores do País em larga escala.

Em 1852, pela formação do Ministério das Obras Públicas, José Vitorino, devido aos méritos próprios e reconhecimento deles, é nomeado membro do Conselho de Obras Públicas e Minas, onde, por largos anos, ilustrou, com o seu saber, os muitos pareceres de que foi relator. Mas não deixa o Magistério, fundando, em Lisboa, o Instituto Industrial, idêntico ao que tinha criado nesta sua terra adoptiva.

O desenvolvimento industrial do Porto muito o interessava, e, em 1852, consegue a fundação da Associação Industrial Portuense. No dia 1 de Agosto desse ano, faz-se a sessão inaugural, e a lista elaborada por José Vitorino foi aceite por aclamação, onde prova a boa compreensão e imparcialidade do abalizado professor. Muitos desses homens honraram a indústria nacional e bem merecem ser consignados os seus

nomes, como um preito de justiça e gratidão.

Associação Industrial Portuense (1852)

Presidente Joaquim Ribeiro de Faria Guimarães Comerciante e industrial.

Vice-Presidente – João Francisco Aranha - Gravador e lavrante de prata e oiro.

Secretários José Caetano Coelho Louzada Marceneiro.Francisco José Coutinho – Tipógrafo.Veríssimo Alves Pereira – Maquinista.

Vogais António Frederico – Chapeleiro.António Joaquim de Araújo-Farmacêutico.António José Ribeiro - Fabricante de

calçado.

Domingos José da Fonseca Pascoal Industrial.

Emílio Carlos Amatuci – Escultor.

Francisco António Galo - Fabricante de instrumentos de precisão.

Inácio José Lopes - Fabricante de tecidos.

João de Araújo Lima - Fabricante de loiça.

João da Cruz Coque – Correeiro.

João Marques de Almeida - Comerciante e alfaiate.

Joaquim Baptista Moreira - Industrial de fundição de ferro.

José António Viana – Espingardeiro.

José Duarte Reis - Fabricante de tecidos.

José Joaquim do Espírito Santo - Ourives.

Manuel Pereira da Costa - Industrial de cordoaria.

Vicente de Sousa Dias - Fabricante de tecidos.

Clube Fenianos Portuenses.

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José Vitorino, depois seu presidente, prestava a todos os industriais a grande soma dos seus conhecimentos, com a simplicidade de um emérito professor e a bondade que dele sempre irradiava. E neste propósito criou na Associação as aulas necessárias ao ensino técnico, com tão bons resultados que, a instâncias suas, foi decretada a criação do Instituto Industrial do Porto, saindo este estabelecimento de ensino ofi cial de uma iniciativa particular, mas de resultados práticos conhecidos, que tem provado em quase um século. José Vitorino, com o seu feitio lhano, despretensioso, sempre pronto a ensinar o que sabia, não o fazia só na escola, na ofi cina, em casa. Sempre se revelava o professor, e, a propósito, conto uma anedota sucedida em Lisboa, que tem o seu quê de original: A saloia, lavadeira de sua casa, andava descoroçoada com o emprego do cloreto, porque a roupa se estragava, acarretando-lhe prejuízos e à sua freguesia, lamentava-se numa ocasião em que passava o egrégio professor. Chãmente ensinou o modo de usar e o respectivo correctivo da neutralização após o branqueamento. Foi uma revelação para a saloia as maravilhas do seu efeito, e então dizia na simplicidade rústica do seu falar: – “O senhor engenheiro não é um home, é um saibo! Sabe toda a casta de nação de letras! Tem o conhecimento da «conhecedura» das coisas! Ora veja, senhora! A roupa está branquinha que nem um brinque, só com aqueles posezinhos que me ensinou. E não estraga nada! É melhor do que a barrela!» Boa alma simples, que, no seu dizer tacanho, fazia o panegírico do homem de saber perfeito, que era José Vitorino. Sancta Simplicitas!

E já que a anedota entrou em cena, outra vou contar e não menos verdadeira: Lisboa foi assolada por epidemias terríveis, mormente a cólera-morbus, em 1855/56, e a febre-amarela, em 1857. Reinava D. Pedro V, boníssimo e, por isso, efémero, que toda a sua alma dedicou ao Bem-Comum. Não só visitava e atendia os enfermos, não só encorajava os médicos e enfermeiros. Era o primeiro a dar o exemplo de abnegação e exteriorizava os sentimentos humanitários do seu nobre carácter,

descalçando a luva para tactear o pulso, ajeitando os torsos para a auscultação. Tudo isto era nada, porque o mal existia e era preciso extingui-lo no seu focus, no lugar empestante. Este era o lodaçal enorme da margem direita do Tejo, a que corre no longo da cidade, vasa estagnante, compreendida entre a Ribeira-Nova e Santos-o-Novo, chamada depois o «Aterro da Boa-Vista». Não era fácil debelar o mal, pois que o desaparecimento desse lodaçal colidia com interesses de ordem comercial, lícitos e não lícitos, principalmente estes últimos. Só uma vontade férrea e competente arcaria com tamanha empresa, e entre tantos engenheiros de valor, o nome de José Vitorino foi citado e D. Pedro V, que conhecia o indómito companheiro de seu Avô, aceita o nome com a certeza da execução da obra. José Vitorino, com o seu espírito militar e o seu elevado coração, lança ombros a tão largo projecto, que tinha de ser imediato, sem descanso dia e noite e sem a menor mira monetária. Começado a 1 de Maio de 1858, fez entrega desta nova artéria à Câmara Municipal no dia 5 de Maio de 1859, tendo extinto o vasadouro estagnante e feito a muralha e as suas onze linguetas, numa extensão de quase um quilómetro, neste relativo curto espaço de tempo e com as defi ciências havidas nessa época e que hoje estão supridas pelos novos métodos e auxiliar ferramentagem.

O que foi esse ano de trabalho, é difícil escrever. De toda a parte surgiam as difi culdades, tais como a vasa movediça e empestante, os embargos judiciais, as ameaças de toda a espécie. Nada abate o ânimo do ilustre engenheiro, e a luta é sem tréguas.

Foi exactamente com um embargo judicial que sucedeu o facto, que tantas vezes ouvi narrar a próximos parentes do engenheiro Damásio. A praia da Ribeira era propícia ao descaminho e contrabando de mercadorias. A fi scalização tornava-se inefi caz e a muralha vinha intensifi car essa fi scalização, nada do agrado de algumas casas comerciais, mesmo tão poderosas que pesavam nos destinos da Nação.

Uma dessas casas, fi rma representada em Lisboa e Porto, embarga judicialmente a obra. José Vitorino é prevenido particularmente e toma as

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providências necessárias para frustrar esse embargo, que seria a paralisação da obra já tão adiantada.

Manhãzinha cedo, mal o sol nado, já ele se encontrava a dar as ordens aos capatazes, na simplicidade concisa das grandes decisões: - «Nada os detenha! Dia e noite trabalhem até alcançar este troço! Salário a dobrar!»

Mal dadas as ordens, um homem encaminha-se para ele com um papel na mão. É o ofi cial de diligências, madrugador e expedito, com a intimação do embargo.

Damásio não dá tempo a que se aproxime, pondo-se a caminhar na sua passada de quase um metro, pois que de altura andava pelo metro e noventa. Gradualmente acelera a marcha, e o pobre beleguim bem o chamava e por fi m corria, não conseguindo, mesmo assim, manter a distância, antes perdendo pouco-a-pouco o terreno. Sem comer, sem descansar, percorre Lisboa em todas as direcções, sempre seguido pelo desgraçado emissário do tribunal, até que ao anoitecer aproxima-se de Lázaro Leitão, onde então residia, chegando a casa ao declinar do sol. As Avé-Marias tangem no campanário de Santos-o-Velho, quando José Vitorino transpõe o portal e então espera a sua casual vítima. Esta chega ofegante, tremente mesmo, gaguejante de cansaço, e estendendo o papel diz:

– «Senhor... engenheiro... a intimação...»Com difi culdade pronuncia as palavras, e quase

cai por terra ao ouvir a resposta do ilustre engenheiro:– «São Avé-Marias. O sol já se pôs. A Lei não

permite que se façam intimações a esta hora. Venha amanhã ao nascer do sol.»

Desanimado, o pobrezinho roda nos calcanhares e, de cabeça pendente, desce a ladeira dos Caminhos-de-Ferro.

Damásio, mal o vê desaparecer, nem as escadas sobe. Roda também para a obra, sem comer nem descansar, assistindo aos trabalhos, incitando com a sua presença o afã e perseverança tão necessários nesse momento. Na manhã seguinte, ao receber o embargo, já este não teve efeito, porque a muralha estava concluída no ponto embargado. Por aqui se vê a têmpera deste homem, que acima de tudo colocava o seu dever, o seu patriotismo,

sem um desfalecimento ou quebra de ânimo. Razão teve D. Pedro V, de tão grata memória e bem merecida saudade, em aceitar o nome de José Vitorino Damásio como garantia de que o seu propósito tinha a fi nalidade desejada. E hoje, no términos do seu aterro, o aterro da Boa-Vista, lá está a «Rua Vitorino Damásio», homenageando desta forma um ano de ciência, de luta, de pertinácia, pelo muito que Lisboa lhe deve, pelo muito que todos nós lhe devemos. Outra feição característica da sua personalidade:José Vitorino era um homem despretensioso no trajar. Frequentemente se esquecia da gravata, aquela célebre gravata que dava duas voltas no pescoço e fi ndava por largo laço de pontas estiradas, mas assimétricas. Mas se não era a gravata, seria o lenço, a bengala, o chapéu e até as calças por dentro do cano das botas. Quanta vez a pequenina Madame Damásio o fazia voltar para traz, quando ele se encontrava já na rua, para o compor ou entregar o esquecido. Pois este seu esquecimento despretensioso fez-lhe ter um percalço que ainda assim não lhe serviu de exemplo. Eu conto, por interessante: Era José Vitorino Conselheiro-Director Geral dos Telégrafos, em cujos serviços pôs a sua costumada actividade, introduzindo modifi cações que ainda hoje perduram. Pois neste importante lugar foi encarregado de representar Portugal no Congresso Telegráfi co de 1865, a realizar em Paris. No dia da inauguração, depois de apresentar as suas credenciais, veste a sua casaca para assistir à sessão de honra; mas, ao despir o sobretudo e encaminhar-se para a escadaria monumental, é embargado pelo porteiro que lhe diz: Não pode entrar! Porquê? Porque não traz gravata!... E, na verdade, ao vestir-se não reparou que esse adminículo lhe faltava e ali não tinha Madame Damásio para o não fazer olvidar. Sem a gravata, o porteiro não o deixou entrar para assistir à sessão inaugural. Voltou ao hotel, paramentou-se devidamente e então representou Portugal com a correcção e elevação costumadas e com patriotismo no mais alto grau. Já que entrei em matéria de esquecimentos e

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distracções, outro caso sucedeu, que ia custando a vida ao sábio professor: Após a campanha de 1851, a «Regeneração», devido ao excessivo trabalho na cátedra e na fábrica, as suas forças abandonaram-no, exactamente na ocasião em que sua família tinha vindo temporariamente a Lisboa. Uma criada e seu marido fi caram encarregados de proverem as necessidades de José Vitorino, que, entretido nos seus trabalhos, se alheava de tudo que não fosse aquilo que nesse momento o preocupava. De manhã, a criada perguntava-lhe o que desejava para o almoço. – Café com leite – respondia por demais. E café com leite lhe levava e ele distraidamente bebia.Ao jantar, pergunta idêntica: – Café com leite – respondia maquinalmente. E só café com leite lhe davam, que ele da mesma forma distraída absorvia. Assim passaram os dias e as semanas, até que a família regressa e o encontra magro, quase esquelético, enfraquecido ao máximo, mas trabalhando ininterruptamente. Alarmada com o depauperamento físico, inquirem das causas, e a criada responde com toda a naturalidade: – Eu perguntava ao senhor doutor o que queria para o almoço e para o jantar, e como me respondia «café com leite», café com leite lhe levava. Contudo, ela e o marido, refastelavam-se com saborosos cozinhados, esquecendo-se do amo, que, por sua vez, se esquecia de si próprio. Chamados os médicos, encontraram-no em estado desesperado, anemiado profundamente, às portas de uma tísica, a pesar dos seus quarenta e quatro anos, até aí de compleição perfeita, mas nesse momento em completa decadência. E tão grave era o seu estado, que a medicina se declara impotente para debelar o mal, o que trouxe sérios cuidados à família e aos amigos. Um deles, dos mais íntimos, lembra uma estadia na Madeira, como único salvatério do amigo querido, devido aos ares puros e clima maravilhoso da «Pérola do Oceano». Encontrei desvendado esse mistério e os pródromos desta cabala amiga nos meus papéis velhos,

papéis muito queridos e que, por vezes, me trazem surpresas e emoções. Assim, numa carta do seu companheiro de armas, colega na Academia Politécnica e íntimo amigo, o sábio professor José de Parada e Silva Leitão, dirigida ao general Carlos Ribeiro, amigo e cunhado de José Vitorino Damásio, esclarece por completo a razão da comissão para «proceder à confecção de alguns trabalhos estatísticos sobre os produtos naturais que mais convém explorar na ilha de Madeira», como são os dizeres do ofício do Ministério da Guerra de 30 de Outubro de 1851. Ninguém melhor do que Parada Leitão o saberá dizer, pois que dele partiu a lembrança da ida de Damásio para a Madeira e ele deu os passos necessários para conseguir salvar o seu amigo. E por esta razão transcrevo os pontos mais importantes dessa carta, datada de Santa Comba Dão a 30 de Novembro de 1875, que é uma narrativa cheia de sinceridade, amizade e brilho. Eis o que diz: «Fui, pois, procurar José da Silva Passos, que prezava como devia a vida de José Vitorino Damásio, e comuniquei-lhe o meu pensamento, que ele aprovou; partimos logo a procurar o general Ferreira, que então comandava a divisão militar do Porto, e que sendo também amigo, como era, de José Vitorino Damásio, se prestou da melhor vontade a coadjuvar-nos no empenho de lhe salvar a vida; para isso, escreveu ao Duque de Saldanha, que de há muito conhecia e devidamente apreciava as nobres e raras qualidades de José V. Damásio, devendo-lhe além disso recentes e relevantes serviços e em cujo carácter nobre e generoso nós confi amos, que havia de tomar a peito a vida de José V. Damásio. Efectivamente, o Duque correspondeu às nossas esperanças; sem demora foi José V. Damásio incumbido duma comissão científi ca para a ilha da Madeira, comissão para que ele estava perfeitamente habilitado e em que empregou o seu costumado zelo. Pelo telégrafo veio imediatamente ordem ao general, para que José V. Damásio se apresentasse em Lisboa o mais breve possível; incumbiu-me então de o prevenir a esse respeito; para isso fui, logo que recebi aviso de ter chegado esta ordem, a casa de José V. Damásio, com o fi m de o preparar para a recepção

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dela, pois que, sem essa prevenção, poderia o doente receber abalo funesto, atendendo ao estado de extrema debilidade em que se achava. Neste intento principiei por lhe perguntar notícias do Conselheiro José Ferreira Pestana, de quem José V. Damásio era muito amigo e cujo retrato tinha no seu gabinete, e de sua família que era da Madeira, passando então a falarmos da própria ilha, da sua importância comercial e industrial, etc. De repente disse-lhe: – Quem podia lá fazer grandes serviços era o senhor, se lá quisesse ir passar algum tempo. A isto respondeu: – Ora, bons serviços havia de eu fazer neste estado, ao que lhe retorqui: Aposto que, se lhe dessem ordem para ir à Madeira ou ainda mais longe, apareciam logo forças... Pois saiba, que alguém se tem já lembrado disso. Surpreendido, diz – O senhor, talvez? Repliquei: – Não só eu, que só posso pedir-lhe, mas também quem pode mandá-lo. Levantando meio corpo, pergunta: – O que tem o senhor andado a arranjar? – Respondi: O que era o nosso dever, isto é, facilitar-lhe os meios do senhor prestar novos serviços à sua família e aos seus amigos, pelo restabelecimento da sua saúde e à Pátria, pelo emprego da sua actividade, no melhoramento de uma parte importante do nosso País; previno-o, pois, de que em breve receberá ordem para se apresentar em Lisboa, onde lhe serão dadas instruções sobre a comissão de que vai encarregado para a ilha da Madeira; não é contudo obrigado a aceitar essa comissão,

se absolutamente lhe faltarem as forças e a vontade: basta-lhe então dar parte de doente. Não sei estar doente quando se trata de serviço, e, dizendo estas palavras, levantou-se a custo e começou a passear pela sala a passos lentos; depois, com visível animação no rosto, discorreu largamente sobre o estado das artes fabris na ilha da Madeira, segundo as informações que tinha. Quando chegou a ordem do Quartel-General, o que não tardou muito, já ele estava preparando os seus livros para a partida; e partiu com efeito, sem se escusar, nem mesmo aventurar a mais leve refl exão. O seu regresso ao Porto a 7 de Julho de 1852, já restabelecido, foi festejado publicamente, como demonstração de reconhecimento e consideração a tão prestante Cidadão, representando-se todas as classes sociais desta nobre Cidade. Como a instrução lhe mereceu a maior atenção e a instâncias suas foi decretada a criação do Instituto Industrial do Porto, que depois se estendeu a Lisboa, assim como as respectivas escolas industriais, encontro nos meus papéis velhos, sempre queridos, vasta correspondência trocada entre José Vitorino e Parada

Estátua no Porto de José Vitorino Damásio.

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Leitão, nomeados Directores, respectivamente, dos Institutos de Lisboa e Porto, onde são bem patentes o desvelo e persistência destes dois pioneiros do ensino técnico e a concordância dos seus pontos de vista. E tão valiosos foram os seus esforços e tão benemerecentes os seus propósitos, que, ao fundar-se em Lisboa, no ano de 1880, a Associação Camoniana de benefi cência escolar, subintitularam-na de José Vitorino Damásio, e à Escola Industrial de Lagos, igual nome impuseram. Parada Leitão com justiça tem o seu nome em frente da antiga Academia Politécnica, hoje Faculdade de Ciências, juntamente com os Professores Gomes Teixeira e Ferreira da Silva. José Vitorino Damásio é que ainda não tem aqui uma rua, que lhe perpetue o nome e da qual bem merecedor era.

Dentro da especulação científi ca deve-se a José Vitorino a descoberta da modifi cação alotrópica do ferro, que de fi broso passa a granular quando sofre um choque violento. Este princípio, até aí desconhecido, teve repercussão num caso sucedido em França, na cidade de Ruão: em 1855 houve uma horrível catástrofe, motivada pela explosão de uma caldeira a vapor, matando doze operários e ferindo muitos outros. Culpam o construtor e acusam-no de ter empregado ferro fundido em vez de ferro forjado, isto é, ferro granular em vez de ferro fi broso. Uma comissão estuda o caso e confi rma, em vista dos estilhaços, que a causa do desastre foi a fraude da fábrica construtora da caldeira.

Ponte Pênsil a unir Porto e Vila Nova de Gaia.

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José Vitorino, de passagem por Ruão, é interpelado pelos sindicantes, ao saberem que ele é engenheiro, e surpreendidos fi caram quando Damásio nega a culpabilidade do industrial e expõe as experiências feitas em 1852 com o lançamento de cabos de salvação, após o desastre do vapor «Porto» na barra do Douro. É que ao disparar o morteiro para lançar a corrente com o cabo, a corrente quebra-se e nota então que a fractura apresentava o aspecto de ferro granular. Insiste na experiência e o resultado é sempre o mesmo. Ele mesmo assiste ao fabrico das correntes de ferro forjado, mas a fractura continua a apresentar o aspecto de ferro fundido. Em vista destas preciosas informações, a comissão suspende o seu trabalho e envia o seu relatório ao ministério do Comércio de França, com a exposição de José Vitorino. O governo francês convida-o a repetir as experiências, o que ele aceita. Tudo preparado, uma cheia inunda o parque de artilharia, onde devia fazer-se a demonstração, inutilizando os preparativos. Damásio tem de regressar a Portugal, mas não sem redigir as instruções necessárias para a sua realização, que enviou ao governo de França. Tempos depois o construtor foi absolvido, devendo a honra e talvez a vida ao engenheiro português. As suas comissões foram tantas e mesmo tão variadas, que encheria bastas folhas de papel só com a sua enumeração. Nasceu professor e professor morreu. A sua forma de ensinar, era consoante o aluno. Na Academia Politécnica era o sábio, o douto professor, que da sua cátedra fazia lugar sagrado e expunha superiormente para homens superiores. Mas se era no Instituto, graduava a sua alta ciência para expor chãmente, em concordância com a capacidade dos seus discípulos. E se fosse um trabalhador, um operário, mesmo um rústico, seria tão simples o seu explicar, numa simplicidade semelhante à que usou com a sua lavadeira no emprego da cal clorada. Espalhava prodigamente tudo o que sabia, tudo

o que a sua clara inteligência tinha recolhido em longos anos de estudo. Aqui, no Porto, colabora efi cazmente na construção da Ponte Pênsil, cujos suportes murais ainda se encontram ao lado do tabuleiro inferior da Ponte D. Luís. Nessa vida operosa, desperdiçada com grandeza, devotada ao benefício da Pátria, só por ela e para ela viveu. E tanto que, solicitado para dirigir um estabelecimento fabril em Ponta de Areia (Brasil), pertencente ao Barão de Mauá, onde empregava mil operários, o que era muito importante para aquele tempo, José Vitorino não aceitou para não deixar Portugal que ele amava sobremaneira, como não aceitou várias empresas em Espanha. Esse Amor se evidenciou na sua carreira militar, que é das mais honrosas e altivas, mas também a mais isenta de ambições, cumprindo com nobreza o seu dever na senda árdua das armas. Segundanista das Faculdades de Matemática e Filosofi a, no ano lectivo de 1827/28, é surpreendido pela revolução constitucional de 1828. Os seus vinte anos generosos não sofrem o ânimo de uma abstenção e oferece-se para se incorporar no Batalhão Académico, juntamente com seu irmão Joaquim Pedro, o segundo de nome, visto ter morrido criança um outro irmão de nome igual. Esse espírito generoso foi mal compreendido pelos adversários de ideais, que, não podendo aniquilar esses moços cheios de fé, prendem o seu inditoso Pai, José António Damásio, logo após o fracasso da revolução e a emigração dos fi lhos para a Galiza. Desde a cadeia de Almeida até à de Buarcos, numa via dolorosa que durou de 1828 a 1833, fi nda na de Pereiro (Buarcos) com a cólera-morbus, aos sessenta e quatro anos. José Vitorino e o irmão partem de Ferrol para Plymouth, vivendo nas infectas barracas dos emigrantes, seguindo depois para a ilha Terceira em Fevereiro de 1829, tomando parte nas expedições do Pico, S. Jorge e S. Miguel, desembarcando enfi m em 1832 em Pampelido, sendo eles uns dos 7500 bravos do Mindelo. Joaquim Pedro perde a vida na acção da Serra do Pilar em 1832, enquanto que José Vitorino, mais

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feliz, toma parte em todos os combates, algumas vezes ferido com gravidade. A sua acção na Pasteleira foi tão brilhante que ganhou a sua primeira Torre-e-Espada e é promovido por distinção a 1.º tenente de artilharia, e no reduto do Wanzeler continua a ser tão fulgurante que o ofi cialato de Torre-e-Espada lhe é conferido. Até à implantação da Monarquia Constitucional, José Vitorino bate-se sempre de maneira tão valorosa, que não são só as condecorações e o posto de acesso que o nobilitam, como também a gratidão e reconhecimento de todos os seus companheiros de campanha, desde o Batalhão Académico até aos batalhões de artistas. Terminando as formaturas em 1837 e dedicando-se ao professorado, não deixa contudo a vida militar. Entra mesmo de uma maneira directa e até efi caz em 1846, pondo-se ao serviço da Junta do Porto, que lhe confere comissões da maior importância, comandando o cerco de Viana e o assédio de Valença entre outras, batendo-se desproporcionada mas valentemente contra as forças espanholas e de tal maneira que o próprio general Concha quis conhecer tão intemerato adversário, o «General Damásio», como ele o intitulou, quando ele era simplesmente major. De uma carta de José Vitorino a Parada Leitão, datada de Viana, a 6 de Maio de 1846, extraio o seguinte período, onde mostra a sua bem comprovada isenção. – Ele diz: «... não sei se falaram em mim, o meu amigo sabe perfeitamente o desprezo com que olho para as graças, se não falaram fi zerão justiça, porque eu não fui mais do que o menos valente soldado artilheiro». De outra, datada do Castelo da Foz, verbera o procedimento de ofi ciais que não sabem cumprir o seu dever. As palavras são duras, razão porque omito o nome. «Quando o S... sahio do Castelo com a sua gente, julguei que o homem tinha praticado um acto de valor, mas hoje estou convencido que he um fracalhão. Logo aos primeiros tiros fi cou sem saber onde estava, e parece-me que ele comprometeo a gente do seu comando para se salvar, porque estava, segundo me informão pessoas conhecedoras do facto, que lhe derão abrigo, um sujeito proximo do Castelo para o conduzir, e foi para casa da Viscondessa de Geraz de Lima; ahi

o homem lançou a banda e espada por terra, todo fóra de si gritava que estava perdido, e que lhe valessem; parece-me que se embarcou no vapor inglez... Muito cobardes são os ofi ciais que a qualquer tiro mudão de côr e tremem...» E por isso, da biografi a feita pelo General Nery Delgado destaco o seguinte episódio, desta malfadada campanha de 1846: «Cabe aqui consignar um rasgo notável, que ao mesmo tempo expressa a bondade da sua alma e a energia do seu ânimo inquebrantável. Aproximava-se a divisão espanhola da fronteira portuguesa, e era já inevitável o levantamento do cerco. O seu antigo camarada, o coronel de artilharia Alexandre Pinto, por um sentimento assaz louvável, veio procurá-lo, e diz-lhe: «Sabes, amigo, que forças vêm aí para te bater?» «Não. Quando fomos camaradas nos combates, contamos alguma vez os inimigos?». Deram-se um abraço e ambos se apartaram contristados. Poucos momentos depois era abandonado por dois dos batalhões que comandava, e restando-lhe apenas fi rme o segundo batalhão de artistas, com ele fez face ao ataque dos espanhóis em forças triplicadas às suas, batendo-se até esgotar as poucas munições de que dispunha. Por fi m, cobrindo com uma companhia a retirada daqueles bravos, foi ele o último a abandonar o campo, marchando sempre a bastante distância dos seus soldados para poder servir de alvo às balas inimigas. A bravura e estóica impavidez, que ostentou nesse dia memorável, em que, com heróica abnegação, tendo em nenhuma conta a própria existência, só pensou em salvar a honra do país vilipendiado pela afronta de uma invasão estrangeira, seria assunto bastante para lhe tecer uma coroa imarcescível, se a sua fronte não estivesse já laureada por tantos feitos brilhan-tíssimos (1).

(1) «Ao mesmo tempo que o Conde das Antas era feito prisioneiro dos ingleses, uma Divisão Espanhola de dez mil homens, às ordens do general Concha, invadia o território português pelas duas fronteiras do Minho e Trás-os-Montes, sendo uma coluna comandada pelo próprio general em chefe, e a outra por

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Assim dava o exemplo aos seus subordinados.Outro facto mostra a sua intrepidez. Era simples cabo do Batalhão Académico, quando a Junta do Porto de 1828 emigra para a Galiza. A Divisão Constitucional teve de retirar do Porto e tão precipitadamente que deixou em Gaia um destacamento do Batalhão Académico O comandante do Batalhão acede às solicitações de mandar recolher esse destacamento, a pesar do Porto estar dominado pelos absolutistas, mas não tomando a responsabilidade de sacrifi car o resto do valente Batalhão, lembra que se alguém se quiser aventurar a prevenir esse posto avançado, ele não se oporia. José Vitorino avança e pede licença para tentar a sorte. Parte, atravessa a cidade de Norte a Sul, passa o Douro, retira com os seus camaradas, desembarca em Massarelos e restitui ao Batalhão os seus desviados componentes, passando por mil perigos, no momento em que os absolutistas entravam no velho burgo nortenho. Nunca soube voltar a cara ao inimigo, como nunca deixou de fazer justiça ao próprio adversário. Mas não pára em 1846/47 a sua acção militar. No período chamado «Regeneração», em 1851, a infelicidade do Duque de Saldanha tira-o do remanso das suas funções de professor e entra num período revolucionário, que de princípio não tinha secundado.

Foi ele a alma do levantamento da tropa da guarnição do Porto, abortando a contra-revolução com a ajuda dos seus batalhões de artistas e operários fabris do Porto. Restituído o Marechal Duque de Saldanha à sua Pátria, José Vitorino recolhe aos seus afazeres de professor e de industrial, mas não é esquecido pelo Duque, que o reintegra no exército, como se não lhe fosse dada a demissão que ele tinha pedido logo após a “Convenção de Gramido» de 30 de Junho de 1847. A par das suas lições, comissões de serviço, empresas fabris, prossegue a sua carreira militar até ao generalato, posto que tinha quando faleceu, tendo estado depositada a sua valorosa espada no efémero Museu da Serra do Pilar, onde ele tantas vezes se cobriu de glória. Como chefe de família, segue as pisadas doeu desditoso Pai. Não pelo número de fi lhos, que só um houve do seu matrimónio com D. Maria Teresa Carpano Ripamonti, de origem italiana, que contrastava singularmente com ele. Era uma senhora pequenina, enquanto ele era invulgarmente alto, mas com almas gémeas, almas que se estimavam e compreendiam. José Vitorino tinha por sua esposa um carinho e delicadeza reciprocamente retribuídos, que era sensibilizante. Nunca a tratou senão por Madame e até à morte dela assim foi tratada por toda a família. Na sua casa acolhiam-se todos os que precisavam do amparo material ou moral. Eram sempre bem-vindos e nunca se fechou para ninguém e quanto mais desgraçados, mais amplamente se abriam as portas e os braços. E a pequenina Madame secundava o marido, distribuindo sorrisos e consolações, afagando o pequenino José Vitorino, fi lho da sua carne e da sua alma, que com ele viveu até aos derradeiros dias, numa velhice feliz e sem receio de dar contas a Deus, porque só soube espalhar bondade. Foi um casal feliz, onde os sentimentos elevados só tinham acolhimento, onde a comunhão era constante e absoluta, distribuindo tudo o que ganhava, chegando à pobreza. Duma carta datada de 5 de Março de 1860 a um amigo íntimo, onde abre o coração e expõe a sua vida cheia de isenção, e a pena de não poder valer a

Mendes Vigo, o qual, logo ao entrar em Portugal, assinalou os seus passos, junto a Valença, por um acto da mais brutal invasão: sem prévia declaração de guerra, achando-se suspensas as hostilidades, e com forças triplicadas das do ofi cial português (o major Damásio), que naquele ponto comandava as da Junta, o general espanhol não duvidou aparecer-lhe de repente na frente, cair de chofre sobre ele, e para cúmulo de insidia, simular primeiro uma retirada sobre Orense, como se fora preciso à horda de selvagens da América, que querem estrangular o viajante europeu, embrenharem-se nas dobras do mato, para depois lhe atirarem bem a salvo!Qualquer que seja o partido de quem ler estas linhas, estamos certos que não poderá deixar de folgar com a notícia de que seiscentos voluntários portugueses fi zeram frente, por mais de três horas de fogo, a mil e setecentos espanhóis de suas melhores e mais escolhidas tropas; e que houve um ofi cial das nossas fi leiras (o mesmo major Damásio), que com a espada metida na bainha, e as mãos talvez debaixo do braço, chegou à distância de menos de dez passos do inimigo para lhe exprobrar a deslealdade do quebramento do armistício; e vendo que a resposta era mandarem-no fuzilar à queima-roupa, mui mansa e vagarosamente voltou a ocupar o seu posto, sem dar outra demonstração de que sentia o zunir de centenares de balas, senão virar-se um pouco de lado, para que se não dissesse que um português tinha morrido pelas costas.» - Do livro Os dous dias d’Outubro ou a história da prerrogativa – por D. João de Azevedo – págs. 112/3.

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uma desgraçada família, destaco a seguinte frase, que não é mais do que a síntese de toda a sua vida: «...tendo servido cargos em que têm passado pelas minhas mãos centos de contos, não posso neste momento despender uma quantia tão insignifi cante, mas estes contos não me sujaram as mãos, tiraram-me a pele das mãos. Nós, que temos passado tantas atribulações, que sabemos avaliar o sofrimento de quem nada possui, com confi ança de que Deus olhará pelos nossos, poderemos ainda valer a quem tanto merece». A doença que em 1851 o teve às portas da morte e que foi debelada pela sua estadia na Madeira, não mais se fez sentir. Mas o excessivo trabalho, os anos de campanha, a labuta constante de todos os dias abalaram pouco a pouco aquele roble. Entra o ano de 1875 e com ele a decadência física de José Vitorino, mas a que ele com a sua vontade férrea ia pondo barreiras, sem contudo atemorizar os seus. Conservo a última carta que ele escreveu ao seu cunhado e amigo, o sábio geólogo Carlos Ribeiro. Nesse ano andava Carlos Ribeiro, em Belas, a estudar o abastecimento das águas da capital, por causa da grande estiagem que se fazia sentir. Muitas vezes ia a essa estância salubérrima e José Vitorino, submetendo-se à indicação médica, escreve a seguinte carta:

«Mano e Amigo:

Todos me aconselham de ir passar alguns dias ao campo. Sinto-me doente e parece-me que não alcançarei melhoras. Devo ceder à opinião do maior número. Como o mano costuma partir das 4 ½ para as 5 da tarde, antes desta hora aí estarei para ter o gosto de o acompanhar a Belas, sem o Mano ter o incómodo de dar uma volta inútil. Recomendações de toda a família e até logo. Seu Mano e Amigo obrigado S/c. 15 de Junho de 1875 José Vitorino Damásio.»

Nenhumas melhoras obteve, mas continuava a estudar incansavelmente, até que de todo cai e no dia 19 de Outubro de 1875 para sempre se foi deste mundo.

Jaz no Cemitério dos Prazeres, de Lisboa, em jazigo perpétuo oferecido pela Câmara Municipal, como reconhecimento e gratidão do muito que Lisboa deve ao Engenheiro José Vitorino Damásio.

Participantes da Conferência Telegráfi ca Internacional de Paris, em 1865.José Vitorino Damásio é o sexto, da esquerda para a direita, de pé.

55BIODIESEL: A ENERGIA QUE SE PLANTA

Maria da Conceição M. Alvim-Ferraz*,1, Joana Maia Diasa, Manuel Afonso F. Almeidab

LEPAE, Faculdade de Engenharia, Universidade do PortoR. Dr. Roberto Frias, 4200-465, Porto, Portugal

aDepartamento de Engenharia QuímicabDepartamento de Engenharia Metalúrgica e de

Materiais

RESUMO

O biodiesel é uma mistura de ésteres de ácidos gordos obtida através de uma reacção química de transesterifi cação, que envolve a reacção dos triglicéridos (constituintes dos óleos vegetais e das gorduras animais) com um álcool (mais frequentemente metanol ou etanol), gerando glicerina como subproduto. O aumento do consumo de combustíveis fósseis e os problemas ambientais decorrentes fi zeram emergir a necessidade de desenvolver fontes

de energia renováveis. Em Portugal, o consumo de combustíveis fósseis no sector dos transportes tem crescido signifi cativamente (90% entre 1990 e 2002), o que agrava acentuadamente a nossa dependência das importações. A produção e utilização de biodiesel como substituto de gasóleo permitem a redução da dependência energética de Portugal, contribuindo para o cumprimento quer das metas estabelecidas para incorporação de biodiesel como combustível, quer dos compromissos assumidos para redução das emissões de gases com efeito de estufa. O presente artigo resume o estado do conhecimento relativamente ao biodiesel considerando: i) matérias-primas; ii) metodologia de produção; iii) características, vantagens e desvantagens; iv) subprodutos gerados; e v) áreas a desenvolver para melhorar os processos produtivos. O objectivo foi fazer a análise dos desafi os que determinarão o sucesso da sua produção em Portugal, directamente condicionado pelos seguintes factores: i) selecção de matérias-primas disponíveis com características adequadas; ii) desenvolvimento de processos produtivos rápidos e simples que permitam produção em grande escala com rendimento elevado; iii) implementação de procedimentos para controlo da qualidade do biodiesel produzido; iv) desenvolvimento de processos para valorização do subproduto glicerina.

1. BIOCOMBUSTÍVEIS

O aumento do consumo de combustíveis fósseis e os problemas ambientais associados, particularmente a emissão de gases com efeito de estufa (GEE) e os consequentes efeitos na temperatura média do planeta, fi zeram com que o desenvolvimento das fontes de energia renováveis fosse uma questão estratégica a nível mundial. Por este facto, as pressões económicas, ambientais e sociais forçaram o estabelecimento de medidas encorajadoras do consumo de combustíveis de origem renovável. Na Tabela 1 resumem-se os principais tipos de biocombustíveis, referindo-se também os processos de produção e respectiva aplicação.

1 Autor para correspondência. Tel.: 22 5081688; fax: 22 5081449; E-mail: [email protected].*Nasceu em Santa Maria da Feira em 17/02/1947. Licenciada em Engenharia Química, Faculdade de Engenharia, Universidade do Porto, em 1971. Curso superior de piano, Conservatório de Música do Porto, 1971. Grau de Doutora em Engenharia, U.P., 1984. Professora no Departamento de Engenharia Química da Universidade de Engenharia, U.P. Desenvolve actividade científi ca na área do ambiente.

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Tabela 1: Biocombustíveis - processo de produção e aplicações

Biocombustível Produção Aplicações

Biogás

(Metano)Fermentação anaeróbia de

matéria orgânica Veículos adaptados

Bioetanol

Biometanol

(Alcoóis: Etanol e metanol)

Fermentação de culturas cerealíferas e açucareiras (cana de açúcar, milho,

mandioca, sorgo, beterraba)

Motores de ignição comandada

ETBE (éter etil-t-butílico)

MTBE (éter metil-t-butílico)

(Éteres derivados dos álcoois)

Reacção química entre álcoois e isobutileno Motores de ignição comandada

Biodiesel

(Ésteres metílicos ou etílicos)

Transesterifi cação de óleos vegetais ou gorduras

animais(soja, colza, girassol, banha

de porco, sebo bovino, gordura de aves)

Motores de ignição por compressão

(substituição parcial de 5 a 30% ou total)

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O biodiesel é produzido a partir de óleos vegetais (virgens ou usados) ou gorduras animais, sendo por isso considerado um combustível renovável; pode ser utilizado em motores de ignição por compressão, normalmente misturado com diesel mineral em proporções entre 5 e 30%. A utilização directa de óleo vegetal como combustível tem uma longa história, pois já em 1900 Rudolf Diesel exibiu um motor numa exposição em Paris, projectado para funcionar utilizando óleo de amendoim (Demirbas, 2003). No entanto, a utilização directa de óleo vegetal como combustível apresenta desvantagens que desencorajaram a sua utilização para esse fi m (difi culdade no arranque a frio, formação de depósitos nos injectores, entupimento dos fi ltros, aumento do consumo e emissão de fumos). Por esse motivo, foram desenvolvidos processos para conversão química do óleo num combustível com melhores características. As gorduras e os óleos são substâncias insolúveis

2. BIODIESEL em água, presentes no reino animal e vegetal, sendo constituídas essencialmente por triglicéridos (Sonntag, 1979). Como matéria-prima para extracção do óleo podem usar-se plantas (soja, colza, palma, milho, girassol, amendoim, algodão, mamona, pinhão manso); a extracção é feita por prensagem mecânica ou por separação com solventes, dependendo da capacidade Instalada nas unidades de produção (Ma e Hanna, 1999; Gerpen et al., 2004). Podem também usar-se resíduos animais (banha de porco, sebo de bovino, gordura de aves). Os resíduos animais são uma matéria-prima particularmente atraente para a produção de biodiesel, pois a sua incorporação na cadeia alimentar (fabrico de farinhas e rações) tem vindo a ser cada vez mais restringida devido às ameaças de difusão de doenças. A conversão química é conseguida através de uma reacção de transesterifi cação (também designada por alcoólise) que envolve a reacção dos triglicéridos (ésteres de glicerina) com álcool (habitualmente metanol ou etanol), obtendo-se uma mistura de ésteres de ácidos gordos (biodiesel) e glicerina (Ma e Hanna, 1999), de acordo com a seguinte reacção:

O biodiesel obtido tem propriedades semelhantes às do diesel mineral, podendo por isso ser utilizado nos motores de ignição por compressão, puro ou misturado com o diesel mineral. As normas para controlo de qualidade do biodiesel referem-se na Tabela 2.

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Tabela 2: Normas para controlo de qualidade do biodiesel

Norma

União Europeia

EN 14214

“Automotive fuels – fatty acid methyl esters (FAME) for diesel engine – requirements and test methods”

Estados Unidos

ASTM D 6751

“Standard specifi cation for biodiesel fuel blend stock (B100) for distillate fuels”

AlemanhaDIN 51606

“Liquid diesel fuel of vegetable oil - methylester (PME) requirements”

Com base no conhecimento actual, o biodiesel demonstra as seguintes vantagens: i) segurança de utilização em qualquer motor diesel; ii) lubrifi cação mais elevada, prolongando por isso a vida do motor e reduzindo a necessidade da sua manutenção; iii) ausência de toxicidade e infl amabilidade reduzida; e iv) redução das emissões atmosféricas associadas à queima (Chand, 2002). De acordo com a US Environmental Protection Agency, a utilização de 100% de biodiesel (B100) como combustível resulta em reduções de 67% nas emissões de hidrocarbonetos, 48% nas emissões de monóxido de carbono e 47% nas emissões de partículas, como mostra a Tabela 3. Apenas se regista um pequeno

aumento das emissões de óxidos de azoto, dado que as substâncias orgânicas têm azoto, contrariamente ao que acontece no diesel mineral. Os correspondentes valores, para uma mistura contendo 20% de biodiesel (B20), encontram-se igualmente na Tabela 3.O carbono existente no óleo a partir do qual se produz o biodiesel provém da fi xação do dióxido de carbono nas plantas através da fotossíntese. Como o dióxido de carbono emitido na queima de biodiesel será de novo fi xado pelas espécies vegetais, o biodiesel é considerado neutro no que diz respeito à emissão global deste poluente. No entanto, a análise do ciclo de vida do biodiesel mostra uma redução de 78% na emissão de CO2 relativamente ao diesel mineral2 (Gerpen, 2005).

(2)A redução não é 100%, pois considera-se a incorporação do metanol de origem petroquímica no fabrico do biodisel e as suas necessidades decorrentes do emprego de combustíveis fósseis para o trabalho agrícola, produção de fertilizantes e distribuição das matérias-primas e produtos

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Tabela 3: Variações médias nas emissões: queima de biodiesel relativamente à do diesel mineral (Fonte: US-EPA)

Reduções médias nas

emissões (%)B100 B20

Hidrocarbonetos -67% -20%

Monóxido de Carbono -48% -12%

Partículas -47% -12%

Óxidos de Azoto +10% +2%

Assim, a queima de biodiesel contribui muito menos para o aquecimento global do que a queima de diesel mineral. As principais desvantagens identifi cadas na utilização de biodiesel são a possibilidade de solidifi cação a temperaturas baixas e de degradação quando armazenado por muito tempo (Wardle, 2003). Por isso, é necessário adicionar-lhe substâncias anticongelantes e estabilizadoras quando se pretende armazená-lo durante tempo prolongado e se utiliza em climas frios. No que diz respeito ao desempenho dos motores dos automóveis que utilizam biodiesel, alguns autores referem que este não é alterado; outros, revelam que a sua utilização pode causar uma redução da potência e um aumento do consumo do combustível. Há mesmo quem considere que, devido à presença de impurezas não adequadamente eliminadas (por exemplo sais de sódio), a utilização de biodiesel pode estar associada à diminuição da longevidade dos motores e ao acréscimo de despesas de manutenção. Esta discrepância de opiniões pode criar desconfi ança nos consumidores, pelo que, tendo em conta que estão já traçadas metaspara a incorporação de biodiesel nos combustíveis comercializados em Portugal, se justifi ca a existência de sistemas de garantia de qualidade do biodiesel e uma avaliação factual isenta do comportamento dos

motores. Para isso, deverão ser testados (em banca de ensaios) motores com diferentes misturas de biodiesel em diesel mineral, uma vez que há estudos que apontam que incorporações até 20 ou mesmo 30% não alteram o desempenho dos motores (Neto da Silva et al., 2003). No entanto, há quem defenda que não há inconvenientes signifi cativos com a utilização de B100. A mudança de utilização nos automóveis de diesel mineral para biodiesel requer algum cuidado, pois o diesel mineral provoca a formação de uma camada de sedimento no depósito e a posterior utilização do biodiesel provoca a sua libertação (Wardle, 2003). Para que os fi ltros não fi quem obturados será necessário ter inicialmente cuidados acrescidos na manutenção dos fi ltros. Do processo de transesterifi cação resulta também glicerina, para a qual é absolutamente necessário ampliar o leque de aplicações e mercado, tendo em conta a enorme quantidade deste produto a que as unidades produtoras têm que dar destino. A glicerina tem aplicação no fabrico de explosivos e na produção de ésteres, poliglicerina e resinas. Quando purifi cada, a glicerina pode ser usada nas indústrias farmacêutica, de cosmética e de sabão. Novas aplicações têm vindo a ser desenvolvidas para a glicerina, que passam pela sua utilização para o fabrico de compostos usados na indústria química (1,3 propanodiol, carbonato

60

Colza.

