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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DIMAURA FATIMA CARVALHO
A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.
AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES
Salvador
2013
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DIMAURA FATIMA CARVALHO
A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.
AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES
Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do título de mestre em educação.
Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib.
Salvador
2013
SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira Carvalho, Dimaura Fátima. A cultura popular para dentro dos muros da escola. Ação Griô Nacional : indicando possibilidades / Dimaura Fátima Carvalho. – 2013. 162 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2013. 1. Cultura popular. 2. Educação – Aspectos Sociais. 3. Ação Griô Nacional. I. Abib, Pedro Rodolpho Jungers. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 306.43 – 22. ed.
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Dimaura Fatima Carvalho
A CULTURA POPULAR PARA DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA.
AÇÃO GRIÔ NACIONAL: INDICANDO POSSIBILIDADES
Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de mestre em educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
Aprovada em 7 de março de 2013
Banca Examinadora
Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib – orientador ___________________
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Eduardo David Oliveira ____________________
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante ____________________
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia
Universidade Estadual de Feira de Santana
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AGRADECIMENTOS
São muitos e tão especiais...
Agradeço aos meus pais, Ademir e Sueli, pelo amor e apoio incondicionais.
Às minhas irmãs, Babi e Lu, por existirem e serem as companheiras e cúmplices de
toda a vida.
Às minhas princesas, Marina, Malu e Laurinha, por tornarem a vida bem mais
divertida.
Ao meu amor, Gade, pelo carinho, paciência e entusiasmo, mesmo nas horas mais
difíceis.
À minha família paulista, especialmente à vó Jenny e à Tita, pelo carinho e apoio de
sempre.
À minha família baiana, Neuza, Sy, Célia e tia Maria, por saber que tenho sempre
com quem contar.
À Eneida, minha melhor amiga, minha irmã, minha revisora, minha tradutora, ..., por
tudo.
Agradeço a Pedrão, meu orientador, por me ensinar a aprender de tantas outras
formas, dentro e fora da universidade.
Agradeço, imensamente, à comunidade escolar Malê Debalê, pela paciência,
carinho e pelas contribuições neste trabalho.
Agradeço à Mel, “minha griô-aprendiz”, pelo companheirismo e amizade.
Aos mestres e pontos de cultura, pela disposição e carinho com os quais me
atenderam.
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Agradeço, profundamente, ao Grãos de Luz e Griô, especialmente a Márcio e Líllian,
pela oportunidade de conhecer e vivenciar experiências tão significativas, tanto para
a realização desta pesquisa, quanto para a minha vida.
Ao grupo Griô, pelas amizades e pelas novas descobertas.
Ao meu recém achado grupo ACHEI, pelas grandes contribuições. Obrigada Adil,
pela amizade. Obrigada Duda, pelos abraços. Obrigada Luis, por todas as
gargalhadas.
Ao grupo MEL, em especial ao professor Augusto César Leiro, pelo acolhimento. A
Elton, Débora, Martha e Sara, pelo carinho.
Agradeço às amigas Patrícia e Maíra, por serem tão companheiras nessa jornada.
A todos os colegas que encontrei nessa caminhada pela UFBA, e que a tornaram
mais interessante e mais feliz.
Agradeço a todos os professores que, de alguma forma, contribuíram com a
realização deste trabalho. Obrigada Rose e Tuca, pelos momentos tão significativos.
Às meninas da secretaria da Pós, por serem tão amáveis e solícitas.
E, por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da UFBA, pelo apoio, suporte e a infra-estrutura.
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A educação não é apenas instrumental, é antes,
uma área de lutas ideológicas que devem ser apreendidas.
(Carlos Alberto Torres, 2011)
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CARVALHO, Dimaura Fatima. A cultura popular para dentro dos muros da escola. Ação Griô Nacional: indicando possibilidades: o uso de cópias nas universidade de Salvador. 162 f. il. 2013. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
RESUMO
Este trabalho pretende discutir, a partir do acompanhamento e compreensão das propostas do projeto Ação Griô Nacional, de que maneira uma aproximação entre os saberes populares e os saberes institucionalizados pode interferir nos processos de construção do conhecimento e nas relações sociais dentro e fora das escolas. Para isso, trouxemos para o corpo teórico desta pesquisa as questões da cultura dialogando com a produção e a socialização do conhecimento (ABIB, 2005; BRANDÃO, 1995; CARIA, 2008; dentre outros), e com os movimentos de reconfiguração dos papéis sociais (BAUMAN, 2005; BHABHA, 1998; CANCLINI, 2006). Neste contexto, assumindo os princípios da observação participante (QUEIROZ, 2007) e amparados pela fenomenologia crítica (MASINI, 1989; MERLEAU-PONTY, 1999), partilhamos o cotidiano da escola municipal Malê Debalê, buscando compreender como esse processo de integração entre saberes, populares e institucionalizados, se estabelece no âmbito dos espaços formais de educação, bem como quais as possíveis contribuições que essa aproximação pode oferecer. Este estudo nos permitiu, além de (re)descobrir novas (e outras) práticas de produção e transmissão de saberes mais criativas e efetivas, alcançar sentidos e significados que contribuem com a elaboração de uma educação voltada para as questões da vida.
Palavras-chave: Cultura popular. Educação. Ação Griô Nacional.
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CARVALHO, Dimaura Fatima. The popular culture inside the school’s wall. Ação Griô Nacional: indicating possibilities: the practice of photocopying at the universities in Salvador (Bahia, Brazil). 162 pp. ill. 2013. Master’s Dissertation – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
ABSTRACT
The principle aim in this thesis is to discuss in which ways the connection of both Popular and Institutionalized Knowledge may intervene in the process of Knowledge Construction and social relationships inside and outside schools. This discussion has been accomplished from a following and comprehension of Ação Griô Nacional Project proposals. The theoretical background herein is based on cultural issues associated with Knowledge Production and Socialization (ABIB, 2005; BRANDÃO, 1995; CARIA, 2008; among others) along with the dynamics of Social Role Re-configuration (BAUMAN, 2005; BHABHA, 1998; CANCLINI, 2006). As for the fieldwork, I have participated in Malê Debalê Public School activities on a daily basis, aiming at comprehending how this process of different knowledge (both Popular and Institutionalized) can be established in formal education domains, as well as understanding which possible contributions can be taken from this connection. For that matter, we assume the principles of Participant Observation (QUEIROZ, 2007) and Critical Phenomenology (MASINI, 1989; MERLEAU-PONTY, 1999). The conclusions withdrawn from the present work were twofold: first, we were able to (re)discover more creative, more effective production performances, in addition to knowledge transmitting; second, we have found how to achieve senses e meanings which can contribute to the elaboration of an education concerned with life matters.
Keywords: Popular Culture. Education. Ação Griô Nacional Project.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1 – CULTURA E EDUCAÇÃO RECONFIGURANDO PAPÉIS SOCIAIS: A CULTURA POPULAR COMO FORÇA EDUCATIVA ........................ 21
1.1. Dialogando com o conceito de cultura: significações e implicações para a vida social ............................................................................... 21
1.2. As mobilidades identitárias como possibilidade de reconfigurações sociais ............................................................................................... 27
1.3. Elementos e nuances da cultura popular: construindo um mundo de aprendências ................................................................................ 31
1.4. E a escola com isso? ......................................................................... 41
CAPÍTULO 2 – A AÇÃO GRIÔ NACIONAL .......................................................... 55
2.1. Apresentando a Associação Grãos de Luz e Griô, onde tudo começou ............................................................................................ 55
2.2. Ação Griô Nacional: do que se trata? ................................................ 66
2.3. A Lei Griô Nacional ............................................................................ 68
2.4. Perspectivas futuras: lidando com as conquistas e dificuldades ....... 70
2.4.1. Com a palavra, os Pontos de Cultura ...................................... 73
Espaço Cultural Pierre Verger ........................................................... 74
Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió .......... 79
Associação Cultural Beneficente de Apoio aos Trabalhadores Bahia (ACAT) .................................................................................... 84
Grupo Cultural de Entretenimento Mamulengos da Bahia ................ 87
Grupo de Capoeira Ginga e Malícia .................................................. 90
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CAPÍTULO 3 – DIALOGANDO COM A REALIDADE .......................................... 95
3.1 Primeiras aproximações ................................................................... 96
3.2 Perspectivas metodológicas ............................................................ 103
3.3 O cotidiano escolar: ações e contradições ...................................... 107
3.4 Ação Grio Nacional: indicando possibilidades ................................. 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 140
ANEXOS ................................................................................................................ 147
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INTRODUÇÃO
Ao refletir sobre o emergente protagonismo que as questões culturais vêm
ocupando na atualidade, voltamos nossas atenções para o lugar, cada vez mais
significativo, que a cultura vem assumindo no que diz respeito à compreensão das
sociedades modernas.
Abandonando a noção de cultura exclusivamente atrelada ao erudito,
produzido por uma classe alta, dominante, e por isso considerada como maior grau
de valor agregado, no diálogo que propomos, a cultura mergulha no mundo social,
percebendo e reconhecendo os diferentes significados que interferem nas
subjetividades, tornando-se, dessa forma, uma “dimensão transversal imanente à
vida cotidiana” (RUBIM, 2010, p.10).
Nesta mesma perspectiva apontamos para os elementos e nuances que
conferem às criações e manifestações da cultura popular uma “lógica diferenciada”
(ABIB, 2005). Sob uma ótica mais atualizada deste universo, entendemos a cultura
popular como processos e produtos de manifestações sociais vivas, que viabilizam
trocas simbólicas e afetivas, produzindo e socializando saberes, o que acaba por
requerer outros e diferentes tipos de relação entre o ensinar e o aprender.
Assim, as questões abordadas neste trabalho surgem da necessidade de
uma melhor reflexão e compreensão sobre a complexa relação entre os saberes e
fazeres da cultura popular e os (ou nos) saberes e fazeres da escola. Inquietações
estas que vêm acompanhando minha trajetória acadêmica e pessoal, antes mesmo
de serem percebidas como tal.
Pensar sobre as escolas brasileiras nos leva, quase automaticamente, a
pensar sobre todas as mazelas que compõem este cenário. Questões que vão
desde a falta de recursos financeiros e precárias condições de trabalho, até
questões mais subjetivas como o que, de que forma e para quem se ensina,
aparecem com frequência nos discursos sobre a escola. Importante espaço
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socializador, de (re)construções sociais e culturais, a instituição escolar vem, em sua
maioria, desempenhando um papel cada vez mais homogeneizador, massificador e
hierarquizador de saberes.
Neste mesmo contexto, os espaços não institucionalizados de educação
(não-formais), com suas práticas menos hierarquizadas, menos centralizadas,
pautadas mais nas vivências e anseios coletivos, parecem ganhar terreno no que diz
respeito aos processos de construção do conhecimento.
Assim, ponderando sobre a profunda e duradoura crise da educação formal
brasileira, assistindo a uma crescente e fértil atuação dos espaços e projetos não
formais de educação, e acreditando nas manifestações da cultura popular como
produtoras e socializadoras de saber, venho, num longo processo de idas e vindas,
de (re)descobrimentos, (re)construções e, principalmente, de sucessivos
desvendamentos, dar corpo e sentido a esta pesquisa.
A aproximação com a intrincada relação entre cultura e educação teve início
enquanto eu ainda era estudante do curso de Pedagogia, na Universidade de São
Paulo. Dentro do Programa de Iniciação Científica desta instituição pude
desenvolver, no ano de 2003, um projeto de pesquisa intitulado Escola e diversão:
um estudo de caso da implantação e objetivos do CEU–Centro de Educação
Unificado – pesquisa esta, que possibilitou o contato direto, durante
aproximadamente 18 meses, com um espaço de educação institucionalizado
diferenciado, tanto em termos de estrutura física como em relação à sua proposta de
ação, a qual tinha como objetivo primeiro proporcionar a integração entre escola,
cultura e lazer.
Os CEUs – Centros de Educação Unificados – foram criados durante a
administração municipal do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo nos
anos de 2001 a 2004, tendo à frente a prefeita Marta Suplicy. Buscando inspiração
nas Escolas Parque de Anísio Teixeira, esses Centros apresentavam como objetivo
“contribuir com uma formação rica em termos de recursos educativos e culturais,
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que esteja integrada com a realidade da comunidade e direcionada a toda família. É
uma escola que visa a formar cidadãos”. 1
Entretanto, a observação sistemática de suas práticas, tanto na escola quanto
no núcleo de esporte, cultura e lazer2, mostrou que a integração apontada como
objetivo principal da proposta estava longe de acontecer. As ideias, concepções
políticas e ações destes dois espaços nem sequer dialogavam.
A instituição escolar, ainda arraigada a uma concepção mecanicista,
racionalista e utilitária de educação, não pôde conceber abrir suas portas para novos
e outros processos de ensino/aprendizagem.
A partir desta experiência uma venda foi retirada de meus olhos, ou melhor
dizendo, de meu olhar. Descortinou-se aí a imensa dificuldade em se estabelecer
vínculos entre a cultura e a escola, como se um fosse o locus apenas da diversão,
enquanto o outro apenas do conhecimento.
Assim, assistindo aos sucessivos fracassos protagonizados por grande parte
dos espaços formais de educação, confesso que por um determinado período
passei a questionar a presença da escola. Flagrei-me reproduzindo o discurso que
associa a escola a um espaço fadado a manter e legitimar ideologias das
sociedades dominantes. Precisei parar, me afastar, vivenciar outros espaços,
discutir e refletir.
Eis que surge a necessidade de novos questionamentos: se, de fato, as
escolas estão apenas servindo para reproduzir relações sociais de dominação,
como podemos pensar novas alternativas de ensino que possibilitem o
desenvolvimento de relações sociais mais democráticas, dentro e fora das escolas?
Se, de fato, em sua maioria, as escolas optam pela “importação” de modelos
educacionais bastante dissonantes das particularidades locais, como é possível dar
à comunidade escolar a oportunidade de contribuir com suas experiências culturais
1 Cidade Educadora-Educação Inclusiva: um sonho possível. Documento da proposta político-pedagógica da SME, (Secretaria Municipal de Educação) São Paulo, abril/2003. 2 Embora funcionando em prédios distintos, a escola (municipal) e a coordenação de esporte, cultura e lazer ocupavam o mesmo espaço, sendo ambos construídos na mesma área.
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individuais e coletivas, para a construção de um conhecimento mais significativo?
Se, de fato, a escola representa apenas uma, entre tantas formas de educação,
porque negar os conhecimentos produzidos neste espaço aos 44 milhões de alunos
que estudam nas redes públicas de ensino no Brasil? Se, de fato, há na ideologia e
prática das instituições escolares uma tentativa de homogeneizar, unificar e
universalizar o saber, como possibilitar a compreensão de que os espaços escolares
são também locais sociais, políticos e culturais, e por isso, locais de embates,
transformações e regulações?
