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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Neide de Almeida Lança Galvão Favaro O PROJETO POLÍTICO-ESTRATÉGICO DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UMA ANÁLISE DAS ORIGENS, DO DESENVOLVIMENTO, DOS DILEMAS E DA RELAÇÃO ENTRE A ESCOLA PÚBLICA E A LUTA SOCIALISTA Florianópolis 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

Neide de Almeida Lana Galvo Favaro

O PROJETO POLTICO-ESTRATGICO DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA: UMA ANLISE DAS ORIGENS, DO

DESENVOLVIMENTO, DOS DILEMAS E DA RELAO ENTRE A ESCOLA PBLICA E A LUTA SOCIALISTA

Florianpolis 2014

Neide de Almeida Lana Galvo Favaro

O PROJETO POLTICO-ESTRATGICO DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA: UMA ANLISE DAS ORIGENS, DO

DESENVOLVIMENTO, DOS DILEMAS E DA RELAO ENTRE A ESCOLA PBLICA E A LUTA SOCIALISTA

Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do Grau de Doutor em Educao. Orientador: Prof. Dr. Paulo Srgio Tumolo

Florianpolis 2014

A todos que acreditaram nesse trabalho e aos que persistem na luta sincera para a construo de outra histria.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Dr. Paulo Srgio Tumolo, mais do que um Mestre, um grande amigo. sua dedicao, seriedade e respeito constantes, qualidades que s pertencem a quem sacrificou sua existncia em uma militncia para a construo de outra histria. Ao Lau, meus pais e minha famlia, que me apoiaram incondicionalmente, suportando minhas ausncias e minhas angstias. Sem vocs eu no teria conseguido! minha amiga do corao, Alessandra Wihby, que compartilhou em inmeros cafs as metamorfoses de minha trajetria pessoal e intelectual, tornando as dificuldades mais leves e agradveis. Obrigada por tudo! s amigas Michelle, Marlene, Margareth, Ftima e Ednia, pelo companheirismo e por dividirem comigo momentos to importantes. A todos que viabilizam a existncia dos espaos que foram indispensveis para a minha formao poltica: o Ncleo de Educao Pupular 13 de Maio, o Instituto Lukcs, o Programa de Estudos do Trabalho e Educao (ESTE) de Maring, bem como os Espaos Marx, de Maring e Campo Mouro. Aos funcionrios e professores do PPGE UFSC, pelo acompanhamento e pela formao dada nesse processo; aos colegas do Departamento de Educao da FAFIPA, que tornaram possvel a dedicao a essa pesquisa; a todos os meus alunos, com que muito aprendi; e aos colegas do doutorado, pela parceria. Ao CNPQ, pelo apoio financeiro a essa pesquisa.

RESUMO

O objetivo desta tese o de apreender e analisar a estratgia poltica adotada pela pedagogia histrico-crtica, a fim de verificar como ela articula a defesa da escola pblica com o projeto socialista. Por tratar-se de uma proposta pedaggica que se coloca no mbito marxista e que h trinta anos hegemoniza o campo educacional progressista brasileiro, elegeu-se esse objeto de estudo, procurando problematizar as formulaes a presentes quanto relao entre educao e revoluo, mediante uma abordagem de carter bibliogrfico, pautada nos postulados do materialismo histrico. Diante das profundas alteraes na estrutura econmico-social e nas relaes poltico-ideolgicas de classe que marcaram esse perodo, foi necessrio dividir a anlise em dois momentos, nos quais se articula a produo terica e poltica dos autores da pedagogia histrico-crtica com as complexas condies histricas nas quais eles se inseriam. Os dois captulos iniciais analisam criticamente os fundamentos tericos, as interlocues educacionais e os eixos norteadores do projeto de ao poltica da pedagogia histrico-crtica em sua constituio, abrangendo as dcadas de 1970 e 1980, marcadas pelo contexto de reestruturao do capital e por um ascenso nas lutas da classe trabalhadora. Os dois ltimos captulos discutem a produo terica e os desdobramentos estratgicos dessa proposta pedaggica, desde os anos de 1990 at a atualidade, relacionando-os com as transformaes produtivas e com o refluxo do movimento de contestao operria, a fim de verificar suas consequncias para a luta de classes. Constatou-se uma diversidade de posicionamentos polticos e uma leitura problemtica da relao entre a educao do trabalhador e as mudanas ocorridas nas relaes de produo capitalistas, que geraram algumas incoerncias internas. Como seu projeto estratgico no claramente explicitado foi necessrio realizar um esforo de sntese para captar a unidade que articula o corpo terico e poltico dessa produo. O argumento central desta tese o de que o agrupamento em torno da pedagogia histrico-crtica realiza o movimento inverso ao da tradio dos clssicos do marxismo, partindo de uma proposta educacional em defesa da escola pblica, universal e gratuita, para ento analisar as condies materiais postas na realidade social em cada conjuntura e determinar sua proposio estratgica, justificando as funes que a educao pode desempenhar. O objetivo socialista, mas a direo do projeto estratgico-ttico prioriza a democracia e a atuao nos espaos institucionais, propondo a educao como motor do desenvolvimento, a publicizao do Estado, a republicanizao da educao,

expressando a atual crise estratgica, em que grande parte da esquerda se move numa direo que acaba por contribuir para o apassivamento da classe trabalhadora, beneficiando o capital. Palavras-chave: Pedagogia histrico-crtica. Estratgia socialista. Escola pblica e luta de classes.

ABSTRACT

The objective of this thesis is to apprehend and analyze the politics strategy applied by the historic-critical pedagogy, in order to verify how it articulates the public school defense with the socialist project. For being a pedagogical proposal based on Marxism that provides hegemony into the progressive Brazilian educational field for more than thirty years, it was elected this object of study, looking for discuss the present formulations as the relation between education and revolution, through a bibliographic character approach, guided by the tenets from the historical materialism. Given to the deep modifications in the social-economic structure and in the relationship of the political-ideological class that marked this period, it was necessary to divide the analysis in two moments, on which articulates the theoretical and politics production from authors of the historic-critical pedagogy with the complex historical conditions in which they were inserted. Both initial chapters critically analyze the theoretical fundamentals, the educational interlocutions and the guiding principles from the project of political action of the historic-critical pedagogy in its constitution, embracing decades of 1970 and 1980, marked by the context of the capital restructuring and by a raise in the struggles of the working class. The last two chapters discuss about the theoretical production and the strategical developments from this pedagogic proposal, since the 90s until nowadays, relating them to the productive changes and with the reflux of the working protest movement, in order to verify its consequences for the class struggles. It was observed a diversity of political positioning and a problematic reading of the relationship between the worker education and changes suffered in relations of capitalist production, which generated some internal inconsistencies. As its strategic project is not clearly shown, it was necessary to make a synthesis effort to collect the unity that articulates the political and theoretical body from this production. The central argument of this thesis is that the grouping around the historic-critical pedagogy performs the opposite to the movement of the tradition of the classics of Marxism, coming from an educational proposal in defense of the public school, free and universal, to analyze then the material conditions put in the social reality in each conjuncture and determine its strategical proposition, justifying the functions education can develop. It is a socialist aim, but the direction of the project tactical-strategical prioritizes democracy and action in the institutional spaces, proposing

education as the development engine, State publicize, make the education republic, expressing the current strategic crisis which big part from the left moves in a way they contribute making the working class passive, benefiting capital. Keywords: Historic-critical pedagogy. Socialist Strategy. Public School. Class struggles.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABE Associao Brasileira de Educao ABI Associao Brasileira de Imprensa ABONG Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais AI Ato Institucional AIE Aparelhos Ideolgicos de Estado AIT Associao Internacional dos Trabalhadores Anampos Articulao Nacional de Movimentos Populares e Sindicais Ande Associao Nacional de Educao Anped Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Educao AP Ao Popular APML Ao Popular Marxista-Leninista ARE Aparelhos Repressivos de Estado Arena Aliana Renovadora Nacional BM Banco Mundial BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CBE Conferncia Brasileira de Educao CDP Campo Democrtico Popular CEBs Comunidades Eclesiais de Base Cebrap Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento Cedes Centro de Estudos Educao & Sociedade CEE Conselho Estadual de Educao CEG Collge dEnseignement Gnral CET Collge dEnseignement Technique CGT Comando Geral dos Trabalhadores CIESP Centro das Indstrias do Estado de So Paulo CIOSL Confederao Internacional das Organizaes Sindicais Livres Cives Associao Brasileira de Empresrios para a Cidadania CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNE Conselho Nacional de Educao CNI Confederao Nacional da Indstria Conclat Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras ConCUT Congresso Nacional da Central nica dos Trabalhadores Coned Congresso Nacional de Educao CUT Central nica dos Trabalhadores Enafor Encontro Nacional de Formao Fasfil Fundaes e Associaes Sem Fins Lucrativos FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador Febraban Federao Brasileira dos Bancos

FHC Fernando Henrique Cardoso FIESP Federao das Indstrias do Estado de So Paulo Firjan Federao das Indstrias do Estado do Rio de Janeiro FLN Frente de Libertao Nacional FMI Fundo Monetrio Internacional FS Fora Sindical Fundeb Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica Fundef Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorizao do Magistrio GIFE Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas GM General Motors Company GT Grupo de Trabalho Histedbr Grupo de Estudos e Pesquisas Histria, Sociedade e Educao no Brasil IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros JEC Juventude Estudantil Catlica JUC Juventude Universitria Catlica LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MDB Movimento Democrtico Brasileiro MEC Ministrio da Educao MLM Movimento de Luta pela Moradia MMTR/RS Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul MNR Movimento Nacionalista Revolucionrio Mobral Movimento Brasileiro de Alfabetizao MR-8 Movimento Revolucionrio de 8 de Outubro MRT Movimento Revolucionrio Tiradentes MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra OAB Ordem dos Advogados do Brasil ONG Organizao No Governamental ONU Organizao das Naes Unidas ORM-Polop Organizao Revolucionria Marxista-Poltica Operria PC Partido Comunista PCB Partido Comunista Brasileiro PCdoB Partido Comunista do Brasil PCF Partido Comunista Francs PCI Partido Comunista Italiano PCUS Partido Comunista da Unio Sovitica