Palma

Amendoim

Pinhão Manso

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de glicerina, ácido acrílico, e acroleína). As suas características higroscópicas têm-lhe vindo a abrir novas hipóteses de aplicação, nomeadamente como desidratante de azeótropos em leitos de percolação. A queima de glicerina para produção de calor está limitada pela possibilidade de emissão de acroleína (aldeído acrílico-2-propenal), composto considerado muito prejudicial para a saúde. Para acelerar a reacção de transesterifi cação têm vindo a usar-se catalisadores homogéneos ácidos ou básicos. Os catalisadores homogéneos ácidos (p.e. HCl e H2SO4) não actuam efi cientemente na velocidade da reacção. Os catalisadores homogéneos alcalinos (p.e. NaOH e KOH) são mais efi cientes, mas têm associadas desvantagens relacionadas com a presença signifi cativa de água no meio reaccional, mesmo quando os seus teores no óleo vegetal são reduzidos. Isto acontece porque a reacção do hidróxido com o álcool origina água, que provoca a hidrólise dos ésteres e a consequente formação de ácidos gordos, que por sua vez reagem com o hidróxido para dar origem a sabões; a formação de ácidos gordos e sabões reduz o rendimento da reacção de transesterifi cação, difi cultando também a separação dos ésteres da glicerina (Jitputti et al., 2006). Quando se utilizam catalisadores homogéneos, é necessário incluir no processo uma etapa adicional para remoção do catalisador (com a consequente geração de efl uentes contaminados). Esta é uma limitação adicional de extrema importância em termos industriais, pois é responsável pelo agravamento dos custos de produção (Shibasaki-Kitakawa et al., In Press). O esperado aumento do consumo de biodiesel torna cada vez mais importante desenvolver processos produtivos efi cientes, rápidos e simples, que permitam produção em grande escala, com rendimento elevado. Face ao conhecimento actualmente existente, as principais limitações que agravam os custos de produção prendem-se com a separação e purifi cação do produto da reacção, pelo que, será necessário desenvolver novas condições de operação. É particularmente importante ajustar as condições operacionais à utilização de matérias-primas alternativas, tal como os resíduos animais, o que impõe exigências adicionais nomeadamente no pré-tratamento, no processo de

transesterifi cação e no controlo de qualidade. As novas condições poderão passar pela utilização de sistemas não catalíticos efi cientes. Tendo em conta que a necessidade de utilizar catalisadores se deve essencialmente ao facto do álcool ter uma solubilidade extremamente baixa no óleo, poderão ser alternativas interessantes: i) a utilização de co-solventes que solubilizem o metanol e promovam uma fase líquida única; e ii) a utilização de condições supercríticas. As novas condições de operação poderão também passar pelo desenvolvimento de catalisadores alternativos, que permitam reduzir o tempo de produção e simplifi car os passos de separação e purifi cação. A utilização de metilato de sódio em soluções de metanol 25 a 30% tem-se vindo a revelar uma alternativa vantajosa relativamente à utilização de hidróxido de sódio ou potássio. A utilização desse catalisador isento de água elimina a reacção do hidróxido com o álcool que origina água reduzindo o rendimento da reacção de transesterifi cação (Vicente et al., 2004). Por isso, a utilização de metilato de sódio permite a obtenção de produtos com maior qualidade, com maiores rendimentos, e menores custos. No entanto, não se elimina a necessidade de incluir no processo uma etapa adicional para remoção do catalisador em fase líquida. A utilização de catalisadores enzimáticos tem suscitado bastante interesse, contudo os custos das enzimas e a sua instabilidade constituem barreiras à sua utilização em escala industrial (Tashtoush et al., 2004). A utilização de catalisadores heterogéneos apresenta diversas vantagens na redução dos custos de operação e na melhoria do processo produtivo, nomeadamente as seguintes: (i) não formam sabões, o que elimina a formação de emulsões de glicerina, reduzindo consideravelmente o tempo de separação das fases; (ii) evita as etapas de remoção do catalisador da fase líquida; e, (iii) oferece melhores condições para aplicação de diagramas de produção contínuos (Shibasaki-Kitakawa et al., In press., Cantrell et al., 2005). Na maior parte das investigações realizadas com catalisadores heterogéneos a reacção tem sido mais lenta do que a que utiliza catalisadores homogéneos básicos tradicionais. Isto deve-se essencialmente

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a problemas de difusão, uma vez que este meio heterogéneo se comporta como um sistema trifásico (óleo/álcool/catalisador) (Xie et al., In Press). Assim, o desenvolvimento de catalisadores heterogéneos efi cientes para a reacção de transesterifi cação é ainda um desafi o à investigação, pois os poucos estudos já efectuados não permitem ainda um conhecimento sufi cientemente fundamentado no que diz respeito à: (i) infl uência na velocidade e efi ciência da reacção de transesterifi cação; (ii) qualidade do biodiesel produzido; (iii) transferência do catalisador para a fase líquida; (iv) redução dos custos de separação e purifi cação.

3. BIODIESEL NA UNIÃO EUROPEIA O aumento do consumo de combustíveis fósseis e os problemas ambientais decorrentes fazem do desenvolvimento de formas de obtenção de energia alternativa uma questão estratégica mundial. O incentivo à utilização de biocombustíveis consta das medidas adoptadas em Gotemburgo pelo Conselho Europeu em 2001, no âmbito da estratégia para a União Europeia em favor do desenvolvimento sustentável. Dois outros documentos da Comissão contêm exigências relativas à promoção de biocombustíveis: i) o livro branco da Comissão “A política europeia de transportes no horizonte 2010: a hora das opções”, que realça a necessidade de diminuir a dependência do sector dos

transportes relativamente ao petróleo; e ii) o livro verde da Comissão “Para uma estratégia europeia de segurança do abastecimento energético”, que tem como dupla fi nalidade melhorar a segurança do aprovisionamento e reduzir as emissões atmosféricas, fi xando como objectivo substituir no sector dos transportes rodoviários 20% dos combustíveis convencionais até 2020. A Directiva 2003/30/CE aponta as seguintes metas para colocação de biocombustíveis no mercado dos Estados-Membros: i) até 31 de Dezembro de 2005, 2% de toda a gasolina e todo o diesel mineral utilizados nos transportes (calculado com base no teor energético); e ii) até 31 de Dezembro de 2010, a incorporação deverá aumentar para 5,75%. Este facto vai levar a um aumento do consumo de biodiesel, o que implica a adopção de iniciativas que possibilitem a sua produção à escala desejada. A produção de biodiesel na União Europeia tem vindo a aumentar gradualmente desde 1998. Até 2002 a produção de biodiesel aumentou cerca de 45%, fundamentalmente devido ao aumento da produção na Alemanha, que é o maior produtor de biodiesel na União Europeia, seguido da França e da Itália (ver Figura 1). Em 2004 a Alemanha foi responsável pela produção de cerca de 1 milhão de toneladas de biodiesel, mais de metade do total produzido pela UE. Na Tabela 4 incluem-se as quantidades produzidas na UE em 2004.

Figura 1:Produção de biodiesel na União Europeia em 2002 e 2004 (Portugal, Espanha, Reino Unido, Suécia, Eslováquia e Lituânia estão incluídos em outros). (Fonte: EBB - European Biodiesel Board)

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Tabela 4: Produção de biodiesel na União Europeia em 2004 (Fonte: EBB, 2005)

País (kt) a)

Alemanha 1035

França 348

Itália 320

Áustria 57

Espanha 13

Dinamarca 70 b)

Reino Unido 9

Suécia 1,4

República Checa 60 b)

Eslováquia 15

Lituânia 5

Total 1933,4

a) margem de erro de +/-5%; b) margem de erro de +/-10%

A utilização de biocombustíveis em substituição dos combustíveis de origem fóssil contribui decisivamente para a diminuição das emissões de dióxido de carbono, GEE associado ao aumento de temperatura global e a alterações climáticas. Por isso, o cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito do protocolo de

Quioto, para redução das emissões de GEE, constitui-se igualmente como motor de incentivo à utilização de biocombustíveis.

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4. BIODIESEL EM PORTUGAL A Directiva Europeia 2003/30/CE foi transposta para a ordem jurídica Portuguesa pelo Decreto-Lei nº 62/2006, que estabelece a colocação no mercado de quotas mínimas de biocombustíveis, com o objectivo de contribuir para o cumprimento das metas defi nidas pela Comissão Europeia, quer no que diz respeito à incorporação de biocombustíveis, quer no que diz respeito a redução de GEE, garantindo também segurança do abastecimento. As metas nacionais são defi nidas por despacho conjunto dos ministros com tutela nas áreas envolvidas, sendo comunicadas à Comissão Europeia através de relatórios anuais referentes à evolução da utilização de biocombustíveis. O 1º relatório elaborado estabelecia uma meta de 1%, inferior portanto à meta indicativa da Comissão Europeia (2%), devido fundamentalmente à fraca produção agrícola em Portugal e ao atraso no arranque das unidades de produção previstas. O 2º relatório não alterou esse valor; contudo, o avanço de algumas unidades produtivas poderá ser indicativo de que possam vir a ser defi nidas percentagens superiores. O Decreto-Lei nº 66/2006, confi gura para os biocombustíveis incorporados no diesel mineral e na gasolina a possibilidade de isenção do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos, por forma a promover a sua utilização nos transportes. Para satisfazer as necessidades energéticas de Portugal, uma importante fatia dos recursos económicos nacionais tem vindo a ser consumida na importação de combustíveis fósseis. Em 2002, 93% da energia primária resultou de importações (IA, 2005), verifi cando-se um crescimento signifi cativo da factura energética dos combustíveis importados, devido não só ao aumento do consumo, mas também à dependência de factores exógenos, relacionados nomeadamente com a variação do preço da matéria-prima e das taxas de câmbio (ver Figura 2). A Estratégia Nacional para a Energia (Presidência do Conselho de Ministros, 2005) refere esta problemática, salientando que desde 1998 o preço do barril de petróleo não pára de crescer, cada vez mais signifi cativamente. Como refl exo de uma maior mobilidade de

Figura 2: Evolução do preço do barril de crude e gasolina (2000 a 2005).(Fonte: European Central Bank, 2005, October Montly Bulletin)

pessoas e bens, o sector dos transportes tem tido um crescimento muito acentuado. Entre 1990 e 2002 apresentou um crescimento de 90% e em 2003 correspondeu a um consumo energético de cerca de 39% do consumo energético total (IA, 2005). Em resumo, o sector dos transportes tem sido o grande responsável pelo consumo fi nal do petróleo, tendo a sua expressividade vindo a aumentar mais acentuadamente nos últimos anos, como mostra a Figura 3 (consumo de petróleo expresso em milhões de toneladas equivalentes).

Mto

e

Figura 3: Evolução mundial do consumo de petróleo por sector de actividade (1971 a 2003).(Fonte: International Energy Agency, 2005, Key World Energy Statistics)

65

Em Portugal, a emissão de GEE tem vindo a aumentar acentuadamente, tendo variado 40% entre 1990 e 2002. Consequentemente, Portugal excedeu em 13%

Figura 4: Emissão de gases com efeito de estufa em Portugal e na UE (1990 a 2002)A) Emissão e compromissos; B) Variação das emissões (Fonte: IA, 2005)

Grande parte das emissões de GEE resulta da queima de combustíveis fósseis, sendo o sector dos transportes responsável por 28% das emissões de CO2 (Presidência do Conselho de Ministros, 2005), gás cujas emissões aumentaram 95% entre 1990 e 2002 (Figura 5).

Figura 5: Variação da emissão de GEE por sector de actividade e por poluente (1990 a 2002). (Fonte: IA, 2005)

o valor acordado com os estados membros da EU no âmbito das directrizes do Protocolo de Quioto (ver Figura 4A). Portugal é também o Estado-Membro com o maior aumento de emissões de GEE (ver Figura 4B).

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A necessidade de reduzir o preço dos combustíveis importados e as emissões de GEE fez surgir pressões económicas, ambientais e sociais criando um clima encorajador para a produção e consumo de biocombustíveis (este facto teve inicialmente um incen-tivo acrescido por ser possível produzir culturas para fi ns não alimentares nas terras em pousio obrigatório devido aos condicionalismos impostos pela Política Agrícola Comum; no entanto, as escassas áreas de regadio em pousio tornam este incentivo pouco aliciante). Em

particular, a substituição de algum do diesel mineral por biodiesel reduz a dependência energética de Portugal e contribui para o cumprimento das metas estabelecidas na Directiva 2003/30/CE, bem como dos compromissos assumidos no protocolo de Quioto. A Tabela 5 mostra as unidades de produção de biodiesel instaladas ou a instalar em Portugal, referindo também a respectiva localização, capacidade de produção, principal matéria-prima e situação de produção.

Tabela 5: Unidades de produção de biodiesel em Portugal

UnidadesRegião de localização

Capacidade instalada (t/ano)

Matéria-prima Produção

Iberol

(Nutasa)Alhandra 100 000 Óleo de soja Em curso

Torrejana de biocombustíveisTorres Novas

40 000

(80 000) *Óleos vegetais Em curso

Martifer

(Mota-Engil/Monte-Adriano)Aveiro 100 000 Óleo de colza

Março de 2007

Enersis

(Semapa)Sines 25 000 __

3º trimestre de 2006

Tagol

(Nutrinvest)Almada 100 000 Colza, girassol

Novembro de 2007

Pequenos produtores

(PME, autarquias, agências de energia)

Sintra, Oeiras,

Coimbra, Barreiro

15 000 __ Em curso

* Aumento de capacidade previsto

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O maior constrangimento à comercialização do biodiesel é o elevado custo das matérias-primas, nomeadamente o do óleo vegetal virgem (Krawczyk, 1996). Por isso, a principal difi culdade para uma produção efi ciente tem a ver com a selecção de matérias-primas disponíveis, com características adequadas, e a preços compatíveis. Esta é uma questão crucial nos países como Portugal, em que a produção de biodiesel a partir de culturas oleaginosas virgens tem limitações que se prendem fundamentalmente com a baixa produtividade agrícola das potenciais culturas. Além disso, as quantidades produzidas actualmente são insufi cientes para satisfazer as necessidades alimentares. Assim, as unidades produtivas a implementar terão que equacionar as vantagens relativas de importar as sementes ou o óleo já extraído, sendo menos plausível assegurar a produção de oleaginosas necessária através de culturas em solo nacional. Apesar de condicionada a uma muito menor escala, a produção de biodiesel em Portugal a partir de resíduos da indústria alimentar promete ser aliciante. Os problemas associados à gestão dos óleos alimentares usados têm tido como consequência a obstrução de condutas, a redução de efi ciência das estações de tratamento de águas residuais, a poluição dos recursos hídricos e dos solos, e a contaminação de outros resíduos. Assim, o uso de óleos alimentares usados na produção de biodiesel, para além de poder reduzir para cerca de metade o custo de produção (Supple e tal., 1999), contribui decisivamente para reduzir os custos associados à gestão destes e outros resíduos e ao

processo de tratamento dos efl uentes que os contêm. As gorduras animais, pela sua muito maior disponibilidade são também uma matéria-prima atraente. A existência de sistemas para controlo rigoroso e efi ciente da qualidade do biodiesel produzido será imprescindível para criar a imagem de credibilidade necessária, nomeadamente para a exportação dos produtos. O quase seguro aumento do preço do petróleo no futuro próximo é por certo um estímulo que faz prever que a produção de biodiesel se torne cada vez mais competitiva. No entanto, as opções de investimento deverão ser independentes de incentivos políticos, indubitavelmente desejáveis para lançamento de actividades produtivas estratégicas, mas que têm implícitas opções políticas que pela sua variabilidade não conferem estabilidade às previsões que nelas se basearem. Porém, há incentivos justifi cáveis em qualquer enquadramento político. Tais são os que derivam dos benefícios da redução da emissão de CO2 ao consumir biodiesel, que fazem diminuir os gastos da aquisição de direitos de emissão, cenário cada vez mais verosímil no

Amendoim

Palma

68

Girassol

plano nacional. A comunidade científi ca nacional pode ter um papel determinante na dinamização da produção de biodiesel, pois Portugal deverá investir claramente no desenvolvimento de processos produtivos adaptados à sua realidade, que operem com rendimento elevado, sejam rápidos e simples. Para isso, é importante modifi car o processo de transesterifi cação, de forma a reduzir o tempo de produção e simplifi car as etapas de separação e purifi cação. Constituem temas relevantes os seguintes: i) novas matérias-primas; ii) a substituição de metanol por etanol; iii) catalisadores alternativos; e iv) sistemas não catalíticos. É ainda fundamental desenvolver processos para valorização da glicerina gerada como subproduto. Também é importante avaliar o desempenho dos motores dos automóveis utilizando diversas percentagens de incorporação de biodiesel no diesel mineral, incluindo a avaliação das emissões atmosféricas associadas, de forma a fornecer argumentos seguros em prol da utilização do biodiesel, tanto aos produtores de veículos automóveis, como aos utilizadores fi nais.

5. CONCLUSÕES A produção de biodiesel em Portugal é uma realidade necessária e em expansão. Traz ao país inegáveis vantagens sob o ponto de vista ambiental e económico, e o seu consumo é atractivo para a maioria dos cidadãos. No entanto, e para que a produção de biodiesel em Portugal seja efi ciente, dever-se-á ter especial atenção com:

• A selecção adequada das matérias-primas, por forma a serem disponíveis e terem preços compatíveis e características apropriadas;

• O controlo rigoroso e efi ciente da qualidade do biodiesel produzido;

• A utilização de resíduos como matérias-primas, de modo a benefi ciar a sua gestão, mas não prejudicar a qualidade do produto fi nal.

A comunidade científi ca nacional deve dinamizar a implementação de processos produtivos que operem com rendimento elevado, sejam rápidos e simples. Com este objectivo, vale a pena dar especial atenção aos aspectos seguintes:

• Utilizar novas matérias-primas primárias e secun- dárias, eventualmente dinamizando culturas de oleaginosas mais apropriadas às regiões;

• Substituir metanol por etanol no processo produtivo;

• Desenvolver catalisadores alternativos;• Desenvolver sistemas não catalíticos;• Valorizar os subprodutos das reacções, em particular

a glicerina;• Avaliar o desempenho dos motores, determinar as

proporções óptimas das misturas e quantifi car as emissões atmosféricas associadas à utilização do biodiesel.

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J. Mol. Catal. A: Chem.

Mamona

70

À PORTA DO SILÊNCIO

Judite Lopes*

Bato à porta do silênciomas ele não me ouve!...Esquiva-se pelas frestas do tempocomo sombra arrediaem dias de cinza.Busco segredos no mar onde afundo a nau atulhadado pensamento em febre.Enche-me a luz das lembrançascimentadas no peito.Sinto que as vagas da saudademe embalam o olhar molhadoe traço sorrisos quedosno descompasso dos dias.O sol some-se no aléme vêm os passos brandos da noitecobrir-me com o véu da espera.

* Licenciada em Animação Sociocultural. Autora do livro de poemas “Vislumbres”.

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Natural de Guisande, conhecia o Dr. António Ferreira Pinto (1871-1949), já encanecido, em fi nais da década de 30. De estatura mediana, com uns olhos miúdos mas brilhantes, realizava o tipo de autocrata, no Seminário de Teologia do Porto. Atento a todos os pormenores da vida quotidiana da comunidade, indignava-se com reclamações claramente exorbitantes, geralmente provindas de fi lhos de gente quase carenciada. Uma das reacções mais explosivas foi despoletada por um aluno de Felgueiras que ter-se-ia queixado ao médico por não poder comer carne “ensacada”. A resposta do Reitor, exposta no refeitório, no fi m do jantar, não deixou dúvidas sobre esse pormenor, rebatendo a desclassifi cação do alimento que era servido. Sabia-se que havia cuidado na escolha dos alimentos a consumir, embora, nesta fase, a economia estivesse estrangulada pela Segunda Guerra Mundial. O Dr. Ferreira Pinto mandava fazer análise à acidez do azeite e à genuinidade do vinho.

Apesar de tudo, era um homem sereno perante imprevistos. Na manhã seguinte ao grande ciclone, comentou as consequências deixadas pelo temporal com a observação dum homem que tinha feito uma promessa a Santo Amaro, por ter partido uma perna, quando poderia ter partido as duas.

O seu conhecido zelo pelas tarefas que as suas funções lhe impunham era compreensível. Tinha cursado Teologia na Universidade de Coimbra. A este propósito, um dia, passando eu no corredor onde estava situado o seu gabinete, tinha a porta aberta e chamou-me de dentro. Quis mostrar-me a sua pasta de estudante com as respectivas fi tas. Falámos das festas de fi nalistas. Perguntei se tinha participado e a resposta foi rápida, informando sobre a participação na revista estudantil. Talvez pela minha expressão de estranheza, completou:

- Exactamente, como ponto. De facto, eu não o via com jeito para a cena. Contava que, em seus princípios sacerdotais,

ia a cavalo de Guisande para Lamas, onde era capelão. No Porto, foi, durante algum tempo, pároco da Vitória. Veio para o Paço, no tempo do cardeal D. Américo, continuando, quando veio D. António Barroso. Foi mesmo biógrafo dos dois prelados. Em 1910, o Paço foi nacionalizado pela República. A intolerância arbi trária da época chegou mesmo a levar o Dr. Ferreira Pinto para a cadeia, embora por pouco tempo. Como a diocese fi cou privada dos seus bens e os serviços do bispado tiveram de abandonar o prédio, o Dr. Ferreira Pinto não perdeu tempo para actuar na defesa dos interesses da diocese. Conseguiu alugar ao Estado as instalações e recheio do Seminário de Teologia, evitando que móveis e livros fossem vendidos em hasta pública. Numa aula, reportando-se a essa época difícil, afi rmou que não receava as leis injustas. Entendia que tinha mais interesse que os executores das leis fossem pessoas bem intencionadas. A sua passagem pela Universidade de Coimbra permitiu-lhe contactos com os futuros corifeus da República. Afonso Costa, porventura o mais notável dos políticos do seu tempo, respeitava-o

* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez os seus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenado presbítero, na Sé do Porto, em 1943. Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas. Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e Escola Profi ssional de Gaia, a cujas direcções pertence. Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Nova de Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatro portuense antigo. Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a Fundação Manuel Leão, com fi ns culturais e sociocaritativos.

Padre Manuel Leão*

CÓNEGO FERREIRA PINTO,UM FEIRENSE A LEMBRAR

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e recebia-o com abertura sufi ciente para criar respeito e confi ança na formação do Dr. Ferreira Pinto. Assim se explica como foi possível estudar fórmula jurídica que evitou a extinção do seminário de Teologia do Porto. Mantinha um constante espírito de gratidão para com as famílias que ajudaram fi nanceiramente a sobrevivência do Seminário, nessa época confusa. Recordo-me de alguns nomes que o Dr. F. Pinto indicava.

A notoriedade deste servidor da igreja portucalense encontrou lugar no meio intelectual e político desse tempo. Isto signifi ca que era sacerdote bispável. Corria que, quando foi convidado para o episcopado, pela segunda vez, teria recusado, com três negações: Não quero, não posso, não devo!

A disciplina que leccionou mais tempo tinha um carácter prático, claramente pastoral. Estava no seu ambiente, porque não era sacerdote para teorias. A

faceta pragmática encon trou campo nas suas funções como gestor. Os seus conselhos dados aos alunos faziam-lhes sentir que a futura actividade deles seria um serviço ao povo e nunca uma prepotência incontida.

Não tinha palavra fácil, mas aconselhava, por meio dum ditado latino, a terminar de falar respeitando a brevidade e limitando os assuntos a tratar. Apontando situações ridículas, afi rmava que muitos oradores não encontram a porta de saída e entram em repetições inúteis e enfadonhas.

O Dr. Ferreira Pinto era um professor e reitor acessível tanto para alunos como para estranhos ao Seminário. Eu era um grande frequentador da biblioteca e tinha sempre no meu sector uma pilha de livros, para não necessitar de tomar notas à pressa. Um dia em que o Dr. Ferreira Pinto passou pela biblioteca durante o tempo de acesso dos alunos – o qual não era arbitrário – falei sobre uma colecção, pouco tempo antes conseguida dos serviços culturais franceses, através do Doutor Xavier Coutinho. Havia, numa sala anexa à biblioteca, uma secção onde eram colocados livros cuja consulta ou leitura era impedida à generalidade dos alunos. Os efeitos negativos do seu manuseio podiam fazer-se sentir em alunos que não tivessem certa estrutura cultural. Disse ao Dr. Ferreira Pinto do tipo de alguns volumes que eu tinha compulsado. Tratava-se de história das religiões. Claro que esses volumes foram para o inferno, como nós chamávamos à tal secção.

A sua dedicação a Guisande era constante, onde se deslocava todas as semanas. Muitas vezes substituía o pároco que tinha sido seu aluno. Um dia abordou o pro gresso da sua terra, uma paróquia rural do concelho da Feira. Ele tinha publicado um estudo monográfi co sobre a sua terra natal. Até descaiu em dizer que tinha contribuído substancialmente para obras na sua igreja.

Já depois de terminado o curso e na fase da aplicação da Concordata, convidou-me a acompanhá-lo em diligências a Oliveira de Azeméis e Fajões. No carro do Paço, apresentou reclamação dum legado feito por sacerdote meu familiar cujos sobrinhos tinham tomado posse dos bens respectivos sem terem título legal. Um acordo posterior levou a uma indemnização à diocese.

O senso pedagógico deste professor realizava, em relação a cada aluno, um conceito valorativo global. Julgo

Cónego Ferreira Pinto.

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entender que a formação humana integral capacitava os alunos tanto para enfrentarem as difi culdades da sua carreira sacerdotal, como para, no meio social onde se situassem, prestarem um serviço de qualidade dentro da cidadania. No meu tempo, contava-se que o Dr. Ferreira Pinto teria apoiado fi nanceiramente a formação académica do Dr. José Domingues dos Santos, conhecido político da Primeira República.

Um caso conheci directamente, por se ter passado com pessoa da minha confi ança, embora de curso posterior. Hoje é um advogado cotado do foro portuense. Era fi lho de caseiros agrícolas. Resolveu sair do Seminário, mas era, sem dúvida, invulgarmente inteligente. O Dr. Ferreira Pinto chamou-o e interrogou-o se precisava de ajuda para se licenciar. Não aceitou, conforme teve ocasião de me contar.

Preocupação semelhante ocorreu talvez dois anos depois. Outro estudante, do sul do Douro, foi despedido pelo Seminário por ordem do bispo D. Agostinho. Uma informação mal transmitida ao Paço por um responsável mal esclarecido criou essa resolução desastrada. Recordo-me de coincidir passar pelo Seminário e encontrar o Dr. Ferreira Pinto que quis desabafar comigo. Estava indignado pela injustiça cometida. Referiu-me ter mandado dizer para o Paço que a Diocese estava a saque. Tratava-se duma expressão forte, mas consentânea com o seu sentido de justiça. Contou-me ter chamado o aluno, informando-o para que ele não se tornasse um revoltado. Ofereceu-lhe apoio, mas a família tinha posses e não foi aceite a oferta. Este jovem viria a realizar-se como magistrado judicial.

Tive ocasião de assistir a uma marcada expressão de tristeza, quando um aluno da Maia, na véspera de receber ordens maiores, o diconado, foi denunciado por uma mulher. O processo foi suspenso. O aluno foi apoiado unanimemente, tendo o Dr. Ferreira Pinto tomado a defesa, mas tudo foi suspenso. Passados meses, foi concluído o inquérito que revelou a total falsidade de tal denúncia, portanto, caluniosa por expresso espírito de vingança. O aluno concluiu a sua carreira e foi sempre digno da estima de todos, sendo já falecido.

Havia muita fogosidade e travessuras próprias da idade, sem que se revelassem faltas de carácter. Se surpreendesse os mais travessos a pregar partidas aos

mais bisonhos, ria-se e, por vezes, lhe ouvi comentar que era bom para esses alunos acanhados abrirem os olhos. Na noite de véspera de Natal, a tradicional consoada era passada no seminário, porque os alunos tinham de participar no pontifi cal de Natal. Havia grande festa até com algazarra, com brindes dos alunos. O carinho dos alunos era sentido pelo Dr. Ferreira Pinto. Muitas vezes não continha as lágrimas. Eu tinha um condiscípulo, António de Sousa, de Marecos, Penafi el, que veio a fazer a sua carreira nos Hospitais Civis de Lisboa. Era inteligente, mas complicado e um tanto simples com os colegas. Recordo-me de ele ter moído a paciência dum professor de Filosofi a com a teoria da relatividade. Ora nós convencemos António de Sousa para fazer um brinde. Ele decorou uma página retórica de Alves Mendes, que andava pelas colectâneas, em forma anafórica, começando por “Não sei que encanto tem para nós”, ele desfi ava o texto sem vontade de parar. Foi preciso que colegas que estavam na mesa diante dele lhe pontapeassem as pernas para ele acabar. Na década de 20, encontra-se o Dr. Ferreira Pinto em sectores tão importantes como a imprensa católica, que se mantinha com difi culdades na confusão que a época viveu. Fez parte dos fundadores de A Palavra. Com o seu colega Manuel Pereira Lopes, pessoa admirada pela sua vigorosa inteligência e excepcional memória, fez parte dos fundadores do Colégio universal. Nas difi culdades criadas pela falta de estatuto jurídico da Igreja Católica, depois da República, a defesa dos bens diocesanos esteve entregue a um núcleo fi ável constituído pelo Dr. Ferreira Pinto, o P. Joaquim Ferreira Gomes, tio do futuro bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes e o P. Abílio Cardoso, mais tarde abade do Bonfi m. Esta incansável actuação em tão diversos campos sociais e culturais criou-lhe o ascendente que atingiu na diocese e na cidade do Porto. Foi dado o seu nome a um arruamento, reconhecendo o seu trabalho intelectual patente em várias publicações sobre instituições da cidade, as quais ainda hoje são uma referência em estudos históricos.

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“SOZINHA, TERRIVELMENTE SÓ”

21-4-70

Descobri-me na ogiva doirada

Da minha ilusão fulgente

E nos cristais de sonho reluzente

Vi pender, tremulante e ignorada

Minha figura opaca e silenciosa

Sozinha, terrivelmente só!

Como se fora o meio do Universo

Na escuridão do espaço

Senti minha figura só no infinito!

E o meu olhar imerso no cansaço

Olhava e via turvo o teu olhar bonito,

Sozinha, terrivelmente só!

Olhei em meu redor, mas não vi

Nem uma só estrela cintilante

Nas trevas que sentia, nem senti

Na opaca vibração dos meus sentidos

Da minha solidão desesperante

Um grito que alertasse os meus ouvidos,

Sozinha, terrivelmente só!

Procurei na imensidão, luar,

Algum sopro de vida perdida.

Incansável sondei o meu olhar

Mas vi meu gesto extinto

E só, terrivelmente só, ferida

Na minha alma opaca

Segui na ogiva doirada

Em pingentes de assombro .

Senti meu coração, senti!

Senti a minha alma apavorada

Nos escombros de mim

E no espaço doirado da minha ilusão

Segui meu coração, que já não tinha!

Sozinha, terrivelmente só!

Ilda Maria*

* Poeta.Faleceu em 20/07/1981

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Já perdeu muito da sua magia! Mas é, ainda, o sino que marca o passo do tempo na lentidão dos dias! As trindades, o toque para a missa (as primeiras, as segundas e as picadas), o anúncio das festas e dos baptizados e dos acontecimentos tristes, como os funerais. Ainda fala de alto. E este falar alto para todos teve um efeito pedagógico. Como o ar é leve e permeável os sons chegam longe. É um fenómeno interessante: Na minha aldeia fala-se muito alto. As conversas são para todos. É frequente eu ser acordado, de manhã, com as conversas dos vizinhos. As conversas dos vizinhos, ou o chilrear dos pássaros são um despertador que não precisa de corda. Exactamente como os pássaros que comunicam sem discrIcção, assim a gente da minha aldeia. Quem

não se lembra da Ana Rosa do Custódio que vivia uns bons cem metros acima da minha casa e que era um verdadeiro porta-voz sem comando, um canal informador de alegrias e infortúnios que fazia chegar a sua voz a todo o lugar: era a chegada do correio, a passagem da peixeira, do capador, a notícia dos acidentes; todas as boas e as más novas passavam pelas suas cordas vocais antes de entrarem nos ouvidos da vizinhança. Uma vez tive necessidade de pavimentar um espaço da minha casa e trouxe ao Porto, para que, vendo, pudesse reproduzir o que eu desejava que se fi zessse, um amigo antigo, desses que assentaram praça comigo nos bancos da escola primária. Era o Quim da Sofi a do Bernardo – um nome que é uma certidão de nascimento, mais um bilhete de identidade, mais uma árvore genealógica! Assinala o nome do seu titular, o da sua mãe e o do seu avô. Esse meu amigo é, hoje, pedreiro e é ele que me resolve, desde há muitos anos, os problemas que tenho para resolver na área da sua competência. Foi isso o que aconteceu, também, desta vez. Trouxe-o para que ele pudesse ver, com os seus olhos, o lajedo que tinha sido colocado na Rua S. Filipe de Nery, ali ao lado da Igreja dos Clérigos. Foi um espectáculo memorável. Em alguns minutos vimo-nos rodeados por dezenas de pessoas, à espera de ver a vítima. Media, gesticulava, dava passos, falava como se estivesse a descrever para toda a população da cidade, a técnica do assentamento de lajes! Como se estivesse sozinho em Além-do-Rio, a contar as peripécias do rancho onde o seu acordeão pontifi ca: o seu ar, o seu tom de voz, o seu entusiasmo de profeta, os seus gestos olímpicos, tinham uma intensidade distraída, virgem de convencionalismos citadinos. O importante era que estava ali com uma missão que o empolgava e trouxe a espontaneidade com que vive. Não sabia, nem tinha que saber que, noutros sitos, se fala mais baixo! Quem é que garante que falar baixo é que é normal, que este seu hábito é que está errado! Se se fala alto é porque é preciso. Lá, todos estão de acordo; ninguém o reprova. As pessoas não se aproximam para comunicar. O ar é o veículo que leva os recados gratuita e livremente. De janela para janela, de quintal para quintal, mas nunca se fala alto em lugares onde o senso reclama recato. E o que é que nos dá, hoje, a civilização.

* Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Serafi m Guimarães*

O SINO DA MINHA ALDEIA

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Malcriados que falam ao telemóvel como se estivessem sozinhos num deserto. Com a convicção, a arrogância, o desplante e o despudor como se o mundo inteiro tivesse necessidade de ser informado dos seus problemas. E ferem o silêncio que é de todos, nos sítios mais inconvenientes: nos teatros, nos comboios, nas assembleias, até nas igrejas! Aldeões disfarçados de gente fi na. Pobre mundo e pobre gente. O povo da minha aldeia está vingado!

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ÁLVARES, Telo (?-?). Vivia em 1135, pois a 14 de Junho desse ano ele e sua mulher Ouroana Mendes permutam com Garcia Odoris e sua mulher Sancha Pais uma terra que possuíam em Villa Palatiolo (Paços de Brandão), por outro na Lavandeira.

Bibliografi a Robert Durand, Cartulaire Baio Ferrado du Monastère de Grijó (XI-XII Siècles)

ALVES, Dionísio (1706-1776). O padre Dionísio Alves (do Marquinho) nasceu em Duas Igrejas a 6 de Setembro de 1706. Era fi lho de António Alves e Maria Fernandes. Foi pároco de Duas Igrejas, por duas vezes, durante 14 anos. Faleceu a 16 de Dezembro de 1776 com 70 anos de idade e foi sepultado dentro da igreja.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Breve Monografi a de Duas Igrejas do termo da Feira, Casa Nun’Álvares, Porto, 1936

ALVES, Dionísio (1672-1749). Natural do lugar de Fundo de Vila, Duas Igrejas, Romariz, onde nasceu em 1672. Foi pároco de Duas Igrejas durante 32 anos. Faleceu na sua casa a 31 de Outubro de 1749.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Breve Monografi a de Duas Igrejas do termo da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1936

ALVES, João Francisco (1767-1841). Nasceu no lugar da Quintã, Rio Meão, em 25 de Dezembro de 1767 e foi baptizado em 31 de Dezembro do mesmo ano. Era fi lho de Manuel Francisco Alves e de Joana Maria de Jesus, neto paterno de Manuel Francisco e de Ana Domingues de Jesus e neto materno de Manuel de Pinho e de Domingas Ferreira, do Seixo Branco, Válega. Foi subdiácono, não continuando a sua Ordenação. Faleceu a 10 de Agosto de 1841, com 74 anos de idade.

Bibliografi a David Simões Rodrigues, – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001 ALVES, José Martins (1903-?) Nasceu a 17 de Março de 1903, em S. Pedro do Paraíso, concelho de Castelo de Paiva, Foi nomeado pároco de Paços de Brandão em Fevereiro de 1939. Numa carta ele escreveu o seguinte: «Em Fevereiro de 1939, entrei como Pároco, e logo encontrei a igreja em estado de ruína. A população, constituída especialmente por operários da indústria corticeira, na qual se tem feito sentir uma forte crise, não tem possibilidades de juntar o dinheiro para a realização da obra de tão grande monta – a Consolidação e o Restauro da igreja Matriz…cujo Orçamento subirá a mais de 300.000$00».

DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE PERSONALIDADES FEIRENSES

Francisco Azevedo Brandão*

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local, é autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um Político de Espinho, O Campo de Aviação de Espinho, O Culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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Bibliografi a Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995

ALVES, Luís Gomes Ferreira (1904–1963).Descendente de considerada família, oriunda de Paços de Brandão», foi durante mais de trinta anos funcionário bancário no Porto, passando depois a dedicar-se à actividade de seguros de várias companhias. Cidadão bairrista e interessado por assuntos de etnografi a, na modalidade de danças e cantares da região da Feira, fundou em 1949, o Grupo Folclórico «Como Elas Dançam e Cantam em Paços de Brandão», que tantos êxitos havia de alcançar no país e no estrangeiro. Depois da sua morte a 17 Outubro de 1963, aos 59 anos de idade, o Grupo continuou sob a direcção de sua fi lha D. Maria Joana Ferreira Alves (a Joaninha Ferreira Alves). Após a morte desta, o Grupo continua sob a direcção de seu fi lho, Joaquim Ferreira Alves.

Bibliografi a Correio da Feira, 19.10 1963 e 26.10.1963

ALVES, Manuel (1753-1834). Nasceu no lugar da Presa, em Fiães, em 1753. Foi sacerdote e faleceu em 15 de Agosto de 1834 com 80 anos de idade, tendo sido sepultado na igreja dos Passais.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940

ALVES, Manuel José (1782-1809). Natural de Duas Igrejas, onde nasceu em 23 de Setembro de 1782. Era fi lho de Filipe Francisco Paiva e de Maria Rosa Alves. Era 2.º sobrinho e afi lhado do Padre Alves Moreira. Faleceu a 5 de Março de 1809, com apenas 27 anos de idade.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Breve Monografi a de Duas Igrejas do termo da Feira, Casa Nun’Álvares, Porto, 1936

ALVIM, Pêro Soares de (?-?). Descendente de cavaleiros, naturais de Terras de Basto, saído de um ramo familiar por bastardia dos de Riba de Vizela. Era casado com Maria Esteves da Lavandeira, tendo adquirido, por isso, terras e honras na freguesia de Lourosa, as quais, em 1288, estavam na posse de seu fi lho, Martim Pires Alvim.

Bibliografi a José Mattoso, O Castelo e a Feira (A Terra de Santa Maria nos séc. XI e XII). Editorial Estampa, 1989

ALVITES, Ederónio (?-?). Foi presor de terras na Terra de Santa Maria no século XI. Era casado com Trastina Pinioliz e ambos instituíram os Mosteiros de Pedroso e Sermonde, sob a invocação de S. Pedro. Trastina Pinioliz, já viúva, menciona no seu testamento de 1046, ser ela possuidora de bens em várias aldeias da região: Canelas, Travanca da Feira, Ovar Pereira Jusã, Avanca, Dentazes (Milheirós de Poiares), Vila Chã, Macinhata da Seixa e Ossela, todas da Terra de Santa Maria.

Bibliografi aJosé Mattoso, O Castelo da Feira (Terra de Santa Maria nos séc. XI e XII). Editorial Estampa, 1989

AMARAL, João da Afonseca do (?-?). Era pároco de Fiães em 1734, pois, nesta data benzeu e abriu ao culto a nova capela de N.ª S-ª da Conceição.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940

AMICUS, Soeiro (?-?), vendeu a Soeiro Godesteiz e a sua mulher Maria Pais, em 14 de Fevereiro de 1150, por 19 «bracales», os seus bens fundiários de Moselos.

Bibliografi a Robert Durand, Le Cartulaire Baio Ferrado du Monastère de Grijó (XI-XIII Siècles). Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1971

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AMORIM, Américo Alves (?-1953). Filho de António Alves Amorim e de D. Ana Pinto Alves, foi um dos sócios da fi rma «Amorim & Irmãos», fundada pelo seu pai em 1970. Era casado com D. Albertina Ferreira Amorim de quem teve os seguintes fi lhos: Albertina, Luzia, Margarida, Isaura, José, Joaquim, Américo e António. Américo Ferreira Amorim seria o líder mundial da indústria corticeira. Américo Alves Amorim faleceu em 1953.

Bibliografi a Hélder Cabrita, Américo Amorim – 50 Anos de Trabalho. Edição Sociedade Agrícola de Cortiças Flocor, S.A., 2002

AMORIM, António Alves (1832-1922). Nasceu na freguesia de Lourosa a 8 de Dezembro de 1832. Em 1870 abriu, em Vila Nova de Gaia, na rua dos Marinheiros, uma pequena fábrica de rolhas destinadas aos barris de vinho do Porto, em sociedade com a família Belchior. Em 1866 casou com D. Ana Rita Pinto Alves, de quem teve 9 fi lhos: Américo, José, Manuel, Ana, Joaquim, António, Henrique, Bernardina e Rosa. Nos princípios do século XX, António Alves Amorim muda-se para Santa Maria de Lamas e aí instalou «um pequeno negócio de produção de rolhas, com pouco mais do que a ajuda dos fi lhos, de um punhado de operários e de duas garlopas». Por volta de 1905/1906, descobriram-se novas utilizações na indústria corticeira, entre as quais palmilhas, fi ltros de cigarro, armações de chapéus, invólucros de charutos, etc., expandindo-se assim o comércio da cortiça e, consequentemente, a fábrica de António Alves Amorim esteve em franco desenvolvimento por volta de 1913, até que, a 11 de Março de 1922, nasceu a fi rma «Amorim & Irmãos», da qual foram sócios os seus fi lhos: José, António, Américo, Manuel, Henrique, Joaquim, Ana, Rosa e Bernardina. António Alves Amorim faleceu a 11 de Outubro de 1922. Em 1929, apesar das difi culdades impostas pela crise desse ano, a empresa continuou a apresentar-se como «a maior fábrica de rolhas do Norte de Portugal» e já naquela altura estabelecia relacções com o Japão,

Alemanha, USA, França, Brasil, Inglaterra, Holanda, Bélgica, etc. A 21 de Março de 1944 um grande incêndio devastou por completo a fábrica, mas logo depois foi reconstruída com a ajuda dos 350 operários e em Maio do ano seguinte já estava a laborar. Em Setembro de 1953, Américo Ferreira de Amorim, fi lho de Américo Alves de Amorim, falecido em 1953, e de D. Albertina Ferreira de Amorim, falecida em 1951, entrou para os quadros da fi rma, convidado por seu tio, Henrique Alves de Amorim, sendo hoje o líder industrial da cortiça a nível mundial.

Bibliografi a Hélder Cabrita, Américo Amorim – 50 Anos de Trabalho. Edição Sociedade Agrícola de Cortiças Flocor, S.A., 2002

AMORIM, Henrique Alves (1902-1977). Filho de António Alves Amorim e de D. Ana Pinto Alves, foi um dos sócios da fi rma «Amorim & Irmãos, fundada por seu pai em 1870 Foi grande benemérito da freguesia de Santa Maria de Lamas, tendo oferecido a esta terra inúmeras infra-estruturas, equipamentos sociais, educativos, culturais e desportivos. Fundou, na década de 50, o Museu de Santa Maria de Lamas, ao qual dedicou grande parte da sua vida. Como amante da Arte, dedicou-se à recolha de um imenso espólio sacro que está exposto no Museu. Doou o Museu à Casa do Povo da Freguesia, que ainda o tutela. A 5 de Maio de 1959, fez doação a esta instituição de um vasto conjunto de bens, acto que foi inspirado pelo seu conterrâneo e então Ministro das Corporações, Dr. Veiga de Macedo que, «depois de ponderar todas as razões aduzidas, em seu despacho de 11 do mês de Agosto, autorizou a Casa do Povo de Santa Maria de Lamas, a aceitar a doação que o benemérito Henrique Alves Amorim, doador, se propunha fazer-lhe». Entre os bens encontrava-se «um edifício destinado a Museu, com todo o seu recheio, sito no lugar do Souto, de Santa Maria de Lamas, ao fundo do parque», conforme consta na escritura de Doação. Assim a Casa do Povo destinava-se a «possibilitar a melhoria social do meio, no aspecto material, cultural e moral», sendo um dos outros aspectos contemplados o da «realização de fi ns

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culturais e recreativos consignados pela actual legislação às Casas do Povo, entre os quais o «desenvolvimento do gosto artístico do povo». Em 1952, foi agraciado com a Comenda de Ofi cial da Ordem de Instrução Pública, pelos relevantes serviços prestados à sua terra. Faleceu solteiro em 1977.

Bibliografi a Hélder Cabrita, Américo Amorim – 50 Anos de Trabalho. Edição Sociedade Agrícola de Cortiças Flocor, S.A., 2002;Prospecto ilustrado do Museu de Santa Maria de Lamas

AMORIM, Jorge Fernando Coelho de (?-1938). Nasceu em Mozelos, concelho da Feira, na Casa da Quinta e faleceu na mesma casa a 23 de Junho de 1938.Foi médico do partido municipal da beira-mar, da Caixa dos Ferroviários do Vale do Vouga e director do Hospital-Asilo de Nossa Senhora da Saúde de S. Paio de Oleiros, concelho da Feira, tendo deixado o seu nome como exímio operador cirúrgico.