Neste sentido, concordamos com Henry Giroux e Peter McLaren (1995,
p.129) quando afirmam que, “Ao invés de teorizar essas críticas para as escolas,
radicais teorizam sobre as escolas, e, por essa razão, raramente se preocupam com
a criação de novas contra-esferas públicas dentro dos espaços escolares”.
Manifesta-se então a necessidade de adentrar e melhor compreender o
território das práticas escolares, refletindo sobre o funcionamento da escola, suas
normas e condutas, com um olhar particular para suas práticas cotidianas, trazendo
à tona um debate à respeito da educação escolar, com seu conjunto de teorias,
princípios e atos, e ao poder conferido ao currículo com suas implicações políticas e
pedagógicas.
Neste viés alçamos alternativas capazes de deslocar a lógica escolar de uma
perspectiva, em sua maioria, una, linear, estática e estável, para uma concepção
onde o fenômeno do ensino e da aprendizagem possa se estabelecer com e nas
relações sociais, num movimento onde se proponham processos dialógicos cada
vez mais conectados às realidades e anseios vividos pelos educandos, e que, por
meio de reflexões cada vez mais críticas em relação às práticas homogeneizadoras
e reducionistas de ensino possamos evitar a:
(...) destruição das tradições das pessoas que historicamente foram impedidas de afirmar ou mesmo de reconquistar suas subjetividades culturais e têm na escola um locus de pasteurização dos seus saberes e de seus pertencimentos e, portanto, das referências com as quais compreendem o mundo, a vida e com isso aprendem (MACEDO, 2009, p.125).
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Surge, neste momento, a mudança de endereço. Deixo o estado de São
Paulo rumo à Bahia. Foi nesta nova atmosfera que procurei, e só mais tarde me dei
conta disso, buscar este liame entre educação e cultura nos espaços não-formais de
educação.
Aproximei-me, então, no ano de 2009, da organização não governamental
(ONG) Cufa-BA – Central Única das Favelas, base Salvador, organização esta que
desenvolve suas atividades com projetos educacionais, artísticos, culturais e
esportivos destinados a jovens em situação de vulnerabilidade social.
Seguindo uma lógica de ação que parece permear a maioria dos trabalhos
desenvolvidos por instituições e projetos educacionais não formais, as atividades
planejadas e realizadas pela ONG pautavam-se na construção de um corpo de
conhecimento que, levando em consideração uma pluralidade de saberes e
valorizando as experiências individuais e coletivas dos jovens, privilegiava temas e
conteúdos próprios do cotidiano, próprios da vida e do ser humano.
Dessa forma, distante da lógica hierárquica e altamente formalizada presente
na maioria das instituições de educação formal, percebe-se que os espaços de
educação não formal buscam nos trabalhos coletivos, nas experiências pessoais,
nas tradições culturais, enfim, nas práticas sociais seus modelos de ação
pedagógica. Isto significa, como afirma a socióloga Maria da Glória Gohn, que
nestes contextos “a educação é abordada enquanto forma de ensino/aprendizagem
adquirida ao longo da vida dos cidadãos; pela leitura, interpretação e assimilação
dos fatos, eventos e acontecimentos que os indivíduos fazem de forma isolada ou
em contato com grupos e organizações” (2008, p.98).
É bom que se diga que não pretendemos aqui traçar linhas paralelas entre a
educação formal e a educação não formal, assinalando lógicas e modelos de ação
próprios e diferenciados e conduzindo, assim, a uma suposta impossibilidade de
comunicação entre essas duas instâncias. Ao contrário, o que vislumbramos é uma
aproximação dialógica de suas práticas a favor de um aprendizado ampliado e
relacional, não limitado, portanto, por espaços ou instituições específicas.
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Concomitante com este momento, cursando como ouvinte a disciplina
Educação do Campo na Universidade Estadual de Feira de Santana, tive contato
com o projeto desenvolvido pela ONG Grãos de Luz e Griô, localizada na cidade de
Lençóis, estado da Bahia. Este projeto propõe, através do (re)conhecimento e da
valorização dos saberes e fazeres da tradição oral, promover o fortalecimento da
ancestralidade e da identidade do povo brasileiro, numa iniciativa que visa a
incorporar à esfera da educação, da política e da economia a força da cultura
popular.
O trabalho proposto por esta ONG vem realizando, na cidade Lençóis, um
processo singular de reconhecimento da cultura popular de tradição oral e de seus
mestres, promovendo, além de ações de valorização e divulgação dos saberes e
fazeres daquela população, em sua maioria afrodescendentes e moradores das
comunidades rurais, ações educacionais, num processo de ensino e aprendizagem
que ocorrem dentro e fora das escolas daquele município.
O que já estava em cena ganha agora destaque, e as manifestações da
cultura popular passam a protagonizar um verdadeiro espetáculo de produção e
socialização de saberes. Utilizando-se de um processo diferenciado de transmissão
desses saberes, onde a lógica temporal é outra, onde há uma forma particular de
coesão interna, onde existe um repertório cultural próprio que possibilita uma
capacidade singular de ressignificação e perpetuação de um universo simbólico, o
mundo da cultura popular permite aos grupos sociais autorizarem-se criadores e
recriadores em suas sociedades.
Dentre as principais ações desenvolvidas pelo Grãos de Luz e Griô, encontra-
se uma proposta de aproximação efetiva entre os saberes da cultura popular de
tradição oral e os espaços formais (institucionalizados) de educação. Numa parceria
com a Secretaria Municipal de Educação da cidade de Lençóis, vem sendo realizado
um trabalho perene de (re)conhecimento e fortalecimento da identidade e da
ancestralidade local, o qual envolve alunos, professores, gestores, comunidade e os
mestres da tradição oral. Embora enfrentando muitas dificuldades e transpondo
inúmeras barreiras, os resultados dessa iniciativa têm se mostrado bastante
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positivos, proporcionando, inclusive, em parceria com o Ministério da Cultura, a
extensão do trabalho para um programa nacional, denominado Ação Griô Nacional.
A Ação Griô Nacional, como detalharemos mais adiante, refere-se a um
programa que, junto ao Ministério da Cultura, propõe criar e instituir uma política
nacional de transmissão dos saberes populares de tradição oral em diálogo direto
com a educação formal, resultando, ainda, na criação de um projeto de lei de
iniciativa popular, a Lei Griô.
Trata-se de uma ação inovadora, pois visa, por meio da sociedade civil
organizada, a aproximar os conteúdos e práticas pedagógicas da educação pública
formal dos saberes e práticas pedagógicas da cultura popular das comunidades de
pertencimento. Trata-se também de um desafio no âmbito das políticas públicas,
pois pretende, através de marcos legais na área da educação e da cultura,
reconhecer os saberes populares como legítimos nos processos formais de
construção do conhecimento.
Assim, inspirados pelos propósitos e pela compreensão dos desdobramentos
das ações da Ação Griô Nacional, passamos a refletir sobre o entendimento de
educação enquanto terreno de produção, socialização e legitimação de experiências
humanas, sobre concepções mais críticas a respeito dos propósitos da
escolarização, trabalhando na possibilidade da quebra de hierarquia de saberes, e
sobre o potencial educacional inerente ao universo da cultura popular, sustentando a
construção desta pesquisa.
Nossas inquietações decorrem, também, da necessidade de compreender a
dificuldade em se acolher e legitimar os conhecimentos populares nos processos de
ensino e aprendizagem em espaços escolares, tendo em vista que esses saberes já
encontram-se imersos no cotidiano desses espaços, e que esse diálogo tem se
mostrado cada vez mais relevante e pertinente, especialmente quando pensamos a
educação enquanto prática social.
Neste contexto, a questão que norteia esta pesquisa é: de que maneira uma
proposta de aproximação entre os saberes populares e os saberes
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institucionalizados pode interferir nos processos de construção do conhecimento e
nas relações sociais dentro dos espaços escolares?
Dessa forma, nosso objetivo neste trabalho é perceber/explicitar, através do
acompanhamento e compreensão das ações da Ação Griô Nacional, as
contribuições e implicações que essa proposta pode acarretar para a educação
como um todo.
Como possibilidades de construção desta pesquisa, vislumbramos três tomos
de investigação que, embora didaticamente distintos, se encontram e se entrelaçam,
dando corpo a um todo relacional, sendo eles: um no plano teórico, abordando as
questões da cultura e da educação, dialogando num processo simbiótico de
construção e ressignificações sociais; outro no plano metodológico, buscando na
fenomenologia crítica a inspiração filosófica para este trabalho e utilizando os
dispositivos da observação participante como instrumento de investigação; e por fim,
um terceiro no plano empírico, onde, assumindo a pesquisa enquanto produto de
construção social, o que pretendemos é potencializar diálogos e discussões sobre
as questões da cultura e da educação nos espaços/contextos investigados.
Para promover e provocar o debate destas questões, estruturamos a
dissertação da seguinte forma:
No primeiro capítulo, buscamos teorizar e articular o conceito de cultura,
abordando as múltiplas faces desse conceito, tensionando significações sociais e
promovendo articulações que o compreendam enquanto prática educativa onde, por
meio de trocas sociais e simbólicas, se produzam e compartilhem saberes e, através
de deslocamentos identitários e intercruzamentos culturais, se reconfigurem
posições sociais. Ainda realçamos as características e subjetividades que conferem
à cultura popular a capacidade de construir e consolidar saberes, além de destacar
a forma de atuar dessas manifestações, em que, a partir de uma lógica bastante
peculiar, atribui sentido e ressignifica elementos como o rito, a memória e a
oralidade. Para finalizar o capítulo refletimos sobre o lugar e o papel da escola
nestes processos de produção do saber, problematizando suas práticas
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homogeneizadoras e sua lógica predominantemente insular, relacionando-a com
outros processos/espaços não formais de ensino e aprendizagem, e fazendo alusão
às recentes discussões sobre currículo, apontado como determinador nos processos
formativos.
O capítulo seguinte descreve as propostas, concepções e práticas
idealizadas pelo Grãos de Luz e Griô, fonte inspiradora desta dissertação. Pretende-
se também, de forma mais detalhada, rastrear a dimensão e o potencial do projeto
Ação Griô Nacional, buscando compreender o funcionamento de sua rede de ações,
a qual perpassa por múltiplas e diversas instâncias, e que traz à cena uma
aproximação entre mestres da tradição oral, espaços formais e não formais de
educação.
Com a intenção de compreender a maneira como as propostas da Ação Griô
se efetivam (ou não) nos espaços formais de educação, bem como mapear suas
possíveis contribuições nesses espaços, o terceiro capítulo destina-se à pesquisa
realizada em campo, tendo como locus a Escola Municipal Malê Debalê. Esta
instituição, numa parceria com o Ponto de Cultura Grupo de Capoeira Ginga e
Malícia (integrante da Rede Ação Griô Nacional), e com a griô-aprendiz Edméia
Nascimento, vem realizando, desde 2011, um trabalho contínuo de diálogo e
aproximação entre as concepções e práticas do projeto griô e as propostas
pedagógicas desenvolvidas na unidade escolar.
Neste contexto, procuramos dialogar com o panorama metodológico no qual
se sustenta esta pesquisa. Assim, numa abordagem qualitativa – portanto numa
relação direta com o universo da subjetividade – buscamos inspiração na
fenomenologia crítica como movimento filosófico, e nos elementos da observação
participante, as principais ferramentas para que se estabeleça de maneira densa, a
interação entre pesquisador e comunidade pesquisada.
No quarto e último capítulo aventuro-me nas (in)conclusões desta
investigação, sempre passíveis de ressignificações.
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1 CAPÍTULO 1 – CULTURA E EDUCAÇÃO RECONFIGURANDO PAPÉIS SOCIAIS: A CULTURA POPULAR COMO FORÇA EDUCATIVA
“Se a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é portadora de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura, então a cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é uma máquina cognitiva cuja práxis é cognitiva”.
Edgar Morin
1.1 Dialogando com o conceito de cultura: significações e implicações para a vida social
Da fundamentação teórica à investigação empírica que propomos neste
trabalho, tomamos como alicerce as questões culturais. Questões estas que,
progressivamente, vêm se apresentando como central nos debates sobre as
transformações pelas quais as sociedades e o mundo têm passado, e que
apresentam, tanto no campo acadêmico quanto no campo de nossas práticas
sociais, grande diversidade de definições e de usos.
O sociólogo Paulo César Alves, afirma que, “(...) o termo ‘cultura’ tem uma
longa história, sofrendo profundas transformações em seu significado no decorrer do
tempo. Em certo sentido, é uma ‘palavra mosaico’ e, talvez por isso mesmo, rica,
sedutora e contraditória” (2010, p.15). Arriscamos dizer que se trata de uma “palavra
caleidoscópio”, uma vez que, diante de seu caráter movediço e de sua capacidade
de recriar, para cada movimento (tempo, contexto) configuram-se sentidos e fins
diversos.
Ao trazermos o conceito de cultura para este campo de pesquisa, não
pretendemos nos debruçar sobre o significado de cultura, mas sim sobre o que a
cultura significa para a vida social. Dessa forma, procuramos nos distanciar das
abordagens que limitam a compreensão do termo a costumes, práticas, ou produtos
materiais, e nos aproximamos das discussões que abordam a cultura enquanto
terreno e instrumento para se criar novas formas de relações sociais, políticas,
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éticas, e, consequentemente, de poder. Como nos apresenta Homi Bhabha, a
cultura como enunciação: “um processo mais dialógico que tenta rastrear
deslocamentos e realinhamentos que são resultado de antagonismo e articulações
culturais” (1998, p.248).
Nesse sentido, entendemos a cultura enquanto espaços vivos de
experiências sociais, integrante das ações humanas, que produz saberes
alicerçados pelas trocas sociais e simbólicas presentes nas diversas formas de
significar a vida, e por isso, constituinte de um campo social onde se estabelecem
lutas e negociações que possibilitam, através de deslocamentos e ressignificações
sociais e movimentações identitárias, mutação de poder, instigando sua força
educativa.
Telmo Caria (2008), ao tratar das imbricadas relações entre as práticas e
interações sociais e as formas identitárias relacionadas a essas interações, propõe
um quadro de configurações onde distingue várias epistemologias da cultura. O
autor nos apresenta:
a) A epistemologia da cultura-informação. Nesta concepção, que o autor
considera exterior à prática, o conceito de cultura não é pensado como uma prática
social, mas sim como patrimônio transmissível, adquirido e acumulado, ou entende-
a como “algo relativo a um campo especializado de ação, qualificando-a ou
conotando-a com a posse de recursos especializados nos campos da arte, da
ciência, etc.” (p.752). Esta epistemologia, ainda bastante difundida, toma a cultura
como um recurso propagado e legitimado pela sociedade.
