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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DIMAURA FATIMA CARVALHO A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA. AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES Salvador 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

DIMAURA FATIMA CARVALHO

A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.

AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES

Salvador

2013

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DIMAURA FATIMA CARVALHO

A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.

AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do título de mestre em educação.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib.

Salvador

2013

SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira Carvalho, Dimaura Fátima. A cultura popular para dentro dos muros da escola. Ação Griô Nacional : indicando possibilidades / Dimaura Fátima Carvalho. – 2013. 162 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2013. 1. Cultura popular. 2. Educação – Aspectos Sociais. 3. Ação Griô Nacional. I. Abib, Pedro Rodolpho Jungers. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 306.43 – 22. ed.

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Dimaura Fatima Carvalho

A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.

AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de mestre em educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia

Aprovada em 7 de março de 2013

Banca Examinadora

Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib – orientador ___________________

Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas

Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Eduardo David Oliveira ____________________

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará

Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante ____________________

Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Universidade Estadual de Feira de Santana

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À

Marina e Malu, razões de minha vida.

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AGRADECIMENTOS

São muitos e tão especiais...

Agradeço aos meus pais, Ademir e Sueli, pelo amor e apoio incondicionais.

Às minhas irmãs, Babi e Lu, por existirem e serem as companheiras e cúmplices de

toda a vida.

Às minhas princesas, Marina, Malu e Laurinha, por tornarem a vida bem mais

divertida.

Ao meu amor, Gade, pelo carinho, paciência e entusiasmo, mesmo nas horas mais

difíceis.

À minha família paulista, especialmente à vó Jenny e à Tita, pelo carinho e apoio de

sempre.

À minha família baiana, Neuza, Sy, Célia e tia Maria, por saber que tenho sempre

com quem contar.

À Eneida, minha melhor amiga, minha irmã, minha revisora, minha tradutora, ..., por

tudo.

Agradeço a Pedrão, meu orientador, por me ensinar a aprender de tantas outras

formas, dentro e fora da universidade.

Agradeço, imensamente, à comunidade escolar Malê Debalê, pela paciência,

carinho e pelas contribuições neste trabalho.

Agradeço à Mel, “minha griô-aprendiz”, pelo companheirismo e amizade.

Aos mestres e pontos de cultura, pela disposição e carinho com os quais me

atenderam.

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Agradeço, profundamente, ao Grãos de Luz e Griô, especialmente a Márcio e Líllian,

pela oportunidade de conhecer e vivenciar experiências tão significativas, tanto para

a realização desta pesquisa, quanto para a minha vida.

Ao grupo Griô, pelas amizades e pelas novas descobertas.

Ao meu recém achado grupo ACHEI, pelas grandes contribuições. Obrigada Adil,

pela amizade. Obrigada Duda, pelos abraços. Obrigada Luis, por todas as

gargalhadas.

Ao grupo MEL, em especial ao professor Augusto César Leiro, pelo acolhimento. A

Elton, Débora, Martha e Sara, pelo carinho.

Agradeço às amigas Patrícia e Maíra, por serem tão companheiras nessa jornada.

A todos os colegas que encontrei nessa caminhada pela UFBA, e que a tornaram

mais interessante e mais feliz.

Agradeço a todos os professores que, de alguma forma, contribuíram com a

realização deste trabalho. Obrigada Rose e Tuca, pelos momentos tão significativos.

Às meninas da secretaria da Pós, por serem tão amáveis e solícitas.

E, por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade

de Educação da UFBA, pelo apoio, suporte e a infra-estrutura.

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A educação não é apenas instrumental, é antes,

uma área de lutas ideológicas que devem ser apreendidas.

(Carlos Alberto Torres, 2011)

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CARVALHO, Dimaura Fatima. A cultura popular para dentro dos muros da escola. Ação Griô Nacional: indicando possibilidades: o uso de cópias nas universidade de Salvador. 162 f. il. 2013. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

RESUMO

Este trabalho pretende discutir, a partir do acompanhamento e compreensão das propostas do projeto Ação Griô Nacional, de que maneira uma aproximação entre os saberes populares e os saberes institucionalizados pode interferir nos processos de construção do conhecimento e nas relações sociais dentro e fora das escolas. Para isso, trouxemos para o corpo teórico desta pesquisa as questões da cultura dialogando com a produção e a socialização do conhecimento (ABIB, 2005; BRANDÃO, 1995; CARIA, 2008; dentre outros), e com os movimentos de reconfiguração dos papéis sociais (BAUMAN, 2005; BHABHA, 1998; CANCLINI, 2006). Neste contexto, assumindo os princípios da observação participante (QUEIROZ, 2007) e amparados pela fenomenologia crítica (MASINI, 1989; MERLEAU-PONTY, 1999), partilhamos o cotidiano da escola municipal Malê Debalê, buscando compreender como esse processo de integração entre saberes, populares e institucionalizados, se estabelece no âmbito dos espaços formais de educação, bem como quais as possíveis contribuições que essa aproximação pode oferecer. Este estudo nos permitiu, além de (re)descobrir novas (e outras) práticas de produção e transmissão de saberes mais criativas e efetivas, alcançar sentidos e significados que contribuem com a elaboração de uma educação voltada para as questões da vida.

Palavras-chave: Cultura popular. Educação. Ação Griô Nacional.

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CARVALHO, Dimaura Fatima. The popular culture inside the school’s wall. Ação Griô Nacional: indicating possibilities: the practice of photocopying at the universities in Salvador (Bahia, Brazil). 162 pp. ill. 2013. Master’s Dissertation – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

ABSTRACT

The principle aim in this thesis is to discuss in which ways the connection of both Popular and Institutionalized Knowledge may intervene in the process of Knowledge Construction and social relationships inside and outside schools. This discussion has been accomplished from a following and comprehension of Ação Griô Nacional Project proposals. The theoretical background herein is based on cultural issues associated with Knowledge Production and Socialization (ABIB, 2005; BRANDÃO, 1995; CARIA, 2008; among others) along with the dynamics of Social Role Re-configuration (BAUMAN, 2005; BHABHA, 1998; CANCLINI, 2006). As for the fieldwork, I have participated in Malê Debalê Public School activities on a daily basis, aiming at comprehending how this process of different knowledge (both Popular and Institutionalized) can be established in formal education domains, as well as understanding which possible contributions can be taken from this connection. For that matter, we assume the principles of Participant Observation (QUEIROZ, 2007) and Critical Phenomenology (MASINI, 1989; MERLEAU-PONTY, 1999). The conclusions withdrawn from the present work were twofold: first, we were able to (re)discover more creative, more effective production performances, in addition to knowledge transmitting; second, we have found how to achieve senses e meanings which can contribute to the elaboration of an education concerned with life matters.

Keywords: Popular Culture. Education. Ação Griô Nacional Project.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12

CAPÍTULO 1 – CULTURA E EDUCAÇÃO RECONFIGURANDO PAPÉIS SOCIAIS: A CULTURA POPULAR COMO FORÇA EDUCATIVA ........................ 21

1.1. Dialogando com o conceito de cultura: significações e implicações para a vida social ............................................................................... 21

1.2. As mobilidades identitárias como possibilidade de reconfigurações sociais ............................................................................................... 27

1.3. Elementos e nuances da cultura popular: construindo um mundo de aprendências ................................................................................ 31

1.4. E a escola com isso? ......................................................................... 41

CAPÍTULO 2 – A AÇÃO GRIÔ NACIONAL .......................................................... 55

2.1. Apresentando a Associação Grãos de Luz e Griô, onde tudo começou ............................................................................................ 55

2.2. Ação Griô Nacional: do que se trata? ................................................ 66

2.3. A Lei Griô Nacional ............................................................................ 68

2.4. Perspectivas futuras: lidando com as conquistas e dificuldades ....... 70

2.4.1. Com a palavra, os Pontos de Cultura ...................................... 73

Espaço Cultural Pierre Verger ........................................................... 74

Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió .......... 79

Associação Cultural Beneficente de Apoio aos Trabalhadores Bahia (ACAT) .................................................................................... 84

Grupo Cultural de Entretenimento Mamulengos da Bahia ................ 87

Grupo de Capoeira Ginga e Malícia .................................................. 90

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CAPÍTULO 3 – DIALOGANDO COM A REALIDADE .......................................... 95

3.1 Primeiras aproximações ................................................................... 96

3.2 Perspectivas metodológicas ............................................................ 103

3.3 O cotidiano escolar: ações e contradições ...................................... 107

3.4 Ação Grio Nacional: indicando possibilidades ................................. 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 133

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 140

ANEXOS ................................................................................................................ 147

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INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre o emergente protagonismo que as questões culturais vêm

ocupando na atualidade, voltamos nossas atenções para o lugar, cada vez mais

significativo, que a cultura vem assumindo no que diz respeito à compreensão das

sociedades modernas.

Abandonando a noção de cultura exclusivamente atrelada ao erudito,

produzido por uma classe alta, dominante, e por isso considerada como maior grau

de valor agregado, no diálogo que propomos, a cultura mergulha no mundo social,

percebendo e reconhecendo os diferentes significados que interferem nas

subjetividades, tornando-se, dessa forma, uma “dimensão transversal imanente à

vida cotidiana” (RUBIM, 2010, p.10).

Nesta mesma perspectiva apontamos para os elementos e nuances que

conferem às criações e manifestações da cultura popular uma “lógica diferenciada”

(ABIB, 2005). Sob uma ótica mais atualizada deste universo, entendemos a cultura

popular como processos e produtos de manifestações sociais vivas, que viabilizam

trocas simbólicas e afetivas, produzindo e socializando saberes, o que acaba por

requerer outros e diferentes tipos de relação entre o ensinar e o aprender.

Assim, as questões abordadas neste trabalho surgem da necessidade de

uma melhor reflexão e compreensão sobre a complexa relação entre os saberes e

fazeres da cultura popular e os (ou nos) saberes e fazeres da escola. Inquietações

estas que vêm acompanhando minha trajetória acadêmica e pessoal, antes mesmo

de serem percebidas como tal.

Pensar sobre as escolas brasileiras nos leva, quase automaticamente, a

pensar sobre todas as mazelas que compõem este cenário. Questões que vão

desde a falta de recursos financeiros e precárias condições de trabalho, até

questões mais subjetivas como o que, de que forma e para quem se ensina,

aparecem com frequência nos discursos sobre a escola. Importante espaço

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socializador, de (re)construções sociais e culturais, a instituição escolar vem, em sua

maioria, desempenhando um papel cada vez mais homogeneizador, massificador e

hierarquizador de saberes.

Neste mesmo contexto, os espaços não institucionalizados de educação

(não-formais), com suas práticas menos hierarquizadas, menos centralizadas,

pautadas mais nas vivências e anseios coletivos, parecem ganhar terreno no que diz

respeito aos processos de construção do conhecimento.

Assim, ponderando sobre a profunda e duradoura crise da educação formal

brasileira, assistindo a uma crescente e fértil atuação dos espaços e projetos não

formais de educação, e acreditando nas manifestações da cultura popular como

produtoras e socializadoras de saber, venho, num longo processo de idas e vindas,

de (re)descobrimentos, (re)construções e, principalmente, de sucessivos

desvendamentos, dar corpo e sentido a esta pesquisa.

A aproximação com a intrincada relação entre cultura e educação teve início

enquanto eu ainda era estudante do curso de Pedagogia, na Universidade de São

Paulo. Dentro do Programa de Iniciação Científica desta instituição pude

desenvolver, no ano de 2003, um projeto de pesquisa intitulado Escola e diversão:

um estudo de caso da implantação e objetivos do CEU–Centro de Educação

Unificado – pesquisa esta, que possibilitou o contato direto, durante

aproximadamente 18 meses, com um espaço de educação institucionalizado

diferenciado, tanto em termos de estrutura física como em relação à sua proposta de

ação, a qual tinha como objetivo primeiro proporcionar a integração entre escola,

cultura e lazer.

Os CEUs – Centros de Educação Unificados – foram criados durante a

administração municipal do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo nos

anos de 2001 a 2004, tendo à frente a prefeita Marta Suplicy. Buscando inspiração

nas Escolas Parque de Anísio Teixeira, esses Centros apresentavam como objetivo

“contribuir com uma formação rica em termos de recursos educativos e culturais,

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que esteja integrada com a realidade da comunidade e direcionada a toda família. É

uma escola que visa a formar cidadãos”. 1

Entretanto, a observação sistemática de suas práticas, tanto na escola quanto

no núcleo de esporte, cultura e lazer2, mostrou que a integração apontada como

objetivo principal da proposta estava longe de acontecer. As ideias, concepções

políticas e ações destes dois espaços nem sequer dialogavam.

A instituição escolar, ainda arraigada a uma concepção mecanicista,

racionalista e utilitária de educação, não pôde conceber abrir suas portas para novos

e outros processos de ensino/aprendizagem.

A partir desta experiência uma venda foi retirada de meus olhos, ou melhor

dizendo, de meu olhar. Descortinou-se aí a imensa dificuldade em se estabelecer

vínculos entre a cultura e a escola, como se um fosse o locus apenas da diversão,

enquanto o outro apenas do conhecimento.

Assim, assistindo aos sucessivos fracassos protagonizados por grande parte

dos espaços formais de educação, confesso que por um determinado período

passei a questionar a presença da escola. Flagrei-me reproduzindo o discurso que

associa a escola a um espaço fadado a manter e legitimar ideologias das

sociedades dominantes. Precisei parar, me afastar, vivenciar outros espaços,

discutir e refletir.

Eis que surge a necessidade de novos questionamentos: se, de fato, as

escolas estão apenas servindo para reproduzir relações sociais de dominação,

como podemos pensar novas alternativas de ensino que possibilitem o

desenvolvimento de relações sociais mais democráticas, dentro e fora das escolas?

Se, de fato, em sua maioria, as escolas optam pela “importação” de modelos

educacionais bastante dissonantes das particularidades locais, como é possível dar

à comunidade escolar a oportunidade de contribuir com suas experiências culturais

1 Cidade Educadora-Educação Inclusiva: um sonho possível. Documento da proposta político-pedagógica da SME, (Secretaria Municipal de Educação) São Paulo, abril/2003. 2 Embora funcionando em prédios distintos, a escola (municipal) e a coordenação de esporte, cultura e lazer ocupavam o mesmo espaço, sendo ambos construídos na mesma área.

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individuais e coletivas, para a construção de um conhecimento mais significativo?

Se, de fato, a escola representa apenas uma, entre tantas formas de educação,

porque negar os conhecimentos produzidos neste espaço aos 44 milhões de alunos

que estudam nas redes públicas de ensino no Brasil? Se, de fato, há na ideologia e

prática das instituições escolares uma tentativa de homogeneizar, unificar e

universalizar o saber, como possibilitar a compreensão de que os espaços escolares

são também locais sociais, políticos e culturais, e por isso, locais de embates,

transformações e regulações?

Neste sentido, concordamos com Henry Giroux e Peter McLaren (1995,

p.129) quando afirmam que, “Ao invés de teorizar essas críticas para as escolas,

radicais teorizam sobre as escolas, e, por essa razão, raramente se preocupam com

a criação de novas contra-esferas públicas dentro dos espaços escolares”.

Manifesta-se então a necessidade de adentrar e melhor compreender o

território das práticas escolares, refletindo sobre o funcionamento da escola, suas

normas e condutas, com um olhar particular para suas práticas cotidianas, trazendo

à tona um debate à respeito da educação escolar, com seu conjunto de teorias,

princípios e atos, e ao poder conferido ao currículo com suas implicações políticas e

pedagógicas.

Neste viés alçamos alternativas capazes de deslocar a lógica escolar de uma

perspectiva, em sua maioria, una, linear, estática e estável, para uma concepção

onde o fenômeno do ensino e da aprendizagem possa se estabelecer com e nas

relações sociais, num movimento onde se proponham processos dialógicos cada

vez mais conectados às realidades e anseios vividos pelos educandos, e que, por

meio de reflexões cada vez mais críticas em relação às práticas homogeneizadoras

e reducionistas de ensino possamos evitar a:

(...) destruição das tradições das pessoas que historicamente foram impedidas de afirmar ou mesmo de reconquistar suas subjetividades culturais e têm na escola um locus de pasteurização dos seus saberes e de seus pertencimentos e, portanto, das referências com as quais compreendem o mundo, a vida e com isso aprendem (MACEDO, 2009, p.125).

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Surge, neste momento, a mudança de endereço. Deixo o estado de São

Paulo rumo à Bahia. Foi nesta nova atmosfera que procurei, e só mais tarde me dei

conta disso, buscar este liame entre educação e cultura nos espaços não-formais de

educação.

Aproximei-me, então, no ano de 2009, da organização não governamental

(ONG) Cufa-BA – Central Única das Favelas, base Salvador, organização esta que

desenvolve suas atividades com projetos educacionais, artísticos, culturais e

esportivos destinados a jovens em situação de vulnerabilidade social.

Seguindo uma lógica de ação que parece permear a maioria dos trabalhos

desenvolvidos por instituições e projetos educacionais não formais, as atividades

planejadas e realizadas pela ONG pautavam-se na construção de um corpo de

conhecimento que, levando em consideração uma pluralidade de saberes e

valorizando as experiências individuais e coletivas dos jovens, privilegiava temas e

conteúdos próprios do cotidiano, próprios da vida e do ser humano.

Dessa forma, distante da lógica hierárquica e altamente formalizada presente

na maioria das instituições de educação formal, percebe-se que os espaços de

educação não formal buscam nos trabalhos coletivos, nas experiências pessoais,

nas tradições culturais, enfim, nas práticas sociais seus modelos de ação

pedagógica. Isto significa, como afirma a socióloga Maria da Glória Gohn, que

nestes contextos “a educação é abordada enquanto forma de ensino/aprendizagem

adquirida ao longo da vida dos cidadãos; pela leitura, interpretação e assimilação

dos fatos, eventos e acontecimentos que os indivíduos fazem de forma isolada ou

em contato com grupos e organizações” (2008, p.98).

É bom que se diga que não pretendemos aqui traçar linhas paralelas entre a

educação formal e a educação não formal, assinalando lógicas e modelos de ação

próprios e diferenciados e conduzindo, assim, a uma suposta impossibilidade de

comunicação entre essas duas instâncias. Ao contrário, o que vislumbramos é uma

aproximação dialógica de suas práticas a favor de um aprendizado ampliado e

relacional, não limitado, portanto, por espaços ou instituições específicas.

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Concomitante com este momento, cursando como ouvinte a disciplina

Educação do Campo na Universidade Estadual de Feira de Santana, tive contato

com o projeto desenvolvido pela ONG Grãos de Luz e Griô, localizada na cidade de

Lençóis, estado da Bahia. Este projeto propõe, através do (re)conhecimento e da

valorização dos saberes e fazeres da tradição oral, promover o fortalecimento da

ancestralidade e da identidade do povo brasileiro, numa iniciativa que visa a

incorporar à esfera da educação, da política e da economia a força da cultura

popular.

O trabalho proposto por esta ONG vem realizando, na cidade Lençóis, um

processo singular de reconhecimento da cultura popular de tradição oral e de seus

mestres, promovendo, além de ações de valorização e divulgação dos saberes e

fazeres daquela população, em sua maioria afrodescendentes e moradores das

comunidades rurais, ações educacionais, num processo de ensino e aprendizagem

que ocorrem dentro e fora das escolas daquele município.

O que já estava em cena ganha agora destaque, e as manifestações da

cultura popular passam a protagonizar um verdadeiro espetáculo de produção e

socialização de saberes. Utilizando-se de um processo diferenciado de transmissão

desses saberes, onde a lógica temporal é outra, onde há uma forma particular de

coesão interna, onde existe um repertório cultural próprio que possibilita uma

capacidade singular de ressignificação e perpetuação de um universo simbólico, o

mundo da cultura popular permite aos grupos sociais autorizarem-se criadores e

recriadores em suas sociedades.

Dentre as principais ações desenvolvidas pelo Grãos de Luz e Griô, encontra-

se uma proposta de aproximação efetiva entre os saberes da cultura popular de

tradição oral e os espaços formais (institucionalizados) de educação. Numa parceria

com a Secretaria Municipal de Educação da cidade de Lençóis, vem sendo realizado

um trabalho perene de (re)conhecimento e fortalecimento da identidade e da

ancestralidade local, o qual envolve alunos, professores, gestores, comunidade e os

mestres da tradição oral. Embora enfrentando muitas dificuldades e transpondo

inúmeras barreiras, os resultados dessa iniciativa têm se mostrado bastante

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positivos, proporcionando, inclusive, em parceria com o Ministério da Cultura, a

extensão do trabalho para um programa nacional, denominado Ação Griô Nacional.

A Ação Griô Nacional, como detalharemos mais adiante, refere-se a um

programa que, junto ao Ministério da Cultura, propõe criar e instituir uma política

nacional de transmissão dos saberes populares de tradição oral em diálogo direto

com a educação formal, resultando, ainda, na criação de um projeto de lei de

iniciativa popular, a Lei Griô.

Trata-se de uma ação inovadora, pois visa, por meio da sociedade civil

organizada, a aproximar os conteúdos e práticas pedagógicas da educação pública

formal dos saberes e práticas pedagógicas da cultura popular das comunidades de

pertencimento. Trata-se também de um desafio no âmbito das políticas públicas,

pois pretende, através de marcos legais na área da educação e da cultura,

reconhecer os saberes populares como legítimos nos processos formais de

construção do conhecimento.

Assim, inspirados pelos propósitos e pela compreensão dos desdobramentos

das ações da Ação Griô Nacional, passamos a refletir sobre o entendimento de

educação enquanto terreno de produção, socialização e legitimação de experiências

humanas, sobre concepções mais críticas a respeito dos propósitos da

escolarização, trabalhando na possibilidade da quebra de hierarquia de saberes, e

sobre o potencial educacional inerente ao universo da cultura popular, sustentando a

construção desta pesquisa.

Nossas inquietações decorrem, também, da necessidade de compreender a

dificuldade em se acolher e legitimar os conhecimentos populares nos processos de

ensino e aprendizagem em espaços escolares, tendo em vista que esses saberes já

encontram-se imersos no cotidiano desses espaços, e que esse diálogo tem se

mostrado cada vez mais relevante e pertinente, especialmente quando pensamos a

educação enquanto prática social.

Neste contexto, a questão que norteia esta pesquisa é: de que maneira uma

proposta de aproximação entre os saberes populares e os saberes

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institucionalizados pode interferir nos processos de construção do conhecimento e

nas relações sociais dentro dos espaços escolares?

Dessa forma, nosso objetivo neste trabalho é perceber/explicitar, através do

acompanhamento e compreensão das ações da Ação Griô Nacional, as

contribuições e implicações que essa proposta pode acarretar para a educação

como um todo.

Como possibilidades de construção desta pesquisa, vislumbramos três tomos

de investigação que, embora didaticamente distintos, se encontram e se entrelaçam,

dando corpo a um todo relacional, sendo eles: um no plano teórico, abordando as

questões da cultura e da educação, dialogando num processo simbiótico de

construção e ressignificações sociais; outro no plano metodológico, buscando na

fenomenologia crítica a inspiração filosófica para este trabalho e utilizando os

dispositivos da observação participante como instrumento de investigação; e por fim,

um terceiro no plano empírico, onde, assumindo a pesquisa enquanto produto de

construção social, o que pretendemos é potencializar diálogos e discussões sobre

as questões da cultura e da educação nos espaços/contextos investigados.

Para promover e provocar o debate destas questões, estruturamos a

dissertação da seguinte forma:

No primeiro capítulo, buscamos teorizar e articular o conceito de cultura,

abordando as múltiplas faces desse conceito, tensionando significações sociais e

promovendo articulações que o compreendam enquanto prática educativa onde, por

meio de trocas sociais e simbólicas, se produzam e compartilhem saberes e, através

de deslocamentos identitários e intercruzamentos culturais, se reconfigurem

posições sociais. Ainda realçamos as características e subjetividades que conferem

à cultura popular a capacidade de construir e consolidar saberes, além de destacar

a forma de atuar dessas manifestações, em que, a partir de uma lógica bastante

peculiar, atribui sentido e ressignifica elementos como o rito, a memória e a

oralidade. Para finalizar o capítulo refletimos sobre o lugar e o papel da escola

nestes processos de produção do saber, problematizando suas práticas

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homogeneizadoras e sua lógica predominantemente insular, relacionando-a com

outros processos/espaços não formais de ensino e aprendizagem, e fazendo alusão

às recentes discussões sobre currículo, apontado como determinador nos processos

formativos.

O capítulo seguinte descreve as propostas, concepções e práticas

idealizadas pelo Grãos de Luz e Griô, fonte inspiradora desta dissertação. Pretende-

se também, de forma mais detalhada, rastrear a dimensão e o potencial do projeto

Ação Griô Nacional, buscando compreender o funcionamento de sua rede de ações,

a qual perpassa por múltiplas e diversas instâncias, e que traz à cena uma

aproximação entre mestres da tradição oral, espaços formais e não formais de

educação.

Com a intenção de compreender a maneira como as propostas da Ação Griô

se efetivam (ou não) nos espaços formais de educação, bem como mapear suas

possíveis contribuições nesses espaços, o terceiro capítulo destina-se à pesquisa

realizada em campo, tendo como locus a Escola Municipal Malê Debalê. Esta

instituição, numa parceria com o Ponto de Cultura Grupo de Capoeira Ginga e

Malícia (integrante da Rede Ação Griô Nacional), e com a griô-aprendiz Edméia

Nascimento, vem realizando, desde 2011, um trabalho contínuo de diálogo e

aproximação entre as concepções e práticas do projeto griô e as propostas

pedagógicas desenvolvidas na unidade escolar.

Neste contexto, procuramos dialogar com o panorama metodológico no qual

se sustenta esta pesquisa. Assim, numa abordagem qualitativa – portanto numa

relação direta com o universo da subjetividade – buscamos inspiração na

fenomenologia crítica como movimento filosófico, e nos elementos da observação

participante, as principais ferramentas para que se estabeleça de maneira densa, a

interação entre pesquisador e comunidade pesquisada.

No quarto e último capítulo aventuro-me nas (in)conclusões desta

investigação, sempre passíveis de ressignificações.

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1 CAPÍTULO 1 – CULTURA E EDUCAÇÃO RECONFIGURANDO PAPÉIS SOCIAIS: A CULTURA POPULAR COMO FORÇA EDUCATIVA

“Se a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é portadora de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura, então a cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é uma máquina cognitiva cuja práxis é cognitiva”.

Edgar Morin

1.1 Dialogando com o conceito de cultura: significações e implicações para a vida social

Da fundamentação teórica à investigação empírica que propomos neste

trabalho, tomamos como alicerce as questões culturais. Questões estas que,

progressivamente, vêm se apresentando como central nos debates sobre as

transformações pelas quais as sociedades e o mundo têm passado, e que

apresentam, tanto no campo acadêmico quanto no campo de nossas práticas

sociais, grande diversidade de definições e de usos.

O sociólogo Paulo César Alves, afirma que, “(...) o termo ‘cultura’ tem uma

longa história, sofrendo profundas transformações em seu significado no decorrer do

tempo. Em certo sentido, é uma ‘palavra mosaico’ e, talvez por isso mesmo, rica,

sedutora e contraditória” (2010, p.15). Arriscamos dizer que se trata de uma “palavra

caleidoscópio”, uma vez que, diante de seu caráter movediço e de sua capacidade

de recriar, para cada movimento (tempo, contexto) configuram-se sentidos e fins

diversos.

Ao trazermos o conceito de cultura para este campo de pesquisa, não

pretendemos nos debruçar sobre o significado de cultura, mas sim sobre o que a

cultura significa para a vida social. Dessa forma, procuramos nos distanciar das

abordagens que limitam a compreensão do termo a costumes, práticas, ou produtos

materiais, e nos aproximamos das discussões que abordam a cultura enquanto

terreno e instrumento para se criar novas formas de relações sociais, políticas,

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éticas, e, consequentemente, de poder. Como nos apresenta Homi Bhabha, a

cultura como enunciação: “um processo mais dialógico que tenta rastrear

deslocamentos e realinhamentos que são resultado de antagonismo e articulações

culturais” (1998, p.248).

Nesse sentido, entendemos a cultura enquanto espaços vivos de

experiências sociais, integrante das ações humanas, que produz saberes

alicerçados pelas trocas sociais e simbólicas presentes nas diversas formas de

significar a vida, e por isso, constituinte de um campo social onde se estabelecem

lutas e negociações que possibilitam, através de deslocamentos e ressignificações

sociais e movimentações identitárias, mutação de poder, instigando sua força

educativa.

Telmo Caria (2008), ao tratar das imbricadas relações entre as práticas e

interações sociais e as formas identitárias relacionadas a essas interações, propõe

um quadro de configurações onde distingue várias epistemologias da cultura. O

autor nos apresenta:

a) A epistemologia da cultura-informação. Nesta concepção, que o autor

considera exterior à prática, o conceito de cultura não é pensado como uma prática

social, mas sim como patrimônio transmissível, adquirido e acumulado, ou entende-

a como “algo relativo a um campo especializado de ação, qualificando-a ou

conotando-a com a posse de recursos especializados nos campos da arte, da

ciência, etc.” (p.752). Esta epistemologia, ainda bastante difundida, toma a cultura

como um recurso propagado e legitimado pela sociedade.

Semelhante ao que Carlos Rodrigues Brandão nos traz como cultura de

fruição, ou seja, “aquela que socialmente e simbolicamente existe como arte,

antiguidade e artesanato” (1989, p.71), esta abordagem refere-se, exclusivamente, à

cultura enquanto herança transmitida ao longo dos tempos, através de gerações e

imbuída de sentido de valor.

Demonstra-se, então, uma noção bastante estabilizante, trazendo a ideia de

que a cultura está em uma esfera exclusiva da sociedade, ou em produtos materiais

23

específicos. Compreendemos que a cultura não ocupa um único espaço, ou uma

única dimensão social: ela coabita todos os planos da sociedade, intervindo nas

relações que os indivíduos estabelecem com eles mesmos, com os outros e com os

grupos.

Outra questão que permeia essa visão epistemológica da cultura-informação

diz respeito à atribuição do sentido de valor que é conferido à cultura. Quando

tratada enquanto “(...) posse de recursos especializados nos campos da arte,

ciência, etc.” parece instalar-se um processo de classificação, algumas vezes

velado, e onde o modelo confunde-se com a maneira ocidental e capitalista de

pensar e de viver, que atribui maior competência, importância e/ou relevância a

determinadas manifestações culturais em detrimentos de outras, no geral as não

eruditas e não letradas.