Bibliografi a. Correio da Feira de 2 de Julho de 1938

ANDRADE, Abel Pereira de (1866-1958). Nasceu em Vila do Conde a 5 de Outubro de 1866. Era fi lho de José Maria Pereira de Andrade, negociante e de D. Custódia de Freitas Andrade. Frequentou o Colégio da Formiga, em Ermesinde, continuou no Seminário de Braga e formou-se em Teologia (19.6.1891) e Direito (19.6.1896). Doutorou-se em Direito (23.1.1898), foi lente das Universidades de Coimbra e Lisboa, leccionando Direito Penal, tendo sido Director da Faculdade de Direito na Universidade da Capital. Exerceu ainda a Advocacia e os cargos de Vogal no Tribunal de Contas, de Director do Instituto de Criminologia e de Juiz do Supremo Tribunal Administrativo. Tem vasta bibliografi a jurídica e diversas obras de carácter político e fi lósofi co. Em 1897 ingressou

na Administração Pública sendo nomeado secretário geral do Governo Civil de Santarém, passando depois a Director Geral da Instrução Pública (1902-1906), onde desenvolveu uma acção importante, nomeadamente através da publicação e direcção do Boletim da Direcção - Geral de Instrução Pública. Foi Presidente da Federação Nacional das Instituições de Protecção á Infância e, no período do Estado Novo, teve intervenções em defesa da família, de acordo com os princípios da doutrina social cristã. Foi membro do Partido Regenerador e quando se deu a cisão franquista manteve-se fi el a Hintze Ribeiro, atitude que nunca lhe foi perdoada por João Franco, que, depois de ter sido nomeado primeiro-ministro, demitiu-o de Director Geral da Instrução Pública. Foi pela primeira vez eleito deputado em 1899, pelo círculo da Feira (juramento a 10.1.1900). Foi ele juntamente com o deputado Fernando Martins Carvalho, que apresentou na sessão de 24 de Abril de 1891 o projecto de lei da eliminação do Concelho de Espinho, que tinha sido desanexado do da Feira um ano antes. Como deputado vem mencionado no Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1834-1910 vol.1, coordenado por Maria Filomena Mónica, na entrada assinada por Fernando Moreira nos seguintes termos: “foi pela primeira vez eleito deputado em 1899, pelo círculo uninominal de Vila da Feira, (juramento a 10.1.1900.) Em 1900 representou o círculo uninominal da Covilhã (juramento a 7.1.1901) e em 1901 o círculo plurinominal de Castelo Branco, sendo sucessivamente eleito para essa circunscrição em todas as eleições até 1908, prestando juramento a 8.1.1902, 4.10.1904, 10.4.1905, 2.10.1906 e 4.5.1908, não tendo esta formalidade sido cumprida no que concerne à eleição geral de Abril de 1906 porque a 38ª legislatura durou apenas 5 dias. Em Setembro de 1910 foi elevado a par do reino, mas não chegou a tomar posse. Cedo se revelou um importantíssimo reforço da bancada regeneradora. Não só integrou inúmeras comissões, como se tornou a fi gura cental de um dos mais importantes debates anuais do Parlamento: a discussão do Orçamento Geral do Estado. Proferia longos discursos, quase organizados em capítulos, recheados de estatísticas e tecnicamente sustentados,

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evidenciando estudo e conhecimento profundo das matérias económico-fi nanceiras. Se bem que as questões orçamentais sejam o principal objecto da intervenção parlamentar de Abel de Andrade, outros assuntos mereceram a sua atenção. O seu primeiro discurso, em 27.1.1900, referente ás reformas da Justiça do ministro José de Alpoim, traçou um quadro apocalíptico do estado da Nação e foi de tal forma feroz que provocou sussurro no hemíciclo, uma situação pouco usual numa estreia parlamentar. Na sua primeira sessão legislativa são ainda de destacar os discursos sobre a anarquia dos sanitários (12.3.1900) e o imposto de mercês (6.6.1900) Depois vieram os anos de poder dos regeneradores, desde meados de 1900 até Outubro de 1904, e então destacou-se como um dos deputados mais empenhados na defesa de Hintze Ribeiro. Nesse período salientou-se na discussão do regime bancário ultramarino, considerando que “as colónias representam no momento actual uma condição da nossa existência politica autónoma, no dia em que desaparecerem as colónias começa o fi m da Nacionalidade Portuguesa” (14.3.1901), e na defesa da repressão da emigração clandestina como forma de prosseguir a colonização interna. Por último, Abel de Andrade acompanhou o fi m da monarquia quase sempre na oposição parlamentar.Multiplicaram-se as intervenções sobre diversas áreas do debate político: ataque ao chefe progressista face à catastrófi ca evolução política partidária (23.8.1905); defesa da liberdade de imprensa (28.8.1905 e 2.4.1907); combate a Driesel Shroeter no Governo (6.10.1906); rejeição da reforma da contabilidade pública (7.11.1906); defesa da organização cooperativista a fi m de levar por diante o projecto de “casas baratas” destinadas aos operários, para o que invocou as experiências italiana, alemã e norueguesa (28.8.1909); contestação do projecto de organização da Caixa Geral de Depósitos (28.8.1909). Um dos momentos mais signifi cativos destes últimos anos ocorreu em 1906, quando na sessão de 24 de Outubro, pronunciou um importante discurso denunciando a decadência do regime face à implosão dos progressistas, ao ascenso do republicanismo e à irresponsabilidade de João Franco, vindo dois dias depois a defender os

partidos monárquicos tradicionais da acção destrutiva de João Franco. Estes dois discursos levaram João Franco a tomá-lo como mira de ataque aos regeneradores, pelo que, nas sessões de 29 e 31 de Outubro, o principal tema político no Parlamento foi a sua exoneração de Director Geral da Instrução Pública. Talvez por isso Abel Andarde, que até aí não tivera qualquer intervenção parlamentar sobre a instrução pública, passasse a ter diversas iniciativas nessa matéria, sendo as mais relevantes em 23.9.1906, para aumento de vencimento aos professores primários, e em 7.9.1909, ao votar uma proposta do republicano João de Meneses para constituir uma comissão parlamentar pluripartidária que estudasse uma profunda reforma da instrução secundária. Depois do 5 de Outubro apoiou o novo regime republicano, mas afastou-se da vida política. Com o Estado Novo foi procurador à Câmara Corporativa e assessor do respectivo presidente. Faleceu em Lisboa a 6 de Maio de 1958.

Bibliografi a Correio da Feira, 1898-1901; Maria Filomena Mónica, Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1834-1910 vol 1º, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Assembleia da República.

ANDRADE, António Alves de (1894-1939). Natural da freguesia do Souto, foi pároco na freguesia de Travanca. «Era um integralista da velha guarda». Faleceu em Travanca a 15 de Setembro de 1939, com 45 anos de idade, tendo sido sepultado em Souto.

Bibliografi a Jornal Tradição, 30.9.1939 e 7.10.1939

ANDRADE, Benjamim Gama de (1888-1970). Nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil em 24 de Março de 1888. Oito anos depois, em 1896, veio com seus pais para a vila da Feira donde estes eram naturais e possuidores de «vastas propriedades». Era fi lho de José António de Andrade, fundador da

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Humanitária Associação dos Bombeiros Voluntários da Feira. Fez os seus estudos no Colégio Boavista e no Instituto Comercial do Porto, tendo começado a exercer as funções na Recebedoria do concelho da Feira. Foi presidente de direcção, durante alguns anos, do Clube Feirense, um dos fundadores do Orfeão Feirense e fi gura de destaque do Grupo Cénico Feirense. Em 13 de Fevereiro de 1919, quando as forças militares, fi éis ao governo marchavam nas proximidades de S. João da Madeira para o Porto, onde tinha sido proclamada a Monarquia do Norte por Paiva Couceiro, o coronel comandante Mendes dos Reis nomeou Benjamim Andrade Administrador do concelho da Feira que exerceu até Abril desse ano. Era casado com D. Elvira Ferreira Maia de Andrade, da qual teve dois fi lhos: Alfredo Maia e Maria Carolina. Faleceu em 8 de Junho de 1970.

Bibliografi a Correio da Feira, 13.6.1970

ANDRADE, Ernesto Beleza de (1885-1968). Natural da Foz do Douro, Porto, era formado em Direito e foi administrador do concelho da Feira. Pertenceu à geração dos estudantes que realizou a célebre greve académica de 1907 e que teve larga repercussão em todo o país. Foi chefe de gabinete de vários ministros e foi por duas vezes governador civil. Foi ainda Director Geral da Universidade de Lisboa. Faleceu na capital em Abril de 1968 com 83 anos de idade, estando sepultado em Almada.

Bibliografi a Correio da Feira, 13.4.1968

ANDRADE, Fernão de (?-?). Fidalgo que vivia na Quinta do Rego no solar dos Andrade em 1549, em Santiago de Rio Meão, segundo um inquérito elaborado naquela data sobre um diferendo entre o mosteiro de Pedroso e o Colégio da Companhia de Jesus de Coimbra, sobre os direitos da apresentação do abade de Santo Tirso de Paramos em que ele é testemunha e que a seguir se transcreve:«Fernão de Andrade, cavaleiro fi dalgo morador em Rio Meão, testemunha a que o dito Inquiridor deu juramento sobre os Santos Evangelhos em que pôs a mão direita

e prometeu de dizer a verdade e perguntado pelos costumes e cousas dele disse a tudo nihil.Perguntado ele testemunha pelo conteúdo na dita petiçam que lhe foi lida disse…que hera verdade que a jgreia de Paramos he da apprentaçam do mosteiro de pedroso que hera outossi verdade que quinta feira esta passada derradeiro dia do mês de Fevereiro ele testemunha chegara à Jgreia de paramos e vira ahi estar o prior e outros padres do mosteiro de pedroso os quais diziam que estavam na posse da dita jgreia por pêro Vaz ser morto que por isso tomarão posse e na sexta feira logo seguinte ele testemunha tornara à dits Jgreia e que vira estar nella ao dito Francisquo Roiz mas que ele testemunha nam sabia como nella estava nem do geito que nella elle Francisquo Rodrigues entrara e da dita petiçam mais nam disse. Francisquo Borges tabaliam que isto escrevi. 4 de Março de 1549».

Bibliografi a David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001

ANDRADE, Jacinto Corrêa (?-?). Natural de Tarei, foi pároco do Souto, da Vila da Feira, de Paramos e de outras freguesias. Faleceu nos fi ns do século XIX.

Bibliografi a Jornal Tradição, 8.8.1936

ANDRADE, Francisco Leite de (?-1888). Natural de Cabomonte, foi pároco da freguesia do Souto e fundador da fi larmónica da terra. Faleceu em 1888.

Bibliografi a Jornal Tradição, 8.8.1936

ANDRADE, João António de (?-?). Natural da cidade de Guimarães, veio para a Vila da Feira onde casou com D. Inês Albertina Gama de Andrade a 17 de Novembro de 1884. Foi ele que, na qualidade de presidente da Comissão Organizadora para a fundação da Associação Humanitária dos Bombeiros

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Voluntários da Feira, dirigiu um convite, com data de 20 de Abril de 1921, aos sócios fundadores da Associação, para se reunirem em Assembleia Geral no Clube Feirense no dia 1 de Maio desse ano, com a fi nalidade de se proceder à leitura dos Estatutos, sua aprovação e consequente fundação da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Feira, bem como à eleição da comissão instaladora. Assim, João António de André foi sempre considerado o fundador desta Associação de Bombeiros Voluntários, no dia 1 de Maio de 1921.

Bibliografi a António Lamoso Regal de Castro, Factos e Personalidades da Feira e Concelho 1917 a 1950. Edição do autor, 1991;Correio da Feira, 19.11.1976

ANDRADE, Frei Manuel Pereira de (?-?). Era vigário de Rio Meão em 21 de Julho de 1669.

Bibliografi a David Simões Rodrigues, Rio Meão – a Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 2001

ANNES, Artur Gonçalo (?-?). Bacharel formado, foi confi rmado pároco da Freguesia de Guisande em 12 de Janeiro de 1504

Bibliografi aPadre António Ferreira Pinto, Defendei Vossas Terras – Monografi a de Guisande. Edição da Junta de Freguesia de Guisande, 1999

ANNES, Martin (?-1503). Foi pároco da Freguesia de Guisande, tendo falecido em 13 de Fevereiro de 1503

Bibliografi a Padre António Ferreira Pinto, Defendei Vossas Terras – Monografi a de Guisande. Edição da Junta de Freguesia de Guisande, 1999

ANNES, Pedro (?-?).

Era tabelião na Feira na era de 1395, ano de 1357, pois a 27 de Agosto dessa era e ano fez “um instrumento de posse a João Annes, Prior do Mosteiro de Pedroso, das herdades do dito Mosteiro sito nos termos de Canidelo, Gualtar (Fiães), a respeito das quais tinham, em outro tempo, litigado Martim Peres Alvim, Cavaleiro, com D. João Diniz, Abade do dito Mosteiro; e achanda-se que pertenciam a este Mosteiro, o dito Abade e o dito Cavaleiro se compuseram de maneira que o mesmo Cavaleiro e sua mulher D. Margarida, seu fi lho João Perez Alvim ou àquele a quem fi casse a quinta da Lavandeira (Fiães), fi cassem também as ditas herdades emprazadas pelos foros e porções declarados no seu prazo; e que as ditas propriedades, acabadas as ditas três vidas, fi cassem livres do dito Mosteiro, pelo que o dito Prior, por morte do último declarado no prazo, foi tomar a dita posse”. Este documento foi feito no reinado de D. Pedro I.

Bibliografi a Padre Manuel F.de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira, Porto, 1939-1940.

ANTÓNIO, André (?-?). Era pároco da freguesia de S. João de Ver em 1565.

Bibliografi a Padre Jorge de S. Paulo, O Convento da Feira. Revista Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 63 /Julho, Agosto e Setembro), 1950

ANSOIZ, Paio (?-?) E Riquito Zoleimar, venderam a Telo Cides e a sua mulher Dordia Fernandes, em 28 de Dezembro de 1097, por um soldo, uma vaca e diversos outros bens, duas parcelas de terra situada em Moselos.

Bibliografi a Robert Durand, Le Cartulaire Baio Ferrado du Monastère de Grijó (XI-XIII Siécles). Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1971

ARANHA, Manuel da Silva (?-?). Vivia em 1732, segundo Carta de Familiar

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que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve:«natural e morador na freguesia de S. Pedro de Canedo, Feira; fi lho de Manuel da Silva e de Isabel Fernandes, naturais e moradores em Canedo; neto paterno de Clemente Aranha e de Natália da Silva, e materno de Lourenço Gonçalves e de todos igualmente maturais e moradores em Canedo, à excepção da avó materna nascida na freguesia de Santa Maria de Fiães, Feira; casado com Luísa Tavares, natural de Framil, Canedo, fi lha do capitão António Dias Mano, Familiar do Santo Ofício, e de Ana Tavares, naturais e moradores em Framil, neta paterna de Manuel Francisco Mano, fi lho de Domingos Gonçalves e de Catarina Francisca, e de Maria Fernandes, fi lha de Baltasar Dias e de Maria Fernandes, todos também naturais e moradores em Framil, e materna de António Tavares, fi lho de Diogo Fernandes e de Guiomar Tavares, naturais de Sandim de Baixo, Feira (hoje Gaia), e de Maria Pinto, moradora, com seu marido, em Framil, fi lha de Domingos Gonçalves e de Maria Pinta, naturais de Carvoeiro, Canedo.Carta de Familiar de 19 de Fevereiro de 1732. – A.N.T.T. – m. 104, n.º 1922»

Bibliografi a Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º160 Outubro, Novembro e Dezembro), 1974

ARAÚJO, João de (?-?). Foi pároco da Freguesia de Guisande, tendo permutado com o padre Artur Gonçalo Annes em 28 de Junho de 1505.

Bibliografi a Padre António Ferreira Pinto, Defendei Vossas Terras – Monografi a de Guisande. Edição da Junta de Freguesia de Guisande, 1999

ARAÚJO, Joaquim Pinto de (1857-1948). Natural de Barcos, Tabuaço, Beira Alta, onde nasceu a 1 de Dezembro de 1857, cedo veio para a Vila da Feira. Era fi lho de Jacinto Araújo e de D. Maria de Jesus. Farmacêutico de profi ssão, tomou de trespasse,

em 1887, à viúva D. Maria José Rodrigues da Graça e seus fi lhos, a farmácia que tinha pertencido a Bernardino José da Costa Rifa, uma vez que ele próprio era casado com uma das fi lhas do casal, D.Henriqueta Rifa. A Farmácia Araújo foi, a partir dessa data, lugar de tertúlia e de convivência onde se juntavam personalidades de destaque como o Dr. Domingos Trincão, Vitorino Coimbra, Armando Gonçalves de Sá, António Luís Toscano, Dr. Joaquim Moreira, Dr. Joaquim Leitão e muitos outros que discutiam os problemas da terra. Faleceu em 30 de Maio de 1948, com 92 anos de idade.

Bibliografi a António Lamoso Regal de Castro, Factos e Personalidades da Feira e do Concelho – 1917 a 1950. Edição do autor, 1991

ARAÚJO, Frei Semeão de (?-?). Era vigário de Rio Meão, segundo o Tombo de 1654 e é testemunha e mostra para identifi cação e descrição as propriedades da Comenda em tombação nesta data.

Bibliografi a David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História, Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001

ARIAS, Diogo (?-?). Doa, em Maio de 1137, ao Mosteiro de Grijó, as «Villae» de Sá e de Casal, um pomar e seus bens de Covelos e de Cardielos, a 1/22 parte do que possui em Rio Meão, assim como uma casa com a sua vinha na Feira.

Bibliografi a Robert Durand, Le Cartulaire Baio Ferrado du Monastère de Grijó (XI-XII Siècles). Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1971

ASSUNÇÃO, David Ferreira de (1920-?). Nasceu na freguesia de Souto, Feira, a 24 de Março de 1920. Completou o curso de Teologia e mais tarde exerceu as funções de gerente do Grémio da Lavoura da Feira e de S. João da Madeira. Foi adjunto

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da Direcção da Cooperativa de Lacticínios da Feira e de S. João da Madeira e presidente do Conselho Fiscal da União das Cooperativas dos Produtores de Leite de Entre Douro e Minho. Em 1969, era director e secretário-geral da Federação dos Grémios da Lavoura de Entre Douro e Minho e vogal da Secção de Cereais da Corporação da Lavoura, acumulando estas funções com as de membro do Conselho Fiscal da Celnorte – Celulose do Norte. Como procurador à Câmara Corporativa, vem mencionado no Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1935-1974, Vol I, (A – L), da direcção de Manuel Braga da Cruz e António Costa Pinto, com verbete assinado por José Tavares Castilho e que diz o seguinte:«Foi procurador à Câmara Corporativa na X Legislatura 81969-1973), tendo pertencido à 2.ª Subsecção (Cereais) da Secção III (Lavoura), como representante das entidades patronais, dadas as sua funções directivas na federação de grémios já referidos. Durante a legislatura, subscreveu o parecer n.º 13/X – actividade de seguros e resseguros (ACC, n.º 36, 18.7.1970) e parecer subsidiário da Secção de Lavoura, consultada sobre o capítulo V «Agricultura, silvicultura e pecuária» do parágrafo 4.º «Objectivos e políticas sectoriais» da parte referente ao Continente e Ilhas Adjacentes do projecto do IV Plano de Fomento para 1974-1979 (ACC, n.º 176, 26.10.1973).

Bibliografi a Manuel Braga da Cruz e António Costa Pinto, Dicionário Biográfi co Parlamentar, 1935-1974, Vol. I, (A – L),. Edição do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Assembleia da República, 2004

ASSUNÇÃO, Domingos Ferreira de (?-?). Era pároco da freguesia de Souto de 1861 a 1891. Oriundo de uma família de Cabomonte, foi um dos párocos que mais contribuiu para o progresso de Souto. Para isso rodeou-se de pessoas empreendedoras como o comendador Inácio Monteiro, o vereador da Câmara da Feira José dos Santos Correia Marques e João Alberto Nunes que promoveram algumas obras de monta naquela freguesia: a construção de uma nova igreja, que foi inaugurada em 1868 pelo bispo de

Coimbra, D. Manuel Correia de Bastos Pina, o cemitério paroquial, a construção da Capela das Almas, levada a cabo pelos Brandões e a maior parte das estradas que cruzam hoje a freguesia. Foi ainda um dos fundadores da Sociedade Recreativa Soutense, em 1875. Bibliografi a Padre Albano Alferes, Párocos de Souto. Correio da Feira, 8.6.1979 e 15.6.1979;Jornal Tradição, 7.11.1936

ASSUNÇÃO, Manuel Ferreira de (1927-1979). Natural da Vila da Feira, foi industrial e «um estimado e dedicado feirense, tendo feito parte diversas vezes da direcção da Humanitária Associação dos Bombeiros Voluntários da Feira e presidente da Associação Columbófi la do concelho da Feira». Era casado com D. Margarida Rodrigues Leite de quem teve três fi lhos: Vítor Manuel, Olga Maria e Margarida de Assunção. Faleceu em 16 de Agosto de 1979.

Bibliografi a Correio da Feira, 24.8.1979

AUSALONIS, Paio (?-?) E sua mulher Riquito venderam Odorio Cides e a sua mulher Sancha, em 25 de Dezembro de 1099, por 4 «modios», uma parcela de terra situada em Moselos. Bibliografi a Robert Durand, Le Cartulaire Baio Ferrado du Monastére de Grijó (XI-XIII Siècles). Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1971

AVELAR, João Pinto da Conceição (1807-1889). Nasceu em Fiães em 13 de Maio de 1807. Foi Juiz de Paz durante muitos anos em Fiães.

Bibliografi a Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940

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A CASA

O ouro germina na fome,ateia o fogo que ameaçaos teus e os meus dias.

E assombram, as aves nocturnas,o sono denso dos filhos.

Mas de pé sobre a terra, contigo,vou erguendo esta morada,construindo pedra a pedraa casa dos dias por vir.

João Pedro Mésseder*

* Nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerceu a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.

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1907-2005

Carlos A. Moreira*

De seu nome completo António Lamoso Regal de Castro. Nasceu na Vila da Feira, no lugar das Eiras, bem perto do chafariz, em 19 de Novembro de 1907. Moço esperto, reguila e já livre. Fez a instrução primária, da primeira à quarta classe, e aprendeu com facilidade. Foi mesmo bom aluno e candidato a ”distinção”, como então se usava classifi car os melhores. Entre outros atributos tinha uma caligrafi a irrepreensível que conservou até ao fi m. Escrevia igualmente de uma forma inteligível, objectiva e correcta. Era também bom nas contas: ainda recentemente, por vezes, gostava de competir em rapidez com as máquinas e de ganhar. Manifestava prazer neste exercício. Sobretudo as qualidades que evidenciava davam para acompanhar o Professor Manuel Marques, seu mestre e a pedido deste, em aulas de recuperação de alunos mais atrasados. E por via dessa sua intervenção, frequentou as casas conhecidas de alguns colegas e amigos que recordava com saudade.

Mas, três meses depois de terminar a escola primária, tinha dez anos e já calcorreava com atenção a Rua Direita, abaixo e acima, na luta pela vida: primeiro e por indicação do seu professor e amigo, já identifi cado, adstrito ao cartório do escrivão notário António Soares Vila Nova que se situava junto à Câmara e em continuação desta para norte. Este edifício possuía uma traça clássica, característica, idêntica à do da edilidade, com as mesmas varandas, iguais portas e janelas que, no início da década de cinquenta, foi destruído por um violento incêndio. Em consequência foi demolido para dar lugar a um novo traçado da Rua do Dr. Vitorino de Sá no seu trajecto actual, com início na Praça da República. Deste seu posto de observação, bem no centro da Vila da Feira de então, onde tudo se passava, ia lendo os acontecimentos e as entrelinhas, entendendo as inclinações da época, buscando o seu espaço e um rumo. Aprendendo a distinguir o que era essencial do acessório. Completando a aprendizagem. Havia de abandonar este primeiro emprego quando, aos dezasseis anos e por motivo fútil, o castigaram com uma bofetada, com isso o ofendendo. Ressentido, abandonou o emprego. Já na altura tinha consciência dos limites que decorriam da dignidade e do respeito que este atributo do Homem implicava, o qual passava pela exigência que cada sujeito colocasse nos actos que lhe eram dirigidos, para o efeito de os reconhecer e aceitar; ou, simplesmente, por os rejeitar. Respeitava, mas achava-se com o direito de para si reivindicar igual deferência. Nisso punha a maior exigência que o havia de acompanhar a vida inteira, de que retirava todas as inerentes consequências. Possuía uma vontade afi rmativa. Era peremptório e rigoroso na análise dos comportamentos. Pronto a anotar os deslizes e a do facto retirar todos os efeitos. Por via disso, rompia com facilidade com quem não preenchesse as condições que observava e preferia. Mas para melhor entender a personalidade de António Lamoso importa talvez avaliar ou imaginar, ainda que com limitações inerentes à pretensão e data do texto, a densidade e especifi cidade do ambiente que então, por volta de 1918, se respirava em Vila da Feira, chamando à colação os acontecimentos internacionais, nacionais e locais que provavelmente o * Jurista do Instituto Nacional de Saúde.

Genro de António Lamoso.

ANTÓNIO LAMOSOCENTENÁRIO DO NASCIMENTO

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condicionavam. E desde logo a 1.ª Grande Guerra Mundial que devia ter terminado há pouco ou estava a chegar ao fi m (armistício de 11 de Novembro de 1918). Portugal e a Vila da Feira com os seus próprios fi lhos, nela dolorosamente participaram. As notícias da violência e da desumanidade sem limites que presidiam às frentes de batalha, decorrentes da efi cácia dos novos processos de guerra ensaiados, eram incompletas e cada vez mais agravadas e iam: do uso desumano de gases

venenosos à resistência nas trincheiras; mas também envolvia o recurso a submarinos e aos aviões como novos meios de fazer a guerra (em relação aos quais não havia armas de oposição conhecidas), o que representava um perigo diferente e imprevisto para quem se aventurava a descoberto no mar ou em terra. Para além de fragilizar os planos de defesa convencionais, o uso destes novos meios condicionava perigosamente o abastecimento dos que estavam na frente. Tudo a exigir dos soldados e a cada dia, renovados e inimagináveis sacrifícios. Eram só motivos de perplexidade e alarme para os que permaneciam na extensa retaguarda, também em Portugal e em Vila da Feira. Acresce que a implantação da República, que ocorrera em 1910, signifi cara a total alteração do paradigma social e político até então vigente em Portugal e deve ter tido uma viva e prolongada incidência local que não pode menosprezar-se. A Feira era conhecida, nos concelhos vizinhos, como a “terra dos fi dalgos”. Os brasões ainda hoje disseminados atestam a razão da referência. Gente que tinha sido até aí infl uente e fora especialmente atingida nas suas prerrogativas; os traumas decorrentes não podiam estar ainda

sanados. Os acontecimentos mais relevantes têm como pano de fundo essa realidade. Os novos detentores do poder não se escusavam ao confronto, nem às eventuais picardias e humilhações; os visados logo reagiam segundo a onda e a fl utuação que propicia. O episódio a que assistiu da queima da bandeira republicana, por ocasião da chamada Monarquia do Norte, é apenas um exemplo disso. E é de presumir que, do mesmo modo, a Feira não tivesse recuperado do abalo originado pela penosa formação do concelho de Espinho (1899). A

António Lamoso Regal de Castro.

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Vila da Feira constituía ela própria um concelho que a autonomia concedida vinha afectar na sua integridade. A então freguesia e praia de Espinho, frequentada na época balnear por muitos naturais, nele assumia um relevo assinalável do ponto de vista económico e social. Era a ”jóia” concelhia. Daí as naturais reacções de favorecimento ou de oposição a que o acto dera origem mesmo intra muros; as violentas polémicas jornalísticas envolvendo gente reconhecida de ambos os lados; as divisões, as vinganças e rupturas insanáveis entre as classes dominantes da época, incidentalmente alinhadas em campos opostos. E justifi cam o próprio levantamento popular a que deu origem em Vila da Feira. As notícias que até nós chegaram por tradição oral e as que estão

documentadas em literatura da época demonstram a implantação e força desses movimentos e a adesão popular que suscitaram. Consumado o acto de criação do concelho de Espinho, ainda houve ânimo para uma posterior e gorada reacção em tentativa desesperada de fazer regredir a situação. A ocorrência destes acontecimentos num curto espaço de duas décadas, não podia deixar de marcar com intensidade a consciência social e política nacional e local que aqui sobretudo nos interessa. As feridas estavam verdes, ainda sangravam. Não admira que as ”notícias”, de natureza diversa, se sucedessem e, mesmo quando pouco seguras e/ou mal avaliadas, produzissem o efeito de um alarme em sensibilidades

Corpo Activo dos Bombeiros Voluntários da Feira - 1927

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assim despertas, com facilidade assumindo um impacto desmedido. As próprias condições económicas vigentes de tão difíceis não favoreciam a tranquilidade das populações, sempre à espera de uma qualquer notícia que as viesse agravar. É nesta conjuntura que António Lamoso inicia a sua actividade no cartório do Tabelião, serviço público frequentado por gente que conversa, ávida de conhecer, que entra e sai, traz e leva a notícia; serviço ele próprio habitado por pessoas que não eram indiferentes, não passavam ao lado da política, nem dos problemas. Pessoas atentas algumas vezes empenhadas que muito devem ter contribuído para a formação da sua personalidade. Por vezes, quando chegavam as notícias do “golpe”, por aqui logo suscitando efeitos contraditórios, já se ouvia o galope na calçada e o cavaleiro a apregoar a quem vigiava que, em Lisboa, tinha ocorrido uma reacção que o conjurara. Os acontecimentos, as notícias atiçadas e os efeitos de vindicta emergentes

eram, pois, por vezes efémeros. Contava outros episódios da política e tricas a que assistiu curioso do seu posto de trabalho, bem no centro, junto à Câmara, cujos protagonistas conhecia e que tiveram uma particular incidência em Vila da Feira. E ele era um espectador privilegiado, arguto e credível. Foi assim que foi delineando os seus interesses, formando a sua vontade e personalidade. Já vimos que sabia escrever bem e tinha uma caligrafi a irrepreensível e certa- mente também porque era notado pela sua vivacidade, seriedade e maleabilidade. Um dia um amigo bastante mais velho, naturalmente por nele reconhecer capacidades que ele próprio não tinha, pediu-

lhe para fazer em seu nome uma carta de amor a uma conhecida donzela por não se sentir com ânimo para a abordar pessoalmente. E não é que surtiu o efeito desejado. E do namoro se fez o casamento! Só muito mais tarde a cena foi desmontada e passou a saber-se pelo casal envolvido a verdadeira origem de tão decisiva epístola. Entre amigos, facilmente, o facto passou a ser motivo de brincadeira. Trata-se de um episódio talvez ingénuo, mas que dá nota e medida da aceitação social e da imagem de que desfrutava localmente. Mas, ultrapassada a fase de experiência, começou a assumir posições que já tinham a ver com a necessidade pessoal de afi rmação, na e pela sua Terra que sempre colocou acima de quaisquer interesses, mesmo dos seus. Aderia às Instituições e disponibilizava-se para nelas se integrar e colaborar. E ia a todas… em pura generosidade. Sem nada pedir para si. Por volta de 1925, dizia, já era membro da Comissão de Vigilância do Castelo que era uma Organização local de referência. E foi bombeiro do corpo

Cine-Teatro António Lamoso

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activo, instrumentista da efémera banda de música da mesma corporação dos Bombeiros Voluntários da Feira (tocava “requinta”, gostava de recordar), e secretário do comando respectivo. Frequentava o Clube Feirense, habitual local de encontro onde, à noite, terminada a labuta do dia e naquela época, em que ainda não havia cafés e não abundavam as formas de distracção, nem os meios para as procurar, se reuniam os cidadãos que demandavam um ambiente diferente do da “taberna” – que no tempo, era outro local de nocturno convívio – na demanda de alguém com quem se pudesse conversar sobre coisas mais ou menos importantes e/ou entreter-se em algum jogo de mesa. A sua presença era requisitada em comissões de angariação de fundos para os bombeiros e diferentes instituições ou na prossecução de outros fi ns fi lantrópicos: fez parte, v.g., da comissão que promoveu à recolha de meios para o último restauro da imagem de S. Sebastião, peça de estatuária que é parte do património da Igreja Matriz e particularmente querida do Povo desta Terra. Na circunstância e segundo se dizia, as pessoas não terão gostado do resultado fi nal. Foi ainda um dedicado colaborador do Orfeão da Feira da direcção do Dr. Aguiar Cardoso, instituição a que muito queria e que, no decurso da vida, havia de servir com dedicação. No seu livro «Factos e personalidades da Feira…» refere que o Orfeão da Feira foi fundado em 1908, por iniciativa do Dr. António Sampaio Maia. Tratava-se de uma instituição que naquela época, certamente pela especifi cidade dos fi ns artísticos que prosseguia como pela qualidade das suas apresentações, constituiu um singular e apreciado grupo coral, cuja notoriedade transcendia os limites concelhios. Tinha especial orgulho na dedicatória com que, enquanto orfeonista, aquele feirense de referência, médico distinto, historiador, músico e polemista ilustre, o distinguira no livro de sua autoria Terra de Santa Maria, cujo exemplar conservava e onde mostrava particular apreço pela sua pontualidade. Mas pontualidade e assiduidade, o respeito pelas horas e pelos compromissos, eram inseparáveis da sua entrega ao serviço das Instituições e dos outros. Aliás, a estima que o Dr. Aguiar Cardoso nutria pelo cidadão devia

ultrapassar o reconhecimento daquelas qualidades, pois era de molde a que se tivesse proposto ensinar-lhe música e a tocar piano, elegendo-o para dar continuidade ao Orfeão (1). Sendo sabido que, para se dirigir um grupo (coral) com aquela dimensão e responsabilidade, não bastava possuir dotes musicais, saber música e/ou tocar piano. Era preciso reunir outras importantes qualidades, designadamente de liderança, que permitissem trabalhar com um grupo numeroso e heterogéneo de pessoas cujos diversos e particulares interesses por vezes ultrapassavam os de fazer música e que era mister conciliar, características que Aguiar Cardoso certamente entreviu na personalidade do homenageado. Esta preocupação do “músico” pode, por outro lado, compreender-se pelo facto de a actividade do “Orfeão” estar naturalmente e sempre dependente de uma pessoa que tivesse disponibilidade de tempo, gostasse da actividade e soubesse música, particularidades que não só, mas especialmente explicam os frequentes e prolongados hiatos de actividade que marcam, desde a sua fundação, a história da colectividade. Certamente que os prioritários compromissos com a Vida impediram António Lamoso de anuir ao honroso chamamento. Foi também irmão da Misericórdia da Feira desde que, a convite do Provedor Dr. Domingos Caetano de Sousa, assumiu o encargo de contabilizar a recolha de fundos proveniente do “Cortejo de Oferendas” concelhio, realizado em 6 de Outubro de 1968 em prol do Hospital da Feira. A partir dessa data e até 1975 passou a integrar a Mesa respectiva. Vivamente se interessou em ajudar esta difícil causa do Hospital, anseio concelhio que a Misericórdia assumiu e pretendia materializar e que fruto de incidências várias só mais tarde se viria a concretizar. Solicitou, precedendo combinação com o Provedor, a intervenção de uma das suas fi lhas, então secretária pessoal do Secretário de Estado da Saúde e dentro das possibilidades desta, no sentido de tentar acompanhar o desenvolvimento do processo que visava a almejada criação daquela estrutura de saúde, bem como de detectar as difi culdades e/ou de fazer outros contactos com o mesmo objectivo. Da Santa Casa da Misericórdia recebeu, oportunamente, o diploma de sócio honorário e benemérito. Dedicou-se ao teatro de que foi amador e

(1) facto confi denciado por sua irmã.

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espectador entusiasta toda a vida. Ainda não há muitos anos expressamente se deslocava a Lisboa para assistir às peças mais aplaudidas. E quando ia à capital, aonde aliás se deslocava com frequência para tratar de assuntos relacionados com a gestão do Cine Teatro Santa Maria, o programa da viagem incluía a visita ao Parque Mayer para assistir a uma peça de ”revista”. Na sua Terra e ao serviço do grupo amador respectivo era ”o ponto” reconhecido. Apontou, segundo lembrava, ao longo de mais de quarenta anos, muitas

dezenas de peças (todas, dizia) cuja exibição, naquele tempo, ao ritmo de uma/duas encenações por ano, eram um notado acontecimento social em que todos participavam com entusiasmo (dos mais letrados aos habilidosos), como simples trabalhadores, actores, encenadores e/ou argumentistas, numa doação recíproca e ímpar à sociedade e à cultura locais. Reza a história que davam brado e constituíam espectáculos lúdicos amadores únicos, aguardados na cidadela com ansiedade e entusiasmo. Sobretudo os que, por tradição,

1º plano: César, Liliana, Ana e Lurdes.2º plano: Carlos, Luísa, João, Maria Fernanda, Rita, António Manuel , António Júlio, Ana, António e Lígia Lamoso.

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eram encenados por altura da festa das ”Fogaceiras”. Coleccionou os originais de todos os programas das peças em que interveio. Neles se revelaram actores amadores excelentes, cujos nomes recordava. Desde o antigo “Teatro D. Fernando II”, (nome grato com que se preiteava o Rei, marido de D. Maria II, ele próprio também artista) de que falava e em cujas instalações, no Convento dos Lóios, naquela época, se corporizava a ideia de trabalhar teatro, mas também onde passavam outros espectáculos, designadamente musicais. Aquele recinto, que o signatário não conheceu com esse aproveitamento, nem de fotografi a, mas que se dizia “bonito”, preencheu nesta Terra um período marcado da Vida colectiva de que somos hoje os herdeiros. Depois de derrubado como que se apagou em defi nitivo a luz, o seu próprio ”espírito”. A existência histórica dele quase foi olvidada. Parece que injustamente. Não obstante, pode imaginar-se o assinalado relevo de ordem cultural e lúdica que, histórica e particularmente naqueles tempos, assumiu em Vila da Feira, terra que se imagina – como a generalidade das congéneres de província – confi nada de perspectivas. Pelo “Teatro D. Fernando II” foram passando gerações de actores hoje ignoradas, de músicos, artistas e de outros importantes trabalhadores do espectáculo, nossos maiores, que com grandeza, intentaram abrir horizontes diferentes e melhores aos seus concidadãos e conterrâneos. Propugno, pois, que o “Teatro D. Fernando II” constitui por direito próprio um símbolo agregador, faz parte da memória e também da história relevante colectivas; completa o património espiritual do Burgo, representa ele próprio um importante marco que urge reabilitar do esquecimento. Talvez pela atribuição do nome respectivo a um adequado evento permanente, a uma rua ou a outro local signifi cativo da cidade a lembrar aquele sítio honrado aos que, como nós, vão passando! Vem a propósito, ao nos determos mesmo incidentalmente, nesta breve e despretensiosa abordagem sobre o teatro, a que António Lamoso interessadamente se dedicou e os locais em que este se fazia em Vila da Feira, aonde o homenageado se distinguiu, evocar, entre os actores, também e justamente – sem com isso pretender esquecer

nenhum, porque sendo amadores e preenchendo com a sua doação e sucessivamente um importante espaço cultural e lúdico, todos foram grandes e notáveis – o irmão do homenageado, Joaquim Lamoso. Comediante amador multifacetado, dotado de uma notável intuição histriónica, versatilidade e liderança, qualidades que lhe permitiam no decurso da peça não só refazer o texto, improvisando com a-propósito como, em outros palcos, que sempre pisava com simplicidade, mas com espontaneidade e mestria, como em alguma reunião já animada de amigos, tomar a iniciativa e naturalmente encenar e contextualizar um qualquer mini-espectáculo musical ou outro para recreação dos demais. Mas era em cena que se transcendia. Ainda hoje subsiste na memória dos conterrâneos e de amigos com quem ou para quem trabalhou, sem outro interesse que não o de fazer teatro, divertindo-se ele próprio e aos outros, muitas das suas aclamadas actuações, que ganharam o direito a entrar na mitologia da representação local. No seu livro António Lamoso havia de fazer de uma forma bastante exaustiva, muita da história do teatro com que conviveu em Vila da Feira, bem como recordar os sítios onde a acção se desenvolvia e os seus fi gurantes.

Foi ainda do Clube de Caçadores da Feira (e, também, caçador a sério, lembrava aos que desconheciam essa sua faceta: dos que iam atrás da caça e, quando necessário, não hesitavam em subir de bruços e apoiado nos cotovelos as ladeiras mais íngremes ou as fragas agrestes) e da organização dos conhecidos torneios de tiro aos pratos e aos pombos que o Clube anualmente realizava, em cuja estrutura organizativa pontifi cava. A eles acudiam os melhores atiradores do País – como historia no livro que publicou – de que gostava de lembrar as façanhas. Deste seu particular interesse eram ainda as conhecidas caçadas que organizou na ”Floresta”, em Ovar, enquanto trabalhou na “Soja” para que convidava os caçadores seus amigos da Feira, organização em que tinha a colaboração do também seu conterrâneo e amigo Luís Amorim, ali radicado; e, sobretudo, as apreciadas bacalhoadas e o feijão-frade que, a pretexto e fi ndo o venatório exercício, servia aos confrades para retempero do esforço, bem regada e cujas incidências eram depois especialmente recordadas e comentadas…

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mais que as peças abatidas. Era também apreciador da “caça” no prato, com os condimentos associados à sã camaradagem: das ceias e das “farófi as” e facécias dos grupos de alegres caçadores, das picardias articuladas e das “estórias” que, com malandrice, gostava de ouvir, de estimular, metendo a colherada! E em outros palcos, da alegre ou séria cavaqueira com os seus amigos à mesa do café (primeiro no Café Coimbra, depois no Moderno e, por último, no Café Castelo). Manteve-se dedicado ao último grupo, ao do Café Castelo, mesmo quando dele já estava ausente por absoluta impossibilidade física. Ali compareceu invariavelmente quase todos os dias depois de almoço, para tomar aquela tradicional bebida, conversar um pouco com os amigos, participar em alguma brincadeira de ocasião e/ou jogar uma partida de dominó. Até que fossem horas de ir para o escritório ou de satisfazer algum compromisso… Custou-lhe muito apartar-se deste hábito e daquele último grupo. Pertenceu, já o dissemos, ao Clube Feirense – centenária Instituição local a que já aludimos, que tinha como apanágio a tolerância e que muitas vezes funcionou como centro de análise e de convívio, de maturação de ideias, de conjectura e discussão de problemas; ou de controvérsia, quiçá de conspiração ou de nocturna e despreocupada cavaqueira. Ali tiveram assento, desde os tempos recuados da monarquia e sucessivamente, as fi guras locais representativas. Em geral, terminado o trabalho de cada dia e depois de jantar, as pessoas ali se reuniam para fazerem um pouco de leal convivência, independente dos credos – razão por que também escola de cidadania, talvez a primeira nesta Terra – ela própria justifi cativa da inteligência e sociabilidade, expressões últimas, enfi m, da dignidade, decisivo atributo do Homem. Por tudo, Instituição também ela depositária de que segredos e de quantas gerações (!). Integrou desde jovem este meio de que, ao longo de muitas décadas, foi um dos animadores de todos os dias e, durante longos anos, o sócio n.º 1. Participou repetidamente dos órgãos sociais respectivos. E foi das noites, das cartas e das farras. Na sequência da sua actividade profi ssional e acompanhado de amigos, viajou, garboso, no decurso de uma feira

de Sevilha,(Festa de Santo Isidoro) em carro tirado a cavalos através de ruas apinhadas o que lhe deu um especial gozo e saboreava recordar. E havia sempre um bom pretexto para uma conversa animada sobre política ou outro tema mais sério. Sobre os passos de um negócio ou para uma simples divagação especulativa e/ou divertida com os amigos, cuja presença deveras apreciava. As noites eram enormes, muitas vezes refrigério para os problemas. As madrugadas fazia gosto vivê-las. Conhecia todos os sítios adequados para uma boa refeição alusiva que muito apreciava sobre qualquer pretexto. Mais longe ou aqui bem perto. Um cabrito ou um leitão assados; ou uma das sumptuosas ”paellas”, que se comiam na “Bairrada” com um vinho a condizer. Uns fi letes bem temperados, ou uma mariscada em Matosinhos. Eu sei lá. … Gostava das coisas boas da vida, de mostrar ou de presentear os amigos especiais com as que conhecia. E quando de lá voltasse de recordar as estórias associadas à diligência. Não fugia a difi culdades para o efeito, nem era ”desmancha-prazeres” se a iniciativa não lhe pertencia… Mas não tolerava facilidades nos sítios onde voltava. E havia sempre horas para se partir… Era nisso particularmente exigente. Ficava nervoso quando alguém se atrasava. Era ainda das estórias que dizia incontáveis: sem nada dizer em casa, jovem ainda, num dia 23 de Junho, ausentou-se para o S. João em Braga e por lá andou literalmente “desaparecido” com os amigos uma semana. Quando chegou estavam à sua espera e teve que explicar ao Pai o desmando. De outra vez combinou com um grupo de “fi xes”, o modo como deviam pregar uma partida a uma pessoa conhecida e vizinha: consistia nada mais do que subtrair à pocilga um “gabado” suíno, a que o proprietário não se cansava de elogiar a ceva e com que se preparava para, em devido tempo, abastecer a salgadeira. Entrar pelas traseiras do quintal ainda entraram e também encontraram o bicho objecto da demanda. Mas não anteciparam os incómodos que representava conduzir o bácoro, teimoso que grunhia sem descanso, na noite de breu (ainda não havia electricidade) e, de todo, a imprevista necessidade de o descer para a estrada saltando o aprumado muro com mais de dois metros, por absoluta impossibilidade de abrir o ferrolho à respectiva porta de acesso… Depois

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haviam de convidar o lesado para o sarrabulho… A estória e facécia que era para ser conhecida, foi comentada em vários tons, motivo de conversa e de galhofa compreensíveis durante muitos anos, até pelo proprietário do “dito”… e eventual ofendido! Veio o cinema a que naturalmente aderiu. O gosto pelas artes cénicas e designadamente pela sétima arte e a cultura a ela associada em Santa Maria da Feira muito lhe fi cou a dever. Ficou-lhe a dever quase tudo, reconheça-se. O desmantelamento do Teatro ”D. Fernando II” para instalação de serviços públicos (Tribunal e Conservatórias) tinha privado Vila da Feira da sua sala de espectáculos, lacuna cuja dimensão naquele tempo, verdadeiramente entendia. A construção da Casa do Povo deu ao não acomodado António Lamoso e ao visionário, bem como ao seu companheiro, Fernando Araújo (eram da mesma idade), a ideia de prover o edifício com os elementos necessários para que pudesse ter um novo aproveitamento, uma utilidade adicional imaginada e não prevista. No pensamento deles era só acrescentar um pequeno espaço num dos topos, com uma dimensão e feitio adequado a que pudesse servir de palco. Logo começaram a engendrar maneira de fazer o acréscimo (insignifi cante, segundo pensavam), de forma a dar ao edifício a polivalência congeminada, onde se pudesse improvisar concretamente e doravante, a sala de espectáculos de que Vila da Feira carecia. Sem gastar dinheiro, essa era a maior vantagem: a obra era pública. Só precisavam de convencer o empreiteiro… que conheciam. Não sei as voltas que lhe deram; e, posteriormente, ao dono da obra. Certo é que, quando este se apresentou para a receber, deparou com aquela encoberta, de si desconhecida ampliação, à margem do projecto, que não entendia e a que logo chamou “clandestina”, que ameaçou denunciar e mandar demolir. Tiveram depois de o convencer, não sem difi culdade, da bondade da iniciativa. A obra permaneceu e a Vila da Feira recuperou assim, durante umas dezenas de anos, uma improvisada sala de espectáculos, com as limitações conhecidas mas que, com algum jeito, de novo permitiu a encenação de espectáculos de teatro e a regular organização de sessões de cinema de que puderam fruir os seus conterrâneos.