PDE Plano de Desenvolvimento da Educao PDP Programa Democrtico Popular PDS Partido Democrtico Social PDT Partido Democrtico Trabalhista PFL Partido da Frente Liberal PHC Pedagogia Histrico-Crtica PIB Produto Interno Bruto PL Partido Liberal PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro PNBE Pensamento Nacional de Bases Empresariais PNE Plano Nacional de Educao PP Partido Popular PP Rede Primria Profissional PS Partido Socialista PSB Partido Socialista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSI Partido Socialista Italiano PT Partido dos Trabalhadores PTB Partido Trabalhista Brasileiro PUC Pontifcia Universidade Catlica RDA Repblica Democrtica Alem SBHE Sociedade Brasileira de Histria da Educao SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia Sesi Servio Social da Indstria SFIP Seo Francesa da Internacional Operria Sine Sistema Nacional de Emprego SS Rede Secundria Superior UFPB Universidade Federal da Paraba UFSCar Universidade Federal de So Carlos UNE Unio Nacional dos Estudantes Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura Unicamp Universidade Estadual de Campinas URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas USAID United States Agency for International Development USP Universidade de So Paulo

SUMRIO

1 INTRODUO ................................................................................ 19 2 ELABORAO E FUNDAMENTOS DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA NO CONTEXTO DA REESTRUTURAO DO CAPITAL .............................................. 31 2.1 A FORMULAO TERICA DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA ............................................................................................... 40 2.1.1 A categoria contradio como norteadora do debate .......... 42 2.1.2 As diferentes teorias educacionais e o problema da marginalidade ...................................................................................... 47 2.1.3 A defesa da democracia e da escola pblica ............................. 54 2.1.4 A relao entre educao e poltica ........................................... 66 2.1.5. Trabalho, educao e a contradio escolar ........................... 79 2.2 A CONJUNTURA BRASILEIRA NAS DCADAS DE 1970 E 1980 ....................................................................................................... 95 2.2.1 O legado poltico-cultural da ditadura e a apropriao do referencial marxista ............................................................................ 99 2.2.2 A reorganizao produtiva do capital: consequncias scio-polticas............................................................................................... 113 2.3 OS INTERLOCUTORES E AS MATRIZES TERICAS DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA .............................................. 145 2.3.1 Os crtico-reprodutivistas e a anlise da escola ................. 146 2.3.1.1 Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron ................................. 157 2.3.1.2 Louis Althusser........................................................................ 165 2.3.1.3 Roger Establet e Christian Baudelot........................................ 178 2.3.2 Os autores matriciais e suas influncias na pedagogia histrico-crtica .................................................................................. 183 2.3.2.1 Georges Snyders e a Pedagogia Progressista .......................... 192 2.3.2.2 Bogdan Suchodolski ................................................................ 226 3 ESTRATGIA POLTICA E FORMULAO INICIAL DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA: CRTICAS E AUTO-CRTICAS ......................................................................................... 247 3.1 ANLISE CRTICA DA PRODUO TERICA DAS DCADAS DE 1970 E 1980 .............................................................. 248 3.1.1 O abstracionismo lgico e o carter a-histrico na apropriao terica ................................................................................................. 249 3.1.2 O ativismo poltico e o reformismo moral dos educadores 270 3.2 OS EIXOS FUNDAMENTAIS DA LUTA DE CLASSES NA EDUCAO ESCOLAR.................................................................... 304 3.2.1 A passagem do senso comum conscincia filosfica ........... 305

3.2.2 A importncia do domnio do saber elaborado ................. 313 3.2.3 O saber elaborado e a socializao dos meios de produo ............................................................................................................ 329 4 O APROFUNDAMENTO TERICO E OS DESDOBRAMENTOS ESTRATGICOS ATUAIS DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA ......................................... 359 4.1 O REFLUXO DO MOVIMENTO OPERRIO E DA ESQUERDA DA DCADA DE 1990 AT A ATUALIDADE .............................. 359 4.2 A CONSTRUO TERICA COLETIVA E A APLICAO PRTICA DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA ..................... 394 4.2.1. A pedagogia histrico-crtica e a contraposio com as demais teorias pedaggicas ........................................................................... 407 4.2.1.1. O debate historiogrfico e a pedagogia histrico-crtica frente s concepes pedaggicas hegemnicas ................................................ 409 4.2.1.2. As teorias e os autores crtico-reprodutivistas na atualidade ............................................................................................................ 424 4.2.1.3. As concepes contra-hegemnicas ....................................... 431 4.2.2. As propostas da pedagogia histrico-crtica para a educao escolar................................................................................................. 433 4.3 A LEITURA DA REALIDADE CONCRETA PELA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA E SEUS DESDOBRAMENTOS POLTICO-ESTRATGICOS ............................................................................... 440 5 A FORMULAO ESTRATGICA DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA NA ATUALIDADE: UMA ANLISE CRTICA ........................................................................................... 481 5.1 A PRIORIDADE DA EDUCAO ESCOLAR: A DIALTICA E A SUPERAO DAS DEMAIS TEORIAS ...................................... 483 5.2 OS EIXOS FUNDAMENTAIS DA LUTA SOCIALISTA POR MEIO DA ESCOLA PBLICA E SEUS DESDOBRAMENTOS POLTICOS ........................................................................................ 500 5.2.1 Conquista da hegemonia: ocupao de espaos e a democracia ............................................................................................................ 501 5.2.2 A revoluo microeletrnica e a socializao dos meios de produo ............................................................................................ 539 5.2.3 O desenvolvimento nacional e o combate ao neoliberalismo 571 6 CONSIDERAES FINAIS ........................................................ 587 REFERNCIAS ................................................................................ 603

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1 INTRODUO

Este trabalho se insere no debate mais amplo sobre a educao e suas contribuies para o processo revolucionrio da classe trabalhadora, tendo em vista a superao da sociabilidade regida pelo capital. Considerando a educao no sentido mais amplo, de formao da humanidade, essa discusso indispensvel para orientar a luta revolucionria diante das condies histricas objetivas que se apresentam hoje. No capitalismo, as relaes humanas so afetadas pelas inevitveis crises cclicas de superproduo de capital, geradas pela queda tendencial das taxas de lucro, que exigem uma retomada de seu crescimento por meio da intensificao e/ou do aumento da produtividade, explorando a fora de trabalho. A luta antagnica da classe social burguesa e da classe trabalhadora acirrada e abre novas perspectivas de organizao e conscientizao da classe trabalhadora rumo superao do capital. Nesse sentido, imprescindvel tratar da questo educacional e tambm, mais especificamente, da escola pblica, pois nas atuais relaes sociais este considerado o lcus privilegiado de transmisso sistematizada de conhecimento.

Para analis-la, preciso inicialmente situ-la no mbito da totalidade das relaes humanas. A escola pblica pertence ao aparato institucional do Estado capitalista e destina-se educao humana. Ela constitui uma particularidade inserida na totalidade social, ou seja, um dos muitos complexos que realizam a mediao das relaes sociais e uma das formas de educao existentes nesta sociabilidade. Como produto histrico de uma determinada forma social, a capitalista, ela foi criada e alterada para satisfazer s necessidades impostas na dinmica dessas relaes sociais.

Sua organizao, seus contedos, sua gesto, seu pblico alvo, enfim, suas caractersticas mais profundas, s podem ser explicitadas luz dessa forma social. Ela se relaciona com todos os demais complexos, como o jurdico, poltico, moral, etc., que tambm afetam as relaes humanas, interagindo entre si numa dinmica contraditria. Tais relaes no so neutras, so produzidas e modificadas na atividade humana de produo e reproduo da vida, no processo de trabalho, que em ltima instncia o que as condiciona. Entender a educao pressupe, portanto, compreender radicalmente essas relaes de produo, as relaes econmicas vigentes, a base material na qual ela se constitui e com a qual interage. S assim podemos vislumbrar com maior profundidade e clareza suas funes e possibilidades diante do projeto de transformao radical da sociedade.

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Ressaltamos de antemo que entendemos que a educao humana na atual sociedade ocorre em vrios mbitos, no estando de forma alguma restrita escola. Ela se faz presente em inmeros espaos, dentre eles os meios de comunicao, a igreja, famlia, sindicatos, fbricas, partidos polticos, etc., e ocorre de distintas maneiras. A particularidade da escola que ela tem objetivos previamente definidos no sentido de socializao do conhecimento sistematizado, tornando-se por isso alvo de disputa de diferentes projetos de formao que correspondem s distintas expectativas das classes sociais. Tal caracterstica, todavia, no diminui, em nosso entendimento, a importncia dos demais espaos formativos.

Para a luta revolucionria pela superao do capitalismo preciso, portanto, levar em conta a participao da educao que se d no mbito mais amplo, para alm da escola pblica, mas tambm nela, pois todos se constituem em espaos para a formao dos trabalhadores. Vrias questes se colocam no debate atual: qual o local primordial para essa formao hoje, como os conhecimentos cientficos elaborados e transmitidos nas instituies formais de educao contribuem para esse objetivo, se eles desenvolvem uma conscincia revolucionria, bem como as funes que a educao, seja escolar ou no, pode desempenhar num projeto de transformao radical da sociedade.

possvel constatar no mbito da educao formal, diante da predominncia da viso de mundo liberal, que poucos profissionais persistem na luta pela superao das relaes existentes, procurando alterar radicalmente essa forma de reproduo da vida, construir uma nova relao social, fundada no socialismo, que possa conduzir a humanidade a uma forma social que satisfaa as reais necessidades do gnero humano, o comunismo. H que se ressaltar ainda que, dentre estes poucos, muitos no possuem uma compreenso aprofundada da lgica de reproduo do capital, de categorias como valor, mais-valia, fetichismo, crise do capital. Procuram trabalhar com uma formao intelectual de qualidade, articulada realidade material existente, problematizando-a e defendendo a construo de uma nova sociedade, lutando no espao contraditrio que a escola, mas por limitaes resultantes da materialidade concreta das relaes atuais e de inmeros outros fatores a ela relacionados, esto impotentes teoricamente e cada vez mais isolados e premidos pelas imposies e presses concretas que determinam seu trabalho e sua existncia.

Mesmo assim, continuam adotando tal posicionamento, por acreditar na possibilidade de revolucionar a histria, mesmo quando cientes de que a educao no determina a transformao social. De

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alguma forma esperam contribuir para uma possvel alterao futura do status quo, mas sem clareza do que envolve o processo de instaurao do socialismo e sem saber at que ponto, por meio de sua atuao pedaggica, possvel contribuir significativamente para isso. Ou seja, por vezes precrio o entendimento da articulao entre educao e projeto socialista.