Contrapondo-se a essa visão, Bhabha afirma que é preciso “lidar com a

cultura como produção irregular e incompleta de sentido de valor, frequentemente

composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da

sobrevivência social” (1998, p.240)

b) Epistemologia da cultura praticista. Bastante influenciada pelo conceito da

teoria do habitus3 trazido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, esta

conceitualização desenvolve um modo de pensar sobre a cultura onde ela é

principalmente, senão exclusivamente, tida como “uma prática social determinada

por condições e posições sociais” (CARIA, 2008, p.753). Ou seja, entendida como

exterior às interações sociais, a cultura é vista como uma representação das

práticas inseridas na vivência cotidiana de uma localidade e, por isso, inconsciente.

Apresenta-se como uma representação social resultante de esquemas práticos.

3 O conceito de habitus é concebido como “um sistema de esquemas individuais, socialmente construídos de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano” (Setton, 2002, p.63).

24

Na contramão desta ideia, Muniz Sodré (1988), afirma que a cultura não pode

ser vista como metáfora de movimento inconsciente, uma vez que ela não

representa uma mera restauração dos modos de representações.

Essa perspectiva estanque da epistemologia praticista impossibilita o

entendimento de cultura como arena de tensões e negociações, como campo social

onde se provocam e se promovem mudanças nas relações sociais e de poder, uma

vez que elas somente são possíveis graças a uma movimentação constante das

condições e das identidades dos indivíduos, reconfigurando posições sociais. Assim,

entender a cultura como mera reprodução ou restauração de esquemas práticos

significa compartimentá-la, fragmentá-la, percebê-la de forma insular e

incomunicável, impossibilitando ou não admitindo seus entrelaçamentos.

É no panorama desses entrelaçamentos culturais, desta fluidez marcada

pelos contínuos deslocamentos dos sujeitos que percebemos emergir as tensões

entre o instituído e o instituinte, e se formar o acervo para que cada ator cultural

(re)signifique sua posição social, em todas as esferas da vida. Ou como afirma Hall

(2009b), são esses movimentos “que transformam o campo da cultura em uma

espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas,

mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas”

(p.239).

Na complexidade desses fenômenos, Bhabha (1998) traz a ideia de cultura

de fronteiras, praticada nos interstícios das fronteiras culturais, num processo

permanente de intercruzamento e negociações com outras culturas, e que possibilita

a constituição de sujeitos híbridos, ao mesmo tempo semelhantes e opostos. O

autor propõe então o “local da cultura” sendo este “entre-lugar” deslizante e múltiplo,

resultado do encontro de diferentes sistemas culturais e que possibilitam, através de

deslocamentos, novas configurações, desestabilizando as ordens hegemônicas.

Nessa mesma vertente, Canclini (2006) também observa a cena cultural

contemporânea num cenário híbrido, de onde emergem ambivalências e

negociações. O autor entende por hibridação “processos socioculturais nos quais

25

estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para

gerar novas estruturas, objetos e práticas” (p. XIX).

Dessa forma, na hibridação cultural, a intersecção entre as culturas e as

ressignificações praticadas nos lugares de cruzamento e de fusão desse processo

possibilitam o surgimento de novas práticas culturais, que permitem novas

configurações sociais, e promovem a infiltração de saberes previamente negados

nas práticas e discurso dominantes, desequilibrando as estabilidades hegemônicas.

É nesse sentido que travamos nosso diálogo com a cultura e a entendemos

enquanto movimento político e de educação. Questionando como são produzidas e

legitimadas as relações de poder, buscamos, nas novas possibilidades de

configurações sociais promovidas pelas simbioses culturais, refletir com os sujeitos

formas mais críticas de entendimento de quem eles são, dentro de uma formação

social mais ampla. Como reforça Giroux (2000, p.70).

A força educativa da cultura está atenta às representações e aos discursos éticos como condição necessária para a aprendizagem, a diligência e o funcionamento das práticas sociais e políticas em si. Como força pedagógica, a cultura está saturada com a política e oferece (em seu sentido mais amplo) o contexto e o conteúdo para negociação do conhecimento e das habilidades que facilitam uma leitura crítica do mundo a partir de uma postura de sujeitos e possibilidades no marco de relações desiguais do poder.

c) Epistemologia da cultura-constrangimento. Diferente das concepções

anteriores, nesta abordagem leva-se em consideração a relação existente entre

práticas e interações/significações sociais. Desse modo, admite-se a ideia do

“...constrangimento social da cultura sobre a prática social, que se exprimiria na

interdependência entre prática e identidade social e que teria como consequência a

interiorização individualizada de uma norma, sistema ou estrutura simbólica (...)”

(CARIA, 2008, p.755).

Assim, a epistemologia da cultura-constrangimento pressupõe a existência de

uma ordem simbólica hegemônica a partir da qual despontam práticas e estruturas

diversas, o que sugere um caráter bastante normativo, e a cultura passa a ser

26

compreendida como um conjunto de regras e valores que, uma vez interiorizadas

pelos indivíduos, definem sua identidade, posição e conduta social.

Esta noção ultrapassada de que as identidades e papéis sociais são pré-

determinados e estabelecidos pelo “lugar” que os sujeitos ocupam no mundo ainda

encontra-se bastante presente nas ideologias que orientam a racionalidade

moderna. Neste sentido, as possibilidades de deslocamentos sociais e de novas

configurações nas relações de poder, desencadeados principalmente pelos

intercruzamentos culturais, são ignorados, e mantém-se uma lógica de transmissão

(não problematizada) de conhecimentos e valores já legitimados, garantindo, assim,

a reprodução das estruturas sociais existentes. Papel, com frequência,

desempenhado pelos espaços escolares.

Distanciando-se dessa visão fatalista e determinante sobre o “destino” das

pessoas, Stuart Hall (2009a) defende que vem se configurando uma absoluta

desconstrução das perspectivas onde as identidades e papéis sociais são

entendidos como originários, fixos ou únicos. As novas e outras possibilidades que

brotam dos movimentos e intercruzamentos culturais interferem e abalam os

processos de instauração da hegemonia, relativizando um paradigma vertical,

binário (subalterno/hegemônico, erudito/popular, tradicional/moderno) e restrito de

mundo, que tanto baliza as lógicas das relações sociais, culturais, políticas e,

consequentemente, de poder na modernidade.

Segundo Canclini (2006, p.309), não é mais possível, com as hibridações

culturais, “vincular rigidamente as classes sociais e as identidades, aos estratos

culturais”. Dessa forma, não é mais possível reduzir o popular aos objetos e

símbolos produzidos em certas comunidades (etnias, localidades, ou classes

sociais), nem mesmo fixar o erudito ao reconhecimento dos grandes clássicos. Os

artesãos tornam-se artistas e os artistas concebem suas obras arraigadas nas

experiências cotidianas dos “setores populares”. O tradicional reinventa-se na

modernidade, e o moderno se ergue alicerçado pelas tradições. Enfim, cruzam-se

fronteiras, permite-se o trânsito entre territórios simbólicos, papéis sociais e

27

diferentes identidades, possibilitando aos sujeitos assumirem essas outras

identidades e posicionamentos sociais, renovando e remodelando hierarquias.

Neste mesmo viés, Pedro Demo afirma que “o ser humano não tem uma

identidade estática (...), mas móvel, dinâmica, em parte contraditória, em parte

lógica, na qual permanecer é necessariamente também mudar” (2011, p.XVIII).

Assim, renunciando ao papel de “condição sem alternativa” e assumindo a condição

de algo capaz de transitar por diferentes territórios, as identidades já não se fixam

mais, exclusivamente, em torno de um eu coerente. Elas se formam, se desfazem e

se refazem em zonas de confrontos e negociações. “Mesmo as identidades

aparentemente mais sólidas como a de mulher, homem, país africano, país latino-

americano ou europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia e

choques de temporalidade(...)”, em ininterruptos processos de transformação

(SANTOS,1993, p.31).

Compreendemos, portanto, que as construções e mutações identitárias não

são harmoniosas nem lineares, são momentos/espaços de tensão, conflitos e

embates que fazem emergir novos panoramas sociais. Assim, buscamos num

diálogo com Bauman, Hall e Silva, uma discussão mais ampliada sobre as questões

da identidade.

1.2 As mobilidades identitárias como possibilidade de reconfigurações sociais

Com frequência, o conceito de identidade vem envolto pela noção de

pertencimento ou não a um determinado grupo identitário, definido biológica,

histórica ou socialmente, e que prevê uma condição fixa e imutável ao termo.

Entretanto, o confronto com as atuais fragilidades das estruturas e instituições

sociais, com as incertezas e inseguranças do complexo e globalizado mundo

moderno, fizeram emergir uma nova conceitualização da identidade. Ou, como

afirma Bauman, “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das

seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis,

simplesmente não funcionam”. (2005, p.33).

28

Para Bauman, as rotinas anteriormente estáveis, a fixação dos papéis sociais

e a rigidez da divisão social do trabalho garantiam que o papel de cada pessoa

fosse “evidente demais para ser avaliado, que dirá negociado”, assim, sua forma de

estar no mundo delimitava sua identidade. Porém, diante da velocidade com que o

mundo passa a se mover, da volatilidade com que passam a se estruturar as

relações sociais e de trabalho nas sociedades modernas, a “identidade perde as

âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável...”

(2005, p.30).

É neste contexto que, para o autor, as questões da identidade vão sofrendo

um contínuo processo de transformação, que migra do perene para o efêmero,

caracterizado por uma “liquefação das estruturas e instituições sócias” (Ibid, p.57).

Nesta configuração fluida as identidades passam a ser móveis e mutáveis, resultado

de negociações, experimentações e escolhas infindáveis, o que para Bauman,

apesar de facilitar os rompimentos e as transições, acaba por provir uma

obrigatoriedade de movimento e velocidade constantes e, muitas vezes, exaustivos.

Hall (2009a) contribui com as discussões através da perspectiva do

deslocamento ou descentramento do sujeito, apontando para a possibilidade da

configuração de novas identidades a partir do encontro com outras culturas, num

intercruzamento que não represente nem a apropriação pura e simples nem a perda

absoluta das identidades, mas sim o resultado de uma simbiose entre culturas.

O conceito de identidade admitido pelo autor foge de uma visão essencialista

e aproxima-se de um conceito “estratégico e posicional”, isto é:

(...) de forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira semântica oficial, esta concepção de identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história (HALL, 2009a, p.108).

Para Hall (2009a), “na modernidade tardia” as identidades não são nunca

singulares, unificadas, mas sim fragmentadas, construídas a partir de práticas,

estratégias e discursos que podem ser contrapostos ou não, sujeitando-as a um

29

processo constante de mudanças e transformações, e possibilitando, dessa

maneira, a constituição de novas identidades.

Tomaz Tadeu da Silva (2009), em seu texto “A produção social da identidade

e da diferença”, traz uma abordagem onde as questões de identidade aparecem

numa relação de interdependência com o conceito de diferença. Dessa forma, a

definição (presunção) daquilo que somos (e tomamos como norma) serve de

referência para designar aquilo que não somos, numa relação direta com as

maneiras pelas quais a sociedade cria e se utiliza da classificação.

Neste sentido, o autor defende que, “a identidade, tal como a diferença, é

uma relação social. Isso significa que sua definição (...) está sujeita a vetores de

força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas.

(...) elas são disputas”(81). Assim, eleger e fixar uma certa identidade como norma

(ou normal) é uma maneira sutil de manifestação de poder, de hierarquização das

identidades e dos papéis sociais.

O autor defende também que, ao desestabilizar a fixação da identidade

através das noções de deslocamento, mobilidade, cruzamento de fronteira e

miscigenação, desestabiliza-se também as relações de poder, uma vez que, “a

identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma

das identidades originais, embora guarde traços delas” (2009, p.87).

Vale ressaltar que não se trata da renúncia, do abandono, ou do não

fortalecimento das identidades, mas sim, de erguer-se possibilidades de escolhas,

de mobilidades, em especial para aquelas “pessoas que têm negado o direito de

reivindicar (grifo do autor) uma identidade distinta da classificação atribuída e

imposta” (BAUMAN, 2005, p.44).

Vimos, nesses complexos processos de hibridação cultural e mobilidades

identitárias, estabelecer-se um estratégico e poderoso campo de possibilidades,

onde a cultura atua num trabalho de ruptura dos modelos sociais dominantes,

buscando, através da diluição das verdades absolutas e de paradigmas

30

estabilizadores, sugerir novas formas de relações sociais, sendo protagonizados por

outros e novos atores.

Tal abordagem delineia o terreno que alicerça este trabalho de pesquisa, na

medida em que esses processos de embates, negociações e redefinições de

disposições sociais e de poder configuram-se processos educativos, que ocorrem

dentro e fora das escolas. Dessa forma, investigar a cultura popular para dentro dos

muros da escola, é buscar compreender de que maneira, por meio desses

deslocamentos culturais e identitários, construções e convicções sociais “estranhas”

à ordem hegemônica produzem, compartilham e ressignificam saberes em espaços

de confronto entre posições de poderes desiguais, onde esses saberes são quase

sempre ignorados e quase nunca legitimados, no nosso caso, as escolas.

Propomos, assim, edificar novas possibilidades éticas e estéticas para o

campo das práticas escolares, apresentando outros caminhos para a construção do

saber que não os construídos em modelos únicos e verdades absolutas, mas

mergulhados nas mais diversas áreas de produção de conhecimento.

Trata-se de romper o isolamento institucional da escola e criar novas

perspectivas no campo pedagógico, trazendo à cena outras histórias, vivências e

novos protagonistas a partir do diálogo com diferentes espaços/momentos de

produção de saberes, e da abertura para a aproximação e legitimação de outros

conhecimentos, que não os institucionalizados. Trata-se de permitir à escola

relacionar-se com metodologias que “troquem o palco pelo centro da roda, substitua

as palestras por encontros temáticos, no lugar da plenária entre os círculos de

cultura, e no lugar do enfoque puramente teórico, as vivências”. Um movimento que

contribua para uma aprendizagem mais crítica, criativa, afetiva e efetiva. (Nação

Griô, 2008, p.32). Enfim, trata-se de pensar a educação como ato de conhecimento

e transformação.

Assim, trazemos para a discussão o universo da cultura popular,

compreendendo suas manifestações enquanto terreno privilegiado de construção e

socialização do conhecimento, configurando processos educacionais que

31

transcendem os muros da instituição e que, atuando numa lógica temporal, espacial

e de regras diferenciadas, invadem o cotidiano. Compreendemos também essas

manifestações da cultura popular enquanto movimentos de transgressão,

contestação e resistência de uma ordem dominante homogeneizadora e excludente,

efetivados não pelo confronto, mas de maneira opaca e sublime, nas entrelinhas dos

processos sociais.

1.3 Elementos e nuances da cultura popular: construindo um mundo de aprendências

Embora já bastante confrontado o binarismo cultura erudita/cultura popular,

muitos estudos ainda trazem, de maneira hierárquica, essa dualidade. Em sua

crítica, Brandão argumenta que é justamente:

(...) a tradição erudita, acadêmica e intelectualmente elitista, própria das classes e dos sujeitos não-subalternos, não-marginais, não-etnicamente desvalorizados, que detêm o poder legítimo de definir e aplicar critérios de qualificação social e cultural (1995, p.108).

Nessa mesma disposição hierárquica que, com frequência, se confere à

cultura erudita uma maior elaboração, complexidade e valor, enquanto a cultura

popular corresponde basicamente às manifestações e fazeres dos homens simples,

iletrados, rústicos, suburbanos, e que, justamente pela sua suposta simplicidade,

insignificância ou inexpressividade não agrega valor, é no máximo, exótico. Ou,

como afirma Certeau, “estamos ainda muito longe da divisão condescendente entre

uma cultura letrada a ser difundida e uma cultura popular a ser comentada de um

pouco mais de cima” (1995, p.10).

É no sentido mesmo desta ambivalência que evocamos aqui as

particularidades e a relevância das manifestações da cultura popular para o universo

das relações humanas, conferindo destaque à sua capacidade de ressignificação no

entrelaçar do novo ao tradicional, à sua perspicácia criativa e renovadora, e à

sagacidade de interpretar os anseios coletivos, em especial das classes sociais a

que originalmente se referem, e de que são expressão e obra.

32

Darcy Ribeiro, ao tratar da gestação do Brasil em seu livro “O povo brasileiro:

a formação e o sentido do Brasil”, já faz menção às particularidades em que se

inscrevem os saberes e fazeres da cultura popular. Diz o autor:

[Na nossa história] faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não saber popular alcança, contrastantemente, altitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nova versão do mundo e de nós mesmo? (2006, p.15)

Num breve recorte temporal, Edilene Dias Matos (2010) nos traz que foi na

virada do século XVIII para o XIX que o interesse pelos saberes e fazeres populares

ganha destaque. Para a autora, durante o século XVIII,

(...) a matriz analítico-reflexiva (...) era a da racionalidade e universalidade, contrapondo-se de saída, à cultura popular, cujas práticas eram consideradas como descompromissadas com qualquer tipo de rigor e fundamento racional (p.79).

Segundo Pedro Abib (2005), no Brasil as produções teóricas acerca das

manifestações da cultura popular alcançaram seu topo durante a década de 60, num

movimento que contou com a participação de múltiplos setores da sociedade.

Dentre as características que marcaram o período, a visão romântica da cultura

popular se destaca. Esta visão associa o popular a um estado puro, natural,

verdadeiro e ingênuo, ainda não impregnado pelos ditames da cultura dominante.

A esse respeito, Marilena Chauí coloca que:

A perspectiva Romântica supõe a autonomia da Cultura Popular, a ideia de que, para além da cultura ilustrada dominante, existiria uma outra cultura, ‘autêntica’, sem contaminação e sem contato com a cultura oficial e suscetível de ser resgatada por um Estado novo e por uma nação nova (1996, p.23).

Nesta perspectiva, porém, assumindo o compromisso de edificar uma

consciência nacional autêntica e lúcida, os intelectuais da época se apresentam

como legítimos representantes do povo, responsáveis então por fazer chegar a esse

povo, vistos por eles como inculto, alienado e ingênuo, uma consciência engajada.

33

Almejavam, dessa forma, alcançar a desalienação nacional e a construção de uma

nova nação, de um Estado autenticamente popular.

A postura, então, era enunciar ao povo a maneira de pensar, de ser e agir, a

partir da arte e da cultura, “mas uma arte e uma cultura pensada e elaborada

apenas por essa vanguarda intelectual, que teria a tarefa de organizar e

‘conscientizar’ o povo com o objetivo de (...) criar um ‘verdadeiro Estado nacional’

porque ‘Estado popular” (ABIB, 2005, p.51).

Seguindo na crítica a essa postura, Chauí (1996) observa que, dessa forma,

os intelectuais vanguardistas dessa década se colocam no direito de definir

condições e identidades, conferindo posições a si mesmo e ao “povo”. Promovem,

com isso, uma segregação da cultura em três instâncias distintas: a da classe que

aliena, ou seja, a da classe hegemônica; a do povo, portanto inculta, ingênua, e

atrasada; e, a da classe popular e revolucionária, representada pelos artistas e

intelectuais da época que “optaram por ser povo”.

Já nas décadas de 70 e 80, o Brasil passa por um período de luta política

pela redemocratização do país. Nesse panorama as transformações que

atravessam a sociedade brasileira promovem o surgimento de um grande número

de movimentos sociais ligados diretamente à luta por direitos sociais e políticos, tais

como o movimento dos trabalhadores sem terra (MST) cujo objetivo é a implantação

da reforma agrária no país, os movimentos sindicais que lutavam pelas causas

operárias, os movimentos estudantis, entre outros. Segundo Abib (2005) esses

movimentos vão buscar nos saberes e fazeres do universo da cultura popular

substratos para suas práticas.

(...) é o aprendizado cultural, desenvolvido em comunidade, sendo utilizado de forma mais sistematizada (...) sem contudo, se distanciar do ethos que determina essa coesão social em torno das reivindicações que originam tais movimentos” (p 54).

Este momento vem acompanhado por um grande crescimento do capitalismo,

modificando, de forma intensa, as relações políticas, sociais e econômicas. Nos

termos culturais esse contexto viabiliza o surgimento de uma indústria cultural que,

34

como coloca Abib (2005), em nome da cultura nacional promoveu uma massificação

e homogeneização das produções culturais, estabelecendo normas e padrões de

consumo, o que, paulatinamente, “neutralizava e desmobilizava o potencial crítico da

cultura popular” (p.57).

Neste mesmo sentido, Brandão (1995, p.152) reforça que,

(...) em uma sociedade desigual onde em boa medida o trabalho do poder é dirigido à reprodução de estruturas sociais de expropriação, submissão e controle de grupos sociais em benefícios de outros, a ação política do poder dirige-se também ao controle da cultura (...), a produção e difusão de valores, ideias e mensagens do interesse das classes dominantes.

Dessa maneira, viabilizadas pelas próprias políticas de Estado que, segundo

Ventura, (2010, p.126), permitiam “às instituições da indústria de massa se

apropriarem do universo simbólico das populações periféricas, e de outros

segmentos socioculturais populares...”, integrar, homogeneizar e uniformizar as

manifestações da cultura popular no país foram as estratégias utilizadas pelo poder

hegemônico para controlar, enfraquecer e manipular a veracidade e criticidade

inerentes a essas manifestações.

Neste contexto, como afirma Abib (2005), se por um lado os movimentos

sociais se valem das experiências e vivências do universo da cultura popular para

edificar suas práticas e reivindicações, por outro, a indústria cultural, se apropriando

dessa cultura popular, elabora meios de transformá-la em simples entretenimento,

em produtos de fácil consumo.

Ao nosso ver, atualmente, torna-se necessária uma análise mais atenta ao se

tratar dos modos de produção e consumo cultural que permeiam as complexas

sociedades contemporâneas, problematizando a visão simplista de imposições de

produtos e hábitos massificadores aos passivos consumidores, afinal, nem tudo que

é disposto ou imposto é absolutamente absorvido. Como afirma Certeau:

(...) no consumo de bens culturais e materiais, existe sempre apropriações e ressignificações imprevisíveis, incontroláveis, modificadoras de pretensões previstas na origem, no planejamento, na idealização das coisas (2011, p.92).

35

Trata-se, então, de compreender as inúmeras maneiras pelas quais os

consumidores (homens comuns), através de procedimentos cotidianos e quase

invisíveis, se (re)apropriam e fazem uso dos produtos impostos, num movimento

sutil de desvio dos mecanismos dominantes.

Seguindo nessas discussões, Chauí (1996) nega a ideia simplista e

dicotômica diante do popular, que o classifica e o reduz a autônomo ou manipulado,

engajado ou alienado, atrasado ou autêntico, enfim, em ser isto ou aquilo. A autora

traz a ideia da ambiguidade como categoria constitutiva do processo cultural,

argumentando que, “talvez seja interessante considerá-lo ambíguo, tecido de

ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de

conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar” (p.124).

Abib (2005) defende que, para uma discussão mais atual sobre a cultura

popular é preciso, de início, deixar de lado a visão essencialista que antes a

caracterizava e encarar as novas dinâmicas de construções e relações sociais da

modernidade. Conforme já assinalamos, nas sociedades modernas, os

deslocamentos e intercruzamentos culturais fazem brotar formas híbridas de

culturas e identidades. Bhabha acrescenta que, “nas margens deslizantes do

deslocamento cultural se torna confuso qualquer sentido profundo ou ‘autêntico’ de

cultura ‘nacional’ ou de intelectual ‘orgânico” (1998, p.46).

É preciso, então, ultrapassar a visão ilusória de uma cultura popular pura e

uniforme, e considerar as relações fluidas que as manifestações tradicionais vêm

travando com a modernidade, transitando por diferentes culturas e rearticulando

conhecimentos, numa interação crescente com a comunicação, a tecnologia e a

economia, sobrevivendo num novo sistema social, num processo que, segundo

Demo, impõe grandes desafios, pois “...tenta combinar duas forças por vezes

violentas: de um lado, a defesa sempre necessária das identidades culturais, e, de

outro, a necessidade de mudar para permanecer a mesma” (2011, p.XIX). Trata-se,

então, de compreender como essas manifestações estão interagindo e se

transformando com as forças da modernidade.

36

Neste panorama, Edson Farias (1997) coloca que:

(...) os elementos de circulação e fluxos informativos-comunicacionais redefinem na base a categoria mesma de cultura popular, fazendo-a interagir num contexto espesso dos relacionamentos sociais globalizados e transculturais. Isso não significa a eliminação dos arranjos populares-nacionais, mesmo porque os Estados-Nações constituem ainda agentes decisivos na cena mundial. Conquanto percebemos que as transformações no conceito, dão margem a introduzir no debate outras armadilhas identitárias não redutíveis à matriz romântica que circunscreve a cultura popular no lugar pátrio originário, e tampouco aos níveis distintamente estanques de organização de cultura, mas desloca-se cada vez mais para as apropriações e aos usos e às modalidades de hibridismo que tomam contornos (apud ABIB, 2005, p.59).

É neste cenário de intercruzamentos culturais e reconfigurações identitárias

que as manifestações da cultura popular, algumas aparentemente desaparecidas,

ressurgem e se ressignificam, num processo de revitalização de suas práticas que,

embora cada vez mais conectado às demandas da modernidade, recuperam e

preservam suas tradições.

Dessa forma, para Abib, o conceito de cultura popular vem adquirindo “novos

significados a partir do processo de revitalização de tradições culturais de grupos

que portam marcas sociais e culturais diversas, que os diferenciam no contexto

social” (2005, p.81). Compreendendo essas tradições não como algo estanque, que

ficou para trás, mas sim como algo que se vincula também ao presente e ao futuro,

num contínuo perseverante, porém remodelado e reinventado a cada geração.

Como afirma Hall (2009b), “a tradição é um elemento vital da cultura, mas ela

tem pouco a ver com a mera persistência de velhas formas. Está muito mais

relacionada às formas de associação e articulação dos elementos”(p.243).

Abib nos traz também, referências a elementos de uma lógica diferenciada

que regem as manifestações da cultura popular, onde a memória, a oralidade e a

ritualidade configuram-se como elementos fundamentais, e permeiam uma das

características mais marcantes deste universo: “... as formas de transmissão de seu

37

passado – que carrega a mitologia ancestral e os saberes tradicionais do

grupo...”(p.89).

Nesta perspectiva, a memória não se traduz apenas como uma recordação,

que deva ser evocada solitária e isoladamente, mas sim como uma reconstrução

afetiva do passado, tocada pela circunstância, realizada coletivamente através da

comunicação e do compartilhamento com toda experiência social do grupo e que,

assim, vai ganhando concretude. Ou, como sugere Bosi (1994),

(...) um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugida. O sentimento também precisa acompanhá-la para que não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (p.81).

Para Bosi, ainda, “a memória das sociedades antigas apoiava-se na

estabilidade e na confiança em que os seres da nossa convivência não se

perderiam, não se afastariam”. (p.447). Apoiava-se numa práxis coletiva onde,

vizinhanças de longas datas, famílias extensas, festejos locais, dentre outros,

serviam como alicerce sob o qual a memória se constituiria.

Neste sentido, a memória deve ser compreendida como um fenômeno

construído coletivamente, onde a perspectiva individual não é abandonada mas está

enraizada em outros contextos. Para Maurice Halbwachs (2004), é a partir da

convivência nos grupos que as lembranças podem ser reconstruídas ou até mesmo

simuladas, portanto, as memórias são sempre constituídas no interior de um grupo

social, são eles que determinam e elegem o que é memorável. Assim, para o autor,

a memória individual também não existe solitária, ela incorpora, frequentemente,

referências externas ao próprio sujeito, ela é “um ponto de vista sobre a memória

coletiva” (p.55).

Para o universo da cultura popular podemos compreender a memória como

um autêntico canal de expressão das tradições culturais, de transmissão da

memória coletiva, e de registros de experiências de vida dos indivíduos com seus

grupos sociais, que se manifesta, essencialmente, por meio da oralidade, da arte de

contar e ouvir histórias. Para Amadou Hampaté Bâ, “nas sociedade, orais não

38

apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o

homem e a palavra é mais forte” (2010, p.168).

Ainda para este autor,

(...) lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido com ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra (168).

Compreendemos, então, a oralidade como elemento central das

manifestações e expressões do universo da cultura popular. Seja no âmbito das

músicas, dos cantos ou dos contos, a oralidade, arraigada a sábias intuições e

encharcada de conhecimento empírico, constitui a principal ferramenta de

transmissão do conhecimento sobre a natureza, a religião, os valores, enfim, sobre

os saberes ancestrais de um povo. Segundo Jan Vansina (2010, p.139-140)

(...) uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerados no que poderíamos chamar elocuções-chaves, isto é, tradição oral.

Ainda com relação ao saber oral, completamos com as palavras de Raul

Iturra (1990, apud ABIB, 2005):

(...) o saber oral, ao ficar consignado a gestos, palavras e interpretações de instrumentos e natureza, é um saber não só personalizado, como emotivo: a autoridade da palavra provém do convencimento de quem faz. Sabe, porque consegue fazer (p.97).

Entretanto, em especial nas sociedades modernas ocidentais, onde a escrita

ainda constitui o principal veículo de herança e transmissão cultural, preserva-se a

ideia da superioridade da escrita sobre a oralidade, da superioridade dos “povos da

escrita” sobre os “povos ágrafos”. Como coloca Lisa Castilho (2008, p. 58):

(...) a ausência da escrita foi pensada como uma das características identificantes que separavam os chamados ‘primitivos’, que a antropologia adotou como seu objeto, dos “civilizados”, objeto natural das outras ciências humanas.

Ferdinand Saussure, importante linguista, aponta quão equivocada é essa

hierarquização que o ocidente estabelece em torno da escrita ao afirmar que:

39

língua falada e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro, (...) Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal (1970, p.34).

Dessa forma, a palavra falada, elemento importantíssimo nos processos de

transmissão dos saberes e das tradições através das gerações, em especial para o

universo da cultura popular, representa o principal veículo através do qual os mais

velhos repartem com os mais novos conhecimentos acumulados sobre inúmeros

fatores – religiosos, míticos, naturais, sociais – que redefinem e ressignificam

práticas. Portanto, “a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência

de habilidade” (VANSINA, 2010, p.140).

Segundo Abib, um outro elemento imerso nesta lógica diferenciada que rege

as manifestações da cultura popular, em especial no que tange à transmissão do

passado, é a ritualidade. O autor coloca que:

A função do ritual, presente na maioria das manifestações tradicionais da cultura popular, é de suma importância, pois motiva os sujeitos a se debruçarem sobre o passado em busca dos marcos temporais ou espaciais, que se constituem nas referências reais da lembrança. É o ritual que permite essa transposição do aqui e do agora para tempos imemoriais, para locais sagrados, onde tudo se originou (2005, p.99).

Nesta perspectiva, Mircea Elíade (1992), afirma que seja qual for o tipo de

ritual, ele se dá com referências às crenças e aos seres míticos, “ele se desenvolve

não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do

espaço profano), mas também num tempo sagrado”. Para o autor, “a hora de

qualquer ritual coincide com o momento mítico do princípio. O momento concreto é

projetado para um tempo mítico” (p.28-29).