Encarregar-se-ia António Lamoso de lhe darmuita da vida subsequente, impondo aos que a frequentavam, no decurso dos espectáculos, compostura e respeito sem concessões: não havia ditos nem comentários a perturbarem o espectáculo. Só quando se construiu, por adaptação, já na passada década de sessenta, o “Cine Teatro de Santa Maria” edifício em cuja concretização o sonho, a iniciativa, a aceitação social e credibilidade de que desfrutava mais uma vez prevaleceram, a Casa do Povo deixou de ter aquele singular aproveitamento. Recentemente a Câmara Municipal adquiriu aquela casa de espectáculos, tendo deliberado distinguir António Lamoso atribuindo-lhe o seu nome. Do mesmo passo lhe concedeu a medalha de Mérito Municipal em votação unânime. Também se interessou pela política: era assinante do jornal ”República” desde a década de cinquenta e, consequentemente, da oposição à ditadura, da democracia e do socialismo. Movimentos onde, desde sempre, acompanhou Alcides Strecht Monteiro, personalidade que, no Concelho e naquela época, catalizou todos os movimentos daquelas conotações. Esteve no comício do Porto, na 1.ª candidatura democrática à Presidência da República assumida pelo general Norton de Matos, em 1947/48, de que recordava as incidências. Mas era um Homem tolerante e compreensivo, mesmo com os que não entendiam o seu empenho. Embora algumas vezes se tivesse sentido molestado ou menos reconhecida esta sua entrega, mesmo por companheiros de caminhada. Antes e, particularmente, depois do “25 de Abril”. Ele que fi zera uma vida de militância e generosidade na ”oposição” e, por ideais, correra durante toda a vida os riscos inerentes, sempre solidariamente. Julgava-se com direito a outro reconhecimento! Após a queda da ditadura fez parte da Comissão Administrativa da Câmara da Feira a que presidiu o médico de Travanca, Dr. Arnaldo da Silva Coelho, até à realização das primeiras Eleições Autárquicas, participação para si muito gratifi cante por terem tido oportunidade de lançar algumas obras que julgava satisfazerem necessidades concelhias prementes, de que muito especialmente se orgulhava. Profi ssionalmente subiu na Vida a pulso: quando

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desempregado por ter abandonado, nas condições descritas, o lugar que ocupava no cartório do escrivão notário Vila Nova e não se sentindo confortável inactivo, dirigiu-se ao então Chefe da Repartição de Finanças da Feira, cujo nome recordava, Manuel António Figueiredo e Melo, pedindo-lhe que o deixasse ir para lá praticar, ao que o mesmo acedeu. Chegou, na sequência deste seu trabalho, a fazer a liquidação do imposto sucessório, recordava. A sua vivacidade e vontade de trabalhar, créditos que ia fi rmando não enganavam e o tesoureiro da Fazenda Pública em exercício na Vila da Feira, o considerado feirense que foi Alcides da Silva Machado, que o conhecia, ofereceu-lhe a possibilidade de singrar

na Administração Pública substituindo o ”proposto” que, entretanto, havia pedido a exoneração. Aceitou de imediato. Havia de admitir posteriormente que gostava daquele trabalho, que era uma actividade em que se revia para futuro: a de ser tesoureiro. Sendo certo que o lugar de “proposto” dependia sempre da confi ança do titular do lugar, do tesoureiro nomeado. De início era pois um lugar precário, não dava garantias de continuidade. Apesar do seu empenhamento e esforço, o seu futuro era assim incerto. De permeio meteu-se a tropa, tendo sido incorporado em 17 de Janeiro de 1929, no antigo “Regimento de Infantaria 18”, no Porto, onde hoje é o Quartel-general. Nas habilitações do “quadro” antes de alistado, reza: “Ler, escrever e contar correctamente”. Com medo de perder o lugar que ocupava precariamente, apenas fez a “recruta” que durou três meses. Logo que pôde veio embora, comprando a passagem à disponibilidade (Esc. 2 500$00). Passou a “pronto” em 17 de Janeiro; a 18 do mesmo mês foi “licenciado” e logo retomou o lugar na Tesouraria. O tesoureiro foi entretanto promovido a primeira classe, tendo sido colocado em Vila Real, movimento em que se fez acompanhar pelo seu sobrinho António Pedrosa de Moura, ele próprio amigo e compadre de António Lamoso. Em face disso foi nomeado tesoureiro interino em Vila da Feira até à chegada do novo titular do lugar do quadro, Felisberto Vilhena. Com a vinda deste, de novo passou à situação de interinidade. Dois anos depois, Alcides Machado, que era agora tesoureiro em Vila Real, pediu a transferência para Vila Nova de Gaia e, como não o tinha esquecido, falou-lhe para voltar a trabalhar com ele, solicitação a que de imediato acedeu. O tesoureiro Vilhena, sabendo do convite, ainda o tentou dissuadir prometendo-lhe aumento do vencimento. Mas já estava comprometido com Alcides Machado… e não podia voltar atrás, a palavra era para se cumprir, dizia. Acompanhou-o em Vila Nova de Gaia durante 7 anos, como homem da inteira confi ança. O trabalho estava sempre em ordem, irrepreensível, ainda que com recurso a horas extraordinárias quando necessárias, que não tinham retribuição. Havia sempre horas para entrar, nunca para sair. O trabalho metodicamente era

Livro de António Lamoso

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para ser feito, embora com sacrifício a que não fugia. A esperança de que lhe reconhecessem a qualidade e o esforço e abrissem o prometido concurso para acesso a categoria do quadro não morria. Para cumprir, todos os dias se levantava cedo: umas vezes às cinco e meia da manhã, fosse Verão ou Inverno, para ir apanhar o comboio das seis ao apeadeiro do Cavaco (os seus companheiros de viagem, os que chegassem primeiro e seguindo combinação solidária, não deixavam partir o maquinista enquanto faltasse algum dos passageiros habituais, que se deviam ir fazendo anunciar pelo caminho, tanto quanto lhes permitisse a aceleração do passo, aos brados de: cá vou!) que o levava para Espinho onde tomava uma composição da linha do Norte para estar em Vila Nova de Gaia a tempo de levantar a chave e abrir a repartição; outras, subia de bicicleta até Albergaria de Souto Redondo (aos Dezassete) para apanhar a primeira camioneta que saía de S. João da Madeira rumo ao Porto e o devia deixar em Gaia; à noite, no regresso e no mesmo sítio, dela se apeava, recuperava a bicicleta que deixara guardada e fazia a viagem de sentido inverso para casa. Entretanto a confi ança que o Tesoureiro depositava no seu trabalho era total. Mas tinha família e as responsabilidades inerentes. E não lhe abriam o concurso por que ansiava… Nem para o 3.º Bairro do Porto que, por essa altura, soube ia ser criado(2), não obstante as diligências e pressões que por dentro ia fazendo (designadamente junto do Inspector-geral de Finanças), servindo-se das relações que fora criando. Por causa disso, a ligação com o chefe chegou a ser difícil. E, quinze dias após, esteve na inauguração da tesouraria do 3.º Bairro na Rua Gonçalo Cristóvão! As hipóteses que antevia iam-se gorando uma após outra e, com elas, o sonho da sua vida... Havia que ter em atenção o limite de idade para o ingresso no Quadro de pessoal e na Administração Pública que se aproximava inexorável. Sem que lhe abrissem a possibilidade de

nela ingressar... Nesta dúvida, quando se apercebeu de que as possibilidades se estavam a esgotar e embora o Tesoureiro o tentasse demover, rompeu decidido com o emprego, sem se esquecer de recolher os dados necessários relativos ao seu trabalho, para se defender… se fosse caso disso. E apresentou-se em casa de mãos vazias, mas sem desesperar... Quinze dias após aceitou decidido o convite que um amigo e conterrâneo, Manuel da Costa Paes, proprietário da fábrica de chocolates “Celeste” em Gaia, lhe dirigiu para chefe de escritório da “Soja de Portugal”, que havia sido recentemente fundada em Ovar e em que tinha sociedade. O ordenado que lhe ofereciam era compensador, melhorava de modo signifi cativo as condições de que usufruíra na tesouraria. Agora passava a deslocar-se da Feira para Ovar todos os dias, independentemente das condições climatéricas: primeiro de bicicleta, mais tarde de mota. Na “Soja” permaneceu cerca de oito anos tendo na localidade, em Ovar, feito muitos dos seus melhores amigos para a vida. O barco era todavia grande e começou a dar-se conta de que a carga era demasiada. A sentir-se muito sozinho naquele trabalho. Tanto quanto se podia aperceber havia erros na instalação produtiva e defi ciências de produção que deviam ser corrigidas. Falhas agravadas por desinteligências entre os sócios. Um vivia em Gaia, outro em Lisboa… Queixava-se da ausência contínua de ambos. E era António Lamoso a dar a cara a fornecedores e trabalhadores a quem não gostava de faltar. A situação não era de molde a que se tranquilizasse. Farto da situação, mas cheio de incertezas, apesar de reconhecer que a ideia que presidia à criação da empresa estava certa e tinha futuro (como hoje se prova com a sua longevidade), decidiu que não ia permanecer ali mais tempo. Por uma única vez comunicou ao sócio de Lisboa, – o único que podia contactar – por carta registada com aviso de recepção, a data em que devia prover a empresa com quem o substituísse, porque tinha decidido não fi car mais. Na data aprazada e apesar do silêncio do patrão, despediu-se do pessoal, entregou as chaves a um empregado de sua confi ança e regressou a Vila da Feira cheio de incertezas. Enquanto teve de se deslocar para Ovar –

(2) Na tesouraria do 3.º Bairro do Porto foi colocado, admitia, por sinal pessoa sua amiga, Jorge Calixto, fi lho do que então era o Inspector-geral de Finanças, Calixto Mendes dos Santos e de uma senhora natural da Feira, Branca Alves Ferreira, que era fi lha do Dr. Roberto Alves e tia do Dr. Roberto Vaz de Oliveira.

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durante oito anos – assoberbado pelos problemas com o transporte, que a instabilidade do tempo especialmente difi cultava quando chovia, foi sondando o seu amigo de longa data, industrial de camionagem em Souto, Sr. Inácio, sobre a possibilidade de criar uma carreira diária para Ovar que lhe pudesse obviar aos inconvenientes da chuva, do frio e do esforço. Assim nasceu a carreira que hoje une S. João da Madeira a Ovar de que, aliás, não chegou a fruir. De permeio e durante a Segunda Guerra, manteve uma sociedade na Rechousa, em Vila Nova de Gaia, para exploração de volfrâmio. Mais uma vez o sócio tudo lhe confi ava. Com isso ganhou algum dinheiro que quase lhe permitiu fi nalizar a sua residência. Para aquele efeito e na circunstância, havia de pedir ao “Banco Lisboa & Açores” que o dispensasse da caução que lhe fora exigida e que entregara aquando da nomeação como seu correspondente (Esc. 5. 000$00), o que lhe foi de imediato concedido. Isso representava o reconhecimento e a confi ança que a Instituição colocava no trabalho do jovem correspondente. Mas, do tempo em que se dedicou à exploração de volfrâmio, era a alegria dos mineiros que trabalhavam no poço quando topavam com alguma pedra rica em minério aos gritos de ”…china, china!”, manifestação a que todos logo acudiam, que ainda lhe volvia ao espírito se abordava as incidências daquele seu trabalho; como ”as habilidades” de que, contava, usava Salazar e o Governo para melhor explorar a neutralidade de Portugal, fornecendo a ambos os contendores, em determinadas condições e salvaguardando sempre a nossa essencial imparcialidade, aquela relevante matéria-prima, permitindo que disso o País retirasse o máximo proveito. Quando voltou de Ovar, tinha quarenta e dois anos, mulher e fi lhos. Boa altura para mudar de vida, dizia, apesar de tudo confi ante. E para não voltar a trabalhar por conta de outrem. Não lhe esmorecia a segurança. Já vimos que era correspondente do Banco de Portugal, desde os dezanove anos, do que se orgulhava pelo cuidado que esta Instituição colocava na selecção destes seus colaboradores! E também do Banco Lisboa & Açores. E do Banco Nacional Ultramarino. Para este último fora nomeado inesperadamente e nas

seguintes circunstâncias: enquanto viajava para Vila Nova de Gaia um amigo e companheiro de viagem, Luís Machado Cadillon, tesoureiro da Agência deste Banco em Ovar, perguntou-lhe se estaria interessado nessa correspondência o que, naturalmente logo admitiu. Como a pessoa em questão tinha acesso ao gerente, Dr. Zagalo dos Santos, não lhe foi difícil fazer a necessária recomendação que, obviamente, havia de resultar. Quando se desempregou pela última vez em 1951, passa, pois, a trabalhar por conta própria… É então que abre uma agência de contribuintes na Feira, com o seu nome. Numa única sala, com uma só porta e uma janela, na Praça da República, que arrenda ao comerciante local Francisco Plácido Resende. Para além da representação, desde os dezanove anos, do Banco de Portugal, Banco emissor, de que lhe advinha apenas o prestígio e dos Bancos comerciais a que anteriormente nos reportámos, apoiava-se na representação de outras Instituições Bancárias de natureza comercial que lhe advieram pelo falecimento do anterior correspondente na Feira, o seu amigo Manuel Ferreira dos Santos (que foi da “Quinta do Reboleiro”) e, por consideração e intervenção da viúva deste, D. Arminda Alves da Silva Santos, a quem dirigira um pedido no sentido de apoiar a sua pretensão. Em contrapartida assumia o compromisso de acolher no seu escritório o empregado e sobrinho do falecido, António Ferreira dos Santos, que hoje ainda ali permanece. Na Agência foi prestando os serviços que lhe solicitavam ao balcão. Do crescimento desta havia que resultar a admissão de novos funcionários e o arrendamento ao mesmo proprietário de um novo e mais amplo espaço que já incluía três salas contíguas. Havia, entretanto, pedido a nomeação como agente a uma companhia de seguros e foi criando também e naturalmente, por acessão, uma carteira de seguros de razoável dimensão dos clientes que lho pediam ao balcão. Aos poucos, durante trinta, quarenta anos, com o seu trabalho e seriedade foi fazendo o estabelecimento, consolidando a organização e a posição social, granjeando estima e consideração em todo o Concelho, onde era conhecido e respeitado como amigo pela maioria das pessoas, no que tinha especial orgulho. Em época de difi culdades foram muitos os

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empresários que se socorreram da “Agência Lamoso” para obter fi nanciamentos que, por razões de proximidade e conhecimento, tinham mais difi culdade em directamente negociar com as instituições bancárias. Muitas empresas concelhias andaram pois “dependuradas” no nome e na credibilidade do empresário e daquela “pequena” Agência da Praça da República. O que era geralmente reconhecido. Admitia que, naquelas circunstâncias, se podia ter aproveitado para ganhar muito dinheiro. Recusava, porém, a ideia de facilidade naquele trabalho. Nunca quis nada a que não se sentisse com direito. Depois foi sendo solicitado a assumir cargos de maior responsabilidade cultural e associativa: presidiu sucessivamente às Direcções e/ou Assembleias-Gerais ou Conselhos Fiscais dos Bombeiros Voluntários da Feira onde, já vimos, assumiu responsabilidades em diferentes hierarquias; do Clube Desportivo Feirense onde, para além de Presidente da Direcção de 1963/65 e presidente da Assembleia-geral em 1952, já em 1926, havia sido o tesoureiro de uma Comissão encarregada de gerir os destinos do Clube; na Academia de Música Santa Maria; na Santa Casa da Misericórdia; no Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, (sócio benemérito), colectividade por que sempre vivamente se interessou e em que primeiro tinha passado como sócio e orfeonista; e, claro, como já se disse, do Clube Feirense onde durante dezenas de anos, à noite, todos o aguardavam. Tudo instituições da sua “querida” Vila da Feira a quem nunca regateou, ou às instituições respectivas, qualquer esforço pessoal ou de outra natureza. Integrou ainda os órgãos sociais da Associação de Futebol de Aveiro consecutivamente e durante mais de trinta anos. Quando deixou este organismo distrital foi homenageado em reconhecimento dos serviços prestados. Aos oitenta e quatro anos fez o trespasse da Agência onde se concluiu a aventura de trabalho da sua vida, com a obrigação de o tomador respectivo conservar os empregados que nela o tinham acompanhado e com a reserva do direito pessoal de acesso, enquanto vivesse, a uma sala e secretária privativas e independentes aonde pudesse arribar quando lhe dessem saudades.

Ainda teve tempo para escrever um livro a que deu o nome de Factos e Personalidades da Feira e do Concelho de 1917 a 1950, a que temos aludido no decurso do presente exercício e que serviu ao autor destas linhas como fonte para colher e/ou confi rmar alguma informação. Por último, era este a menina dos seus olhos. Para o efeito, serviu-se da sua riquíssima memória e do auxílio das notícias que o Jornal Correio da Feira foi publicando, ao longo de mais de um século – que quase coincidia com o tempo da sua própria vida – e resguardando do esquecimento. Foi sempre próximo deste Semanário com que despretensiosamente colaborou, sobretudo em vida das anteriores proprietárias D. Brízida e D. Maria Luísa. Muitos dos factos que evoca tinha-os ele próprio testemunhado ou neles participado. Comovia-se quando por isso o felicitavam ou se lhe dirigiam pessoalmente ou pelo telefone a solicitar algum exemplar. Enquanto deles pôde dispor imediatamente os oferecia, o que igualmente fez a várias Instituições. Razão por que se esgotaram rapidamente… Com a idade já muito avançada e muito diminuído fi sicamente – manteve intacta a sua lucidez – ainda era o principal animador de algumas tertúlias gastronómicas e de divulgação cultural a cujo convívio dava particular apreço. Quantos amigos se sentaram às mesas a que generosamente presidiu e podem testemunhar o sentido muito especial que António Lamoso atribuía àquelas reuniões, muitas vezes retribuídas! No fi m de cada repasto, quase comovidamente, fazia-se silêncio para o grupo abordar o cancioneiro popular alusivo à Vila da Feira a que singularmente se afeiçoara. À partida essa era a única condição que não podia ser discutida. E, durante alguns minutos, para a admiração de todos, mesmo dos que não pertenciam ao grupo, porque só por mero acidente ali se encontravam e assistiam à encenação, ia jurar, tenho a certeza de que de novo se enxergava ao fundo numa névoa, indefi nida … “a senhora do Castelo (de volta) ao seu pinheiral…”

Maio de 2007

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UM DOMINGO E MUITOS MAIS

Será exíguo o fio da minha vidamas foi urdido com algumas eternidadesForam eternidades os minutos da minha esperadebaixo das palmeiras do adronaquela tarde de domingoLembras-te certamente: dois enormes exemplaresemolduravam a igreja da nossa terranos primeiros anos da década de sessenta

Dali via-se ao longe o oceano e contemplando-oensaiava a intimidade com o absolutoMal chegaste começou a vida do mortalque assiste à vertigem das horas no relógio da torreAfoguei os meus olhos no mar que trazias nos teuse deixei-me submergir nos sobressaltos da surpresaPartimos pelas ruas atónitas da aldeiacom as palmeiras a flabelar adeusese os pássaros nas tílias interpretando Vivaldi

Foi o nosso primeiro passeio lado a ladoduas brevíssimas horas daquela semana diferenteporque passou finalmente a haver domingoEnfim reparaste que eu sobraçava um livro(se me conhecesses bem saberias que o livro era inevitável)e pudeste ler-lhe o sugestivo título:Davam Grandes Passeios aos Domingos

Hoje Régio há-de interrogar o seu Deus e o seu Diabopara entender como afinal o nosso passeio ainda durajá lá vão mais de quarenta anos pelas caminhos da nossa aldeia com horizontes líquidos ao fundoArrancaram as palmeiras arrancaram as tíliasmas ninguém conseguiu arrancar o meu olhar do teuÉ que eu prefiro continuar a ver o atlântico nos teus olhos

Espinho, 3 e 4 de Julho 2007

Anthero Monteiro*

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros, autor, entre muitas outras obras, de O Misticismo Laico de Manuel Laranjeira (Roma Editora), um ensaio sobre o genial escritor nascido na Vergada.Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto

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Por Maria da Conceição Vilhena*

1 - Os foliões a que nos referimos neste trabalho pouco têm a ver com os foliões carnavalescos. Trata-se de fi guras típicas da religiosidade açoriana, graves e sérias, ligadas às festas do Espírito Santo, enquanto que os outros existem como divertimento, para descarga antecipada de energias contidas, ao aproximar-se a Quaresma. Figuras que, no início, eram burlescas, capazes de toda a espécie de obscenidades e de transgressões, praticadas nas Festas das Loucas, sobretudo em França, na Idade Média. Vejamos então quem são os foliões açorianos, qual a função que desempenham e qual a sua origem. 2 - As informações mais recuadas que pudemos obter sobre a origem dos foliões foram-nos fornecidas por B. J. Sena Freitas, no seu artigo Antiguidades Açorianas, publicado em Arquivo dos Açores (vol. I, 1978, p. 182).

Sena Freitas admite que as folias do Espírito Santo possam ter a sua origem em festas pagãs, celebradas pelos druidas ou pelos gregos; mas trata-se apenas de uma hipótese e não de uma afi rmação. Ora acontece que, todos aqueles que o leram, tomaram as suas palavras como o resultado de pesquisas (nunca feitas) e, sem qualquer fundamento, começaram a repetir as suas palavras, dando-lhe foros de verdade incontestável.

Jaime de Figueiredo, em Impérios Marienses (p.26), fala mes mo dos trajes vistosos dos foliões “à laia dos velhos druidas” que, segundo nos consta, se vestiam de branco. E mais tarde, já na era cristã, os que constituíam o grupo dos bardos vestiam-se de azul, como distintivo de dignidade. Tendo em conta a função que desempenhavam os druidas na sua sociedade, não conseguimos discer nir o que poderá haver de comum com os foliões, para que se possa ver neles a origem destes.

Francisco Carreiro da Costa (Os Foliões do Divino E. S.) exclui os druidas e fi xa-se apenas na antiga Grécia. Aí se celebravam as Bufónias, festas propiciatórias em que o bufono abatia o boi sa grado, para em seguida distribuir a carne pela assistência. E, por uma analogia de signifi cantes, Carreiro da Costa é levado a uma falsa etimologia, fazendo derivar bufão de bufono, o que está er rado. Enquanto que o termo bufono se formou a partir do grego bous, o boi, e fonos, matar, bufão vem do latim bufo, o sapo. No italia no, bufo adquiriu a tonalidade de grotesco, expressa no derivado bufone, com o signifi cado de pessoa extravagante ou disforme, que provoca o riso. Foi esta a palavra que, ao entrar no francês, deu bouffon, e em português, bufão.

A partir desta falsa etimologia, e para justifi car a fi liação dos foliões nas festas gregas, Carreiro da Costa estabelece uma equivalência entre bufão ou bobo, jogral e folião, o que, forçoso nos é confessar, também não é aceitável. O bufão ou bobo é um cómico. Explorando o seu aspecto grotesco, por meio de gestos extravagantes e arremedos, a que junta um certo humor, o bufão tem o pa pel de fazer rir. Quanto ao jogral, embora também animador de cor tes e praças públicas, a sua missão não consiste em fazer rir, mas em entreter com o seu canto. O jogral é já um artista; é aquele que executa as poesias

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografi a e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

OS FOLIÕES DO ESPÍRITO SANTO NOS AÇORES

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produzidas pelos trovadores e até, muitas vezes, por ele próprio.

Enquanto que o bufão e o jogral agiam individualmente e podiam actuar nos palácios de reis e nobres, onde frequentemente residiam, os foliões surgem como grupo, a folia, e actuam apenas em manifestações públicas, profanas ou religiosas.

Sendo, pois, impossível a equivalência entre folião e bufão, e não tendo este termo qualquer relação com as Bufónias, está automaticamente posta de parte a hipótese da génese dos foliões nas festas gregas. O facto de essas fes tas terminarem por uma distribuição de carne, não é sufi ciente para estabelecer uma relação genética do folião com o bufono, aquele sa cerdote que sacrifi cava o boi e repartia a carne, o que o folião nunca fez. 3 - Ao observarmos os foliões de S. Miguel, com as suas vestes ver melhas e mitras na cabeça, não pudemos deixar de relacioná-los com os participantes na Fête des Fous, “Festa dos Loucos”, que se realizou em vários países da Europa, mas que fi cou sobretudo célebre em França, durante a Idade Média.

Para encontrar uma nova solução ao problema das origens, vamos deter-nos na análise de alguns aspectos relativos aos foliões:

- etimologia de folião/folia- função do folião nos seus primeiros tempos- proibições de que foi alvo- forma de vestuário- presença de estrangeiros nos Açores

As palavras louco, loucura, correspondem, em francês, a fou, folie. Tanto folia e folião, como fou e folie são derivados do mesmo éti mo latino, follis, que signifi cava saco vazio, fole e balão; daí começou a signifi car aquilo que é cheio de ar e, por brincadeira, a pessoa louca, que não tem nada dentro da cabeça. Follis deu, em francês, os adjectivos fou e folle e o substantivo daí derivado, folie, loucura, demência. No português, folia manteve um conteúdo que se lhe relaciona, mas que é bastante mais atenuado, sobretudo por ter evoluído semanticamente no sentido do divertimento e da alegria. Aquele que faz folias é um folião.

Temos notícias dos foliões nos Açores, logo nos primeiros do cumentos relativos às festas do Espírito Santo. No tão citado au to de arrematação da coroa, datado de 24 de Maio de 1523, na Vila da Praia, estabelece-se que aquele a quem coube a coroa para o ano seguinte se obrigou a dar “todos os domingos ordenados aos foliões de comer”; e mais adiante acrescenta-se que deverá dar também “novecentos réis aos foliões”.

Luís da Silva Ribeiro (Os foliões do E. S. nos Açores, p.40), ao referir-se a esta frase, diz que o arrematante se obrigou a dar-lhes “o ordenado todos os domingos”, o que nos parece ser uma leitura errada. Pensamos que se deve ler antes que o arrematante tinha de dar de comer aos foliões em todos os domingos ordenados, isto é, nos domingos que lhe ordenassem, que lhe competia.

Alguns escritores deixam-nos a impressão de que as folias são inseparáveis das festas do Espírito Santo, ou que se confundem mesmo com essas festas. Porém, o que verifi cámos nas nossas pesquisas, é que, nos séculos XV e XVI, as folias surgiram nas grandes festas, quer profanas quer religiosas, alinhando ao lado de danças, pélas, chacotas, trombetas e charamelas. São muitas as alusões à partici pação das folias nas festas portuguesas do séc. XVI, sem dúvida a época de apogeu das folias.

Vasco da Gama, na sua visita ao rei de Melinde, num domingo de Páscoa, leva no seu acompanhamento uma folia, em razão da “so lenidade da festa” (João de Barros, Décadas, I, 4, cap.VI). D. Maria, fi lha de D. João III, no trajecto que faz de Lisboa para Espanha, para ir ter com seu marido, o rei Filipe II, em Outubro de 1543, em toda a parte é recebida com grandes festejos, de que fazem parte várias folias (Provas da História Genealógica, t.III, I Parte, pág.141-210). Nas peças de teatro de Gil Vicente são frequentes as alusões às folias; bem como no relato de procissões daquele século.

As folias são, pois, um grupo que participa tanto nas festas religiosas como nas profanas. O que se passa é que o papel das fo lias nas festas do Espírito Santo era de tal modo importante que, muitas vezes, se encontra a expressão “folias do Espírito Santo” para designar o todo das festas. E até “folias do bispo

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inocente”, pa ra referir as paródias do dia de Santo Estêvão. Foi certamente devido a esta ambivalência do termo que, em contrapartida, a uma folia dos hortelãos, em Guimarães, se deu o nome de “Império de Maria Garcia”.

Não nos parece, todavia, exacto que se inclua sob a designação de folia todos os actos que constituem as ditas festas. Folia é, sim, o grupo de foliões, que tem como missão animar, dirigir e comandar todos esses actos. E a prova de que se não confundem é que as folias estão quase desaparecidas, enquanto que as festas do Espírito Santo continuam a ser realizadas com o mesmo entusiasmo.

O desaparecimento das folias, nos Açores, aparece referido já em publicações dos primeiros anos do séc. XX. Alfredo da Silva Sampaio, em Memória da Ilha Terceira (p.359), publicação de 1904, diz que as folias, na cidade, foram substituídas pelas fi larmónicas; o que o P.e Manuel de Azevedo da Cunha confi rma, ao escrever, em Festas do E. S. na Ilha de S. Jorge (datado de 1906), que as folias deixaram de ter razão de ser, lá onde se organizaram fi larmónicas.

No Continente, as danças e folias da procissão de Corpus Christi foram proibidas a partir de 1732 , data de uma provisão de D. João V, que as mandou substituir

por andores (Rev. Lusitana, vol.36, 1938, p.224).Veremos mais adiante que são muitos os

textos com interdições relativas à actuação das folias. Além desses textos, existem outros com descrições de festas, que nos permitem conhecer certos pormenores da forma como actuavam os foliões.

Nas festas de recepção ao arcebispo D. Rodrigo da Cunha, em Braga, em 1627, há muitas chacotas e folias, e dois foliões que causam espanto e admiração pela maneira como exercem a sua arte: um, pela destreza e energia com que toca tambor; o outro pelas habilidades que faz com dois pandeiros, atirando-os ao ar, no que foi julga do ”coisa extraordinária” e causa de muita alegria (Rev. Lusitana, vol. 17, 1914, p.175). Diz Ribeiro Guimarães (Sumário de Vária História, t.I, p.222) que, numa procissão de Corpus Christi, no prin-cípio do séc. XIX, os foliões da Arruda levavam pandeiros, tocavam com muito estrondo e faziam “macaquices”.

Relativamente aos Açores, as festas do E. S. que nos parecem mais divertidas são as da Ilha do Pico, descritas por Gabriel de Almeida, em Fastos Açorianos (p.45-46). O cortejo abre com oito foliões e quatro mascarados, fazendo muitas “momices”, o que provoca “balbúrdia” e riso. Segue-se uma dança de quarenta fi guras, enfeitadas com fi tas de papel e mitras na cabeça. Quando chegam diante do império, o ruído torna-se ensurdecedor, pelo som forte de tambores, pandeiros, fl autas, charamelas, mais a vozeria das pessoas e os cânticos dos foliões. No terreiro em frente do império fazem então uma “dança louca, estonteada, frenética”, até que se aproxime o tempo para o entremês. Além destes números, há ainda bailes, tudo com muita alegria, porque, dizem as pessoas, o Divino E. S. é do que gosta.

Jaime de Figueiredo (op. cit., p.26) fala dos “trebelhos, descantes e folgares” com que os foliões de Santa Maria alimentavam a alegria popular. E Gervásio de Lima (Festas do E. S., cantores e canta res, p.49), diz que “os foliões, ao verem o imperador, faziam gestos, ademanes e visagens, com mostras de grande prazer, dando pulos, vol teando a bandeira, dando rufos no tambor e fazendo fl oreios nos pandeiros, cantando os louvores do coroado, com tanto entusiasmo que pareciam ter endoidecido”.

Coroa do Espírito Santo.

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O comportamento dos foliões era de uma alegria tão esfuziante, que tocava a loucura. Bluteau, no seu Vocabulário (1712 -1721), ao descrever a forma das danças dos foliões, diz que há “tanto ruído, extravagância e confusão que os que andam nelas pa-recem doidos”. O actual canto dos foliões, arrastado e monótono, está, pois, em completo desacordo com a sua vivacidade de outros tempos. 4 - Estabelecida que foi a relação entre fou, folie com folião, folia, passamos agora a uma rápida evocação do que foi a “Fête des Fous”, em França.

Nela actuavam membros do baixo clero, estudantes e fi lhos de família, agrupados em confrarias, em que era eleito, para cada uma, um abade, um papa e um bispo ou arcebispo, que presidiam ao desenrolar dos festejos, devendo ainda eleger o rei ou príncipe dos loucos. A sua organização era, pois, um decalque das estruturas da Igreja e do Estado; e os actos praticados, uma paródia do culto religioso. Celebra vam uma missa parodiada, com jogo de cartas sobre o altar, comes e bebes em vez da comunhão, sermão burlesco, distribuição de indulgências cómicas, cânticos profanos e obscenos, gestos escabrosos e atitudes extravagantes, de forma a provocar a hilaridade na assistência (R. Muchembled, Culture Populaire et Cult. des Elites, p.173-175).

Nestas “Festas dos Loucos”, o pseudo-louco que fazia de bispo ou de papa ia vestido de púrpura e com a mitra na cabeça, seguido de muitos clérigos mascarados, alguns vestidos de mulher.

Ora em todas as ilhas dos Açores, os foliões vestem uma espécie de dalmática ou opa com mangas, vermelha com ramagens amarelas. Indumentária que consideramos francamente de inspiração cristã, sobretudo pelo uso da mitra, em S. Miguel, embora, às vezes, o que leva a bandeira tenha um lenço de mulher amarrado à cabeça. Nas outras ilhas põem todos um lenço. Porquê esta maneira de se vestir e de se cobrir a cabeça? Trata-se de uma indumentária completamente diferente da que era usada pelas folias do Continente, as quais vestiam “livré” de várias cores (Cf. Provas da Hist. Gen., t.III).

As vestes vermelhas dos foliões açorianos são chamadas “ensinhas”, isto é, insígnias. Não estaremos perante reminiscências das insígnias episcopais que usavam o papa ou o bispo dos loucos?

A mitra é de uso muito antigo, vem já dos persas, dos egípcios, dos assírios, dos frígios. Mas, dentro da nossa sociedade cristã, ela é uma insígnia de majestade, honra e jurisdição; distintivo especial das funções sagradas, usado apenas pelo papa, bispos ou arcebispos, cardeais e alguns abades. A mitra tornou-se assim um símbolo da força e da sabedoria, do poder e da perfeição, do acesso a uma iluminação superior.

Relativamente ao lenço feminino, ele é, como o véu, uma protecção contra a impureza e um símbolo de submissão. S. Paulo (1 Cor.11, 3-16) impõe às mulheres o dever de cobrirem a cabeça como sinal de sujeição, enquanto que o homem deve mantê-la descoberta.

Porquê, pois, a mitra e o lenço dos foliões? Não estaremos na presença de uma paródia, como a praticada na festa dos loucos? 5 - Dos números constantes da missa-paródia, celebrada na festa dos loucos, aquele que teve mais sucesso foi sem dúvida o sermão burlesco. Desse sucesso dão testemunho o facto de se ter tornado um sub-género dramático e o número de textos que chegaram até nós: Sermon de Saint-Hareng, de Saint

Império da Serreta.

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Oignon, de Saint Jambon, de Saint Raisin, etc.Um louco subia ao púlpito e, decalcando os

passos habituais do sermão, fazia uma exposição dogmática, a que não faltavam as citações em latim macarrónico, seguidas de refl exões burlescas e termi-nando por uma cómica exortação à oração.

Ora sabemos que, nas festas do Espírito Santo, também havia o hábito de leigos subirem ao púlpito para pregar. Nos Anais da Ilha Terceira (vol.I, p.101), Francisco Ferreira Drumond transcreve algu mas interdições relativas a essas festas, tiradas das Constituições do Bispado, de 1559. Depois de recomendar que não houvesse mais que um imperador, o bispo determina que “se subisse para o púlpito alguém pregar, por essa ousadia pagasse 500 rs”. Em Paris, nos últimos anos do séc. XV, houve problemas grandes na aplicação da justiça, pela

acumulação de 10.000 processos, relativos a abusos e tropelias cometidos durante as festas dos loucos.

Nos Açores, não se terá chegado a tais excessos, no entanto são muitas as interdições, reais ou diocesanas, no sentido de pôr cobro aos desmandos cometidos em procissões e dentro das igrejas, desde os primeiros tempos do povoamento das ilhas.

Também no Continente se cometiam iguais distúrbios. D. Catari na, na menoridade de D. Sebastião, em carta datada de 1560, toma medidas contra os “escândalos e desonestidades” praticados na procissão de Corpus Christi, no Porto; e proíbe que as danças, folias e pélas entrem na sé (J. P. Ribeiro, Dissert. Cron. E Crít. , t. IV, II, p. 196 sg).

Nos Açores, em 1602, é o bispo de Angra, D. Jerónimo Teixeira Cabral, que toma medidas semelhantes, proibindo “aos foliões que serviam nas festas do Espírito Santo, o bailarem na capela-mor das igrejas paroquiais na ocasião de se coroarem os imperadores” (Anais da Ilha Terceira, I, p.407).

Há ainda outras disposições relativas aos foliões, proibindo-os de tocar tambor e cantarem canções profanas dentro das igrejas; e muitas mais proibindo bodos, bailes e práticas indecorosas, de que resultavam grandes escândalos.

Segundo deduzimos da leitura do artigo sobre “Bispo dos Fátuos”, de J. Santa Rosa de Viterbo, no seu Elucidário, a festa dos loucos também se realizou em Portugal e até uma data tardia. O autor reconhece-lhe a origem francesa, confessa o gosto dos portugueses por tais “escárnios do divino”, no entanto declara que se foi mais mode rado em irreverências e grosserias. Ele próprio assistiu a essas paródias: “Eu, que, nos meus primeiros anos, presenciei este bispo de teatro, não menino, mas sacerdote, no primeiro de Janeiro e na solenidade dos Reis...”.

A Faculdade de Teologia de Paris condena as “Festas dos loucos” em carta enviada a todos os bispos de França, em 1444. Seguem-se proibições idênticas, proferidas pelo Concílio de Rouen, em 1445; estabe lecidas pelos estatutos sinodais de Orleães, em 1525 e 1587; pelos de Lyon, em 1577; emanadas do parlamento de Dijon, em 1553. Em Lille, as interdições são tão persistentes que as ditas festas cessam, aí,

Império do Porto Judeu de Baixo.

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em 1564; mas não em outras cidades vizinhas. São de 1559, 1573 e 1601 as ordenanças reais que se estendem aos Países Baixos.

Se, em Portugal, as profanidades foram mais atenuadas, como afi rma Viterbo, o que forçoso nos é reconhecer é que, em contrapartida, se terá sido mais obstinado na sua realização, pois que ainda exis tiam em meados do séc. XVIII, uma vez que este escritor nasceu em 1744 e a elas assistiu.

A festa dos loucos deu uma larga contribuição para a criação do teatro cómico em França. Algumas confrarias de loucos tornaram-se depois autênticas companhias de teatro, como “Les Enfants-sans-Souci”, a quem se deve a primeira representação da “Farse de Maître Pathelin”, em 1470, sob a direcção do seu director, “le Prince des Sots”, e com a autorização do rei Carlos VII.

Quanto às festas do Espírito Santo nos Açores, temos a impres são de que uma intenção dramática estaria igualmente presente no espírito dos seus participantes: primeiro, pelo número de folguedos que persistiram em infi ltrar-se na parte religiosa, entre os quais a representação de entremeses; segundo, pela própria terminologia usada - impérios ou teatros do Espírito Santo.

Com o decorrer do tempo, os foliões, nos Açores, foram completamente recuperados pela Igreja; e começaram a conduzir-se de acordo com a sensatez e a gravidade exigidas em actos de carácter religioso. 6 – Poderemos, neste momento, dizer-nos que, se os contactos entre o Continente e a França eram fáceis e frequentes, já o mesmo se não passaria relativamente aos Açores; e que, portanto, terá de ser posta de parte qualquer possibilidade de infl uência directa das festas francesas nesta região atlântica, isolada da Europa. Ora, o que se passou nos primeiros tempos do povoamento, foi precisamente o contrário: muitos estrangeiros, acompanhados de familiares e amigos, convidados pelos governantes ou vindos por iniciativa própria, aqui se fi xaram. O Infante D. Henrique, por exemplo, apelou junto de sua irmã, D. Isabel, casada com Filipe o Bom, duque de Borgonha, para que lhe enviasse colonos fl amengos, capazes de investir e cultivar as ilhas, com seus homens.

Como fl amengos mais importantes, podemos citar Jacques de Bru ges, primeiro capitão donatário da Terceira; Joss van der Huerter, capitão do Faial e do Pico, vindo com seus familiares, irmãos e pa rentes; Willem van der Haagen, que trouxe toda a família e haveres, bem como homens para todos os ofícios e respectivas mulheres, e que esteve no Faial, em S. Jorge, nas Flores e na Terceira. Destes três colonizadores descendem os Bruges, os Dutra e os Silveira. Mas são também de origem fl amenga os Brum, os Goulart, os Terra e os Bulcão.

É do conhecimento de todos como estão vivas, ainda hoje, as marcas dessa presença fl amenga, em especial no Faial. Recordemos a pro pósito que a Flandres esteve integrada no ducado da Borgonha desde 1384, com Philipe le Hardi, até quase ao fi m do séc. XV. E foi precisamente nas cidades do norte da França (Normandia e Borgonha), bem como na Flandres, que a “Festa dos Loucos” teve maior acolhimento e conheceu maior exuberância.

Quanto à presença francesa, ela está atestada em antropónimos como Arnaud, Rémy, Férin, Berquó, Bettencourt, Arriaga e Labat, o construtor dos moinhos de vento do Faial. Não esqueçamos também que topónimos micaelenses como Bretanha, Genetes, João Bom, apontam igualmente para uma presença francesa ainda mal conhecida.

Toda esta gente que veio com seus criados, amigos e colaboradores, e aqui se fi xou, trazia consigo usos e costumes que, tal como a língua e os caracteres étnicos, devem ter deixado uma marca pro funda nos costumes locais. 7 - Como conclusão, parece-nos admissível a hipótese de que os foliões sejam uma reminiscência das “Festas. dos Loucos”, realizadas em França na Idade Média e que se prolongaram, aqui e acolá, até meados da Idade Moderna; revivescência, sem dúvida, de sedimentações psíquicas de tempos recuados, que continuam agindo sob formas variadas, como é ainda hoje a do Carnaval.

107

Missa de Domingo

I – SUPLEMENTO

Ao ir para a Missa de Domingo:

Estas orações de casa à igreja na ida para a missa constituíam uma preparação religiosa popular, praticamente correspondente à indicada pela Virgem numa aparição de 1985 (citado livro Paroles..., p. 115).

Quando eu vou para a missaJulgo que vou para o céuVejo estar Nossa SenhoraDebaixo do seu véu.Debaixo do seu véu

Padre Domingos A. Moreira*

Está uma rosa fl oridaPerdoai-me, SenhoraSe eu Vos tenho ofendido.(BB 325)

Quando eu venho prà missaCuido que venho prò Céu.Além está o Senhor,Debaixo daquele véu.Debaixo daquele véuEstá um cravo fl oridoPerdoai-me, Senhor,P’lo que Vos tenho ofendido.(BB 324)

Adeus, minha mãe,Que vou para a missa.Vou pedir a Nossa SenhoraQue me meta no seu livro,No seu livro a rezarPara que a minha alma se não percaE vá ter a bom lugar.Por este caminho vou passar.(Col-Cuc 12)

Ao passar por um cruzeiro:

Deus te salve, cruz benditaQue no céu está escritaE na terra apresentada.Quantos anjos há no céuAcompanhem a minha alma.(Reza-se uma Avé-Maria)(BB 329)

Já no meio do caminho:

A caminho da missa vou andando,De Jesus Cristo me vou lembrando.Quem de Jesus Cristo se não lembraTodo o bem lhe irá faltando.(Col-Cuc 29)

* Pároco de Pigeiros.