Pensar criticamente nas contribuies da atuao educacional e escolar, concebendo os possveis limites existentes e sua articulao com a luta revolucionria, constitui-se em recurso terico indispensvel para auxiliar na luta estratgica da classe trabalhadora. Diante dessas questes fomos mobilizados nessa pesquisa a contribuir nesse debate. Sua abordagem em um nico trabalho seria extremamente problemtico, por envolver complexas e abrangentes mediaes, realidades especficas, bem como inmeros posicionamentos que buscam explicar a relao entre educao, escola e construo do socialismo.

Uma opo poltica pressupe uma concepo de educao e de suas funes na revoluo, que por sua vez implica no entendimento da prpria realidade e do processo revolucionrio, de suas possibilidades histricas e das necessrias aes da classe trabalhadora. A nosso ver, esse o ponto de partida indispensvel para qualquer posicionamento que pretenda defender uma proposta de formao humana revolucionria, mesmo que estas concepes no estejam explcitas. Afinal, em decorrncia delas que construdo um determinado posicionamento poltico, sendo que a ausncia de clareza estratgica e ttica resulta na impossibilidade de delinear propostas de ao coerentes e eficazes. As questes so amplas e complexas, por isso qualquer tentativa de sintetiz-las ou analis-las por completo traria o risco de simplificar e empobrecer a discusso, ameaando sua compreenso. Em decorrncia disso, fez-se necessrio um recorte na pesquisa.

A necessidade de delimitao exigiu privilegiar uma das possibilidades de explorao do tema para conduzir uma anlise que trouxesse alguma contribuio no entendimento desse processo. Pesou nessa escolha nossa vivncia pessoal, como formadora de professores, que carrega em si inmeros dilemas e, inevitavelmente, impasses de ordem terica e prtica. Dentre eles, destaca-se a vontade que havia de instrumentalizar os futuros professores com ferramentas terico-pedaggicas que de fato contribussem para orientar sua atuao no sentido de abrir possibilidades de alteraes radicais nas relaes sociais. O aprofundamento dos estudos referentes ao mecanismo de funcionamento interno das relaes sociais regidas pelo capital, aliada nossa experincia profissional, todavia, intensificou nossa compreenso

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quanto complexidade de tal tarefa, levando-nos a (re)examinar nossas concepes anteriores.

Os limites de uma atuao revolucionria no interior do sistema educacional organizado e controlado pelo capital ficaram ainda mais evidentes e lanaram novas questes para nossa atuao docente. Qual o risco de confiarmos excessivamente em nossas possibilidades, como isso afeta a formao dos professores e, mais ainda, que consequncias acarretam para nosso objetivo final, de auxiliar a classe trabalhadora na sua tarefa revolucionria? O recorte se delineava com maior preciso e o caminho traado evidenciava a necessidade de uma abordagem poltica da questo educacional.

Consideramos a importncia fundamental de identificar a concepo estratgica que orienta as propostas pedaggicas progressistas adotadas nas escolas brasileiras e nos cursos de formao docente, priorizando-a em detrimento de uma anlise do processo revolucionrio em si mesmo. Aps a leitura de distintas abordagens da questo e com base em nossa experincia profissional, identificamos as propostas educacionais da esquerda que influenciavam nossa atuao. Optamos assim por restringir essa pesquisa na produo da esquerda educacional brasileira, para identificar seus posicionamentos diante de tal temtica.

Nos limites desse trabalho e para aprofundar a discusso, delimitamos nossa anlise e definimos como objeto especfico deste estudo a Pedagogia Histrico-Crtica (PHC1), mais especificamente, a identificao de seu projeto poltico-estratgico. Isso porque ela se posiciona explicitamente no campo do materialismo histrico, alm de ser adotada coletiva e individualmente por professores e at mesmo por governos que se intitulam do campo da esquerda. Sua presena na listagem dos contedos de concursos pblicos docentes e em currculos universitrios das licenciaturas um indcio significativo de sua importncia e ampla influncia no Brasil.

O estudo relevante para nosso tema porque ela uma proposta que efetivamente se reivindica como crtica, fundamentada no marxismo, e porque se dispe a discutir a educao na perspectiva dos interesses da classe trabalhadora. Alm disso, ela pode ser considerada uma das propostas de esquerda que mais tem resistido nas escolas brasileiras e nas pesquisas tericas, embora com momentos de avanos e 1 Como esta se constitui em nosso objeto especfico de estudo e para facilitar a exposio, optamos por utilizar uma abreviao. A Pedagogia Histrico-Crtica passa a constar nessa tese com a sigla PHC.

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retrocessos. Podemos afirmar, sem incorrer em equvocos, que a PHC a referncia atual para as instituies brasileiras de formao de professores e de pesquisa educacional que se posicionam contra os ditames da sociedade burguesa e que procuram colocar o trabalho escolar a servio da superao da sociedade capitalista. No ignoramos com isso o fato de que a maioria das instituies, inevitavelmente, adota uma proposta alinhada aos interesses burgueses, seguindo uma orientao liberal para a educao ofertada.

Como nosso interesse no sentido de contribuir no debate revolucionrio, o estudo se concentra, portanto, na PHC. Seu esforo terico tem sido no sentido de apontar os limites das prticas educativas burguesas e de indicar novas possibilidades de atuao prtica nas escolas, para fazer frente a essas iniciativas e para auxiliar na transformao social. Ela congrega uma srie de educadores e intelectuais comprometidos com a construo do socialismo, sob a liderana do professor Dermeval Saviani (1944-), cujas produes tm orientado sua elaborao.

A importncia e a influncia dessa proposta pedaggica podem ser constatadas tambm pelas sucessivas edies das suas obras basilares. A primeira Escola e democracia, que em 2012 atingiu a 42 edio, pela Editora Autores Associados, e j foi traduzida para o espanhol e difundida na Amrica Latina. Alm disso, em 2008 foi lanada uma edio comemorativa no Brasil, incluindo-a na coleo Educao Contempornea. A outra obra Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes, que em 2011 atingiu a 11 edio, tambm pela Editora Autores Associados. Esta ltima, desde a 8 edio, em 2003, foi revista e ampliada e, por ultrapassar o limite do formato pequeno da coleo Polmicas de nosso tempo, passou a ser publicada na coleo Educao Contempornea.

Passados mais de 30 anos de difuso dessas ideias pedaggicas, continuam tambm as tentativas de sua adoo para elaborar e implantar polticas educativas em alguns estados brasileiros, o que vem ocorrendo em diferentes momentos histricos e em vrios estados, como o caso de So Paulo, Minas Gerais, Paran e Mato Grosso. Sintomtica tambm a ocorrncia de dois eventos de mbito nacional dedicados a estudos sobre a PHC: o primeiro foi o Simpsio de Marlia, realizado em 1994, e o segundo foi o Seminrio pedagogia histrico-crtica: 30 anos, realizado recentemente, em 2009, ambos tendo resultado em livros.

Diante do que foi acima exposto, parece-nos pertinente considerar nesse estudo tal proposta pedaggica, motivo pelo qual

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tomamos como ponto de partida de nossa anlise seu posicionamento quanto participao da educao escolar na construo do socialismo. Procuramos identificar na sua elaborao terica o papel ttico e/ou estratgico que a escola pode desempenhar no processo revolucionrio. Ressaltamos que tal problema surgiu da necessidade de esclarecer essa temtica com maior preciso diante dos problemas reais e dos desafios postos na materialidade da realidade brasileira atual para a classe trabalhadora.

A educao escolar apresenta hoje grandes impasses se considerarmos as condies precrias de formao de pessoal, de investimentos em educao, bem como de cooptao de intelectuais e instituies por meio da lgica competitiva e meritocrtica. Os desafios objetivos que esto postos so imensos e extremamente complexos, mas sua compreenso fundamental para indicar caminhos e possibilidades de ao. Na contramo da lgica reinante, no sentido de pensar para alm do capital, acreditamos na importncia de rever as estratgias e tticas propostas e adotadas na atualidade.

No caso da educao, consideramos essencial contribuir nesse debate por meio da anlise das funes que a PHC atribui educao escolar para o alcance dos objetivos socialistas. Por ser a principal referncia crtica para os educadores brasileiros na atualidade, seu posicionamento em torno dessa temtica deve ser explicitado e problematizado. O esforo de estudar, debater e confrontar essa produo terica com a realidade prtica, concreta, que em ltima instncia o critrio de verdade das representaes tericas produzidas, justificvel. Nesse sentido, alguns procedimentos de pesquisa foram adotados a fim de garantir a necessria profundidade terica e a correta apreenso de suas formulaes.

Selecionamos os textos e os autores que foram mais significativos e expressivos para entendermos sua constituio e aprofundamento, embora no tenha sido possvel explorar a produo de todos os autores envolvidos2. Nesses trinta anos de uma produo terica intensa, lemos

2 Esclarecemos que no houve a inteno de privilegiar um autor em detrimento dos outros, mas optou-se por discutir as obras mais difundidas desse agrupamento. Tambm no foi possvel recorrer pessoalmente aos autores utilizados. Tal procedimento, alm de invivel, foi desnecessrio, pois o debate que travamos aqui foi com a obra terica dos mesmos, que de domnio pblico e por isso mesmo sujeita a revises, aprofundamentos e crticas. Esse trabalho vai a pblico tambm com essa perspectiva, de injetar novo nimo nas discusses, contribuindo para problematizar e aprofundar alguns aspectos desse

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e analisamos aproximadamente noventa textos de diversos autores que contriburam na formulao da PHC, com destaque para Saviani. Dentre esses textos foram examinados livros, artigos, entrevistas, depoimentos e relatrios, sendo que a maioria deles foi citada no interior desta tese.

Com o intuito de ser fiel s proposies dos autores selecionados e de realizar uma anlise crtica que leve em conta seus limites histricos, procuramos captar os diferentes momentos de elaborao terica da PHC, demarcando o corpo terico que a constitui e a respectiva conjuntura social e econmica na qual foi produzida, procurando assim detectar as estratgias polticas que implcita ou explicitamente a orientavam e hoje a influenciam.

Como no h neutralidade em nossa discusso, explicitamos nosso posicionamento poltico e ideolgico, resolutamente a favor da possibilidade e da necessidade de superar essa forma societria. Parece-nos cada vez mais urgente e indispensvel pensar alternativas para superar a ordem do capital para que assim seja possvel colocar a vida humana em primeiro plano, em detrimento dos interesses de acumulao do capital. Na literatura da esquerda, em geral, possvel constatar o arrefecimento do debate sobre a revoluo, sendo que essa categoria de anlise praticamente inexiste nas produes mais recentes. Fala-se em socialismo, em luta da classe trabalhadora, mas pouco se discute sobre a necessidade da revoluo.