Assim, o ritual projeta para épocas remotas, transpõe o tempo real para um

tempo mítico do início, repetindo e reatualizando gestos sagrados e divinos,

possibilitando que “enquanto pratica o ritual o autor abandone o mundo profano dos

mortais e introduza-se no mundo divino dos imortais” (ELÍADE, 1992, p.37).

Neste contexto podemos evidenciar a importância das relações interpessoais

para este universo que, através das atividades coletivas, das construções e trocas

40

simbolicamente afetiva entre as pessoas, enfim, através do cotidiano da convivência

humana constroem e consolidam saberes.

Esta aproximação com os processos históricos e sociais pelos quais as

manifestações da cultura popular transitaram ao longo dos tempos, e por onde o seu

conceito foi sendo formado e transformado, nos revela um mundo de aprendizado

social, de onde brotam mecanismos intrínsecos de aprendizagens que produzem e

compartilham saberes, utilizados para as questões da vida.

A capoeira na sua ritualidade, musicalidade e no “aprender fazendo” de seus

movimentos; as rodas de samba compartilhando códigos, experiências, prazeres e

afeições; os reisados, os congados, evocando em suas celebrações a tradição, a

memória e a ancestralidade; entre tantas outras aprendências e manifestações da

cultura popular, configuram-se processos educacionais ímpares. Processos estes

que atuam numa lógica diferenciada, onde o ensinar e o aprender obedecem a um

outro tempo e ritmo da informação, em que passado e futuro se encontram num

presente pleno de aprendizagem; onde o arranjo da roda conflui para a valorização

do encontro, promovendo a convivência e o diálogo entre as idades e os diferentes

lugares sociais; e onde os mestres, sábios na (re)criação de rituais de vínculo e

aprendizagem, ensinam, impregnando o conhecimento de sentido.

Compreendemos, assim, o universo da cultura popular enquanto locus

primordial na produção e socialização de saberes, alicerçado pelas vivências

individuais e coletivas, e conduzido por práticas lúdicas, prazerosas, de contato com

o outro, bem como terreno potencial de negociações e ressignificações nas relações

sociais e de poder.

É neste sentido que apostamos numa aproximação das manifestações da

cultura popular com a escola, local, historicamente, de reprodução de

desigualdades, buscando na sua força política e educativa diluir “ideologias latentes

que operam para construir subjetividades compatíveis com a lógica da sociedade

dominante” (GIROUX e McLAREN, 1995, p.140).

41

1.4 E a escola com isso?

Entendemos que a educação não está circunscrita por métodos, instituições

ou estabelecimentos específicos, ela está por toda a parte. Nas relações

interpessoais, nas atividades coletivas, enfim, no convívio humano, num processo

que faz circular saberes por espaços e tempos diversos, de formas variadas e

muitas vezes imprevistas. Neste sentido, de acordo com Jaume Trilla (2008), a

educação:

(...) é um processo holístico e sinérgico; um processo cuja resultante não é a simples acumulação ou soma das diferentes experiências educacionais vividas pelo sujeito, e sim uma combinação muito mais complexa, em que todas essas experiências interagem entre si (p.45).

Assim, quando decidimos trazer a escola para nosso campo de investigação

foi por entendermos que os espaços escolares são também espaços sociais vivos,

onde os intercruzamentos culturais e os deslocamentos identitários acontecem

diariamente entre seus atores, nos pátios, no recreio, no portão de entrada e nas

salas de aula, produzindo e compartilhando conhecimentos e edificando um campo

de embate em torno das relações sociais e de poder.

Problemas como evasão, desinteresse, baixos índices de aprendizagem,

dentre outros, aparecem com frequência nos sistemas escolares brasileiros.

Importante espaço socializador, de construção de identidades e formação de

valores, a instituição escolar formada na sociedade capitalista vem reproduzindo, há

tempos, ideologias e padrões de uma elite dominante baseada num modelo estético

eurocêntrico, excluindo, com frequência, outras visões de mundo, referências

culturais e históricas.

Louis Althusser (1985), entendendo que a educação, em suas diferentes

instâncias, é determinada pela base econômica da sociedade, identifica a escola

capitalista como um dos principais agentes de reprodução das relações de

dominação entre as classes sociais. Para o autor, além das práticas da instituição

escolar se encarregarem de fornecer aos diferentes grupos e classes sociais que a

compõem, apenas os conhecimentos, capacidades e verdades produzidas e

42

estabelecidas pelas classes dominantes, contribuindo para legitimar a cultura e os

saberes contidos na ideologia dessas elites, os próprios professores, atores dessas

práticas, muitas vezes nem sequer suspeitam do papel que o sistema os obriga a

desempenhar. Eles se encontram tão encarcerados pelos saberes e práticas

hegemônicos, que, em geral, se tornam incapazes de questionar ou de se posicionar

contra esse sistema, contribuindo para manter e alimentar o caráter reprodutor da

escola. “Em outras palavras, a escola (...) ensina o ‘Know-how’ mas sob formas que

asseguram a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua prática" (p.58).

Nesta mesma perspectiva, traçada por um viés mais cultural, Pierre Bourdieu

(2008), considera que a eleição, elaboração e execução dos conteúdos, programas

e métodos de trabalho da escola, peculiar às classes dominantes, revelam uma

“violência simbólica” sobre os alunos das classes populares. Para Bourdieu, a

“violência simbólica” caracteriza-se pelo desprezo aos saberes e fazeres populares

seguido de uma inculcação da expressão cultural própria das classes dominantes,

fazendo com que esses sujeitos subjugados tornem-se mais inseguros e suscetíveis

á dominação que sofrem na sociedade, assegurando a reprodução social vigente.

Assim, para o autor, as escolas ignoram e desprezam as diferenças sócio-culturais

cotidianamente presente em seus espaços, privilegiando e legitimando em sua

teoria e prática apenas os valores e saberes hegemônicos, fazendo com que, para a

maioria dos alunos das classes populares, a escola represente um rompimento no

que se refere aos seus saberes e práticas, os quais são constantemente ignorados e

até mesmo desconstruídos nesse ambiente. Em suma, “o sistema escolar pode, por

sua lógica própria, servir à perpetuação dos privilégios culturais (...)” (p.59).

Dessa maneira, a elaboração dos saberes escolares, bem como a forma

como eles vêm sendo, em geral, colocados em prática, têm se mostrado

demasiadamente afastados das realidades e particularidades da maioria dos

educandos, ou seja, a educação formal vem afastando-se, não é de hoje, do que

Paulo Freire chamou de teoria dialógica da educação:

Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão de mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se

43

manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico desta situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto (1987, p.87).

Na contramão desse modelo de educação escolar, em sua maioria

hierárquica, altamente formalizada e desconectada do mundo que circunda os

indivíduos, vimos ganhar terreno os processos não formais de educação.

Segundo Gohn (2008), a educação não formal é aquela onde a

“aprendizagem se dá por meio da prática social. É a experiência das pessoas em

trabalhos coletivos que gera aprendizado” (p.103). Realiza-se, essencialmente, em

“espaços educativos localizados em territórios que acompanham a trajetória de vida

dos grupos e indivíduos, fora das escolas, em locais informais, locais onde há

processos interativos intencionais” (2006, p.29).

Assim, diferente do que ocorre, majoritariamente, nos ambientes escolares,

as práticas não formais de educação estruturam-se de forma menos hierarquizadas,

pouco formalizadas e menos burocráticas na maneira de tratar o tempo (calendários,

prazos) e o conhecimento (disciplinas, avaliações), além de apresentarem modelos

de ação muito mais dialógicos e contextualizados, favorecendo a construção de

aprendizagens e a geração de saberes.

Ainda contrastando esses dois modelos educacionais, Trilla (2008), aponta

alguns critérios fundamentais por onde passaria essa fronteira que separa os dois

tipos de educação, a formal e a não formal; são eles:

(i) o critério metodológico: onde, como antes assinalado, a educação não

formal rompe com algumas determinações que caracterizam a escola,

como definições espaciais, temporais, disciplinares, entre outras. Ou

como afirma o autor, “quando se fala em metodologias não-formais, o

que se quer dar a entender é que se trata de procedimentos que, com

maior ou menor radicalismo, se distanciam das formas canônicas ou

convencionais da escola” (p.40); e

44

(ii) o critério estrutural: onde a educação formal e não formal não se

distinguem especificamente por seu “caráter escolar ou não escolar,

mas por sua inclusão ou exclusão do sistema regrado”, pelo seu

distanciamento da “estrutura educativa graduada e hierarquizada

orientada à outorga de títulos acadêmicos” (p.40).

Embora pontuadas essas distinções, Gohn (2008), afirma que, de alguma

forma, ambas as modalidades de educação preocupam-se em transmitir saberes,

em “repassar o acervo de conhecimentos historicamente acumulados pela

humanidade”, entretanto, nas propostas não formais de educação isso geralmente

ocorre “em espaços alternativos e com metodologias e sequências cronológicas

diferenciadas, com conteúdos curriculares flexíveis, adaptados segundo a realidade

da clientela a ser atendida” (p.102).

Nos questionamos, então: que paradigmas são esses, tão sedimentados nos

modelos escolares, que dificultam (ou mesmo impedem) uma flexibilização e/ou

reorientação de seus processos? Que obstáculos tão intransponíveis são esses que

insistem em segregar a “vida escolar” e a “vida cotidiana”? Enfim, “por que a escola

deve ser aceita em suas estruturas, hábitos e formas organizativas, portanto, em

seus aspectos de constrangimento?” (Ghanem, 2008, p.73).

Para Elie Ghanem (2008), “A educação escolar (...) sedimentou-se na

realização renitente do modelo de educação como ensino”. Nesta lógica, o propósito

da atividade educacional é compreendido como um conjunto de conhecimentos que,

obrigatoriamente, devam ser transmitidos, supondo-os como “respostas adequadas

às necessidades de educandos(as)...” (p.163).

Contribuindo com a discussão, Trilla (2008), coloca que, “o que ocorre é que

a educação não formal, por situar-se fora do ensino regrado, desfruta de uma série

de características que facilitam certas tendências metodológicas” (p.42), em outras

palavras, o caráter não obrigatório, o fato de suas práticas não estarem

encarceradas por “conteúdos” impostos e fixados e a pouca burocracia legal,

possibilitam que os processos não formais de educação se estabeleçam de maneira

45

muito mais aberta e flexível, participando e atendendo de forma mais direta as

demandas e anseios dos educandos.

Cabe ressaltar nosso entendimento de que tão ingênuo quanto crer que a

instituição escolar (ou qualquer outra instituição educacional) possa, ou deva, por si

só, dar conta de tudo (e de qualquer coisa), é supor que a educação não formal é

um milagre que vem para solucionar todos os problemas da educação brasileira.

Nesta perspectiva Trilla afirma que:

(...) enfim, a educação não-formal não é nenhuma panaceia. É tão maniqueísta projetar toda a culpa educacional na escola quanto supor que a educação não-formal seja uma poção mágica imaculada. Apresentá-la globalmente como remédio para as desigualdades educacionais e sociais, e para os vícios em que a escolarização formal tem caído, é tão simplista e tolo quanto recusar sua colaboração para facilitar o acesso mais amplo e justo a uma educação da maior qualidade possível (p.54).

Assim, conforme já sinalizamos, nossa intenção neste trabalho não é traçar

os caminhos divergentes tomados pela educação formal e não formal, ao contrário,

o que vislumbramos aqui é propor, (re)desenhar, caminhos mais confluentes,

alçando alternativas capazes de aproximar propostas e ações desses dois

contextos.

Propomos, reforçando nosso entendimento de que a educação é um

fenômeno social complexo, multiforme, ativo e heterogêneo, o rompimento do

isolamento institucional e a abertura da escola para o acolhimento de outros

mecanismos e momentos educacionais. Propomos uma contribuição mútua e

harmoniosa entre a educação formal e não formal. Uma interação dinâmica entre os

vários fatores educacionais que atuam sobre o indivíduo e o coletivo. Enfim,

propomos diminuir o fosso que separa o ensino escolar da vida cotidiana e da

experiência humana.

Intensificando a pertinência dessa relação entre a educação formal e a

educação não formal, Trilla (2008), aponta para determinadas interações de funções

e efeitos que inevitavelmente se estabelecem entre essas duas instâncias

educacionais, que permeiam esses universos mesmo sem serem explicitamente

46

estabelecidas, evidenciando a porosidade de suas fronteiras. Para o autor a

educação formal e a não formal se intrometem mutuamente, elas estabelecem

relações de complementariedade, uma vez que as bases para a compreensão e

apreensão da “instrução formal” consolidam-se nas experiências vividas durantes as

atividades não formais (e informais).

É uma espécie de interdependência que pode ser expressa diacronicamente (cada experiência educacional é vivida em função das experiências educacionais anteriores e prepara e condiciona as subsequentes), e também sincronicamente (o que acontece com a criança em determinado ambiente educacional tem relação com o que ela vive nos outros ambientes educacionais dos quais participa). De fato, se não existisse essa interdependência dos efeitos educacionais produzidos nos diversos ambientes, a própria eficácia formativa de cada um deles seria posta em questão (TRILLA, 2008, p.45).

Compreendemos então que evitar a duplicidade e apostar numa relação

permeável entre estas duas instâncias, com as instituições formais de ensino

otimizando o uso dos recursos não formais em suas práticas (muitas vezes já à sua

disposição), reconhecendo e valorizando os saberes adquiridos pelos educandos

em contextos não formais (e que são carregados para dentro da escola), bem como,

a educação não formal disponibilizando seu apoio para outras funções educacionais,

sociais e culturais, venha contribuir para a configuração de um sistema educacional

mais aberto, relacional e diversificado em quantidade e qualidade de ofertas

educacionais, abarcando novas demandas sociais, que tornaram-se também

escolarizadas.

Dessa forma, delinear esta educação mais abrangente, qualificada,

significativa e conectada com os desafios que a complexidade da vida social

contemporânea nos tem apresentado, requer, também, que as escolas percebam

que não são simplesmente locais de instrução, mas também locais onde se

experimentam diferentes referências culturais e formas de estar no mundo, e que,

por isso, a vida escolar do estudante está entrelaçada às suas experiências de vida,

pessoais e coletivas, as quais fornecem instrumentos que atuam na mediação de

seus encontros com o convívio institucional e com o saber legitimado.

47

O aluno possui, portanto, suas referências de costumes, modos de vida,

tradições, que ele carrega todos os dias para a escola, e ela insiste em silenciar.

Para Sampaio “sem o reconhecimento de sua identidade, do seu saber, de sua vida

cotidiana, o aluno é um estrangeiro que não fala a língua dominante” (1997, apud

TOURINHO, 2003, p.207)

Assim, revela-se necessário que as práticas escolares sejam articuladas,

cada vez mais, por processos dialógicos amplamente conectados às realidades e

anseios vividos pelos alunos. Ou, como reforça Edgar Morin, quando nos fala sobre

os princípios do conhecimento pertinente, “é preciso situar as informações e os

dados em seu contexto para que adquiram sentido. Para ter sentido, a palavra

necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto no qual

se anuncia” (2011, p.34).

Somos levados, então, a concordar que os processos educacionais estão em

ligação direta com as relações sociais, com as trocas realizadas pelas pessoas em

seus cotidianos. Dessa maneira, reconhecemos que a ação de aprender não pode

se dar de forma isolada, insular; ao contrário, a aprendizagem é algo eminentemente

dinâmico e relacional, aberto e pertencente a todos. As situações de aprendizagem

são marcadas por relações com os locais em que se dão, com o tempo/momento de

aprender, e, especialmente, pelas relações/interações com outras pessoas.

Isso nos faz suspeitar de práticas educativas singulares e padronizantes, que

se apresentam como vias únicas, universalmente aceitas, resultando num

empobrecimento demasiado do ato de aprender, na medida em que se fundam,

exclusivamente, numa ordem estática, unitária e homogênea, pouco ou nada

relevante para a vida.

No caso da escola, Macedo (2009) nos mostra que “se, o fenômeno da

aprendizagem é conceituado como um fenômeno que se realiza nas relações que

estabelecemos com os saberes, o conhecimento e as pessoas; na sala de aula,

essa constatação se transforma numa realidade extremamente significativa” (p.119).

48

Não apenas nas salas de aula, mas em todos os espaços da escola pode ser

vista uma pluralidade de experiências, discursos e comportamentos interagindo,

onde a “cultura da escola” e a “cultura da rua” se chocam, tensionando e negociando

as formas como as práticas escolares são efetuadas, e como as relações sociais e

de aprendizagem são construídas.

Nessa visão, segundo Moreira e Silva:

(...) a educação e o currículo não atuam apenas como correias transmissoras de uma cultura produzida em um outro local, mas são partes integrantes e ativas de um processo de produção e criação de sentidos, de significações, de sujeitos (1995, p,26).

Os autores continuam, afirmando que o currículo e a educação “podem ser

movimentados por intenções oficiais de transmissão de uma cultura oficial, mas o

resultado nunca será o intencionado porque, precisamente, essa transmissão se dá

em um contexto cultural de significações ativas dos materiais recebidos” (p.27).

Neste panorama é preciso, de imediato, abandonarmos a noção de aluno

enquanto meros consumidores passivos de conhecimentos já prontos, pré-

selecionados e hierarquizados pela educação normativa, compreendendo, como

enfatiza Freire, que ”...ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a

possibilidade para sua própria produção...” (1996, p.47), e que essas possibilidades

permeiam as referências socioculturais individuais e coletivas que esses alunos

carregam para dentro do ambiente escolar.

Pensar sobre as práticas escolares é também considerar os diversos

aspectos contraditórios e as muitas perspectivas presentes neste contexto. Neste

sentido dialogamos com Michel de Certeau (2011) deslocando nossa atenção para

as práticas cotidianas, para as astúcias das “artes de fazer” e para um “não-lugar”

criado por “homens ordinários” e nascido na liberdade dessas práticas. Para o autor,

reconhecer e legitimar os saberes que permeiam essas práticas “subterrâneas” da

vida escolar, considerando suas estratégias e atos, é compreender que os atores

escolares vão se ajustando e ressignificando os discursos oficiais, e deslocando,

dessa forma, as fronteiras hegemônicas.

49

Torna-se possível então, a partir dessa “bricolagem” com e na ordem

dominante, perceber “micro-resistências” que reconfiguram as relações instituídas e

que, por meio de práticas ou “táticas desviacionistas”, edificam “microliberdades”. De

acordo com Certeau (2011), realizam-se movimentos de “micro-resistências, os

quais fundam por sua vez microliberdades, mobilizam recursos insuspeitos e assim

deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos poderes sobre a multidão

anônima” (p.18).

Portanto, pensar sobre o cotidiano escolar requer mais que um discurso

superficial sobre o cenário desalentador deste espaço ou sobre o que já está público

e notório. Para uma compreensão mais profunda desse universo, é preciso

escarafunchar as práticas que se constituem nesse território, desvendando

estratégias e penetrando nas opacidades. Segundo Maria Antonieta Tourinho, a

complexidade do cotidiano escolar, (referindo-se mais especificamente à escola

pública) “não permite a captura de todos os seus componentes. Sempre haverá um,

dois, mil que escapam e se escondem nas brumas do imprevisível” (2003, p.245).

Neste sentido, a vida escolar não pode ser vista como um sistema

sedimentado de regras e relações, pois é justamente neste universo social vivo que

se configuram formas, muitas vezes ilegíveis, de interagir e de se expressar no

mundo e com o mundo, num movimento dialético de aprendizagens e

reaprendizagens que se (re)constroem em múltiplas circunstâncias, e que, através

de táticas diversas, podem transformar pessoas e contextos.

Como afirma Freire (1996, p.43), “é uma pena que o caráter socializante da

escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou

deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos

conteúdos...”. Pois é justamente nessas trocas e experiências informais vividas

cotidianamente no ambiente escolar, onde se manifestam contradições e

antagonismos sociais e culturais que, em seus movimentos de enfrentamento e

negociação, constituem-se verdadeiros processos educativos. É necessário, então,

que as práticas escolares movam-se para além das fronteiras disciplinares, e

deixem entrar em cena os desejos, as histórias, e vivências que os sujeitos

50

carregam para a escola, experimentando e legitimando outros saberes, que não os

institucionalizados.

Nesse mesmo sentido que apontamos, também, para a negligência com que

grande parte das instituições formais de ensino vem tratando as experiências e os

saberes dos educandos e das comunidades em que estão inseridas enquanto

dispositivo de aprendizagem, valorizando e legitimando como conhecimento apenas

os saberes normativos, disciplinares, e que são passíveis de serem quantificados e

mensurados. De acordo com Certeau, “...a implantação massiva de ensinos

normalizadores tornou impossíveis ou invisíveis as relações intersubjetivas da

aprendizagem tradicional” (2011, p.262).

Entretanto, observamos que, mesmo diante dessa insistente segregação de

saberes, as relações estabelecidas pelas pessoas no interior da escola, as

interações sociais, e as vivências cotidianas nesse ambiente, independentes se

legitimados ou não como conhecimento, constroem relações de aprendizagem, pois,

como afirma Demo, “conhecer e aprender não são fenômenos apenas lógicos e

técnicos, mas fundam-se na propriedade humana como tal” (2011, p.XV). Assim, a

convivência nas salas de aula, nos corredores, nos eventos, na entrada e saída da

escola, enfim, nos “não-lugares” escolares fazem circular um saber inseparável da

vivência desse grupo.

Sob este olhar destacamos a relevância dos saberes e fazeres da cultura

popular neste universo de aprendências. Compreendemos que o aprendizado

proporcionado pelas manifestações populares, oriundo das vivências e das

experiências socioculturais de seus atores, ainda se encontram longe de serem

legitimados pela educação formal, embora esses saberes estejam presentes na vida

cotidiana da escola. Para Abib (2005), “os próprios educadores, em sua maioria, têm

dificuldade em estabelecer vínculos entre os saberes universais, provenientes da

racionalidade acadêmico-científica, com os saberes populares provenientes das

culturas tradicionais...”(p.213).

Neste mesmo viés, Certeau (1995, 263-264) reforça que:

51

(...) a criança escolarizada aprende a ler paralelamente à sua aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar as letras corresponde a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem. Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido por tradição oral permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um texto afina, precisa e corrige.

É importante ressaltar que não estamos aqui rejeitando os conhecimentos

disciplinares próprios do ensino escolar. Inclusive por estarmos cientes das

especificidades desses saberes é que nossas intenções apontam para que novas

possibilidades de aprendizagem sejam acolhidas pela escola a partir do diálogo

entre o ensino formal e outros espaços de produção de saber, a fim de que “o

desenvolvimento desses saberes disciplinares abarquem a diversidade de seres que

transculturalizam-se no cotidiano escolar – seres criadores de cultura; portanto de

significações variadas sobre tais saberes” (NETO, 2008 p.48).

Ao referenciar Antonio Gramsci, Ecléa Bosi (1973) afirma que “...ao lado da

chamada cultura erudita, transmitida na escola e sancionada pelas instituições,

existe a cultura criada pelo povo, que articula uma concepção do mundo e da vida

em contra-posição aos esquemas oficiais” (p.53). Apostamos então, que um diálogo

entre essas duas instâncias de embates culturais se mostre um valioso processo

político e educacional, em particular na escola, local onde a cultura dominante

produz e dissemina suas “verdades” hegemônicas, mas também, onde ela se

encontra e se enfrenta, num intercâmbio incessante, com a força transgressora do

saber popular.

Consideramos assim que uma aproximação entre os saberes disciplinares da

escola e o saber popular podem viabilizar a construção de novas possibilidades no

campo das aprendizagens, fundados em instâncias mais criativas e humanizantes,

além de provocar um “alargamento da racionalidade e dos paradigmas que

predominam nessas instâncias” (ABIB, 2005 p.213).

Quando pensamos na vinculação entre a cultura popular e o conhecimento

formalizado se estabelecendo dentro das escolas, refletimos sobre a relação que a

instituição escolar tem com a cultura do local onde está inserida. Ao entendermos

52

que esses locais são constituídos e encharcados de histórias, memórias e

significações, apostamos que essa aproximação possibilite aos educandos se

perceberem em seus próprios territórios e em relação à outros, nutrindo um

sentimento crítico de pertencimento àquele espaço, e se reconhecendo no

conhecimento produzido e socializado pela escola.

Vale ressaltar que não se trata de disciplinarizar os saberes populares, mas

sim de valorizá-los e legitimá-los enquanto conhecimento nos ambientes escolares,

de aproximá-los dos saberes institucionalizados, estabelecendo relações e

promovendo debates, e de potencializar sua contribuição no processo de construção

do currículo escolar, “revelando e reconhecendo o saber das culturas orais das

comunidades que historicamente foram colocadas à margem do processo de

construção do conhecimento oficial” (Caíres e Pacheco, 2008, p.58).

Giroux e Simon (1995) complementam que “... a cultura popular quando

valorizada e legitimada no currículo escolar é, em consequência disso, apropriada

pelos alunos e ajuda a validar suas vozes e experiências” (p.96).

Cabe aqui uma breve consideração sobre a noção e o conceito de currículo,

tendo em vista o tamanho poder que lhe é conferido enquanto “definidor dos

processos formativos” (MACEDO, 2009).

Começamos esta consideração esclarecendo que, embora a compreensão de

currículo ainda se encontre predominantemente sedimentada na ideia de um

artefato inventado, construído e imposto por especialistas e burocratas, tendo como

função eleger, normatizar e hierarquizar saberes, a reflexão que buscamos aqui se

confronta com essa perspectiva e assume o entendimento de currículo enquanto um

indicador de “...caminhos, travessias e chegadas, que são constantemente

realimentados e reorientados pela ação dos atores/autores da cena curricular”

(MACEDO, 2009).

Dessa forma, o currículo não pode mais ser entendido como mero veículo de

transmissão de conteúdos a serem passivamente absorvidos, mas sim, como

terreno onde ativamente se construirão conhecimentos.

53

Compreendemos, entretanto, como afirmam Moreira e Silva (1995, p.7) que

“não é mais possível alegar qualquer inocência a respeito do papel constitutivo do

conhecimento organizado em forma curricular e transmitido nas instituições

educacionais”, pois, a construção de toda proposta curricular encontra-se banhada

por ideologias e opções formativas, o que nos faz constatar que através do currículo

valorizamos e legitimamos saberes.

O desafio que surge é implementar uma prática curricular que não trabalhe,

exclusivamente, a favor dos processos hegemônicos e na manutenção de um status

quo capitalista, massificador e excludente, mas sim que dê voz e vez a outros

processos de sociabilidade, reconhecendo, valorizando e legitimando outros saberes

que não apenas os institucionalizados.

Entendemos que, é necessário considerar o currículo um artefato social e

cultural, criticamente aberto e disponível para negociar e acolher. Um terreno vivo de

construção do conhecimento guiado por questões políticas e sociais, onde as

experiências dos sujeitos, seus contextos e processos históricos e culturais sejam

contemplados pelas práticas curriculares.

Para Caíres e Pacheco,

A revisão do currículo não é uma meta política abstrata que se alcança por decreto, mas um objetivo que se conquista no cotidiano, de baixo para cima, um passo de cada vez. Trata-se de uma revisão profunda de lugares, de hierarquias, de valores e procedimentos arraigados e consolidados na ideologia, no afeto e na prática dos corpos dos educadores, estudantes e na própria relação da comunidade com a escola e vice-versa (2008, p.47).

No caso da escola, é urgente que o currículo apareça de forma dialógica, que

se estabeleça no campo curricular um espaço de debates e construções,

provocando percepções e atitudes críticas e emancipatórias, valorizando outros

conhecimentos e desmitificando a noção de que o saber normatizado e

institucionalizado é o único saber relevante. Compreendemos, como afirma Macedo,

que:

(...) essa não é uma tarefa de heróis, mas um esforço e um labor de

54

um coletivo social, movido por uma epistemologia social sensível, inclusive, aos choques culturais, às resistências, às dificuldades naturais, quando se trata de mudar cosmovisões secularmente construídas, mas também dispostos a ir à luta ideológica, aos embates de ideários, porquanto em se tratando do pensar complexo, não há chave mestra guardada em cartolas, tampouco mera contemplação do pensamento (2002, p.62).

Assim sendo, finalizamos este debate sinalizando que a linha divisória entre

os saberes populares e os saberes institucionalizados é mais permeável do que

estamos inclinados a pensar. Trata-se de vislumbrar para a escola a possibilidade

de uma prática mais viva e pulsante; de viabilizar que alunos e professores se

envolvam numa aprendizagem que os (re)liguem às suas vivências e histórias; de

buscar relações de trocas e construção do conhecimento que não hierarquize

saberes e incentivem a inclusão do universo de toda a comunidade escolar nos

processos de ensino e aprendizagem. Para isso é importante perceber o currículo

para além de suas ações (o que “devemos fazer” ou como se faz o currículo) e

compreendê-lo em seus efeitos (o que ele faz com as pessoas e as instituições),

considerando-se que tanto nós, (professores, gestores e alunos) estruturamos o

currículo (selecionando, organizando e implementando saberes), quanto o currículo

nos estrutura, vivendo, instituindo e remodelando poderes.

55

2 CAPÍTULO 2 – A AÇÃO GRIÔ NACIONAL

Costuma-se dizer que o assunto, o tema de uma pesquisa se revela antes

pela paixão e depois pela razão. Pois foi dessa maneira que minha convicção no

potencial educativo (e político) que a aproximação dos saberes da cultura popular

com a escola representa encontrou-se com o trabalho singular de reconhecimento e

valorização da cultura popular de tradição oral desenvolvido pelo Grãos de Luz e

Griô, e fez despertar o encantamento que impulsionou e iluminou minha caminhada

nesta pesquisa.

Inspiradora deste trabalho, a Grãos de Luz e Griô promove na cidade de

Lençóis, Bahia, um projeto de valorização e legitimação dos saberes populares em

diálogo direto com os espaços de educação formal, projeto este que, em parceria

com o Ministério da Cultura, deu origem ao programa Ação Griô Nacional, e vem se

desenvolvendo em outros estados brasileiros, como detalharemos a seguir.

2.1 Apresentando a Associação Grãos de Luz e Griô, onde tudo começou

Este projeto que vos falo

Trata de uma reinvenção

Do Griô que veio da África

Do Brasil e da tradição

Dos que guardam na memória,

Preservando nossa história

Geração em geração.

A Pedagogia Griô

Vem de um Ponto de Cultura

De Lençóis, lá na Bahia

Vida roda se mistura

O Grãos de Luz e Griô

Criança velho professor

O criador, a criatura

(Versos do cordel O Griô de todo canto,

de Márcio Caires, fevereiro,2006)

56

A associação Grãos de Luz e Griô, localizada na cidade de Lençóis-BA,

iniciou sua trajetória em 1993 quando algumas mães da comunidade, juntamente

com outras lideranças femininas da cidade, mobilizaram-se para a distribuição de

uma sopa comunitária para crianças de baixa renda de um bairro periférico chamado

Alto da Estrela. Paralelo a esse movimento, desenvolvia-se um projeto de horta

comunitária também com crianças e jovens de baixa renda nas comunidades. Foi

neste contexto que Jane da Silva Pellaux, brasileira, que vivia na Suíça, propôs a

integração destas ações a um projeto de educação para crianças e adolescentes.