ANTOLOGIA PRÁTICA DE UM DEVOCIONÁRIO TRADICIONAL

POPULAR – VII

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Ao ver o cemitério:

Deus os salve, irmãos que já foram como nós.Rogai a Deus por mim que eu rogarei a Deus por vósAqui neste lugar peço a Deus com fé e amorQue as almas descansem para sempre na glória do Senhor.(RO 277)

Ao entrar no adro:

Vou a subir ao adro,Vou subir que já é tempo.Vou fazer uma visitaAo Santíssimo Sacramento.Meus pensamentos mausFiquem cá fora,Que eu vou falarCom o meu Deus.(BB 325)

Ao entrar na igreja(tomar água benta, saudar Santíssimo, Pedra de

Ara, etc.):

Por esta porta vou entrando,Jesus Cristo vou procurando,Minha alma vai doente,Meus pecados apagarei.Ficai aí, pecados,Que eu vou ver Jesus Cristo,Não sei se cá voltarei.(MT 3)

Quando à igreja chego,Ajoelho e bato no peito.Olho para Deus com jeitoQue me perdoe os meus pecadosQue neste mundo tenho feito.(Col-Cuc p. b)

Deus te benza, casa santa,Por Deus foste ordenadaOnde o Cálix Bento [está]Com a Hóstia Consagrada.

ou:

Deus te salve, casa santa,Onde Deus fez morada,Onde o Cálix Bento [está]Com a Hóstia Consagrada.(RO 276)

Deus te salve, casa santa,Onde está iluminada,Onde está o cálice,Mai-la hóstia consagrada.Bendito louvado e adorado sejaPara sempreO Santíssimo Sacramento do altar!Bendita seja a pedra d’ara,Bendito seja quem a cria,Bendito seja o Santo e Santinha deste dia!Pai Nosso e Ave Maria.(Col-Cuc 30)

Salve, ó casa santaOnde Deus tem a morada,Onde está o Cálix santoMais a Hóstia consagrada.(BB 324)

Deus te salve, casa santa,Onde Deus tem a morada,Onde está o cálice bento,Mais a Hóstia consagrada.Deus te salve, cruz bendita,Que no céu estás escritaE na terra assinalada.(Col-Cuc 27)

Esta água benta tomoCom tenção de me salvar...Tantos são os meus pecados.

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Deus mos queira perdoar...(Pedroso 383)

Deus te benza, casa santa,Por Deus foste ordenadaOnde o Cális Bento [está]Com a Hóstia Consagrada.

ou:

Deus te salve, casa santa,Onde Deus fez morada,Onde o Cálix Bento [está]Com a Hóstia Consagrada.(RO 276)

Esta água benta tomoCom tenção de me salvar.Tantos são os meus pecados,Deus mos queira perdoar.(Pedroso 383)

Por esta porta vou entrando,Jesus Cristo procurando,Água benta que me lave, Jesus Cristo que me salve.Pecados meus, fi cai cá fora,Não entreis comigo dentro,

Qu’eu vou entregar a almaAo Santíssimo Sacramento.(Mont 179)

Ó meu Divino Senhor,Amor do meu coração,Perdoai os meus pecados,Sabeis quantos eles são.Dai-me neste mundo a graçaE no outro a salvação.Dai-me a penitênciaE deitai-me a absolvição,Até que eu digaO acto de contrição.(BB 326)

Que a minha alma se não perca;Beijarei a santa cruzQue a minha alma tenha luzPara sempre, amem, Jesus!(Pedroso 383)

Bendito, louvado e adorado sejaPara sempreO santíssimo sacramento do Altar.(Col-Cuc 45)

Bendita seja a pedra d’ara,Bendito seja quem a cria,Bendito seja o Santo e Santinha deste dia.Pai Nosso e Ave Maria.(Col-Cuc 45)

Nesta igrejinha vou entrandoÁgua benta me vai lavando.Pensamentos maus fi quem cá foraQue eu venho falar com Jesus, agora.Água benta tomoÁgua benta quero tomarOs pecados que eu tenhoNosso Senhor mos queira perdoar.Pensamentos mausFicai cá foraQue eu vou falar com JesusAgora!(BB 324)

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Na igreja vou entrando,Água benta vou tomando.Meus pecados fi quem aqui,Vou visitar Jesus Cristo,Há muito que o não vi.(Col-Cuc 16)

Por esta porta vou entrando,Jesus Cristo procurando.Água benta que me lave,Jesus Cristo que me salve.

Pecados meus, fi cai cá fora,Não entreis comigo dentro;Qu’eu vou entregar a almaAo SS. mo Sacramento.(Mont 179)

Aqui me ajoelho, Senhor,Muito triste, muito afl ita:Vós como Divino Pastor,Eu como ovelha perdida.

Dai-me luz com que vos veja,Coração com que vos ame,Salvação p’ra minha alma,Remédio p’ra minha vida.(Mont 180)

Pecados meus, fi cai cá foraQue eu vou mais p’ra dentroEntregar a minha almaAo Santíssimo Sacramento.Em casa de Deus entrei.Venho suplicar.O Cálice é bento e a Hóstia consagrada.Vou pôr a água benta na testaPara Deus me livrarDos meus maus pensamentos.(Col-Cuc 12)

Nesta casa vou entrando,Água benta vou tomando.Meus pecados são tantos,

Que Deus mos vá apagando.(Col-Cuc 27)

Nesta igreja quero entrar,Com Jesus quero falar,Que minha alma está doente,Pecou mortalmente.(Col-Cuc 12)

Pecados, fi cai cá fora,Qu’eu quero entrar lá dentro,Para entregar a minha almaAo Santíssimo Sacramento.Água benta te recebo,Em salvação dos meus pecados,Que à hora da minha morteSejam todos perdoados.

Venho vos ver, Senhor,Qu’ainda hoje não vos vi.Venho-vos pedir um dote,Que ainda hoje não vos pedi:Salvação para a minha almaE graça para vos servir.(Col-Cuc 2)

Preparação para a comunhão:

Ensinai-me, SenhorO Vosso caminho,O caminho do Bem,Para eu poder aproximar-meDo Vosso altar,E comparecer na Vossa presença.Deus é a alegria da minha infância.(BB 328)

Já vou caminhando para a mesa da comunhão,Receber Jesus em graça, dentro do coração.Adeus, sacrário de graça,Adeus, fonte de água pura,Tendo aqui minha alma, farei dela sepultura.(Col-Cuc 16)

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Ao Comungar

Nesta mesa me ajoelhoNesta mesa de altarMinha alma se me alegraDe ver tão lindo manjar.Alegra-te, minha alma,

Consola-te, meu espíritoQue estás para receber o CorpoDe Nosso Senhor Jesus Cristo.(BB 327-328)

A esta mesa m’ajoelho,A esta mesa divinal,Eu não era merecedoraDe receber tal manjar.Oh, que manjar tão delicadoVem das mãos do Senhor,Para todo o fi el pecador!(Col-Cuc 2)

Nesta mesa me ajoelho,Nesta mesa divinal,Meu coração se me alegraEm ver tão lindo manjar.Ó que lindo manjar tão excelente,Escolhido pela mão do Senhor,Acompanhai-me a minha almaQuando deste mundo for.(Col-Cuc 44)

Aqui me ajoelho, SenhorNesta mesa divinal.Quanto rico manjarVem das mãos do Senhor!Vinde, vinde, meu Jesus,

Vinde, vinde, meu Senhor,que eu por vós estou esperando.Minha alma se está rindo,Meu coração está chorando.Alegra-te, ó alma minha,Consola-te, meu espírito,Que estou para receberO Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo.(Col-Cuc 16)

Vinde, vinde, meu Senhor,Vinde, vinde, e não tardeisTomar conta da minha alma, E de mim não vos aparteis.

Senhor, eu não sou digno nem merecedorDe entrardes em minha morada,Mas dizei uma palavra:Meus pecados serão perdoadosE Minha alma será salva.(Col-Cuc 7)

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Que eu por Vós estou esp’rando.A minha alma se alegraO meu coração está chorando,Alegra-te, ó minha alma,Consola-te, ó meu espírito,Que eu vou receberNosso senhor Jesus Cristo.Já o sacrário se abriu,Já o Senhor lá vai foraVai visitar uma almaQue vai para a glória.A glória é o Céu, Mas quem o ganhará?Quem, por ele, fi zerPara o céu irá.Abre-me essas portas,Que lá vem JesusC’os braços abertosPregado na Cruz.Pregados na cruz,Os seus pés também.Ele é meia-noiteE Jesus não vem.(BB 328-329)

AO RECEBER A COMUNHÃO

À Sagrada Mesa ajoelho,À mesa da divindade,Minha alma será dignaDe alcançar tão bom manjar,É uma manjar delicado,É o manjar do Senhor,Que se tira do sacrário,Dá-se a todo o pecador.Desejo, meu bom Jesus,De vos receber em graça.Tomai conta da minha alma,Levai-me e governai-me.(Almanaque «Boa Nova» de 2004,p. 132, Cucujães)

Abre-te, meu peito, abre,Que o meu bom Jesus quer entrar.

Faço de minha boca portaE da minha língua faço altar.(Col-Cuc 27)

Minha boca é porta, por onde o Senhor entra;Minha língua é papel, onde o Senhor assenta.Minha gola é escada, por onde o Senhor desce;Meu coração, sacrário por onde o Senhor «asseste».(Mont 180)

Conclusão da Missa (bênção, saída)

Graças a Deus que ouvi missa,Ó Jesus, que bela hora!Deitai-me a vossa bênçãoQue me quero ir embora.(CPR 44)

Nós já recebemosA vossa bênção.Ficai, meu Jesus,No meu coração.(Nama 246)

Dita “missa é”,Dita seja ela,Que a minha almaTenha quinhão nela.(CPR 44)

Senhor, que estás na Cruz,Todo cheio de glórias,Deita-nos a vossa bençãoQue nos vamos embora.

Senhor que na Cruz está,Morto foi e vivo está,Dá-nos a graça para vos servirE deita-nos a vossa bençãoQue nos estamos a ir.(Col-Cuc 27)

A Bênção do Pai e FilhoE do Espírito Santo também

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Fique sempre nas nossas almasPara todo o sempre, Amém.(Nama 246)

Vou-me embora, meu Jesus,Vou deixar o Vosso Altar.Mas é convosco, Senhor,Que eu quero fi car.

Outra versão:

Com Deus me vouE com Deus me quero ir.Se eu cá não voltar,Os anjos e a Virgem MariaMe venham acompanhar.

Desta igreja me vou,À roda está um temor (sic)Agora vou para casaRezar a Deus, Nosso Senhor.E se eu cá não voltar,Os anjos me venham buscar.Ó meu Menino Jesus,

Ó meu raminho de anecrilDai-me a vossa “bença”Que eu já me quero ir.(BB 329)

No Domingo fui à missaP’la porta pequeninaDizer a Nossa SenhoraSe queria ser minha madrinha.Nossa Senhora me respondeuLá do seu divino altar:Ó fi lha, faz por ser boaQue Deus não te há-de faltar.(Col-Cuc 4 e 5)

Notar que O Santo Padre Pio dizia: “Nunca te afastes do altar sem antes verteres lágrimas de dor e de amor por Jesus, que foi crucifi cado pela tua saúde espiritual eterna” (p. 137 e 27 do livro O Grande Amor de Deus, ed. Paulistas, 2002).

Comparar comOração de “Adeus ao Altar”, antes de

Deixar a Igreja, após a liturgia(Tradição Siro-Maronita)

Permanece em paz, ó Altar de Deus.A oblação que de ti recebi me sirva pararemissão das ofensas e perdão dos pecados,e me obtenha a graça de comparecerdiante do tribunal de Cristo sem condenaçãoe sem confusão. Não sei se meserá concedido voltar e oferecer sobre tium outro Sacrifício. Protegei-me, Senhor,e conservai a Vossa Igreja, como caminhode verdade e salvação. Ámen.(oração transcrita na p. 252 do Catecismo da Igreja

Católica – Compêndio, Coimbra, 2005)

II – Advertência Final No número 16 (Junho de 2007) desta revista Villa da Feira, devido a lapsos na revisão, escaparam algumas defi ciências que importa agora rectifi car, para não induzirem o leitor a engano. Assim, na pág. 75 e 88, a expressão numérica «2-360, c.176-v-2» deve ser corrigida para «2-Z60, caixa 176-v-2» (alusiva à numeração do livro na minha biblioteca particular) e que nesta revista deve ser substituída pelo nome do próprio livro, que é: Cyrille Auboyneau, Paroles du Ciel – Messages de Marie à Medjugorge, ed. Beatitudes, 1990. Escaparam também duas expressões, escritas em tipo normal e que deviam ser em tipo grosso, pois tratam-se de títulos: «No momento de o celebrante lavar as mãos:» (p. 89), «Ao ajoelhar (saudações: altar, pedra de ara, cruz, Deus, Maria, igreja, anjos, santos):» (p. 85). O título (em tipo grosso) «Missa de Domingo», na pág. 90, deve considerar-se como inexistente ou sem efeito. As orações expressas na mesma pág. 90

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pertencem ao mesmo grupo das existentes na pág. 88. Na mesma pág. 90, a parte fi nal do texto da Confi ssão fi cou separada. Por isso, o texto, desde a expressão «Antes que o cão (1) me acuse», segue logo para a expressão mais abaixo «Eu me quero acusar», continuando até acabar na expressão «(Nama 257)», na pág. 91. Na pág. 75, as expressões «escritura», etc., até «31 a 33» (referentes apenas ao texto manuscrito original) devem ter-se como inexistentes, isto é, sem efeito.

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1. Nota introdutória

Com vista à realização do nosso Seminário de Projecto integrado no plano de estudos da licenciatura em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, optámos por este tema pelo facto de ser pouco utilizado de forma sistemática na Arqueologia e na tentativa de perceber se esta seria mais uma fonte de informação que poderíamos juntar às que normalmente são usadas pelos arqueólogos nos seus trabalhos de investigação ou a nível empresarial. Defi nida, desta forma, a temática a desenvolver, restava-nos escolher a área a estudar e a nossa decisão recaiu pelas freguesias do concelho de Santa Maria da Feira, mais especifi camente a sede de concelho e as freguesias limítrofes (S. Nicolau de Santa Maria da Feira, S. João de Ver, S. Mamede de Travanca, S. Miguel de Souto, S. Pedro de Sanfi ns, S. Salvador de Fornos e S. Tiago de Espargo) revestindo-se esta opção de uma

série de motivos: conhecimento prévio do território, facilidade de deslocação ao terreno para localização dos topónimos e de possíveis vestígios arqueológicos, facilidade na consulta documental que, no essencial, se encontrou no arquivo da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira1 e, no plano geográfi co/administrativo, a delimitação de um espaço territorial viável com vista à realização deste trabalho. Deste modo, o que aqui apresentamos resulta de uma súmula do exposto, em defesa pública, em 2004, ao qual acrescentámos alguns apontamentos que, entretanto, se puderam apurar. A par da dissertação que segue, coligimos em forma de catálogo toda a informação recolhida2 e que, do nosso ponto de vista, será a que mais contributo poderá dar para a realização de estudos no âmbito da Arqueologia. Por último, não poderíamos deixar de expressar um especial agradecimento ao Prof. Doutor Carlos A. Brochado de Almeida, paciente orientador nesta difícil tarefa, à Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, na pessoa da Dra. Etelvina Araújo, pelas facilidades concedidas na consulta da documentação utilizada neste trabalho, aos meus pais, à Núria e a todos os que me apoiaram e aconselharam durante todo este tempo.

2. As freguesias em estudo

Teremos que recuar ao período medieval, através do conjunto de documentos denominados Portugaliae Monumenta Historica – Diplomata et Chartae, para obtermos algumas indicações mais precisas sobre estas localidades, que estariam integradas na civitas Sanctæ Mariæ, circunscrição administrativa criada no tempo de Afonso III (866-910), se tivermos em linha de conta a existência em 875 da civitas de Anégia, embora a referência documental mais antiga para o nosso caso

1 Pelo facto, agradecemos, desde já, toda a atenção disponibilizada e facilidade na consulta e leitura da documentação para o nosso trabalho.

2 De forma a não tornar o catálogo demasiado extenso, optámos por colocar somente as categorias ou famílias toponímicas que terão maior interesse para este estudo, directamente (Arqueotoponímia, Toponímia Senhorial, Hagiotoponímia e Toponímia Devocional e, por último, Antropotoponímia).

Filipe Pinto*

* Licenciado em Arqueologia (2000-2004) Faculdade de Letras da Universidade do Porto

CONTRIBUTOS DA TOPONÍMIA PARA A ARQUEOLOGIA: ESTUDO DE ALGUMAS FREGUESIAS DO CONCELHO DE SANTA MARIA DA FEIRA

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remonte a 977 (Barroca, 1990-1991, 92; Mattoso, 1993, 23; PMH, DC, nº 12). De igual modo, terão pertencido ao mesmo território aquando da estruturação do espaço quer em terrae quer em julgados, em reorganizações territoriais posteriores. No século XIX, em 1854, esta situação não era diferente, mantendo-se a ligação em termos administrativos, como pudemos atestar através das Matrizes Prediais Provisórias, documento base para a elaboração da nossa investigação. Do ponto de vista religioso, o panorama não diferia, pois todas as referidas freguesias, desde o século XII, pertenciam ao arcediagado da Feira (Moreira, 1973, 180 e ss.). Se nos detivermos algum tempo com cada uma, ressalta o imediato facto que, do ponto de vista histórico, foi a sede de concelho quem recebeu a esmagadora maioria dos estudos realizados. Autores como Arlindo de Sousa, Cardoso Aguiar, Vaz Ferreira ou Roberto de Oliveira foram alguns dos autores que deram a conhecer o passado deste espaço, muitas vezes centrado na fi gura do castelo ou na sua área envolvente. No entanto, nunca foi levada a cabo a tarefa de criar uma monografi a ou uma colectânea de estudos que traçassem em linhas gerais a evolução desta cidade. É certo que a estrutura castelar existia nos fi nais do século X, mas alguns apontamentos arquitectónicos poderão remeter para uma edifi cação um pouco mais antiga (Barroca, 1990-91, 93). Este espaço denominar-se-ia Santa Maria e somente em 1117 é que nos surge a primeira menção a «Feira», relacionada com a realização de uma feira em núcleo povoado tomando daí o topónimo (DMP, DR, nº 49; Fernandes, 1991, 157). Por seu lado, José Mattoso documenta esta paróquia somente para a centúria de duzentos (Mattoso et alii, 1989, mapa 61), indo de encontro à documentação, portanto. Facto é que, em 1220, através do documento “DE HEREDITETIBUS ORDINUM IN TERRA DE SANCTA MARIA”, tido como pertencente às Inquirições de Afonso II, à excepção das freguesias de Fornos e Travanca, todas as outras localidades que fazem parte deste estudo já se encontram presentes (Oliveira, 1936, 71-74). De um modo geral, as freguesias que fi zeram parte da nossa investigação foram alvo de referências

na documentação. Maior destaque parece ter recebido S. João de Ver, sendo já alvo de indicação no século VIII3 o lugar de Ver e o mosteiro que aí existia; no entanto, ao longo da documentação que dispomos, são variadíssimas as indicações de alguns dos lugares que hoje a integram (PMH, DC; DMP, DR e DP; Livro Preto-Rodrigues et alii, 1999; Oliveira, 1937, 101-104). Relativamente a S. Tiago de Espargo, a primeira referência que nos surge não é a da freguesia em si, mas o ribeiro que hoje aí ainda passa. Datada de 1055 temos “rio de sparago de mazaneta” (PMH, DC, nº 394) e no século seguinte já temos a paróquia formada e pertencente ao arcediagado da Feira (Moreira, 1973, 180) e nas Inquirições dionisinas de 1288 regista-se aí uma quinta, honrando um largo espaço (Mattoso et alii, 1989, 204). Como já indicámos, a freguesia de Fornos não surge na lista de 1220, mas no rol do padroado das igrejas da terra de Santa Maria, datado entre 1220 e 1238, já se regista “Ecclesia de Fornos” e, posteriormente, nas Inquirições de Afonso III como “freguesia de Fornos” (Mattoso et alii, 1989, 110 e 118). No entanto, deparámo-nos com uma referência documental que nos levanta dúvidas quanto à localização do topónimo; no documento número 12 dos Diplomata et Chartae, datado de 897, podemos ler: “ipso acisterio de aciueto uilla de fornos media et quinta (…) de durio in uoaga”. O mosteiro que aqui se indica corresponde ao de S. Miguel de Azevedo, no actual lugar de Azevedo, hoje pertença da freguesia de S. Vicente de Pereira, concelho de Ovar, que terá sido destruído “durante incursões de Almansor” (Mattoso, 1968, 4) e fronteiro a uma localidade que faz parte deste trabalho que é S. Miguel de Souto, da qual pode ter sido antecessor (Oliveira, 1950, 185); a distância entre estes três pontos, Azevedo, S. Miguel de Souto e S. Salvador de Fornos é curta e, desta forma, leva-nos a levantar a hipótese de já no fi m do século IX existir, pelo menos, uma villa no território que abrange esta última localidade4.

3 Se atendermos como correcta a data indicada, 773. (PMH,DC,1)4 Na monografi a editada recentemente sobre a freguesia de S. Salvador, este tema não é abordado, resultando da junção de uma série de artigos escritos num periódico local, mas que abrangem outros temas de claro interesse para a historiografi a local. Veja-se Pinho, José Alves de; “Outrora…Fornos”, Liga dos Amigos da Feira, Colecção Santamariana, nº 16, Santa Maria da Feira, 2005.

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Olhando, agora, para aquela freguesia, a primeira referência que nos surge está datada de 1107 onde encontramos “Sancti Michaelis de Sauto” (DMP, DP, 233), ou seja, este lugar ou paróquia – a indicação não nos esclarece totalmente – adoptou o orago do mosteiro, estando aquela já criada em 1220 (Oliveira, 1936, 71-74). Hoje, S. Miguel de Souto, é a localidade mais a sul do concelho de Santa Maria da Feira, fronteiriça do concelho de Ovar, do qual fi zeram parte daquela terrenos descritos na Matriz Predial Provisória de 1854, com claro interesse para a arqueologia, como é o caso do topónimo Torre, apesar desta estrutura já não existir, mas o local está bem referenciado pela população local. Outra freguesia que estudámos, S. Pedro de Sanfi ns, encontra-se dada como existente já no século XII (Moreira, 1973, 208; Mattoso et alii, 1989, mapas 60 e 61) e encontra-se próxima do traçado da antiga via romana Olisipo-Cale, que passa em S. João de Ver. No local denominado de Quinta dos Passais, obtivemos a informação de que nesse local existiu a antiga igreja da freguesia e respectivo cemitério no adro. Em revolvimentos de terras encontraram-se azulejos com altos-relevos. Pertencente a este mesmo edifício foi preservada a pia baptismal, manuelina, em peça de granito, octogonal, hoje adaptada a fontanário no mesmo local (fi g. 1) Por último, temos a freguesia de S. Mamede de Travanca, da qual as referências documentais mais antigas reportam-se aos inícios da centúria de XII, como “uilla de Trauanca” (DMP, DP III, 141 e 233; Livro Preto-Rodrigues et alii, 1999, 717), fi gurando igualmente no rol de freguesias pertencente ao arcediagado da Feira (Moreira, 1973, 214)5, embora tenha sido paróquia anexa de S. Nicolau da Feira (Santos, s/d, 196).

Como podemos constatar, não existem muitas indicações da história destas freguesias com excepção dos casos mencionados anteriormente, para além de ser possível adiantar que quase todas elas surgiram em torno do século XII, num período em que a fronteira do, ainda denominado, Condado Portucalense rumava a sul do Mondego.

Por outro lado, as parcas referências antigas talvez evidenciem uma falta de investigação no domínio local e a consequente exploração de variadíssimos campos que poderiam trazer à luz do conhecimento informações que, cotejadas sob várias perspectivas, seriam passíveis de formar quadros cognitivos acerca desta região. É um trabalho que se nos afi gura necessário, buscando uma síntese da evolução de cada localidade de forma a ser enquadrada na problemática regional.

2. O quadro geográfi co

Inserido na região Norte da província da Beira Litoral, o concelho de Santa Maria da Feira – e mais concretamente as freguesias objecto deste estudo – é um seguimento da paisagem de além Douro, do Noroeste português, onde “as planícies, depressões e vales alinhados estão cobertos por inúmeros casais, lugarejos e aldeias” e a habitação “exprime perfeitamente uma área de pequena exploração agrária acompanhada de pastoreio ou criação de gado de lavoura” (Ribeiro et alii, 1987-1991, 838 e 859), à qual se pode acrescentar a presença de espigueiros, eiras, lagares, moinhos e currais, dependências domésticas que perecem com as alterações tanto sociais como paisagísticas e que começam a rarear nos dias que correm.

(Foto do Autor)Fig. 1 – Pia baptismal, manuelina, de secção octogonal, encontrada na Quinta dos Passais, em S. Pedro de Sanfi ns.

5 Este autor indica a existência deste topónimo já em 1046, o qual não sabemos se para este caso. (Moreira, 1989-1990, 82).

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O povoamento disperso característico desta região origina o retalhar do espaço, ao mesmo tempo que cria estreitos laços com a terra cultivada (Ribeiro, 1991, 318), impregnada de água das chuvas e humidade dos nevoeiros, dando azo à policultura num sistema de regadio (Ribeiro, 1991, 320). Vários caminhos e estradas percorrem estas localidades, que a par das habitações e demais construções, misturam-se com a ainda signifi cativa mancha fl orestal e agrícola, evidenciando um passado não muito distante ligado ao amanho da terra e criação de gado.

2.1. Aspectos geomorfológicos

Enquadrada na faixa atlântica do Entre Douro e Vouga, a área abrangida por este estudo, do ponto de vista do relevo, estende-se desde zonas em que se registam “aluviões actuais e areias de duna” (Teixeira e Assunção, 1963, 6), ou seja, áreas de baixa altitude, que podem chegar a cotas de 130 metros, até locais onde se registam altitudes na ordem dos 300 metros, pertencendo já a um maciço orográfi co, designado por “relevo marginal” e que se estende no sentido Nor-Noroeste/Sul-Sudeste, iniciando o seu desenvolvimento a partir dos 120-140 metros (Araújo, 1991, 21)6 “através de diversos patamares” (Araújo, 1991, 31). O contacto entre estas duas realidades geomorfológicas “é, em geral, rectilíneo e abrupto, o que denuncia uma origem tectónica, tendo o rebordo sido depois retocado pela erosão marinha e continental” (Ferreira, 2005, 91). Sob ponto de vista geológico, na generalidade, esta área assenta “sobre terrenos xistentos ou granito-gnáissicos, quase sempre muito alterados” (Teixeira e Assunção, 1963, 8), muitas vezes exercido por metamorfi smo regional e acções de granitização (Teixeira et alii, 1962, 12). O complexo xisto-grauváquico ante-ordovícico ocupa grande superfície do território analisado. Parte substancial de todas as freguesias, à excepção de São João de Ver, apresenta

“terrenos formados por rochas variadas, em que se encontram granito-migmatitos, gnaisses, micaxistos, xistos luzentes” (Teixeira e Assunção, 1963, 13). Filões ou veios de granito irrompem, predominando os granitos de grão médio e fi no, alcalino, de duas micas, muitas vezes chamado «granito do Porto»; destacamos as manchas de Aldão, já referidas, e as de S. André, Quinta da Cruz, Montinho (Pedreira das Penas) e Remolha, em Santa Maria da Feira (Teixeira e Assunção, 1963, 14). Assim, conclui-se que os mais antigos solos existentes remontam ao complexo xisto-grauváquico ante-ordovícico, denunciando a presença de um mar ancestral, onde, ao longo dos tempos, foram sendo depositadas partículas que terão sofrido, posteriormente, acções de metamorfi smo regional e movimentos tectónicos; em alternância com estes níveis encontramos conglomerados, os quais expressam a presença de quartzo. Deste período temos, igualmente, a formação do «granito do Porto» (Teixeira et alii, 1962, 23). As linhas de água, abundantes, tomam a direcção, de um modo geral, da costa, mas correndo de forma perpendicular a esta. Este fenómeno está ligado a uma “rede de fracturação” na área de maior relevo (Araújo, 1991, 36). A mesma autora identifi ca-a como a “falha Porto-Tomar” (Araújo, 1991, 85), que parece-nos compreender o que Denise Ferreira identifi ca como “la plate-forme continentale nord-portugaise, du Minho et de la Beira Litoral (…) n’est pas très large (45 km em moyenne) et elle est limitée à l’ouest par une rupture de pente nette vers – 160m” (Ferreira, 1981, 31).

Para a área em estudo destacam-se as Ribeiras de Beire e a da Crujeira, em São João de Ver, as Ribeiras da Remolha e de Cáster, em Santa Maria da Feira e a Ribeira de Laje, em Fornos.

Os rios mais importantes da região como o Uíma, Caima, Arda e Antuã, saem já fora do espaço analisado.

2.2 Aspectos climáticos

Fazendo parte do que podemos chamar Noroeste de Portugal, estamos perante um clima de

6 Na página 30, indica que este mesmo “relevo marginal” inicia a 160 metros de altitude.

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tipo atlântico (Daveau, 1995, 44), ou seja, esta região caracteriza-se por Verões frescos e Invernos suaves, onde a precipitação supera os 1000 mm. Os nevoeiros são frequentes, mesmo durante a época estival, tal como as trovoadas. Quanto aos primeiros, denominados de “nevoeiro de advecção litoral”, consistem na “condensação da humidade da atmosfera em contacto com as águas marinhas frescas” (Daveau, 1985, 36). Localiza-se a baixa altitude e é um “fenómeno estival” (Daveau, 1985, 36) Apesar de receber brisa quer do litoral quer do interior, o ar é bastante húmido ao longo de todo o ano (Ribeiro et alii, 1987-1991, 365).

Nesta região regista-se precipitação durante todo o ano, embora esta incida com maior intensidade entre os meses de Outubro a Março (Araújo, 1991, 50). Este fenómeno corresponde aos ventos predominantes de Oeste, no Inverno; essas massas de ar húmido param nos maciços que se encontram logo a seguir à costa, elevando, assim, os níveis de pluviosidade (Ribeiro, 1986, 102 e 107).

A temperatura não atinge grandes amplitudes, com subidas e descidas graduais. Por exemplo, na estação da Serra do Pilar, a temperatura média anual é de 14,4ºC (Araújo, 1991, 40).

Estamos, desta forma, perante um clima atlântico, de fraca amplitude térmica, nevoeiros frequentes e que poucas vezes é assolado por vagas de calor continental (Ribeiro et alii, 1987-1991,454), e elevadas quantidades de precipitação.

2.3. Recursos naturais: fauna e fl ora

Relativamente a este último ponto e iniciando pela fauna, constata-se que o gado vaccum, outrora bastante presente na vida económica das famílias no trabalho das terras, transporte de produtos e importante para a alimentação, no presente é residual; bem como o gado caprino, ovino e suíno, embora este último ainda tenha um papel primordial na alimentação da população e, etnografi camente, poderíamos considerar a «matança do porco» como um evento social, ou seja, uma tradição (Almeida, 1978, 100-102). Bastante abundante é a presença de galiná- ceos e, em menor número, de coelhos, que não

exigem grandes espaços de alimentação ou criação, constituindo, igualmente uma parte importante da dieta alimentar popular. Os primeiros, em conjunto com o gado bovino e suíno, “continuaram a crescer”, devido às necessidades alimentares crescentes da população (Daveau, 1995, 164).

Uma nota para a residual presença de gado asinino e cavalar. No que concerne à fl ora, as zonas ribeirinhas ou lameiros que abundam nesta região, “oferecem também condições especialmente favoráveis às espécies nórdicas”, como são os choupos, os amieiros, os freixos e salgueiros (Ribeiro et alii, 1987-1991, 547), que não raramente estão presentes na nossa toponímia (Nunes, 1920). Ainda nesta região norte temos o caso do pinheiro bravo, várias espécies de tojo e o feto comum, enquanto que o carvalho surge em altitudes um pouco mais elevadas (Ribeiro et alii, 1987-1991, 551 e 553). Os espaços destinados à agricultura não são muito grandes – esta é uma área de minifúndio – estando reservada uma área junto à casa de habitação para a policultura, normalmente designada de quintal. Aí cultivam-se leguminosas e variados produtos hortícolas. A vinha também está presente bem como pomares onde a macieira, a pereira, o pessegueiro, a laranjeira, o damasqueiro e o marmeleiro são plantados (Ribeiro et alii, 1987-1991, 571). Esta região, quanto a cereais, é dominada pela plantação de milho. A introdução deste no século XVI, vai protagonizar, nas palavras de Orlando Ribeiro, uma “transformação da economia agrária, revolução do povoamento” (Ribeiro, 1991, 192); o milho (maís) adequa-se ao minifúndio, à paisagem do povoamento disperso como a que estamos em presença.

Em resumo, esta é uma paisagem que, sob vários pontos de vista, não difere em muito da que podemos observar a Norte do Douro, sintoma de que existe alguma continuidade do ponto de vista paisagístico onde as vivências das populações tiveram que saber gerir para que os dividendos pudessem ser os mais proveitosos.

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3. A Toponímia Feirense

3.1. Estudos efectuados sobre o tema

A Terra de Santa Maria foi já alvo de variados estudos, tanto pela mão de «eruditos locais» ou então num contexto universitário/científi co, maioritariamente de carácter histórico, tendo como ponto de referência o seu castelo, como anteriormente referimos. Desde o século XIX que a bibliografi a sobre a Feira e a sua história, principalmente desde a época medieval, foi crescente, primeiro com algumas notas incluídas em monografi as7 e artigos em periódicos locais8, estes já na centúria seguinte, os quais escritos por autores locais, onde o denominador comum seria o de “sublinhar glórias ou acontecimentos” (Mattoso et alii, 1989, 17-18). Na primeira metade do século XX, nomes como Fernando de Tavares e Távora, Aguiar Cardoso e Henrique Vaz Ferreira são a referência da história local, este último com vários textos publicados versando sobre questões históricas e desencadeando a querela9, em 1939, já de si igualmente histórica, entre Faria e Feira – contencioso este que tinha como ponto central saber qual destas fortifi cações, em conjunto com a de Castelo de Neiva, teria apoiado o infante D. Afonso Henriques na sua sublevação perante D. Teresa, sua mãe, culminando no confl ito de S. Mamede, em Junho de 1128 –, com Artur de Magalhães Basto, Alfredo Pimenta e Baptista Lima, prosseguindo nos anos seguintes (Mattoso et alii, 1989, 21). Esta situação pareceu fi car clarifi cada, durante a década de 50, com as pesquisas de Rui de Azevedo fazendo cair a sua opinião em favor de Faria (DMP, DR, 1958, 601).

Para meados e segunda metade do século XX, Arlindo de Sousa, igualmente com vários artigos publicados no domínio da história local, em grande parte devedores da linguística e da fi lologia, indica uma

nova forma de abordagem destas temáticas. Aliás, muitos dos seus textos histórico-arqueológicos na região da Terra de Santa Maria baseiam-se em estudos de toponímia, sendo o único autor local, a par de Domingos A. Moreira10 que, de forma mais genérica ou específi ca, têm o mérito pelas pistas e conclusões que oferecem e no registo de topónimos que, entretanto, se poderão ter perdido. Por exemplo, na obra “Respigos de Toponímia Feirense”11, A. de Sousa buscou uma maior sistematização e metodologia, colocando os diversos topónimos por «famílias» a par de uma explicação etimológica do vocábulo, constituindo assim, em conjunto com o artigo “Toponímia Arqueológica de Entre Douro e Vouga (Distrito de Aveiro)”, os únicos casos em que existe uma clara intenção de inventariação/registo de topónimos relacionados com uma determinada região ou com uma área de estudo mais específi ca. Nesta linha de trabalhos temos Domingos A. Moreira, como referido, nome de sobremaneira conhecido pela sua investigação principalmente no campo da onomástica, realizando muitos estudos sobre a Terra de Santa Maria e outros espaços relacionados com o curso fi nal do Douro. Dedicou-se muito ao estudo da freguesia de Santa Maria de Pigeiros tendo publicado, inclusive, a sua monografi a12. Roberto Vaz de Oliveira é outro rosto deste período, com “extensos e bem documentados artigos”, incidindo de sobremaneira na então Vila da Feira (Mattoso et alii, 1989, 26). Durante a primeira metade da década de 90, tal como nas décadas de 40 e 50, com protagonistas diferentes, acendeu-se uma acérrima discussão entre José Mattoso, que nos últimos anos, em conjunto com a sua equipa de investigadores, expuseram e publicaram obras sobre a Terra de Santa Maria, com várias temáticas desenvolvidas, e A. de Almeida Fernandes. Respostas e contra-respostas vieram a público, tendo por base questões dos primórdios da nacionalidade e o papel da

7 Referimo-nos ao trabalho de Marques Gomes “O Districto de Aveiro”, de 1877.8 “ São exemplos o “O Comércio da Feira”, “O Progresso da Feira”, “Democrata Feirense” e “Vila da Feira”.9 Os artigos estão reunidos num único exemplar denominado “Castelo da Feira, onde nasceu Portugal”.

10 Vide títulos destes autores na bibliografi a deste trabalho.11 Esta obra resulta da compilação de artigos publicados no jornal A Tradição, entre 1932 e 1946, pelo autor. O exemplar consultado encontrava-se incompleto, terminando na página 107.12 As monografi as que surgiram até há bem pouco tempo na região foram publicadas por clérigos, casos de Fiães, Romariz e Duas Igrejas (lugar de Romariz), fazendo referências a situações de carácter histórico-arqueológico e, por vezes, toponímico.

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terra de Santa Maria nesse contexto, arrastando-se aos temas subsequentes analisados pelos autores. Desta forma, nota-se que para este território nunca foi posto a público nenhum trabalho sistemático, como os vários de A. de Almeida Fernandes para variadas zonas do Norte do país, no âmbito da toponímia, embora, e como já referimos, Arlindo de Sousa tenha efectuado, bem como Domingos A. Moreira ainda continua a desenvolver, estudos pontuais, com interesse histórico e, neste caso específi co, arqueológico.

3.2. Distribuição etimológica dos topónimos13

Não é nossa intenção com este tema enveredar pelos caminhos que à Linguística/Filologia dizem respeito. Não vamos efectuar ou abordar a evolução e muito menos questionar a origem dos termos que compõem os topónimos que nos serviram como base de estudo por dois motivos: o primeiro, pela manifesta falta de preparação e conhecimentos linguísticos da nossa parte; a segunda, que se resume no título e objectivo deste estudo, ou seja, buscar na toponímia pistas para o desenvolvimento do labor arqueológico. Das sete freguesias alvo de análise, após recolhida a sua toponímia, tendo como principal base documental as Matrizes Prediais Provisórias de 1854 para cada uma das localidades, à qual adicionamos o levantamento cartográfi co14, recolha oral e leitura de documentação relativa à região, podemos desde já asseverar que a etimologia predominante, abrangendo uma signifi cativa parte dos elementos recolhidos, é a latina. Não surpreende, pois, este resultado em todos os grupos toponímicos, à excepção da antroponímia, onde os germanismos ombreiam com os latino-cristãos. Incluiremos, somente, algumas notas nos elementos que constituem a excepção deste acervo toponímico, nas próximas linhas.

Assim, e começando pela toponímia pré-romana, esta encontra-se presente, principalmente em

termos como Barroca, Barreirinho, Barreiro ou Barrosas, utilizando um exemplo comum à maioria das freguesias, em que apresentam o elemento bar/barr pré-romano, ou então Várzea, dentro da mesma família toponímica, “com raiz pré-céltica bar «depressão» ” (Piel, 1947a, 174; Baptista e Fernandes, 2001, 33 e 236). As águas, com topónimos como Badoucos, também refl ectem a remota ancestralidade etimológica do termo (Fernandes, 1999, 64-65).

Mas, entre mãos temos igualmente topónimos cuja raiz é pré-romana/pré-latina e depois usadas no latim com maior ou menor variação terminológica. Como exemplo temos o caso do fi totopónimo Pinheiro, e toda a sua família, que tem origem no latim pinu-, mas que alberga na sua formação o radical pré-romano pin- (Baptista e Fernandes, 2001, 185 e Machado, 1995, DE-4, 368). Para o caso de um arqueotopónimo: Laje, do latim lagena, termo este com origem no pré-romano lag- ou mesmo no céltico lagena, com signifi cado de pedra plana (Fernandes, 1995, 74; Fernandes e Silva, 1995, 109; Baptista e Fernandes, 2001, 137 e Machado, 1995, DE-3, 375-376 ). Desta forma, podemos ter em linha de conta ainda hoje, em não raros casos, elementos anteriores à romanização que subsistem na nossa linguagem, ou então que foram «assimilados» pelo latim, fazendo parte do nosso discurso.

Relativamente ao da toponímia germânica teremos de efectuar, desde já, uma distinção: a de nomes comuns e nomes relativos a pessoas (antropónimos), porque “entre os quais existe uma desproporção enorme. Ao passo que o número daqueles é insignifi cante, estes contam-se por milhares” (Piel, 1942, 12-13). E é exactamente a situação que ocorre nestas freguesias: a presença germânica faz-se notar através da antroponímia, senão seria diminuta. Todas apresentam elementos desta natureza, mas devemos destacar a existência de dois focos onde estes ocorrem com maior frequência: S. João de Ver (Airas, Gondufe e Gueifar) e S. Nicolau de Santa Maria da Feira (Balteiro, Guimbras15 e Gavinhos). A explicação para tal facto

13 Neste ponto, iremos dar alguns exemplos de topónimos que não estão enquadrados na temática proposta deste texto, mas que fi zeram parte do levantamento efectuado durante a nossa investigação.14 O levantamento cartográfi co correspondeu aos mapas nº 143 e 153, à escala 1/25000, de 1948, 1975 e 1998, do Instituto Geográfi co do Exército.

15 No próximo capítulo atentaremos, de forma mais detalhada, sobre este topónimo.

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não será simples, mas poderão ser pistas que poderão interessar à Arqueologia, num contexto de ocupação do território. A presença destes nomes espelha o interesse por estes territórios desde o século V d.C. e note-se que, no âmbito da sua localização espacial, estão, na maioria dos casos localizados, em actuais zonas agrícolas, férteis, próximas de uma linha de água. (Pinto,2004,19) Com isto não vemos aí de seguida o vestígio material, com que a Arqueologia é rapidamente conotada, mas antes uma propriedade que foi baptizada/rebaptizada com o nome do seu possessor. Como indica Piel, a presença de um nome germânico/godo “indica única e exclusivamente que, em determinada época da Idade Média, esta localidade foi propriedade de um indivíduo de nome visigodo” (Piel, 1942, 28). A razão da sua permanência na memória talvez estará no facto de que a antroponímia germânica dominar o onomástico até ao século XII (Piel, 1942, 19), ou seja, cerca de 700 anos em que as alterações, mesmo as mais signifi cativas como a invasão muçulmana e um pretenso ermamento, não conseguiram apagar; queremos com isto dizer que, possivelmente, alguma desta toponímia seja do período anterior ao reino visigodo (Fernandes, 1997, 27-28). Por outro lado, admitiu-se, igualmente, a conotação da ideia de presúria à origem deste tipo de toponímia em território português (Piel, 1942, 27; Moreira, 1992, 402). Muito pouco expressiva é a presença, de étimos árabes. Surgem-nos, a título de exemplo, através dos termos Açude, Aldeia e Azenha, mais comuns, e Atalaia, um caso excepcional na freguesia de S. Mamede de Travanca. Todos estes são respeitantes a arqueotopónimos. Esta escassez toponímica conduziu-nos às seguintes questões: poderá esta diminuta visibilidade toponímica ser um refl exo histórico, uma forma de evidenciar a sua efémera passagem nestes territórios, onde a sua língua não teve tempo sufi ciente para se enraizar junto da população? Ou uma simples coincidência geográfi co-histórica? Para além dos topónimos enunciados poucos são os que restam como vestígio da sua passagem ou

contacto com as populações. Estes são Algueire (Azenha do), ligado a depressões no terreno, (Machado, s/d, 95), em S. Miguel de Souto, Arrifaninha, conotado com elevações ou declives (Baptista e Fernandes, 2001, 24 e Fernandes e Silva, 1995, 39) e Xarca/Charca, uma “fenda, terreno despenhado e apertado, garganta entre colinas” (Lopes, 1922, 270 e Sá, 1970, 20), ambos em S. Nicolau de Santa Maria da Feira. Todos eles reportam-se a aspectos orográfi cos sendo considerados como geotopónimos, portanto.

No que respeita à toponímia que poderemos considerar como pós-medieval ou moderna, é difícil descortinar palavras oriundas de tal época – derivações de outras já existentes talvez sejam as mais frequentes como é exemplo Cruzeiro, que considerámos um topónimo devocional não hagionímico (Baptista e Fernandes, 2001, 84).

Uma última nota vai para o número de topónimos não colocados em nenhum grupo toponímico. Estes rondam as oito dezenas de casos, pautando-se a maior parte por uma grafi a para os quais não conseguimos encontrar correspondência actualmente e alguns, que ainda hoje se utilizam, como é o caso de Valejada, em S. Salvador de Fornos, não conseguindo atribuir-lhe um signifi cado ou uma referência que sobre ele fi zesse luz.

No caso concreto que à Arqueologia diz respeito, a distribuição toponímica que nos pode ser útil vem de diferentes quadrantes linguísticos e, igualmente, de diferentes grupos toponímicos, com predominância dos étimos latinos, como salientámos, mas a conjugação de todos estes elementos, com mais informações provenientes de outras fontes, que analisados com as devidas cautelas, poderão revelar através de um trabalho sistemático alguns frutos.

3.3. – Toponímia e Arqueologia: que pontos de contacto?