Semelhante ao que Carlos Rodrigues Brandão nos traz como cultura de
fruição, ou seja, “aquela que socialmente e simbolicamente existe como arte,
antiguidade e artesanato” (1989, p.71), esta abordagem refere-se, exclusivamente, à
cultura enquanto herança transmitida ao longo dos tempos, através de gerações e
imbuída de sentido de valor.
Demonstra-se, então, uma noção bastante estabilizante, trazendo a ideia de
que a cultura está em uma esfera exclusiva da sociedade, ou em produtos materiais
23
específicos. Compreendemos que a cultura não ocupa um único espaço, ou uma
única dimensão social: ela coabita todos os planos da sociedade, intervindo nas
relações que os indivíduos estabelecem com eles mesmos, com os outros e com os
grupos.
Outra questão que permeia essa visão epistemológica da cultura-informação
diz respeito à atribuição do sentido de valor que é conferido à cultura. Quando
tratada enquanto “(...) posse de recursos especializados nos campos da arte,
ciência, etc.” parece instalar-se um processo de classificação, algumas vezes
velado, e onde o modelo confunde-se com a maneira ocidental e capitalista de
pensar e de viver, que atribui maior competência, importância e/ou relevância a
determinadas manifestações culturais em detrimentos de outras, no geral as não
eruditas e não letradas.
Contrapondo-se a essa visão, Bhabha afirma que é preciso “lidar com a
cultura como produção irregular e incompleta de sentido de valor, frequentemente
composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da
sobrevivência social” (1998, p.240)
b) Epistemologia da cultura praticista. Bastante influenciada pelo conceito da
teoria do habitus3 trazido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, esta
conceitualização desenvolve um modo de pensar sobre a cultura onde ela é
principalmente, senão exclusivamente, tida como “uma prática social determinada
por condições e posições sociais” (CARIA, 2008, p.753). Ou seja, entendida como
exterior às interações sociais, a cultura é vista como uma representação das
práticas inseridas na vivência cotidiana de uma localidade e, por isso, inconsciente.
Apresenta-se como uma representação social resultante de esquemas práticos.
3 O conceito de habitus é concebido como “um sistema de esquemas individuais, socialmente construídos de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano” (Setton, 2002, p.63).
24
Na contramão desta ideia, Muniz Sodré (1988), afirma que a cultura não pode
ser vista como metáfora de movimento inconsciente, uma vez que ela não
representa uma mera restauração dos modos de representações.
Essa perspectiva estanque da epistemologia praticista impossibilita o
entendimento de cultura como arena de tensões e negociações, como campo social
onde se provocam e se promovem mudanças nas relações sociais e de poder, uma
vez que elas somente são possíveis graças a uma movimentação constante das
condições e das identidades dos indivíduos, reconfigurando posições sociais. Assim,
entender a cultura como mera reprodução ou restauração de esquemas práticos
significa compartimentá-la, fragmentá-la, percebê-la de forma insular e
incomunicável, impossibilitando ou não admitindo seus entrelaçamentos.
É no panorama desses entrelaçamentos culturais, desta fluidez marcada
pelos contínuos deslocamentos dos sujeitos que percebemos emergir as tensões
entre o instituído e o instituinte, e se formar o acervo para que cada ator cultural
(re)signifique sua posição social, em todas as esferas da vida. Ou como afirma Hall
(2009b), são esses movimentos “que transformam o campo da cultura em uma
espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas,
mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas”
(p.239).
Na complexidade desses fenômenos, Bhabha (1998) traz a ideia de cultura
de fronteiras, praticada nos interstícios das fronteiras culturais, num processo
permanente de intercruzamento e negociações com outras culturas, e que possibilita
a constituição de sujeitos híbridos, ao mesmo tempo semelhantes e opostos. O
autor propõe então o “local da cultura” sendo este “entre-lugar” deslizante e múltiplo,
resultado do encontro de diferentes sistemas culturais e que possibilitam, através de
deslocamentos, novas configurações, desestabilizando as ordens hegemônicas.
Nessa mesma vertente, Canclini (2006) também observa a cena cultural
contemporânea num cenário híbrido, de onde emergem ambivalências e
negociações. O autor entende por hibridação “processos socioculturais nos quais
25
estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas” (p. XIX).
Dessa forma, na hibridação cultural, a intersecção entre as culturas e as
ressignificações praticadas nos lugares de cruzamento e de fusão desse processo
possibilitam o surgimento de novas práticas culturais, que permitem novas
configurações sociais, e promovem a infiltração de saberes previamente negados
nas práticas e discurso dominantes, desequilibrando as estabilidades hegemônicas.
É nesse sentido que travamos nosso diálogo com a cultura e a entendemos
enquanto movimento político e de educação. Questionando como são produzidas e
legitimadas as relações de poder, buscamos, nas novas possibilidades de
configurações sociais promovidas pelas simbioses culturais, refletir com os sujeitos
formas mais críticas de entendimento de quem eles são, dentro de uma formação
social mais ampla. Como reforça Giroux (2000, p.70).
A força educativa da cultura está atenta às representações e aos discursos éticos como condição necessária para a aprendizagem, a diligência e o funcionamento das práticas sociais e políticas em si. Como força pedagógica, a cultura está saturada com a política e oferece (em seu sentido mais amplo) o contexto e o conteúdo para negociação do conhecimento e das habilidades que facilitam uma leitura crítica do mundo a partir de uma postura de sujeitos e possibilidades no marco de relações desiguais do poder.
c) Epistemologia da cultura-constrangimento. Diferente das concepções
anteriores, nesta abordagem leva-se em consideração a relação existente entre
práticas e interações/significações sociais. Desse modo, admite-se a ideia do
“...constrangimento social da cultura sobre a prática social, que se exprimiria na
interdependência entre prática e identidade social e que teria como consequência a
interiorização individualizada de uma norma, sistema ou estrutura simbólica (...)”
(CARIA, 2008, p.755).
Assim, a epistemologia da cultura-constrangimento pressupõe a existência de
uma ordem simbólica hegemônica a partir da qual despontam práticas e estruturas
diversas, o que sugere um caráter bastante normativo, e a cultura passa a ser
26
compreendida como um conjunto de regras e valores que, uma vez interiorizadas
pelos indivíduos, definem sua identidade, posição e conduta social.
Esta noção ultrapassada de que as identidades e papéis sociais são pré-
determinados e estabelecidos pelo “lugar” que os sujeitos ocupam no mundo ainda
encontra-se bastante presente nas ideologias que orientam a racionalidade
moderna. Neste sentido, as possibilidades de deslocamentos sociais e de novas
configurações nas relações de poder, desencadeados principalmente pelos
intercruzamentos culturais, são ignorados, e mantém-se uma lógica de transmissão
(não problematizada) de conhecimentos e valores já legitimados, garantindo, assim,
a reprodução das estruturas sociais existentes. Papel, com frequência,
desempenhado pelos espaços escolares.
Distanciando-se dessa visão fatalista e determinante sobre o “destino” das
pessoas, Stuart Hall (2009a) defende que vem se configurando uma absoluta
desconstrução das perspectivas onde as identidades e papéis sociais são
entendidos como originários, fixos ou únicos. As novas e outras possibilidades que
brotam dos movimentos e intercruzamentos culturais interferem e abalam os
processos de instauração da hegemonia, relativizando um paradigma vertical,
binário (subalterno/hegemônico, erudito/popular, tradicional/moderno) e restrito de
mundo, que tanto baliza as lógicas das relações sociais, culturais, políticas e,
consequentemente, de poder na modernidade.
Segundo Canclini (2006, p.309), não é mais possível, com as hibridações
culturais, “vincular rigidamente as classes sociais e as identidades, aos estratos
culturais”. Dessa forma, não é mais possível reduzir o popular aos objetos e
símbolos produzidos em certas comunidades (etnias, localidades, ou classes
sociais), nem mesmo fixar o erudito ao reconhecimento dos grandes clássicos. Os
artesãos tornam-se artistas e os artistas concebem suas obras arraigadas nas
experiências cotidianas dos “setores populares”. O tradicional reinventa-se na
modernidade, e o moderno se ergue alicerçado pelas tradições. Enfim, cruzam-se
fronteiras, permite-se o trânsito entre territórios simbólicos, papéis sociais e
27
diferentes identidades, possibilitando aos sujeitos assumirem essas outras
identidades e posicionamentos sociais, renovando e remodelando hierarquias.
Neste mesmo viés, Pedro Demo afirma que “o ser humano não tem uma
identidade estática (...), mas móvel, dinâmica, em parte contraditória, em parte
lógica, na qual permanecer é necessariamente também mudar” (2011, p.XVIII).
Assim, renunciando ao papel de “condição sem alternativa” e assumindo a condição
de algo capaz de transitar por diferentes territórios, as identidades já não se fixam
mais, exclusivamente, em torno de um eu coerente. Elas se formam, se desfazem e
se refazem em zonas de confrontos e negociações. “Mesmo as identidades
aparentemente mais sólidas como a de mulher, homem, país africano, país latino-
americano ou europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia e
choques de temporalidade(...)”, em ininterruptos processos de transformação
(SANTOS,1993, p.31).
Compreendemos, portanto, que as construções e mutações identitárias não
são harmoniosas nem lineares, são momentos/espaços de tensão, conflitos e
embates que fazem emergir novos panoramas sociais. Assim, buscamos num
diálogo com Bauman, Hall e Silva, uma discussão mais ampliada sobre as questões
da identidade.
1.2 As mobilidades identitárias como possibilidade de reconfigurações sociais
Com frequência, o conceito de identidade vem envolto pela noção de
pertencimento ou não a um determinado grupo identitário, definido biológica,
histórica ou socialmente, e que prevê uma condição fixa e imutável ao termo.
Entretanto, o confronto com as atuais fragilidades das estruturas e instituições
sociais, com as incertezas e inseguranças do complexo e globalizado mundo
moderno, fizeram emergir uma nova conceitualização da identidade. Ou, como
afirma Bauman, “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das
seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis,
simplesmente não funcionam”. (2005, p.33).
28
Para Bauman, as rotinas anteriormente estáveis, a fixação dos papéis sociais
e a rigidez da divisão social do trabalho garantiam que o papel de cada pessoa
fosse “evidente demais para ser avaliado, que dirá negociado”, assim, sua forma de
estar no mundo delimitava sua identidade. Porém, diante da velocidade com que o
mundo passa a se mover, da volatilidade com que passam a se estruturar as
relações sociais e de trabalho nas sociedades modernas, a “identidade perde as
âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável...”
(2005, p.30).
É neste contexto que, para o autor, as questões da identidade vão sofrendo
um contínuo processo de transformação, que migra do perene para o efêmero,
caracterizado por uma “liquefação das estruturas e instituições sócias” (Ibid, p.57).
Nesta configuração fluida as identidades passam a ser móveis e mutáveis, resultado
de negociações, experimentações e escolhas infindáveis, o que para Bauman,
apesar de facilitar os rompimentos e as transições, acaba por provir uma
obrigatoriedade de movimento e velocidade constantes e, muitas vezes, exaustivos.
Hall (2009a) contribui com as discussões através da perspectiva do
deslocamento ou descentramento do sujeito, apontando para a possibilidade da
configuração de novas identidades a partir do encontro com outras culturas, num
intercruzamento que não represente nem a apropriação pura e simples nem a perda
absoluta das identidades, mas sim o resultado de uma simbiose entre culturas.
O conceito de identidade admitido pelo autor foge de uma visão essencialista
e aproxima-se de um conceito “estratégico e posicional”, isto é:
(...) de forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira semântica oficial, esta concepção de identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história (HALL, 2009a, p.108).
Para Hall (2009a), “na modernidade tardia” as identidades não são nunca
singulares, unificadas, mas sim fragmentadas, construídas a partir de práticas,
estratégias e discursos que podem ser contrapostos ou não, sujeitando-as a um
29
processo constante de mudanças e transformações, e possibilitando, dessa
maneira, a constituição de novas identidades.
Tomaz Tadeu da Silva (2009), em seu texto “A produção social da identidade
e da diferença”, traz uma abordagem onde as questões de identidade aparecem
numa relação de interdependência com o conceito de diferença. Dessa forma, a
definição (presunção) daquilo que somos (e tomamos como norma) serve de
referência para designar aquilo que não somos, numa relação direta com as
maneiras pelas quais a sociedade cria e se utiliza da classificação.
Neste sentido, o autor defende que, “a identidade, tal como a diferença, é
uma relação social. Isso significa que sua definição (...) está sujeita a vetores de
força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas.
(...) elas são disputas”(81). Assim, eleger e fixar uma certa identidade como norma
(ou normal) é uma maneira sutil de manifestação de poder, de hierarquização das
identidades e dos papéis sociais.
O autor defende também que, ao desestabilizar a fixação da identidade
através das noções de deslocamento, mobilidade, cruzamento de fronteira e
miscigenação, desestabiliza-se também as relações de poder, uma vez que, “a
identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma
das identidades originais, embora guarde traços delas” (2009, p.87).
Vale ressaltar que não se trata da renúncia, do abandono, ou do não
fortalecimento das identidades, mas sim, de erguer-se possibilidades de escolhas,
de mobilidades, em especial para aquelas “pessoas que têm negado o direito de
reivindicar (grifo do autor) uma identidade distinta da classificação atribuída e
imposta” (BAUMAN, 2005, p.44).
Vimos, nesses complexos processos de hibridação cultural e mobilidades
identitárias, estabelecer-se um estratégico e poderoso campo de possibilidades,
onde a cultura atua num trabalho de ruptura dos modelos sociais dominantes,
buscando, através da diluição das verdades absolutas e de paradigmas
30
estabilizadores, sugerir novas formas de relações sociais, sendo protagonizados por
outros e novos atores.
Tal abordagem delineia o terreno que alicerça este trabalho de pesquisa, na
medida em que esses processos de embates, negociações e redefinições de
disposições sociais e de poder configuram-se processos educativos, que ocorrem
dentro e fora das escolas. Dessa forma, investigar a cultura popular para dentro dos
muros da escola, é buscar compreender de que maneira, por meio desses
deslocamentos culturais e identitários, construções e convicções sociais “estranhas”
à ordem hegemônica produzem, compartilham e ressignificam saberes em espaços
de confronto entre posições de poderes desiguais, onde esses saberes são quase
sempre ignorados e quase nunca legitimados, no nosso caso, as escolas.
Propomos, assim, edificar novas possibilidades éticas e estéticas para o
campo das práticas escolares, apresentando outros caminhos para a construção do
saber que não os construídos em modelos únicos e verdades absolutas, mas
mergulhados nas mais diversas áreas de produção de conhecimento.