Isso sinaliza vrias possibilidades em torno dessa temtica: uma delas a perda dessa perspectiva no horizonte das lutas atuais, em virtude das derrotas histricas obtidas pelos trabalhadores no decorrer do ltimo sculo, tendo resultado na derrocada dos regimes de esquerda implantados; a outra a adoo da concepo de que a mudana se dar no interior da prpria sociedade capitalista, gradativamente, dispensando a necessidade da revoluo, sendo importantes as resistncias e as organizaes dos trabalhadores para viabilizar isso.

O fato que, por ser uma tarefa urgente e de vulto, est posta a necessidade de debater as estratgias polticas produzidas pela classe e seus representantes em distintos mbitos da vida humana, pois disso dependem as possibilidades histricas que podem ser criadas para superar a ordem do capital. H vrios elementos a considerar no mbito de um debate desse tipo. O primeiro deles a necessidade de ressaltar tema, embora com a conscincia das limitaes tericas e objetivas que impedem a apreenso da totalidade das questes envolvidas nesse objeto de estudo. A expectativa que o debate avance.

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que as condies econmicas e polticas atuais no so resultantes da ao e da vontade de sujeitos individuais, mas sim de relaes sociais historicamente estabelecidas para a produo da vida humana. No possvel, portanto, realizar qualquer discusso no plano individual ou biogrfico, pautada em julgamentos morais, que desconsidere as mediaes concretas da sociedade capitalista, a dinmica real das lutas de classe e seus efeitos na constituio de um determinado projeto poltico, produzido num dado momento histrico. Vale lembrar que os seres humanos no fazem sua histria como querem.

Outro fator a considerar so as distintas posies estratgicas existentes e que so acionadas pela classe trabalhadora em seu movimento histrico, no interior de suas instituies e representaes, nas vrias correntes polticas e ideolgicas e nos diversos mbitos da sociabilidade humana. As opes polticas so sempre produto da dinmica social, da luta de classes e resultam de anlises concretas de situaes concretas, havendo vrias possibilidades em aberto. O debate , portanto, no apenas possvel, mas necessrio e desejvel, ele faz parte da histria do movimento operrio mundial e da tradio dos clssicos do marxismo. Ele nos municia para repensar nossas posies e refinar nossas estratgias de luta, a fim de alcanarmos o objetivo que nos comum, ou seja, a construo de uma sociabilidade que promova a emancipao humana. Eliminar o debate em nome da unio das foras de esquerda gera o risco de paralisar a classe e de mant-la em limites estreitos de compreenso da realidade e de possibilidades de ao poltica, colocando-a, no limite, em condies de impotncia perante o capital.

Por fim, acreditamos que o estabelecimento de projetos de ao poltica da classe trabalhadora uma necessidade histrica que depende da anlise da materialidade das relaes sociais estabelecidas em cada conjuntura. Isso significa que o projeto estratgico-ttico sempre relativo a uma determinada realidade histrica e s em seu interior ele adquire sentido e tem validade poltica. Eterniz-lo e transform-lo em um dogma, alm de ser uma atitude contrria aos postulados marxianos, interdita pela raiz qualquer possibilidade de avano das lutas proletrias.

Como uma discusso que envolve questes histricas, preciso cautela para discernir as contribuies tericas de Marx de seus posicionamentos polticos, das estratgias e tticas que traou. Estas consistem em respostas histricas a problemas e conjunturas materiais especficas, sendo, portanto, datadas. Por isso, a transposio das propostas tticas e estratgicas apresentadas nos textos polticos produzidos para responder a determinadas questes de sua poca se

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torna inadequada. As propostas polticas s tem sentido no contexto histrico e nas condies materiais especficas em que foram produzidas, elas respondem a um determinado nvel de desenvolvimento das relaes sociais, o que envolve as lutas de classes.

A utilizao das formulaes polticas de Marx, portanto, no assegura por si o sucesso de nossas pretenses. Por outro lado, sua teoria revolucionria, a apreenso da relao do capital e o materialismo histrico so instrumentos indispensveis para atingirmos esse objetivo. Isso porque a histria se faz no caminhar, o socialismo no algo pr-determinado, que est fadado a se concretizar pelo desenvolvimento histrico, muito mais uma possibilidade, posta diante dos homens graas ao desenvolvimento das foras produtivas. A humanidade tem hoje condies de tomar a direo do processo histrico, colocando o processo produtivo sob seu controle consciente e coletivo, evitando que as contradies capitalistas nos conduzam barbrie ou at mesmo destruio. Para isso, indispensvel a correta apreenso do real em sua complexidade.

As proposies tticas e estratgicas so objeto de intensa preocupao nesse sentido, para que no se perca o objetivo final da luta. Orient-las mais para as tticas do que para as estratgias um equvoco muito comum, por isso essa discusso fundamental para entendermos o risco implcito de que esses posicionamentos resultem em posies exclusivamente reformistas, que ocasionam um efeito contrrio ao pretendido, ao contriburem para a manuteno e reproduo das condies de produo capitalistas. A tendncia dos discursos e aes atuais combater os efeitos da sociabilidade do capital, como a desigualdade social, a misria, a violncia, sem apreender suas causas, apenas recorrendo justia, solidariedade.

Defendemos a necessidade de pensar a revoluo hoje no seu sentido mais radical, como a etapa de luta necessria construo de outra sociabilidade, que supere o capital e a propriedade privada. O desafio que temos pela frente o de (re)avaliar radicalmente nosso projeto estratgico-ttico, inclusive as propostas educacionais a inseridas. Nesse sentido analisamos as propostas da PHC, mais especificamente, a constituio de sua estratgia poltica. Essa a nossa contribuio para os debates atuais sobre essa questo, que tambm no deixa de ser um acerto de contas em relao a nossas posies anteriores. No temos a expectativa de esgotar o tema, mas de trazer alguns elementos analticos no sentido de avano dos debates, para a construo de respostas cada vez mais eficazes aos desafios existentes.

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O referencial que nos orientou nessa investigao foi o materialismo histrico, por considerarmos seu mtodo adequado a nossos objetivos e porque as anlises marxianas fornecem-nos ferramentas poderosas para entendermos a origem, o desenvolvimento, as estruturas e o mecanismo de funcionamento da relao social regida pelo capital, superando uma anlise que se restrinja a constatar sua aparncia fenomnica e a propor solues no plano formal ou ideal. Tal anlise terica instrumento indispensvel para traar alternativas que possam efetivamente auxiliar na superao dessa sociabilidade, de suas contradies e limitaes para o desenvolvimento pleno do gnero humano.

A anlise crtica da PHC e do projeto poltico-estratgico que orienta suas proposies demanda, na compreenso terico-metodolgica adotada, o conhecimento dos distintos momentos de sua elaborao e difuso, j que ela carrega em si os limites, problemas e expectativas da conjuntura que lhe correspondente. Alm disso, fundamental captar o nvel de apreenso da realidade por parte dos educadores com ela comprometidos. Ela foi organizada no clima de efervescncia que tomou conta da vida social brasileira em meados da dcada de 1970 e resultou na retomada da participao popular, tanto no mbito das relaes de produo quanto em outras instncias, como a cultural e a educacional. Constituda em meio a esse intenso debate educacional, diante do contexto scio-poltico de democratizao que sucedeu o perodo de ditadura burguesa-militar no Brasil, ela at hoje procura avanar em suas postulaes, aprofundando seus fundamentos e intensificando sua interveno na prtica escolar brasileira.

O entendimento radical desse processo s possvel a partir de sua articulao com as transformaes nas relaes de produo decorrentes da instaurao do novo padro de acumulao do capital. As transformaes da materialidade concreta, no decorrer desses mais de trinta anos, tambm se fizeram sentir no seu processo de aprofundamento e atualizao terica e prtica, permitindo-nos captar distintos momentos de sua formulao.

Nesse sentido e para facilitar a exposio, demarcamos duas fases importantes: entre o final da dcada de 1970 e a dcada de 1980, quando foram gestados e difundidos os primeiros textos que estruturaram as bases terico-metodolgicas e a proposta poltica da PHC; e o perodo que abrange a dcada de 1990 e vem at os dias atuais, fase de seu aprofundamento, que continua contando com a colaborao de outros tericos. A sua implantao em alguns sistemas de ensino e a sua difuso nos cursos de formao de professores j nos permite avaliar

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alguns de seus efeitos, ou seja, permite-nos verificar sua aceitao, a aplicabilidade da teoria, bem como alguns de seus resultados, tendo em vista o possvel confronto com a realidade objetiva.

A opo por analisar a PHC a partir do critrio de sua historicidade considerando esses distintos momentos que compem sua formulao e difuso justificvel tanto pelo fato de se tratar de uma proposta pedaggica inacabada, portanto, em processo constante de aprofundamento, reviso e ampliao, quanto pelo fato de abranger um rico perodo histrico, com transformaes substantivas na realidade poltica e social brasileira.

A diviso aqui adotada pretende levar em conta os limites postos historicamente para a produo terica, bem como facilitar a exposio das concluses obtidas nas anlises realizadas, a fim de apreender a trajetria social e poltica que acompanhou a histria dessa proposta pedaggica no Brasil. Essa delimitao dos distintos momentos foi determinada a partir de critrios scio-histricos, com o intuito de demonstrar as mudanas no contexto econmico mais amplo e sua interferncia tanto no ambiente poltico, cultural e educacional quanto no movimento operrio e na elaborao do projeto estratgico da PHC.

Nosso propsito, portanto, no foi o de sinalizar momentos de ruptura radical com as ideias anteriores ou mesmo de diferenas significativas no corpo terico que a constitui. Ao contrrio, possvel afirmar que houve muito mais permanncias nos posicionamentos tericos e nas propostas polticas e estratgicas que a constituem do que rupturas significativas, o que sintomtico para nossas anlises. Os esforos tericos subsequentes foram direcionados no sentido de aprofundar e reafirmar seus fundamentos e proposies basilares, no no sentido de super-los.

A discusso da primeira parte desta tese foi organizada em dois captulos. O primeiro apresenta os postulados centrais da produo terico-poltica da PHC, a situa em meio aos acontecimentos sociais, econmicos e polticos, alm de recuperar os debates educacionais que marcaram as dcadas de 1970 e 1980. Nesse debate foram analisados os interlocutores da PHC situados no campo progressista, especialmente os denominados crtico-reprodutivistas e alguns autores matriciais da PHC. O segundo captulo apresenta uma anlise crtica dos fundamentos tericos e dos eixos norteadores do projeto poltico-estratgico da PHC nessa conjuntura, marcada pelo contexto de reestruturao do capital e pelo ascenso das lutas da classe trabalhadora.