À partida, um trabalho de investigação arqueológica com base na toponímia corresponde a uma tarefa “tão aliciante quanto «escorregadia»” (Vieira, 2005, 53), de forma que ora nos sugere um conjunto de dados passíveis de interesse como nos torna difícil gerir toda essa informação, conseguir aplicá-la na prática e

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retirar daí resultados concretos. Apesar da possibilidade do topónimo ser uma referência muito antiga (Fernandes, 1994, 124), o facto é que aquando do levantamento efectuado sobre um determinado espaço – que no nosso caso teve como principal fonte a Matriz Predial Provisória de 1854 – “ no seu conjunto, referem-se unicamente a uma realidade contemporânea. Só quando isolarmos cronologicamente grupos toponímicos poderemos estabelecer uma reconstrução histórica, necessariamente parcial” (Ferreira e Soares, 1994, 99) desse mesmo espaço. Desta forma, a Arqueologia pode ter aqui um rico manancial de informação, com vista à prossecução das suas prospecções, através de pistas sugeridas por determinados topónimos (Rodrigues e Barreira, 1994, 169) com vista a uma acrescida efi ciência na análise das estratégias de percepção, ocupação e exploração do espaço ao longo dos tempos pelo homem, tendo, à partida presente que a perda de topónimos é um fenómeno correspondente “de todas as épocas e de todas as situações” (Fernandes, 1997, 16) e que estes teriam uma clara “apreensão visual” (Andrade, 2003, 83). Num momento em que ao percorrermos, principalmente, as nossas vilas e cidades, a toponímia que vemos atribuída corresponde a “ondas comemorativas (…) que o correr do tempo tem esvaziado de sentido” (Andrade, 2003, 83) e quando a pressão urbanística – bastante visível na área que escolhemos para a realização deste estudo – é bastante acentuada, mais nos parece adequada a necessidade de um trabalho desta ordem, com vista, de igual modo que para o campo técnico da Arqueologia, à tentativa de preservação de um dos últimos fenómenos de memória popular. Abordando, de seguida, o conjunto toponímico alvo desta exposição referente a sete freguesias do concelho de Santa Maria da Feira (São João de Ver, São Mamede de Travanca, São Miguel de Souto, São Nicolau de Santa Maria da Feira, São Pedro de Sanfi ns, São Salvador de Fornos e São Tiago de Espargo), o levantamento por nós realizado recolheu nas diversas fontes consultadas um total de 2129 topónimos16, dos

quais foram localizados 540 (25,36%), enquanto que a larga maioria carece de localização, 1508 (70,83%). De todo o conjunto, ainda a ressalva para 81 topónimos (3,80%) que não foram colocados em nenhum grupo toponímico quer por dúvida na grafi a original, por completo desconhecimento ou falta de referência nas fontes que utilizámos para o efeito, visto que não é nossa intenção abordar a formação e evolução etimológica dos termos por manifesta falta de conhecimento, como já enunciamos anteriormente. Deste valor geral, e ao que à Arqueologia interessa neste caso específi co, embora tenhamos em linha de conta que toda a toponímia é importante como elemento caracterizador e, ao mesmo tempo, construtor de paisagens, resulta que os arqueotopónimos representam 20% do total (426 casos detectados), ou seja, a quinta parte do universo dos elementos em estudo e estamos em crer que, só por si, este grupo evidencia um signifi cativo índice de ocupação do espaço. Como termo comparativo, o grupo toponímico mais representativo do nosso catálogo é o da geotoponímia, onde se encontram 475 topónimos (22,31%); a diferença é, pois, pequena e anulada se adicionarmos à arqueotoponímia os valores da toponímia senhorial, da hagiotoponímia/toponímia devocional e antroponímia, categorias/«famílias toponímicas» estas que revelam elementos de interesse de índole histórico-arqueológico. Totalizaríamos, assim, 637 topónimos (29,92%), reforçando a ideia acima exposta de uma clara e signifi cativa possibilidade de ocupação não residual do espaço destas freguesias, tendo sempre em linha de conta que este estudo é cronologicamente transversal.

Portanto, nas linhas que se seguirão serão estes quase 30 % que estarão sob a nossa análise, apesar de grupos como a geotoponímia, fi totoponímia, hidrotoponímia, toponímia demo-agrária, zootoponímia e alcunhas/apelidos não se poderem descartar num contexto mais vasto da investigação de um determinado local.

Iniciando com exemplos que devemos relacionar com os tempos pré-históricos, os elementos de expressão megalítica predominam; termos como Mamoa(s) (Moreira, 1969, 22; Silva e Fernandes, 1995, 117; Baptista e Fernandes, 2001, 145) e

16 Aquando da apresentação do nosso Seminário de Projecto, em 2004, o número de topónimos cifrava-se em 2102, mas em posterior revisão para este texto foram acrescentados 27, perfazendo a soma de 2129 topónimos.

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Anteiro (Fernandes, 1999, 49) são os que nos parecem mais claros e objectivos, mas existem denominações que também lhes poderão dar correspondência, tais como Arceiros (Baptista e Fernandes, 2001, 21), Arcapedrinha (Silva e Fernandes, 1995, 32-33; Baptista e Fernandes, 2001, 21), Arca (Baptista e Fernandes, 2001, 21), Pala (Silva e Fernandes, 1995, 134; Fernandes, 2002a, 119) e Orreiro(s) (Fernandes, 1999, 451). É claro que só com recurso a métodos de prospecção aturada se conseguiria asseverar acerca da sugestão que aqui apresentamos. Em termos territoriais, existe maior predominância destas formas toponímicas nas freguesias de S. João de Ver, com um núcleo junto à Estrada Nacional Nº1 (Pinho, 1983, 60), Travanca e Santa Maria da Feira. Se se registar a presença de megálitos em Souto, Fornos ou Espargo será tida em atenção o topónimo Orreiro(s).

Ainda de referir a presença do étimo Lapa, que pode sugerir a existência de algum tipo de abrigo rupestre (Fernandes, 1980-1983, 286; Baptista e Fernandes, 2001, 138).

Prosseguindo, de seguida, para os elementos relacionados com estruturas defensivas, a grande maioria das situações catalogadas remete-nos para exemplos como Devesa(s) (se for confi rmada a antiguidade do étimo, que a isso referia) ou Devesa Velha – um caso de topónimo composto – e Vala, com toda a sua toponímia derivada, onde se poderá testemunhar a presença de muros ou taludes escavados no terreno (Moreira, 1969, 56; Fernandes, 1995, 120-121; Silva e Fernandes, 1995, 84; Fernandes, 2002a, 61).

Mas, ainda relativamente a estruturas defensivas, também temos o registo de casos como Castelo (Fernandes, 1980-1983, 271-2), Crestelo e Crestelo de Milheirós17 (Baptista e Fernandes, 2001, 84), Penelas (Fernandes, 1999, 470) e Atalaia (Baptista e Fernandes, 2001, 25), remetendo-nos para construções mais ou menos elaboradas arquitectonicamente, mas que, indirectamente, nos levam a considerar a proximidade de locais de passagem, vias primárias ou

secundárias, a proximidade de povoações, para além do domínio visual da área em redor. Para o caso de Crestelo de Milheirós, este situar-se-ia no local ou nas proximidades do, entretanto construído, complexo Europarque18, podendo ter sido destruído, portanto.

Nas sete freguesias que estamos a analisar é comum encontrar, como locais de estabelecimento, de povoamento, topónimos como Casal (Silva e Fernandes, 1995, 64; Fernandes, 2002a, 44), Aldeia (Silva e Fernandes, 1995, 28) e Póvoa (Silva e Fernandes, 1995, 144-145). A sua dispersão pelo território é grande e, em alguns casos as referências que recolhemos reportam-nos para o século XII 19 (DMP, DP III, 25 e 277).

Os topónimos Castelo, Crestelo e Crestelo de Milheirós também aqui se enquadram, sendo os únicos casos que nos reportam para povoamento antigo.

Ainda neste domínio, indicamos os topónimos Adega(s), de sentido vinícola evidente (Silva e Fernandes, 1995, 25), Praça (Silva e Fernandes, 1995, 145) e Rossio, sendo um local público onde poderia decorrer a feira20 (Machado, s/d, DO-3, 1280), apesar da sua escassa representatividade, constituirão indicadores de povoamento, mesmo que não antigo.

Dando continuidade, desta vez com estruturas hidráulicas, ao nosso estudo, são muito frequentes os topónimos Azenha e Moinho, para a moagem de cereais (Baptista e Fernandes, 2001, 27 e 155) e dos canais que transportam e retêm/armazenam a água, as Levadas e os Assudes (Machado, 1958, 55; Silva e Fernandes, 1995, 112).

Muitas destas estruturas hidráulicas ainda persistem na paisagem (fi g. 2), a sua esmagadora maioria em ruínas e envolta pela vegetação, muitas vilipendiadas levando moegas, rodízios e mós moventes, descaracterizando o espaço e descontextualizando as peças.

17 O facto de ser assim designado poderá ser uma indicação para a possível existência de um outro povoado deste género nas imediações?

19 Vide catálogo a incluir na separata.20 Como actualmente ainda acontece em Santa Maria da Feira, a feira mensal realiza-se no largo do Rossio.

18 Até à data não conseguimos apurar a existência de qualquer notícia sobre o aparecimento de vestígios no local, ou se foi efectuado algum tipo de estudo prévio no local.

125

As Presas, ou Represas, também são comuns, servindo para armazenar grandes quantidades de água, normalmente para rega (Silva e Fernandes, 1995, 145), embora alguns dos casos identifi cados revelem que já estão fora de uso e ao abandono. Um exemplo detectado na freguesia de S. João de Ver, reporta-se à existência de presas que serviam para rega comunitária ainda não há muitos anos, sendo a água transportada através de pequeno canais abertos na terra; daí que possamos encontrar presas, digamos que, isoladas.

Tal como as Azenhas e os Moinhos, muito frequente é a presença da toponímia de Fonte, confi rmada ainda nos dias de hoje com os muitos fontanários para abastecimento da população na região.

Finalmente, menção para os exemplos Cal, Canal e Caneiros, ou seja, condutas para transporte de água, que podem ser construídas em diferentes materiais – pedra, madeira ou em terra – (Fernandes, 1995, 205; Silva e Fernandes, 1995, 58; Baptista e Fernandes, 2001, 54; Fernandes, 2002b, 35). O topónimo Couce também pode ser enquadrado neste grupo, apesar da possibilidade deste ser sinónimo de

outro tipo de vestígios (ponte ou fonte) ou remeter para a topografi a (Moreira, 1969, 30-31; Fernandes, 1995, 312 e 325-326; 1999, 32-33; 2002a, 15), o que, mais uma vez, só pode ser esclarecido analisando cada caso.

Um outro grupo que se conseguiu distinguir dentro da arqueotoponímia é o das estruturas ligadas às lides agrícolas e pecuárias. Desta forma, topónimos como Cancela(s), Cancelhinhos, Cerca ou Cercal, revelam exemplos de prédios rústicos vedados, não exclusivamente por muros, mas a sua presença pode ser digna de registo. Os dois primeiros casos, em situação de comprovação histórica, poderão indicar limites de uma grande propriedade, talvez uma villae, através da delimitação dos campos (Silva e Fernandes, 1995, 59; Fernandes, 1999, 134-135; Baptista, Fernandes, 2001, 54 e 67; Fernandes, 2002a, 46-47) e onde a presença do termo Esquieiro reportaria para a sua entrada ou passagem entre terrenos desnivelados (Machado, s/d, DO-2, 591). Barracão e Curral seriam os locais para arrumação de alfaias, produtos agrícolas e o próprio gado, por exemplo (Moreira, 1969, 56-57; Silva e Fernandes, 1995, 82-83; Baptista e Fernandes, 2001, 86).

Dentro deste âmbito é bastante comum a presença de topónimos como Eira(s) ou Eiras de Cima – exemplo composto -, geralmente de índole privado, também existia a eira pública por vezes, onde “se malhava, secava, divertia” numa “área mais ou menos plana” (Fernandes, 2002b, 59).

Para último lugar deste conjunto deixamos a toponímia ligada a Orreiro(a)/Orreiros(as), que aqui colocamos com reservas pelo facto de, apesar da bibliografi a indicar, através de comprovação documental, a possibilidade de designar um celeiro (Baptista e Fernandes, 2001, 233), o facto é que estas estruturas de armazenamento são comummente designadas por canastros ou espigueiros; mas, apesar da diferença não podemos passar ao lado desta hipótese21. Somente

Fig. 2 – Aspecto de um moinho abandonado no lugar dos Moinhos, em S. Salvador de Fornos.

(Foto do Autor)

21 Anteriormente, para esta forma toponímica, foi apresentada a hipótese de se referir a monumentos megalíticos, dada a difi culdade, por vezes, de interpretação do topónimo.

126

com uma aturada investigação sobre estes locais e buscas de paralelismos é que se poderão desvanecer as dúvidas subsistentes.

Para se efectuar uma ligação física entre todos os elementos que temos vindo a enunciar, as vias teriam aqui uma importância fulcral. E essa mesma importância parece-nos bem patente não só na sua capacidade de se prolongar na memória popular pela toponímia mas pela enorme quantidade de termos que registámos. São abundantes as Carreiras, Carreira de … – topónimo composto – ou Carreiro (Moreira, 1969, 60; Baptista e Fernandes, 2001, 61) aos quais se junta, de um ponto de vista distinto22, ao que nos parece através da análise do levantamento documental, principalmente nas matrizes prediais, a Estrada (Estrada Nova, Estrada do Chão d’Alem, por exemplo) (Moreira, 1969, 60; Baptista e Fernandes, 2001, 98). Ponte e Caminho surgem, igualmente, com regularidade e permitem adensar a malha viária da região (Fernandes, 1980-1983, 305-306; Silva e Fernandes, 1995, 142-143; Baptista e Fernandes, 2001, 53), situação que já não

acontece com Calçada, com representação residual, mas de carácter viário evidente (Machado, s/d, DO-1, 319; Baptista e Fernandes, 2001, 51) (fi g. 3).

Ligado ao primeiro ou tornando-se seu sinónimo seria o topónimo Couce, indicativo do arco da ponte e tomando-a como um todo (Moreira, 1969, 30-31; Fernandes, 1999, 32-33), como tivemos já oportunidade de indicar, mas especifi cidades como esta necessitariam de estudo caso a caso. Ainda possivelmente ligado à transposição de rios ou outro tipo de obstáculo temos a toponímia de Travanca, em que a estrutura utilizada seria construída em material perecível, madeira principalmente (Baptista e Fernandes, 2001, 230), o que na realidade por nós observada não é de todo descabida pelo facto da existência de um curso de água nas proximidades e a presença de étimos que apontam para ocupação do espaço já em tempo antigo – Vila Boa (fi g. 4), Balteiro e Mamoas23 (DMP, DP IV, 9 e Madahil, 1939, 18). Topónimos que parecem indicar ligações viárias mais antigas, principais ou secundárias, então teremos

Fig. 3 – Calçada próxima do lugar das Barrocas, em S. João de Ver.

(Foto do Autor)Fig. 4 – Panorâmica do lugar de Vila Boa, em Santa Maria da Feira, referido na documentação já no século XII.

(Foto do Autor)

23 Este topónimo, só por si, remete para ocupação muito ancestral do espaço, como aludimos anteriormente.

22 Quando referimos “distinto”, indicamos o aspecto da via, mas também a possibilidade de conexão com algum traçado antigo, que importa confrontar com as referências documentais para este região.

127

que recorrer a designações como Corredoura (Fernandes, 1980-1983, 277; Silva e Fernandes, 1995, 76; Machado, 1995, DE-2, 235-236) e Portela(s) (Moreira, 1969, 60; Fernandes, 1995, 33; Silva e Fernandes, 1995, 143).

Tivemos também em atenção elementos que, indirectamente, estarão a remeter para vias como são os casos de Pousados(a) e Malaposta. Seriam locais de paragem, estalagem ou albergaria no primeiro caso, muda de transporte e um entreposto para transporte de correio no segundo. (Silva e Fernandes, 1995, 144; Baptista e Fernandes, 2001, 189; Machado, s/d, DO-2, 926). Inicialmente, o “serviço da Mala-Posta está associado à conservação, reparação e construção de estradas” (Luso, 2003, 83). A situação por nós documentada, na freguesia de Sanfi ns/S. João de Ver, evidencia uma estrutura em ruínas, que será anterior ou de 185924 (Luso, 2003, 83-84) – e Albergaria/Albergaria do Souto Redondo (Silva e Fernandes, 1995, 27-28; Baptista e Fernandes, 2001, 15), junto à antiga via romana que passava em S. João de Ver, da qual o traçado ainda hoje existe, mas com remodelações posteriores.

Um outro grupo de topónimos que se evidenciam corresponde aos da toponímia industrial, que apesar de poucos revelam, pela existência de termos como Forno(s), Furna (Fernandes, 1980-1983, 284-285; Machado, 1995, DE-3, 79; Baptista e Fernandes, 2001, 110-111) e Forno Telliario (Forno Telheiro) (PMH, DC, CXX; Rodrigues et alii, 1999, 428), a actividade de produção, pelo menos, de telha estaria patente (ANTT, 1758, 16, 131, 813 e 820), enquanto que o topónimo Olellas (Olelas), pode admitir algum ponto de produção de cerâmica (Fernandes, 1980-1983, 296-297; Moreira, 1998-2002, 50).

A referência a Coradouro poderá indicar o tratamento ao nível de tinturaria de peles e tecidos (Baptista e Fernandes, 2001, 77).

A actividade mineira do mesmo modo nos parece ser indicada, se não se referir a casos de água, pelo elemento Mina, em Travanca, o qual carece de localização e de maior quantidade de informação; mas, em Souto, até meados do século XX, na zona de Valrico, existiu uma mina de extracção de caulino para as produções da Vista Alegre, mas que não deixou, por ora, registo toponímico, ao contrário da evidência física25.

Outro conjunto de arqueotopónimos por nós isolado para este estudo é o referente aos termos jurídicos e limites de propriedades. O seu número é muito escasso e alguns são aqui colocados sob reserva como são os casos de Arca e Alcapedrinha, que podem ter outros signifi cados, como tivemos oportunidade de demonstrar (Baptista e Fernandes, 2001, 21), embora Alcapedrinha esteja na divisória concelhia e exista a opinião de refl ectir esta mesma realidade (Moreira, 1968, 15). Mas Padrão, Marco e Rodelo podem apontar para algo mais concreto e localizam-se todos na freguesia de Espargo (Moreira, 1969, 57; Fernandes, 1980-1983, 299 e 308; Baptista e Fernandes, 2001, 148 e 170). Todos estes topónimos encontram-se registados nas freguesias fronteiriças com o concelho de Ovar – Espargo, Souto e Travanca – e, no caso de Marco, está na extrema da freguesia de Espargo e do concelho.

O espaço de antanho tinha, também, um espaço para os seus mortos.

Anteriormente aos modernos cemitérios, os enterramentos eram efectuados nos adros das Igrejas; esse mesmo espaço poderia ter uma segunda designação: montório. (Fernandes, 2002 a, 107)26

Um último número de elementos recolhidos na arqueotoponímia reporta-se a topónimos que indicam construções indefi nidas, quer pelo seu múltiplo signifi cado possível, ou então pela vaga indicação que o próprio topónimo nos oferece; os casos desta índole são apresentados no quadro que segue:

25 Informação obtida em conversa com um habitante da freguesia de Souto, que foi operário na sobredita mina.24 A primeira ligação completa Lisboa-Porto completou-se a 16 de Maio de

1859, com a chegada da primeira carruagem ao Alto da Bandeira, em Vila Nova de Gaia (Luso, 2003, 83-84).

26 No Alto Douro é comum a existência deste topónimo mas relacionado com a crise fi loxérica, de fi ns do século XIX, ou seja campos estéreis.

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Topónimo Referência Bibliográfi ca

Albarrada Machado, 1958, 115-116

AposentoSilva e Fernandes, 1995, 144; Baptista e Fernandes, 2001, 189

Boca Baptista e Fernandes, 2001, 38

Bodega Baptista e Fernandes, 2001, 38

Chouso(a) Fernandes, 1995, 119; Baptista e Fernandes, 2001, 72

Colmeias Silva e Fernandes, 1995, 237-238; Fernandes, 1999, 199

Colunas da Velha Machado, 1995, DE-2, 186

Formiga(s)Silva e Fernandes, 1995, 96; Baptista e Fernandes, 2001, 110

HerdadeMoreira, 1969, 54; Machado, 1995, DE-3, 212-213; Baptista e Fernandes, 2001, 129

Pardieiro Baptista e Fernandes, 2001, 173

Paredes/Paredinha Fernandes, 1980-1983,302; 2002b, 105

Porta(s)Fernandes, 1980-1983,306-307; Baptista e Fernandes, 2001, 188

Tilheirinhas Machado, 1995, DE-5, 283; DO-3, 1394

Quadro I

Acrescentamos ainda dois casos que, apesar de não se enquadrarem directamente nesta tipologia, resolvemos encaixá-los neste grupo da arqueotoponímia: o primeiro é o termo Própria, que sendo um topónimo meeiro, entre as freguesias de Espargo e Rio Meão, de difícil explicação e muito antigo (Fernandes, 1999, 494), poderá indicar algo, mesmo uma divisão territorial. O segundo reporta-se a Idanha; decidimos colocá-lo, igualmente, neste conjunto pelo simples

facto de em Portugal existirem paralelos que revelaram achados arqueológicos relacionados com povoados (Idanha-a-Nova, em Castelo Branco, a romana Egitania) e em Vila Nova de Gaia, junto ao castro do Murado, no sítio da Idanha apareceram duas tesserae hospitalis – (Silva, 1983, 9-26) mas que no nosso caso carece de confi rmação e, portanto, não passa de sugestão com base no anteriormente exposto.

129

Depois de analisarmos e enunciarmos os arqueotopónimos registados, é tempo de debruçarmo-nos sobre uma outra categoria toponímica que revela interesse para a Arqueologia: a Toponímia Senhorial.

Neste campo, são muito frequentes em todas as freguesias que estudámos a presença dos termos Quintã e Quinta (normalmente composto: Quinta da Fonte, por exemplo) e, desde já, achamos prudente adiantar a ideia de disparidade cronológica entre eles, ou seja, Quintã pode revelar-se muito antigo, casos há documentados para o século XI, apesar de somente se tornar mais frequente a partir de meados da centúria de duzentos e com claro cariz nobiliárquico, enquanto que Quinta é um termo que é praticamente inexistente antes do século XV e que pode não ter a mesma conotação que o anterior (Fernandes, 1978, 249-255).

Igualmente comum foi o facto de depararmo-nos com os topónimos Paço(s) e Paçô, correspondentes à habitação de um nobre, um vilão abastado ou mesmo o local de estadia temporária do próprio monarca (Baptista e Fernandes, 2001, 169), mas, em casos de comprovação de assentamento antigo do étimo é possível uma situação que remonte ao período romano ou germânico (Fernandes, 1978, 267) (fi g. 5).

Ainda neste âmbito, detectámos somente um exemplo para Torre (Baptista e Fernandes, 2001, 228), actualmente em área pertencente ao concelho de Ovar, mas que em 1854 ainda estaria dentro dos limites da freguesia de Souto e em S. João de Ver existir a Quinta da Torre, documentada no período medieval (LCamp, Alarcão e Amaral, 1986, 32) (fi g. 6).

(Foto do Autor)

Fig. 5 – Entrada da Quinta de Paçô, na freguesia de S. João de Ver, com escudo de armas oitocentista.

Fig . 6 – Aspecto da entrada da Quinta da Torre, morada da família Sampaio Maia.

(Foto do Autor)

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Outros topónimos que podem fornecer pistas neste campo específi co da toponímia estão incluídos no Quadro II:

No que diz respeito à Hagiotoponímia/Toponímia Devocional, verifi ca-se uma grande homogeneidade na toponímia registada; situações como Alminhas (Fernandes, 1980-1983, 217; Baptista e Fernandes, 2001, 16), Cruzeiro (Fernandes, 1980-1983, 221; Machado, 1995, DE-3, 261), Cruz (Fernandes, 1980-1983, 221; Machado, 1995, DE-2, 260)27, Igreja

Topónimo Referência Bibliográfi ca

Cavaleiros Baptista e Fernandes, 2001, 65

Conde Fernandes, 1980-1983, 224-225; Baptista e Fernandes, 2001, 75

Foreiras Machado, 1995, DE-3, 79

Morgado26 Fernandes, 1980-1983, 197

Prazo Fernandes, 1995, 84

Reguengo Machado, 1995, DE-5, 67; Silva e Fernandes, 1995, 152

Tabolado Baptista e Fernandes, 2001, 223; Fernandes, 2002a, 157

Quadro II

(Baptista e Fernandes, 2001, 131), Adro (Fernandes, 1980-1983, 216-217; Silva e Fernandes, 1995, 26) e Capela (Baptista e Fernandes, 2001, 56) (fi g. 7), surgem-nos em várias freguesias e, apesar da possibilidade de não recuarem além da época moderna, em alguns casos, todos eles serão factor de interesse, localização e estudo.

26 Este caso pode também referir-se a um antropónimo, como veremos mais adiante.27 Alertamos para o facto da possibilidade de representar uma divisória ou uma encruzilhada (Fernandes, 1983, 221).

131

Muitas são as invocações de santos, as quais nos indicarão, mesmo que já não existam vestígios, locais de culto dessas entidades como temos o exemplo da capela de S. José, no lugar da Velha, em Santa Maria da Feira, onde, aquando da demolição do espaço cultual, surgiram ossadas humanas no seu interior28

Mas outros há em que a igreja ou capela ainda se encontra em uso – Nossa Senhora da Boa Morte (hoje capela de Santo António, em Fornos), Piedade (Santa Maria da Feira), S. Bento (S. João de Ver) ou Senhora da Guia (Souto), por exemplo29.

Casos de particular análise são os topónimos S. Gião (Souto) e S. João (S. João de Ver). Ao primeiro, corresponde a corruptela de S. Julião (Piel, 1949-1950, 345; Fernandes, 1980-1983, 303) e nesse sítio existiu um mosteiro fundado no início do século X e do qual não se regista quaisquer informação a partir de meados da centúria seguinte (Mattoso, 1968, 44). Hoje, nada se vê desse cenóbio, apenas restando o nome do pequeno lugar, embora o local seja propício ao estabelecimento de uma unidade monástica, com bons terrenos agrícolas, proximidade de linhas de água e alguma visibilidade na paisagem, apesar de se tratar de um espaço a meia encosta e com cariz claramente rural (fi g. 8).

No entanto, ressalta neste lugar, fronteiro com o de Real, a existência da ruína de uma antiga fábrica de papel (fi g. 9), que do ponto de vista da arqueologia industrial seria merecedora de um estudo aprofundado e a produção dos devidos resultados serem articulados com outros trabalhos deste género realizados na região (Bernardes, 2005).

Referente a S. João, aí teria, igualmente, existido um edifício monacal, registado documentalmente (PMH, DC, I)30, o qual extingue-se após 1127 (Mattoso, 1968, 45). Não sabemos bem ao certo a sua localização, visto que essa área sofreu uma grande pressão urbanística e somente um achado ocasional poderá fazer luz sobre o assunto.

Outros hagiotopónimos que documentamos para estas freguesias e que podem trazer algum contributo à Arqueologia, na nossa interpretação, são os que seguem no quadro III:

Fig. 7 – Um dos casos registados para o topónimo Capela foi a existente no Castelo de Santa Maria da Feira, mandada edifi car por Dª. Joana Forjaz Pereira, em 1656.

(Foto do Autor)

28 Esta informação foi obtida em conversa com habitantes do referido lugar que assistiram à demolição da capela.29 Neste campo não tivemos em especial linha de atenção a cronologia para a invocação ou surgimento do topónimo em cada local, mas somente o registo e tentativa de localização do local, visto que cada exemplo seria merecedor de estudo individual e mais pormenorizado.

30 Existe ainda discordância quanto à cronologia deste documento; normalmente é visto como de 773, mas José Mattoso aponta o facto do documento indicar S. Pelágio (S. Paio), mártir em 925 e, portanto, alterar por completo a datação do texto e da própria construção do mosteiro, que indica ser anterior a 977 (Mattoso, 1968, 45).

132

Topónimo Referência Bibliográfi ca

Belém Machado, s/d, DO-1, 23531

Calvário/Senhora do Calvário Fernandes, 1980-1983, 218; 1995, 19

Clérigo Baptista e Fernandes, 2001, 72

Frades Fernandes, 1980-1983, 201; Silva e Fernandes, 1995, 97; Baptista e Fernandes, 2001, 111

Freiras Baptista e Fernandes, 2001, 112

Manes Machado, 1995, DE-4, 44; s/d, DO-2, 935

Passais da igreja Silva e Fernandes, 1995, 136; Baptista e Fernandes, 2001, 174; Fernandes, 2002a, 121; 2002b, 105-106

Piedade Fernandes, 1995, 181

S. Silvestre de Souto Fernandes, 1980-1983, 211-212; Baptista e Fernandes, 2001, 213

Santa Catarina Fernandes, 1995, 131 e 409; Baptista e Fernandes, 2001, 212; Machado, s/d, DO-1, 375

Santa Clara Machado, s/d, DO-1, 422

Santa Maria do Castelo Piel, 1949-1950,290 e 304

Santa Marinha Piel, 1949-1950, 347; Baptista e Fernandes, 2001, 212; Fernandes, 2002a, 146-147

Santo Aleixo da Velha Machado, s/d, DO-1, 88

Santo André Piel, 1949-1950, 295

Santos Fernandes, 1980-1983, 222; Baptista e Fernandes, 2001, 212

Senhora Fernandes, 1980-1983, 223

Senhora da Guia Fernandes, 1980-1983, 187

Senhora do Parto Fernandes, 1991, 145 (nota 224)

Quadro III

31 É considerado um hagiotopónimo com vista ao paralelo existente em Belém, Lisboa, onde existem referências a um templo do século XVI.

133

O último grupo toponímico englobado neste estudo é o da Antroponímia, onde se destacam dois conjuntos: o da antroponímia germânica, em maioria, e o da latino-cristã. Este, pouco expressivo, ressaltando somente os casos de Ver/Beire (Fernandes, 1982-1986,180), Chaves (Piel, 1947b, 293; Silva e Fernandes, 1995, 72; Baptista e Fernandes, 2001, 70-71), Martinho (Piel, 1947b, 325; Baptista e Fernandes, 2001, 149), Pedro (Piel, 1947b, 349) e Justas (Piel, 1947b, 310). E só o estudo mais aprofundado de cada situação revelará a existência ou não de matéria para investigação arqueológica.

Bastante mais expressão têm os nomes pessoais germânicos que no Noroeste peninsular “contam-se por milhares” (Piel, 1942, 12-13) e, na área em análise, a “presença destes nomes espelha o interesse desde o século V d. C. e note-se que, no âmbito da sua localização estão, na maioria dos casos

percorridos, em zonas agrícolas, férteis, próximas de uma linha de água” (Pinto, 2004, 19). Este facto não implica a existência automática de quaisquer tipo de estruturas, mas tão-somente a “propriedade de um indivíduo de nome visigodo” (Piel, 1942, 19).

Entre outros, que espelham bem a acção e persuasão das gentes germânicas, uma minoria populacional, mas que deixou patente a sua marca perpetuada até aos dias de hoje.

A par dos antropónimos germânicos e latino-cristãos aditamos três outros exemplos: Joaves, de origem hebraica (Fernandes, 1999, 377), Gaiate, árabe ou de proveniência árabe, (Moreira, 2002, 39) e Teodósio, com origem grega, mas aqui na forma moderna (Machado, s/d, DO-3, 1399); estes exemplos, em nosso entender, só vêm contribuir ainda mais para uma variabilidade toponímica nesta região, já de si bastante rica.

(Foto do Autor)Fig. 8 – Vista do pequeno lugar de S. Gião, em S. Miguel de Souto, onde existiu um mosteiro fundado no século X.

Fig. 9 – Aspecto da fábrica de papel, em S. Miguel de Souto.(Foto do Autor)

134

Topónimo Referência Bibliográfi ca

Airas Fernandes, 1999, 25

Aldão Piel, 1933-40, 123

Balteiro Piel, 1933-40, 227; Fernandes, 2001, 31; 2002a, 28

Degodinha (de Godinha) Piel, 1933-40, 390; Fernandes, 1999, 344-345; Baptista e Fernandes, 2001, 122

Formal32 Piel, 1933-40, 230; Fernandes, 1980-1983, 167; 1999, 311

Gala Piel, 1933-40, 370; Silva e Fernandes, 1995, 10033

Gavinhos Piel, 1933-40, 376-377

Girião Piel, 1933-40, 38434

Gojé/Goje Piel, 1933-40, 394; Baptista e Fernandes, 2001, 12235

Gueifar Piel, 1933-40, 45; Moreira, 1969, 65; Fernandes, 1999, 368

Gondim/Gondins Piel, 1933-40, 32; Moreira, 1969, 72-73; Silva e Fernandes, 1995, 102

Gondufe Piel, 1933-40, 34; Fernandes, 1980-1883, 174

Guedes Piel, 1933-40, 43-44

Guizoi Piel, 1933-40, 55

Guimbras36 Piel, 1933-40, 52 e 54; Fernandes, 1995, 104; 1999, 373-74

Gulfar Piel, 1933-40, 56

Guntili Piel, 1933-40, 30

Margido37 Piel, 1933-40, 41; Machado, s/d, DO-2, 947

Morgado38 Fernandes, 1995, 211

Pala39 Silva e Fernandes, 1995, 134

Roligo Piel, 1933-40, 82-84

Tangidos/Tangildo Machado, s/d, DO-3, 1383

Tarei Fernandes, 1980-1983, 184; Machado, s/d, DO-3, 1399

Taulfo (Adolfo) Cortesão, 1903, 294; Piel, 1933-1940, 118-119; Silva e Fernandes, 1995, 25; Fernandes, 2002b, 13

Teobalde Machado, s/d, DO-3, 1397

Deste modo, distribuem-se pelo território casos como os documentados no Quadro IV:

Quadro IV

32 Nas situações em que se provar este antropónimo, visto que pode, igualmente, tratar-se de um arqueotopónimo (vide biblio. supra).33 Almeida Fernandes apresenta uma segunda interpretação que não vai de encontro ao exposto (Fernandes, 1999, 329; Baptista e Fernandes, 2001, 117)34 Demarcando-se desta posição, Almeida Fernandes indica uma origem espanhola para este apelido (Baptista e Fernandes, 2001, 122) Situação a esclarecer.35 Para esta forma não encontramos nas nossas pesquisas bibliográfi cas uma reprodução idêntica que clarifi casse as nossas intenções, estando, pois, à consideração de novas sugestões que se enquadrem neste campo.36 Apesar de Almeida Fernandes não descartar a possibilidade de antropónimo, indica que poderemos estar perante um nome comum perdido, talvez pré-românico Fernandes, 1999, 373-374). No presente caso, na freguesia de S. Nicolau de Santa Maria da Feira, este localiza-se junto ao castelo, em zona de encosta fl orestal até junto da margem do rio Cáster. Não temos conhecimento do aparecimento de quaisquer vestígios ou revolvimentos na área. Se for um nome comum a que se referirá?37 Almeida Fernandes não corrobora a ideia de Margido ser um antropónimo, mas antes uma técnica agrícola de semear (Fernandes, 1980-1983, 305) ou a própria margem de um prédio (Silva e Fernandes, 1995, 119-120).38 Se não estivermos perante a alcunha (Fernandes, 1995, 211) ou o hagiotopónimo.39 Também pode ter o sentido dolménico, como indicámos, ou de simples abrigo rochoso.

135

NOTA FINAL

Citando M. Barroca: “As páginas que integram este (…) volume são as conclusões possíveis de uma investigação que continua em aberto, que está muito longe de poder ser dada como concluída e que esperamos que venha a dar frutos, pelas nossas e por outras mãos” (Barroca, 2000, 361). Não podemos deixar de subscrever com o escrito, visto esta ser uma súmula de mais de um ano de investigação, onde foram trabalhados centenas de dados, mas não podemos deixar de referir que, do nosso ponto de vista, este é um trabalho basilar com vista à abordagem arqueológica de um determinado território, de construção de uma metodologia de estudo, do conhecimento sistemático e percepção da exploração do espaço pelo homem ao longo dos tempos. O conjunto de dados que ao longo destas páginas analisámos, (e em catálogo a incluir em separata a enunciação de todos os topónimos registados,) constituirão, certamente, uma base para exercícios mais específi cos e aprofundados sobre o tema que, em nosso entender, numa área em profunda e rápida alteração paisagística muito por força da enorme pressão urbanística – à qual adicionamos a quase total inexistência de estudos de índole arqueológica ou dentro desta temática – podem em muito ser uma mais-valia para o futuro. Certa parece-nos, de forma clara, a importância da Toponímia, na sua totalidade como elemento construtor de paisagens, mas nos casos por nós abordados especifi camente, com fi nalidade de apoio à Arqueologia como tivemos a oportunidade de observar ao longo deste trabalho, demonstrando ser uma inequívoca fonte de dados que, ao serem devidamente geridos, resultam de um manancial rico de informação de diferentes momentos de ocupação do espaço, fulcral para a reconstituição de paisagens, como sobredito, e, indirectamente, prova de uma forte memória popular, que no fundo revestiu toda esta síntese.

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Fez no passado dia 23 de Maio cento e dezoito anos que o lugar de Espinho da freguesia de S. Martinho de Anta, do concelho da Feira, foi elevado a PARÓQUIA sob a denominação de «Paróquia de Nossa Senhora da Ajuda». O Decreto que veio reconhecer uma luta renhida dos pescadores desta Costa, ao longo de algumas dezenas de anos contra a má vontade da sede da freguesia, rezava assim: «Tendo subido à minha Presença a representação em que os moradores da povoação da Praia de Espinho, freguesia de S. Martinho de Anta, distrito administrativo de Aveiro, diocese do Porto, pedem que o mesmo lugar passe a constituir uma nova paróquia. Considerando que pelo processo se verifi ca que a providência reclamada é de grande conveniência para o bem espiritual dos requerentes, sem prejuízo para a conservação da freguesia de S. Martinho de Anta, que

fi cará ainda em condições de subsistir; Considerando que na povoação da Praia de Espinho existe um templo oferecido pela Irmandade a que hoje pertence, para Igreja Paroquial, o qual tem bastante capacidade, alfaias e paramentos necessários para os actos de culto e onde já actualmente se administra o sacramento do baptismo, em virtude do Alvará do Eminentíssimo Cardeal Bispo do Porto, de 19 de Maio de 1886; Considerando que na mesma paróquia há pessoal preciso para o exercício dos cargos paroquiais eConformando-me com o parecer do súbdito Prelado e Consulta do Supremo Tribunal Administrativo e usando da autorização concedida pela Carta de Lei de 4 de Junho de 1859 e à vista do número quatro do parágrafo 7 do Artigo 2.º do Código Administrativo; Ei por bem deferir a referida apresentação resolvendo que, pelos meios competentes, se proceda à criação de uma nova paróquia com a invocação da Nossa Senhora da Ajuda, com sede na povoação da Praia de Espinho. Que, para este efeito, será desanexada da de S. Martinho de Anta, sendo constituída somente da mesma povoação com área circunvizinha limitada a nascente pela estrada da Taboaça e Ponte de Anta até à freguesia de São Tiago de Silvalde, ao norte pela freguesia de S. Félix da Marinha, ao poente pelo Oceano e ao sul pela freguesia de São Tiago Maior de Silvalde, fazendo-se a demarcação por uma linha divisória que, partindo da praia, ao lado de uma fábrica de conservas que ali existe e dirigindo-se directamente à estrada da Vila da Feira e desta obliquamente à já mencionada da Taboaça, compreendida para fi car pertencendo à nova freguesia, uma faixa de terreno, que actualmente pertence àquela. O Ministro e secretário dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça assim o tenham entendido e faça executar.Paço, em 23 de Maio de 1889. ReiFrancisco António da Veiga Beirão» Tal documento era o corolário feliz dos justos anseios e aspirações da classe piscatória e o início de uma arrancada que levaria uma povoação de pouco

Francisco Azevedo Brandão*

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local, é autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

A Elevação do Lugar da Praia de Espinhoa Freguesia em 1889

ESPINHO - DE LUGAR A FREGUESIA E CONCELHO.

140

mais de meia centena de fogos e um escasso século, a tornar-se numa das mais belas cidades e praias do nosso país. Como foi possível uma povoação, constituída por humildes pescadores, vindos da praia do Furadouro, Ovar e estabelecidos nos areais de Espinho, desde os meados do século XVIII, ter conseguido, em menos de meio século, a sua autonomia paroquial e administrativa? A história da autonomia paroquial de Espinho poderá começar, creio eu, naquele dia 27 de Março de 1807, quando um pescador de nome Eugénio Nunes, resolveu enviar uma petição ao Bispo do Porto a solicitar licença para construir, na Costa de Espinho, uma capela com invocação de Nossa Senhora da Guia, pois ali viviam mais de 120 casais que se dedicavam à faina da pesca. Entre as razões que apontava para o seu pedido, era que os pescadores estavam destituídos das principais comodidades da vida, entre as quais a falta de capela para assistirem à missa, tendo de percorrer quase uma légua de mau caminho no tempo do Inverno, porque era todo cheio da atoleiros, para chegar à Igreja Matriz da freguesia de Anta, donde pertencia o lugar da Costa de Espinho. Em despacho de 4 de Abril do mesmo ano o Bispo do Porto autorizou a erecção da ambicionada capela.

Com o despacho favorável, Eugénio Nunes começou, desde logo, a construir a capela, num terreno que lhe pertencia, no centro do local, onde mais tarde foi o Largo de Nossa Senhora da Ajuda, tendo requerido a bênção da capela a 8 de Fevereiro de 1809, à qual se procedeu 5 dias mais tarde. Ficou assim erguida a primeira capela construída em Espinho, sob a invocação de Nossa Senhora da Guia, que mais tarde mudaria o nome para Capela de Nossa Senhora da Ajuda. Esta mudança de nome anda envolta em poucas certezas. O que não há dúvida é que a mudança se operou entre 1809 e 1846, pois nesta data era já conhecida por Capela de Nossa Senhora da Ajuda. A partir do início da segunda metade desse século, a Praia de Espinho começou a atrair gente dos arredores, principalmente do concelho da Feira, constituída, na sua maior parte, por fi dalgos rurais, lavradores e proprietários que vinham gozar os benefícios dos banhos de mar que a medicina preventiva e curativa da altura propagandeava, afl uência essa que se alargou ainda mais, a partir de 1864, aquando da construção da Linha Férrea Lisboa-Porto que estabeleceu aqui um simples apeadeiro. Nos meses de Verão, que se estendia de Julho a Outubro, a pequena povoação da Praia de Espinho regurgitava de uma colorida e ruidosa colónia balnear, que, aos domingos, para assistir à missa, enchia até transbordar a pequena capelinha de Nossa Senhora da Ajuda. Por isso, não foi de estranhar que em 1867 surgisse um movimento tendente à construção de um novo templo, mais desafogado, tendo-se constituído, nesse ano, uma comissão de representantes das «Companhas» de Pesca, à frente da qual estava o arrais António de Pinho Branco Miguel, pai daquele que, vinte e dois anos mais tarde, viria a ser o 1.º Presidente da Junta de Freguesia de Espinho – António de Pinho Branco Miguel Júnior. As obras iniciar-se-iam em 1872 e fi cariam concluídas em 1883, tendo-se rezado ali missa pela primeira vez no dia 29 de Junho desse ano.