Trata-se de romper o isolamento institucional da escola e criar novas
perspectivas no campo pedagógico, trazendo à cena outras histórias, vivências e
novos protagonistas a partir do diálogo com diferentes espaços/momentos de
produção de saberes, e da abertura para a aproximação e legitimação de outros
conhecimentos, que não os institucionalizados. Trata-se de permitir à escola
relacionar-se com metodologias que “troquem o palco pelo centro da roda, substitua
as palestras por encontros temáticos, no lugar da plenária entre os círculos de
cultura, e no lugar do enfoque puramente teórico, as vivências”. Um movimento que
contribua para uma aprendizagem mais crítica, criativa, afetiva e efetiva. (Nação
Griô, 2008, p.32). Enfim, trata-se de pensar a educação como ato de conhecimento
e transformação.
Assim, trazemos para a discussão o universo da cultura popular,
compreendendo suas manifestações enquanto terreno privilegiado de construção e
socialização do conhecimento, configurando processos educacionais que
31
transcendem os muros da instituição e que, atuando numa lógica temporal, espacial
e de regras diferenciadas, invadem o cotidiano. Compreendemos também essas
manifestações da cultura popular enquanto movimentos de transgressão,
contestação e resistência de uma ordem dominante homogeneizadora e excludente,
efetivados não pelo confronto, mas de maneira opaca e sublime, nas entrelinhas dos
processos sociais.
1.3 Elementos e nuances da cultura popular: construindo um mundo de aprendências
Embora já bastante confrontado o binarismo cultura erudita/cultura popular,
muitos estudos ainda trazem, de maneira hierárquica, essa dualidade. Em sua
crítica, Brandão argumenta que é justamente:
(...) a tradição erudita, acadêmica e intelectualmente elitista, própria das classes e dos sujeitos não-subalternos, não-marginais, não-etnicamente desvalorizados, que detêm o poder legítimo de definir e aplicar critérios de qualificação social e cultural (1995, p.108).
Nessa mesma disposição hierárquica que, com frequência, se confere à
cultura erudita uma maior elaboração, complexidade e valor, enquanto a cultura
popular corresponde basicamente às manifestações e fazeres dos homens simples,
iletrados, rústicos, suburbanos, e que, justamente pela sua suposta simplicidade,
insignificância ou inexpressividade não agrega valor, é no máximo, exótico. Ou,
como afirma Certeau, “estamos ainda muito longe da divisão condescendente entre
uma cultura letrada a ser difundida e uma cultura popular a ser comentada de um
pouco mais de cima” (1995, p.10).
É no sentido mesmo desta ambivalência que evocamos aqui as
particularidades e a relevância das manifestações da cultura popular para o universo
das relações humanas, conferindo destaque à sua capacidade de ressignificação no
entrelaçar do novo ao tradicional, à sua perspicácia criativa e renovadora, e à
sagacidade de interpretar os anseios coletivos, em especial das classes sociais a
que originalmente se referem, e de que são expressão e obra.
32
Darcy Ribeiro, ao tratar da gestação do Brasil em seu livro “O povo brasileiro:
a formação e o sentido do Brasil”, já faz menção às particularidades em que se
inscrevem os saberes e fazeres da cultura popular. Diz o autor:
[Na nossa história] faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não saber popular alcança, contrastantemente, altitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nova versão do mundo e de nós mesmo? (2006, p.15)
Num breve recorte temporal, Edilene Dias Matos (2010) nos traz que foi na
virada do século XVIII para o XIX que o interesse pelos saberes e fazeres populares
ganha destaque. Para a autora, durante o século XVIII,
(...) a matriz analítico-reflexiva (...) era a da racionalidade e universalidade, contrapondo-se de saída, à cultura popular, cujas práticas eram consideradas como descompromissadas com qualquer tipo de rigor e fundamento racional (p.79).
Segundo Pedro Abib (2005), no Brasil as produções teóricas acerca das
manifestações da cultura popular alcançaram seu topo durante a década de 60, num
movimento que contou com a participação de múltiplos setores da sociedade.
Dentre as características que marcaram o período, a visão romântica da cultura
popular se destaca. Esta visão associa o popular a um estado puro, natural,
verdadeiro e ingênuo, ainda não impregnado pelos ditames da cultura dominante.
A esse respeito, Marilena Chauí coloca que:
A perspectiva Romântica supõe a autonomia da Cultura Popular, a ideia de que, para além da cultura ilustrada dominante, existiria uma outra cultura, ‘autêntica’, sem contaminação e sem contato com a cultura oficial e suscetível de ser resgatada por um Estado novo e por uma nação nova (1996, p.23).
Nesta perspectiva, porém, assumindo o compromisso de edificar uma
consciência nacional autêntica e lúcida, os intelectuais da época se apresentam
como legítimos representantes do povo, responsáveis então por fazer chegar a esse
povo, vistos por eles como inculto, alienado e ingênuo, uma consciência engajada.
33
Almejavam, dessa forma, alcançar a desalienação nacional e a construção de uma
nova nação, de um Estado autenticamente popular.
A postura, então, era enunciar ao povo a maneira de pensar, de ser e agir, a
partir da arte e da cultura, “mas uma arte e uma cultura pensada e elaborada
apenas por essa vanguarda intelectual, que teria a tarefa de organizar e
‘conscientizar’ o povo com o objetivo de (...) criar um ‘verdadeiro Estado nacional’
porque ‘Estado popular” (ABIB, 2005, p.51).
Seguindo na crítica a essa postura, Chauí (1996) observa que, dessa forma,
os intelectuais vanguardistas dessa década se colocam no direito de definir
condições e identidades, conferindo posições a si mesmo e ao “povo”. Promovem,
com isso, uma segregação da cultura em três instâncias distintas: a da classe que
aliena, ou seja, a da classe hegemônica; a do povo, portanto inculta, ingênua, e
atrasada; e, a da classe popular e revolucionária, representada pelos artistas e
intelectuais da época que “optaram por ser povo”.
Já nas décadas de 70 e 80, o Brasil passa por um período de luta política
pela redemocratização do país. Nesse panorama as transformações que
atravessam a sociedade brasileira promovem o surgimento de um grande número
de movimentos sociais ligados diretamente à luta por direitos sociais e políticos, tais
como o movimento dos trabalhadores sem terra (MST) cujo objetivo é a implantação
da reforma agrária no país, os movimentos sindicais que lutavam pelas causas
operárias, os movimentos estudantis, entre outros. Segundo Abib (2005) esses
movimentos vão buscar nos saberes e fazeres do universo da cultura popular
substratos para suas práticas.
(...) é o aprendizado cultural, desenvolvido em comunidade, sendo utilizado de forma mais sistematizada (...) sem contudo, se distanciar do ethos que determina essa coesão social em torno das reivindicações que originam tais movimentos” (p 54).
Este momento vem acompanhado por um grande crescimento do capitalismo,
modificando, de forma intensa, as relações políticas, sociais e econômicas. Nos
termos culturais esse contexto viabiliza o surgimento de uma indústria cultural que,
34
como coloca Abib (2005), em nome da cultura nacional promoveu uma massificação
e homogeneização das produções culturais, estabelecendo normas e padrões de
consumo, o que, paulatinamente, “neutralizava e desmobilizava o potencial crítico da
cultura popular” (p.57).
Neste mesmo sentido, Brandão (1995, p.152) reforça que,
(...) em uma sociedade desigual onde em boa medida o trabalho do poder é dirigido à reprodução de estruturas sociais de expropriação, submissão e controle de grupos sociais em benefícios de outros, a ação política do poder dirige-se também ao controle da cultura (...), a produção e difusão de valores, ideias e mensagens do interesse das classes dominantes.
Dessa maneira, viabilizadas pelas próprias políticas de Estado que, segundo
Ventura, (2010, p.126), permitiam “às instituições da indústria de massa se
apropriarem do universo simbólico das populações periféricas, e de outros
segmentos socioculturais populares...”, integrar, homogeneizar e uniformizar as
manifestações da cultura popular no país foram as estratégias utilizadas pelo poder
hegemônico para controlar, enfraquecer e manipular a veracidade e criticidade
inerentes a essas manifestações.
Neste contexto, como afirma Abib (2005), se por um lado os movimentos
sociais se valem das experiências e vivências do universo da cultura popular para
edificar suas práticas e reivindicações, por outro, a indústria cultural, se apropriando
dessa cultura popular, elabora meios de transformá-la em simples entretenimento,
em produtos de fácil consumo.
Ao nosso ver, atualmente, torna-se necessária uma análise mais atenta ao se
tratar dos modos de produção e consumo cultural que permeiam as complexas
sociedades contemporâneas, problematizando a visão simplista de imposições de
produtos e hábitos massificadores aos passivos consumidores, afinal, nem tudo que
é disposto ou imposto é absolutamente absorvido. Como afirma Certeau:
(...) no consumo de bens culturais e materiais, existe sempre apropriações e ressignificações imprevisíveis, incontroláveis, modificadoras de pretensões previstas na origem, no planejamento, na idealização das coisas (2011, p.92).
35
Trata-se, então, de compreender as inúmeras maneiras pelas quais os
consumidores (homens comuns), através de procedimentos cotidianos e quase
invisíveis, se (re)apropriam e fazem uso dos produtos impostos, num movimento
sutil de desvio dos mecanismos dominantes.
Seguindo nessas discussões, Chauí (1996) nega a ideia simplista e
dicotômica diante do popular, que o classifica e o reduz a autônomo ou manipulado,
engajado ou alienado, atrasado ou autêntico, enfim, em ser isto ou aquilo. A autora
traz a ideia da ambiguidade como categoria constitutiva do processo cultural,
argumentando que, “talvez seja interessante considerá-lo ambíguo, tecido de
ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de
conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar” (p.124).
Abib (2005) defende que, para uma discussão mais atual sobre a cultura
popular é preciso, de início, deixar de lado a visão essencialista que antes a
caracterizava e encarar as novas dinâmicas de construções e relações sociais da
modernidade. Conforme já assinalamos, nas sociedades modernas, os
deslocamentos e intercruzamentos culturais fazem brotar formas híbridas de
culturas e identidades. Bhabha acrescenta que, “nas margens deslizantes do
deslocamento cultural se torna confuso qualquer sentido profundo ou ‘autêntico’ de
cultura ‘nacional’ ou de intelectual ‘orgânico” (1998, p.46).
É preciso, então, ultrapassar a visão ilusória de uma cultura popular pura e
uniforme, e considerar as relações fluidas que as manifestações tradicionais vêm
travando com a modernidade, transitando por diferentes culturas e rearticulando
conhecimentos, numa interação crescente com a comunicação, a tecnologia e a
economia, sobrevivendo num novo sistema social, num processo que, segundo
Demo, impõe grandes desafios, pois “...tenta combinar duas forças por vezes
violentas: de um lado, a defesa sempre necessária das identidades culturais, e, de
outro, a necessidade de mudar para permanecer a mesma” (2011, p.XIX). Trata-se,
então, de compreender como essas manifestações estão interagindo e se
transformando com as forças da modernidade.
36
Neste panorama, Edson Farias (1997) coloca que:
(...) os elementos de circulação e fluxos informativos-comunicacionais redefinem na base a categoria mesma de cultura popular, fazendo-a interagir num contexto espesso dos relacionamentos sociais globalizados e transculturais. Isso não significa a eliminação dos arranjos populares-nacionais, mesmo porque os Estados-Nações constituem ainda agentes decisivos na cena mundial. Conquanto percebemos que as transformações no conceito, dão margem a introduzir no debate outras armadilhas identitárias não redutíveis à matriz romântica que circunscreve a cultura popular no lugar pátrio originário, e tampouco aos níveis distintamente estanques de organização de cultura, mas desloca-se cada vez mais para as apropriações e aos usos e às modalidades de hibridismo que tomam contornos (apud ABIB, 2005, p.59).
É neste cenário de intercruzamentos culturais e reconfigurações identitárias
que as manifestações da cultura popular, algumas aparentemente desaparecidas,
ressurgem e se ressignificam, num processo de revitalização de suas práticas que,
embora cada vez mais conectado às demandas da modernidade, recuperam e
preservam suas tradições.
Dessa forma, para Abib, o conceito de cultura popular vem adquirindo “novos
significados a partir do processo de revitalização de tradições culturais de grupos
que portam marcas sociais e culturais diversas, que os diferenciam no contexto
social” (2005, p.81). Compreendendo essas tradições não como algo estanque, que
ficou para trás, mas sim como algo que se vincula também ao presente e ao futuro,
num contínuo perseverante, porém remodelado e reinventado a cada geração.
Como afirma Hall (2009b), “a tradição é um elemento vital da cultura, mas ela
tem pouco a ver com a mera persistência de velhas formas. Está muito mais
relacionada às formas de associação e articulação dos elementos”(p.243).
Abib nos traz também, referências a elementos de uma lógica diferenciada
que regem as manifestações da cultura popular, onde a memória, a oralidade e a
ritualidade configuram-se como elementos fundamentais, e permeiam uma das
características mais marcantes deste universo: “... as formas de transmissão de seu
37
passado – que carrega a mitologia ancestral e os saberes tradicionais do
grupo...”(p.89).
Nesta perspectiva, a memória não se traduz apenas como uma recordação,
que deva ser evocada solitária e isoladamente, mas sim como uma reconstrução
afetiva do passado, tocada pela circunstância, realizada coletivamente através da
comunicação e do compartilhamento com toda experiência social do grupo e que,
assim, vai ganhando concretude. Ou, como sugere Bosi (1994),
(...) um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugida. O sentimento também precisa acompanhá-la para que não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (p.81).
Para Bosi, ainda, “a memória das sociedades antigas apoiava-se na
estabilidade e na confiança em que os seres da nossa convivência não se
perderiam, não se afastariam”. (p.447). Apoiava-se numa práxis coletiva onde,
vizinhanças de longas datas, famílias extensas, festejos locais, dentre outros,
serviam como alicerce sob o qual a memória se constituiria.
Neste sentido, a memória deve ser compreendida como um fenômeno
construído coletivamente, onde a perspectiva individual não é abandonada mas está
enraizada em outros contextos. Para Maurice Halbwachs (2004), é a partir da
convivência nos grupos que as lembranças podem ser reconstruídas ou até mesmo
simuladas, portanto, as memórias são sempre constituídas no interior de um grupo
social, são eles que determinam e elegem o que é memorável. Assim, para o autor,
a memória individual também não existe solitária, ela incorpora, frequentemente,
referências externas ao próprio sujeito, ela é “um ponto de vista sobre a memória
coletiva” (p.55).
Para o universo da cultura popular podemos compreender a memória como
um autêntico canal de expressão das tradições culturais, de transmissão da
memória coletiva, e de registros de experiências de vida dos indivíduos com seus
grupos sociais, que se manifesta, essencialmente, por meio da oralidade, da arte de
contar e ouvir histórias. Para Amadou Hampaté Bâ, “nas sociedade, orais não
38
apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o
homem e a palavra é mais forte” (2010, p.168).
Ainda para este autor,
(...) lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido com ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra (168).