A segunda parte foi desenvolvida em dois captulos, destinados discusso da dcada de 1990 at o perodo atual. O terceiro captulo

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identifica os desdobramentos tericos e poltico-estratgicos mais recentes da PHC, considerando as alteraes estruturais e conjunturais que levaram conteno das lutas da classe trabalhadora a partir da dcada de 1990. As interlocues pedaggicas e a leitura que a PHC faz da realidade material desse perodo tambm esto a expostas. Por fim, o quarto captulo apresenta a anlise crtica do posicionamento poltico-estratgico atual da PHC e suas consequncias para a luta de classes.

A exposio do resultado final de nossas investigaes cumpre o objetivo de demonstrar e analisar criticamente o percurso terico-poltico da PHC, sustentando a tese de que, ao contrrio dos clssicos do marxismo, ela partiu de uma determinada proposta de educao para ento analisar a realidade brasileira e formular seu projeto estratgico. Apesar de manter o objetivo socialista, o resultado dessa inverso acaba por inviabilizar o alcance dos objetivos pretendidos, beneficiando o capital, o que requer, a nosso ver, uma alterao substantiva em suas proposies polticas.

Iniciamos assim esta tese: com a apresentao do processo de constituio dessa proposta pedaggica e a apreenso de sua concepo estratgica implcita, resultado do contexto terico e histrico na qual estava inserida, para posteriormente analisar criticamente suas formulaes polticas atuais e as consequncias destas para a luta revolucionria.

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2 ELABORAO E FUNDAMENTOS DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA NO CONTEXTO DA REESTRUTURAO DO CAPITAL

A anlise do processo de elaborao da proposta conhecida como PHC requer uma apreenso do movimento terico desencadeado entre docentes e discentes da primeira turma de doutorado em educao da Pontifcia Universidade Catlica (PUC) de So Paulo.

O programa de ps-graduao em educao da PUC foi criado em 1969, com o mestrado em Psicologia da Educao3. Em 1971 surgiu o mestrado em Filosofia da Educao, que possibilitou a criao do doutorado em Educao, em 1977. Ele comeou de forma improvisada, com professores convidados e sem um currculo definido, mas, em 1978, sob a coordenao de Dermeval Saviani (1944-)4, houve uma tentativa de reestruturao, cuja finalidade era imprimir maior organicidade ao curso, com a definio de um perfil terico-metodolgico.

Aglutinaram-se, ento, intelectuais comprometidos com a crtica da sociedade capitalista e empenhados em uma anlise dialtica e mais propositiva da escola na sociedade capitalista. Sob a liderana de Saviani, as pesquisas resultaram na elaborao da PHC, divulgada em artigos e palestras veiculadas nos anos de 1980, os quais foram posteriormente condensados em livros.

O mais importante deles Escola e Democracia, publicado pela primeira vez em 1983, e hoje considerado uma introduo preliminar da PHC, j que apresenta um esboo de sua formulao. Nos termos do autor, o livro contm os os pressupostos filosficos, a proposta pedaggico-metodolgica e o significado poltico da pedagogia histrico-crtica (SAVIANI, 2003d, p. 6). Outro destaque, que deu 3 Uma anlise histrica mais aprofundada do percurso da ps-graduao em educao stricto sensu no Brasil pode ser obtida em Saviani (2006a). Ele denominou a fase que foi de 1965 a 1976 de perodo heroico da ps-graduao, devido inexistncia de condies apropriadas para seu funcionamento. 4 Entender a PHC sem destacar a contribuio de Saviani seria uma incoerncia, pois a proposta deve-se ao comprometimento social e poltico do autor com as causas educacionais. Seus estudos tm sido o referencial principal dos autores que assumiram essa proposta e que vm se dedicando ao seu aprofundamento e desenvolvimento terico e prtico. Por isso nossa nfase recai necessariamente na produo intelectual desse perodo. Sua biografia e trajetria profissional podem ser conhecidas em Saviani (2011d).

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continuidade e complementao s anlises anteriores, Pedagogia Histrico-Crtica: primeiras aproximaes5, editado em 1991, em cuja apresentao o autor menciona o processo de elaborao desta corrente pedaggica, atravs da contribuio de diferentes estudiosos (SAVIANI, 2003d, p. 2).

A PHC se inscreve no campo terico do materialismo histrico, embora no tenha sido esse o referencial das primeiras produes de Saviani e de outros educadores envolvidos, j que a maioria deles era proveniente de seminrios catlicos6. Saviani filiou-se a uma orientao filosfica tomista, alm da fenomenolgica (PEREIRA, 2009). Em 2009, esclareceu que teve propenso para a dialtica desde o incio de sua carreira e que sua atitude docente j convergia para a PHC, embora ele no tivesse ainda elaborado os elementos tericos dessa pedagogia (SAVIANI, 2011a, p. 204).

Sua tese de doutorado, defendida em 1971 (SAVIANI, 1973), sustentou-se no mtodo fenomenolgico-dialtico, que, segundo ele explica, foi superado por incorporao e no por negao, quando passou a adotar o materialismo histrico como base da sua proposta pedaggica. Em 1987, no prefcio 6 edio do livro Educao brasileira: estrutura e sistema, constitudo por sua tese de doutorado, o autor explicou melhor como ocorreu essa transio terica. Saviani 5 At a 7 edio, essa obra condensou alguns textos produzidos de 1983 a 1988. Depois da 8 edio, em 2003, foram acrescentados mais dois textos, reescritos para essa edio: um de 1994 e outro de 1997. Isso foi possvel graas mudana no formato da publicao. 6 Bonamino (1989), referindo-se formao intelectual do autor, destaca o perodo iniciado em 1955. Nos seminrios de Cuiab-MT e Campo Grande-MS, Saviani frequentara os cursos ginasial e colegial. Depois, aprofundou-se em estudos filosficos, no Seminrio Central de Aparecida do Norte-SP. Em 1966, na PUC SP, formou-se em Filosofia e, em 1971, doutorou-se em Filosofia da Educao. O ttulo de livre docente em Histria da Educao foi obtido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1986. Foi a partir de 1967 que ele iniciou sua atuao como docente no ensino mdio e superior. Outros educadores importantes como Carlos Roberto Jamil Cury (1945-) e Jos Carlos Libneo (1945-), tambm se formaram em seminrios. Libneo, por exemplo, nasceu em Angatuba, interior do estado de So Paulo e cursou o ensino fundamental e mdio no Seminrio Diocesano de Sorocaba (SP). No ano de 1966, formou-se em Filosofia na PUC de So Paulo, onde, em 1984, tambm obteve o ttulo de mestre em Filosofia da Educao e, em 1990, o de doutor em Filosofia e Histria da Educao. Em sua vida profissional, ele atuou tanto no ensino bsico quanto no superior, alm de exercer cargos no mbito governamental.

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(2005e) fizera uma reviso atenta e no identificara a necessidade de nenhuma alterao de destaque no texto. S precisou atualizar a questo metodolgica, porque, desde 1983, conforme afirmara, tinha superado, por incorporao, a perspectiva terico-metodolgica anterior e adotado o mtodo dialtico. Explicou que o prefixo fenomenolgico era ento necessrio por dois motivos. Primeiro porque chamava a ateno para o momento analtico-descritivo, que considerava uma exigncia do mtodo dialtico. Esse prefixo poderia at ser dispensvel, mas com o risco de se simplificar a dialtica. O segundo motivo referia-se prpria condio terica do autor. Tendo lido os Manuscritos econmico-filosficos escritos por Marx em 1844 e tambm empreendido alguns estudos dialticos da educao brasileira, embora admitisse no ter ainda penetrado a fundo na obra de Marx, o autor rapidamente se definia no mbito da perspectiva dialtica. Nesse prefcio o autor afirma tambm que, embora ainda recebesse certa influncia da fenomenologia, por meio de autores como Sartre e Marcuse, no havia mais a necessidade de agregao do prefixo fenomenolgico. Por isso afirmei ter superado, por incorporao e no por excluso, a perspectiva terico-metodolgica adotada (SAVIANI, 2005e, s.n., grifos nossos).

Em uma entrevista de 1996, Saviani (2011b, p. 78) fornece os passos dessa transio. A rigor, at a segunda metade da dcada de 1970 o seu contato com o marxismo era muito incipiente, alguns poucos trabalhos acadmicos, sem maiores conseqncias. Suas leituras estavam mais fundadas na fenomenologia e a leitura de Marx fora indicada pelo professor Casemiro dos Reis Filho7. Naquela poca, embora se posicionasse de forma crtica, no utilizava os textos de Marx e sim os que ele mesmo produzia sobre a situao brasileira e os de Paulo Freire, que discutia questes como liberdade e conscincia. Em 1972, ao iniciar os trabalhos na ps-graduao, estudava textos da dialtica, de orientao marxista, de lvaro Vieira Pinto e Lefebvre, mas no os de Marx. S em 1978, quando voltou de So Carlos, ele passou a analisar textos do prprio Marx: Contribuio para a crtica da economia poltica, com destaque para o tpico referente ao mtodo da economia poltica; O capital, alm de A ideologia alem e dos Manuscritos (SAVIANI, 2011b, p. 83).

7 A trajetria deste educador foi explorada na obra Intelectual educador mestre: presena do professor Casemiro dos Reis Filho na educao brasileira, na qual Saviani (2003a) reuniu textos inditos de seu professor e, alm de depoimentos de diversos autores brasileiros a respeito deste, publicou tambm uma biografia pessoal e intelectual do mesmo.

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Recentemente, ao citar um texto de 1969 que permanecia indito e tinha sido escrito para dirimir o sentimento de beco sem sada que pressentia nos alunos, Saviani (2011a) destaca que, naquele momento, j apontava a necessidade de identificar objetivos para a educao, os quais deviam estar ligados a uma opo ideolgica. Sua argumentao revela perceber suas orientaes filosficas: o procedimento metodolgico fundava-se na realidade existencial-dialtica e na abordagem fenomenolgica, considerada til para analisar os objetivos definidos com base em dados existenciais. Ele explicou que os alunos, desde o incio, pressentiram a estrutura dialtica com a qual estavam lidando, e que esta, ao trazer a questo da liberdade e da conscincia, ocasionava respostas rpidas, com base no senso comum. Para garantir que a anlise fosse levada a cabo, at as ltimas consequncias, ele insistia que se mantivesse a atitude fenomenolgica, ou seja, que se caminhasse etapa por etapa para esclarecer as relaes existenciais em que todos estavam envolvidos, evitando assim o risco de os alunos se perderem nas contradies sem super-las na dialtica, pois acreditava que sem a mediao da anlise seria impossvel passar da sncrese sntese (SAVIANI, 2011a, p. 213-214).