Nasce então, da união das iniciativas anteriores, e idealizada por Líllian

Pacheco e Márcio Caires, a construção de uma proposta educacional num projeto

pedagógico intitulado Oficinas Grãos de Luz4. Neste projeto eram desenvolvidas

oficinas pedagógicos de pintura, costura, desenho, dança, canto, dentre outras,

onde os jovens participavam de pesquisas e vivências sobre mitos, heróis,

arquétipos, saberes e histórias de vida de suas famílias, de sua comunidade e dos

mestres dessa comunidade, vinculados a um tema gerador anual. Esta proposta

imprime na valorização da cultura e na integração das idades, sua estratégia

fundante, e, no fortalecimento da identidade afetiva e cultural dos participantes, seu

objetivo primeiro.

Em 1999, reconhecendo os resultados positivos dessas oficinas, a Secretaria

de Educação de Lençóis convidou seus coordenadores para participarem da

Semana Pedagógica Municipal, realizando vivências e propondo discussões, além

de elaborar um projeto de formação de professores para os educadores da rede

municipal.

Ao refletir sobre questões como: Que didáticas integram o terreiro da

comunidade e a sala de aula? Que vivência pode integrar os saberes da tradição

4 Segundo Líllian Pacheco, grãos de luz remetem aos mitos de chamada do diamante dos garimpeiros da região, além de ser muito frequente, no imaginário social, a criança ser associada a uma semente (Grãos de Luz e Griô).

57

oral e os saberes da ciência formal? Qual o lugar dos mestres da tradição oral na

formação dos estudantes brasileiros? O projeto objetivou mobilizar e capacitar

professores das escolas públicas de Lençóis. Contou, então, com a participação de

aproximadamente mil crianças e onze escolas da comunidade, num movimento de

fortalecimento da identidade e do vínculo afetivo entre os participantes.

Ainda neste ano, durante uma atividade para adolescentes afrodescendentes

liderada por Líllian Pacheco, a figura do griô, revelada pelo etnólogo Ardaga Widor,

entra em cena.

Segundo o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ5

Nas línguas e dialetos da região sul do Saara, noroeste da África, na tradição oral dos grupos étnicos Bambaras e Fulas na região do Mali, de onde se originaram os Griôs, eles tem diversos nomes e funções sociais. (...) Eles são genealogistas, contadores de histórias, músicos/poetas populares, importantes agentes da cultura. Chegam a assumir a função de noticiadores, mediadores e diplomatas (Ação Griô Nacional).

Assim, o encontro com a ideia do griô africano, reconhecido como aquele que

faz com que os mitos e as tradições circulem entre as novas gerações, “se

identificou completamente com as intuições e estratégias de fortalecimento da

identidade cultural formuladas pela coordenação de projetos. Assim foi nomeado o

Projeto Griô ...” (PACHECO, 2006 p.25).

De acordo com Pacheco (2006) o modelo de ação pedagógica do Projeto

Griô, sistematizada, passaria por quatro momentos integrados, são eles:

1) A Roda das Oficinas: A ideia inicial é que as crianças, os adolescentes e suas

famílias passem a vivenciar as propostas pedagógicas do projeto através das

atividades das oficinas, que envolvem a participação dos mestres e griôs

locais.

5 Escritor, historiador, etnólogo e poeta, Amadou Hampâté Bâ nasceu no Mali, Bandiagora, em 1901. Foi um mestre da tradição oral africana.

58

2) A Roda da Caminhada do Velho Griô: Figura criada pelo educador Márcio

Caires, o Velho Griô, através de suas caminhadas cantantes, realizadas pelas

escolas e pelas comunidades, possibilita, além de uma rede de comunicação,

uma convivência afetiva e cultural com essas pessoas. Assim, o Velho Griô

chega caminhando aos locais e envolve toda comunidade – crianças, adultos,

educadores e diretores – num diálogo dançante sobre mitos, heróis, histórias

de vida, entre outros temas.

3) A Roda dos Educadores: Regulamentado por um termo de parceria com a

Secretaria de Educação, os educadores da rede municipal da cidade de

Lençóis que experimentaram e se encantaram com a chegada do griô às

escolas, participam de um “encontro de capacitação de educadores griôs”,

onde vivenciam os projetos das oficinas Grão de Luz. A intenção é facilitar a

integração entre a tradição oral e o sistema municipal de ensino.

4) A Roda da Vida e das Idades: Aqui se dá o encontro de todas as rodas, num

diálogo envolvendo todos os participantes. Segundo Pacheco (2006): O encontro das rodas chama-se Roda da Vida e das Idades, que se inspira na qualidade multissetorial, intergeracional, dançante e solidária das rodas de capoeira, dos candomblés, das manifestações culturais indígenas, (…), e outras manifestações e organizações de tradição oral no Brasil (p.28).

Assim, o griô caminhante, cantador e contador de histórias reinventado pelo

projeto, sai da comunidade, passa pela ONG, adentra o espaço escolar e chega ao

poder público, fazendo “circular os saberes, histórias, mitos, lutas e glórias de seu

povo, dando vida à rede de transmissão oral de sua região e país” (Ação Griô

Nacional).

Neste contexto, a figura do griô se multiplica em diferentes papéis, assumindo

não apenas o lugar do caminhante contador de história, mas assumindo também a

imagem da ONG, a função do educador, a posição de mediador com as instâncias

governamentais da cidade de Lençóis e de outras cidades do país. Barzano (2008)

afirma que:

(...) Desse modo, ele se multiplica, escapa das identidades fixas, classificadas nisso ou naquilo (...). É o griô performático, que se

59

expressa em personagem e se efetua politicamente, que inventa uma pedagogia e, ao mesmo tempo, é por ela inventado (p.86).

É no âmbito deste projeto que, inspirada pelas referências metodológicas da

educação biocêntrica de Ruth Cavalcanti e Rolando Toro, da psicologia comunitária

de Cézar Wagner Góis e da pedagogia de Paulo Freire, nasce, pelas mãos da

educadora biocêntrica Líllian Pacheco, a Pedagogia Griô6, norteadora das propostas

e ações do Projeto Griô.

Segundo a idealizadora, trata-se de:

Uma pedagogia da vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento de um projeto de vida que tem como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida (PACHECO, 2006 p.86).

Foi justamente nesse período que o Projeto Griô, bem como as oficinas

Grãos de Luz, perderam o espaço físico onde realizavam suas atividades. Assim, os

educadores passaram a desenvolver seu trabalho nas ruas ou em espaços cedidos

pela própria comunidade, a fim de manter o atendimento às crianças e aos jovens. A

difícil situação em que se encontravam, especialmente em função da falta de espaço

físico e de autonomia jurídica e administrativa, motivou mães, educadores do projeto

e das escolas, parceiros locais, nacionais e internacionais a se unirem para a

fundação da Associação Grãos de Luz, criando assim uma rede de solidariedade e

responsabilidade social. Essa rede viabilizou o pagamento do aluguel de um espaço

no centro histórico de Lençóis. Nessa nova etapa, a Associação passa a

regulamentar termos de parceria e a sistematizar os objetivos, estratégias e

atividades do projeto que, integrados, receberam o nome de Grãos de Luz e Griô.

Assim, num processo singular de reconhecimento da tradição oral, dentro e

fora das escolas, a Grãos de Luz e Griô define como missão:

(...) semear a educação e a tradição oral fortalecedora da identidade das crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Reinventar a

6 Ver SILVA, Juliana Lopes da. Experimentação em cultura, educação e cidadania: o caso da Associação Grãos de Luz e Griô, 2009, sobre conceitos e referêcias da Pedagogia Griô.

60

integração entre o velho e o novo num presente pleno de ancestralidade e identidade na educação para a celebração da vida (PACHECO, 2006, p.22).

É nesta “...integração entre o velho e o novo...”, nesta aproximação entre

gerações, que se destaca a figura e a importância dos mestres. Para Abib (2005,

p.95):

O mestre é aquele reconhecido por sua comunidade, como o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos, alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa, de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume por essa razão, a função do poeta que, através de seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora que irrompe para dignificar o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro.

No caso das escolas, a proposta de aproximar os mestres das salas de aula

para a transmissão de um saber tradicional proporciona uma nova configuração nos

processos de ensino e aprendizagem nestes espaços, agregando ao saber científico

o saber dos mitos, lendas e cantos produzidos e transmitidos oralmente pelas

tradições, contribuindo para que a escola institua novas e outras possibilidades ao

conhecimento escolar.

Barzano defende ainda, que:

(...) permitindo a entrada do velho das comunidades nas escolas (...) os alunos acabam por conhecer e se envolver com assuntos específicos da comunidade, desde as cantigas e histórias da cultura local aos aspectos políticos que a envolvem, e é desse modo que o poder perpassa pelas vias cotidianas, nas malhas da microfísica, como estratégia de se distribuir e agir capilarmente e produzir saber (2008, p.56).

Neste viés, é preciso observar que a legitimação desses saberes populares

de tradição oral na educação formal e pública significa também uma disputa

ideológica, uma vez que as escolas ainda atuam, em sua maioria, na reprodução da

cultura oficial dominante e hegemônica. Dessa forma, ao eleger a escola (e as

universidades) como locais privilegiados para esse diálogo, a proposta do projeto é

“inserir nestes espaços a questão política e de identidade de quem descobre sua

ancestralidade no campo da disputa de ideias” (Caíres e Pacheco, 2008, p.59).

61

Em maio de 2011 pude participar de um curso de formação na Pedagogia

Griô, promovido pelo Grão de Luz de Griô. Durante os quatro dias em que se

desenvolveram as atividades foi possível transitar pelas diversas instâncias que o

projeto abarca, indo desde a parte teórica, fundante da Pedagogia Griô, até o

encontro com as comunidades, escolas e seus mestres de tradição oral.

Curso de formação na Padagogia Griô.Maio/ 2011, Grãos de Luz e Griô, Lençóis, BA.

As atividades realizadas durante este curso possibilitaram constatar a ação

efetiva do projeto sobre as comunidades participantes na cidade de Lençóis, as

quais, em geral, são comunidades remanescentes de quilombo, bem como sua

aproximação real com os espaços escolares.

Como parte das atividades pudemos vivenciar uma intervenção feita pelo

Projeto Griô na escola municipal Terezinha Guerra. Embora essa visita tenha sido

muito breve e estivesse previamente agendada, portanto professores e alunos

sabiam sobre a ida do Projeto Griô à escola naquele dia, ficou evidente, através da

62

participação das professoras e gestoras e da interação e familiaridade dos alunos

com as atividades propostas, a estreita relação do projeto com a escola. As músicas

e mitos cantadas e contados pelos mestres que, como de costume, acompanharam

a visita, já faziam parte do repertório daqueles alunos e professores.

Intervenção projeto Griô, Escola Municipal Terezinha Guerra, Lençóis, maio/2011.

As oficinas Grãos de Luz, que hoje englobam desde música e confecção de

bonecos até informática e produção audiovisual, ainda são oferecidas às crianças e

jovens. Além da criação de novos projetos, como por exemplo o Cine Grãos7,

atualmente todos os núcleos gestores do Grãos de Luz e Griô, do financeiro ao

administrativo, são formados por jovens ex-alunos das oficinas da Associação, e

que, de maneira geral, frequentam o espaço desde crianças.

Algumas questões, porém, pareceram receber destaque nos trabalhos

desenvolvidos pelo Grãos de Luz e Griô. Uma delas refere-se à sustentabilidade

7 Sessão de cinema aberta à comunidade, que acontece às sextas-feiras no espaço do projeto ou numa praça da cidade, organizada pelos jovens do projeto.

63

econômica. Percebendo a difícil situação financeira em que se encontrava a

população daquelas comunidades, e a perda constante de seus jovens para o

subemprego, o Grãos de Luz e Griô passou a criar alternativas de remuneração,

tanto para as crianças e jovens participantes dos projetos, com a implantação de

bolsas de ajuda financeira e venda dos produtos produzidos nas oficinas, quanto

para as próprias comunidades e seus mestres, com o turismo comunitário, nascendo

então as Trilhas Griô8 de educação, cultura oral e economia comunitária.

Uma outra questão de destaque no desenvolver dos trabalhos é a enorme

valorização tanto das histórias e mitos locais, quanto dos mestres de tradição oral

daquela região, e a aproximação destes com as novas gerações. Foi possível

perceber um movimento ímpar dos mestres das tradições populares se conhecendo,

e se reconhecendo como guardiões da memória de sua comunidade, num processo

de reencontro com a importância de seu lugar e de seu papel para aquele local.

Durante uma visita à comunidade do Remanso9 (outra atividade do curso de

formação), pudemos conhecer, através dos próprios moradores, algumas das

tradições do local que se revitalizaram, como o funcionamento comunitário da casa

da farinha, a pesca artesanal, a roça de ervas medicinais de D. Judite, e a sanfona

“de 8 baixos” de Mestre Aurino10.

Neste dia passamos parte da tarde sentados embaixo de uma árvore, no

terreiro, ouvindo histórias da formação e vida da comunidade do Remanso, contadas

por Mestre Aurino – histórias saudosas das épocas de menino, das festas locais,

dos mitos e das criaturas encantadas dos rios e das matas. Nos contou sobre

algumas tradições que desapareceram e outras que ressurgiram, e da importância

de recordá-las e contá-las aos moradores mais jovens, aos professores e meninos

na escola, e aos visitantes que vinham “de fora”.

8 As Trilhas Griôs são roteiros oferecidos a grupos de pessoas que partem da sede do Grãos de Luz e são realizadas vivências, contação de histórias, encontros com griôs e mestres da tradição oral e visitação às comunidades. 9 Comunidade remanescente de quilombo, Remanso é a principal comunidade atendida pelo projeto. 10 Mestre Aurino, 67 anos, nascido e criado na comunidade do Remanso, trabalhou no garimpo, é pescador, sanfoneiro e mestre da tradição oral.

64

Nas palavras de Mestre Aurino: “O Grãos de Luz fez eu lembrar cada história,

cada coisa daqui do Remanso que eu nem lembrava mais, e hoje eu tô aqui

contando pro ceis”.

Mestre Aurino, contando “causos” no terreiro da comunidade do Remanso. Maio/201111

Aprendemos também com D. Judite a sabedoria ancestral das ervas, ouvindo

as histórias sobre os poderes medicinais de cada planta que ela cultivava no seu

terreno. D. Judite nos falou como ajuda a comunidade com seus chás e xaropes,

nos deu uma aula sobre o modo como cada erva deveria ser tratada para os

diferentes usos, nos contou como ela conseguiu recuperar algumas “qualidades” de

planta que “não davam mais na sua roça”, e como levou esse conhecimento para os

meninos da escola. “Teve um projeto junto com o Grãos aí na escola, e eu fui

ensinar pra que usa cada planta. Agora até os menino sabem” (D. Judite).

11 As fotos utilizadas para a apresentação deste trabalho, fazem parte de um acervo pessoal estruturado a partir dos registros realizados durante a construção da pesquisa.

65

D. Judite, 74 anos, ensinando sobre as propriedades medicinais das plantas. Comunidade do Remanso, maio/2011.

Apesar de essas atividades serem previamente organizadas para receber os

visitantes, numa espécie de demonstração do cotidiano da comunidade, as

conversas informais com os moradores e mestres locais evidenciam a importância

das ações do Projeto Griô para aquela comunidade, tanto na questão financeira

quanto em relação ao reconhecimento e valorização dos mestres de tradição oral e

revitalização de diversas manifestações da cultura popular local.

Esta estada na comunidade nos apresentou também toda essa revitalização

das tradições convivendo, se entrelaçando e se relacionando constantemente com

novas e outras manifestações culturais. O RAP, do grupo Racionais MC’s, que

tocava em alto e bom som ao chegarmos no terreiro do Remanso, deu lugar ao forró

66

do grupo local que encerrou as atividades ao cair da noite. Os jovens que, no fim do

dia chegavam da cidade em suas motos, ouvindo pagode em seus celulares,

juntavam-se a nós cantando e dançando as canções entoadas por estre Mestre

Aurino, (re)afirmando seus lugares nesses cruzamentos culturais.

2.2 Ação Griô Nacional: do que se trata?

Em setembro de 2005, a convite do então secretário de Cidadania Cultural do

Ministério da Cultura (MinC), Célio Turino, o atual Ponto de Cultura12 Grãos de Luz e

Griô, se incumbe de apresentar, numa gestão compartilhada com o MinC, um

projeto para a criação da Ação Griô Nacional. Em setembro do ano seguinte, em

Brasília, durante o I Encontro Sul-Americano de Culturas Populares, é lançada a

Ação Griô.

Trata-se de uma ação integrada aos Pontos de Cultura do Programa Cultura

Viva13 da Secretaria da Cidadania Cultural, e tem como missão:

Criar e instituir uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral em diálogo com a educação formal, para o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro, por meio do reconhecimento do lugar político, econômico e sócio cultural dos griôs, das griôs, mestres e mestras de tradição oral do Brasil (Ação Griô Nacional).

Assim, numa iniciativa inovadora, a Ação Griô, incentivando trocas de

experiências e estimulando vínculos entre comunidade e educadores e entre

gerações, propõe o diálogo direto entre os espaços de educação formal (escolas e

universidades), espaços não formais de educação (ONGs e outras entidades do

terceiro setor), e os mestres da cultura popular, para o planejamento e a

sistematização de práticas educativas que valorizem os saberes e fazeres de

tradição oral.

12 São entidades que firmam convênio com o Ministério da Cultura, via seleção de editais públicos, com o objetivo de desenvolver ações de caráter socioculturais em suas comunidades. 13 Vinculado ao MinC, este programa tem como objetivo principal “promover a cultura enquanto expressão e representação simbólica, direito e economia [...] ampliando e garantindo acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural” (Programa Cultura Viva)

67

A Ação Griô é gerida de forma compartilhada entre o Grãos de Luz e Griô, a

Secretaria de Programas e Projetos do Ministério da Cultura (SPPC/MinC)14,

equipes de coordenação regionais formadas por Pontões de Cultura15 e outras

entidades, além de secretarias e parceiros regionais e estaduais.

Atualmente, compartilhando a gestão da Rede Ação Griô encontram-se as

coordenações regionais: Pontão Ação Griô Regional Ventre do Sol (AL, PE, PB, SE

e RN); Pontão Ação Griô Rio de Janeiro (R.J.); Pontão Regional da Terra (SP, PR,

RS e SC); Pontão Ação Griô Nascentes e Veredas (DF, GO, MS, MG e ES); Pontão

Ação Griô Regional Amazônia (AM, PA RR, RO AC, AP, CE, PI, MA e TO); e,

Pontão Ação Griô Bahia (BA).

Cada Ponto de Cultura e ONG parceira da Ação Griô desenvolve um projeto

de educação e tradição oral em diálogo com os espaços de educação formal,

estudantes, griôs, mestres e parceiros locais de sua comunidade, articulado aos

propósitos da ação.

De forma geral, o Grãos de Luz e Griô atua na formação de griôs-

aprendizes16 que participam das redes regionais de transmissão oral,

compartilhando referências do diálogo proposto pela Pedagogia Griô entre a

tradição oral das comunidades e as escolas públicas; assessora os projetos

pedagógicos dos griôs aprendizes integrados às práticas pedagógicas dos pontos

de cultura, colaborando com a construção do lugar do griô-aprendiz, do educador

parceiro e dos griôs e mestres de tradição oral nas atividades com as escolas;

instrumentaliza griôs, mestres e educadores com produtos didáticos a fim de

potencializar seus projetos educacionais; e, finalmente, promove e facilita encontros

das redes regionais.

A Ação Griô, em parceria com a SPPC/MinC, elaborou e publicou, em

setembro de 2006, o primeiro edital convidando os pontos de cultura a apresentarem

14 Atual Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural 15 Estratégia criada pelo MinC para facilitar a articulação entre os pontos de cultura. 16 Para o Grãos de Luz e Griô, os griôs-aprendizes são líderes/educadores de grupos culturais e/ou associações locais, que trabalham com as tradições orais e participam de atividades e/ou iniciação com um mestre de tradição oral.

68

projetos pedagógicos que envolvessem griôs e mestres da tradição oral em parceria

com escolas e/ou universidades públicas, contemplando 50 projetos e

disponibilizando bolsa para 250 griôs e mestres. Em junho de 2008, o edital n.2 é

lançado17 com a Bolsa de Incentivo Griô, selecionando 100 projetos pedagógicos,

sendo 75 de Pontos de Cultura e 25 de outras organizações, e destinando mais 200

bolsas, no valor de 350,00 reais cada.

Em 2011, a Rede da Ação contou com a participação de 130 pontos de

cultura e organizações comunitárias, 750 griôs-aprendizes, griôs, mestres e

representantes da tradição oral no Brasil, em parceria com 600 escolas,

universidades e entidades de educação e cultura (Ação Griô Nacional).

2.3 A Lei Griô Nacional

Dentre as futuras missões da Rede Ação Griô, está a implementação da Lei

Griô Nacional18. Trata-se de um projeto de lei de iniciativa popular que propõe:

(...) criação de políticas de transmissão dos saberes e fazeres da cultura oral, por meio de mecanismos de reconhecimento formal dos mestres populares, bolsas de auxílio e integração com o sistema formal de ensino (Ação Griô Nacional).

Dessa forma, a Lei Griô busca instituir, no âmbito do Ministério da Cultura e

do Sistema Nacional de Cultura, uma política nacional de transmissão dos saberes e

fazeres da tradição oral em diálogo direto com a educação formal, por meio do

reconhecimento político, social, cultural e econômico dos mestres populares,

visando a fortalecer a identidade cultural e a ancestralidade do povo brasileiro. Para

isto, a proposta de Lei, dentre outras coisas, prevê capacitar os profissionais da

educação, por meio de trocas de saberes com os mestres da cultura popular, além

de garantir condições financeiras e pedagógicas para efetivar o trabalho desses

mestres.

17 Encontra-se em anexo (A) o edital de divulgação/2008 da Ação Griô. 18 Encontra-se em anexo (B) a minuta da Lei Griô.

69

O Projeto da Lei Griô Nacional foi formulado por uma Comissão Nacional de

griôs e mestres de tradição oral escolhidos pela Rede Ação Griô e contou com

contribuições e participação da sociedade brasileira por meio de encontros regionais

e nacionais e de uma página na internet. A proposta do projeto da Lei Griô saiu em

sua íntegra na Conferência Estadual de Cultura da Bahia, realizada em 2009, na

cidade de Ilhéus.

Assim, em 2010, durante a II Conferência Nacional de Cultura, dentre mais de

347 propostas, aprovar e implementar a Lei Griô Nacional foi eleita como uma das

prioridades de política de cultura no Brasil, e a Rede Ação Griô mobilizou-se em

busca de um milhão de assinaturas, para apresentar ao Poder Legislativo Federal o

projeto de lei. Segundo Márcio Caires, “a meta da Rede Ação Griô é, também, fazer

valer a Constituição Federal, garantindo o primeiro processo de uma lei de iniciativa

popular aprovado no Brasil”19

Numa iniciativa da Frente Parlamentar Mista de Cultura20 do Congresso

Nacional e de mais 24 deputados de diferentes partidos políticos, está em

tramitação desde julho de 2011, no Congresso Nacional, o projeto de Lei Griô

Nacional (PL 1.786/2011).

Compreendemos a importância deste processo principalmente no sentido de

suscitar uma discussão mais ampla na sociedade e no poder público à respeito da

formulação e implementação de políticas públicas que promovam e valorizem os

saberes e fazeres da cultura popular e de seus mestres, num movimento de

afirmação dessas culturas.

Neste viés, cabe a citação de Tereza Ventura, argumentando que:

A condição de excluído surge no discurso do rapper, nas lutas indígenas e étnicas, na imagem de grafites de rua, seja como arte ou como denúncia; a crônica do cotidiano circula no espaço onde o poder público e a mídia estão ausentes. Neste contexto, que papel teria uma política cultural? A política cultural seria a afirmação do

19 Cf. www.cultura.gov.br/culturaviva/a-lei-grio 20 Colegiado do Congresso Nacional que busca “debater temas estruturantes para a consolidação das políticas públicas culturais no país”. (Cf. http://frenteparlamentardecultura.org)

70

direito de uma existência pública em todo o significado de público, apesar da hegemonia de uma classe média educada como público e como destinatário de um discurso. Cabe às políticas públicas tornar público o ‘modus vivendi’ e as práticas daqueles concidadãos que vivem isolados por classes e escolaridade do processo de diferenciação e classificação dos bens e linguagens estéticas e culturais, processo em grande medida ocupado por grupos de elites (...) que estabelecem linguagens e relações verticais com aqueles que não são destinatários do seu discurso, mas o objeto de um discurso, seja ele estético ou político. A visibilidade deve transcender o caráter estético e ótico, a fim de traduzir a presença dos excluídos na produção e circulação de cultura (2010, p.121).

No caso da Lei Griô Nacional, a iniciativa de articular política cultural com

política educacional contribui para que esses saberes populares não sejam mais

colocados como tema secundário, ou subalterno, ocupando, de fato e de direito, os

espaços de construção do conhecimento. Sugere a elaboração e implementação de

conteúdos e práticas destinadas à valorização e legitimação dos saberes e fazeres

da cultura popular, da memória, e da preservação do patrimônio cultural imaterial

nacional.

2.4 Perspectivas futuras: lidando com as conquistas e dificuldades

A Ação Griô Nacional, embora relativamente recente, vem adquirindo grandes

proporções e conquistando os mais variados espaços e contextos. Assim, como em

todo projeto, além das conquistas, novos impasses e negociações passam a surgir

durante a caminhada, ou como afirma Moacir Gadotti:

Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em função das promessas que cada projeto contém de estado melhor que o presente (2000, p.37).

Nesta caminhada, em 2012, a Ação Griô iniciou a execução de um projeto de

implementação da Universidade Griô, que consiste num convênio com

universidades públicas do país para a realização de cursos de extensão, integrados

à diversas práticas de diálogo entre tradição oral, educação e cultura digital.

71

Tal ação, como as demais projetadas pela Rede Ação Griô, funciona numa

gestão compartilhada entre griôs e mestres de tradição oral, griôs aprendizes e

educadores griôs em parceria com as universidades públicas. Segundo seus

idealizadores:

O primeiro grande passo da Universidade Griô foi a participação ativa no Fórum de Pró-reitores de Extensão e Cultura para diálogo e implantação de políticas públicas relativas aos cursos de extensão nas universidades, em diálogo com a tradição oral brasileira. Os reitores identificam na iniciativa da Ação Griô uma estratégia inovadora e concreta para a realização dos objetivos acadêmicos da extensão no Brasil (Ação Griô Nacional).

A Universidade Griô já fechou parcerias e realizou suas primeiras ações, em

2012, com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com a Universidade

de São Paulo (USP). Na UFRJ, o projeto lançou o Laboratório de Políticas Culturais

Universidade Griô, “uma ação de pesquisa e extensão com gestão compartilhada

entre a universidade e movimentos sociais para elaborar, programar, hackear e

implementar políticas públicas para a cultura no Brasil” (Ação Griô Nacional). A USP

firmou sua parceria com a criação do curso de extensão na Pedagogia Griô e na

Produção Partilhada do Conhecimento, um curso que conta com a participação de

“tradicionalistas da capoeira angola, das etnias Karajá, Xavante e Bororó, e com os

griôs aprendizes Márcio Griô e Marcelo das Histórias”. (Ação Griô Nacional). Já

estão encaminhas, para 2013, as parcerias com a Universidade Federal da Bahia

(UFBA), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG) e outras

universidades federais.

Um impasse enfrentado atualmente pela Ação Griô refere-se ao

cancelamento, por parte do Ministério da Cultura, das Bolsas de Incentivo Griô em

2010. Esta suspensão no repasse das verbas provocou dificuldades e até

cancelamento de ações de alguns pontos de cultura participante da Rede, fato

amplamente debatido durante o último encontro de avaliação da Rede Ação Griô.

Entre os dias 15 e 17 de março de 2012, aconteceu, na cidade de Lençóis, o

último encontro de avaliação e planejamento da Rede Ação Griô. O evento,

coordenado pelo Grãos de Luz e Griô em parceria com Ministério da Cultura,

72

Secretaria de Educação e Cultura de Lençóis e Secretaria de Cultura do Estado da

Bahia, envolveu, além de representantes do Ministério da Cultura, a Comissão

Nacional dos Griôs e Mestres de Tradição Oral, coordenadores nacionais e

regionais da Rede Ação Griô, e representantes de parceiros do Grãos de Luz e Griô.

Com o essencial objetivo de reforçar as parcerias firmadas com instâncias

governamentais, este encontro apresentou como principais resultados:

(i) Criação de vínculo e pactuação de gestão compartilhada com a

Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC MinC) em

relação à Rede Ação Griô Nacional, firmada com a secretária Márcia

Rollemberg;

(ii) Conhecimento e contextualização histórica para a SCDC MinC da

Rede Ação Griô através de relatos e memória da Ação de 2006 a

2012, entregando à SCDC MinC registros e produtos que

instrumentalizam o plano para 2012;

(iii) Criação de um plano para a Ação Griô Nacional 2012, com ações

conclusivas e ações de continuidade conjuntas entre a Rede Ação Griô

e a SCDC MinC, diante do contexto político e orçamentário atual de

ambos, dentro dos temas: editais de bolsas de incentivo Griô; projetos

de coordenação da rede Ação Griô; Lei Griô no congresso nacional; e

relatórios do edital de bolsas de incentivo Griô.

Outra questão a se enfrentar, é o desafio encontrado pela Ação Griô em se

consolidar nos territórios urbanos, seja pela grande quantidade de ofertas de

projetos socioeducativos e culturais já existentes, ou pela maior dificuldade em se

articular estratégias de mobilização comunitária. A esse respeito, em sua pesquisa

sobre a Associação Grãos de Luz e Griô e a atuação da Ação Griô Nacional no

Centro de Cultura e Educação Lúdica da Rocinha, Rio de Janeiro, Juliana Lopes da

Silva conclui que:

(...) ficou evidente ser necessário realizar avanços na relação estabelecida entre a proposta pedagógica [da Ação Griô] e os professores/espaço escolar. Reconheço que um primeiro diálogo

73

está consolidado, porém a integração entre os pontos de cultura e escola precisa de uma maior atenção e talvez de novas estratégias de troca e possíveis conexões (2009, p.83).