Capela dos Galegos

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O novo templo, que recolheu da antiga capela as imagens de Nossa Senhora da Ajuda, de S. Francisco e de Santa Rita, começou a ser administrado por uma comissão denominada «Comissão Zeladora do Santíssimo Sacramento da Capela de Nossa Senhora da Ajuda de Espinho, da Freguesia de Anta», presidida pelo farmacêutico José António Dias de Resende. Dois anos mais tarde, em 1885, tendo chegado aos ouvidos daquela comissão que o Pároco de Anta pensava erigir ali uma confraria para se apoderar da capela, aquela entidade zeladora apressou-se a elaborar um estatuto que, aprovado em Assembleia Geral, criava a Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda. A 19 de Maio de 1886, um Alvará do Bispo do Porto reconhecia a Irmandade e autorizava que ali se celebrasse o sacramento do baptismo, elevando ao

mesmo tempo a Capela à categoria de Igreja.Os dados estavam lançados. Nada faltava, pois, para que Espinho conquistasse a sua autonomia paroquial. Com efeito, a partir daquela data, os membros da Irmandade, apoiados pela população da Praia de Espinho, não descansaram enquanto não viram reconhecida, pelo poder eclesiástico, a independência religiosa de Espinho, com a criação da sua própria paróquia. A luta não ia ser fácil. Pela frente estavam todos os outros lugares da freguesia de Anta, comandados pelo Abade da altura, que não queria deixar fugir do seu «múnus» sacerdotal a «menina bonita» da sua freguesia, que era a Praia de Espinho. Corria o ano de 1888, quando a Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda, se lembrou de enviar ao

Largo da Senhora da Ajuda

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Prelado da Diocese a seguinte petição: «Exmº. Senhor, os abaixo assinados, representantes da Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda, da Praia de Espinho, freguesia de Anta, comarca da Feira, vêm com o mais profundo respeito expor a Vossa Eminência o estado actual dos moradores daquela importante povoação, causados pela antipatia dos moradores dos outros lugares da freguesia para com os da Beira-mar, antipatia que tem sido agravada pelo modo como o seu reverendo, pároco Manuel Ribeiro de Figueiredo, dirige os actos do culto a respeito dos moradores da mesma Praia. Vossa Eminência permitiu que na capela da Irmandade se administrasse o sacramento do baptismo aos recém-nascidos em Espinho, em vista da distância dali à Igreja Matriz ser grande e que do seu sacrário fosse ministrado o Sagrado Viático aos seus enfermos, mas o reverendo pároco, sem atenção por uma tão saudável autorização, nega-se a baptizar em Espinho e obriga os seus moradores a ir buscar o Sagrado Viático a Anta, expondo-os aos incómodos duma tal caminhada e à má vontade dos moradores da terra em emprestarem as alfaias necessárias para esses serviços religiosos. Agrava-se cada vez mais o desprezo com que

os habitantes da terra tratam os da beira-mar, não consentindo que façam parte das irmandades erectas na Matriz e até mesmo que peguem às varas do palio, cruzes e outras insígnias. Parecia pois conveniente que na capela de Espinho se administrassem os sacramentos da igreja aos moradores daquela povoação, para lhes evitar as longas jornadas e deixar de os expor à má vontade com que são recebidos pelo seu pároco e pelos moradores da terra. Por tal motivo os suplicantes, de acordo com toda a povoação, têm feito despesas avultadas e envidado todos os esforços para que Espinho seja elevado a Paróquia independente, a fi m de terminar por uma vez este estado de coisas, tão prejudicial à religião e às consciências duma parte importante de cristãos fervorosos e dedicados ao esplendor e glória do culto. A Mesa da Irmandade, confi ada na protecção de V. Eminência, espera remédio para aqueles males que estão dando escândalo na freguesia e fora dela». Assinaram a petição o juiz da Irmandade José António da Rocha, o procurador fi scal Alexandre de Oliveira Dias, o tesoureiro José de Oliveira Dias Pinhal, o secretário Manuel da Silva Vaz e os vogais Narciso Martins Jacob, Alexandre António Jerónimo, António Oliveira Granja e Manuel Pereira Franco. A petição foi bem acolhida no Paço Episcopal e fez desencadear um processo que cada dia que passava se tornava irreversível. Entra o ano de 1889 e o Governo que já tinha ouvido a Junta de Freguesia de Anta, quis também o parecer da Câmara Municipal da Feira. E foi na sessão de 9 de Fevereiro desse ano que o seu presidente, o Dr. Roberto Alves de Lima Ferreira, apresentou o projecto de resposta a dar ao Governo, do qual devo transcrever as alíneas mais signifi cativas, por me parecer um vivo testemunho da imparcialidade e da justiça que a Câmara Municipal da Feira prestou ao povo de Espinho. Entre outras considerações, dizia o seguinte: «- Que a criação da paróquia de Espinho, apenas consagra defi nitivamente o estado de coisas provisório,

António de Pinho Branco Miguel Júnior.

143

reconhecido necessário pelo Ordinário Eclesiástico, permitindo a administração dos Sacramentos na Capela erecta na mesma praia e expensas dos moradores de Espinho e ricamente dotada por eles de todos os paramentos e alfaias necessárias ao culto; - Que os sacrifícios feitos pelos mesmos moradores para a criação e dotação dessa Capela constituem a prova cabal de que a projectada paróquia possui os recursos sufi cientes para custear os encargos duma vida paroquial independente; -Que também não vale alegar a pobreza, aliás, falsamente alegada, da povoação de Espinho, porque além de ser sabido que essa povoação se compõe de habitantes industriosos e remediados, é certo que as

leis contêm remédio para o caso de a nova paróquia não dispor dos sufi cientes recursos. - Que informa o Governo de Sua Majestade que deve ser deferida a representação dos moradores de Espinho…». Estava dado o sinal positivo para o Governo reconhecer uma situação que se impunha desde há alguns anos e que demorava a ser uma realidade. Assim, no dia 23 de Maio de 1889, o Governo fazia publicar o tão almejado Decreto que elevava Espinho a Paróquia independente. Os dirigentes de Espinho, logo que souberam do fausto acontecimento, dirigiram-se ao Paço Episcopal para solicitar que a cerimónia da inauguração da nova paróquia tivesse lugar no dia da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Ajuda, que nesse ano se realizou no dia 22 de Setembro. Cumpre-me dar agora a palavra ao 1.º historiador de Espinho, o Padre André de Lima, que testemunha ocular do acontecimento, assim deixou escrito para a posteridade o que naquele dia se passou. Diz ele: «Raiou, fi nalmente, esse dia memorável. Espinho amanheceu em festa. As ruas da povoação, engalanadas de mastros e bandeiras, eram percorridas por Bandas Filarmónicas, notando-se nelas, desde o alvorecer um movimento desusado. Às dez horas da manhã, o templo de Nossa Senhora da Ajuda e o seu largo estavam apinhados de gente. Via-se ali o que em Espinho e sua colónia havia de mais distinto e ilustre. No rosto de toda a gente lia-se o mais franco e as maiores satisfações. Os Espinhenses, esses, não cabiam em si de contentes, É que soara fi nalmente a hora da sua liberdade e da sua independência. Na capela-mor e no corpo da igreja viam-se, radiantes de alegria, os propugnadores da nossa autonomia paroquial, os soldados do grande combate, que se reviam, desvanecidos, na obra a cujo remate iam em breve assistir. Momentos depois sai da sacristia e adianta-se para o altar-mor, onde tem lugar, ao lado do evangelho,

Capela de Nossa Senhora da Ajuda.

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o Exmo Sr. Dr. Manuel Luís Coelho da Silva, então chanceler deste Bispado. Na assembleia estabeleceu-se um silêncio sepulcral. Sua Excelência volta-se para ela e diz encontrar-se ali para, em nome e como representante do venerando prelado da diocese, proceder à erecção canónica de uma freguesia, com sede naquela praia. Antes, porém, ia mandar proceder à leitura da Provisão do Exmo Prelado, e foi lido o seguinte»: «D. Américo, Cardeal Presbítero da Santa Igreja de Roma, do título dos Craton Santos Coroadon, etc…Fazemos saber que da Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, baixou um decreto com data de 23 de Maio último, criando uma paróquia no local da Praia de Espinho». Depois de lido o Decreto, já acima transcrito, o representante da Diocese declarou canonicamente erecta a freguesia e paróquia de Nossa Senhora da Ajuda da Praia de Espinho, cujos limites foram determinados e confi rmados. Deste acto foi lavrada a seguinte acta:

«Aos vinte e dois dias do mês de Setembro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta e nove, nesta paróquia igreja de Nossa Senhora da Ajuda da Praia de Espinho, concelho da Feira, Bispado do Porto, estando presente o muito Reverendo Senhor Manuel Luís Coelho da Silva, Chanceler do Bispado, Comissário especial nomeado por S. Ex.ª Reverendíssima o Senhor D. Américo, Cardeal Bispo do Porto para presidir a este acto, e comigo o Padre António José de Mesquita,

Escrivão da Câmara Eclesiástica do mesmo Bispado, aí na referida igreja paroquial onde se achava reunida uma grande porção de fi éis, foi pelo dito ilustre Reverendo Comissário mandada ler a Provisão do Exmo e Revm.º Senhor D. Américo, Cardeal Bispo do Porto, dada em data de dezassete do corrente mês e ano para a erecção canónica da freguesia de Nossa Senhora da Ajudada Praia de Espinho, e sendo por mim lida em voz alta a dita Provisão ao fi m declarou ele ilustre Reverendo Comissário que desde o presente dia fi cava legítima e canonicamente erecta em paróquia, sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda a povoação da Praia de Epinho com os limites designados no Decreto de vinte e três de Maio último. E de tudo mandou ele ilustre reverendo Comissário lavrar este termo que vai assinar com o Reverendo Manuel Pinto da Silva, Pároco Encomendado da dita freguesia e com as testemunhas presentes, os senhores José António Pires de Resende, farmacêutico, e Jeremias Pais de Almeida, Juiz da Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e os mais que abaixo se seguem; Eu, Padre António José de Mesquita, Escrivão da Câmara Eclesiástica do Porto, o escrevi». Assinaram ainda o acontecimento os seguintes cidadãos, entre pescadores, Espinhenses, fi dalgos,

Bandeira da Independência da Freguesia de Espinho.

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lavradores e proprietários que vinham a banhos para Espinho e lutaram também pela sua independência. Foram eles: Padre Manuel Pinto da Silva, Abade da nova paróquia; Joaquim de Almeida Correia Leal; Manuel Augusto Laranjeira Maia; António Branco de Pinho Miguel Júnior; António André de Lima; Manuel António Pereira; Joaquim de Sá Couto; Fernando de Castro Corte-Real, Francisco da Silva Ribeiro; Manuel André de Lima; António de Pinho Branco Miguel; Narciso Martins Jacob; José de Azevedo Brandão; Francisco Ferreira Neto Júnior; José de Oliveira Pinhal; Fernando da Silva Proença; Manuel Pereira Franco; Visconde de Proença-a-Velha; Adriano de Sá Moreira Couto; Joaquim Moreira Dias; Joaquim Ferreira da Costa; José António Marques de Araújo; José António Pereira da Rocha; António Luís Mesquita Caves; Miguel Couto dos Santos e Padre António José Mesquita; Manuel Augusto da Cunha Sampaio Maia; Diogo António Palmeira Pinto; Fernando de Lopes da Silva; Adelino Albano da Moita, Juiz de Direito; António Augusto. A Junta de Freguesia foi eleita a 15 de Fevereiro de 1890 e foi constituída por António de Pinho Branco Miguel Júnior, presidente; Manuel Fernandes Tato, vice-presidente; e António Pereira Americano, vogal. Enfi m, há cento e dezoito anos, nesse dia, foi uma festa para os espinhenses. A alegria andava a jorros pela ruas da povoação, pela varandas engalanadas, pelas casas e jardins, pelos rostos de todos aqueles que queriam uma terra promissora de um futuro risonho, enquanto a tristeza se estampava no rosto da freguesia-mãe. Era natural e humano. Na verdade, qual é a mãe que não sofre, na sua carne e na sua alma, quando vê sair do seu seio generoso um fi lho querido? É sempre doloroso para uma mãe ver abandonar a casa, um fi lho de tenra idade, e tanto mais doloroso quando se trata do seu fi lho predilecto. Se é que uma mãe possa e deva distinguir um ou outro dos seus fi lhos. A ferida no coração foi grande, a dor dilacerante, mas, como sempre, o tempo acaba por cicatrizar e

amenizar a dor até fazê-la desaparecer, e passado um século sobre a dolorosa separação, vemos com alegria e satisfação que a reconciliação entre mãe e fi lho foi feita há já muitos anos, que se consolida e se perpetua nos corações destes. Dez anos depois, Espinho vai ser protagonista de uma nova luta, desta vez com a Feira, quando pretende a sua autonomia concelhia, a qual será tema da próxima crónica.

Bibliografi a Padre André de Lima, Espinho, Breves Apontamentos para a sua História, Gazeta de Espinho, n.º 153 de 6.12.1903 e seguintes. Francisco Azevedo Brandão, Anais da História de Espinho. Edição da Junta de Freguesia de Espinho, 1990-1992. Francisco Azevedo Brandão, O Culto de Nossa Senhora da Ajuda em Espinho. Boletim Cultural de Espinho, n.º 17, 1983.

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OS MEUS LIVROS

Henrique Veiga de Macedo*

Leais amigos, devotados confidentes, Companheiros das boas horas e das más,Até nas noites luzem a luz das manhãsE me põem a ver os longes surpreendentes.

Cheios de cor, de vida, iguais e diferentes,Olham em frente ou o passado - tanto faz -, Entram bem fundo em mim e dão-me calma e paz,Como seres com alma, humanos, conscientes.

São a palavra que em silêncio sente e fala,São a mensagem que perdura e não se calaE me define em cada dia o caminho.

São essa fonte inexaurível de emoções, Conhecimentos e ideias e lições...- São os livros do meu afecto e meu carinho.

Lisboa, Noite de Natal de 1995 * Poeta.Foi Ministro de PortugalFaleceu em 25/01/2005

147ROMEU E JULIETA

A lenda de Romeu e Julieta, em que se inspirou a tragédia em cinco actos de Shakespeare, teve as suas origens nos séculos XV e XVI, ou talvez mesmo antes, e baseou-se, segundo parece, em factos reais. A versão de Shakespeare pode resumir-se em poucas palavras. Existiam em Verona, na Itália, duas famílias poderosas que se odiavam profundamente. Certo dia, o jovem Romeu, de uma das famílias, trava conhecimento com a jovem Julieta, da outra família. Logo fi caram loucamente apaixonados um pelo outro, num amor eterno. Um religioso franciscano casa-os secretamente, na esperança de que esta união conduzisse à reconciliação das duas famílias inimigas. Infelizmente, Romeu mata um primo de Julieta, que o provocou. O Príncipe de Verona exila Romeu. Entretanto

a família de Julieta, ignorando o seu casamento com Romeu, trama o casamento desta com um homem que ela detesta. A fi m de escapar a este destino, Julieta simula a morte graças a um narcótico e é transportada para a sepultura da família. Mas Romeu aí acorre e, julgando Julieta morta, engole um veneno e morre a seu lado. Quando Julieta acorda e vê Romeu morto é então ela que desta vez se mata ao lado do corpo do seu amado. Tal como muitos outros, tive conhecimento desta lenda há já longo tempo atrás e, também tal como muitos outros, julguei que fosse única. Mas quando, chegado a determinada altura da minha vida, se me proporcionou a oportunidade de viajar por este nosso mundo fora, foram-me contadas, neste e naquele país, lendas muito semelhantes. Achei duas delas tão interessantes que não resisti à tentação de as deixar aqui registadas. Uma delas foi-me contada em Agosto de 1995, em Acapulco (nome que signifi ca «o lugar onde foram destruídos os juncos»). Quem ma contou começou por esclarecer que a história de Acapulco começa com uma lenda dos índios Yopi. E depois prosseguiu, dizendo-me que, segundo reza a tradição, o fi lho mais velho de um chefe de tribo local, chamado Acatl (nome que signifi ca «junco»), ouviu uma voz que lhe dizia que fosse em busca do amor de Quiahuid (nome que signifi ca «chuva»), que era fi lha de um chefe de tribo rival. Quando os dois jovens se encontraram, logo fi caram loucamente perdidos de amor um pelo outro, mas o pai da jovem mostrou uma enraivecida oposição ao seu casamento. Acatl regressou então à sua tribo, que vivia junto do que hoje constitui a baía de Acapulco. Estava tão desgostoso que o seu corpo se dissolveu num charco de lama, do qual começaram a brotar juncos. Por sua vez Quiahuitl transformou-se numa nuvem, que fl utuou procurando Acaf. Quando viu o seu amado desfez-se em pranto. As suas lágrimas caíram sobre os juncos e assim os dois apaixonados fi caram unidos para sempre. A outra lenda foi-me contada, em 1992, junto das cataratas de Iguaçu, no Brasil. Relaciona-se com a formação das cataratas e é uma lenda dos índios Guarani, lenda cujas origens se perdem no nevoeiro dos tempos. Conta o povo Guarani que há muito, muito

Joaquim Máximo*

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profi ssional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences” e da “Planetary Society”.

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tempo, o rio Iguaçu, ainda sem qualquer catarata, se encontrava sob o poder do Deus Serpente do Rio, fi lho do Deus Supremo Tupan. O Deus Serpente exigia, em cada ano, o sacrifício da virgem mais bonita da tribo que habitava nas margens do rio. Depois de uma cerimónia primitiva, acompanhada de uma dança ritual, o corpo da virgem era lançado, para agrado do Deus, nas águas do rio. Num determinado ano, a escolha do Deus Serpente recaiu sobre a jovem Naipi, fi lha do chefe da tribo Guarani que habitava na aldeia situada na margem do rio. Reza a lenda que Naipi era tão bonita que até fazia parar a corrente do rio, sempre que junto dele chegava para ver a sua imagem aí espelhada. O seu amado, um guerreiro Guarani chamado Toroba, para a salvar do sacrifício, fugiu com ela, levando-a, rio abaixo, na sua canoa. Mas o Deus Serpente, sabendo disso,

contorcendo-se e sibilando numa fúria terrível, abriu uma enorme fenda no rio, despejando as suas águas na catarata então formada, hoje designada «garganta do diabo», a mais atroadora entre as 275 que constituem o conjunto das cataratas. A canoa em que os dois apaixonados fugiam fi cou então esmagada. Os dois jovens escaparam, mas estavam condenados a ser separados. Para castigar a temeridade de Toroba, o Deus Serpente transformou-o numa árvore. Esta árvore fi cou aí, para sempre, e ainda hoje se pode ver, na margem, com os seus ramos inclinando-se para o rio, como se fossem braços, em direcção à sua amada, transformada numa rocha situada no meio da correnteza das águas do Iguaçu. Nos tempos que correm são cada vez mais raros estes ardentes amores platónicos. Hoje cada vez menos os pais dos jovens se atrevem a interferir nos seus amores, que aliás são de um tipo completamente diferente dos de outras épocas, como se pode verifi car pelas frases que deles se ouvem, como, por exemplo: – Hoje estás altamente, oh chavala! Não queres ir para a cama esta noite comigo para fazermos amor?Esta frase e outros factos actuais conduzem-nos à ideia de que hoje nos encontramos no começo de uma nova era histórica, preconizada, há muitos anos, por Aldous Huxley, no seu romance «Brave New World». E que o sexo será cada vez mais utilizado só como recreio hedónico e cada vez menos como meio de procriação. E que, num futuro relativamente próximo e devido aos progressos da engenharia genética, as crianças serão criadas em laboratórios, em recipientes de vidro com muitas hélices de ADN e muita química orgânica complicada metida lá dentro. Os Clintons, os Guterres, os Sadam, os Kabilas, etc., conjuntamente com os milionários, são os antecessores dos futuros Alfa Mais. Os industriais, os políticos, os artistas muito qualifi cados (grandes actores de cinema, por exemplo), etc., fazem parte dos antecessores dos futuros Alfa Menos. Os cientistas, os quadros superiores das empresas, etc., são os antecessores dos futuros Beta Mais. Os médicos, os engenheiros, os artistas, os professores, etc., são, provavelmente, os antecessores dos futuros Beta Menos. Talvez gente como os operários qualifi cados faça parte dos antecessores dos futuros Gama Mais. E parece não

Romeu e Julieta.

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haver dúvidas de que os trabalhadores rurais pertencem ao grupo dos futuros Gama Menos. Tudo isto, é claro, se, entretanto, o nosso planeta não for agredido por qualquer meteoro ou cometa de tamanho sufi ciente para destruir, de vez, a nossa espécie. Mas, quanto a isso, consolemo-nos com o conhecimento de que a nossa existência se deve a uma agressão desse tipo ocorrida há 65 milhões de anos. De acordo com o que o geólogo e cientista Walter Alvarez demonstra no seu maravilhoso livro «The T Rex and the Crater of Doom», o autor dessa agressão foi, ou um meteoro com cerca de dez quilómetros de diâmetro, ou um cometa de dimensões equivalentes que, depois de ter atravessado a nossa atmosfera com a surpreendente velocidade de trinta quilómetros por segundo, embateu no solo, com uma violência extrema, no local onde hoje se situa Chicxulub, alguns quilómetros ao norte de Mérida, na península de lucatão, no México. Naquele tempo a confi guração dos continentes era muito diferente da que é hoje: a América do Norte estava separada da América do Sul, a Índia era uma enorme ilha triangular que se dirigia para a Ásia, com a qual chocou milhões de anos mais tarde para formar os Himalaias, etc. O som produzido pelo atrito do bólido com a atmosfera e pela tremenda explosão provocada pelo impacto deste com o solo foi ensurdecedor. A energia libertada pela explosão foi equivalente a 100 milhões de megatoneladas de TNT, ou seja muitíssimas vezes a que se libertaria com a explosão simultânea de todo o arsenal nuclear actualmente existente no nosso planeta. Gerou-se um maremoto com ondas, com a altura das mais altas montanhas, que devastaram grandes extensões de terras. E, como o terreno na região do impacto era calcário (carbonato de cálcio), libertou-se uma enorme quantidade de óxido de carbono, que teria provocado um apreciável efeito de estufa se não fosse a escuridão extrema provocada, em toda a atmosfera, pelos detritos resultantes da explosão, que entraram em órbita. Esta total escuridão desencadeou um frio de uma intensidade extrema. Com o decorrer dos meses, os detritos foram-se depositando na superfície da terra e a atmosfera, consequentemente, clareando. Então o efeito de estufa, produzido pelo óxido de carbono ainda

existente, começou a contrariar o efeito dos detritos. Como consequência disto, o frio extremo deu lugar a um calor extremo. Todo este imenso cataclismo provocou a extinção da maior parte da vida na Terra, incluindo a dos dinossauros que, sem ele, ainda hoje provavelmente existiriam. Entre as poucas espécies de animais que a ele escaparam situam-se pequenos insectívoros, com a confi guração de ratos, com hábitos nocturnos, que, metendo-se dentro das suas tocas, foram muito menos afectados. A estes insectívoros dão os paleobiólogos o nome de «purgatorius». Estes purgatorius são os nossos antepassados. Sem a ameaça dos grandes predadores, entre os quais se situavam os dinossauros carnívoros, conseguiram evoluir até nós. A nossa existência humana deve-se, portanto, ao bólido de há 65 milhões de anos. E pode acabar com um bólido do mesmo tipo. As espécies não são eternas: ou evoluem ou se extinguem. Voltando aos namoros de agora e às consequências da engenharia genética, nem digo que isso está bem, nem digo que isso está mal. Digo apenas que é isso, à semelhança do que Eça de Queirós escreveu, a respeito das revoluções, no «Distrito de Évora», em 9 de Maio de 1867: «As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm que vir».

Julieta e Romeu.

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Segue um resumo da comparação dos amores do passado com os amores de agora.

AMORES DO PASSADO E DE AGORA

Amores como o de Julieta e de RomeuJá quase não se vêm hoje em dia.São amores que acabam sem alegria.Morre um seguindo o outro que morreu.

São amores que se dizem muito puros.Em que o sexo só vem depois da paixão.Em que um agarra do outro só a mão,Mesmo estando em sítios muito escuros.

Mas agora o tempo é outro, é diferente.E eu não sei se será muito decente,Quando uma jovem encontra um amigo,

E depois este então assim lhe fala:Olha lá, estás altamente oh chavala!Não quererás tu fazer amor comigo?

O Drama.

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Omissões e Distinções

Conta já 110 anos o jornal Correio da Feira e revela uma juventude e uma frescura que é muito agradável de apreciar. Nascido em 11 de Abril de 1897 a sua História foi criteriosamente estudada pelo probo investigador Dr. Roberto Vaz de Oliveira no Livro “A Imprensa Periódica da Vila e Concelho da Feira” – 1969.

O Correio da Feira completou 25 anos em 11 de Abril de 1922 e a data das “Bodas de Prata” passou despercebida como o evidencia a falta de notícia sobre a efeméride, vivendo-se embora em plena 1ª República e o jornal ostentasse o subtítulo de “Semanário Republicano”.

Em 11 de Abril de 1947 ocorreu o cinquentenário do nascimento do jornal, a data propícia à comemoração das suas “Bodas de Ouro”. Em pleno Estado Novo os tempos não eram favoráveis aos jornais que se diziam “Semanário Republicano e Regionalista” marcados que estavam pelo lápis azul da Censura. No entanto o cinquentenário do Jornal foi assinalado com um artigo de Vaz Ferreira “Meio Século de Existência é período que merece especial comemoração”. E termina: “Por agora as felicitações são só pelo quinquagésimo aniversário desta folha que há meio século vem lutando pelos interesses da nossa querida Terra” – Edição de 12 de Abril de 1947. Na edição de 26 de Abril vem no interior uma pequena nota: “O meio século do Correio da Feira” e salienta “a referência feita pelo jornal República, de Lisboa, com palavras que muito agradecemos”.

Em 11 de Abril de 1972 o Correio da Feira perfazia 75 anos de vida, a data das “Bodas de Diamante”. Foi feito um número especial com preciosa e múltipla colaboração. Em destaque o artigo de Roberto Vaz “De Velho para Velho...”, seguindo-se artigos assinados por João Correia de Sá, Aires Lopes, Ferreira da Rocha, Júlio Silva, Dª Maria da Luz, Jacob da Azenha, Luís Campos, António Lamoso, Hugo Rocha e D. Idalina Soares da Silva. Muitos correspondentes, de Romariz, Nogueira da Regedoura, Sanguedo, Milheirós de Poiares, Riomeão, S. João de Vêr, Vale, Mozelos, Paços de Brandão, Escapães, Vergada, S. Paio de Oleiros, Pigeiros, Lourosa, Fornos, Canedo e Mosteirô, deram justifi cado relevo à efeméride. Foi na sua reunião de 4 de Abril de 1972 que a Câmara Municipal pela primeira vez olhou com carinho para o seu lídimo defensor e elo de ligação com as comunidades santamarianas espalhadas pelo Mundo. A Câmara Municipal, em que Alcides Branco era Presidente e Diogo Vaz de Oliveira Vice-Presidente, * - Caminheiro por Alfarrabistas, Arquivos e Livrarias.

Ceomar Tranquilo *

A Luís Filipe Higinodedicado Santamariano

JORNAL CORREIO DA FEIRA

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prestou pública homenagem ao Correio da Feira atribuindo o seu nome ilustre a uma rua muito importante da cidade, a sua “Rua Áurea” onde encontramos a Caixa Geral de Depósitos e Bancos vários, conforme a deliberação publicada no Jornal de 15 de Abril, e que é reproduzida.

«Hora de Consagração Num gesto altamente signifi cativo a premiar e enaltecer os valores morais e intrínsecos das Terras da Feira, a Ex.ma Câmara Municipal deliberou, por unanimidade, dar o nome do Jornal «Correio da Feira» a uma das artérias centrais da nossa Vila. Transcrevemos na íntegra e, jubilosamente, a decisão camarária, marco luminoso para «Correio da Feira» e precioso estímulo para, sem esmorecimento nem desânimo, continuar a trilhar a caminhada longa, árdua e penosa, encetada há 75 anos. Ex. Senhora Directora do «Correio da Feira» Feira Tenho o prazer de comunicar a V. Ex. que esta Câmara Municipal, na sua última reunião ordinária de 4 do corrente, tomou a deliberação que se transcreve: «Toponímia – Rua do Jornal «Correio da Feira» O sr. Vice-Presidente fez à Câmara a seguinte proposta: «No próximo dia 11 de Abril, completa 75 anos de publicação o Jornal «Correio da Feira». Durante estes 75 anos, este prestimoso Jornal sempre pugnou pelos interesses de sua terra e contribuiu para o estreitamento dos laços de amizade e solidariedade de todos os Feirenses, alguns deles bem distantes da sua Terra Natal. Por tudo o que fez com sacrifício e dedicação, é credor da admiração e estima de todos nós e por isso entendemos que nesta data seria oportuno materializarmos e testemunharmos publicamente a nossa estima e gratidão. Assim proponho, em meu nome e no do Sr. Presidente da Câmara, que expressamente me encarregou de o fazer, que seja dado o nome do Jornal «Correio da Feira» a um dos novos arruamentos na parte central desta Vila, como testemunho de gratidão

e homenagem, que o povo do Concelho da Feira e sua Câmara Municipal, devem prestar ao Jornal «Correio da Feira», seus fundadores, continuadores e actuais proprietários, colaboradores e directores». A Câmara concordando com a proposta, deliberou, por unanimidade, atribuir o nome do Jornal «Correio da Feira» à rua, recentemente construída, até aqui designada por Rua E. Apresento a V. Ex. os meus cumprimentos. A bem da Nação O Presidente da Câmara, Alcides Branco»

Em cumprimento da deliberação, no dia 11 de Abril, pelas 18 horas, na redacção do Correio da Feira foram apresentados cumprimentos à Directora e Administradora, tendo usado da Palavra o Dr. Roberto Vaz de Oliveira, seguindo depois a comitiva para o descerramento da lápide na rua que consagra o Semanário. Seguiu-se um “copo de água”, pelas 19 horas, na Estalagem Santa Maria, oferecido pela Directora e Administradora do jornal, que foi de plena vivência democrática, sem espartilhos, e durante o qual usaram

Roberto Vaz de Oliveira discursa na Redacção do Jornal. Na foto as Senhoras do Correio, Arlindo Correia de Castro, Celestino Portela e José Martins Arroja.

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da palavra as pessoas que entenderam por bem fazê-lo. E tudo decorreu em ambiente festivo, irmanados pelo “Espírito Feirense”, em que todos sublimaram o que os unia e esqueceram o que os dividia, e que o jornal, edição de 22 de Abril, registou nestes termos; «As comemorações dos 75 anos do «Correio da Feira» Decorreram com brilho as comemorações das Bodas de Diamante, as quais se iniciaram nesta vila no dia 11, num preito de homenagem a este jornal, que não obstante a sua modéstia tem sido através da sua

longa existência um valoroso paladino da defesa dos interesses desta vila e do seu concelho. Para que as comemorações tivessem alto signifi cado, com o patrocínio da Ex.ma Câmara, constituiu-se uma comissão local formada pelos nossos amigos e devotados feirenses, srs. Dr. Alcides Monteiro, Dr. Diogo Vaz, Dr. Luís Resende, João Correia de Sá, Luís Campos, António Lamoso, José Santos, Francisco da Costa Neves e J. Ferreira da Rocha. E assim, de harmonia com o previamente elaborado, pelas 18 horas daquele dia, concentraram-se numerosas pessoas na praça Dr. Gaspar Moreira

Reconhecem-se Diogo Vaz de Oliveira, Padre Manuel Soares dos Reis, Luís Leite Resende, Francisco da Costa Neves, Alcides Coelho, as Senhoras do Correio - Dª Luísa e Dª Brízida, Roberto Vaz de Oliveira, Carlos Nunes, Eurico de Castro Chaves, Alcides Branco, Alexandre Pais Morais de Figueiredo, José Gomes da Silva, Celestino Portela, Lino da Silva Leite, Sidónio Lopes, José Ventura Rodrigues e esposa e José Martins Arroja.

154 para, em seguida, se dirigirem à Redacção deste jornal apresentar cumprimentos às suas directora e administradora, sr. D. Brízida Soares Alvão e D. Maria Luísa Soares Braga e assinar o livro de honra que fi cará a comemorar esta data festiva. Neste acto usou da palavra o ilustre feirense sr. Dr. Roberto Vaz de Oliveira que teve palavras de apreço para o Correio da Feira, pela sua acção em prol da integridade e defesa do concelho e da união dos feirenses, prestando homenagem à memória dos seus fundadores, Dr. António de Castro, Dr. Vitorino de Sá, Visconde de Albergaria de Souto Redondo e Joaquim Pinto Valente, bem como ao falecido director José Soares de Sá, que durante 65 anos deu vida e profi cuidade a este semanário sendo, no fi nal, muito aplaudido. Seguidamente procedeu-se ao descerramento da lápide que dá o nome «Jornal Correio da Feira» a uma nova artéria no centro da Vila, em execução de uma deliberação da Ex.ma Câmara Municipal, a que já nos referimos no número anterior, deliberação que foi muito bem recebida pela população da Feira Para presidir a esta cerimónia que teve a assistência do presidente e vice-presidente da câmara, respectivamente os srs. Alcides Branco e Dr. Diogo Vaz, toda a Vereação e de muitas outras pessoas, foi escolhido o sr. Dr. Roberto Vaz, que nesse momento

recebeu uma prolongada salva de palmas. Pelas 19 horas teve lugar na Estalagem de Santa Maria um «copo-d’água» oferecido pela direcção e administração.» Um dia muito feliz que o jornal registou com a consciência de que tinha sido feita Justiça ao Mérito do trabalho realizado durante 75 anos.

A 1ª Câmara eleita democraticamente após o 25 de Abril de 1974 soube honrar o Correio da Feira, o único jornal que se publicava no Concelho, já fazendo Justiça, já saldando uma dívida. Da acta Nº 19, da reunião da Câmara Municipal de 12 de Abril de 1979, consta:

«Medalha de Ouro de Mérito Municipal

O vereador Celestino Portela, considerando “1-Que o Jornal Correio da Feira conta já 82 anos de existência, o que é raro na imprensa regional; 2- Que a sua longa carreira tem sido inspirada nos princípios Republicanos e Democráticos, ao serviço do Povo do Concelho da Feira; 3-Que, para além da atribuição do nome do Jornal a uma rua, nunca os poderes político-administrativos consagraram a acção do Correio da Feira;

As Senhoras do Correio, Roberto Vaz de Oliveira, Alcides Strecht Monteiro, José dos Santos no momento do descerramento da placa toponímica.

Rua Jornal Correio da Feira.

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4 - Que foi difícil a vida do Jornal no tempo da acção repressiva da censura e que só sobreviveu com grande espírito de sacrifício; 5- Que o Jornal constitui um elo de ligação entre a terra natal e os Feirenses espalhados pelo Mundo; 6 - Que tem tido acção importante na defesa dos interesses do Concelho;Propôs: - Que a primeira Câmara Municipal da Feira eleita por sufrágio directo dos seus munícipes tenha a honra de atribuir ao Jornal Correio da Feira a medalha de Ouro de Mérito Municipal em consagração dos relevantes serviços prestados à Causa Feirense. A Câmara deliberou, por maioria, conceder a Medalha de Ouro de Mérito Municipal ao Correio da Feira.»

O Correio da Feira “rejubilou” com a decisão camarária a que deu grande relevo na 1ª página do seu número de 27 de Abril de 1979, conforme a notícia que se reproduz. «Correio da Feira galardoado no seu aniversário Apraz-nos noticiar que a ilustre Câmara Municipal, deste concelho, num gesto que sobremaneira nos honra, deliberou por proposta abaixo mencionada,

distinguir, o Correio da Feira, concedendo-lhe a medalha de Ouro de Mérito Municipal em consagração dos serviços por este Jornal prestados à Feira e seu Concelho. Eis a proposta: Medalha de Ouro de Mérito Municipal ao Jornal Correio da Feira CONSIDERANDO 1 - Que o Jornal Correio da Feira conta já 82 anos de existência, o que é raro na imprensa regional; 2 - Que a sua longa carreira tem sido inspirada nos princípios Republicanos e Democráticos, ao serviço do Povo do Concelho da Feira; 3 - Que, para além da atribuição do nome do Jornal a uma rua, nunca os poderes político-administrativos consagraram a acção de Correio da Feira; 4 - Que foi difícil a vida do Jornal no tempo da acção repressiva da censura e que só sobreviveu com grande espírito de sacrifício; 5 - Que o Jornal constitui um elo de ligação entre a terra natal e os Feirenses espalhados pelo Mundo; 6 - Que tem tido acção importante na defesa dos interesses do concelho; Propomos: - que a 1ª Câmara Municipal da Feira eleita por sufrágio

Medalha de Ouro de Mérito Municipal.

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directo dos seus munícipes tenha a Honra de atribuir ao Jornal Correio da Feira a medalha de Ouro de Mérito Municipal em consagração dos relevantes serviços prestados à Causa Feirense.

Vila da Feira, 11 de Abril de 1979. Celestino de Oliveira Martins Portela Hilário Vilar de Oliveira Elísio Amorim Carneiro José Ângelo Rios da Silva Rui Manuel Serrano José Nuno Santos Pinto Carlos Alberto Ferreira de Lima Desvanecidos com tão grande honra, queremos aqui, testemunhar a nossa profunda gratidão, não só aos ilustres proponentes, como à Câmara da Presidência do sr. Dr. Aurélio Gonçalves Pinheiro.»

A entrega da Primeira Medalha de Ouro de Mérito Municipal foi feita em cerimónia muito simples mas à qual o jornal, no seu número de 29 de Junho de 1979, deu signifi cativo destaque e que, com a devida vénia, se transcreve: «Homenagem póstuma da Câmara Municipal a José Soares de Sá, ao atribuir a Correio da Feira a Medalha de Ouro de Mérito Municipal Como já nos referimos no Correio da Feira de 27-4-79, teve lugar no passado sábado, 23 de Junho, a entrega na nossa Redacção por elementos da nossa Edilidade, duma oferta que sobremodo nos sensibilizou: — a Medalha de Ouro de Mérito Municipal ao «Correio da Feira». E sensibilizou-nos por variadas razões; entre outras, porque esta simpática iniciativa surgiu precisamente da Primeira Câmara democraticamente eleita pelos cidadãos feirenses e nossos queridos conterrâneos. Por outro lado, pela simples e sincera espontaneidade dos nossos bons amigos que, assim, e mais uma vez, nos quiseram demonstrar que — sempre estiveram e continuam a estar connosco. E são exactamente estas inequívocas manifestações de carinho, amizade e compreensão que nos fornecem o estímulo de que necessitamos para continuar lutando nas colunas do nosso Semanário; são

estas provas de simpatia, esta presença amiga, a nossa força e a coragem indispensáveis ao prosseguimento duma obra que recebemos por herança. Herança que, embora pesada e cheia de responsabilidades, tanto prezamos e tanto incitamento nos dá para não a deixarmos morrer. Aqui deixamos, mais uma vez, o nosso Bem Hajam, o nosso profundo reconhecimento aos nossos queridos companheiros de luta por uma Feira maior que nunca nos deixaram sós. Na cerimónia que primou pela simplicidade, onde tudo se processou como em família, estiveram presentes elementos da Câmara, da A. Municipal, da Junta de Freguesia, e alguns amigos, srs. José Rios, Dr. Celestino Portela, Eng. Rui Serrano, José Nuno, António da Graça, José Leão, Manuel Bóia, José Santos, Prof. José Pinho Leão, Germano Santos, Carlos Maia, Óscar Maia, Manuel Castro, Vítor Resende, Luís Ramalho e Ferreira da Rocha. No acto da entrega da Medalha pelo vereador sr. José A. Rios, em representação do sr. Presidente da Edilidade, usou da palavra o sr. Dr. Celestino Portela, tendo proferido palavras que calaram fundo no mais profundo do nosso sentimento, as quais a seguir trans-crevemos: “Exma Senhora Directora de Correio da Feira Exma Senhora Administradora de Correio da Feira Exmos Colegas de Vereação na Câmara da Feira Amigos, meus senhores e minhas senhoras: Aprendi na minha profi ssão a ter paciência em aguardar Justiça. Com o nosso Povo aprendi «que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe». Está inerente ao fazer Justiça, enaltecer as vítimas e castigar os criminosos. Esta Câmara Municipal assumiu a responsabilidade de corrigir alguns erros do passado e assume o julgamento do Povo. Julgamento sereno, consciente, já que tudo tem sido feito para bem, honra e glória da Terra de Santa Maria, berço querido e amado — nem que seja este o único argumento de defesa. Correio da Feira, viu passar a idade da Prata — 25 anos — no silêncio dos Poderes Públicos.

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Correio da Feira viu passar a idade de Ouro — 50 anos — no ostracismo dos Poderes Públicos. Correio da Feira viu passar a idade de Diamante — 75 anos — enaltecida pela Câmara da Presidência de Alcides Branco — ao atribuir o nome glorioso do «Correio» a uma rua aberta de novo em Vila da Feira. Entendeu por bem a 1ª. Câmara democra- ticamente eleita corrigir as injustiças do passado, atribuindo ao Jornal Correio da Feira a Medalha de Ouro de Mérito Municipal, galardão de há muito merecido. Honra que é, a título póstumo, para V.º saudoso

Pai, minhas senhoras, e que vossas Excelências guardarão no relicário da saudade, com a certeza de que, embora tardiamente, Justiça se fez. Por mim, confesso-o, sinto orgulho na iniciativa que tomei e que tanto aplauso, e tão espontâneo, teve nos meus colegas. Há uma sensação de satisfação, – porquê negá-lo? – de dever cumprido. Correio da Feira que assistiu ao nascimento e morte, algumas prematuras, de outros colegas, que ganhe mais alento para a luta de sempre: a Defesa dos

As Senhoras admiram a medalha de ouro de Mérito Municipal.

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interesses e das gentes do Concelho da Feira. Resta-nos pedir a Deus vida e saúde para assistirmos à grande festa do Centenário e, naquele abraço que une a Grande Família do «Correio», dizer bem alto: Obrigado José Soares de Sá Bem Hajam Minhas Senhoras. Feira, 23 de Junho de 1979”.

E de tal forma nos sensibilizaram, que a nossa Directora, ao pretender agradecer, não o conseguiria como era de sua vontade, tão chocada fi cou naquele momento alto de amizade e reconhecimento. E assim, delegou no nosso colaborador Ferreira da Rocha, que também conforme soube e pôde, apanhado de surpresa,

disse aquilo que sentia e lhe pareceu mais apropriado para aquele momento. Proferiram ainda algumas palavras, simples mas amigas, os nossos bons amigos srs. José Santos e José Nuno; e no simples copo-d’água que oferecemos aos presentes, falaram ainda o sr. António Graça, Chefe da Secretaria da Câmara e o nosso colaborador sr. Vítor Resende. Com estes brindes fi cou encerrada esta simples mas signifi cativa cerimónia da entrega da Medalha de Ouro de Mérito Municipal; e assim mais uma vez renovadas as forças que nos vão fazer continuar esta obra que é de todos e para todos os feirenses.»

Um grupo de colaboradores e amigos decidiu assinalar com dignidade o 90º aniversário do Jornal. A comemoração do 90º aniversário do Jornal constituiu uma antevisão do Centenário, pois ninguém sabia quem lá chegaria... Na edição de 27 de Março de 1987 vem a seguinte notícia:

“A Propósito do 90 ° aniversário de Correio da Feira

«Ter um destino, é não caber no berço Onde o corpo nasceu. É transpor as fronteiras uma a uma E morrer sem nenhuma, Às lançadas à bruma, A cuidar que a ilusão é que venceu.» (Miguel Torga, in Poemas Ibéricos)

Pretendendo assinalar, condignamente, a passagem desta festiva efeméride, um grupo de colaboradores e amigos de Correio da Feira formou uma Comissão Executiva: Carlos Fontes, Fernando Mário Neves, José Nuno Pinto, Manuel Tavares, Orlando Macedo e Serafi m Lopes, que tem por missão dar corpo a um programa que, ainda que simples, prestigie este «velho» baluarte da imprensa local e regional, lídimo representante e defensor dos interesses das Terras da Feira e de Santa Maria. Foi decidido, para maior brilhantismo das comemorações, formar uma Comissão de Honra, tendo

A Senhora Directora do Jornal e a vivência emocional de um acto de justiça tardia.

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sido convidadas as seguintes Individualidades para a preencher: — Presidente da Assembleia Municipal da Feira — Presidente da Câmara Municipal da Feira — Albano de Paiva Alferes (Padre) — Celestino Oliveira Martins Portela (Dr.) — Domingos da Silva Coelho (Dr.) — Eduardo Sebastião Vaz de Oliveira (Dr.) — Henrique Veiga de Macedo (Dr.) — Joaquim Ferreira da Rocha — José Manuel Soares de Sá (Dr.) — Justino Francisco Pinto — Manuel Afonso Strech Monteiro (Dr.)”

O programa do aniversário foi apresentado na edição de 10 de Abril, nos termos que referimos:

“Programa do 90° Aniversário do Correio da Feira 11 de Abril de 1987 11,30 horas — Concentração no Cemitério Municipal de Santa Maria da Feira, seguindo-se romagem ao túmulo de José Soares de Sá e outras fi guras ligadas ao jornal; 12,00 horas — Missa no Convento dos Lóios/ Igreja Matriz de Santa Maria da Feira; 12,30 horas — Almoço no Restaurante Brasil, na Cruz — Santa Maria da Feira, onde será feita a inutilização do cunho da medalha comemorativa do 90.° Aniversário.”

No número de 17 de Abril vem publicada a reportagem sobre a comemoração, donde ressalta a elevação de todo o programa, a democraticidade vivida, a espiritualidade feirense no mais elevado expoente, que raras vezes foi dado viver com tanta intensidade, e que transcrevemos: “Passamos os noventa O último sábado, dia 11 de Abril, foi marcado pelos noventa anos do Correio da Feira, num encontro de instituições e personalidades que sabem e sentem a missão que o jornal assume e com a claridade do dia procurando abrir mais e outros horizontes. Pelas onze horas e trinta minutos da manhã

fomos ao Cemitério Municipal de Santa Maria ida Feira, colocámos uma coroa de fl ores no túmulo de José Soares de Sá, recordamos fundadores e colaboradores, nomeamos grandes vultos e não abdicamos de nenhum contributo de quem no jornal foi esforço e dedicação, e saímos cientes de que a inevitabilidade da passagem dos homens exige que as suas obras sejam prosseguidas. Seguiu-se uma Missa, celebrada pelo senhor Padre Albano de Paiva Alferes, velho, sabedor e dedicado colaborador do jornal, enquanto o senhor Presidente da Câmara Municipal vincou a presença do Município nesta hora, lendo a Epístola. Sem pressas para o almoço, que a hora era de encontro, a emoção das senhoras Directora e Administradora foi recebendo o carinho de muitas e múltiplas personalidades feirenses que quiseram estar presentes neste momento alto do «Correio da Feira». No almoço, a Mesa de Honra foi presidida naturalmente pelas senhoras Donas Brízida e Luísa Maria, ladeadas à direita pelo senhor Presidente da Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira — Dr. Orlando Oliveira, Dr. Alberto Carvalho — Delegado no Norte da Secretaria de Estado da Comunicação Social, Dr. Celestino Portela e esposa, Dr. Eduardo Sebastião Vaz de Oliveira — Presidente da Comissão do Castelo, Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira — Rogério Portela de Almeida e Ferreira da Rocha, fi cando ladeadas à esquerda pelo senhor Presidente da Câmara Municipal — Alfredo de Oliveira Henriques e esposa, Padre Albano de Paiva Alferes, Dr. Domingos da Silva Coelho, Dr. Henrique Veiga de Macedo e Justino Francisco Pinto. Os cunhos da medalha comemorativa dos 90 anos do Correio da Feira foram inutilizados pelos senhores Presidente da Câmara, Dr. Alberto Carvalho e Dr. Veiga de Macedo, sendo entregues à Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, passando assim a constituir património santamariano. O colaborador José Nuno apresentou a medalha comemorativa, de que se cunharam apenas 200 exemplares, e onde o primeiro prelo do jornal, as armas municipais de 1897 e 1987, e um verso de Fernando Pessoa eternizam o percurso do Correio da Feira. As senhoras Deolinda Tavares e Margarida

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Santos Pinto, esposas dos colaboradores do jornal com o mesmo nome, ofertaram ramos de fl ores às senhoras Directora e Administradora, mostrando assim que colaborar com o Correio da Feira é pertencer também à grande família que o Correio da Feira reúne. Na sua qualidade de membro da Comissão Executiva desta homenagem, José Nuno Santos Pinto entregou as primeiras sete medalhas comemorativas: 1 — Brízida Monte Santos Soares Alvão; 2 — Maria Luísa Soares de Sá Braga; 3 — Dr. José Manuel Soares de Sá (a ausência impossível de esquecer na velha casa povoada de memórias que é o Correio da Feira; 4 — Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira; 5 — Presidente da Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira; 6 — Presidente da Câmara Municipal; 7 — Delegado da Secretaria de Estado da Comunicação Social no Norte. Do senhor Governador Civil do Distrito de Aveiro foi dada a conhecer carta que marca a impossibilidade de estar presente, dados compromissos anteriormente assumidos. José Nuno notou que necessariamente constituídas para formalizar esta comemoração, as Comissões de Honra e Executiva são, afi nal, todos quantos se quiseram associar a este acto e a esta data, e referiu personalidades e instituições que, por carta, telefonema e telegrama, se quiseram associar também a mais um aniversário do jornal, cada vez mais perto do centenário. E seguiu-se o natural período de intervenções públicas:

Vítor Resende lembrou a dureza do trabalho que dá realizar semanalmente o jornal, notou que as suas páginas espelham os altos e baixos do quotidiano que se faz e acontece, reparou que o jornal continua fi el aos princípios do seu fundador e desejou que daqui a dez anos cá estejamos todos para participar no centenário do «Correio da Feira», caso ímpar na comunicação social portuguesa.