A anlise da estrutura do homem brasileiro ofereceu-lhe a possibilidade de definir os objetivos da educao. Assim, esse texto, de 1969, segundo a anlise que Saviani (2011a, p. 217) fez de sua prpria trajetria, foi uma primeira tentativa de construo de uma teoria dialtica da educao, pois continha a abordagem de um elemento central da PHC, a questo da passagem da sncrese sntese pela mediao da anlise. Observamos que, nesse momento, apesar de, juntamente com outras, se valer tambm da concepo dialtica, o autor ainda no utilizava as obras de Marx. Isso s ocorreria quase dez anos depois, em 1978, conforme ele mesmo afirma.

Nessas primeiras apropriaes da teoria marxista, ele elaborou um esquema classificatrio inicial da filosofia da educao. Na concepo dialtica, ele agrupava todas as concepes crticas e as propostas pedaggicas que tivessem um cunho popular, como a dos anarquistas, por exemplo8.

8 O esforo para esboar uma classificao sistemtica das diferentes concepes de Filosofia da Educao acompanhou desde cedo sua trajetria intelectual. Educao: do senso comum conscincia filosfica caracterizada por Saviani (2000a) como produto de um projeto de pesquisa que acabara de realizar. No artigo Tendncias e correntes da educao brasileira, divulgado por volta de 1983, ele identificou quatro concepes fundamentais de filosofia

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Os autores franceses que criticavam a funo reprodutora da escola capitalista foram grandes interlocutores do autor naquele perodo. Em 1977, depois de frequentar um curso na Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), Saviani (2003d, p. 69, grifos nossos) concluiu que autores como Bourdieu e Passeron no se encaixavam na concepo dialtica e, por isso, sua teoria deveria ser denominada de vertente scio-lgica, porque no fundo o que eles pretendem fazer uma lgica do social. Em sua interpretao, eles elaboraram uma teoria da educao vlida para todas as pocas e lugares, no identificando a contradio na escola, apenas na sociedade. No seminrio de educao brasileira ocorrido em Campinas, em 1978, segundo Saviani (2003d), a tendncia predominante era a que anos depois ele denominaria de crtico-reprodutivista. De seu ponto de vista, no havia uma clara distino entre esta tendncia e a histrico-crtica, alm do que o termo dialtica ainda gerava dificuldades, por estar associado a uma relao intersubjetiva, dialgica e idealista.

O ano de 1979, quando a abordagem dialtica da educao comeou a ser discutida mais ampla e coletivamente, com os 11 doutorandos que ele coordenou na primeira turma de doutorado da PUC de So Paulo, foi considerado um marco na escolha do ttulo da proposta de Saviani e na definio de seus objetivos. Entre esses alunos estavam Carlos Roberto Jamil Cury, Neidson Rodrigues, Lus Antnio Cunha, Guiomar Namo de Mello, Paolo Nosella, Betty Oliveira, Mirian Warde e Osmar Fvero. Afirma ele que o problema central de seus orientandos era superar o crtico-reprodutivismo e tambm a viso politicista da educao9.

da educao: a concepo humanista tradicional, a concepo humanista moderna, a analtica e a dialtica. Ao articular esse esquema com o processo concreto da realidade brasileira, concluiu que a concepo dialtica esteve presente desde o incio, pois inspira e orienta a atuao dos diferentes grupos que se empenham em colocar a educao e a escola a servio das foras emergentes da sociedade, expressando interesses populares e buscando tornar de fato de todos aquilo que a ideologia liberal proclama ser de direito de todos (SAVIANI, 1985b, p. 32-33). Com essa lgica argumentativa, afirmou que, na dcada de 1920, a tendncia dialtica se fazia presente com certo vigor, inspirando e orientando um conjunto de movimentos, organizaes, peridicos. Como exemplo citou o peridico anarquista, A Plebe. 9 Na tese denominada Educao e contradio, defendida em 1979, Cury empenhou-se em analisar a contradio enfrentada na educao, concluindo que todas as outras categorias metodolgicas subordinavam-se a ela. Em 1981 foi produzida a tese de Mello, cujos pressupostos eram os mesmos. Para a autora, a

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Por considerarem que mesmo o aspecto reprodutor da educao contraditrio e no mecnico (SAVIANI, 2003d, p. 71), esses educadores tentavam criar alternativas para a educao escolar, a fim de superar aqueles que apenas faziam crticas educao existente. Essa crtica, todavia, no era original. Outros autores brasileiros, como Brbara Freitag, no incio da dcada de 197010, j haviam feito indicaes prvias nesse sentido. Saviani (2003d) admitiu que a crtica j havia sido formulada na sua origem, na Frana, com Vincent Petit, em 1973, e George Snyders, em 1976, sendo que foi a partir deles que procurou fundament-la.

O resultado foi a ampliao do esquema classificatrio anterior. Saviani dispunha-se a aprofundar a crtica a esses autores e a suas teorias11, explicitando seus limites e classificando-as de teorias crtico-

educao tinha uma funo poltica, sendo, portanto, contraditria. Por isso a classe dominante tentava colocar a educao a seu servio; da mesma forma que as classes dominadas buscavam articular a escola aos seus interesses. Sua tese central era a de que a funo poltica da educao se cumpria pela mediao da competncia tcnica. Saviani (2003d) ressaltou uma diferena importante entre as duas teses, pois o interlocutor de Mello j no era apenas o crtico-reprodutivismo, mas tambm a viso politicista da educao. Nesta viso, a educao seria sempre um ato poltico, pois as questes pedaggicas seriam mecanismos de dominao da burguesia, sendo necessrio fazer poltica na escola. Em 1983 Saviani (2003d) elaborou o texto das onze teses sobre educao e poltica, no qual tambm tentava superar o politicismo pedaggico e o pedagogismo poltico, que se dissolviam um no outro. 10 Destaca-se aqui a tese de doutorado sobre poltica educacional brasileira, de Brbara Freitag, defendida na Alemanha em 1972, e publicada no Brasil em 1980, sob o ttulo Escola, estado e sociedade. Ela declarava que seu estudo se inscrevia no terreno marxista e contava com influncias de Althusser, Baudelot e Establet, que eram complementados em suas insuficincias pela obra de Gramsci. Althusser, apesar de admitir a importncia estratgica da educao como instrumento de dominao nas mos da classe dominante, no v nela importncia estratgica como instrumento de libertao por parte da classe dominada. Falta-lhe aqui, a nosso ver, a viso histrica e dialtica dos AIE [aparelhos ideolgicos de Estado] e da escola (FREITAG, 1980, p. 36). 11 Segundo Saviani (2003b), a classificao das teorias crtico-reprodutivistas abarcou vrios autores e diferentes vertentes, como a dos radicais americanos Bowles e Gintis, com o livro Schooling in Capitalist America (1976). Seu destaque, no entanto, foi dirigido para outras teorias que tiveram maior repercusso e elaborao. Ele se referia teoria do sistema de ensino como violncia simblica, de P. Bourdieu e J. C. Passeron, desenvolvida na obra A reproduo: elementos para uma teoria do sistema de ensino (1975); teoria da

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reprodutivistas. Isso gerou diversas polmicas12, pois Saviani (2003b), vendo nelas o problema de terem substitudo o entusiasmo ingnuo dos educadores, correspondente s teorias no-crticas, pelo pessimismo e imobilismo, considerava necessrio reverter tal quadro. Inicialmente a soluo proposta era a adoo de uma nova atitude por parte dos educadores: o entusiasmo crtico.

Sua defesa de uma ao mais propositiva ficou explcita nos textos produzidos nas dcadas de 1970 e 1980. Ao discutir as questes escolares e universitrias e o desenvolvimento nacional, em texto escrito por solicitao do Conselho de Reitores da PUC - SP, aps 1978, Saviani (2000a, p. 85-86) preconizou: se no h mais razo para trabalharmos em educao, animados de um entusiasmo ingnuo, tambm no h razo para nos paralisarmos num pessimismo igualmente ingnuo. Diante do muito que podia e deveria ser feito, ele lanou um desafio aos educadores: hora, pois, de nos lanarmos ao trabalho com entusiasmo; entusiasmo crtico, porm.

O esforo desses educadores para propor solues prticas para os problemas escolares foi uma marca desse perodo. Tal disposio era produto dos acontecimentos sociais e polticos dessa fase da histria escola como aparelho ideolgico de Estado, de Althusser; e teoria da escola dualista, de C. Baudelot e R. Establet, exposta no livro Lcole Capitalist em France (1971). 12 Ele foi acusado de desqualificar essas teorias e de levar os educadores a pensarem que no era mais necessrio estud-las. Dessa acusao ele defendeu-se em um texto de 2003, que na verdade era a reviso de uma entrevista concedida em 1997. Embora admitindo que ele pudesse ter produzido esse efeito nos professores, esclareceu que jamais tinha sido esse seu entendimento, pois as inclua no programa das disciplinas que lecionava. Tambm alegou que o fato de essas teorias no apresentarem alternativas no seria um limite, pois isso no era sua pretenso: eram teorias sobre a educao, no da educao. Ele deixou claro que Luiz Antnio Cunha que tinha sugerido essa distino, pois o objetivo delas era explicar o modo de funcionamento da educao escolar, no orientar a prtica pedaggica. Tambm admitiu que a crtica no implicava afirmar que tais teorias no tivessem contribudo para entender a prpria prtica educativa; ao contrrio, elas continham categorias de grande relevncia para entender as escolas, como era o caso dos aparelhos ideolgicos do Estado, como as redes primria profissional e secundria superior, como capital cultural e principalmente habitus. Este termo equivalia ao conceito de segunda natureza de Gramsci, que tentou explicar e compreender a natureza e a especificidade da educao. Asseverou, por fim, que poderiam integrar as abordagens clssicas da educao, devendo ser estudadas por todos (SAVIANI, 2003d).

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brasileira, os quais tornaram possveis a reorganizao e a mobilizao dos trabalhadores, educadores e intelectuais. Emergia assim e tomava fora uma nova proposta pedaggica, cuja sistematizao ocorreu a partir de 1979.