Para melhor compreendermos o alcance e os limites desta proposta, além do

contato direto com o Grãos de Luz e Griô e o acompanhamento dos

desdobramentos das ações da Rede em âmbito nacional, realizamos um

mapeamento das atividades desenvolvidas pelos Pontos de Cultura participantes da

Rede Ação Griô, na cidade de Salvador21. O intuito foi estabelecer uma aproximação

que nos permitisse compreender os trabalhos que vêm sendo realizados em

conjunto com a Ação Griô, mapeando os fracassos e as conquistas, e sinalizando

para as possibilidades que este projeto pode realmente apresentar no que diz

respeito à valorização e legitimação dos saberes populares e a integração destes

com os saberes institucionalizados.

2.4.1 Com a palavra, os Pontos de Cultura

Embora já discutida durante minha estada na sede do Grãos de Luz e Griô,

em Lençóis, a questão da dificuldade em se optar por uma metodologia “eficaz”

quando tratamos de investigar a cultura popular e seus mestres confirmou-se em

minha prática.

Preparei-me para as visitas aos pontos de cultura munida de roteiro de

entrevistas, câmera fotográfica e gravador, mas foram as serenas e demoradas

conversas com os representantes dos espaços e principalmente com seus mestres,

que possibilitaram a emergência dos fatos e constatações mais relevantes para

nossa investigação.

Assim, buscamos em cada encontro, percorrer de forma intensa os caminhos

que nos foram apresentados, observando as condutas, percebendo as falas,

aproveitando cada história, cada depoimento, apreendendo cada informação e

registrando relatos.

21 Atualmente a Regional Bahia conta com a participação de 7 pontos de cultura em Salvador. Efetuamos o contato e a visitação com 5 desses espaços.

74

Espaço Cultural Pierre Verger

Anexo à sede da Fundação Pierre Verger, o Espaço Cultural Pierre Verger foi

criado em 2005, com o objetivo de colaborar com o desenvolvimento social e com a

formação dos moradores da comunidade da Vila América, que abriga a Fundação,

no bairro do Engenho Velho de Brotas. Neste mesmo ano, o Espaço tornou-se um

Ponto de Cultura, através do programa do MinC.

Enfatizando a cultura afro-brasileira, o Espaço desenvolve projetos culturais,

cursos e oficinas que visam a contribuir para a formação pessoal de jovens, adultos

e idosos daquela localidade, favorecer o intercâmbio com a África (desejo de Verger

presente no estatuto da Fundação) através de uma abordagem mais ampla das

temáticas afro-brasileiras junto àquela população, além de inserir a Fundação

efetivamente na comunidade.

Segundo a coordenadora geral do Espaço, Angela Elisabeth Lühning,

Verger tinha uma aproximação com a comunidade, embora ele não tivesse feito um trabalho sistemático”. [Em sua época], “...os vizinhos vinham muito para fazer perguntas, pedir autorização para pesquisar, receber uma orientação ou uma informação sobre Orixás, folhas, etc. (...) Verger tinha interesse que aquilo que ele tivesse, servisse para o público local. Agora, nós da Fundação e do Espaço Cultural, de certa maneira, interpretamos e expressamos esse modo de ser de Pierre Verger (Fundação Pierre Verger).

Minha visita ao Espaço Cultural Pierre Verger foi previamente agendada pela

coordenadora, Angela Elisabeth Lühning. Cheguei ao espaço por volta das 13:30

horas, e me pediram que aguardasse um pouco, pois Angela estava a caminho. Me

acomodei num banco próximo a um local bastante amplo, chamado de “praça”, onde

alguns meninos se atracavam, brincando de “lutar”, esperando o professor da oficina

de esporte chegar para iniciarem a aula. Logo vi uma senhora, caminhando com

certa dificuldade, seguir em direção a uma mesa onde haviam várias folhas de

bananeira. Calmamente ela pegou uma pequena faca que estava no bolso de seu

avental e começou a retirar as folhas, deixando apenas o caule central. Ainda bem

devagar ela se dirigiu aos meninos, que continuavam “lutando”, dispôs os caules

paralelamente no chão, e começou a ensiná-los uma outra forma de luta que ela

75

conhecia, uma luta muito antiga, onde um oponente deveria derrubar o outro,

olhando sempre nos seus olhos, sem ultrapassar os espaços delimitados e tocando

apenas nos seus braços. Em pouco tempo outros meninos, marcando os espaços

paralelos com suas sandálias, experimentavam, também, essa “outra forma mais

antiga de luta”.

Neste momento veio a meu encontro a coordenadora pedagógica do Espaço

Cultural, Jucélia Teixeira, que me vendo acompanhar os passos da senhora, disse:

“Você já conhece vovó Cíci?”

Fomos, então, formalmente apresentadas. D.Cíci, ou vovó Cíci como é

carinhosamente chamada por todos, é mestre-griô do Espaço Cultural Pierre Verger.

Logo D.Cíci sentou-se ao meu lado, perguntou se eu já conhecia o espaço e

eu respondi que não, que aquela era minha primeira visita à Fundação.

Prontamente, ela disse: “Então chega mais perto. Olha, não é porque eu sou

contadora de história não, mas você sabia...”. Ali passei um bom tempo ouvindo as

histórias de D.Cíci, desde a época em que ela trabalhava diretamente com Verger,

quem ela chama de “meu fatumbi”, catalogando fotografias e organizando

documentos, histórias das crianças que ela ajudou a criar e hoje são seus “netos”,

da importância da Fundação para a comunidade, e até como preparar a folha de

bananeira para cozinhar o abará.

D.Cíci perguntou, então, sobre o motivo de minha visita ao espaço. Ao lhe

falar que se tratava de um trabalho sobre a Ação Griô Nacional, ela imediatamente

começou a contar que infelizmente a Pierre Verger não estava mais realizando as

atividades nas escolas, que depois que as bolsas de auxílio foram canceladas ficou

bastante difícil manter só com o voluntariado. “Eu ainda mantive as atividades

voluntariamente por 3 meses, mas só para eu poder me deslocar até as escolas já

estava ficando muito caro, aí não deu mais”(D. Cíci).

A Mestre relata que, para ela o Projeto Griô é muito importante,

principalmente para as crianças conhecerem as histórias da sua comunidade. Diz

ainda, que sente muita falta de ir até as escolas e as crianças também sentem falta

76

de suas visitas. “Quando elas me encontram na rua, ou aqui no espaço mesmo, elas

já perguntam: Quando a senhora vai na minha escola de novo?” (D.Cíci).

D.Cíci enfatiza também a relevância para ela de uma proposta como a da

Ação Griô, que possibilita que suas histórias e sua cultura conheçam outras pessoas

e outros lugares, e sejam conhecidas por eles. Segundo D.Cíci afirma no livro Ação

Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro (2008, p.138):

Ao trabalhar com Pierre Fatumbi Verger, meu amado pai, comecei a aprender e a me interessar pelas histórias do maior griô da nossa cultura jêje-nagô, (...). Ao ter meu nome somado ao Projeto Griô, vi realizado um sonho de levar um pouco da minha cultura além do Espaço Cultural Pierre Verger. (...) O Projeto Griô me deu a oportunidade de conhecer outros costumes, outras culturas e outras vivências das quais eu só ouvia falar, e a grande oportunidade de contar por aí histórias de deuses, homens, bichos e mil encantamentos. O Projeto Griô fez minhas histórias criarem vida.

Com a chegada de Angela, me despeço de D. Cíci, e nos dirigimos,

acompanhadas por Jucélia, para a sala da administração. Expliquei rapidamente

sobre meu trabalho de pesquisa e pedi que elas contassem um pouco como

funciona a parceria com a Ação Griô Nacional.

Angela inicia relatando que a parceria com a Ação Griô aconteceu pela

primeira vez há cerca de 4 anos, através do edital da Ação para os Pontos de

Cultura. Segundo a coordenadora, este primeiro trabalho aconteceu de forma

bastante consistente e efetiva. Os projetos contaram com a figura da mestre griô,

D.Cíci neste caso, como eixo principal, com a colaboração do griô-aprendiz na

mediação dos trabalhos com as escolas e com a parceria de duas escolas que

“abraçaram” a ideia do projeto.

Entretanto, especialmente após o cancelamento das bolsas de auxílio, as

ações passaram a ser mais espaçadas, sendo rompidos os ciclos dos projetos,

inviabilizando a realização de um trabalho contínuo e significativo. De acordo com

Angela, eventualmente há convites das escolas para que D. Cíci participe de

algumas atividades, o que acaba favorecendo o encontro do que é feito no espaço

da Fundação com o espaço da escola, mas isso tem ocorrido de forma bem pontual,

77

e totalmente desconectado da proposta da Ação. Atualmente o Espaço Cultural

Pierre Verger não desenvolve nenhuma ação nos espaços escolares de seu

entorno.

Angela relata a forma positiva como a proposta da Ação Griô foi recebida pelo

Espaço Cultural, influenciando inclusive na maneira de pensar e executar seus

projetos. Ela afirma também que acredita na importância da proposta da Ação Griô

para a educação, na importância das crianças, especialmente as socialmente

excluídas, compreenderem que seu lugar, sua comunidade, têm história, e que essa

história é repleta de fatos e pessoas especiais e importantes. Porém, a

coordenadora aponta alguns fatores que ela considera primordiais para que “a Ação

realmente se firme, e não se transforme em mais uma proposta copiada e esvaziada

de sentido” (Angela Lühning).

Para a coordenadora, a existência (presença) do griô-aprendiz é de

fundamental importância na mediação das relações entre as escolas, ONGs, e

mestres, inclusive no trato de assuntos mais burocráticos, como aproximação e

agendamentos com os espaços escolares. Neste sentido, além do voluntariado se

tornar bastante complicado, pois requer disponibilidade de tempo e flexibilidade de

horários, há ainda a dificuldade de se encontrar (identificar) a pessoa com perfil do

griô-aprendiz, ou seja, conectado com a comunidade local, articulado com a

educação formal, e que tenha proximidade com os mestres.

Um outro ponto diz respeito à necessidade de uma parceria mais efetiva do

Ministério da Cultura ou qualquer outra instância governamental, no sentido de dar

continuidade ao projeto que foi muitas vezes interrompido por corte nas verbas,

mudanças de prazos, etc... Para isso, Angela e Jucélia concordam que a aprovação

da Lei Griô poderia contribuir, “provocando a ‘obrigatoriedade’ de manutenção da

proposta, de cursos de formação, de discussões a respeito, e não ficar à mercê do

próximo secretário, ou se tem ou não verba” (Jucélia Teixeira).

Por fim, as coordenadoras apontam como uma das principais dificuldades a

dependência da gestão e corpo docente da escola “abraçar” ou não o projeto.

78

Quando essa parceria não se estabelece de forma concreta, fica difícil envolver o

corpo docente, tornando, muitas vezes, as intervenções pontuais, como se fossem

atividades extra curriculares ou um momento de lazer e, assim, raramente o material

produzido é utilizado nas aulas ou em outros momentos na escola.

Angela exemplifica relatando uma experiência do próprio Espaço Cultural ao

firmar uma parceria da Ação Griô com uma escola municipal do entorno. Segundo a

coordenadora, a diretora da unidade escolar na época deste trabalho era bastante

engajada nas discussões de questões raciais e sociais, o que facilitou a entrada e

atuação da proposta da Ação Griô neste local, promovendo inclusive, com esta

parceria, mudanças significativas na escola, tanto no aspecto físico (limpeza,

manutenção do patrimônio) quanto nas questões pedagógicas e de convívio social.

Entretanto, houve o deslocamento dessa diretora para outra unidade escolar,

provocando a instalação de uma nova gestão, a qual decidiu não dar continuidade

aos trabalhos desenvolvidos pelo Espaço Cultural na escola, resultando no término

da parceria. Angela relata que tempos depois chegou à ela a informação de que a

interrupção do projeto aconteceu em função da nova gestão escolar relacionar a

proposta da Ação à atividades de caráter religioso, referindo-se as religiões de

matrizes africanas, o que, além de não compor o “conteúdo” escolar, distanciava-se

bastante da concepção religiosa dessa nova direção.

Neste viés, Jucélia reafirma seu entendimento de que a implementação da

Lei Griô poderia contribuir para que o projeto da Ação Griô não fosse mais entendido

como um apêndice, um momento de contação de história ou de atividade extra

curricular. Para ela, é “importante que o saber de tradição oral não seja visto apenas

como folclore, mas que faça parte do currículo, que seja visto como um saber

legitimado e não apenas como um instrumento de festa”. Jucélia defende a

importância da Ação Griô, “especialmente para que nossas crianças, que, muitas

vezes, têm vergonha de falar onde moram, conheçam e se reencontrem com suas

histórias, seus personagens e seu valor, para que possa se estabelecer, a partir

desse reconhecimento, relações com outras realidades”.

79

Apesar do breve contato, a disponibilidade e o acolhimento das pessoas que

me acompanharam durante a estada no Espaço Cultural Pierre Verger

possibilitaram que muitas facetas de sua parceria com a Ação Griô emergissem.

Logo de início ficou evidente a relevância da presença da mestre griô, D. Cíci,

para o Espaço. Observei o lugar da mestre se confirmando com o respeito das

crianças pedindo sua benção ao chegarem para as atividades, com os educadores

narrando episódios onde, muitas vezes, a vivência e sabedoria de D.Cíci

ultrapassavam os conteúdos dos livros, com as coordenadoras destacando a figura

da mestre griô como eixo principal em todas as atividades desenvolvidas com a

Ação Griô, e, como pude testemunhar, o esmero de D.Cíci ao compartilhar seus

muitos saberes com as outras pessoas, dos visitantes às próprias crianças.

A presença de concepções e práticas apresentadas pela Ação Griô nas

atividades do Espaço Cultural também são visíveis. A valorização da figura do

mestre de tradição oral e de seus saberes ancestrais, a utilização das rodas para

realização das atividades, bem como a cultura popular local como norteadora das

ações, são alguns elementos que foram introduzidos pelo Projeto Griô, e ainda

contemplam as atividades do Espaço Cultural Pierre Verger.

E, por fim, a conversa com as coordenadoras deixou bastante claro que a

proposta principal da Ação Griô Nacional de aproximação dos mestres e saberes da

cultura popular de tradição oral com a educação formal não obteve o êxito esperado

inicialmente. Para Angela e Jucélia, ainda que considerem o projeto de extrema

importância, concordam que a proposta ainda está muito longe de atingir seus

objetivos, que há uma longa jornada a ser trilhada com muitos desafios a serem

vencidos.

Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió

A Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió (ECAIG),

surgiu nos anos 60, na cidade de Alagoinhas, interior baiano. Hoje, com instalações

80

no Pelourinho e no Forte Santo Antonio, em Salvador, a escola oferece aulas de

capoeira angola aos alunos e comunidade em geral.

“Enquanto escola de capoeira angola, os ensinamentos repassados pelo

mestre Curió adotam uma metodologia de ensino e aprendizado mantedor da

tradição da capoeira angola adotados pelo mestre Pastinha” (ECAIG)22.

Agendada anteriormente, minha conversa com mestre Curió aconteceu numa

segunda-feira à tarde, no Forte Santo Antônio23. Ao chegar no espaço de

funcionamento do seu grupo de capoeira, encontrei o mestre sentado numa cadeira,

ouvindo a televisão e remexendo alguns papéis. Apresentei-me, confirmei o

encontro combinado para aquele dia e perguntei se poderíamos conversar um

pouco. Ele me fitou por alguns instantes, levantou-se vagarosamente e arrastou uma

cadeira para que eu pudesse me sentar também. Então me perguntou: “Pois não, o

que a senhora deseja?”.

Expliquei ao mestre Curió as preocupações, objetivos e aspirações de minha

pesquisa, mencionando a relação com o Grãos de Luz e Griô e o projeto da Ação

Griô Nacional. Ao terminar minhas explanações, o mestre levantou seu olhar,

encarou-me, e disse: “Primeiro eu gostaria de fazer uma pergunta. Qual seu

interesse em estudar sobre isso?”.

Confesso que não esperava aquela pergunta. Busquei, então, trazer para

nosso diálogo além das motivações que impulsionaram a realização do estudo, um

pouco de minha vivência, de minha crença na riqueza de saberes inerente ao

universo da cultura popular e da importância, aos meus olhos, desses saberes e

fazeres dialogarem com os saberes escolares.

Mestre Curió inicia, então, nossa conversa. “Já vou logo te dizendo que eu

sou muito honesto, que o que eu tenho pra dizer eu digo logo, sou até conhecido por

22 Cf. http://ecaigblogspot.com.br 23 Construído no séc. XV, o Forte Santo Antônio Além do Carmo serviu de fortaleza durante as invasões Holandesas no Brasil. Em 2006, após passar por uma grande reforma, o forte foi reaberto como Forte da Capoeira – Centro de Referência, Pesquisa e Memória da Capoeira na Bahia, tendo como objetivos preservar e promover a capoeira.

81

aí como ‘encrenqueiro’, mas é porque se eu não concordar eu falo. Eu acho que a

universidade não ajuda a gente em nada. A universidade vem aqui, aprende com a

gente, usa o nosso saber e depois não dá nada em troca”.

A partir deste depoimento, mestre Curió relatou diversas situações onde sua

relação com a universidade se estabeleceu de maneira conflituosa, envolvendo,

segundo ele, até problemas com direitos autorais. Neste mesmo viés, o mestre

coloca que entende a postura do governo da mesma forma, como uma instância que

se aproxima da cultura popular e de seus mestres apenas com o intuito de servir-se

deles. Para ele, “O governo, a universidade não reconhecem nossa sabedoria nem

valorizam nosso trabalho, então porque eles querem se aproximar? Pra poder usar,

essa é a palavra, usar!”.

E assim, durante um bom tempo, mestre Curió discorreu sobre os mais

diversos episódios em que seus projetos ligados ao governo ou à universidade

resultaram em verdadeiros fracassos e decepções. Sua fala expressava muito

claramente sua incredulidade e desconfiança em relação a programas

governamentais e universitários destinados à cultura popular.

Assim, peço ao mestre que me fale um pouco sobre a maneira como funciona

a parceria entre o seu grupo de capoeira e a Ação Griô. Ele relata que a parceria

com o Grãos de Luz iniciou-se quando o seu espaço de capoeira virou Ponto de

Cultura. Afirma, entretanto, que já realizava um trabalho de levar a capoeira angola

para as comunidades carentes e para os meninos em situação de risco, muito antes

de estabelecer a parceria com a Ação, e que essa parceria contribuiu especialmente

com a questão financeira, pois as verbas que chegaram inicialmente permitiram uma

melhor realização das atividades e eventos do grupo.

Entretanto, problemas com o repasse de verbas do Ministério da Cultura para

a Ação Griô, e com a prestação de contas de alguns Pontos de Cultura levaram ao

bloqueio das verbas para diversas instituições, fato que mestre Curió relata com

bastante desapontamento. “Além do restante do dinheiro para nossos projetos

estarem presos, eu já tive que ir até Brasília prestar conta de coisas que eu nem

82

entendo. Eu acho que o pessoal de Lençóis tinha obrigação de dar uma assistência

jurídica pra gente, eu já falei com eles, ficaram de mandar alguém pra ajudar nessas

contas, e até agora nada. A gente entra no projeto, vai chegando dinheiro na nossa

conta, nós fomos fazendo o trabalho sem saber direito o que podia e o que não

podia ser feito. Graças a Deus, eu tenho um nome conhecido e respeitado, e eu

consegui esclarecer tudo, mas o dinheiro ainda tá lá, preso”.

Mestre Curió continua enfatizando a maneira como as propostas de trabalho

com a Ação funcionaram apenas no início, tanto na parte financeira, quanto na

efetivação de projetos. Para o mestre “O pessoal lá de Lençóis até tem boa vontade,

mas começaram a ficar grande demais e não deram mais conta. Só duas pessoas

pra resolver tudo. Eu acho que eles tinham que ter um grupo de pessoas pra dar

assistência aqui na Bahia, outro pra São Paulo, assim... cada um pra um lugar, aí

ficava melhor”.

Perguntei ao mestre se a efetivação da Lei Griô não poderia ser uma forma

de contribuir com o sucesso deste projeto junto aos grupos que participam dele. Ele

colocou que “a lei é outra forma do governo usar os mestres e o que a gente sabe

pra se promover. Fica que nem aquela lei de colocar a história da África nas

escolas, é só pro governo parecer que tá fazendo alguma coisa. Uma vez me

chamaram pra fazer um trabalho com a capoeira numa escola, pra atender essa lei.

Já começa que lá tem o caso do preconceito, porque a maioria é cristão e acha que

nós estamos mexendo com coisa de religião. Depois, quando veio um pagamento

pelo nosso trabalho, o valor da aula era 3 reais e qualquer coisa, não dava nem pro

transporte. Não é pelo dinheiro não, é pela desvalorização do nosso trabalho, por

usar um conhecimento nosso, que não está no banco da ciência, no papel, mas um

conhecimento que está nos 62 anos dentro do que eu faço, que é a capoeira

angola”.

No tempo que passamos conversando, muitos assuntos vieram à tona.

Mestre Curió contou passagens de sua vida como chefe de cozinha, histórias de

outros mestres que também têm seus espaços no forte, de sua dificuldade em

manter o espaço e de viver somente da capoeira; enfim, de como conduzia seu dia a

83

dia. Em todos os episódios narrados, o mestre deixa muito explícito seu

desapontamento e descrença nos projetos concebidos fora do universo da cultura

popular e que se propõem a contribuir, de alguma forma, com seu fortalecimento.

Denotando em muitos momentos uma revolta pessoal, para ele não há preocupação

ou intenção com a cultura popular em outras instâncias que não perpasse pelo

interesse.

Insisti com mestre Curió que eu realizava meu trabalho de pesquisa na

universidade porque acreditava que ele podia colaborar, de alguma maneira, com as

questões de valorização e legitimação desses saberes populares e de seus mestres;

ele me respondeu: “Eu estou vendo sua boa intenção, mas pode acreditar que você

é mais uma isca que estão jogando para pegarem nosso saber e se aproveitarem”.

Despedi-me de mestre Curió agradecendo muito nossa conversa, ao mesmo

tempo em que ele se desculpava pela sua extrema franqueza.

Fica evidente nas narrativas do mestre que muitos de seus posicionamentos

relativos às instâncias acadêmicas e governamentais são frutos de suas

experiências pessoais com esses universos. Experiências narradas que corroboram,

conforme debatemos anteriormente, com a perspectiva da habilidade de instâncias

hegemônicas em cooptar os saberes e fazeres desse rico universo que é a cultura

popular, usurpando sua criatividade, manipulando seu potencial crítico e contestador

e transformando-os em produtos de mercado.

Com relação à parceria firmada com a Rede Ação Griô Nacional, o

distanciamento das ações da Rede em relação ao Ponto de Cultura apontado nos

depoimentos do mestre, confirmou-se com a observação das atividades em

andamento e projetos futuros do espaço, que não apresentam, nem mesmo

mencionam, a parceria com a Ação Griô.

84

Associação Cultural Beneficente de Apoio aos Trabalhadores da Bahia (ACAT)

Instituição privada sem fins lucrativos, a Associação Cultural Beneficente de

Apoio aos Trabalhadores da Bahia foi fundada em 31 de agosto de 1999, com o

objetivo de capacitar adolescentes com ensino profissionalizante em artes plástica e

artesanato, inclusão digital e reforço educacional e alimentar, atuando no bairro da

Boca do Rio, Salvador, Bahia. No ano de 2004 foi selecionado como Ponto de

Cultura pelo Ministério da Cultura, passando a integrar também a Rede Ação Griô

Nacional com o projeto Sementes da Roça, referenciando o Terno de Reis de

Mestre Gaguinho.

Tendo à frente a griô-aprendiz Maria das Graças Santos da Silva, a ACAT

conta com a parceria de Mestre Gaguinho na fundamentação e execução da maioria

de seus projetos. Nascido na cidade de Santa Bárbara, interior do estado da Bahia,

Mestre Gaguinho é compositor, cantador, sambador e coordenador do Terno de

Reis24 Semente da Roça.

Cheguei ao espaço da ACAT pela manhã, uma casa simples no bairro da

Boca do Rio, recém alugada pela Associação. Fui recebida pela própria

coordenadora e griô-aprendiz Maria das Graças, que me pediu que aguardasse

alguns instantes, pois ela estava atendendo um grupo de senhoras da comunidade.

Pouco tempo depois fui encaminhada para uma das salas do espaço, onde nos

sentamos e iniciamos nossa conversa.

Apresentei-me a ela, expliquei sobre o propósito de minha visita, sobre meu

trabalho de pesquisa e então pedi que ela me falasse um pouco sobre a Associação

e a parceria com a Ação Griô.

Marias das Graças iniciou seu relato contando que a parceria com a Ação

Griô estava “muito devagar!!!”. Segundo a coordenadora, desde 2010, quando

24 Tradição que chegou ao Brasil por intermédio dos portugueses, no Terno de Reis, durante o mês de dezembro até o dia 6 de janeiro, um grupo formado por cantadores e instrumentistas percorrem as casas de uma localidade do início da noite até o amanhecer. Na chegada saúdam os donos da casa e pedem para entrar, louvam o menino Jesus, e a cantoria é cessada quando os moradores, a exemplo dos Reis magos, presenteiam o grupo com comidas e bebidas. Diz a tradição que quem recebe o Terno de Reis tem sua casa abençoada.

85

houve o cancelamento das bolsas de auxílio financeiro para os mestres e griôs-

aprendizes, os trabalhos em parceria com a Ação quase não acontecem. Ela

colocou que, com o corte das verbas, a Associação acabou perdendo alguns de

seus colaboradores que precisaram trabalhar em outros lugares, e até mesmo o

próprio Mestre Gaguinho precisou retomar algumas atividades extras para

complementar a renda e sustentar sua família.

Maria das Graças relata ainda que os trabalhos de atendimento à população

do bairro da Boca do Rio pela ACAT já vêm acontecendo há algum tempo, antes

mesmo da parceria com a Ação Griô. Segundo a coordenadora a Associação

desenvolve seus projetos com apoio de editais e programas governamentais em que

são contemplados, e que inclusive foi através destes mecanismos que estabeleceu

a parceria com a Ação.

A coordenadora conta que a aproximação com as concepções e propostas do

projeto griô foi de fundamental importância tanto para a estruturação de novos

projetos da ACAT quanto para repensar e reorganizar os trabalhos que já vinham

sendo realizados pela Associação. Em seu relato, Maria das Graças explica: “por

exemplo, eu já conhecia Mestre Gaguinho há algum tempo, de outros trabalhos que

a ACAT realizou; eu sabia que a arte, a vivência do mestre podiam contribuir muito

com os nossos trabalhos, mas eu não sabia como agregar toda aquela sabedoria

aos objetivos dos projetos. Aí, quando eu conheci as propostas, o modelo de ação

do projeto griô, eu descobri que não era apenas possível, mas era necessário

desenvolver esse trabalho de resgate das tradições orais e de seus mestres,

especialmente para as comunidades tão carentes como a nossa”

Maria das Graças contou sobre alguns projetos que a Associação

desenvolveu em escolas públicas da região, destacando o projeto “caminho das

águas”, onde o objetivo era levar as crianças a conhecerem as etapas percorridas

pela água, até chegar às torneiras das casas. Este trabalho iniciou-se com Mestre

Gaguinho rememorando os percursos e histórias que envolviam as questões da

distribuição de água no bairro em tempos remotos. O Mestre refez, juntamente com

os alunos, os caminhos por onde corriam os riachos que antigamente abasteciam o

86

bairro; contou-lhes como alguns homens viviam da venda da água, que era

transportada dos riachos até os “fregueses” em pequenos barris carregados por

burros ou cavalos – dentre outros conhecimentos. Após a finalização desta primeira

etapa, seguiram-se as aulas e visitas a outros locais de tratamento e abastecimento

de água, dando continuidade ao projeto.

A coordenadora reforça que acredita ser muito importante esse modelo de

ação, que valoriza a cultura popular local e seus mestres, principalmente em regiões

onde a dificuldade financeira, a violência, a desestruturação familiar, dentre outros

problemas sociais são tão agravados. Para Maria das Graças, é necessário que as

crianças e jovens possam estabelecer relações positivas com os locais onde vivem,

perceber a importância histórica e cultural que cada local possui, valorizar suas

tradições, seus mestres, enfim, estabelecer relações de afeto com sua comunidade,

processos que, para ela, são amplamente contemplados pelas propostas e

concepções da Ação Griô.

Perguntei à coordenadora se ela acredita que a efetivação da Lei Griô

poderia, de alguma forma, contribuir para que projetos como esses possam ser

realizados nas escolas novamente. Graça afirma que não entende muito bem o que

a Ação pretende com essa lei: para ela, a lei do projeto Cultura Viva do Ministério da

Cultura já é suficiente para o funcionamento da Rede, desde que seus termos sejam

cumpridos.

A narrativa da coordenadora deixou bem claro o seu desconhecimento sobre

o conteúdo e a proposta da Lei Griô, bem como a situação em que se encontram as

tramitações legais para sua efetivação, denotando tanto uma alienação por parte da

ACAT sobre esse processo quanto um certo distanciamento da Ação Griô, no que

se refere ao suporte e acompanhamento deste Ponto de Cultura integrante da Rede.

No decorrer deste encontro – entre conversas, exemplos e observações –

ficou evidente que a ACAT funciona de acordo com os financiamentos (editais,

projetos governamentais) disponíveis. Seja na área cultural, de educação ou saúde,

87

o objetivo primeiro da Associação é atender, de alguma forma, a comunidade em

que está inserida.

Porém, ficou explícita também a relevância do encontro com o Projeto Griô

para a Associação. Embora não apresente uma única linha norteadora de seus

trabalhos, as concepções da Ação Griô, via de regra, encontram-se presentes em

suas ações. Um exemplo é o atual projeto em andamento no espaço que, em

parceria com a prefeitura municipal de Salvador, desenvolve na comunidade uma

campanha de melhoria na qualidade de vida, pautada na reeducação alimentar e na

medicina natural. Para isso, além da parceria com médicos e nutricionistas, a

Associação buscou nas rezadeiras e benzedeiras25 locais a sabedoria ancestral das

ervas medicinais para integrar o projeto.

Maria das Graças relata também que para o próximo ano de 2013, ela tem

um projeto de seguir a trilha de Mestre Gaguinho em sua cidade natal, Santa

Bárbara, pois afirma estar sentindo necessidade de conhecer mais a fundo sua

história, suas tradições, (re)viver seu terno de reis, enfim, como ela mesmo diz: “tem

hora que é preciso beber direto da fonte”.

Ao final de nosso encontro, agradeço a ela pela atenção e pela agradável

manhã que passei no espaço e me despeço, com Graça dizendo: “Qualquer outra

informação que você precisar e eu puder dar é só entrar em contato comigo, viu! Até

porque, mesmo se a Ação Griô acabar um dia – eu espero que isso nunca aconteça

– eu vou continuar fazendo este trabalho, eu vou ser sempre uma griô, sempre

aprendiz!”.