Compreendemos, então, a oralidade como elemento central das
manifestações e expressões do universo da cultura popular. Seja no âmbito das
músicas, dos cantos ou dos contos, a oralidade, arraigada a sábias intuições e
encharcada de conhecimento empírico, constitui a principal ferramenta de
transmissão do conhecimento sobre a natureza, a religião, os valores, enfim, sobre
os saberes ancestrais de um povo. Segundo Jan Vansina (2010, p.139-140)
(...) uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerados no que poderíamos chamar elocuções-chaves, isto é, tradição oral.
Ainda com relação ao saber oral, completamos com as palavras de Raul
Iturra (1990, apud ABIB, 2005):
(...) o saber oral, ao ficar consignado a gestos, palavras e interpretações de instrumentos e natureza, é um saber não só personalizado, como emotivo: a autoridade da palavra provém do convencimento de quem faz. Sabe, porque consegue fazer (p.97).
Entretanto, em especial nas sociedades modernas ocidentais, onde a escrita
ainda constitui o principal veículo de herança e transmissão cultural, preserva-se a
ideia da superioridade da escrita sobre a oralidade, da superioridade dos “povos da
escrita” sobre os “povos ágrafos”. Como coloca Lisa Castilho (2008, p. 58):
(...) a ausência da escrita foi pensada como uma das características identificantes que separavam os chamados ‘primitivos’, que a antropologia adotou como seu objeto, dos “civilizados”, objeto natural das outras ciências humanas.
Ferdinand Saussure, importante linguista, aponta quão equivocada é essa
hierarquização que o ocidente estabelece em torno da escrita ao afirmar que:
39
língua falada e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro, (...) Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal (1970, p.34).
Dessa forma, a palavra falada, elemento importantíssimo nos processos de
transmissão dos saberes e das tradições através das gerações, em especial para o
universo da cultura popular, representa o principal veículo através do qual os mais
velhos repartem com os mais novos conhecimentos acumulados sobre inúmeros
fatores – religiosos, míticos, naturais, sociais – que redefinem e ressignificam
práticas. Portanto, “a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência
de habilidade” (VANSINA, 2010, p.140).
Segundo Abib, um outro elemento imerso nesta lógica diferenciada que rege
as manifestações da cultura popular, em especial no que tange à transmissão do
passado, é a ritualidade. O autor coloca que:
A função do ritual, presente na maioria das manifestações tradicionais da cultura popular, é de suma importância, pois motiva os sujeitos a se debruçarem sobre o passado em busca dos marcos temporais ou espaciais, que se constituem nas referências reais da lembrança. É o ritual que permite essa transposição do aqui e do agora para tempos imemoriais, para locais sagrados, onde tudo se originou (2005, p.99).
Nesta perspectiva, Mircea Elíade (1992), afirma que seja qual for o tipo de
ritual, ele se dá com referências às crenças e aos seres míticos, “ele se desenvolve
não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do
espaço profano), mas também num tempo sagrado”. Para o autor, “a hora de
qualquer ritual coincide com o momento mítico do princípio. O momento concreto é
projetado para um tempo mítico” (p.28-29).
Assim, o ritual projeta para épocas remotas, transpõe o tempo real para um
tempo mítico do início, repetindo e reatualizando gestos sagrados e divinos,
possibilitando que “enquanto pratica o ritual o autor abandone o mundo profano dos
mortais e introduza-se no mundo divino dos imortais” (ELÍADE, 1992, p.37).
Neste contexto podemos evidenciar a importância das relações interpessoais
para este universo que, através das atividades coletivas, das construções e trocas
40
simbolicamente afetiva entre as pessoas, enfim, através do cotidiano da convivência
humana constroem e consolidam saberes.
Esta aproximação com os processos históricos e sociais pelos quais as
manifestações da cultura popular transitaram ao longo dos tempos, e por onde o seu
conceito foi sendo formado e transformado, nos revela um mundo de aprendizado
social, de onde brotam mecanismos intrínsecos de aprendizagens que produzem e
compartilham saberes, utilizados para as questões da vida.
A capoeira na sua ritualidade, musicalidade e no “aprender fazendo” de seus
movimentos; as rodas de samba compartilhando códigos, experiências, prazeres e
afeições; os reisados, os congados, evocando em suas celebrações a tradição, a
memória e a ancestralidade; entre tantas outras aprendências e manifestações da
cultura popular, configuram-se processos educacionais ímpares. Processos estes
que atuam numa lógica diferenciada, onde o ensinar e o aprender obedecem a um
outro tempo e ritmo da informação, em que passado e futuro se encontram num
presente pleno de aprendizagem; onde o arranjo da roda conflui para a valorização
do encontro, promovendo a convivência e o diálogo entre as idades e os diferentes
lugares sociais; e onde os mestres, sábios na (re)criação de rituais de vínculo e
aprendizagem, ensinam, impregnando o conhecimento de sentido.
Compreendemos, assim, o universo da cultura popular enquanto locus
primordial na produção e socialização de saberes, alicerçado pelas vivências
individuais e coletivas, e conduzido por práticas lúdicas, prazerosas, de contato com
o outro, bem como terreno potencial de negociações e ressignificações nas relações
sociais e de poder.
É neste sentido que apostamos numa aproximação das manifestações da
cultura popular com a escola, local, historicamente, de reprodução de
desigualdades, buscando na sua força política e educativa diluir “ideologias latentes
que operam para construir subjetividades compatíveis com a lógica da sociedade
dominante” (GIROUX e McLAREN, 1995, p.140).
41
1.4 E a escola com isso?
Entendemos que a educação não está circunscrita por métodos, instituições
ou estabelecimentos específicos, ela está por toda a parte. Nas relações
interpessoais, nas atividades coletivas, enfim, no convívio humano, num processo
que faz circular saberes por espaços e tempos diversos, de formas variadas e
muitas vezes imprevistas. Neste sentido, de acordo com Jaume Trilla (2008), a
educação:
(...) é um processo holístico e sinérgico; um processo cuja resultante não é a simples acumulação ou soma das diferentes experiências educacionais vividas pelo sujeito, e sim uma combinação muito mais complexa, em que todas essas experiências interagem entre si (p.45).
Assim, quando decidimos trazer a escola para nosso campo de investigação
foi por entendermos que os espaços escolares são também espaços sociais vivos,
onde os intercruzamentos culturais e os deslocamentos identitários acontecem
diariamente entre seus atores, nos pátios, no recreio, no portão de entrada e nas
salas de aula, produzindo e compartilhando conhecimentos e edificando um campo
de embate em torno das relações sociais e de poder.
Problemas como evasão, desinteresse, baixos índices de aprendizagem,
dentre outros, aparecem com frequência nos sistemas escolares brasileiros.
Importante espaço socializador, de construção de identidades e formação de
valores, a instituição escolar formada na sociedade capitalista vem reproduzindo, há
tempos, ideologias e padrões de uma elite dominante baseada num modelo estético
eurocêntrico, excluindo, com frequência, outras visões de mundo, referências
culturais e históricas.
Louis Althusser (1985), entendendo que a educação, em suas diferentes
instâncias, é determinada pela base econômica da sociedade, identifica a escola
capitalista como um dos principais agentes de reprodução das relações de
dominação entre as classes sociais. Para o autor, além das práticas da instituição
escolar se encarregarem de fornecer aos diferentes grupos e classes sociais que a
compõem, apenas os conhecimentos, capacidades e verdades produzidas e
42
estabelecidas pelas classes dominantes, contribuindo para legitimar a cultura e os
saberes contidos na ideologia dessas elites, os próprios professores, atores dessas
práticas, muitas vezes nem sequer suspeitam do papel que o sistema os obriga a
desempenhar. Eles se encontram tão encarcerados pelos saberes e práticas
hegemônicos, que, em geral, se tornam incapazes de questionar ou de se posicionar
contra esse sistema, contribuindo para manter e alimentar o caráter reprodutor da
escola. “Em outras palavras, a escola (...) ensina o ‘Know-how’ mas sob formas que
asseguram a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua prática" (p.58).
Nesta mesma perspectiva, traçada por um viés mais cultural, Pierre Bourdieu
(2008), considera que a eleição, elaboração e execução dos conteúdos, programas
e métodos de trabalho da escola, peculiar às classes dominantes, revelam uma
“violência simbólica” sobre os alunos das classes populares. Para Bourdieu, a
“violência simbólica” caracteriza-se pelo desprezo aos saberes e fazeres populares
seguido de uma inculcação da expressão cultural própria das classes dominantes,
fazendo com que esses sujeitos subjugados tornem-se mais inseguros e suscetíveis
á dominação que sofrem na sociedade, assegurando a reprodução social vigente.
Assim, para o autor, as escolas ignoram e desprezam as diferenças sócio-culturais
cotidianamente presente em seus espaços, privilegiando e legitimando em sua
teoria e prática apenas os valores e saberes hegemônicos, fazendo com que, para a
maioria dos alunos das classes populares, a escola represente um rompimento no
que se refere aos seus saberes e práticas, os quais são constantemente ignorados e
até mesmo desconstruídos nesse ambiente. Em suma, “o sistema escolar pode, por
sua lógica própria, servir à perpetuação dos privilégios culturais (...)” (p.59).
Dessa maneira, a elaboração dos saberes escolares, bem como a forma
como eles vêm sendo, em geral, colocados em prática, têm se mostrado
demasiadamente afastados das realidades e particularidades da maioria dos
educandos, ou seja, a educação formal vem afastando-se, não é de hoje, do que
Paulo Freire chamou de teoria dialógica da educação:
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão de mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se
43
manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico desta situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto (1987, p.87).
Na contramão desse modelo de educação escolar, em sua maioria
hierárquica, altamente formalizada e desconectada do mundo que circunda os
indivíduos, vimos ganhar terreno os processos não formais de educação.
Segundo Gohn (2008), a educação não formal é aquela onde a
“aprendizagem se dá por meio da prática social. É a experiência das pessoas em
trabalhos coletivos que gera aprendizado” (p.103). Realiza-se, essencialmente, em
“espaços educativos localizados em territórios que acompanham a trajetória de vida
dos grupos e indivíduos, fora das escolas, em locais informais, locais onde há
processos interativos intencionais” (2006, p.29).
Assim, diferente do que ocorre, majoritariamente, nos ambientes escolares,
as práticas não formais de educação estruturam-se de forma menos hierarquizadas,
pouco formalizadas e menos burocráticas na maneira de tratar o tempo (calendários,
prazos) e o conhecimento (disciplinas, avaliações), além de apresentarem modelos
de ação muito mais dialógicos e contextualizados, favorecendo a construção de
aprendizagens e a geração de saberes.
Ainda contrastando esses dois modelos educacionais, Trilla (2008), aponta
alguns critérios fundamentais por onde passaria essa fronteira que separa os dois
tipos de educação, a formal e a não formal; são eles:
(i) o critério metodológico: onde, como antes assinalado, a educação não
formal rompe com algumas determinações que caracterizam a escola,
como definições espaciais, temporais, disciplinares, entre outras. Ou
como afirma o autor, “quando se fala em metodologias não-formais, o
que se quer dar a entender é que se trata de procedimentos que, com
maior ou menor radicalismo, se distanciam das formas canônicas ou
convencionais da escola” (p.40); e
44
(ii) o critério estrutural: onde a educação formal e não formal não se
distinguem especificamente por seu “caráter escolar ou não escolar,
mas por sua inclusão ou exclusão do sistema regrado”, pelo seu
distanciamento da “estrutura educativa graduada e hierarquizada
orientada à outorga de títulos acadêmicos” (p.40).
Embora pontuadas essas distinções, Gohn (2008), afirma que, de alguma
forma, ambas as modalidades de educação preocupam-se em transmitir saberes,
em “repassar o acervo de conhecimentos historicamente acumulados pela
humanidade”, entretanto, nas propostas não formais de educação isso geralmente
ocorre “em espaços alternativos e com metodologias e sequências cronológicas
diferenciadas, com conteúdos curriculares flexíveis, adaptados segundo a realidade
da clientela a ser atendida” (p.102).
Nos questionamos, então: que paradigmas são esses, tão sedimentados nos
modelos escolares, que dificultam (ou mesmo impedem) uma flexibilização e/ou
reorientação de seus processos? Que obstáculos tão intransponíveis são esses que
insistem em segregar a “vida escolar” e a “vida cotidiana”? Enfim, “por que a escola
deve ser aceita em suas estruturas, hábitos e formas organizativas, portanto, em
seus aspectos de constrangimento?” (Ghanem, 2008, p.73).
Para Elie Ghanem (2008), “A educação escolar (...) sedimentou-se na
realização renitente do modelo de educação como ensino”. Nesta lógica, o propósito
da atividade educacional é compreendido como um conjunto de conhecimentos que,
obrigatoriamente, devam ser transmitidos, supondo-os como “respostas adequadas
às necessidades de educandos(as)...” (p.163).
Contribuindo com a discussão, Trilla (2008), coloca que, “o que ocorre é que
a educação não formal, por situar-se fora do ensino regrado, desfruta de uma série
de características que facilitam certas tendências metodológicas” (p.42), em outras
palavras, o caráter não obrigatório, o fato de suas práticas não estarem
encarceradas por “conteúdos” impostos e fixados e a pouca burocracia legal,
possibilitam que os processos não formais de educação se estabeleçam de maneira
45
muito mais aberta e flexível, participando e atendendo de forma mais direta as
demandas e anseios dos educandos.
Cabe ressaltar nosso entendimento de que tão ingênuo quanto crer que a
instituição escolar (ou qualquer outra instituição educacional) possa, ou deva, por si
só, dar conta de tudo (e de qualquer coisa), é supor que a educação não formal é
um milagre que vem para solucionar todos os problemas da educação brasileira.
Nesta perspectiva Trilla afirma que:
(...) enfim, a educação não-formal não é nenhuma panaceia. É tão maniqueísta projetar toda a culpa educacional na escola quanto supor que a educação não-formal seja uma poção mágica imaculada. Apresentá-la globalmente como remédio para as desigualdades educacionais e sociais, e para os vícios em que a escolarização formal tem caído, é tão simplista e tolo quanto recusar sua colaboração para facilitar o acesso mais amplo e justo a uma educação da maior qualidade possível (p.54).
Assim, conforme já sinalizamos, nossa intenção neste trabalho não é traçar
os caminhos divergentes tomados pela educação formal e não formal, ao contrário,
o que vislumbramos aqui é propor, (re)desenhar, caminhos mais confluentes,
alçando alternativas capazes de aproximar propostas e ações desses dois
contextos.
Propomos, reforçando nosso entendimento de que a educação é um
fenômeno social complexo, multiforme, ativo e heterogêneo, o rompimento do
isolamento institucional e a abertura da escola para o acolhimento de outros
mecanismos e momentos educacionais. Propomos uma contribuição mútua e
harmoniosa entre a educação formal e não formal. Uma interação dinâmica entre os
vários fatores educacionais que atuam sobre o indivíduo e o coletivo. Enfim,
propomos diminuir o fosso que separa o ensino escolar da vida cotidiana e da
experiência humana.