Quanto escolha da denominao, houve a interferncia de vrios fatores. Saviani (2003d) destacou o trabalho de Libneo, que, em 1982, analisando a prtica dos professores, redefinia a didtica luz da referida concepo, denominando-a de pedagogia crtico-social dos contedos13. O nome de PHC foi adotado a partir de 1984, no para ser oposto ao de Libneo, mas pela vantagem de no mostrar um sentido predeterminado, de gerar curiosidade e oportunidade para explicitar seu significado, evitando confuses. Para Saviani (2003d), ela poderia ser considerada uma pedagogia dialtica, mas a denominao escolhida deveu-se a uma disciplina com esse nome, ministrada para atender demanda dos alunos. Seu intuito com essa escolha foi evitar as ambiguidades que o termo dialtica gerava, tanto no campo da filosofia quanto no educacional, inclusive em seu sentido etimolgico14.

13 Libneo (2002) utilizou essa denominao na obra Democratizao da escola pblica: a pedagogia crtico-social dos contedos. Na introduo, de dezembro de 1984, ao caracterizar a pedagogia crtico-social dos contedos, identificou-a com a PHC. J no primeiro artigo, que reproduzia com alteraes um texto publicado na Revista da Associao Nacional de Educao (Ande), em 1982, ele utilizou a denominao de pedagogia crtico-social dos contedos. 14 Saviani (2003d) explicou que o problema era a ambiguidade do termo e, relacionando-o com Hegel e com seu significado etimolgico, explicou que este se aproximava da palavra dilogo, dialgica, retomada pela fenomenologia. Na pedagogia tambm surgiam complicadores, como o livro de Schmied-Kowarzik (1983), pedagogia dialtica, no qual dialtica era entendida como movimento real, no como uma concepo. Nesse campo, eram includos desde Aristteles at Paulo Freire. Segundo o autor, foi somente com Hegel que a dialtica tornou-se uma concepo, correspondendo a uma lgica e a uma teoria do conhecimento, uma formulao articulada e sistemtica. Esse filsofo teria introduzido a negatividade como categoria lgica, sendo possvel apenas falar de precursores, antecedentes (Herclito), nos quais predominava a lgica formal. Havia tambm o livro Concepo dialtica da Educao (1983), de Gadotti, que, referindo-se a autores situados no campo do marxismo, apresentava a experincia da pedagogia institucional de seu doutorado em Genebra. No entanto, ele tambm no era dialtico e sim antimarxista, de formao salesiana, ligado Sociedade de filsofos catlicos e, com isso, deixava confusa a concepo dialtica. Saviani preferiu evitar essa denominao e, na busca da terminologia adequada, cunhou a expresso PHC. Considerava que essa expresso traduzia o que era pensado, pois o problema das teorias

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Anteriormente a isso, a proposta teve um primeiro nome, pedagogia revolucionria, que apareceu nos artigos Escola e democracia I e II, por razes polmicas15. Segundo Saviani (2003d, p. 139), esse nome no foi adotado na disciplina oferecida em atendimento solicitao dos alunos da PUC-SP, uma vez que a atitude revolucionria diz respeito mudana das bases da sociedade. A expresso histrico-crtica tinha ainda a vantagem de traduzir o que estava sendo pensado a respeito da expresso crtico-reprodutivista.

A concepo de sociedade de Saviani (2003d, p. 92) foi primordial para definir a proposta. Ele considerava que a sociedade capitalista contm, tambm, em seu interior, um carter contraditrio cujo desenvolvimento conduz transformao e, mais tarde, sua prpria superao. Assim, ele compreendia que a educao tambm era determinada pelas contradies internas da sociedade capitalista, podendo no apenas ser um elemento de reproduo mas um elemento que impulsionasse a tendncia de transformao dessa sociedade.

Era uma anlise crtica, segundo Saviani (2003d, p. 92), porque expressava a conscincia de sua determinao pela sociedade; no entanto, era uma anlise crtico-dialtica e no crtico-mecanicista. J na viso mecanicista inerente s teorias crtico-reprodutivistas considerava-se que a sociedade era determinante unidirecional da educao. Em contraposio, Saviani (2003d, p. 93) afirmou que a educao tambm interfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua prpria transformao.

crtico-reprodutivistas era a falta de enraizamento histrico, isto , da apreenso do movimento histrico que se desenvolve dialeticamente em suas contradies. Concebia que a PHC estava inserida no processo da sociedade e de suas transformaes, por isso, de certa forma, ela se contrapunha s teorias crtico-reprodutivistas. 15 Em 1980, na primeira Conferncia Brasileira de Educao CBE, foi apresentado o primeiro desses artigos: Escola e Democracia I - a teoria da curvatura da vara. Usando expresses bem antpodas, como revolucionria para a tradicional e reacionria para a escola nova, o artigo de Saviani suscitou muitas polmicas e reaes. Em novembro de 1981, em seminrio ocorrido na UFSCar, quando ele anunciou outro artigo, que seria Escola e Democracia II - para alm da teoria da curvatura da vara (publicado em 1982 na ANDE), perguntaram-lhe no era conservador defender a tradicional. Foi neste segundo artigo que ele esboou as linhas bsicas do que depois chamaria de PHC. Esses artigos, posteriormente, compuseram a obra Escola e democracia, ao lado de mais dois artigos: um que discutiu as teorias da educao e o problema da marginalidade, de 1982, e o outro sobre educao e poltica, de 1983.

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O ano de 1983, para o autor, poderia ser considerado aquele em que a proposta adquiriu certa hegemonia na discusso pedaggica e, concomitantemente ao enfraquecimento do reprodutivismo, generalizou-se a valorizao da escola para os dominados. Em 1994, ao prefaciar a 4 edio da obra Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes, ele reafirmou que, na dcada de 1980, os debates pedaggicos eram intensos e expressavam a hegemonia do pensamento progressista, no qual predominavam ideias de esquerda. A seu ver, esse clima ocorria principalmente no campo terico e no no da prtica educativa.

Nessa sucinta contextualizao da trajetria da PHC, nosso objetivo foi situar o leitor na discusso que acompanhou a organizao dessa proposta, de maneira a podermos discutir seus fundamentos concretos, as lutas polticas e ideolgicas que se travavam no perodo. Entendemos que a anlise crtica pressupe captar a produo terica em seu movimento contraditrio, relacionando-o base material que lhe correspondente. O prprio Saviani (2003d), em 1994, ao responder s crticas posteriores formuladas a essa proposta, decorrentes de uma atitude de suspeio criada em meio ao debate fervoroso que sucedeu a derrocada do regime sovitico, advertiu que seria um equvoco no considerar esses aspectos. Ele afirmava ento que a PHC no era unilateral nem anacrnica, pois no estava acabada, no era definitiva e estava sintonizada com a contemporaneidade.

A apreenso desse complexo processo de elaborao terica e de suas implicaes polticas exige, portanto, vincul-lo s transformaes scio-econmicas, polticas e ideolgicas, pois esse foi o solo no qual germinaram as lutas e os debates. Na sequncia da discusso, analisaremos trs aspectos essenciais da PHC: seu contedo, a prtica social concreta que a fundamentou e suas interlocues tericas. Nossa finalidade reunir elementos que nos auxiliem a analisar criticamente como foi sendo encaminhado seu projeto poltico-estratgico. 2.1 A FORMULAO TERICA DA PEDAGOGIA HISTRICO-CRTICA

Os embates tericos acerca da funo reprodutora da escola marcaram o pensamento educacional brasileiro a partir do final da dcada de 1970. com base nessa compreenso que procuraremos captar o significado mais amplo dessa proposta pedaggica e cotej-lo com seus determinantes sociais e culturais. A definio dada PHC reveladora do posicionamento de seus criadores nesses embates:

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[...] uma teoria que procura compreender os limites da educao vigente e, ao mesmo tempo, super-los por meio da formulao dos princpios, mtodos e procedimentos prticos ligados tanto organizao do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos processos pedaggicos que pem em movimento a relao professor-alunos no interior das escolas (SAVIANI, 2003d, p. 119, grifos nossos).

O desafio assumido nesse momento foi o de formular uma teoria educacional que sustentasse os educadores nas respostas aos problemas educacionais e sociais que detectavam. Apesar de ser considerada uma teoria, ela teve um carter prtico, pois, ao explicar a educao em suas relaes com a sociedade, tinha como objetivo superar seus limites, o que significava interferir tanto na atuao especfica dos professores orientando suas aes pedaggicas diretas, inclusive por meio da proposio de um novo mtodo de ensino , quanto na organizao poltica institucional abordando os aspectos mais gerais relacionados educao escolar, como a organizao dos sistemas de ensino, as polticas educacionais, o sistema tributrio, o Estado republicano.

Esse objetivo mais amplo ficou evidente na apresentao da primeira edio da Pedagogia histrico-crtica, de 1991. Saviani (2003d, p. 3, grifos nossos) esclarece que esta era uma primeira aproximao do que seria a PHC. Sua inteno com a obra era revelar as bases dessa pedagogia e viabilizar a configurao consistente do sistema educacional em seu conjunto do ponto de vista dessa concepo educacional.

O processo de elaborao da PHC no foi solitrio. Os ex-alunos do programa de doutorado da PUC - SP confirmam que, naquele momento, existia um grande movimento em prol da discusso em torno da proposta da PHC. Em razo do significativo nmero de autores envolvidos, sendo improcedente retomar aqui toda a produo sobre o assunto16, optamos por privilegiar as obras de Saviani, autor matricial da proposta, e algumas de autores do perodo, as quais nos oferecem dados

16 Essa delimitao no significa que a produo dos demais autores no seja importante. Pelo contrrio, um estudo minucioso do percurso, das continuidades e rupturas entre os autores envolvidos na discusso e na elaborao da PHC constituiria uma rica fonte para estudos na rea educacional e favoreceria a produo de anlises dos vrios rumos tomados como tambm de suas consequncias polticas, tericas e prticas.

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importantes sobre a constituio da PHC. Algumas produes de Cury, Libneo, Mello e Nosella, todas referenciadas nos estudos histricos a respeito das origens da proposta, so bastante representativas desse perodo de enfrentamentos e proposies. Tais fontes sero abordadas conforme a necessidade de exposio e de explicitao de nossas problemticas.