Grupo Cultural de Entretenimento Mamulengos da Bahia

O Grupo Cultural Mamulengos da Bahia nasceu na escola de teatro da

Universidade Federal da Bahia em 1975, quando alguns alunos do curso de

formação de atores participaram de uma oficina com um importante bonequeiro do

25 Originárias das culturas africanas e indígenas, as benzedeiras ou rezadeiras são curandeiras que, através da sabedoria popular das rezas e do uso medicinal das ervas, tratam de diversos “males” do corpo e do espírito.

88

Recife, despertando um interesse especial em Elias Bomfim dos Santos (fundador

do grupo) pela arte e pela manutenção da tradição do teatro de mamulengo na

Bahia.

Com sede no Pelourinho e uma filial em São Tomé de Paripe, subúrbio de

Salvador, o Grupo Mamulengos da Bahia trabalha viabilizando a formação de novos

bonequeiros e grupos de teatro de bonecos em comunidades carentes, além de

utilizar-se da arte do boneco de mamulengo como ferramenta pedagógica em

projetos sociais e educacionais nas escolas públicas da cidade.

O encontro com Mestre Elias aconteceu no bairro de Tubarão, Subúrbio

Ferroviário, local onde reside. Sentados à beira mar, na companhia da griô-aprendiz

Adriana Rosário dos Santos iniciamos nossa conversa. O mestre começou falando

sobre sua história pessoal com o teatro de bonecos, contou sobre a formação do

grupo de bonequeiros e de como “o medo da arte do teatro de bonecos acabar levou

um grupo do curso de teatro da UFBA a fundar o Mamulengos da Bahia”. Continuou

explicando como funcionam hoje seus projetos dentro do ponto de cultura e do

centro cultural que eles fundaram no bairro de Tubarão, e sobre a relação de seu

trabalho com a escola local. Mestre Elias relata que a parceria com a escola já vem

acontecendo há algum tempo, o que contribuí para que direção, gestão e

professores colaborem com a realização de diferentes trabalhos na unidade escolar;

além de parte dos alunos da escola também frequentarem os cursos oferecidos pelo

centro cultural, facilitando o diálogo. Segundo o Mestre, “esses jovens da escola,

que participam das atividades do centro cultural, eles próprios procuram trazer

outros jovens, os amigos, para a arte do teatro de bonecos”.

Ao enfatizar que o grupo de teatro de bonecos é sempre convidado para

participar de eventos promovidos pela escola, pergunto sobre a relação de sua arte

com o cotidiano escolar, com os processos de ensino e aprendizagem, para além

das festividades. Mestre Elias coloca que neste sentido se sente um privilegiado,

pois sua arte, o teatro de bonecos, é também muito requisitada como ferramenta

para o ensino das disciplinas, o que favorece sua permanência na escola. Adriana

complementa, afirmando que “os professores descobriram que o teatro de bonecos

89

é uma possibilidade de ensino muito prazerosa, pois realiza o aprendizado através

do lúdico, da brincadeira, que é muito mais próximo da linguagem das crianças,

muito mais fácil e eficiente que os métodos convencionais”. Mestre Elias conclui,

afirmando que não enfrenta dificuldades para trabalhar com a escola da

comunidade, pois tem acesso livre para criar e realizar suas atividades no espaço

escolar, para ele, a dificuldade está mesmo em fazer com que próprios jovens se

interessarem pela arte. “Com tanto bombardeio de informação da mídia de massa é

muito difícil fazer os meninos se interessarem pelas cantigas de roda, pelas nossas

histórias, pela arte dos bonecos. Eu já fiz trabalhos em muitas comunidades, em

diferentes locais, e a maior dificuldade mesmo é fazer com que os meninos

apreciem uma outra cultura que não as da grandes mídias” (Mestre Elias).

Aproveito o momento e pergunto se a parceria com a Ação Griô Nacional não

tem como proposta justamente interferir, modificar este cenário, onde as

manifestações da cultura popular são, quase sempre, folclorizadas e

desvalorizadas? Mestre Elias relata que quando conheceu e se aproximou das

propostas da Ação o que ele vislumbrou foi um meio de fortalecer um trabalho que

ele já desenvolvia e acreditava, a manutenção e valorização de uma cultura popular

de tradição oral que estava desaparecendo, o teatro de bonecos. Ele narra: “Quando

eu conheci a proposta da Ação Griô eu descobri que eu era um griô, e que eu podia

espalhar a semente, manter viva a arte do teatro de bonecos e possibilitar que

jovens envolvidos com os projetos percebam que há outras alternativas na vida”.

Sobre a parceria com a Ação Griô atualmente, Mestre Elias afirma que o que

vem acontecendo são ações bastante pontuais, participações esporádicas em

projetos e oficinas na sede do Grãos de Luz, alguns encontros para discutir sobre a

Lei Griô, mas nada sistemático. Segundo o mestre, desde o ano de 2010, quando as

bolsas de auxílio financeiro foram canceladas, não são efetivados projetos contínuos

em parceria com a Ação. O mestre afirma ainda que, “o grupo Mamulengos da

Bahia já tem um trabalho consolidado de muitos anos, então, quando a parceria com

a Ação Griô funciona, potencializa suas ações, inclusive pelo suporte financeiro.

Mas, como agora, que já estamos há uns 2 anos sem a parceria, os trabalhos do

90

grupo e do centro cultural continuam acontecendo. Já os pontos de cultura que se

estruturam especificamente para as atividades da Ação Griô, hoje não estão

conseguindo funcionar”.

Pergunto então ao mestre se a efetivação da Lei Griô não poderia ajudar a

modificar essa situação, e ele argumenta: “Eu não acredito que assinar uma lei vá

mudar muita coisa. A lei vai sim ajudar no sentido dos mestres terem suporte

financeiro, pedagógico e de estrutura com as bolsas para realizar seus trabalhos,

mas como eu já disse antes, a dificuldade de consolidar essa proposta está em tocar

as pessoas, em fazer elas entenderem a importância desses saberes da cultura

popular de tradição oral para a vida”.

Mestre Elias finaliza nosso encontro afirmando que para ele “esse trabalho da

Ação Griô é muito bom e muito importante, mas também acho que esses meninos,

Márcio e Líllian, tem um grande desafio aí pela frente”.

A conversa com Mestre Elias evidenciou que o encontro com as propostas

da Ação Griô contribuiu para fortalecer um trabalho, já em curso, de reconhecimento

e valorização da cultura popular de tradição oral – neste caso o teatro de bonecos –

reforçando o lugar de importância dos mestres e griôs, viabilizando projetos e

potencializando ações. Apontou, também, como em outros momentos, que esta

parceria não vem se estabelecendo de maneira efetiva. O distanciamento entre a

Ação Griô e os espaços parceiros, bem como a escassez de recursos financeiros,

vem inviabilizando ações mais contínuas e a consolidação da proposta junto aos

pontos de cultura participantes da Rede Ação Griô.

Grupo de Capoeira Ginga e Malícia

O Grupo de Capoeira Ginga e Malícia, tendo como líder Valcir Batista Lima –

Mestre Marinheiro – nasceu na Baixa da Égua, comunidade do bairro do Engenho

Velho da Federação. A entidade se destaca pelo ensino e divulgação da capoeira

regional e pelos projetos sócio-culturais e educacionais que desenvolve na

comunidade.

91

Com aproximadamente 20 anos de existência, o grupo tem como objetivo

preservar as tradições culturais através da capoeira, desenvolvendo ações culturais

e educacionais na comunidade em que está inserida.

O encontro com Mestre Marinheiro aconteceu na orla de Salvador, local onde

ele trabalha como salva vidas. Ao chegar apresentei-me, falei sobre o projeto de

minha pesquisa e sobre os propósitos da visita. Pedi, então, que ele me contasse

um pouco sobre a parceria com a Ação Griô. Mestre Marinheiro foi logo afirmando

que “o encontro com a Ação Griô, com Márcio e Líllian, foi uma maravilha, uma

benção para nós que trabalhamos para o fortalecimento da cultura popular”.

Marinheiro narrou como o encontro com a Ação Griô foi importante para seu

trabalho, tanto no sentido de dar visibilidade ao que ele já vinha fazendo quanto pela

possibilidade de aprender com as trocas de informações e conhecimentos que eram

gerados nos encontros promovidos pela Ação e/ou pelo Ministério da Cultura,

através das Teias de Cultura26.

O Mestre relembra alguns destes momentos pontuando a beleza do encontro

com as diferentes etnias indígenas; a aprendizagem construída com as mais

diversas manifestações da cultura popular, oriundas de vários cantos do país; e a

possibilidade, neste manancial cultural, de divulgar o seu saber, que é a capoeira.

Neste contexto, Marinheiro destaca também a relevância deste processo para que

os próprios mestres da cultura popular se autorizassem produtores e socializadores

de conhecimentos e ocupassem seus lugares de importância cultural e social. Ele

afirma: “sabe lá o que é pra uma cara lá da roça, lá da favela, onde ele não era

nada, pegar um avião e entrar num hotel cinco estrelas em São Paulo para discutir

com gente do governo sobre política de cultura? Você sentar, conversar, discutir, de

igual para igual, e no final do dia ter lá um documento com as propostas, os

encaminhamentos? Isso era um aprendizado e uma conquista!”

26 Teia é o encontro nacional dos Pontos de Cultura, e também os encontros regionais que integram o Programa Cultura Viva.

92

Em outras oportunidades durante nossa conversa, Marinheiro ainda destaca

as possibilidades que as propostas da Ação Griô trouxeram para que os mestres

pudessem se firmar e se afirmar enquanto agentes culturais, políticos, educacionais

e sociais, dentro e fora de suas comunidades de pertencimento, ocupando

diferentes papéis e lugares sociais.

Neste viés, a partir de sua vivência na capoeira regional, ele aponta a

dificuldade que a capoeira e seus mestres têm em ser reconhecido e valorizados

para além do espetáculo, especialmente aqui no Brasil. Em seu relato Marinheiro

diz: “me lembro quando eu tentava fazer algum trabalho nas escolas e era barrado

na hora porque os professores achavam que aquilo não era importante, ou que ali

não era lugar. Veja bem, eu não tô falando dos porteiros, das cozinheiras, que não

têm estudo, eu tô falando dos que tiveram instrução, os professores! Eu já tive

algumas experiências fora do país, e pra mim foi muito diferente. Nos lugares que eu

visitava, que eu passava, eu era valorizado, eu era respeitado como mestre de

capoeira.” O Mestre continua sua narrativa, colocando que, para ele, as concepções

e práticas da Ação Griô contribuem muito com esses processos de reconhecimento

e valorização da cultura de tradição oral e de seus mestres.

Pergunto, então, como vem se estabelecendo essa parceria. Com bastante

penar, Marinheiro afirma que desde que a nova presidente assumiu o governo e

efetuou algumas mudanças no MinC, todas as ações foram interrompidas. Para ele,

um dos motivos refere-se à mudança no quadro de funcionários – apontando para o

descaso e o desinteresse por parte dos atuais ministros e secretários. Outro

argumento refere-se ao cancelamento das verbas, ocorridas em função do corte nos

financiamentos e dos ajustes nas prestações de contas de recursos já

contemplados. Segundo o Mestre, “Eles [o governo] deram o dinheiro e uma oficina

explicando como prestar contas. Nós fizemos exatamente como foi orientado por

eles, e depois, não era mais daquele jeito! O que eu posso fazer, se a orientação

veio deles? O pior é que tem um monte de pontos de cultura nessa mesma situação,

com verba presa lá!”.

93

O Mestre continua, quase num desabafo, afirmando que está cansado de

“nadar contra a corrente”, que ele está vendo sua comunidade cair nas mãos do

tráfico, aumentando a violência, e não consegue fazer nada, se sente de mãos

amarradas. Ele enfatiza que o encontro com a Ação Griô fortaleceu suas atividades

e orientou muitas ações, mas que ao longo destes mais de 20 anos de trabalho na

sua comunidade, ele aprendeu que para as coisas funcionarem é necessário

dinheiro. Segundo Marinheiro, “As conversas se vão e o dinheiro dos projetos é que

fazem eles funcionarem. O dinheiro dos editais chega, você implementa o trabalho,

e depois não tem como dar continuidade. Eu não posso pagar um professor, fazer

uma manutenção nos equipamentos, e tudo mais. Acabam sendo projetos com

duração de um ou dois anos, e não é isso que a comunidade precisa!”.

Questiono qual o papel da Lei Griô neste processo. O mestre afirma que ele

entende a lei como um apoio para as escolas, para a educação, mas que,

particularmente no seu caso não será muito eficiente, uma vez que ele já tem um

trabalho bastante consolidado na escola pública local. Para ele, a falta absoluta da

presença do Estado, nos mais diversos sentidos, é que vem guiando a sua

comunidade para o caminho perverso que ela está tomando hoje.

A conversa com Mestre Marinheiro apontou que, a principal contribuição que

a parceria com a Ação Griô trouxe para seu espaço de trabalho foi o fortalecimento

do lugar de importância política, cultural e social da cultura de tradição oral e de

seus mestres, promovendo situações e experiências de valorização e

reconhecimento destes mestres e de seus saberes. Denotou, também, que a

parceria não vem se efetuando e que a falta de apoio das instâncias governamentais

aparece, novamente, como responsável por esse enfraquecimento.

Enfim, a aproximação com os espaços parceiros da Ação Griô Nacional

revelou que o encontro com as propostas da Ação Griô contribuiu, de algum forma,

com o fortalecimento dos trabalhos de valorização da cultura de tradição oral que

esses espaços já realizavam. Seja na ampliação dos projetos, no encontro com os

griôs e com as escolas, no reconhecimento do lugar de importância dessas

manifestações e de seus mestres, ou mesmo na questão financeira (apontada aqui

94

como uma das partes fundante das parcerias), essa aproximação vem revigorando

concepções e práticas de afirmação e valorização da cultura popular de tradição

oral.

Entretanto, de acordo com os próprios pontos de cultura, essa parceria não

tem mais se efetivado, sendo apontado como principal causa o corte – por parte do

Ministério da Cultura – nas verbas para os projetos da Ação Griô. Essa situação de

distanciamento além de enfraquecer, ou mesmo findar, os propósitos e objetivos da

Ação, ratificam uma relação de dependência com as instâncias governamentais e

legais que acabam por subordinar a execução e êxito da proposta às ofertas

advindas dessas instâncias. É tão evidente a necessidade de suporte financeiro

para a execução de qualquer projeto, quanto a importância das contribuição do

Estado nestas questões. Entretanto, o que apontamos aqui, é a necessidade de um

cuidado para que essa parceria com o poder público não se torne uma condição de

existência, e que assim, a autonomia e autenticidade dessas propostas sejam

garantidas.

95

3 CAPÍTULO 3 – DIALOGANDO COM A REALIDADE

Com inspiração na Bahia

Contra a escravidão e a opressão

Malês

Ícones da insurreição

E o poder da África? Esta aqui

E a força da África? Esta entre nós

E a comunidade negra clama numa só voz:

Reparação já, não estamos sós!

Trecho da música: Malê, a insurreição (Malê Debale e Emicida).

Para melhor acompanhar e compreender as propostas e ações desenvolvidas

pela Ação Griô Nacional, bem como identificar suas potencialidades no que se

refere ao diálogo com a educação formal, foram necessárias aproximações com

diferentes instâncias.

Num primeiro momento, mais do que conhecer, foi essencial vivenciar o

Projeto Griô, entender sua filosofia, suas origens, de onde veio e para onde

pretende ir. Para isso, como já descrito27, estivemos na sede do Grãos de Luz e Griô

em Lençóis, participando de suas atividades, conhecendo suas ações, descobrindo

seus atores e visualizando seu alcance.

Com o intuito de mapear e compreender o alcance político e educacional que

a proposta da Ação Griô Nacional vem atingindo (ou possa atingir), buscamos

conhecer mais detalhadamente os projetos realizados pelos Pontos de Cultura

participantes da Rede Ação Griô, na cidade de Salvador. Assim, conforme já

explicitado28, através da aproximação com estes locais, visamos traçar um

panorama geral dos intentos e trabalhos desenvolvidos pela Ação em parceria com

estes espaços.

27 Cf. seção 2.1. 28 Cf. seção 2.4.1.

96

E, por fim, de maneira mais sistemática, acompanhamos os trabalhos

desenvolvidos pela escola municipal Malê Debalê, local de atuação da Ação Griô

Nacional, buscando identificar as propostas da Ação em seu cotidiano, bem como

diagnosticar as implicações que a aproximação com o projeto griô vem

apresentando nas práticas e procedimentos desta comunidade escolar.

3.1 Primeiras aproximações

O encantador encontro com o espaço da escola Malê Debalê se deu de forma

inesperada. Pouco tempo depois de minha estada na sede do Grãos de Luz e Griô,

na cidade de Lençóis, recebi o convite de Márcio Caíres para participar de um

evento que aconteceria na cidade de Salvador, no espaço de uma escola municipal

do bairro de Itapuã, e contaria com a presença do Grãos de Luz e Griô.

Assim, no dia 10 de junho de 2011, pela manhã, me dirigi ao endereço

enviado por Márcio. Chegando ao local, para minha surpresa, tratava-se de uma

escola municipal localizada no mesmo espaço de funcionamento do tradicional bloco

afro baiano, o Malê Debalê. Ao adentrar aquele espaço, deparei-me com um

ambiente físico que em nada remetia a uma escola pública convencional. Paredes

matizadas, emblemas e cores do bloco carnavalesco Malê Debalê, painéis pintados

com os rostos de heróis negros e indígenas – outros símbolos e referências.

Naquele momento, foi impossível identificar o que era escola e o que era bloco.

97

Paredes do refeitório. Escola Municipal Malê Debalê.

Com o início das atividades, descobri que se tratavam de parte de um curso

de formação continuada para professores promovido pela instituição durante todo o

ano de 2011, que apresentou como tema geral: Caminhos da Escola: Vivências e

Saberes para a Inclusão das Relações Étnico-raciais. Segundo a direção da escola,

tratava-se de um projeto sistematizado pela professora da unidade e griô-aprendiz,

Edméia Nascimento, que tinha como parte dos objetivos apresentar e introduzir

concepções e práticas da Ação Griô naquela comunidade escolar (alunos,

professores e gestores), a partir da discussão de temas relevantes para o cotidiano

do espaço. Assim, a realização deste curso efetivou 22 encontros, reunindo

professores, gestores, poder público, educandos, palestrantes e mestres da cultura

popular, abordando e discutindo temáticas relativas: à convivência pacífica entre

religiões, às relações étnico-raciais, aos afro-ameríndios para o processo de

democratização, às temáticas indígenas na escola, ao racismo institucional, aos

quilombos urbanos, dentre outras.

98

Nesta ocasião, o tema específico abordado foi: Vivências e saberes com

mestres e griôs de tradição oral. Este encontro, sob a orientação de Edméia

Nascimento (Mel Griô), contou com a participação de grupos e mestres da cultura

popular, representantes da Secretaria Municipal de Educação, de Pontos de Cultura,

e do Grãos de Luz e Griô. As impressões neste dia foram bastante positivas. Havia

uma participação efetiva das professoras da escola durante as palestras e

dinâmicas propostas; algumas apresentações de canto e dança protagonizadas

pelos alunos da unidade demonstravam o envolvimento e a alegria das crianças em

participarem do projeto; e notava-se, também, uma mobilização de todos os

funcionários da escola na organização do evento.

Atividade cultural apresentada durante o curso de formação: Caminhos da Escola: Vivências e Saberes para a Inclusão das Relações Étnico-raciais. Escola municipal Malê Debalê, junho/2011.

No decorrer das atividades pude conversar com algumas professoras e

coordenadoras da escola sobre o projeto de formação continuada, e as opiniões e

99

expectativas eram sempre otimistas em relação aos resultados e possibilidades

criadas com a iniciativa.

Neste mesmo evento, relatando meu interesse a respeito dos temas

abordados durante o curso e colocando meus anseios em relação ao projeto de

pesquisa, houve o convite, por parte da diretora da unidade, Rosyvone Pereira, para

que eu me aproximasse do espaço. Dessa forma, esse encontro representou o

primeiro dia de minha pesquisa de campo, a qual se estendeu por toda trajetória de

construção deste trabalho.

Costumo afirmar que eu não escolhi o campo de minha pesquisa, fui

escolhida por ele. Reconheci naquele espaço um mundo de contextos, pessoas,

informações e possibilidades conectados diretamente ao cerne do meu trabalho.

Além de me encontrar com um espaço público de educação formal em diálogo direto

com as propostas da Ação Griô, me percebi diante de um manancial de nuances e

subjetividades aflorando num local onde a tradição de um bloco afro, o Malê Debalê,

mistura-se, cotidianamente, com a vida escolar de sua comunidade.

Fundado em 23 de março de 1979, no bairro de Itapuã, a Sociedade Cultural,

Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê, ou simplesmente bloco afro Malê Debalê,

foi criado por um grupo de moradores que desejava ver seu bairro representado no

carnaval de Salvador.

Os diálogos com as vivências trazidas por jovens de outros bairros, moldados

ao jeito “Itapuazeiro” de ser, formaram o alicerce para a criação de uma entidade

que “além de carnavalesca e promotora de valores significativos da cultura negra,

também fosse um espaço de afirmação positiva da história e do sentido do bairro de

Itapuã, da Lagoa do Abaeté e arredores” (Malê Debalê).

Assim, para os fundadores do bloco:

(...) é possível afirmar que a história do Malê Debalê se confunde com os mistérios da Lagoa do Abaeté, fonte de inspiração e afirmação de uma comunidade composta por pescadores, lavadeiras, quituteiras, artesões e artistas. Aqui, um espaço de possibilidades e encantos (Malê Debalê).

100

Segundo Carlos Eduardo Santana:

O nome do bloco é uma homenagem aos Malês, negros muçulmanos, que lutaram contra o processo de escravidão, representando na Bahia, uma resistência ativa. Portanto, o Malê Debalê , como afrodescendente, tem na história dos Malês, um mito de referência, o que de certa forma confere a missão de não apenas contá-la, mas, principalmente, se tornar um exemplo dessa história, seguindo e interferindo na cultura baiana com a mesma postura de resistência à dominação de seus ancestrais (2009).

Josélio de Araújo, membro fundador e atual presidente do bloco,

complementa afirmando que o nome Debalê foi uma criação de seus próprios

fundadores, e que traduz uma ideia de positividade, de alegria.

Parte da trajetória do bloco pude conhecer através das longas e prazerosas

tardes que passei conversando com Seu Délcio Silva, mais conhecido como Seu

Peruano, 74 anos de vida, há 42 anos morador de Itapuã, membro e funcionário do

Malê Debalê desde sua fundação.

Foram vários os momentos em que passei sentada à frente da sede do bloco

conversando com Seu Peruano. Conversávamos sobre muitos assuntos, sobre

política, sobre a história do bloco, a história de Itapuã, sobre a escola, e outros.

Porém, quando pedi que ele me concedesse um “entrevista”, onde eu pudesse

gravar ou anotar as informações, ele logo se recusou. Disse que não, que para isso

ele precisava se preparar. Mas nunca Seu Peruano se preparou para nossa

“entrevista”. Assim, desisti de entrevistá-lo, continuamos nossas prosas mesmo,

cheias de memórias e histórias, e que, autorizadas por ele, contemplam este

trabalho.

101

Seu Délcio Silva, Seu Peruano.

Segundo Seu Peruano, o bloco foi criado para levar o carnaval para o bairro

de Itapuã, que não participava do carnaval de Salvador. “No início a sede do bloco

era num outro lugar; era tudo aberto, tinha os ensaios e a comunidade ficava num

areião que tinha perto da lagoa [do Abaeté]”29. Ele narra como o lugar ficava repleto

de gente de todas as idades brincando e dançando. Conta saudoso, como Abaeté

era bonita, com a areia branquinha e as lavadeiras trabalhando lá, mas que hoje não

se pode mais, e que se tornou até um local bastante perigoso, com muitos assaltos.

29 Lagoa de águas escuras, cercada pelas areias brancas das dunas, Abaeté situa-se na área de proteção ambiental do Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté, no bairro de Itapuã, Salvador, BA.

102

Atualmente o bloco afro Malê Debalê possui sede própria, localizada no

Parque Metropolitano do Abaeté, onde ocorrem os ensaios para o carnaval, bem

como outras atividades ligadas ao bloco, como festas, aulas de dança, de capoeira,

e de percussão para crianças (malezinho).

Com relação à escola, Seu Peruano relata que foi iniciativa da vereadora

Olívia Santana que, ao conhecer a localização, o espaço e a comunidade que o

Malê Debalê atendia, lançou a proposta. Assim, os dirigentes do bloco se reuniram,

discutiram e acataram a ideia, uma vez que o espaço físico ficava ocioso durante a

semana, e essa seria uma forma, também, de atender a população do entorno. Para

Seu Peruano a escola é muito importante para aquele local, pois “é um lugar onde

os meninos podem se encontrar, se conhecer, já que o Malê é, praticamente, a

única opção pra nossa comunidade, até de lazer mesmo”.

E assim, desde 2006, o bloco cede parte de seu espaço para o

funcionamento de uma escola de educação infantil e ensino fundamental, que

passou a se chamar Escola Municipal Malê Debalê.

Durante o primeiro semestre de minha estada na escola, continuei

participando dos eventos relativos ao curso de formação continuada, além de visitar

o local em dias variados. Com esta aproximação, em 2011, embora meu

relacionamento com as professoras e gestoras tenha se estreitado bastante,

procurei não intervir diretamente nas atividades realizadas. Limitei-me a observar e

perguntar, informalmente, sobre alguns hábitos e procedimentos que ocorriam. Essa

forma de aproximação, menos direcionada, possibilitou meu trânsito por diversos

espaços e momentos do cotidiano da escola. Pude estar nas salas de aula,

observando métodos e condutas, nas festas, no pátio durante os intervalos,

observando as relações entre os alunos e dos alunos com os professores e

funcionários, a relação das famílias com a escola, da escola com o bloco afro que

divide o espaço; enfim, transitar pelo que havia de formal e informal na escola.

Em fevereiro de 2012, com início do ano letivo, dei continuidade ao trabalho

de campo, agora de maneira mais sistemática. Amparada por um carinhoso

103

acolhimento da gestão e corpo docente da escola, minha presença no espaço

tornou-se mais frequente e efetiva. Passei a colaborar com a construção e

elaboração de projetos, a me envolver com a organização dos eventos, além de

assumir a realização de algumas atividades. É nesta nova etapa do trabalho

empírico que minhas relações com esta comunidade escolar se estreitaram, que me

foi permitido partilhar os sucessos e os fracassos daquele cotidiano, e que assim, de

alguma forma, passei a também fazer parte daquele universo.

Este intenso envolvimento com o local da pesquisa possibilitou minha

imersão naquele contexto, e a emersão de uma gama de informações, observações,

impressões e sensações que, unidas às concepções teóricas e metodológicas que

alicerçam este trabalho, delineiam o corpo de nossas discussões e compreensões.

3.2 Perspectivas metodológicas

A metodologia, em geral, mostra-se uma parte bastante complexa do trabalho

científico. Como observa Minayo (1994, p.43), “mais que uma descrição formal dos

métodos e técnicas a serem utilizados, indica as opções e a leitura operacional que

o pesquisador faz do quadro teórico”. Dessa maneira, toda prática de pesquisa tem

uma filosofia do pesquisador implícita, intencional ou não, onde diferentes

concepções da realidade implicam diferentes abordagens na escolha metodológica.

Como dito anteriormente30, este trabalho de pesquisa pretende abranger,

alicerçado pelas ações da Ação Griô Nacional, as contribuições que o diálogo com

os saberes populares podem trazer para as práticas educativas escolares. Para

isso, além de rastrear e mapear as atividades da Ação Griô Nacional, buscamos

investigar as concepções e práticas dos professores e gestores da escola municipal

Malê Debalê, local de inserção desta Ação e campo desta pesquisa. Dessa forma,

nos aventuramos por um terreno complexo de relações, contradições e hierarquias,

que envolve valores e atitudes de diferentes sujeitos, com diferentes referências

sociais e históricas.

30 Cf. Introdução.

104

Neste sentido, tanto o contexto quanto o objetivo deste estudo nos conduzem

à uma compreensão mais profunda de determinados fenômenos sociais, apoiados

na condição de maior relevância dos aspectos subjetivos, não podendo, portanto,

serem reduzidos a elementos quantificáveis. Assim, foi feita a opção pela pesquisa

qualitativa.

Segundo Minayo (1994), a pesquisa qualitativa:

(...) se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalizações de variáveis (p.22).

Dessa forma, há na essência da pesquisa qualitativa um profundo

envolvimento com as subjetividades, condição ímpar para investigações referentes

ao mundo social, pois suas análises prescindem o contexto apenas dos fatos

observáveis e se estruturam muito mais na compreensão das particularidades e

significados dos fenômenos. De acordo como Macedo (2004, p.82), “é no seio da

história das epistemologias qualitativas que percebe-se um resgate e uma afirmação

da subjetividade enquanto âmbito significativo para se compreender pela pesquisa a

especificidade da ação humana em sociedade”.

Nesta perspectiva, Merleau-Ponty aponta que:

A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo (...). O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade.... (1999, p.18).

Assim, inspirados pela fenomenologia crítica como movimento filosófico

desta pesquisa, procuramos desvendar os fenômenos para além das aparências,

aguçando o olhar para o mundo dos significados implícitos, que permeiam o mundo

social.

Masini sugere ainda que, o enfoque fenomenológico:

105

(...) furta-se a validação do já conhecido sem prévia reflexão e volta-se para o não pensado, através de uma reflexão exaustiva sobre o objeto do seu estudo, denunciando os pressupostos subjacentes (1989, p.66).

Entendemos, então, como fundamental para desvendar esses campos de

significados das ações e relações humanas a imersão na realidade observada,

buscando na convivência, na interação máxima com o grupo investigado e nas

relações ali construídas cotidianamente, o substrato para compreender em

profundidade certos fenômenos.

Assim, fortalecemos nossas relações com a escola municipal Malê Debalê,

intensificando a presença no local, maximizando as participações nas atividades,

interagindo com os atores escolares, ou seja, compartilhando a vida cotidiana da

comunidade escolar, pois, como afirma Brandão (1984, p.38), “a convivência do

investigador com a pessoa ou grupo estudado cria condições privilegiadas para que

o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma compreensão que de

outro modo não seria possível”.

Neste viés, assumimos os princípios da observação participante como

ferramenta metodológica para a condução desta pesquisa.

Segundo Queiroz (2007), a observação participante consiste na inserção do

pesquisador no interior do grupo pesquisado, interagindo no seu cotidiano,

buscando observar, apreender e compreender os significados da realidade social

que o rodeia. Dessa forma, para o autor:

Na observação participante é preciso atentar para o aspecto ético e para o perfil íntimo das relações sociais, ao lado das tradições e costumes, o tom e a importância que lhe são atribuídos, as ideias, os motivos e os sentimentos do grupo na compreensão da totalidade, verbalizados por eles próprios mediante suas categorias de pensamento. Assim, é preciso observar o conjunto das regras formuladas ou implícitas nas atividades dos componentes de um grupo social (p. 278).