Intensificando a pertinência dessa relação entre a educação formal e a
educação não formal, Trilla (2008), aponta para determinadas interações de funções
e efeitos que inevitavelmente se estabelecem entre essas duas instâncias
educacionais, que permeiam esses universos mesmo sem serem explicitamente
46
estabelecidas, evidenciando a porosidade de suas fronteiras. Para o autor a
educação formal e a não formal se intrometem mutuamente, elas estabelecem
relações de complementariedade, uma vez que as bases para a compreensão e
apreensão da “instrução formal” consolidam-se nas experiências vividas durantes as
atividades não formais (e informais).
É uma espécie de interdependência que pode ser expressa diacronicamente (cada experiência educacional é vivida em função das experiências educacionais anteriores e prepara e condiciona as subsequentes), e também sincronicamente (o que acontece com a criança em determinado ambiente educacional tem relação com o que ela vive nos outros ambientes educacionais dos quais participa). De fato, se não existisse essa interdependência dos efeitos educacionais produzidos nos diversos ambientes, a própria eficácia formativa de cada um deles seria posta em questão (TRILLA, 2008, p.45).
Compreendemos então que evitar a duplicidade e apostar numa relação
permeável entre estas duas instâncias, com as instituições formais de ensino
otimizando o uso dos recursos não formais em suas práticas (muitas vezes já à sua
disposição), reconhecendo e valorizando os saberes adquiridos pelos educandos
em contextos não formais (e que são carregados para dentro da escola), bem como,
a educação não formal disponibilizando seu apoio para outras funções educacionais,
sociais e culturais, venha contribuir para a configuração de um sistema educacional
mais aberto, relacional e diversificado em quantidade e qualidade de ofertas
educacionais, abarcando novas demandas sociais, que tornaram-se também
escolarizadas.
Dessa forma, delinear esta educação mais abrangente, qualificada,
significativa e conectada com os desafios que a complexidade da vida social
contemporânea nos tem apresentado, requer, também, que as escolas percebam
que não são simplesmente locais de instrução, mas também locais onde se
experimentam diferentes referências culturais e formas de estar no mundo, e que,
por isso, a vida escolar do estudante está entrelaçada às suas experiências de vida,
pessoais e coletivas, as quais fornecem instrumentos que atuam na mediação de
seus encontros com o convívio institucional e com o saber legitimado.
47
O aluno possui, portanto, suas referências de costumes, modos de vida,
tradições, que ele carrega todos os dias para a escola, e ela insiste em silenciar.
Para Sampaio “sem o reconhecimento de sua identidade, do seu saber, de sua vida
cotidiana, o aluno é um estrangeiro que não fala a língua dominante” (1997, apud
TOURINHO, 2003, p.207)
Assim, revela-se necessário que as práticas escolares sejam articuladas,
cada vez mais, por processos dialógicos amplamente conectados às realidades e
anseios vividos pelos alunos. Ou, como reforça Edgar Morin, quando nos fala sobre
os princípios do conhecimento pertinente, “é preciso situar as informações e os
dados em seu contexto para que adquiram sentido. Para ter sentido, a palavra
necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto no qual
se anuncia” (2011, p.34).
Somos levados, então, a concordar que os processos educacionais estão em
ligação direta com as relações sociais, com as trocas realizadas pelas pessoas em
seus cotidianos. Dessa maneira, reconhecemos que a ação de aprender não pode
se dar de forma isolada, insular; ao contrário, a aprendizagem é algo eminentemente
dinâmico e relacional, aberto e pertencente a todos. As situações de aprendizagem
são marcadas por relações com os locais em que se dão, com o tempo/momento de
aprender, e, especialmente, pelas relações/interações com outras pessoas.
Isso nos faz suspeitar de práticas educativas singulares e padronizantes, que
se apresentam como vias únicas, universalmente aceitas, resultando num
empobrecimento demasiado do ato de aprender, na medida em que se fundam,
exclusivamente, numa ordem estática, unitária e homogênea, pouco ou nada
relevante para a vida.
No caso da escola, Macedo (2009) nos mostra que “se, o fenômeno da
aprendizagem é conceituado como um fenômeno que se realiza nas relações que
estabelecemos com os saberes, o conhecimento e as pessoas; na sala de aula,
essa constatação se transforma numa realidade extremamente significativa” (p.119).
48
Não apenas nas salas de aula, mas em todos os espaços da escola pode ser
vista uma pluralidade de experiências, discursos e comportamentos interagindo,
onde a “cultura da escola” e a “cultura da rua” se chocam, tensionando e negociando
as formas como as práticas escolares são efetuadas, e como as relações sociais e
de aprendizagem são construídas.
Nessa visão, segundo Moreira e Silva:
(...) a educação e o currículo não atuam apenas como correias transmissoras de uma cultura produzida em um outro local, mas são partes integrantes e ativas de um processo de produção e criação de sentidos, de significações, de sujeitos (1995, p,26).
Os autores continuam, afirmando que o currículo e a educação “podem ser
movimentados por intenções oficiais de transmissão de uma cultura oficial, mas o
resultado nunca será o intencionado porque, precisamente, essa transmissão se dá
em um contexto cultural de significações ativas dos materiais recebidos” (p.27).
Neste panorama é preciso, de imediato, abandonarmos a noção de aluno
enquanto meros consumidores passivos de conhecimentos já prontos, pré-
selecionados e hierarquizados pela educação normativa, compreendendo, como
enfatiza Freire, que ”...ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a
possibilidade para sua própria produção...” (1996, p.47), e que essas possibilidades
permeiam as referências socioculturais individuais e coletivas que esses alunos
carregam para dentro do ambiente escolar.
Pensar sobre as práticas escolares é também considerar os diversos
aspectos contraditórios e as muitas perspectivas presentes neste contexto. Neste
sentido dialogamos com Michel de Certeau (2011) deslocando nossa atenção para
as práticas cotidianas, para as astúcias das “artes de fazer” e para um “não-lugar”
criado por “homens ordinários” e nascido na liberdade dessas práticas. Para o autor,
reconhecer e legitimar os saberes que permeiam essas práticas “subterrâneas” da
vida escolar, considerando suas estratégias e atos, é compreender que os atores
escolares vão se ajustando e ressignificando os discursos oficiais, e deslocando,
dessa forma, as fronteiras hegemônicas.
49
Torna-se possível então, a partir dessa “bricolagem” com e na ordem
dominante, perceber “micro-resistências” que reconfiguram as relações instituídas e
que, por meio de práticas ou “táticas desviacionistas”, edificam “microliberdades”. De
acordo com Certeau (2011), realizam-se movimentos de “micro-resistências, os
quais fundam por sua vez microliberdades, mobilizam recursos insuspeitos e assim
deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos poderes sobre a multidão
anônima” (p.18).
Portanto, pensar sobre o cotidiano escolar requer mais que um discurso
superficial sobre o cenário desalentador deste espaço ou sobre o que já está público
e notório. Para uma compreensão mais profunda desse universo, é preciso
escarafunchar as práticas que se constituem nesse território, desvendando
estratégias e penetrando nas opacidades. Segundo Maria Antonieta Tourinho, a
complexidade do cotidiano escolar, (referindo-se mais especificamente à escola
pública) “não permite a captura de todos os seus componentes. Sempre haverá um,
dois, mil que escapam e se escondem nas brumas do imprevisível” (2003, p.245).
Neste sentido, a vida escolar não pode ser vista como um sistema
sedimentado de regras e relações, pois é justamente neste universo social vivo que
se configuram formas, muitas vezes ilegíveis, de interagir e de se expressar no
mundo e com o mundo, num movimento dialético de aprendizagens e
reaprendizagens que se (re)constroem em múltiplas circunstâncias, e que, através
de táticas diversas, podem transformar pessoas e contextos.
Como afirma Freire (1996, p.43), “é uma pena que o caráter socializante da
escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou
deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos
conteúdos...”. Pois é justamente nessas trocas e experiências informais vividas
cotidianamente no ambiente escolar, onde se manifestam contradições e
antagonismos sociais e culturais que, em seus movimentos de enfrentamento e
negociação, constituem-se verdadeiros processos educativos. É necessário, então,
que as práticas escolares movam-se para além das fronteiras disciplinares, e
deixem entrar em cena os desejos, as histórias, e vivências que os sujeitos
50
carregam para a escola, experimentando e legitimando outros saberes, que não os
institucionalizados.
Nesse mesmo sentido que apontamos, também, para a negligência com que
grande parte das instituições formais de ensino vem tratando as experiências e os
saberes dos educandos e das comunidades em que estão inseridas enquanto
dispositivo de aprendizagem, valorizando e legitimando como conhecimento apenas
os saberes normativos, disciplinares, e que são passíveis de serem quantificados e
mensurados. De acordo com Certeau, “...a implantação massiva de ensinos
normalizadores tornou impossíveis ou invisíveis as relações intersubjetivas da
aprendizagem tradicional” (2011, p.262).
Entretanto, observamos que, mesmo diante dessa insistente segregação de
saberes, as relações estabelecidas pelas pessoas no interior da escola, as
interações sociais, e as vivências cotidianas nesse ambiente, independentes se
legitimados ou não como conhecimento, constroem relações de aprendizagem, pois,
como afirma Demo, “conhecer e aprender não são fenômenos apenas lógicos e
técnicos, mas fundam-se na propriedade humana como tal” (2011, p.XV). Assim, a
convivência nas salas de aula, nos corredores, nos eventos, na entrada e saída da
escola, enfim, nos “não-lugares” escolares fazem circular um saber inseparável da
vivência desse grupo.
Sob este olhar destacamos a relevância dos saberes e fazeres da cultura
popular neste universo de aprendências. Compreendemos que o aprendizado
proporcionado pelas manifestações populares, oriundo das vivências e das
experiências socioculturais de seus atores, ainda se encontram longe de serem
legitimados pela educação formal, embora esses saberes estejam presentes na vida
cotidiana da escola. Para Abib (2005), “os próprios educadores, em sua maioria, têm
dificuldade em estabelecer vínculos entre os saberes universais, provenientes da
racionalidade acadêmico-científica, com os saberes populares provenientes das
culturas tradicionais...”(p.213).
Neste mesmo viés, Certeau (1995, 263-264) reforça que:
51
(...) a criança escolarizada aprende a ler paralelamente à sua aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar as letras corresponde a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem. Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido por tradição oral permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um texto afina, precisa e corrige.
É importante ressaltar que não estamos aqui rejeitando os conhecimentos
disciplinares próprios do ensino escolar. Inclusive por estarmos cientes das
especificidades desses saberes é que nossas intenções apontam para que novas
possibilidades de aprendizagem sejam acolhidas pela escola a partir do diálogo
entre o ensino formal e outros espaços de produção de saber, a fim de que “o
desenvolvimento desses saberes disciplinares abarquem a diversidade de seres que
transculturalizam-se no cotidiano escolar – seres criadores de cultura; portanto de
significações variadas sobre tais saberes” (NETO, 2008 p.48).
Ao referenciar Antonio Gramsci, Ecléa Bosi (1973) afirma que “...ao lado da
chamada cultura erudita, transmitida na escola e sancionada pelas instituições,
existe a cultura criada pelo povo, que articula uma concepção do mundo e da vida
em contra-posição aos esquemas oficiais” (p.53). Apostamos então, que um diálogo
entre essas duas instâncias de embates culturais se mostre um valioso processo
político e educacional, em particular na escola, local onde a cultura dominante
produz e dissemina suas “verdades” hegemônicas, mas também, onde ela se
encontra e se enfrenta, num intercâmbio incessante, com a força transgressora do
saber popular.
Consideramos assim que uma aproximação entre os saberes disciplinares da
escola e o saber popular podem viabilizar a construção de novas possibilidades no
campo das aprendizagens, fundados em instâncias mais criativas e humanizantes,
além de provocar um “alargamento da racionalidade e dos paradigmas que
predominam nessas instâncias” (ABIB, 2005 p.213).
Quando pensamos na vinculação entre a cultura popular e o conhecimento
formalizado se estabelecendo dentro das escolas, refletimos sobre a relação que a
instituição escolar tem com a cultura do local onde está inserida. Ao entendermos
52
que esses locais são constituídos e encharcados de histórias, memórias e
significações, apostamos que essa aproximação possibilite aos educandos se
perceberem em seus próprios territórios e em relação à outros, nutrindo um
sentimento crítico de pertencimento àquele espaço, e se reconhecendo no
conhecimento produzido e socializado pela escola.
Vale ressaltar que não se trata de disciplinarizar os saberes populares, mas
sim de valorizá-los e legitimá-los enquanto conhecimento nos ambientes escolares,
de aproximá-los dos saberes institucionalizados, estabelecendo relações e
promovendo debates, e de potencializar sua contribuição no processo de construção
do currículo escolar, “revelando e reconhecendo o saber das culturas orais das
comunidades que historicamente foram colocadas à margem do processo de
construção do conhecimento oficial” (Caíres e Pacheco, 2008, p.58).
Giroux e Simon (1995) complementam que “... a cultura popular quando
valorizada e legitimada no currículo escolar é, em consequência disso, apropriada
pelos alunos e ajuda a validar suas vozes e experiências” (p.96).
Cabe aqui uma breve consideração sobre a noção e o conceito de currículo,
tendo em vista o tamanho poder que lhe é conferido enquanto “definidor dos
processos formativos” (MACEDO, 2009).
Começamos esta consideração esclarecendo que, embora a compreensão de
currículo ainda se encontre predominantemente sedimentada na ideia de um
artefato inventado, construído e imposto por especialistas e burocratas, tendo como
função eleger, normatizar e hierarquizar saberes, a reflexão que buscamos aqui se
confronta com essa perspectiva e assume o entendimento de currículo enquanto um
indicador de “...caminhos, travessias e chegadas, que são constantemente
realimentados e reorientados pela ação dos atores/autores da cena curricular”
(MACEDO, 2009).
Dessa forma, o currículo não pode mais ser entendido como mero veículo de
transmissão de conteúdos a serem passivamente absorvidos, mas sim, como
terreno onde ativamente se construirão conhecimentos.
53
Compreendemos, entretanto, como afirmam Moreira e Silva (1995, p.7) que
“não é mais possível alegar qualquer inocência a respeito do papel constitutivo do
conhecimento organizado em forma curricular e transmitido nas instituições
educacionais”, pois, a construção de toda proposta curricular encontra-se banhada
por ideologias e opções formativas, o que nos faz constatar que através do currículo
valorizamos e legitimamos saberes.
O desafio que surge é implementar uma prática curricular que não trabalhe,
exclusivamente, a favor dos processos hegemônicos e na manutenção de um status
quo capitalista, massificador e excludente, mas sim que dê voz e vez a outros
processos de sociabilidade, reconhecendo, valorizando e legitimando outros saberes
que não apenas os institucionalizados.