Ao definir a PHC, os prprios autores oscilavam entre caracteriz-la como uma concepo educacional, uma teoria educativa, ou, ainda, uma proposta pedaggica. Era explcita a inteno de intervir na educao e, assim, contribuir para a transformao da sociedade, tendo como fundamento a relao entre educao e sociedade, de uma perspectiva dialtica. A proposta estava sendo formulada como uma contraposio s concepes denominadas liberais e crtico-reprodutivistas, em uma fase de intensas mobilizaes e de expectativas quanto universalizao da escola pblica e ao ensino de qualidade para todos, de lutas pela democratizao brasileira e da inflexo do movimento operrio brasileiro. Inicialmente analisaremos o processo de construo ideolgica da proposta, relacionando-o ao sistema de produo da vida material brasileira naquela conjuntura.

2.1.1 A categoria contradio como norteadora do debate

Escola e democracia (SAVIANI, 2003b) demarcou o momento

da elaborao e da apresentao da PHC ao pblico. No entanto, de acordo com o prprio autor, a obra Educao e contradio: elementos metodolgicos para uma teoria crtica do fenmeno educativo produto direto da tese de doutorado de Cury, sob sua orientao, defendida em outubro de 1979 na PUC de SP tambm foi um marco importante na formulao da proposta. Saviani (2012d) afirma que a tese expressa o primeiro esforo coletivo para repensar as teorias e prticas pedaggicas, direcionando-as de forma crtica e democrtica, para uma ao transformadora. Pelas categorias lgicas, as teses de Cury sistematizavam uma teoria crtica no reprodutivista da educao.

Em 1983, na introduo da primeira publicao do livro, Cury (1992, p. 7) procurou situar sua tese como um trabalho datado, que representava um momento em que se pretendia superar criticamente as teorias da reproduo, ou seja, tratava-se de uma tentativa de avano. Tal esforo consubstanciou-se na recuperao da categoria da contradio como instrumento de compreenso da educao. Em sua argumentao, ele privilegiou o momento terico-filosfico em

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detrimento do histrico poltico, mesmo consciente do risco de fazer uma anlise a-histrica do fenmeno educativo.

Seu pressuposto era a possibilidade de superao das teorias que analisavam a educao por seus elementos aparentes ou como um fenmeno separado das relaes sociais. Tratava-se, portanto, de superar tanto as teorias deterministas, que destacavam o status quo, quanto as individualistas, que privilegiavam a ao subjetiva, pois ambas implicavam a aceitao das relaes sociais existentes. Na dcada de 1970, surgira uma terceira tendncia, oposta s duas primeiras e que enfatizava o aspecto reprodutor e impositivo da educao. As teorias de Pierre Bourdieu (1930-2002) e Jean-Claude Passeron (1930-) e a de Louis Althusser (1918-1990), apesar de terem contribudo para o debate ao desvelar os mecanismos usados pelas classes dominantes para manter as relaes vigentes, no acentuaram o papel da contradio no mbito poltico-ideolgico. De sua perspectiva, era preciso utilizar categorias que abarcassem a educao em suas relaes contraditrias.

Pautado em uma concepo dialtica de homem e sociedade, Cury (1992) preconizou a rejeio tanto da concepo educacional que unilateralizava a adaptao do indivduo sociedade, quanto da que tomava a realidade social como algo esttico. Em contrapartida, ele concebia a educao na unidade dialtica com a totalidade social, considerava-a um espao da luta de classes, que sendo determinada pelo modo de produo capitalista, era marcada pelas relaes contraditrias dessa sociedade. No processo dialtico de oposio/subordinao entre as classes, no havia homogeneidade.

A partir do referencial gramsciano, preconizou que, para assegurar e validar a dominao de uma classe sobre a outra, era necessrio viabilizar o consenso, o que tornava a educao uma mediao da hegemonia em curso. Como havia uma mutabilidade real das coisas, que se opunha imutabilidade conceitual, seu esforo foi expor categorias metodolgicas que evidenciassem o carter contraditrio da educao, suas possibilidades e seus limites. Tomando a contradio como categoria central, Cury (1992) explicou que procurou relacion-la com as categorias da totalidade, da mediao, da reproduo e da hegemonia e procurou faz-lo de uma perspectiva historicizante, expondo-as didaticamente, sem perder sua mediao recproca. Ele percebeu o risco de reificar e tornar as categorias metodolgicas metafsicas, a-histricas, mas entendia que, com esse procedimento de anlise, poderia torn-las categorias mais ricas. Por meio delas, seria possvel entender o real e desocultar a contradio que o discurso dominante escondia.

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Ao abstrair a educao, procurou ressaltar as determinaes comuns do capitalismo, em detrimento de determinaes especficas, e centrou seu estudo no aspecto formal, latente no prprio contedo do real, atribuindo-lhe um estofo histrico.

Seu objetivo era apresentar uma arma terica para o movimento de superao da sociedade capitalista, j que tornava possvel explicitar o carter contraditrio do real. Metodologicamente, analisou as categorias comeando pela contradio, seguida das demais, por ser ela o elemento mais explcito. Com base nelas, iluminava o fenmeno educativo; depois as retomava na direo inversa, ou seja, da educao e hegemonia para a contradio, mostrando assim nesse processo o carter mediador da educao. Cury (1992, p. 20), ao explicitar que, em sua especificidade, a educao se desenvolvia na complexidade desses elementos, apresentou os limites e possibilidades da fecundidade do quadro terico proposto como guia indicativo de estudos especficos sobre educao.

Para ele, a base da metodologia dialtica era a categoria da contradio, que poderia ser denominada de lei por ser o motor interno do real. Neg-la seria falsear o real, eliminando da concepo de educao a negao. Com base na categoria da totalidade, poder-se-ia conectar dialeticamente um processo particular com outros, coordenando-os em uma sntese explicativa. J a categoria da mediao seria um instrumento para se apreender a reciprocidade dos processos, pois os contrrios se relacionam de modo dialtico e contraditrio. Assim, o homem seria compreendido como um ser histrico e a educao como mediao entre duas aes sociais ou duas ideias. Por isso, essa seria uma categoria bsica para a educao. A categoria da reproduo tambm era importante: como a sociedade precisava se autoconservar, acionava os mais diversos mecanismos, tanto os econmicos quanto os ideolgicos. Entendida de modo dialtico, esta categoria no fugia negao e, portanto, tambm era contraditria. Finalmente, com a categoria da hegemonia, que envolvia a questo ideolgica, a dominao e a luta de classes, apresentava-se a possibilidade de anlise e de indicao de uma estratgia poltica.

O estudo dessas categorias no negaria o de outras, como a ao recproca, o movimento e a negao, pois todas se incluam e se completavam no objetivo de analisar o fenmeno educativo. O entendimento da sociedade capitalista era primordial, bem como seu movimento, que resultava de suas contradies internas. Estas, por sua vez, se revelavam no papel motor da luta de classes na transformao social. Essa luta se d em condies objetivas e sua soluo no

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resultado fatal do crescimento das foras produtivas. O que ocorre uma dialtica entre o tempo histrico e a determinao do econmico (CURY, 1992, p. 33).

Ele explicou essa contradio nos seguintes termos: a economia a estrutura fundante da objetivao humana superestrutural, a ossatura das relaes humanas, assim, o que determinaria a superao da realidade capitalista seria o nvel das contradies das relaes sociais (CURY, 1992, p. 34). Isso remetia categoria da totalidade, com base na qual se poderia compreender a relao todo/parte, se evitaria sua separao e se superaria a concepo de que as instituies refletiam estruturas mais amplas. A totalidade no podia ser concebida como uma invarincia estrutural, pois continha uma tenso que impelia o movimento do real na histria. Seria, portanto, uma forma de conservantismo ignorar a contradio. De sua perspectiva, a totalidade concreta e complexa: cada fenmeno s compreensvel como um momento definido em relao a si mesmo e em relao aos outros fenmenos, pois os dados isolados so apenas abstraes. Assim, era preciso conhecer o lugar de cada fenmeno na totalidade das relaes, compreender a unidade dialtica entre a estrutura e a superestrutura e reconhecer o homem como sujeito da prxis e o capitalismo como contradio.

Vinculando os diferentes momentos do todo, a mediao indicaria que nada isolado. Ela prpria tambm histrica, supervel e relativa, pois existe apenas em sua relao com a teoria e com a prtica, expressando relaes concretas e guiando as aes. No apenas reprodutora, pode ser crtica, como no caso da mediao contraditria do conhecimento. Segundo Cury (1992, p. 45), o conhecimento, como saber verdadeiro dos mecanismos de explorao, no imanente classe social, por isso ela precisa dele, j que sem ele no atinge a concepo da totalidade social. A classe trabalhadora vivia a experincia direta da explorao, mas esta no era compreendida teoricamente de modo imediato, o que tambm no significava que sua vivncia no tivesse um ncleo de bom senso. A questo para a classe dominante era impedir a globalizao da conscincia do conflito, o que aceleraria a possibilidade de superao das contradies. Em sua argumentao, percebe-se a influncia das leituras de Gramsci.

Para ele, a educao poderia se tornar um meio de expresso adequada e coerente de mundo, opondo-se mistificao. Nesse sentido ela era lugar de luta pela hegemonia de classe, j que uma dominao absoluta eliminaria a contradio. A educao podia tanto impedir quanto fazer aflorar a conscincia, servia tanto para difundir quanto para

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desarticular. Para Cury (1992, p. 67, grifos nossos), a apropriao de um saber revelador torna-se momento de denncia de um saber dissimulador das contradies e anuncia a possibilidade de novas relaes sociais.

Segundo ele, a escola, ao atuar na totalidade social como instrumento de persuaso e poder e a servio das classes dominantes, levou Althusser a denomin-la de aparelho ideolgico de Estado (AIE). Sua eficcia enquanto instrumento poltico ideolgico era incontestvel, mas seria relativa quanto s condies histricas de cada totalidade social, j que tudo dependeria das foras sociais em conflito, as quais buscavam redirecionar a educao de forma a obter a hegemonia poltica sobre a sociedade. Nos momentos de crise, a contradio explcita na insatisfao e no protesto transparecia, sendo ento atenuada, porm no suprimida. As contradies no se originavam na educao. Esta no estava acima ou alm das contradies inerentes sociedade capitalista; por isso, juntamente com o saber que ela veiculava, no podia ser responsabilizada por tornar o capitalismo um sistema fechado, acabado. Segundo Cury (1992), tratava-se de uma luta entre duas concepes de mundo, sendo o prprio saber, em si mesmo, contraditrio, porque a prtica em que se dava era contraditria.

A contradio verificada na realidade permitia identificar na educao a integrao implcita no projeto de