É importante ressaltar que, neste caso, observar não significa apenas ver,

examinar, mas sim “mergulhar na espessura do real, captar a lógica dinâmica e

106

contraditória do discurso de cada ator social e seu relacionamento com os outros

atores e situações (...)” (Oliveira e Oliveira, 1986, p.25).

Para colaborar com esse processo de desvendamento dos aspectos e

dinâmicas das estruturas e relações sociais (neste caso o cotidiano de uma escola

pública), nos utilizamos também do recurso da entrevista não-estruturada, como

forma de provocar o afloramento de informações mais profundas, intrínsecas,

banhadas por ideologias e afetividades.

Parga Nina costuma definir a entrevista não-estruturada como “conversa com

finalidade”, em que:

(...) o roteiro serve de orientação, de baliza para o pesquisador e não de cerceamento da fala dos entrevistados. A ordem dos assuntos abordados não obedece a uma sequência rígida, e sim, é determinada frequentemente pelas próprias preocupações e ênfases que os entrevistados dão aos assuntos em pauta (apud Minayo, 1999, p.122).

Isso não significa dizer que as entrevistas não-estruturadas devam ser

realizadas na base da intuição ou do bom senso; ao contrário, cada conversa que

realizamos nesse trabalho perpassa pelos pressupostos teóricos, e foi conduzida no

sentido de provocar a emersão de conteúdos afetivos, culturais e ideológicos

latentes nos entrevistados, contemplando os diferentes aspectos que circundam os

objetivos desta pesquisa.

Dessa forma, compartilhar o cotidiano da escola municipal Malê Debalê,

observando-o de forma intensa, sistemática e consciente aliado aos conteúdos

verbalizados nas inúmeras “conversas com finalidade” realizadas ao longo da

estada em campo, possibilitaram, além do acesso a informações antes consideradas

de domínio privado do grupo, a reunião de uma diversidade de dados. Entretanto,

como afirma Thiollent, “os dados por si só não são geradores de conceitos nem de

explicações” (1987, p.17). É necessário que cada dado, de cada observação, de

cada entrevista, seja minuciosamente analisado para “tentar encontrar os sintomas

relativos aos sistemas de representações, de condutas, de valorizações afetivas, e

de regras sociais (...)” (ibid).

107

Para isso, em nossas análises, voltamos nossa atenção para os elementos

subjacentes aos discursos e práticas que se manifestaram nas entrevistas e

observações realizadas com a comunidade da escola Malê Debalê, procurando,

como orientam Barros e Lehfeld (1999), significados nas relações estabelecidas

entre as falas individuais, as afetividades, as culturas, as ideologias, enfim, nas

relações estabelecidas entre as ações e contradições do cotidiano escolar.

3.3 O cotidiano escolar: ações e contradições

Ao citar Durkheim, Thiollent afirma acreditar “fecunda esta ideia de que a vida

social deve ser explicada não pela concepção que dela fazem os que dela

participam, mas por causas profundas que escapam à consciência” (1987, p.220).

Nesta perspectiva, buscamos, através da integração entre investigação e

convivência com a comunidade escolar Malê Debalê, escarafunchar e capturar

momentos e processos gerados nas próprias contradições experimentadas e

vivenciadas no cotidiano do grupo, apreendendo e compreendendo aspectos que se

explicitam aos poucos, para então apontar o alcance que as propostas da Ação Griô

tiveram neste espaço, nas suas dimensões individuais e sociais.

Desde os primeiros contatos com a escola municipal Malê Debalê, foi

possível identificar a intensa relação daquele espaço com as questões da cultura. O

privilegiado acervo histórico e cultural do bairro de Itapuã, onde se localiza a

unidade escolar, intensificado pela forte relação bloco/escola, promovem, naquela

comunidade escolar, um esforço contínuo em abarcar a demanda cultural que

emerge daquele contexto.

O estreito relacionamento da escola com o bloco Malê Debalê assinala, de

fato, parte decisiva nesse diálogo perene entre o espaço escolar e a cultura,

sobretudo a cultura local. O encontro entre essas duas instâncias não se deu

apenas no espaço físico, mas principalmente nas ações e concepções. O bloco abre

suas portas diariamente para a comunidade escolar, perde seus espaços

(camarotes) que viram salas de aula, convive e participa ativamente do cotidiano de

108

uma escola que atende 380 crianças de seu entorno. A escola, inserida num

ambiente onde questões raciais, sociais e culturais ocupam lugar privilegiado,

precisou afrouxar suas amarras, perceber e valorizar diferentes e novas maneiras de

construção e socialização de saberes. Neste movimento, a história, vida e obra do

bloco, que se emaranha com as histórias de vida de cada ator daquela comunidade,

inunda o ambiente escolar, configurando seus espaços e momentos de

aprendizagem.

Neste contexto, vislumbrar a discussão de questões sociais, culturais, raciais

– enfim, educacionais – a partir das manifestações artísticas viabilizadas pela

interação com o bloco fez surgir um manancial de possibilidades pedagógicas

absorvidas pela escola e continuamente expressas em suas práticas. A narrativa da

diretora da escola, Rosyvone Pereira, a respeito dessa interação bloco/escola

reforça essa perspectiva.

“Ah! O bloco é muito importante para a escola, sem a parceria com o bloco eu

acho que a escola nem funcionaria. O Malê é um bloco que vem de uma luta social,

além da importância do nome, que traz a história do levante dos Malês, ele traz nos

temas do carnaval o que está nas entrelinhas da história do Brasil, o que não

aprendemos da história da África, e que nossas crianças precisam conhecer, porque

é a história delas. Com isso, também, podemos desmistificar boa parte dos

conteúdos que se tem nos livros didáticos, podemos trazer outras histórias, outros

heróis, e legitimá-los” (Rosyvone Pereira).

Essa integração do bloco com a escola se expressa também nas atividades

(aulas de capoeira, dança e percussão) oferecidas pelo bloco Malê Debalê às

crianças da comunidade. Embora se apresentem como atividades independentes, a

princípio foi difícil identificar o que era trabalho escolar e o que era trabalho do bloco.

Com ampla participação dos alunos da escola, os horários, locais e atividades do

bloco e da unidade escolar misturam-se continuamente. Os constantes ensaios em

turnos de aula, as frequentes apresentações dos grupos infantis do Malê Debalê nos

eventos promovidos pela escola, os inúmeros projetos construídos em parceria com

109

as atividades do bloco, entre outros diálogos assinalam a relação de contiguidade

entre essas duas instâncias.

Seguindo nesse viés, as comemorações de aniversário dos 33 anos do bloco

Malê Debalê deram início aos trabalhos desenvolvidos durante o ano letivo de 2012.

Esta atividade, que contou com o envolvimento de toda a comunidade escolar,

suscitou discussões sobre a revolta dos Malês, inspiradora na criação do bloco,

resgatou temas, músicas e roupas usadas pelo bloco em carnavais passados; em

outras palavras, efetivou um trabalho de pesquisa, diálogos e descobertas que

resultou num verdadeiro (re)avivamento do acervo histórico e artístico do bloco, bem

como o seu (re)conhecimento pela comunidade escolar.

Comemoração dos 33 anos do bloco Malê Debalê. Evento realizado pela escola municipal Malê Debalê.

110

Se a interação bloco/escola já era completamente visível, a organização

desta comemoração provocou a imersão de um universo no outro. Durante o

período de sua realização, o cotidiano escolar fundiu-se com o cotidiano de um

bloco afro. Os ensaios tomaram o lugar dos intervalos de aula, com a meninas

repassando repetidamente as coreografias. As mesas e cadeiras deram forma aos

instrumentos, com os meninos aperfeiçoando as “batidas” de cada música. E, nessa

intersecção cultural, as canções do bloco inundaram o repertório musical dos

professores e gestores, e tornaram-se as protagonistas do acervo dos alunos.

Cabe ressaltar que, independente da participação dos alunos nas atividades

extra escolares oferecidas pelo Malê Debalê, foram nos momentos de maior

comunhão entre bloco e escola que se configuraram grandes momentos de

aprendizagem naquele espaço. Refiro-me, aqui, não apenas às aprendizagens

técnicas, do tocar, cantar ou dançar, mas principalmente, como vimos defendendo, a

uma aprendizagem latente, dinâmica, que se realiza na interação com o outro, na

relação com outros saberes e fazeres, e com outros lugares e momentos.

Eram especialmente nestes momentos, de maior integração entre bloco e

escola, que as responsabilidades se acentuavam: responsabilidade com os

instrumentos, com a letra correta das músicas, com as coreografias, com uma

apresentação perfeita. As vaidades emergiam, com os cabelos, com a maquiagem,

as roupas, a melhor batida nos tambores, a melhor expressão corporal. A

solidariedade aflorava, ajudando o companheiro a marcar o ritmo dos instrumentos,

emprestando roupas e acessórios, finalizando o cabelo ou a maquiagem umas das

outras, repassando parte da coreografia, ou anotando num pedaço de papel a letra

da canção esquecida pelo colega. E assim, eram em especial nestes momentos,

onde o fenômeno da aprendizagem ia, continuamente, se instaurando.

Os diálogos travados nesta pesquisa com as questões dos deslocamentos

identitários também ganharam fôlego a partir da (con)vivência com este espaço

escola/bloco. Para além da ludicidade e do prazer da música e dos movimentos da

dança, (in)vestir-se de Malê, naquele contexto, tocando os instrumentos, dançando

as coreografias ou somente cantando suas músicas, permitia, à grande parte

111

daquelas crianças, despirem-se de seus papéis, delegados e/ou incorporados, de

“feios”, “cabelo ruim”, “bagunceiros”, “repetentes” ou “alunos problema”, e

assumirem os papéis de líderes, de protagonistas, de parte integrante do bloco afro

Malê Debalê, com toda a força e reconhecimento que isto significa para aquele

lugar. Bauman complementa:

Essa contínua transgressão de barreiras lhes permite espiar a inventividade e engenhosidade humanas por trás das sólidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e intransponíveis, dando-lhes a coragem necessária para se incorporar intencionalmente à criação cultural (...)” (2005, p.20).

A execução do curso de formação continuada Vivências e saberes com

mestres e griôs de tradição oral, idealizado pela professora e griô-aprendiz Edméia

Nascimento no ano de 2011, e referendado pelas concepções e práticas da Ação

Griô, também contribuiu de forma expressiva para que as questões da cultura

popular se estabelecessem naquele espaço escolar.

Ainda que o ambiente da escola municipal Malê Debalê já se apresentasse

impregnado pelas referências culturais locais, a aproximação com as práticas e

concepções da Ação Griô, promovidos pela griô-aprendiz, provocaram, naqueles

atores escolares, uma sensibilização e reflexão em torno do diálogo entre os

saberes e fazeres da cultura popular e os saberes e fazeres institucionalizados,

sinalizando caminhos de interação entre os saberes ancestrais da tradição oral e as

ciências formais.

Refletindo sobre as possíveis contribuições que as propostas da Ação Griô

vem trazendo para sua prática docente, a professora do segundo ano31 relata que:

“Quando eu cheguei na escola em 2010, eu pensei em desistir. Não tinha esse clima

que tem hoje, era um horror. Professor com professor, entre alunos, era horrível, eu

chorava todo dia. Foi em 2011, quando Mira32 e Mel [griô] trouxeram essa proposta

dos griôs que as coisas começaram a melhorar. Eu estou com a minha turma desde

31 A pedido das professoras, seus nomes serão preservados, sendo identificadas por suas respectivas turmas de trabalho na escola. 32 Docente da escola que auxiliou a professora Mel na sistematização do curso de formação continuada em 2011. O nome completo da professora foi omitido a pedido da mesma (Cf. nota 30).

112

a educação infantil, era difícil trabalhar com eles. Além de não saberem nada de

conteúdo, eles não respeitavam nem colegas nem professores. Ainda tinham os

pais, que até ameaçada eu fui! Depois, com o tempo, fui construindo um laço de

confiança com os alunos e com os pais, foi ficando melhor e eu me sinto até um

pouco mãe deles. O curso de formação do ano passado, com a proposta de

trabalhar temáticas indígenas e africanas, de trazer os mestres para a escola,

mudou meu olhar como professora e pessoa também, por isso eu trabalho estes

temas o ano todo. Lógico que damos mais ênfase nas datas comemorativas, mas eu

procuro fazer o ano todo. Trabalhando com essa proposta, eu fui descobrindo que o

conhecimento desses mestres, dessas tradições, é muitas vezes mais importante e

significativo para os alunos do que alguns conteúdos que estão nos livros didáticos;

então fui aprendendo a usar esse conhecimento em minhas aulas. Percebi também

que desta forma não é só aprender a ler e a escrever que nós trabalhamos,

principalmente no nosso caso que atende uma comunidade tão carente quanto a

Baixa do Soronha33, é uma questão de mexer com a auto estima das crianças,

sabe? De valorizar, de perceber a beleza, a importância como pessoa mesmo”

O conteúdo da narrativa desta professora faz emergir aprendências

significativas sobre sua formação e atuação como docente a partir de sua

aproximação com outros saberes e suas possíveis conexões, articulações,

pertinências e assincronismo, deslocando sua prática de uma perspectiva insular de

ensino e (re)descobrindo a aprendizagem em múltiplas atividades e diversos

contextos sócio-culturais.

Neste panorama, Macedo colabora afirmando que:

É urgente que o sistema escolar compreenda isso de forma intelectualmente honesta, epistemológica e pedagogicamente responsável, fundando-se numa reaprendizagem para uma realiança, que tem como suporte a recursividade e a autopromoção, que rompe com a causalidade linear; o princípio dialógico que não exclui, mas comporta a contradição e o hologramático, em que o todo contém a parte, sem reduzir-se à soma delas. A articulação dessas inspirações implica num repolitizar, repensar, religar, numa

33 Com cerca de 12.000 habitantes, a comunidade da Baixa do Soronha é a principal localidade de atendimento da escola e do bloco Malê Debale.

113

aprendizagem fundada na compreensão das diferenças e heranças culturais, além da aprendizagem do afeto que recruta uma sabedoria cuja transmissão deve ser impregnada por Eros: desejo de conhecer, o prazer de ensinar, de comunicar, de doar (2002, p.110).

Outros momentos deste cotidiano escolar demonstraram a maneira como,

paulatinamente, as questões abordadas nos encontros em 2011, aliados a um

trabalho contínuo de aproximação das concepções da Ação Griô com a comunidade

escolar, orquestrados pela griô-aprendiz, vêm reconfigurando as práticas deste

espaço. A presença frequente dos mestres da cultura popular no local, visitas

programadas a locais significativos do entorno, convite para grupos populares locais

participarem dos eventos escolares, dentre outras, são práticas que passaram a ser

pensadas na construção dos projetos e ações da escola municipal Malê Debalê.

Edificando este processo, Muito prazer, meu nome é Itapuã, foi o projeto

desenvolvido durante o segundo semestre do ano de 2012. Com a participação mais

efetiva da griô-aprendiz e um diálogo mais intenso com as propostas da Ação Griô,

o objetivo principal deste trabalho foi o de (re)aproximar a comunidade escolar da

história e memória de seu entorno, através do levantamento e (re)conhecimento de

seus aspectos físicos, históricos e culturais.

Abordando temas como origens de Itapuã, brinquedos e brincadeiras de

Itapuã, personalidades de Itapuã, historiografia oral de Itapuã, corpo em Itapuã,

Itapuã ontem e hoje, dentre outros, esse projeto buscou ampliar o conhecimento dos

alunos e professores sobre o bairro em que vivem e convivem. Para isso, num

intenso trabalho de pesquisa, gestão e corpo docente, idealizaram atividades que

contemplaram desde a confecção de mapas e construção de maquetes dos espaços

relevantes do bairro, até peças teatrais, apresentação de dança, exposição

fotográfica e produção de um pequeno documentário sobre algumas personalidades

de Itapuã.

Acompanhar o processo de construção e realização deste trabalho

possibilitou a identificação, em diversos momentos, de elementos e práticas

amplamente conectados às concepções apresentadas pelas propostas da Ação Griô

114

ao espaço. A opção de parte do corpo docente por trabalhar seus temas em diálogo

direto com os mestres e grupos da cultura popular local, apontam nesta perspectiva.

Num esforço em atrelar o conteúdo do projeto às manifestações da cultura

popular local, algumas professoras realizaram um movimento ímpar de aproximação

entre saberes e gerações no espaço da escola, trazendo os mestres e os grupos da

cultura popular local para o ambiente escolar, promovendo rodas de conversas com

mestres, alunos e professores, visitando os espaços de manifestação dessa cultura

e, assim, construindo um conhecimento que não se encontra apenas pelos livros,

mas, especialmente, nas histórias e memórias compartilhadas pelas próprias

pessoas que vivenciaram os acontecimentos.

Atividade com a participação de personalidades locais. Seu Reginaldo34, Amadeu Alves35 e o grupo

ganhadeiras de Itapuã36. Projeto muito prazer, meu nome é Itapuã.

34 Importante compositor do bairro de Itapuã, Seu Reginaldo é autor de mais de 260 músicas, entre sambas, sambas de roda e marchas. 35 Nascido e criado no bairro de Itapuã, Amadeu Alves Ribeiro Filho, é cantor, compositor e coordenador da Casa da Música, importante espaço cultural da localidade.

115

O voô da Asa Branca nos tambores do Malê, foi também um dos projetos

desenvolvidos pela escola neste ano. Um trabalho que aliou as comemorações

referentes ao centenário de Luiz Gonzaga às festividades de São João.

Bastante atrelado às comemorações juninas, o desenvolvimento deste

trabalho reafirmou o envolvimento e comprometimento de toda comunidade escolar

com a execução dos projetos da escola. Num processo ativo de pesquisas e

criações, atividades como o levantamento biográfico e discográfico de Luiz

Gonzaga, elaboração de peças teatrais, números musicais, e confecção de

figurinos, promoveram um intercâmbio de informações intenso entre professores de

classe, professores especialistas e entre os próprios alunos, que participaram de

diferentes atividades na execução do projeto.

Cabe ressaltar que, embora a realização deste projeto tenha promovido

momentos singulares de construção e socialização de conhecimentos, com uma

grande integração entre as diferentes linguagens artísticas e os conteúdos de

trabalho, muitas das preocupações e atenções de parte do corpo docente voltavam-

se, essencialmente, para a execução de um grandioso espetáculo de encerramento,

o que de fato se efetivou.

36 Iniciativa que surgiu em 1994, onde um grupo de pessoas se reúnem, motivadas pelo interesse no fortalecimento da identidade cultural de Itapuã, para trocar informações sobre as antigas tradições locais.

116

Evento de encerramento, projeto O voô da Asa Branca nos tambores do Malê.

A oportunidade de participar da construção e/ou realização dos projetos de

trabalho da escola Malê Debalê durante o ano de 2012 contribuiu para confirmar

quão embrenhadas estão, naquele ambiente escolar, o universo da cultura local. A

escolha dos temas, o envolvimento de toda a comunidade escolar, bem como a

forma de conduzir as atividades, expressam como as experiências e vivências dos

atores escolares são partes constituintes daquele espaço e contexto, e exprimem

ainda de que forma as ações da escola promovem o florescer de uma cultura que

germina no local.

Concordamos, entretanto, com Minayo (1999, p.144) que “...a visão sobre o

grupo é constituída pelo pesquisador na interação com os atores sociais que o

compõem e nas relações que consegue captar”. Dessa forma, a convivência ativa

com a comunidade escolar Malê Debalê foi, gradativamente, exibindo e

desvendando os diferentes e múltiplos olhares de seus atores em relação às

questões que integram o universo de uma instituição formal de ensino, promovendo,

ao longo dessa jornada, a manifestação das muitas contradições, opacidades e

117

ambivalências presentes nos atos e discursos desses atores, e que são também

estruturante para a compreensão desse mundo social.

Assim, logo no início do ano letivo, em 2012, ao receber a orientação sobre

algumas modificações nos planejamentos e nas dinâmicas de trabalho da escola,

comecei a compreender que certas questões do cotidiano educacional se

instauravam muito além daqueles momentos de comunhão entre a escola e a

cultura popular local, vivenciados até então.

Uma das primeiras informações que recebi foi a de que, embora o curso de

formação continuada para os professores tivesse continuidade durante o ano de

2012, os temas eleitos contemplariam mais a parte de didática e de práticas de

ensino, do que as questões culturais. Segundo a coordenadora pedagógica da

unidade, esta “mudança de foco” havia sido uma demanda das próprias professoras,

pois elas estavam preocupadas com a deficiência apresentada pela maioria dos

alunos no que se referia à alfabetização (leitura e escrita), preocupação esta que se

agravava com a aproximação da Provinha Brasil37.

Esta colocação da coordenadora se consolidou nos discursos da gestão e

corpo docente, suscitados durante a apresentação deste trabalho de pesquisa na

unidade escolar, oportunizado pela diretora.

Atenta para a importância de esclarecer, especialmente ao corpo docente da

escola, os objetivos e intenções de minha pesquisa naquele espaço, solicitei à

coordenação um momento para apresentar e discutir meu trabalho com as

professoras. Atendendo ao pedido a gestora disponibilizou o espaço de uma reunião

de Atividade Complementar (AC)38 para o encontro.

Iniciei minha exposição apresentando o tema da pesquisa, os objetivos e a

questão norteadora. Discutimos um pouco sobre os referenciais teóricos e

37 “A Provinha Brasil é uma avaliação diagnóstica aplicada, pelo governo, aos alunos matriculados no segundo ano do ensino fundamenta” (Cf. http://portal.mec.gov.br). 38 “AC é o espaço/tempo para o diálogo, as vivências, a reflexão e a socialização das práticas pedagógicas e curriculares que orientam o planejamento, a avaliação e o acompanhamento à escola”. (Cf. http://educar.sec.ba.gov.br)

118

metodológicos, momento onde houve um entusiasmo particular por parte das

professoras em relação aos autores referenciados no texto, e sobre alguns livros

que levei para o local. Para finalizar, propus que discutíssemos, a partir de um breve

roteiro, algumas questões referentes à pesquisa; debate este realizado sob a

perspectiva da prática daquelas educadoras.

Algumas questões discutidas no encontro foram:

Ø Qual a importância da cultura popular local para os processos de ensino e

aprendizagem dentro dos espaços escolares?

Ø Qual a importância da presença/participação dos mestres da cultura popular

para os processos de ensino e aprendizagem nos espaços escolares?

Ø Qual a importância em se relacionar a “cultura da rua” e a “cultura da escola”

para os processos educacionais?

Ø Quais os cuidados que podem ser tomados para que essas propostas não se

tornem vazias de significados?

Depois de apresentadas as questões, iniciou-se a discussão. A princípio, um

silêncio absoluto tomou conta da sala. Um tempo depois a professora do terceiro

ano inicia sua fala:

“Acho muito importante trazer para a escola a cultura da criança, da vivência

dela, ela acaba se identificando mais com a escola”.

Logo em seguida, a auxiliar de classe do grupo 5 da educação infantil se

manifestou:

“Trazer essa questão da cultura popular para a escola é importante também

para podermos trabalharmos melhor as questões raciais, de afirmação da

negritude”.

Na sequência, a fala da psicopedagoga:

119

“Trazer essa cultura, esses mestres para dentro da escola é muito importante

para que os alunos se identifiquem com os processos de ensino e possam participar

dos processos de produção do conhecimento”.

E assim seguimos, com falas pontuais de outras professoras, sempre

sinalizando a importância deste encontro da cultura popular com a escola. Peço,

então, para que elas me narrem como isso era realizado na prática, dentro da sala

de aula de cada uma delas.

A coordenadora pedagógica inicia:

“Sabe o que é? Estamos num momento bastante delicado agora, pois vamos

enfrentar, em breve, a Provinha Brasil; então, tivemos que deixar um pouco de lado

agora essas questões culturais e focar mais nos processos de alfabetização”.

A professora do primeiro ano continua:

“Ah! É mesmo. Os meninos tem muita dificuldade de aprendizagem, mal sabem

ler e escrever; então, estamos dando um reforço nesta parte agora, para ver se dá

uma acelerada no processo”.

Intervenho, questionando se não seria possível que essa aproximação com a

cultura popular local contribuísse de alguma forma com esse processo de

alfabetização.

A psicopedagoga da escola coloca:

“Você sabe que é muito difícil fazer com que o aluno compreenda a importância

deste processo. Nós estamos sempre fazendo trabalhos sobre a cultura local, e

quando vamos ver, eles estão cantando aqueles pagodes, descendo até o chão....”.

A professora do terceiro ano continua:

“É mesmo. Às vezes parece que não adiante fazer nada. Quantas vezes nós

trazemos algum convidado pra escola e eles não respeitam a pessoa. É difícil pra

gente, porque essa é uma disciplina que eles não têm em casa”.

120

A coordenadora pedagógica, na sua colocação, argumenta:

“Eu acho que esse é um processo muito complexo pras crianças. Eu, que já sou

adulta, agora que estou descobrindo minhas referências de pertencimento,

descobrindo a cultura do meu lugar, então eu acho que esse é um processo de vida

muito longo, difícil pros meninos interiorizarem”.

Entre falas, questionamentos e proposições, ratificou-se, neste encontro, a visão

da coordenadora pedagógica da escola sobre a necessidade, naquele momento, de

“...deixar um pouco de lado agora essas questões culturais e focar mais nos

processos de alfabetização”, sinalizando como ainda se encontram dicotomizadas

as relações entre os saberes formalizados e os não formalizados naquele espaço

escolar, além de apontar para uma ilegitimidade desses saberes que não são

institucionalizados, pois, embora o universo da escola Malê Debalê transborde

conhecimentos em múltiplos aspectos, no momento de se pensar os processos de

alfabetização, letramento e avaliação nacional, eles têm de ser deixados de lado.

Uma outra orientação da gestão da escola para o ano de 2012 aponta como os

aspectos burocráticos também se apresentam sedimentados no universo da escola,

tornando penosa a efetivação de propostas não oficializadas nestes espaços.

Com o início do ano letivo de 2012, a professora e griô-aprendiz, Mel

Nascimento, que até então realizava um trabalho de estruturação dos projetos e

eventos da escola, colaborando com os professores na construção dos projetos

piloto, realizando oficinas com os alunos e professores, trazendo convidados de

diferentes instâncias, e promovendo a aproximação de mestres e grupos da cultura

popular com o universo escolar, passaria a cumprir as 40 horas de trabalho dentro

de sala de aula, abrangendo o conteúdo do programa de artes, conforme rege sua

contratação pela Secretaria Municipal de Educação.

Essa decisão, dentre outras, por parte da gestão da escola, evidencia quão

enraizados ainda estão as práticas e procedimentos escolares aos modelos

conservadores de educação. Ao optar pela utilização de sistemas pré-moldados,

121

com características lineares, sequenciais, terminam por fundamentar suas ações e

decisões na estabilidade e na regularidade das coisas e das pessoas.

Com o objetivo de compreender os motivos e observar os resultados destas

mudanças, além de continuar vivenciando o cotidiano da escola nas diferentes

esferas, optei por acompanhar a professora Mel Nascimento em sala de aula.

Assim, às segundas-feiras, durante todo o primeiro semestre de 2012, acompanhei

as aulas de artes do segundo ao quinto ano do ensino fundamental vespertino.

Presenciei, com a professora Mel Nascimento, aulas de 40 minutos de duração,

que embora abordassem as questões da cultura, da etnia, da comunidade, dentre

outros, desconectavam-se completamente dos conteúdos que estavam sendo

trabalhados por muitas das professoras de classe. Presenciei, mais que isso, um

profundo desalento da professora em ver seu trabalho acontecendo de forma

pontual, com pouca, ou nenhuma relação com outros momentos de aprendizagem.

No decorrer deste período, em diferentes momentos e situações, a professora

Mel Nascimento discorreu sobre a dificuldade de se realizar, efetivamente, as

propostas da Ação Griô na escola, sobre como alterar algumas regras e convenções

ainda é muito complicado para a instituição escolar. Mel coloca, por exemplo, que a

exigência da coordenação em se cumprir 40 horas de trabalho em sala de aula, tem

impedido, inclusive por falta de tempo, que ela elabore e desenvolva projetos

contínuos e significativos, pensados para construir as pontes que viabilizam a

aproximação com os mestres, e os traga para a escola. Para a griô-aprendiz, “É

uma angústia muito grande não conseguir aproximar as instâncias. Trata-se de um

confronto entre o que a legislação manda e o que é significativo para o aluno”.

Mel Griô relata que, quando se aproximou das propostas e concepções da Ação

Griô, vislumbrou um processo de abertura, de inovação para os ambientes

escolares, um movimento que vinha para afrouxar suas amarras. Entretanto,

confessa que sofreu algumas decepções ao se deparar com a dificuldade da escola

em se permitir conhecer e compreender a proposta. Para ela, “Tudo isso é muito

122

novo para a escola, por isso é preciso encontros sistemáticos para preparar o

espaço. A proposta não chega na escola com os mestres na rua”.

Em seu discurso, Mel defende ainda que a força da proposta da Ação Griô está

justamente na oportunidade de aproximar pessoas e seus saberes, e que isso é

extremamente importante para o ambiente da escola pública. Para a professora, “o

saber da cultura não está tão distante do saber acadêmico; aliás, ele está presente

no cotidiano das aulas. Por isso é tão importante olhar para as relações

interpessoais, para as questões de pertencimento, evitando a separação dos

saberes e das pessoas. Por isso, também, a importância dos mestres no ambiente

da escolar”.

Acompanhar as aulas da professora Mel viabilizou também que eu me

aproximasse, de maneira mais efetiva, da forma como as professoras abordavam os

conteúdos e desenvolviam seus trabalhos em sala de aula. As atividades registradas

no quadro, a observação dos cadernos e exercícios dos alunos, bem como a

realização de entrevistas, ou “conversas com finalidade”39 como vimos assumindo,

possibilitaram traçar um panorama entre a compreensão, o discurso e a prática

daquele corpo docente, no que se refere à valorização e legitimação de outros

saberes – que não os institucionalizados.

Uma breve análise do material de classe dos alunos ilustrou a forma como a

segregação e hierarquização de saberes, tão sedimentadas nos espaços formais de

educação, ainda se estabelece de forma concreta e, quase sempre desapercebida,

por grande parte do corpo docente da escola Malê Debalê. Os textos eleitos para se

trabalhar os conteúdos escolares, em especial das disciplinas matemática e língua

portuguesa, pouco contemplavam o vasto universo de outros saberes

absolutamente presentes naquela comunidade.