Domingos da Silva Coelho, Dr., vincou a elevação e signifi cado desta jornada, identifi cou o cunho familiar deste encontro, mostrou a amizade e gratidão que a missão do jornal merece, apontou a fi rmeza de princípios com que o jornal prossegue a sua caminhada e terminou notando que a forma de ser e estar do «Correio da Feira» fortalece e dignifi ca a comunidade feirense, porque assente na justiça, na moderação, na verdade e no respeito pela pessoa humana, e assim deve ser considerado como autêntico património do Concelho. E culminou a sua intervenção com um brinde.

(José Nuno anunciou que organismos e colectividades de Santa Maria da Feira quiseram associar-se a esta data, como o Clube Desportivo Feirense, Rotary Clube, Núcleo Desportivo de Travanca, Rádio Clube da Feira e Comissão de Vigilância do Castelo)

Henrique Veiga de Macedo, Dr., começou por dizer que quanto mais vai conhecendo as gentes mais orgulho tem em ter nascido aqui, reparou que não haverá gente como a nossa pelo seu trabalho e fi delidade à linha dos princípios, considerou faceta dos feirenses o respeito pelas convicções alheias que pode fazer zangar as ideias mas nunca os corações, notou que nesta mesa com respeito e dignidade se sentam e comem do mesmo pão e bebem do mesmo vinho monárquicos e republicanos, liberais e socialistas, o que identifi ca a riqueza do nosso ser feirense, disse plural e aberto, compreensivo e tolerante o «Correio da Feira», a tolerância viva, o mais antigo, o mais representativo e o mais vivo jornal do Concelho, identifi cou como imperativo de consciência a sua presença aqui, pelo jornal e pelo amor e dedicação das senhoras Directora e Administradora, e culminou a sua intervenção com a memória de tempos amargamente passados fora do País onde o «Correio da Feira» e as camélias que só aqui têm mais vida e sentido foram néctar para vencer a saudade e permanecer intimamente ligado às suas origens. E ofereceu as camélias da sua poesia e da beira do Castelo às senhoras Directora e Administradora.

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O Presidente do Clube Desportivo Feirense — Luís Gomes da Silva ofereceu o emblema do Clube ao Jornal e agradeceu a disponibilidade que sempre tem mostrado para com esta colectividade da sede do concelho.

José Machado evocou os seus laços familiares com as senhoras do «Correio da Feira», disse-as pedras vivas do espírito feirense, identifi cou o jornal como elo forte na ligação dos feirenses dispersos por todo o mundo e desejou que o jornal continue a sua missão. E ofereceu galhardetes da Secção de Ciclismo do Feirense ao Correio da Feira, à Rádio Clube da Feira — o mais novo dos membros da comunicação social concelhia e à Câmara Municipal, pelo apoio que tem dado a todas as iniciativas e valores feirenses.

Gustavo Fernandes, Presidente do Rotary Clube da Feira, um cinfanense ilustre e prestigiado no seu torrão natal e um feirense por amor a esta terra onde trabalha e vive e a quem vem dando a disponibilidade da sua capacidade e empenho, aplaudiu a resistência do Correio da Feira face às vicissitudes que o dia a dia levanta, elogiou a independência do jornal e o respeito pelo rumo traçado na primeira hora, disse-o marco rigoroso e seguro dos valores da fraternidade, da justiça, da igualdade, da paz e da liberdade e apontou-o como exemplo às gerações futuras. E em nome do Rotary Clube ofereceu uma lembrança ao jornal.

Eduardo Sebastião Vaz de Oliveira, Dr., Presidente da Comissão de Vigilância do Castelo, notou que independentemente de ideários políticos e religiosos, as senhoras e o Correio da Feira afi rmam um carácter, uma coragem de ser e estar, e uma humanidade que a todos devem merecer respeito, sendo a trajectória do jornal marcada pelo respeito de convicções e posições onde a pessoa humana tem o seu devido lugar.

O senhor Presidente da Câmara Municipal assumiu a devida representação do Município nesta hora e circunstância, notou a relevância da missão do Correio da Feira formando e informando dentro e fora do Concelho, avultou a juventude do jornal como garantia

da sua continuidade dentro dos princípios que se propôs e prossegue e lembrou que os 100 anos do Correio da Feira serão motivo para urna festa ainda maior e para a certeza de que o jornal vai continuar. E manifestou o seu prazer e honra em ler uma mensagem do senhor Presidente da República sobre quem, disse, nesta hora se concentram as atenções de todos os portugueses.

O senhor Presidente da Assembleia Municipal disse que o Correio da Feira é o mensageiro das Terras de Santa Maria da Feira, notou que o jornal tem contrariado as leis da natureza porque nasceu e se recusa a morrer, reparou que este semanário vem cumprindo os objectivos que se propôs, não esqueceu de notar que as divergências pessoais e críticas, naturais e justas, não podem deixar de ter na devida conta a missão que o jornal visa, concentrou as vidas das senhoras Directora e Administradora no percurso do jornal que entende já património concelhio, lembrou que o esforço do jornal merece gratidão não só porque porta aberta e plural mas também porque traço de união entre os feirenses, recordou José Soares de Sá que se fora presente fi sicamente concluiria que valeu a pena e terminou agradecendo o convite para integrar a Comissão de Honra destas cerimónias.

O Delegado da Secretaria de Estado da Comunicação Social no Norte confessou-se o mais novo admirador do Correio da Feira e das suas Directora e Administradora, disse que o jornal não faz 90 anos, antes está há noventa anos na Imprensa regional, notou as difi culdades da imprensa regional e o facto de muitas vezes o apelo ao Estado apenas servir para difi cultar a vida dos jornais, e manifestou o seu apreço pelo «Correio da Feira» enquanto jornal que privilegia o que une e interessa aos feirenses repartidos pelas várias partes do Mundo.

Finalmente, a senhora Directora agradeceu em discurso que transcrevemos: “Obrigado Um Grupo de Amigos do Correio da Feira entendeu que os 90 anos do Jornal mereciam um aniversário público.

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Essa ideia foi-nos apresentada quando havíamos pensado celebrar esta data de forma mais íntima — tanto mais que, nestas alturas, é maior a carga das memórias pessoais e familiares. Mas como se pretendia homenagear o «Correio da Feira», sinal de que o Correio da Feira é hoje também património de Colaboradores e Leitores, Amigos e conhecidos, Feirenses Natos ou por mor da nossa terra — aceitamos que estes 90 anos saíssem das páginas do Jornal e da nossa Casa. Por esta razão, as Comissões que encabeçaram estas cerimónias são o resultado dessa iniciativa, que agradecemos, desejando que todos e cada um notem que o Correio da Feira não esquece ninguém nesta hora ou noutras, e a todos abraça com carinho. Agradecendo esta comemoração, agradecendo também a todos os que, escrevendo ou marcando presença na nossa casa, contribuem para que o Correio da Feira saia todas as semanas ao encontro da Comunidade Feirense presente no Concelho ou repartida pelo Mundo encontrando-se ainda com tantos outros a nós ligados e cuja vida os faz reter fora da nossa região. Repetindo o que dissemos no «Editorial» que assinala os 90 anos do Correio da Feira, noventa anos de vida de uma pessoa são muito tempo, mas o mesmo tempo é escasso na vida deste jornal que tenciona

continuar o seu caminho, porque tem uma herança para respeitar e uma missão para cumprir. Na verdade, sofrendo um jornal, bastante, as consequências da passagem das pessoas e dos anos, estes 90 anos do Correio da Feira obrigam-nos a dar uma garantia: de que o jornal vai continuar. E o Correio da Feira vai continuar porque, apesar de passar quem o faz hoje, tudo faremos para que o Jornal continue. Ou seja, connosco e com quem nos entendermos, o Correio da Feira vai continuar a servir o melhor que pode e sabe. Obrigado. Santa Maria da Feira, 11 de Abril de 1987. Brízida Monte Santos Soares Alvão”

A medalha comemorativa, concebida pelo Escultor Baltazar Bastos, já acima descrita, que reproduzimos salientando o verso de Pessoa: Ao nauta o mar obscuro é a rota certa.

O Jornal caminhava para a celebração do Centenário. Na acta da reunião da Câmara Municipal de 21 de Janeiro de 1997 consta: “Centenário do Jornal Correio da Feira”

Medalha comemorativa do 90º aniversário do Correio da Feira, frente e verso.

163 O vereador do Pelouro de Fomento – José Leão – referiu que, em 11 de Abril próximo, celebra-se o Centenário do Correio da Feira; e porque 100 anos de publicação ininterrupta é caso único no Concelho e pouco habitual no panorama da imprensa escrita no País, considera que a Câmara deveria, naturalmente, avaliar a melhor forma de se associar às comemorações deste evento. Assim, submeteu à consideração da Câmara a realização das seguintes iniciativas para a Comemoração do Centenário do Correio da Feira: - Atribuição da “Medalha de Ouro do Município”; - Lançamento dum livro intitulado “Imprensa Periódica II”; - Exposição sobre a temática da Imprensa regional, de âmbito concelhio, aquando do lançamento do livro supra-referido; - Realização dum concerto; - Cunhagem duma Medalha Comemorativa do Centenário, a conceber pela Escultora Feirense Emília Lopes, com uma edição limitada de 200 exemplares em bronze e 10 exemplares em prata. O vereador José Leão justifi cou a sua proposta de atribuição da “Medalha de Ouro do Município” por ser o mais alto galardão, por todas as ordens de razão

e até pelo facto de ter sido já atribuída, oportunamente, ao Correio da Feira a Medalha de Mérito Municipal. Esclareceu que o lançamento do referido livro – Imprensa Periódica II – seria a sequência do livro publicado pelo Dr. Roberto Vaz de Oliveira, que retrata a imprensa periódica do Concelho até uma determinada data (década de 60). Após troca de impressões no âmbito do assunto, a Câmara deliberou nos termos do Regulamento da Concessão de Distinções Honorífi cas, por escrutínio secreto e por unanimidade, atribuir ao Jornal da Feira a Medalha de Ouro do Município. Deliberou, também, promover o lançamento dum livro intitulado Imprensa Periódica II, uma exposição sobre a temática da Imprensa Regional de âmbito concelhio e a realização dum concerto, cometendo a prossecução do assunto ao vereador José Leão. Mais deliberou proceder à cunhagem duma Medalha Comemorativa do Centenário, com edição limitada de 200 exemplares em bronze e 10 exemplares em prata, delegando no Gabinete da Presidência o estabelecimento dos contactos necessários com a Escultora Emília Lopes, tendo em vista a negociação dos custos inerentes à concepção e à execução daquela Medalha, submetendo o assunto, nos termos e para os devidos efeitos legais, à Assembleia Municipal. Finalmente deliberou fi xar o preço de venda ao público das referidas medalhas em 2.500.00/cada relativamente às de bronze e 25.000.00/cada para as de prata – à semelhança do fi xado para as medalhas alusivas ao Eleito Local”.

“100 anos de vida!” é o editorial do número de 11 de Abril e que iniciam as comemorações do Centenário, assinado por Serafi m Lopes.

“100 anos de vida! Hoje é um dia histórico para o Correio da Feira e, refl examente, para a imprensa regional, que vê, embevecida, um dos seus membros atingir uma meta que muito poucos ainda alcançaram — o centenário. Ciente da relevância deste acontecimento, a Câmara Municipal deliberou atribuir a Correio da Feira — que já fi gura na toponímia da cidade e na da

Bolo de Aniversário.

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freguesia de Escapães — o seu mais alto galardão — Medalha de Ouro de Mérito Municipal — e chamou a si, praticamente, toda a programação comemorativa do evento. E os Bombeiros Voluntários da cidade, atribuíram, em Assembleia Geral, por aclamação, o titulo de Sócio Honorário ao Jornal — sinais iniludíveis e gratifi cantes do mérito de uma longa e fecunda caminhada ao serviço do concelho, das suas instituições e população. Mais do que ponto de chegada de 100 anos

de reconhecida e espinhosa dedicação a tão nobre causa, este aniversário, pelo signifi cado e importância de que se reveste, constitui, por certo, um poderoso Impulso para o prosseguimento da viagem Iniciada, com coragem, amor e determinação, em 11 de Abril de 1897. O passado do jornal, digno e valoroso, fala por si. Não adianta, aqui e agora, enaltecer exaustivamente os seus méritos ou apontar eventuais falhas: Importa, sim, é que o resultado obtido ao longo de tantos anos de canseiras, incompreensões e alegrias, é

As Senhoras e os Presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal no almoço comemorativo do 90º Aniversário.

165amplamente positivo e merece, com certeza, o respeito e admiração dos feirenses tradicionalmente tolerantes e reconhecidos.”

Artigos de Abílio Ferreira da Silva, Roberto Carlos, Vítor Marques, Manuel Tavares, Carlos Assunção, José Vale, Fernando Neves, António Lamoso, Luís Maria, Florentino da Silva Resende, Ignótus e Ferreira

da Rocha, emolduram o número especial do “Correio”; o júbilo é acompanhado pelos vários correspondentes locais a que se associam algumas Juntas de Freguesia. No número de 18 de Abril vem a reportagem do Centenário de que destacamos:

“Centenário O programa do Centenário do «Correio da Feira» decorreu com simplicidade e dignidade, honrando o Jornal e quem se associou às comemorações. Na sexta-feira, dia 11, a Câmara Municipal assinalou o Centenário com actos culturais e no sábado, dia 12, o Correio da Feira reuniu os seus amigos que puderam participar em almoço na Estalagem de Santa Maria. No dia 11, no Convento dos Lóios, a Câmara Municipal abriu exposição sobre os «180 Anos da Imprensa Regional em Santa Maria da Feira», promoveu «Percursos — Mesa Redonda com Fernando Pessa e os directores dos jornais regionais centenários do País», procedeu à apresentação do livro «Imprensa Periódica de Santa Maria da Feira II: Jornais de 1970/1997, apresentou a Medalha Comemorativa do Centenário do Correio da Feira e ofereceu concerto pelo Grupo «Frei Fado D’el Rei».

Padre Albano Alferes, Domingos da Silva Coelho, Henrique Veiga de Macedo e Justino Francisco Pinto, no almoço dos 90 anos.

Medalha de Ouro de Mérito Municipal, cunho de 1992, Escultor José Aurélio.

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Entrega da Medalha e diplomas pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal, Alfredo de Oliveira Henriques.

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Discurso do Presidente da Câmara Municipal, Alfredo de Oliveira Henriques.

Lembrança de Marcolino Castro.

Carlos Maia representou a Comissão do Castelo. António Joaquim entrega uma lembrança.

Uma prenda muito apreciada, de José Correia de Almeida.

A partilha do bolo.

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A exposição mostra a publicação dos jornais feirenses datada sobre grandes eventos nacionais e estrangeiros, a mesa redonda sobre a imprensa regional centenária reuniu os jornais açorianos «União» e «Açoreano Oriental» e os continentais «Aurora do Lima», «Correio da Feira» e «Soberania do Povo de Águeda», o livro sobre a imprensa do concelho foi preparado pelas Drs. Etelvina Araújo e Márcia Cruz, directora e técnica da Biblioteca Municipal, e a medalha comemorativa foi executada pela Escultora Emília Lopes. O concerto musical, feito nos claustros do convento, agradou aos presentes pela novidade e qualidade do Grupo. No sábado, o «Correio da Feira» reuniu os amigos que puderam estar no espaço limitado da Estalagem de Santa Maria, que aliou a beleza da sala à qualidade do serviço e de ementa. Durante esse almoço foi lida uma mensagem do Dr. José Manuel Cardoso da Costa — Presidente do Tribunal Constitucional. O «Correio da Feira» recebeu prendas do Mestre António Joaquim, Marcolino Castro e da Comissão do Castelo, representada por Carlos Maia, proprietário do Jornal «Terras da Feira» e que por essa qualidade recebeu especial aplauso dos presentes, e do fotógrafo José Correia de Almeida, que montou um

quadro com as Senhoras D. Brízida e D. Maria Luísa e seu pai, José Soares de Sá. O almoço teve uma Mesa de Honra com as Senhoras do «Correio da Feira», ladeadas pelos Senhores Presidente da Câmara Municipal e esposa, Presidente da Assembleia Municipal e esposa, Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira e representantes dos jornais «Açoreano Oriental», «União» e «Jornal do Fundão». Por sugestão de D. Brízida, as velas do bolo de aniversário foram sopradas por Albino Santos e Manuel Tavares, que em breve assegurarão a administração e direcção do jornal, acompanhando os presentes com o «Parabéns a você». O Senhor Presidente da Câmara destacou a tenacidade e sacrifícios que o «Correio da Feira» fez para chegar ao Centenário, elogiou o empenhamento e dedicação de Dona Brízida e de Dona Maria Luísa para prosseguirem o testemunho que receberam de seu pai, José Soares de Sá, e como prova do reconhecimento do município e dos Feirenses entregou a Medalha de Ouro de Mérito Municipal ao Jornal e os diplomas competentes às suas administradora e directora.”

Medalha da Câmara Municipal comemorativa do centenário do jornal, escultura de Emília Lopes.

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Apresentamos a Medalha de Ouro de Mérito Municipal, novo cunho, pelo escultor José Aurélio, de muita beleza e inspiração, que a Câmara Municipal em boa hora mandou executar conforme deliberação de 1992. Penso que será o Correio da Feira a única entidade distinguida com duas medalhas de Ouro de Mérito Municipal, uma com o cunho de 1940, atribuída pela C.M. de Vila da Feira e a outra com o cunho novo, atribuída pela C.M. de Santa Maria da Feira. Os diplomas entregues às Senhoras Directora e Administradora são também importantes para ilustrar esta memória:

“Distinção Honorífi ca A Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, concede ao Jornal Correio da Feira, a Medalha de Ouro do Município, conforme deliberação em reunião ordinária de 21 de Janeiro de 1997. Santa Maria da Feira. O Presidente da Câmara Municipal, Alfredo de Oliveira Henriques.

A Medalha Comemorativa que a Câmara Municipal encomendou à escultora Emília Lopes, incluía descrição pela autora:

“De Santa Maria da Feira para o Mundo, a diáspora dos Feirenses teve no Correio da Feira um elo de ligação maternal e profundamente afectivo, representado, na espiral que sugere o movimento, cem anos de saudade, de memória e de reconhecimento. “No verso da medalha, as freguesias aparecem reunidas por fortes elos de ligação, de que o Correio da Feira tem sido um dos mais importantes enquanto factor de unidade e progresso em tão boa hora homenageado pelos autarcas eleitos da Câmara Municipal”.

A Câmara Municipal, na sua reunião de 11 de Dezembro de 1995, tomou a seguinte deliberação:

“2º Volume – Livro de Medalhística O Vereador do Pelouro do Fomento – José Leão recordou que o 1º Volume do Livro de Medalhística foi editado pela Câmara em 1986, sendo o seu autor Manuel Severino Magalhães de Lima, cujo trabalho foi gratuito, tendo a Câmara apenas pago o trabalho gráfi co. Atendendo a que o número de Medalhas editadas desde 1986 até ao presente é, sensivelmente, o mesmo que ocasionou a edição do 1º Volume e atendendo ainda que se trata de um trabalho que tem que ser feito com bastante tempo, propôs que a Câmara informe o autor do 1º Volume – Manuel Severino Magalhães de Lima – que se pretende editar um 2º Volume, convidando-o a coordenar o trabalho com vista à edição do 2º Volume, cuja publicação se aponta para 1997. A Câmara tomou conhecimento e, após troca de impressões no âmbito do assunto, deliberou, por unanimidade, aprovar a proposta formulada pelo vereador José Leão, a quem cometeu a prossecução do processo.”

Deliberação importante para o Concelho, quer para divulgação da medalhística quer para conservação do património artistico.

No seguimento desta deliberação foi dirigido ao Senhor Manuel Severino Magalhães de Lima o ofício que se reproduz:

Diploma que acompanhou a entrega da Medalha, sendo entregue um a cada uma das Senhoras.

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Manuel Severino Magalhães de Lima é um conhecido coleccionador e estudioso da medalhística, relacionado com alguns dos melhores escultores Portugueses. Autor da “Medalhística no Concelho da Feira”, que teve o alto patrocínio da Câmara Municipal, conforme proposta do vereador Sr. Germano Santos e deliberação da Câmara Municipal, da Presidência de Joaquim Dias Carvalho, de 26-11-1985. No seguimento do trabalho que imediatamente encetou, quando se aproximava o Centenário do Correio da Feira, Magalhães de Lima teve a feliz ideia de convidar a escultora Irene Vilar para executar uma medalha comemorativa, considerando que esta escultora ainda

não tinha realizado qualquer trabalho para o Concelho, e que seria uma falta grave que ela não fi gurasse no “2º volume da Medalhística no Concelho da Feira”, que a Câmara Municipal o convidara a realizar. E no almoço comemorativo do centenário Magalhães de Lima apresentou e fez entrega às “Senhoras do Correio” de um estojo, com quatro medalhas – Prata, Estanho, Bronze e Cobre – que reproduzimos nesta evocação das mais signifi cativas distinções que o Correio da Feira tem recebido ao longo das suas onze décadas perenes de juventude, juntamente com memória da medalha inserida nesta Revista, nº 9, p. 159. “A primeira medalha que a ilustre escultora

Convite da Câmara Municipal a Magalhães de Lima.

Aceitação jubilosa do honroso convite.

O Senhor Magalhães de Lima aceitou, entusiasmado, o convite, conforme carta que dirigiu à Câmara Municipal, e que acima se transcreve.

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A medalha encomendada por Magalhães de Lima, escultura de Irene Vilar.

Magalhães de Lima apresenta a medalha.

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realizou é comemorativa do Primeiro Centenário do Jornal “Correio da Feira”. Foi encomendada pelo conhecido coleccio-nador Magalhães de Lima e estava destinada a integrar um projecto lindo, “Três escultoras, três medalhas”, que nunca é demais lamentar que se não tenha concretizado. Medalha com quatro lados iguais, apresenta-nos no anverso a efígie de José Soares de Sá, integrada num espaço circular e perfurado, ligada ao conjunto por dois pernos que formam em eixo vertical, o que permite um movimento circular. A efígie de Soares de Sá é um autêntico retrato, em traço fi no, suave, muito leve, mas com uma perfeição que só um excepcional escultor consegue realizar. Ao contemplar este retrato só nos ocorre Mestre João da Silva ou Molarinho, e apetece permanecer contemplando. Os lados iguais representam os quatro quartéis do século que pretende comemorar. O movimento giratório horizontal assegura a permanente verticalidade da personagem retratada e a continuidade do Jornal na sua caminhada para o segundo centenário. No canto superior direito a inscrição “Nº1” evocando o início do Jornal. No plano central a legenda “Correio da Feira” em letras que sugerem o próprio cabeçalho do jornal. Na parte inferior, em dois planos, as legendas: “Fundador/José Soares de Sá”. De salientar o amontoado nos lados horizontais, que representam o conjunto de jornais editados durante o século que comemora. No canto inferior esquerdo a assinatura inconfundível da autora. No reverso, no plano central superior em duas linhas as legendas “CEM ANOS de um Jornal”. Correspondendo à efígie do anverso as legendas em dois planos “ / I ANNO / 11 D’ABRII. DE 1897”. Nos planos laterais, do lado esquerdo “1897” e do lado direito, “1997” No rodapé inferior a inscrição que é emblema de Vida do Jornal “Semanário Republicano / Independente / Regionalista”. A base da medalha constitui mais um elemento de verticalidade, tornando-a auto-sustentável.”

A Senhora Directora do Correio leu uma breve mensagem de encerramento do Centenário do Jornal, em seu nome e da Senhora Administradora.

O estojo com quatro medalhas e quatro metais: prata, estanho, bronze e cobre.

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Dona Brízida, directora do Jornal, lê o discurso de agradecimento.

“Agradecimento

Nesta hora feliz, em que pudemos comemorar o Centenário do Correio da Feira rodeadas de amigos e de amigas, temos de agradecer a quantos, pessoalmente, por escrito, por telefone e por fax, nos mostraram o seu carinho. É bom sentir, tantos anos passados, que o nosso Jornal criou e cimentou amizades que compensam das preocupações e trabalhos de luta diária pela publicação do Correio da Feira. E agradecemos, com todo o respeito, de forma

particular, à Câmara Municipal as iniciativas que tomou para honrar o Centenário deste Jornal; agradecimento que vai para o seu Presidente, toda a Vereação e Técnicos que dispensou para prepararem e executarem convenientemente esse programa. A todos o nosso obrigado, a nossa amizade e a nossa consideração.

Brízida Alvão Maria Luísa Braga”

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LITANIA DE SOMBRA

Há dois mil anos que somose não deixamos de ser humanos acorrentadose nem sabemos a quêE no entanto em tanto tempoquase ou nada aprendemospois se o tivéssemos feitocaminhávamos serenosNão somávamos desculpaspor tantos passos mal dadosnem entregávamos culpasaos nossos antepassadosE o que sabemos de crimesnão vinha em jornais pintadosnem sequer éramos réus

Manuela Correia*

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra,em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia.Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.

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a tentar ser ilibadosNão pintávamos o diabonem chamávamos os anjosNem éramos forasteirosnum mundo com dois mil anosNão se ergueriam bandeiraspara atrair patriotasporque a pátria se conjugasó por dentro de nós própriosNem éramos marionetesnuma ponte ou cataventose soubéssemos ser lúcidosmesmo quando algo nos menteDecerto não nos perdíamosquando nos queremos acharnem tantos vultos nós víamossó pra nos intimidarNão seríamos cobardessempre a fugir de uma trevanem seríamos estúpidospra começar uma guerraNem seríamos suicidasquando o precípicio existepois teríamos aprendidoque a luz morre e ressuscitaE saberíamos terda vida uma outra práticaE seria mais que matéria tudo o que nos arrebata Rumaríamos de péquando a tristeza se alongaE de vez dominaríamosa lava da grande insóniaTrespassava-nos um sonosem sombra de pesadelossem vestígios de fantasmassem rastos dos nossos errosA solidão que sentimospouco nos ocupariapois dentro dela erigíamosuma casa ou um naviocom formas brancas e lisas

sempre tangidas por pássarospra evadir a solidãoque outros dias nomeassemO céu que temos seria bem menos alto e mais tectoe o sol que ao longe nos fitacrescia a pino mais pertoA lua que nos fulguraera por certo mais íntimae a sombra que nos assombraera por certo mais nítidaO mar teria marés brancase não rugia por vezese a maresia seriasó um soluço em nossos dedosA terra seria mais firmeo mundo mais comedidoa vida mais rectílineae o nosso ser bem mais livreMas há dois mil anos somose não deixamos de serhumanos acorrentadose nem sabemos a quê 02.01.07

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RENOVAÇÃO

Edgar Carneiro*

* Nasceu em Chaves em 1913.Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra.Foi professor dos ensinos técnico-profissional e secundário. De 1967 a 1974, dirigiu a Escola D. Pedro V, a primeira a funcionar em Fiães, neste concelho.Reside há 38 anos em Espinho, foi distinguido pela Câmara local com a Medalha de Mérito.Tem 11 livros de poesia publicados, o último dos quais saiu a lume em 2003 e tem por título «Depois de Amanhã».

Além da voz a tubapara juntar a grei;além da mão libertaa lâmina eficazpara cortar o fruto;em vez da pedra nuaa mesa posta;em vez da água sóo lídimo conduto;além do dia a noitecom outro sol após.No mundo em mutaçãoDeus seja mesmo o pai;e a natureza amigaa mãe de todos nós.

Novembro 2006

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À SOMBRA DE MESTRE AQUILINO

À MESA COM O ESCRITOR CONVERSANDOSOBRE TRUTAS E LAMPREIAS

De há uns anos a esta parte, agora que tenho os meus vagares de meio reformado, vou-me dedicando ao ofício de aprendiz de feiticeiro das artes culinárias. A essa experiência de cozinhar para a família e para alguns amigos e próximos sempre presidiu a regra básica que aprendi com um notável cozinheiro bascoque teve, durante anos, um programa interessantíssimo na TVE espanhola, de seu nome Carlos Arguiñano. Dizia o ilustre mestre cuca que a cozinha só tem dois segredos: utilizar os alimentos de qualidade que a Madre Natureza nos dá em cada época do ano eolho no fogão, isto é, o que se vai cozinhar deve estar devidamente preparado e disposto como se fosse a linha de montagem duma fábrica – o que os france-ses chamam “mis-en-plat” – para que se possa dedicar atenção

integral ao cozinhado propriamente dito. E, na sua arte gastronómica, não cessava de aludir aos conselhos e lições aprendidos com a mãe, senhora de idade provecta.

Posso atestar que as regras são boas embora se entenda o simplismo motivado por razões didácticas. Iluminado por essas duas regrazinhas, acres- centei-lhes também a lembrança dos pitéus que minha mãe fazia para a família, belos cozinhados da tradição portuguesa, apetitosos e saudáveis, e que conformaram o meu gosto e paladar. E, como não, convoquei as inumeráveis referências gastronómicas que perpassam por toda a obra de Aquilino. Aqui estão, portanto, os quindins básicos que presidem à minha actividade de cozinheiro incipiente. Devo acrescentar – com perdão da imodéstia – que a família e os amigos parecem gostar dos comeres que vou forjicando ao sabor da memória e da imaginação, inspirado pelas três divindades tutelares: o dito cozinheiro basco, minha mãe e Aquilino. E não fazem nenhum favor, pois, sem contar com o tempo perdido (que também não serve para outra coisa) a comprar os precisos, ao sábado, quando o dia ainda não esclareceu e os melros ainda não desceram ao relvado do jardim da casa, já eu estou às voltas na cozinha a preparar o almoço que reúne toda a família(mulher, fi lhos, genros, nora e netos, vez por outra irmão e sobrinhas) que, com o pessoal doméstico, atira para dúzia e meia de comensais.

Aprouve-me escrever duas ou três croniquetas – juvante Deo, como diria o Mestre sobre este tema e de que esta é a primeira. Intencionalmente não fui reler os passos da obra de Aquilino que contêm referências gastronómicas, que são numerosíssimas e, por vezes, de grande pormenor. Lembrei-me, talvez com presunção, que deixando acudir as reminiscências “corrente calamo” poderia ganhar, com prejuízo da exactidão, alguma frescura. O pio leitor – voltando a usar uma expressão querida do Mestre – melhor julgará.

Tenho para mim, em resultado da leitura muitas vezes repetida da obra e do que conheço do transcurso da sua vida, que Aquilino Ribeiro não era um

Manuel de Lima Bastos*

*Advogado. Devoto Aquiliniano.

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glutão. Várias vezes refere ironicamente os chamados “bons garfos”. Mas também não tenho dúvidas de que apreciava a boa comida e um bom vinho, sobretudona companhia de pessoas que prezava. O seu paladar formou-se saboreando a excelente cozinha da Beira Alta e, mais tarde, nos vários exílios em Espanha e França, refi nou-se ao contacto com as notáveis artes gastronómicas destes dois países luminares em tal domínio.

Tenho na minha frente uma reprodução do belo quadro de Abel Manta que retrata o escritor suponho que a partir duma fotografi a de 1944 e no auge da suacapacidade criadora. Sobrevoa nos lábios uma ténue aragem de amargura e parece dizer-me: vamos lá ver em que é que isto vai dar!

Posto isto, comecemos com as trutas: dizia Aquilino que os dois rios mais trutíferos do universo eram o seu Paiva natal e o Coura no Alto Minho. Do primeiro pode dizer-se que nasceu ao lado e nele muitas vezes pescou. O segundo corre paredes meias com a Quinta do Amparo, em Romarigães, onde viveu largos períodos da parte fi nal da sua existência. Penso que hoje, com a inelutável degradação do ambiente, Aquilino teria de rectifi car o qualifi cativo e contentar-se com uns salmonídeos de aquacultura. Adiante.

Na notável obra dedicada a D. Frei Bertolameu dos Mártires, arcebispo de Braga e emissário de Portugal ao Concílio de Trento onde justamente angariou o cognome de “ursus hispanicus”, devido à iracúndia com que fustigou os luxos e as pompas dos principais dignitários da Igreja de Roma, papas e cardeais incluí- dos, e que o santo arcebispo considerava a causa maior da sua degradação, nomeadamente provocando o aparecimento da reforma protestante de Lutero e Calvino, conta o escritor que raro era o dia em que não chegassem ao paço oferendas de anhos, cabritos, lampreias, trutas e outras bizarrias de alto custo. O arcebispo, homem da mais extremada parcimónia no comer, aceitava mas, acto contínuo, mandava a governanta vender na praça os presentes. E a quem lhe reprovava a frugalidade e menosprezo por tão valiosas dádivas, indignos da gran-

deza do Arcebispo Primaz das Hespanhas, respondia: Engana-se se pensa que não gosto dessas coisas. Mas com o dinheiro que rendem, posso mandar vestir mais uns tantos nus, dotar donzelas para que se não percam do bom caminho e acudir a viúvas e órfãos necessitados. Qual acha que é o meu dever de pastor de almas? Um certo dia, ofertadas por suplicante humilde, chegaram ao paço umas dúzias de trutinhas, pequeninas como bogas, acabadas de pescar no rio Homem,afl uente do rio Cávado, que tem a água mais fria – e delgada, diria Aquilino – que conheço. Trazia-as o portador à mão, cada dúzia espetada pelos olhos nu- ma caruma de pinheiro. A governanta fez notar ao prelado que peixe assim, tão pequenino, não era vendável na praça. Estava presente Frei Mateus de Tortozendo, professo da mesma ordem do arcebispo e que o tinha acompanhado para Braga quando foi nomeado para a dignidade arquiepiscopal. Acumulava as qualidades de amigo e confessor pessoal do antístite e regia o Mosteiro de S. Frutuoso, nos arredores de Braga, onde D. Frei Bertolameu fazia os seus retiros. Perguntou este: Já almoçou, Frei Mateus? O dominicano, que rivalizava com o arcebispo na prática da frugalidade, escusou-se com a necessidade de regressar ao convento onde, a par dos seus deveres de dom Abade, fazia investigação histórica e escrevia a vida de S. Frutuoso, fundador do convento e bispo de Dume e, mais tarde, também

Mestre Aquilino Ribeiro.

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arcebispo de Braga. Como D.Frei Bertolameu insistisse e não era homem para aceitar uma recusa, o bom Frei Mateus manhosamente alegou que tinha estômago delicado e que só aceitaria o invite se o arcebispo lhe arranjasse trutas para o almoço, mais de que sabedor que era iguaria que não ia à mesa do paço. Lembrou-se então o arcebispo das trutinhas chegadas nessa manhã e respondeu-lhe: “ _ Pois vai comer trutas!” E mandou fritar as trutinhas em bom azeite que, se a história se não passasse em Braga, podia ser do Tedo, aquele em que bufarinhava o Malhadinhas. Estavam divinas de frescura e sabor, sobre o estaladiço, acompanhadas por uma saladazinha como viático. E o arcebispo e o frade assim se banquetearam com as trutas, por uma vez sem exemplo.

Das trutas grandes, maiores que palmeiras, fala Aquilino em vários modos de preparação, mas sempre cumprindo o requisito essencial da frescura: “a fugir para o rio” como costumava dizer. E relata, em livros vários, o prazer da pesca da truta, peixe voraz mas assustadiço, em páginas magistrais de que me vem àmemória o momento em que o peixe se deixa ver fi sgado no anzol, mostrando o dorso furta-cores “lantejoilado como as casacas dos marqueses do tempo do Senhor D. João V”. Diz o escritor que, das várias formas de cozinhar as trutas, a que prefere é a mais simples, talvez refl exo das suas estâncias em França: apenas cozidas “court bouillon”, regadas com um bom azeite e um golpe de vinagre. E conclui: “experimentem e dêem-me novas”.

Vamos às lampreias: devo confessar-me um apreciador impertérrito do ciclóstomo, mas admito que repugne a muita gente, sobretudo à mais nova, talvez devido ao formato serpentiforme. Acontece que certas iguarias só estamos preparados para as apreciar para lá do equador da vida. Dizem-me até que em certos países bárbaros (bárbaros neste aspecto) como a Inglaterra, as utilizam para estrumar os campos. Mal empregadas. Sucede que desde criança – até antes de entrar para a escola – me habituei a comer e apreciar lampreia. Tive um tio avô, o Sr. Joaquim da Cavacada como o conheciam, homem abastado que era proprietário duns

moinhos situados no rio Uíma, pequeno afl uente do Douro que corre entre Fiães – a minha aldeia natal – e Lobão, em Terras de Santa Maria da Feira. E não era raro, na época própria, o moleiro apanhar lampreias que fi cavam retidas nas cales dos moinhos ou nos talhadouros dos regos. E esse meu tio avô, sabendo o apreço que meu pai dava ao petisco, lá mandava a mulher do moleiro entregar uma, por vezes duas lampreias em nossa casa e que vinham num regador pintado a tinta verde. Daí me fi cou o gosto que mantenho. A partir do fi m de cada Verão, começo a sonhar com lampreias e a prelibar o seu paladar embora a temporada só principie em meados de Janeiro. Mas já as tenho comido antes do Natal, o que também não é raro se o ano correr de feição e as chuvas outoniças engrossarem o caudal dos rios. Das congeladas ou em conserva, arrenego.

Fala Aquilino dum famoso abade da Cabração, que suponho pertencer a terras de Coura, a propósito de lampreias. E refere que o bom abade aconselhava atemperá-las com uma boa colherada de manteiga de pato. Nunca experimentei porque nunca encontrei à venda tal ingrediente e não me parece que valha a pena o trabalho de a fazer. Julgo que se fará com gordura da ave pelo mesmo processo com que se faz o pingue de porco. Contudo, sendo o ciclóstomo naturalmente gordo (embora a gordura seja saudável por não ter colesterol, como li num opúsculo que um médico dietista entregava aos seus clientes enumerando os bichos que se podiam comer sem dano para o cadáver) não se me afi gura que o récipe acrescente glória ao delicado paladar da lampreia. Conta também Aquilino que este abade da Cabração usava tomar a sua bagaceira fi na – de alvarinho, assim o quero crer – “que não punha bafo na goela, condição sine qua non para o mata-bicho dum eclesiástico” e mais uma vez cito de cor, com perdão de alguma infi delidade de forma que não de substância. Morreu este abade da Cabração após um “ceote de lampreia” que estava do outro mundo. Por isso, não me parece temerário supor que o trespasse do bom abade se deveu ao facto de procurar mais lampreia nesse outro mundo.

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Eu tive um amigo, Manuel Pinto Ferreira Avelar, falecido vai para um quarto de século com sessenta e poucos anos, o qual, não cozinhando, era um príncipe de paladar exigente quanto a comeres e beberes e um conversador ameno e inesgotável. Um certo dia de fi ns de Dezembro, pelo cair da tarde, veio-nos a tentação de comer lampreia embora fosse mais que problemático encontrá-la. Nesse tempo ainda o Douro era pródigo em tal espécie que, com a construção da barragem de Lever-Crestuma, desapareceu para todo o sempre. Devo dizer que, de minha experiência, a lampreia do Douro era a mais saborosa de todas quantas se pescavam em Portugal. Talvez devido ao facto de ser um rio turbulento, de leito rochoso e de águas bem batidas, ao contrário de outros, como o Minho ou o Lima, mais espraiados e de fundos arenosos. E lá fomos pela estradazinha que acompanha o rio pela sua margem sul, batendo tascas e tavernas dos mais ignotos lugarejos até que, chegados a um deles,de seu nome Pé de Moura, entramos numa pequena taverna a dois passos da borda do rio, de aspecto humílimo e pouco limpo. Desenganadamente perguntámos à taverneira, senhora de setenta anos para cima, vestida de negro carregado e de cara amarrada, se já tinha aparecido lampreia. E abrimos a boca de espanto quando nos respondeu: “Tenho ali uma”. Mandou-nos entrar para o aposento contíguo, de reduzidas dimensões, praticamente escavado na rocha que fazia o declive para o rio e servia de cozinha. Como mobília, tinha apenas uma pequena mesa e dois ou três “mochos”, tudo em petição de miséria e narrando a inenarrável serventia. Junto à parede talhada em pedra viva, estava a lareira onde ardia uma fogueira de cavacos e, ao lado, um pequeno tanque também de pedra de arranque sobre o qual uma bica gorgolejava a incessante cantiguinha da água corrente. “Sentem-se”, disse-nos enquanto enchia na bica uma panela de ferro e a punha ao lume. Sentamo-nos junto ao fogo que já era noite e o Dezembro corria áspero. Quando a água já fervia na panela, tirou uma bela lampreia do tanquezinho, escaldou-a, amanhou-a às três pancadas vertendo o sangue do animal para dentro da panela, juntou-lhe uma boa litrada de vinho

verde da região chamado “paiveiro”, um fi o de azeite e duas mãos cheias de arroz. Tapou a panela e olhou-nos com a sua carranca de cariátide: “Vinte minutos”! Nunca um arroz de lampreia nos soube tão bem. Seria dos condimentos? Seguramente dum condimento que já não consigo encontrar: ter trinta anos. A lampreia, quando convenientemente limpa, apresenta uma pele dum belo tom cinzento prateado com manchas de cinzento mais escuro. Depois de a-manhada, a carne tem um delicado tom róseo nacarado. A forma tradicional de a preparar utiliza, além do mais, o vinho tinto que, juntamente com o sangue do animal, durante a cozedura lhe enegrece a pele e a carne. Aqui há uns meses lembrei-me de substituir o vinho tinto por vinho branco alvarinho a que juntei um dedal de vinagre balsâmico de casta lambrusco. Para completar a inovação, a meia cozedura juntei ao arroz caldoso um bom molho de grelos espigados extraídos das pontas mais tenras. A pele quase manteve a cor original e, ao abrir a posta, mostrou-se intacta a bela carnação rosa.E poderia repetir as palavras do escritor: “Experimentem e dêem-me novas”.

Gostaria de cozinhar esta receita para Mestre Aquilino que, como o próprio disse a propósito dum personagem duma das suas obras, deve estar farto de se encontrar sentado à mão direita de Deus Padre. Este ano já não que a época da lampreia terminou. Mas para o ano que vem, se por cá andar, quem sabe se não convocarei o ectoplasma do Mestre para degustar a minha lampreia e quem pode garantir que não responderá ao convite? Talvez, agradado do manjar, se lhe amacie a leve amargura dos lábios (que o olhar esse sempre foi benigno) e me diga: “Está muito boa, meu amigo”. E eu fi carei desvanecido, não pela lampreia, mas pelo qualifi cativo.

181Postais do Concelho da FeiraPostais Ilustrados

Ceomar Tranquilo*

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.

52 – Caldas de S. Jorge – BalneárioEdição da Pensão do ParqueCliché Abílio Gomes

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53-A – Reverso do mesmo postal S. Jorge, 13/7/37 – selo, série Tudo Pela Nação – $25.Circulado para Lisboa. “fazendo a nossa habitual cura de repouso, para mim muito curta infelizmente...”

53 – Caldas de S. Jorge – Vista Geral Edição da Pensão do ParqueCliché Abílio Gomes

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54-A – Reverso do mesmo postal.

S. Jorge, 12/8/939 – circulado para o Porto.Com selos de 10 c. verde e 15 c. rosa, da série Infante D. Henrique.“Ando bastante fatigado com o tratamento que termina na 5ª. Feira, e na tarde desse dia deixo de deitar de comer aos passarinhos e vou para aí descansar deste descanso”.

54 – Caldas de S. Jorge – Vista Parcial e BalneárioEdição da Pensão do ParqueCliché Abílio Gomes

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Lojas de venda de calçadodirectamente da fábrica ao público

Santa Maria da FeiraPinhelLordelo/GuimarãesPóvoa de VarzimViseu

Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso - Alemã, Lda.

Lugar do CavacoSanta Maria da Feira

Apartado 114524-909 FeiraPortugal

Tel. 00 351 256 377 000Fax. 00 351 256 377 008E-mail: [email protected]

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Clube FeirenseAssociação Cultural

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FundaçãoComendador Joaquim de Sá Couto

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