Entendemos que, é necessário considerar o currículo um artefato social e
cultural, criticamente aberto e disponível para negociar e acolher. Um terreno vivo de
construção do conhecimento guiado por questões políticas e sociais, onde as
experiências dos sujeitos, seus contextos e processos históricos e culturais sejam
contemplados pelas práticas curriculares.
Para Caíres e Pacheco,
A revisão do currículo não é uma meta política abstrata que se alcança por decreto, mas um objetivo que se conquista no cotidiano, de baixo para cima, um passo de cada vez. Trata-se de uma revisão profunda de lugares, de hierarquias, de valores e procedimentos arraigados e consolidados na ideologia, no afeto e na prática dos corpos dos educadores, estudantes e na própria relação da comunidade com a escola e vice-versa (2008, p.47).
No caso da escola, é urgente que o currículo apareça de forma dialógica, que
se estabeleça no campo curricular um espaço de debates e construções,
provocando percepções e atitudes críticas e emancipatórias, valorizando outros
conhecimentos e desmitificando a noção de que o saber normatizado e
institucionalizado é o único saber relevante. Compreendemos, como afirma Macedo,
que:
(...) essa não é uma tarefa de heróis, mas um esforço e um labor de
54
um coletivo social, movido por uma epistemologia social sensível, inclusive, aos choques culturais, às resistências, às dificuldades naturais, quando se trata de mudar cosmovisões secularmente construídas, mas também dispostos a ir à luta ideológica, aos embates de ideários, porquanto em se tratando do pensar complexo, não há chave mestra guardada em cartolas, tampouco mera contemplação do pensamento (2002, p.62).
Assim sendo, finalizamos este debate sinalizando que a linha divisória entre
os saberes populares e os saberes institucionalizados é mais permeável do que
estamos inclinados a pensar. Trata-se de vislumbrar para a escola a possibilidade
de uma prática mais viva e pulsante; de viabilizar que alunos e professores se
envolvam numa aprendizagem que os (re)liguem às suas vivências e histórias; de
buscar relações de trocas e construção do conhecimento que não hierarquize
saberes e incentivem a inclusão do universo de toda a comunidade escolar nos
processos de ensino e aprendizagem. Para isso é importante perceber o currículo
para além de suas ações (o que “devemos fazer” ou como se faz o currículo) e
compreendê-lo em seus efeitos (o que ele faz com as pessoas e as instituições),
considerando-se que tanto nós, (professores, gestores e alunos) estruturamos o
currículo (selecionando, organizando e implementando saberes), quanto o currículo
nos estrutura, vivendo, instituindo e remodelando poderes.
55
2 CAPÍTULO 2 – A AÇÃO GRIÔ NACIONAL
Costuma-se dizer que o assunto, o tema de uma pesquisa se revela antes
pela paixão e depois pela razão. Pois foi dessa maneira que minha convicção no
potencial educativo (e político) que a aproximação dos saberes da cultura popular
com a escola representa encontrou-se com o trabalho singular de reconhecimento e
valorização da cultura popular de tradição oral desenvolvido pelo Grãos de Luz e
Griô, e fez despertar o encantamento que impulsionou e iluminou minha caminhada
nesta pesquisa.
Inspiradora deste trabalho, a Grãos de Luz e Griô promove na cidade de
Lençóis, Bahia, um projeto de valorização e legitimação dos saberes populares em
diálogo direto com os espaços de educação formal, projeto este que, em parceria
com o Ministério da Cultura, deu origem ao programa Ação Griô Nacional, e vem se
desenvolvendo em outros estados brasileiros, como detalharemos a seguir.
2.1 Apresentando a Associação Grãos de Luz e Griô, onde tudo começou
Este projeto que vos falo
Trata de uma reinvenção
Do Griô que veio da África
Do Brasil e da tradição
Dos que guardam na memória,
Preservando nossa história
Geração em geração.
A Pedagogia Griô
Vem de um Ponto de Cultura
De Lençóis, lá na Bahia
Vida roda se mistura
O Grãos de Luz e Griô
Criança velho professor
O criador, a criatura
(Versos do cordel O Griô de todo canto,
de Márcio Caires, fevereiro,2006)
56
A associação Grãos de Luz e Griô, localizada na cidade de Lençóis-BA,
iniciou sua trajetória em 1993 quando algumas mães da comunidade, juntamente
com outras lideranças femininas da cidade, mobilizaram-se para a distribuição de
uma sopa comunitária para crianças de baixa renda de um bairro periférico chamado
Alto da Estrela. Paralelo a esse movimento, desenvolvia-se um projeto de horta
comunitária também com crianças e jovens de baixa renda nas comunidades. Foi
neste contexto que Jane da Silva Pellaux, brasileira, que vivia na Suíça, propôs a
integração destas ações a um projeto de educação para crianças e adolescentes.
Nasce então, da união das iniciativas anteriores, e idealizada por Líllian
Pacheco e Márcio Caires, a construção de uma proposta educacional num projeto
pedagógico intitulado Oficinas Grãos de Luz4. Neste projeto eram desenvolvidas
oficinas pedagógicos de pintura, costura, desenho, dança, canto, dentre outras,
onde os jovens participavam de pesquisas e vivências sobre mitos, heróis,
arquétipos, saberes e histórias de vida de suas famílias, de sua comunidade e dos
mestres dessa comunidade, vinculados a um tema gerador anual. Esta proposta
imprime na valorização da cultura e na integração das idades, sua estratégia
fundante, e, no fortalecimento da identidade afetiva e cultural dos participantes, seu
objetivo primeiro.
Em 1999, reconhecendo os resultados positivos dessas oficinas, a Secretaria
de Educação de Lençóis convidou seus coordenadores para participarem da
Semana Pedagógica Municipal, realizando vivências e propondo discussões, além
de elaborar um projeto de formação de professores para os educadores da rede
municipal.
Ao refletir sobre questões como: Que didáticas integram o terreiro da
comunidade e a sala de aula? Que vivência pode integrar os saberes da tradição
4 Segundo Líllian Pacheco, grãos de luz remetem aos mitos de chamada do diamante dos garimpeiros da região, além de ser muito frequente, no imaginário social, a criança ser associada a uma semente (Grãos de Luz e Griô).
57
oral e os saberes da ciência formal? Qual o lugar dos mestres da tradição oral na
formação dos estudantes brasileiros? O projeto objetivou mobilizar e capacitar
professores das escolas públicas de Lençóis. Contou, então, com a participação de
aproximadamente mil crianças e onze escolas da comunidade, num movimento de
fortalecimento da identidade e do vínculo afetivo entre os participantes.
Ainda neste ano, durante uma atividade para adolescentes afrodescendentes
liderada por Líllian Pacheco, a figura do griô, revelada pelo etnólogo Ardaga Widor,
entra em cena.
Segundo o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ5
Nas línguas e dialetos da região sul do Saara, noroeste da África, na tradição oral dos grupos étnicos Bambaras e Fulas na região do Mali, de onde se originaram os Griôs, eles tem diversos nomes e funções sociais. (...) Eles são genealogistas, contadores de histórias, músicos/poetas populares, importantes agentes da cultura. Chegam a assumir a função de noticiadores, mediadores e diplomatas (Ação Griô Nacional).
Assim, o encontro com a ideia do griô africano, reconhecido como aquele que
faz com que os mitos e as tradições circulem entre as novas gerações, “se
identificou completamente com as intuições e estratégias de fortalecimento da
identidade cultural formuladas pela coordenação de projetos. Assim foi nomeado o
Projeto Griô ...” (PACHECO, 2006 p.25).
De acordo com Pacheco (2006) o modelo de ação pedagógica do Projeto
Griô, sistematizada, passaria por quatro momentos integrados, são eles:
1) A Roda das Oficinas: A ideia inicial é que as crianças, os adolescentes e suas
famílias passem a vivenciar as propostas pedagógicas do projeto através das
atividades das oficinas, que envolvem a participação dos mestres e griôs
locais.
5 Escritor, historiador, etnólogo e poeta, Amadou Hampâté Bâ nasceu no Mali, Bandiagora, em 1901. Foi um mestre da tradição oral africana.
58
2) A Roda da Caminhada do Velho Griô: Figura criada pelo educador Márcio
Caires, o Velho Griô, através de suas caminhadas cantantes, realizadas pelas
escolas e pelas comunidades, possibilita, além de uma rede de comunicação,
uma convivência afetiva e cultural com essas pessoas. Assim, o Velho Griô
chega caminhando aos locais e envolve toda comunidade – crianças, adultos,
educadores e diretores – num diálogo dançante sobre mitos, heróis, histórias
de vida, entre outros temas.
3) A Roda dos Educadores: Regulamentado por um termo de parceria com a
Secretaria de Educação, os educadores da rede municipal da cidade de
Lençóis que experimentaram e se encantaram com a chegada do griô às
escolas, participam de um “encontro de capacitação de educadores griôs”,
onde vivenciam os projetos das oficinas Grão de Luz. A intenção é facilitar a
integração entre a tradição oral e o sistema municipal de ensino.
4) A Roda da Vida e das Idades: Aqui se dá o encontro de todas as rodas, num
diálogo envolvendo todos os participantes. Segundo Pacheco (2006): O encontro das rodas chama-se Roda da Vida e das Idades, que se inspira na qualidade multissetorial, intergeracional, dançante e solidária das rodas de capoeira, dos candomblés, das manifestações culturais indígenas, (…), e outras manifestações e organizações de tradição oral no Brasil (p.28).
Assim, o griô caminhante, cantador e contador de histórias reinventado pelo
projeto, sai da comunidade, passa pela ONG, adentra o espaço escolar e chega ao
poder público, fazendo “circular os saberes, histórias, mitos, lutas e glórias de seu
povo, dando vida à rede de transmissão oral de sua região e país” (Ação Griô
Nacional).
Neste contexto, a figura do griô se multiplica em diferentes papéis, assumindo
não apenas o lugar do caminhante contador de história, mas assumindo também a
imagem da ONG, a função do educador, a posição de mediador com as instâncias
governamentais da cidade de Lençóis e de outras cidades do país. Barzano (2008)
afirma que:
(...) Desse modo, ele se multiplica, escapa das identidades fixas, classificadas nisso ou naquilo (...). É o griô performático, que se
59
expressa em personagem e se efetua politicamente, que inventa uma pedagogia e, ao mesmo tempo, é por ela inventado (p.86).
É no âmbito deste projeto que, inspirada pelas referências metodológicas da
educação biocêntrica de Ruth Cavalcanti e Rolando Toro, da psicologia comunitária
de Cézar Wagner Góis e da pedagogia de Paulo Freire, nasce, pelas mãos da
educadora biocêntrica Líllian Pacheco, a Pedagogia Griô6, norteadora das propostas
e ações do Projeto Griô.
Segundo a idealizadora, trata-se de:
Uma pedagogia da vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento de um projeto de vida que tem como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida (PACHECO, 2006 p.86).
Foi justamente nesse período que o Projeto Griô, bem como as oficinas
Grãos de Luz, perderam o espaço físico onde realizavam suas atividades. Assim, os
educadores passaram a desenvolver seu trabalho nas ruas ou em espaços cedidos
pela própria comunidade, a fim de manter o atendimento às crianças e aos jovens. A
difícil situação em que se encontravam, especialmente em função da falta de espaço
físico e de autonomia jurídica e administrativa, motivou mães, educadores do projeto
e das escolas, parceiros locais, nacionais e internacionais a se unirem para a
fundação da Associação Grãos de Luz, criando assim uma rede de solidariedade e
responsabilidade social. Essa rede viabilizou o pagamento do aluguel de um espaço
no centro histórico de Lençóis. Nessa nova etapa, a Associação passa a
regulamentar termos de parceria e a sistematizar os objetivos, estratégias e
atividades do projeto que, integrados, receberam o nome de Grãos de Luz e Griô.
Assim, num processo singular de reconhecimento da tradição oral, dentro e
fora das escolas, a Grãos de Luz e Griô define como missão:
(...) semear a educação e a tradição oral fortalecedora da identidade das crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Reinventar a
6 Ver SILVA, Juliana Lopes da. Experimentação em cultura, educação e cidadania: o caso da Associação Grãos de Luz e Griô, 2009, sobre conceitos e referêcias da Pedagogia Griô.
60
integração entre o velho e o novo num presente pleno de ancestralidade e identidade na educação para a celebração da vida (PACHECO, 2006, p.22).
É nesta “...integração entre o velho e o novo...”, nesta aproximação entre
gerações, que se destaca a figura e a importância dos mestres. Para Abib (2005,
p.95):
O mestre é aquele reconhecido por sua comunidade, como o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos, alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa, de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume por essa razão, a função do poeta que, através de seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora que irrompe para dignificar o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro.
No caso das escolas, a proposta de aproximar os mestres das salas de aula
para a transmissão de um saber tradicional proporciona uma nova configuração nos
processos de ensino e aprendizagem nestes espaços, agregando ao saber científico
o saber dos mitos, lendas e cantos produzidos e transmitidos oralmente pelas
tradições, contribuindo para que a escola institua novas e outras possibilidades ao
conhecimento escolar.
Barzano defende ainda, que:
(...) permitindo a entrada do velho das comunidades nas escolas (...) os alunos acabam por conhecer e se envolver com assuntos específicos da comunidade, desde as cantigas e histórias da cultura local aos aspectos políticos que a envolvem, e é desse modo que o poder perpassa pelas vias cotidianas, nas malhas da microfísica, como estratégia de se distribuir e agir capilarmente e produzir saber (2008, p.56).
Neste viés, é preciso observar que a legitimação desses saberes populares
de tradição oral na educação formal e pública significa também uma disputa
ideológica, uma vez que as escolas ainda atuam, em sua maioria, na reprodução da
cultura oficial dominante e hegemônica. Dessa forma, ao eleger a escola (e as
universidades) como locais privilegiados para esse diálogo, a proposta do projeto é
“inserir nestes espaços a questão política e de identidade de quem descobre sua
ancestralidade no campo da disputa de ideias” (Caíres e Pacheco, 2008, p.59).
61
Em maio de 2011 pude participar de um curso de formação na Pedagogia
Griô, promovido pelo Grão de Luz de Griô. Durante os quatro dias em que se
desenvolveram as atividades foi possível transitar pelas diversas instâncias que o
projeto abarca, indo desde a parte teórica, fundante da Pedagogia Griô, até o
encontro com as comunidades, escolas e seus mestres de tradição oral.
Curso de formação na Padagogia Griô.Maio/ 2011, Grãos de Luz e Griô, Lençóis, BA.
As atividades realizadas durante este curso possibilitaram constatar a ação
efetiva do projeto sobre as comunidades participantes na cidade de Lençóis, as
quais, em geral, são comunidades remanescentes de quilombo, bem como sua
aproximação real com os espaços escolares.