De forma geral, o que encontramos nos cadernos e atividades de sala foram

excertos de contos e fábulas importados, ou “problemas” matemáticos, que nem

sequer faziam alusão ao mundo social vivido pela comunidade escolar. Este cenário

39 Cf. seção 3.2.

123

indica, também, uma forte desconexão entre os conteúdos disciplinares abordados

em sala e as propostas dos projetos pedagógicos elaborados pela escola, situando-

os à margem dos processos “oficiais” de ensino e aprendizagem, o que evidencia a

invisibilidade desses fenômenos educacionais não formais, tão recorrentes naquele

espaço, para os olhos da maioria dos educadores.

Neste sentido, Macedo observa que esses processos são, em grande parte,

heranças de uma regularidade, de uma linearização pedagógica impostas ao

professor pelo mecanicismo e funcionalismo implícitos nas lógicas escolares. Para o

autor:

(...) no caso da escola, os professores não precisavam aprender as matérias de seus estudos nos seus intrincamentos, nem precisavam entender o contexto sócio-cultural no qual o conhecimento a ser ensinado era fabricado. Deveriam apenas identificar o assunto a ser transferido ao aprendiz, separando-o em seus componentes para apresentar a esse aprendiz e aí então testá-lo para dizer do seu destino escolar (2002, p.70).

Alguns momentos das entrevistas apontam para essa dificuldade da gestão e

do corpo docente da escola em valorizarem e legitimarem, em suas práticas, os

conhecimentos que, embora não oficializados, inundam aquele ambiente escolar.

Levantamos, em nossas conversas, discussões sobre a forma como dialogar com

essa sabedoria popular, na construção do conhecimento escolar.

A professora do quinto ano afirma: “Acredito ser totalmente possível utilizar

esses saberes populares para ajudar nas disciplinas escolares. É o que nós

fazemos nos nossos projetos. Por exemplo, a partir do trabalho que fizemos agora

para as festividades do São João, com a biografia de Luiz Gonzaga, pudemos

trabalhar vários conteúdos do programa. Usamos, por exemplo, o Mandacarú no

conteúdo de biologia, estudando as partes das plantas”.

Observa-se, na fala da professora, que o trabalho com a biografia de Luiz

Gonzaga, atrelado aos momentos festivos e comemorativos, foi apenas considerado

na sua capacidade de colaboração para a abordagem dos saberes acadêmicos e

científicos. Embora tenha se efetuado, para a realização do projeto, um consistente

124

trabalho de pesquisa, elaboração e efetivação de ações, configurando um intenso

processo de ensino e aprendizagem, estes momentos não são compreendidos, pela

docente, como construção de conhecimento, sinalizando a dificuldade em se

(re)conhecer, nos espaços escolares, diferentes saberes e práticas como produção

de conhecimento escolar.

Neste mesmo debate, a professora do quarto ano defende que “é possível

fazer esse trabalho trazendo a vivência do dia a dia do aluno, esses saberes

simples, para a sala de aula. A matemática da feira, as letras das músicas do bloco

[Malê Debalê], e por aí vai. O problema que temos em algumas disciplinas é que

não encontramos material que aproxime esses universos. Falta esse tipo de material

didático na escola”.

Neste depoimento, ainda que vislumbrando a possibilidade de aproximação

entre os saberes populares e os saberes institucionalizados em sala de aula, a

professora inicia classificando o conhecimento dos alunos como “saberes simples”,

ratificando um processo de hierarquização de conhecimentos bastante frequente e

muitas vezes velado dentro dos espaços escolares. Outra questão que emerge

deste depoimento é a necessidade de validação e legitimação do material de

trabalho. A “dificuldade de se encontrar material didático” colocada pela professora,

não qualifica os saberes e fazeres da cultura oral, especialmente rica e presente

naquela espaço, como conhecimento, reforçando a ideia de que os materiais

impressos e certificados são as únicas e legítimas fontes de saber.

Neste sentido, Santomé observa:

Não podemos esquecer que o professor atual é fruto de modelos de socialização profissional que lhe exigiam unicamente prestar atenção à formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua incumbência a seleção explícita dos conteúdos culturais. Essa tradição contribuiu de forma decisiva para deixar em mãos de outras pessoas (em geral, as editoras de livros didáticos) os conteúdos que devem integrar o currículo e, o que é pior, a sua coisificação. (...) Ao mesmo tempo, criou-se uma tradição na qual os conteúdos apresentados nos livros didáticos aparecem como os únicos possíveis, os únicos pensáveis [grifos do autor] (2011, p.156-157).

125

Levantamos também, nas entrevistas, a questão da importância da cultura

popular se aproximar da educação escolar.

A professora do quarto ano coloca que “essa aproximação é muito

importante, é a vivência deles [dos alunos], e às vezes eles sabem mais que a

gente, mais que os livros que são arrumadinhos e tão diferentes da vida deles”.

Na mesma perspectiva, a professora do terceiro ano diz que “é muito

importante trazer para a escola a vivência deles [dos alunos], os saberes do dia a

dia. Por exemplo, uma vez nós trabalhamos a lenda do Abaeté num projeto. Então,

os professores pesquisaram e trouxeram duas versões diferentes da lenda. Quando

fomos trabalhar com eles um aluno falou: Mas minha avó conta diferente! Acredita

que ele trouxe uma terceira versão que ninguém conhecia?”

Para a professora do primeiro ano, “é muito importante valorizar o que as

crianças trazem de casa, o que o pai, a mãe, o avô conhecem e passam para eles, a

cultura que não está nos livros”.

Neste mesmo debate, a professora do grupo 5 da educação infantil levanta a

questão do envolvimento com o bloco Malê Debalê, considerando que “nesta

aproximação com a cultura popular, a parceria da escola com o bloco é muito

importante, pois é neste espaço [do bloco] que os alunos se reconhecem; é daqui,

até, que tiramos alguns conteúdos que trabalhamos em sala”.

Estas afirmações sinalizam a forma como o discurso sobre a aproximação

entre os saberes populares e institucionalizados está construído naquele ambiente

escolar. De maneira geral esse diálogo é compreendido como pertinente, positivo, e

até mesmo necessário. Entretanto, cabe analisar que, em todos os registros, formais

e informais, a compreensão desse corpo docente em relação ao saber popular, é a

de um saber oriundo do outro, do aluno, da família do aluno, da comunidade do

aluno, nunca dos professores ou gestores da instituição escolar. As falas e

colocações ainda denotam um entendimento de que esses saberes populares

pertencem, exclusivamente, ao corpo discente daquele espaço, e que, a entrada

126

desse conhecimento, dessa vivência no ambiente escolar é pertinente e importante,

como se eles já não fossem parte constituinte daquele espaço, em todas as esferas.

Ainda buscando compreender as formas de relação entre os saberes

instituídos e instituintes da escola municipal Malê Debalê, trouxemos o currículo

para o espaço das discussões.

Conforme vimos discutindo, embora a escola Malê Debalê venha

apresentando em suas ações um processo mais conectado e contextualizado com

as vivências, experiências e demandas de sua comunidade, processo este

intensificado pela integração com o bloco afro Malê Debalê, suas práticas, no que

tange à construção do conhecimento escolar, ainda apresentam uma forte

desconexão entre os saberes formais e não formais. Ao trazermos o currículo para o

campo de debate, observamos que essa questão também se estabelece na área

curricular.

Durante uma conversa informal com a coordenadora pedagógica da escola,

falávamos sobre a enorme demanda de tempo exigida no desempenho das

atividades burocráticas. Entre queixas e exemplos de trabalhos desnecessários, são

mencionadas por ela a construção do Projeto Político Pedagógico e a formalização

do currículo.

Segundo a coordenadora, “hoje em dia tem toda essa discussão sobre o

currículo, só que a universidade discute o currículo muito longe da realidade do dia-

a-dia da escola. Na verdade, para nós da gestão escolar, o currículo acaba sendo

mais um documento que precisamos ter em mãos quando somos cobrados. É só

mais um trabalho burocrático pra gente fazer”.

Outros momentos de observação reiteram essa concepção. A construção do

Projeto Político Pedagógico da escola, iniciado pela gestão em 2011, e ainda não

colocado para discussão, colaboração e/ou finalização com as docentes, a pouca

clareza das professoras ao mencionarem o currículo da escola, além da ausência de

discussões sobre a construção curricular nas reuniões pedagógicas, apontam como

a compreensão do currículo, na escola Malê Debalê, ainda se encontra

127

predominantemente sedimentada na ideia de um “artefato burocrático prescrito”,

constatando “uma dificuldade marcante por parte dos trabalhadores em educação

em nocionar/conceituar o currículo, bem como de perceber a sua dinâmica e

implicação político-pedagógica própria” (MACEDO, 2009, p.13).

Uma das consequências observadas neste processo é, novamente, a

fragmentação dos saberes acontecendo nesta unidade escolar. De um lado está o

“currículo oficial”, abrangendo todas as obrigatoriedades disciplinares a serem

cumpridas, devidamente descritas e especificadas dentro de um modelo “esperado”;

do outro lado, encontram-se, nos atos desse currículo, as demandas sociais e

culturais daquela comunidade escolar, contempladas nas comemorações, nas

festividades, nos projetos, nos eventos compartilhados com o bloco, etc..., como se

esses espaços/momentos estivessem desvinculados da aprendizagem escolar.

Este cenário vem também reforçar quão distante dessa comunidade

educacional está a noção de que eles são os autores e atores curriculares no

espaço escolar, de que eles podem e devem autorizarem-se protagonistas neste

processo. Moreira (1995, p.15), aponta para o fato de que:

(...) no currículo desenvolve-se representações, codificadas de forma complexa nos documentos, a partir de interesses, disputas e alianças, e decodificadas nas escolas também de modo complexo, pelos indivíduos nela presente.

O desafio posto é que esses atores educacionais exerçam decodificações de

forma a implementar uma prática que não trabalhe exclusivamente na manutenção

das estruturas curriculares instituídas, mas que estabeleça, no campo curricular,

uma aproximação entre saberes, legitimando um conhecimento que integra o

cotidiano desta escola, que interage com os saberes disciplinares, que tem

significados para aquela população, e que, portanto, interfere no processo formativo

dos indivíduos deste espaço.

128

3.4 Ação Grio Nacional: indicando possibilidades

Compartilhar o cotidiano da escola municipal Malê Debalê, investigando as

contribuições que o diálogo com os saberes populares podem trazer para este

espaço, revelou as possibilidades e as contradições que se estruturam quando

tratamos de aproximar saberes e fazeres não institucionalizados aos ambientes

formais de educação.

Conforme já apresentamos40, o espaço da escola Malê Debalê, embrenhado

nas manifestações da cultura popular local, fortalecido pela intensa relação com o

bloco afro Malê Debalê, traz constantemente para suas práticas elementos e

conhecimentos inerentes a esses universos de saberes. As músicas, danças,

personalidades e heróis referendados pela memória e vivência dos atores sociais

daquela comunidade alicerçam projetos, ações e concepções de trabalho da escola,

(re)afirmando a presença da cultura popular local naquele espaço.

Neste cenário, aproximar os projetos e atividades da escola às concepções e

práticas da Ação Griô, corroboraram, num primeiro momento, com o estreitamento

dos diálogos entre a instituição escolar e os espaços não formais de educação.

Embora de forma um pouco tímida estabeleceu-se, especialmente por intermédio da

griô-aprendiz, uma parceria da escola Malê Debalê com pontos de cultura, com

espaços importantes do entorno – como “a Casa da Música”41 – dentre outros

espaços. Esta parceria proporcionou a presença, conversas e ensinamentos de

muitos mestres da cultura popular (e de seus grupos) nos eventos e atividades

realizadas pela escola, acentuando, dessa forma, a participação de outras práticas

educativas e formativas naquela unidade escolar.

De maneira mais intensa, reforçaram-se os laços entre a escola e o bloco afro

Malê Debalê. A aproximação da unidade escolar com as propostas da Ação Griô

proporcionaram mais que uma parceria de trabalho entre bloco e escola:

40 Cf. seção 3.3. 41 Inaugurada em setembro de 1993 com o objetivo de abrigar acervos que retratem a história da música baiana, a Casa da Música é hoje um espaço cultural que trabalha incentivando a produção cultural da comunidade e na democratização do acesso à cultura (Cf. casadamusica.wordpress.com).

129

promoveram um (re)encontro daquela comunidade escolar com os elementos e

saberes de uma cultura de tradição oral inerente à vida do bloco, e,

consequentemente, inerente à vida de sua comunidade. Mais que cantar e dançar

suas músicas, o esforço passa a ser pelo reconhecimento das mensagens que

essas músicas carregam; por compreender o significado político e social explícito e

implícito nas canções; e pelo debate e entendimento da relevância de cada tema

abordado pelo bloco ao longo dos anos. Mais do que tocar seus instrumentos vem-

se (re)descobrindo o sentido de “ser parte” do bloco Malê Debalê, traduzindo toda a

força cultural e social que o bloco representa e destacando a importância política e

econômica que este lugar de pertencimento tem (ou pode ter) não apenas dentro

daquela comunidade, mas principalmente em outros territórios, viabilizando a

ocupação de outros lugares sociais.

Apontamos também como uma das conquistas provenientes do encontro da

escola Malê Debalê com as propostas da Ação Griô a inserção dos mestres, grupos

e personalidades da cultura popular local no ambiente da escola. Despertar, a partir

do diálogo com as referências pedagógicas da Ação, para o lugar de importância

social, cultural e política destes mestres nos processos educacionais, dentro e fora

das escolas, instaurou um movimento efetivo de partição dessas pessoas no

cotidiano escolar. Ver seu Peruano, a convite das professoras, dar uma grandiosa

aula sobre a história do bloco Malê Debalê; ver seu Alcides, pescador antigo da

comunidade, adentrar a sala de aula e ocupar o “lugar” de professor, ensinando os

alunos as artes e mistérios de uma profissão tão antiga e tão presente naquela

comunidade, que é a atividade da pesca; ver o grupo das ganhadeiras invadir o

pátio da escola com histórias e memórias pertencentes às famílias de muitas

daquelas crianças; além de representarem momentos singulares de construção e

socialização de conhecimento, significou também ver muitas daquelas pessoas

(re)descobrindo a beleza e a importância de serem filhos e netos de seus pais e

seus avós, e a força de serem quem são.

130

Seu Alcides. Aula na sala do segundo ano vespertino.

Entretanto, conviver com esta comunidade escolar, buscando desvendar os

fenômenos para além das aparências, e aguçando o olhar para o mundo dos

significados implícitos que permeiam o universo daqueles atores escolares, revelou

também os confrontos e contradições presentes entre discursos e atos e, dentro dos

próprios discursos, que defendem e enaltecem a aproximação entre os saberes

populares e a escola, ao mesmo tempo, não conseguem percebê-los ou legitimá-lo

enquanto conhecimento.

Compreendemos que estes confrontos e contradições entre, e nos, discursos

e práticas, quase sempre desapercebidos pelos atores escolares, acompanhado da

dificuldade em se incorporar à construção do conhecimento escolar aprendências

que se manifestam além das salas de aula, dentro e fora da escola, são heranças de

131

um processo de formação e atuação docente linear, estático, sequencial, e

compartimentado, que cerceiam o olhar para outras possibilidades formativas.

É neste contexto de uma escola inundada pela cultura popular local,

transbordando de múltiplos saberes que movimentam-se e interagem construindo e

socializando conhecimentos – mas que muitas vezes são colocados à margem dos

processos de ensino e aprendizagem – que apontamos os desafios da Ação Griô

em suas contribuições para o espaço da escola municipal Malê Debalê:

O esforço por sensibilizar: sensibilizar a comunidade escolar, através do

diálogo perene entre “tradição e invenção, escola e comunidade, vivência e

consciência, saber tradicional e conhecimento científico”42, para o fato de que esses

saberes populares que adentram diariamente os portões da escola, através de seus

alunos, professores, funcionários, bloco e comunidade, são conhecimentos

instituintes do cotidiano educativo. Representam momentos e situações que

alicerçam saberes que podem, e devem, compor o complexo cenário de

aprendizagem.

A necessidade de encantar: encantar, compreendendo o que afirma Oliveira:

O encantamento não é um estado emocional, de natureza artística que nos arrebata os sentidos e nos impõe sua maravilha. Não é da ordem sublime, à qual não podemos resistir, muito menos da ordem religiosa, à qual devemos obedecer. O encantamento é uma experiência de ancestralidade que nos mobiliza para a conquista, manutenção e ampliação da liberdade de todos e de cada um. Assim, é uma ética, uma atitude que faz sentido se atualizando na contemporaneidade (2012, p.43).

Trata-se, portanto, de encantar a escola “acolhendo a subjetividade, a

invenção, a criatividade, a imaginação, o cotidiano, como novas possibilidades

teórico-metodológicas” (Tourinho, 2003. p.126). Um esforço por relativizar conceitos

como verdade, objetividade e razão, despertando as práticas escolares para a força

e a beleza das manifestações da cultura popular enquanto produtoras e

socializadoras de conhecimento legítimos, para a sapiência de seus mestres, para a

integração das rodas, para a transcendência dos rituais, para a energia coletiva da

42 Ação Griô Nacional.

132

memória; enfim, buscar fascinar, cativar, provocar desejo e admiração e causar

satisfação, chamando ao exercício do encantamento desse ambiente escolar.

Finalizamos este momento com o depoimento da griô-aprendiz e professora

da escola municipal Malê Debalê, Edméia Nascimento:

“Respondemos ao convite da Ação Griô e da pedagogia do velho griô de

Lençóis, e ‘invadimos’ a escola. Como? Acolhendo os educandos, com músicas,

sentados em esteiras no chão, sensibilizados, disponíveis, despertos para o novo

tão antigo que é a arte de ouvir, criar, contar, cantar e dançar a tradição oral de

nossa cultura, do nosso saber de matrizes africanas e indígenas. A princípio

conquistar a escola não foi lá muito fácil. O corpo docente se manteve muito

resistente ao projeto, ao contrário das crianças. No início houve uma resistência,

estranheza, mas que a cada dia vem se acabando”.

133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”.

Rolnik Suely

Percorrer a trajetória de construção e de execução desta pesquisa, buscando

compreender, a partir das propostas da Ação Griô, as contribuições que a

aproximação entre os saberes populares e os saberes formalizados pode trazer para

os processos educacionais, possibilitou-me a oportunidade de conhecer, partilhar e

me relacionar com múltiplos e diferentes espaços e momentos de produção do

conhecimento. Vivenciar o Projeto Griô, partilhar o cotidiano escolar, percorrer os

espaços não formais de educação, me encontrar e me encantar com os mestres da

cultura popular, promoveu uma avalanche de saberes e práticas que precisaram ser

observados, desafiados e destrinchados, para serem compreendidos.

Adentrar o espaço da escola Malê Debalê e conviver com essa comunidade

escolar durante 18 meses, trouxe à tona, juntamente com seus êxitos e fracassos, a

complexidade do cotidiano deste espaço educacional. Lidar diariamente com as

idiossincrasias e subjetividades, com as heterogeneidades de etnia, de religião, de

culturas familiares, de histórias e trajetórias de vida, significa lidar com embates e

confrontos contínuos na realização de qualquer proposta pedagógica. Entretanto,

participar do processo de aproximação das concepções e práticas da Ação Griô com

este ambiente escolar confirmou também a necessidade de a escola colocar-se o

mais aberta possível para outras possibilidades formativas, que colaborem no

diálogo com essas diversidades, e promovam uma construção do conhecimento

mais pertinente, encantadora e significativa.

Amparada pelo olhar fenomenológico, portanto buscando compreender “não

o sujeito nem o mundo, mas o mundo enquanto vivido pelo sujeito” (GIL, 2007,

p.14), vi, reforçado pelo encontro com as concepções do projeto griô, a comunidade

escolar Malê Debalê se abrir para uma proposta de vinculação com saberes e

134

fazeres de uma cultura que invade seus espaços diariamente. Um processo de

(re)aprendizado da arte de ensinar, onde as trocas simbólicas, afetivas e de

informações, vêm tomando o lugar dos “depósitos de conteúdos”. Vi, no (re)encontro

desta comunidade com seus mestres, sua história, sua memória, e sua

ancestralidade, um movimento de fortalecimento do sentimento de pertencer àquele

lugar. Um processo lento, longo, de aceitações e contradições, que avançam e

retrocedem, mas que vem suscitando debates e promovendo a valorização de

sujeitos e conhecimentos que há muito vinham sendo deixados à margem pelos

espaços formais de ensino.

Neste contexto é que apresentamos os argumentos que dialogam com a

questão fundante desta pesquisa: De que maneira uma proposta de aproximação

entre os saberes populares e os saberes institucionalizados pode interferir nos

processos de construção do conhecimento e nas relações sociais dentro dos

espaços escolares? Apontamos algumas possibilidades: promover a associação

cultural entre escolas e comunidades, enxergando e interagindo com uma cultura da

rua que inunda a escola cotidianamente, e utilizando esses múltiplos recursos

formativos para o enriquecendo do aprendizado escolar; oportunizar o encontro

entre as gerações de tradição oral e as novas gerações de tradição escrita,

travando, no espaço escolar, o diálogo entre diferentes saberes, pessoas e lugares

sociais; superar a folclorização das manifestações da cultura popular, valorizando-as

enquanto conhecimento e legitimando, assim, outros saberes na escola que não

apenas os institucionalizados; e, finalmente, estabelecer vínculos afetivos e de

aprendizagens que permitam, através do (re)encontro da comunidade escolar com

sua história e sua ancestralidade, o fortalecimento de seus lugares de pertencimento

e a transgressão de papéis, normas e valores impostos por uma classe hegemônica.

Com relação aos espaços não formais de educação, pude, através do contato

com os pontos de cultura parceiros da Rede Ação Griô e com outros espaços não

escolares, observar quão distante estão suas concepções e práticas de trabalho das

apresentadas pela maioria dos espaços educacionais formais.

135

De forma geral, a educação não formal abandonou a rigidez dos horários e

prazos, o isolamento das salas de aula, a fragmentação do conhecimento, e a

hierarquização de pessoas e saberes, tão frequentes e nocivos na educação

institucionalizada, e concentrou-se em promover um aprendizado contextualizado,

que se estabeleça, predominantemente, pelas práticas sociais, através da

(con)vivência entre as pessoas, das trocas de experiências individuais e coletivas,

flexibilizando tempos e locais, e otimizando os momentos de aprendizagem.

Pontuar essas diferenças entre o sistema escolar convencional e a educação

não formal não significa supor uma hierarquização de modalidades, muito menos a

substituição de uma pela outra. Significa sinalizar como ambas estão contrapostas,

como a segregação de seus recursos educacionais contribuem para um

empobrecimento do ato de aprender, especialmente frente às novas necessidades

decorrentes dos avanços tecnológicos e das mudanças culturais e sociais atuais.

Trata-se, portanto, não apenas de destacar todas as vantagens da educação não

formal, mas sim de, através de uma atuação integrada e intensa entre essas duas

instâncias educacionais, enfrentar as desvantagens da educação formal. Como

afirma Ghanem, essa integração entre educação formal e não formal faz-se

necessária:

(...) não só para fazer frente à “sobrecarga” da escola com demandas diversificadas, pela limitação dos recursos financeiros ou pela degradação da escola devido à massificação. Essa amplitude e integração são, sobretudo, necessárias para uma educação criadora e para uma educação como convivência democrática: existência de um espaço público vigoroso, colaboração entre Estado e sociedade civil, não exclusivamente a atuação do Estado sobre a sociedade civil, nem estritamente para esta (2008, p.85-86).

Seguindo nossos objetivos, procuramos, ao longo deste trabalho,

perceber/explicitar, através da compreensão das ações da Ação Griô Nacional, as

contribuições e implicações que essa proposta pode acarretar para a educação

como um todo. Falar dessas contribuições requer, aqui, falar de encantamentos,

possibilidades e dificuldades.

136

Conhecer as propostas e ações do Projeto Griô se mostrou encantador em

muitos sentidos.

Encanta no sedutor encontro com o universo da cultura popular enquanto

estabelecedor de um universo educacional pleno, onde o desejo de educar se funda

nas vivências, no compartilhamento, nos encontros simbólicos e afetivos entre as

pessoas e se alicerça num processo de coesão interna, onde o novo e o antigo se

entrelaçam continuamente, orientando e revigorando comportamentos. Um educar

que se desenvolve num movimento que, através de diferentes linguagens, integra

cantigas, danças, símbolos, mitos e arquétipos, integrando, assim, afetividades e

saberes.

Encanta no fascínio com a sabedoria dos mestres das culturas de tradição

oral. Na sapiência desses mestres em compartilhar saberes, amparados pela força

restauradora das tradições, pelo poder da memória e do saber oral em reconstruir

afetiva e coletivamente experiências passadas e pelo vigor do ritual em ressignificar

gestos, locais e o tempo, transpondo o hoje, o agora, para épocas remotas e lugares

divinos.

Encanta por permitir surpreender a escola, aproximando-a de concepções e

práticas mais vivas e pulsantes, conectadas às vivências e anseios de seus

educandos, e (re)ligadas ao movimento da vida dos saberes e fazeres da cultura de

tradição oral.

Enfim, encanta por facilitar o encantamento, por fortalecer o sentimento de

pertencimento, e (re)significar histórias e vivências a partir do (re)encontro com

nossa própria ancestralidade.

No campo das possibilidades, os diálogos travados com as propostas da

Ação Griô contribuem para que a escola desperte para as novas demandas que a

educação vem solicitando, e se abra, se disponha para outros contextos formativos

que, via de regra, já permeiam seus ambientes. Trata-se de acentuar os encontros

com outros espaços/momentos (não oficiais) de ensino e aprendizagem, de

promover uma atuação mútua entre a educação formal e não formal, e de ratificar a

137

entrada e a parceria das manifestações da cultura popular e de seus mestres nos

processos educacionais institucionalizados, afim de que se estabeleça uma

aprendizagem o mais rica possível, em quantidade e qualidade de recursos.

Neste mesmo contexto as propostas da Ação colaboram para que a cultura

de tradição oral e seus mestres assumam o lugar efetivo de produtores e

socializadores de conhecimentos. Propõe-se pensar nesses saberes para além das

festividades ou de sua folclorização, mas sim ocupando um espaço importante nos

processos oficiais de educação. Isto não significa disciplinarizar seus

conhecimentos, mas sim de compreender e utilizar a força política e educativa

destas manifestações, desenvolvendo práticas alternativas de ensino, que

agreguem conhecimentos e contribuam para a desestabilização de uma lógica de

dominação dentro e fora das escolas.

Percorrendo os “entre lugares” deste projeto, foi possível reconhecer as

possibilidades de deslocamentos identitários e de mobilidades sociais, angariando

outras potencialidades. Os mestres assumem o lugar dos professores, os

professores tornam-se novamente educandos. Os educandos tornam-se

protagonistas em seus ambientes escolares e sociais. Os griôs, multiplicando-se em

diferentes papéis, não são tão somente cantadores e contadores de histórias, mas

desempenham, também, a função de agentes culturais e políticos, fazendo com que

política e cultura interpelem a educação. Enfim, são mestres, griôs, professores,

alunos e comunidade experimentando e assumindo papéis, identidades e lugares

sociais de escolha, diferentes dos impostos, autorizando-se a negociar e participar

das estruturas mais amplas de poder que atravessam a vida pública.

Ao pensar sobre a dimensão das ações da Ação Griô Nacional chegamos,

com a proposta de implementação da Lei Griô, no âmbito das políticas públicas.

Propor, por meio de um projeto de lei de iniciativa popular, a instituição de uma

política nacional de transmissão dos saberes de tradição oral em conexão direta

com os sistemas oficiais de ensino significa mobilizar sociedade civil e poder público

no debate, formulação e implementação de políticas públicas de valorização e

preservação do patrimônio cultural imaterial nacional, e de renovação de propostas

138

metodológicas para a produção do conhecimento. Um movimento ímpar, que

articula sociedade civil, política cultural e política educacional.

Assim, compreendemos a importância desta batalha para a afirmação do

lugar político, social, cultural e econômico dos mestres populares e de seus saberes,

bem como para o fortalecimento dos mecanismos de diálogo entre a cultura de

tradição oral, seus mestres e a educação formal, legitimando conhecimentos que

compõem o processo educacional dos estudantes brasileiros, mas que se localizam,

quase sempre, à margem dos processos oficiais de ensino. Assim, entendemos a

implementação da Lei Griô como um importante passo na colaboração para que

essa proposta se firme, participe ativamente dos processos de construção do

conhecimento e de cidadania, e não se torne apenas mais um apêndice na

educação.

Concordamos, entretanto, que a efetivação da lei, por si só, não é garantia de

êxito dos projetos da Ação Griô. Vimos, nas entrelinhas desse processo, surgirem

armadilhas, astúcias e artifícios capazes de desviar, ou mesmo imobilizar suas

ações. Apontamos, então, os obstáculos que se colocam à frente da Ação Griô

Nacional nesta caminhada de efetivação de suas propostas.

É preciso ver com atenção os limites entre o apoio, a necessidade e a

dependência de se agregar às instâncias governamentais. Torna-se importante

delimitar uma relação que garanta, por meios legais, os direitos aos espaços, aos

financiamentos, enfim, à existência pública, sem que a proposta se torne refém

destas instâncias, dependentes delas para sua existência.

Neste cenário, é importante cuidar para que os diálogos entre o universo da

cultura popular e outros espaços institucionalizados, não signifiquem a simples

apropriação dos saberes e fazeres desse universo, usurpando seus discursos e

práticas de resistência e de transgressão, transformando-os em mercadoria, em

mero entretenimento, e, dessa forma, desmobilizando e enfraquecendo a

capacidade crítica e de contestação inerentes às suas manifestações.

139

Outro desafio com relação à concretização das propostas da Ação Griô que

se apresentou ao longo desta pesquisa, refere-se aos benefícios e perigos de sua

expansão. Expandir mostra-se positivo, uma vez que se firmam possibilidades de

discussão, (re)conhecimento e implementação do projeto em múltiplos lugares e em

diferentes instâncias (governamentais, educacionais, sociais), contribuindo com

possíveis aperfeiçoamentos e com o fortalecimento das concepções. Torna-se

perigoso, como já sinalizamos, quando cresce a ponto de escapar às mãos,

resultando num desamparo às parcerias, num abandono das ações firmadas, numa

falta de entendimento de suas concepções e objetivos, enfim, no perigo de tornar-se

mais uma proposta de ação plagiada e vazia de significados.

Assim, ao refletir sobre os encantamentos, as possibilidades e os desafios

resultantes desta pesquisa, finalizo esta jornada. Feliz, com a enxurrada de

ensinamentos que este trabalho me proporcionou, e que carrego para minha vida

acadêmica e pessoal. Confiante, na perspectiva de ter contribuído para que as

propostas da Ação Griô Nacional possam ser conhecidas, discutidas e reconhecidas

como possibilidade para o fortalecimento de uma educação pensada para a vida. E

certa de que há, ainda, um grande caminho a ser percorrido, visto que tratamos de

enfrentar escleroses sociais, verdades absolutas, e paradigmas estabilizadores.

140

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ANEXOS