Como parte das atividades pudemos vivenciar uma intervenção feita pelo
Projeto Griô na escola municipal Terezinha Guerra. Embora essa visita tenha sido
muito breve e estivesse previamente agendada, portanto professores e alunos
sabiam sobre a ida do Projeto Griô à escola naquele dia, ficou evidente, através da
62
participação das professoras e gestoras e da interação e familiaridade dos alunos
com as atividades propostas, a estreita relação do projeto com a escola. As músicas
e mitos cantadas e contados pelos mestres que, como de costume, acompanharam
a visita, já faziam parte do repertório daqueles alunos e professores.
Intervenção projeto Griô, Escola Municipal Terezinha Guerra, Lençóis, maio/2011.
As oficinas Grãos de Luz, que hoje englobam desde música e confecção de
bonecos até informática e produção audiovisual, ainda são oferecidas às crianças e
jovens. Além da criação de novos projetos, como por exemplo o Cine Grãos7,
atualmente todos os núcleos gestores do Grãos de Luz e Griô, do financeiro ao
administrativo, são formados por jovens ex-alunos das oficinas da Associação, e
que, de maneira geral, frequentam o espaço desde crianças.
Algumas questões, porém, pareceram receber destaque nos trabalhos
desenvolvidos pelo Grãos de Luz e Griô. Uma delas refere-se à sustentabilidade
7 Sessão de cinema aberta à comunidade, que acontece às sextas-feiras no espaço do projeto ou numa praça da cidade, organizada pelos jovens do projeto.
63
econômica. Percebendo a difícil situação financeira em que se encontrava a
população daquelas comunidades, e a perda constante de seus jovens para o
subemprego, o Grãos de Luz e Griô passou a criar alternativas de remuneração,
tanto para as crianças e jovens participantes dos projetos, com a implantação de
bolsas de ajuda financeira e venda dos produtos produzidos nas oficinas, quanto
para as próprias comunidades e seus mestres, com o turismo comunitário, nascendo
então as Trilhas Griô8 de educação, cultura oral e economia comunitária.
Uma outra questão de destaque no desenvolver dos trabalhos é a enorme
valorização tanto das histórias e mitos locais, quanto dos mestres de tradição oral
daquela região, e a aproximação destes com as novas gerações. Foi possível
perceber um movimento ímpar dos mestres das tradições populares se conhecendo,
e se reconhecendo como guardiões da memória de sua comunidade, num processo
de reencontro com a importância de seu lugar e de seu papel para aquele local.
Durante uma visita à comunidade do Remanso9 (outra atividade do curso de
formação), pudemos conhecer, através dos próprios moradores, algumas das
tradições do local que se revitalizaram, como o funcionamento comunitário da casa
da farinha, a pesca artesanal, a roça de ervas medicinais de D. Judite, e a sanfona
“de 8 baixos” de Mestre Aurino10.
Neste dia passamos parte da tarde sentados embaixo de uma árvore, no
terreiro, ouvindo histórias da formação e vida da comunidade do Remanso, contadas
por Mestre Aurino – histórias saudosas das épocas de menino, das festas locais,
dos mitos e das criaturas encantadas dos rios e das matas. Nos contou sobre
algumas tradições que desapareceram e outras que ressurgiram, e da importância
de recordá-las e contá-las aos moradores mais jovens, aos professores e meninos
na escola, e aos visitantes que vinham “de fora”.
8 As Trilhas Griôs são roteiros oferecidos a grupos de pessoas que partem da sede do Grãos de Luz e são realizadas vivências, contação de histórias, encontros com griôs e mestres da tradição oral e visitação às comunidades. 9 Comunidade remanescente de quilombo, Remanso é a principal comunidade atendida pelo projeto. 10 Mestre Aurino, 67 anos, nascido e criado na comunidade do Remanso, trabalhou no garimpo, é pescador, sanfoneiro e mestre da tradição oral.
64
Nas palavras de Mestre Aurino: “O Grãos de Luz fez eu lembrar cada história,
cada coisa daqui do Remanso que eu nem lembrava mais, e hoje eu tô aqui
contando pro ceis”.
Mestre Aurino, contando “causos” no terreiro da comunidade do Remanso. Maio/201111
Aprendemos também com D. Judite a sabedoria ancestral das ervas, ouvindo
as histórias sobre os poderes medicinais de cada planta que ela cultivava no seu
terreno. D. Judite nos falou como ajuda a comunidade com seus chás e xaropes,
nos deu uma aula sobre o modo como cada erva deveria ser tratada para os
diferentes usos, nos contou como ela conseguiu recuperar algumas “qualidades” de
planta que “não davam mais na sua roça”, e como levou esse conhecimento para os
meninos da escola. “Teve um projeto junto com o Grãos aí na escola, e eu fui
ensinar pra que usa cada planta. Agora até os menino sabem” (D. Judite).
11 As fotos utilizadas para a apresentação deste trabalho, fazem parte de um acervo pessoal estruturado a partir dos registros realizados durante a construção da pesquisa.
65
D. Judite, 74 anos, ensinando sobre as propriedades medicinais das plantas. Comunidade do Remanso, maio/2011.
Apesar de essas atividades serem previamente organizadas para receber os
visitantes, numa espécie de demonstração do cotidiano da comunidade, as
conversas informais com os moradores e mestres locais evidenciam a importância
das ações do Projeto Griô para aquela comunidade, tanto na questão financeira
quanto em relação ao reconhecimento e valorização dos mestres de tradição oral e
revitalização de diversas manifestações da cultura popular local.
Esta estada na comunidade nos apresentou também toda essa revitalização
das tradições convivendo, se entrelaçando e se relacionando constantemente com
novas e outras manifestações culturais. O RAP, do grupo Racionais MC’s, que
tocava em alto e bom som ao chegarmos no terreiro do Remanso, deu lugar ao forró
66
do grupo local que encerrou as atividades ao cair da noite. Os jovens que, no fim do
dia chegavam da cidade em suas motos, ouvindo pagode em seus celulares,
juntavam-se a nós cantando e dançando as canções entoadas por estre Mestre
Aurino, (re)afirmando seus lugares nesses cruzamentos culturais.
2.2 Ação Griô Nacional: do que se trata?
Em setembro de 2005, a convite do então secretário de Cidadania Cultural do
Ministério da Cultura (MinC), Célio Turino, o atual Ponto de Cultura12 Grãos de Luz e
Griô, se incumbe de apresentar, numa gestão compartilhada com o MinC, um
projeto para a criação da Ação Griô Nacional. Em setembro do ano seguinte, em
Brasília, durante o I Encontro Sul-Americano de Culturas Populares, é lançada a
Ação Griô.
Trata-se de uma ação integrada aos Pontos de Cultura do Programa Cultura
Viva13 da Secretaria da Cidadania Cultural, e tem como missão:
Criar e instituir uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral em diálogo com a educação formal, para o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro, por meio do reconhecimento do lugar político, econômico e sócio cultural dos griôs, das griôs, mestres e mestras de tradição oral do Brasil (Ação Griô Nacional).
Assim, numa iniciativa inovadora, a Ação Griô, incentivando trocas de
experiências e estimulando vínculos entre comunidade e educadores e entre
gerações, propõe o diálogo direto entre os espaços de educação formal (escolas e
universidades), espaços não formais de educação (ONGs e outras entidades do
terceiro setor), e os mestres da cultura popular, para o planejamento e a
sistematização de práticas educativas que valorizem os saberes e fazeres de
tradição oral.
12 São entidades que firmam convênio com o Ministério da Cultura, via seleção de editais públicos, com o objetivo de desenvolver ações de caráter socioculturais em suas comunidades. 13 Vinculado ao MinC, este programa tem como objetivo principal “promover a cultura enquanto expressão e representação simbólica, direito e economia [...] ampliando e garantindo acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural” (Programa Cultura Viva)
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A Ação Griô é gerida de forma compartilhada entre o Grãos de Luz e Griô, a
Secretaria de Programas e Projetos do Ministério da Cultura (SPPC/MinC)14,
equipes de coordenação regionais formadas por Pontões de Cultura15 e outras
entidades, além de secretarias e parceiros regionais e estaduais.
Atualmente, compartilhando a gestão da Rede Ação Griô encontram-se as
coordenações regionais: Pontão Ação Griô Regional Ventre do Sol (AL, PE, PB, SE
e RN); Pontão Ação Griô Rio de Janeiro (R.J.); Pontão Regional da Terra (SP, PR,
RS e SC); Pontão Ação Griô Nascentes e Veredas (DF, GO, MS, MG e ES); Pontão
Ação Griô Regional Amazônia (AM, PA RR, RO AC, AP, CE, PI, MA e TO); e,
Pontão Ação Griô Bahia (BA).
Cada Ponto de Cultura e ONG parceira da Ação Griô desenvolve um projeto
de educação e tradição oral em diálogo com os espaços de educação formal,
estudantes, griôs, mestres e parceiros locais de sua comunidade, articulado aos
propósitos da ação.
De forma geral, o Grãos de Luz e Griô atua na formação de griôs-
aprendizes16 que participam das redes regionais de transmissão oral,
compartilhando referências do diálogo proposto pela Pedagogia Griô entre a
tradição oral das comunidades e as escolas públicas; assessora os projetos
pedagógicos dos griôs aprendizes integrados às práticas pedagógicas dos pontos
de cultura, colaborando com a construção do lugar do griô-aprendiz, do educador
parceiro e dos griôs e mestres de tradição oral nas atividades com as escolas;
instrumentaliza griôs, mestres e educadores com produtos didáticos a fim de
potencializar seus projetos educacionais; e, finalmente, promove e facilita encontros
das redes regionais.
A Ação Griô, em parceria com a SPPC/MinC, elaborou e publicou, em
setembro de 2006, o primeiro edital convidando os pontos de cultura a apresentarem
14 Atual Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural 15 Estratégia criada pelo MinC para facilitar a articulação entre os pontos de cultura. 16 Para o Grãos de Luz e Griô, os griôs-aprendizes são líderes/educadores de grupos culturais e/ou associações locais, que trabalham com as tradições orais e participam de atividades e/ou iniciação com um mestre de tradição oral.
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projetos pedagógicos que envolvessem griôs e mestres da tradição oral em parceria
com escolas e/ou universidades públicas, contemplando 50 projetos e
disponibilizando bolsa para 250 griôs e mestres. Em junho de 2008, o edital n.2 é
lançado17 com a Bolsa de Incentivo Griô, selecionando 100 projetos pedagógicos,
sendo 75 de Pontos de Cultura e 25 de outras organizações, e destinando mais 200
bolsas, no valor de 350,00 reais cada.
Em 2011, a Rede da Ação contou com a participação de 130 pontos de
cultura e organizações comunitárias, 750 griôs-aprendizes, griôs, mestres e
representantes da tradição oral no Brasil, em parceria com 600 escolas,
universidades e entidades de educação e cultura (Ação Griô Nacional).
2.3 A Lei Griô Nacional
Dentre as futuras missões da Rede Ação Griô, está a implementação da Lei
Griô Nacional18. Trata-se de um projeto de lei de iniciativa popular que propõe:
(...) criação de políticas de transmissão dos saberes e fazeres da cultura oral, por meio de mecanismos de reconhecimento formal dos mestres populares, bolsas de auxílio e integração com o sistema formal de ensino (Ação Griô Nacional).
Dessa forma, a Lei Griô busca instituir, no âmbito do Ministério da Cultura e
do Sistema Nacional de Cultura, uma política nacional de transmissão dos saberes e
fazeres da tradição oral em diálogo direto com a educação formal, por meio do
reconhecimento político, social, cultural e econômico dos mestres populares,
visando a fortalecer a identidade cultural e a ancestralidade do povo brasileiro. Para
isto, a proposta de Lei, dentre outras coisas, prevê capacitar os profissionais da
educação, por meio de trocas de saberes com os mestres da cultura popular, além
de garantir condições financeiras e pedagógicas para efetivar o trabalho desses
mestres.
17 Encontra-se em anexo (A) o edital de divulgação/2008 da Ação Griô. 18 Encontra-se em anexo (B) a minuta da Lei Griô.
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O Projeto da Lei Griô Nacional foi formulado por uma Comissão Nacional de
griôs e mestres de tradição oral escolhidos pela Rede Ação Griô e contou com
contribuições e participação da sociedade brasileira por meio de encontros regionais
e nacionais e de uma página na internet. A proposta do projeto da Lei Griô saiu em
sua íntegra na Conferência Estadual de Cultura da Bahia, realizada em 2009, na
cidade de Ilhéus.
Assim, em 2010, durante a II Conferência Nacional de Cultura, dentre mais de
347 propostas, aprovar e implementar a Lei Griô Nacional foi eleita como uma das
prioridades de política de cultura no Brasil, e a Rede Ação Griô mobilizou-se em
busca de um milhão de assinaturas, para apresentar ao Poder Legislativo Federal o
projeto de lei. Segundo Márcio Caires, “a meta da Rede Ação Griô é, também, fazer
valer a Constituição Federal, garantindo o primeiro processo de uma lei de iniciativa
popular aprovado no Brasil”19
Numa iniciativa da Frente Parlamentar Mista de Cultura20 do Congresso
Nacional e de mais 24 deputados de diferentes partidos políticos, está em
tramitação desde julho de 2011, no Congresso Nacional, o projeto de Lei Griô
Nacional (PL 1.786/2011).
Compreendemos a importância deste processo principalmente no sentido de
suscitar uma discussão mais ampla na sociedade e no poder público à respeito da
formulação e implementação de políticas públicas que promovam e valorizem os
saberes e fazeres da cultura popular e de seus mestres, num movimento de
afirmação dessas culturas.
Neste viés, cabe a citação de Tereza Ventura, argumentando que:
A condição de excluído surge no discurso do rapper, nas lutas indígenas e étnicas, na imagem de grafites de rua, seja como arte ou como denúncia; a crônica do cotidiano circula no espaço onde o poder público e a mídia estão ausentes. Neste contexto, que papel teria uma política cultural? A política cultural seria a afirmação do
19 Cf. www.cultura.gov.br/culturaviva/a-lei-grio 20 Colegiado do Congresso Nacional que busca “debater temas estruturantes para a consolidação das políticas públicas culturais no país”. (Cf. http://frenteparlamentardecultura.org)
70
direito de uma existência pública em todo o significado de público, apesar da hegemonia de uma classe média educada como público e como destinatário de um discurso. Cabe às políticas públicas tornar público o ‘modus vivendi’ e as práticas daqueles concidadãos que vivem isolados por classes e escolaridade do processo de diferenciação e classificação dos bens e linguagens estéticas e culturais, processo em grande medida ocupado por grupos de elites (...) que estabelecem linguagens e relações verticais com aqueles que não são destinatários do seu discurso, mas o objeto de um discurso, seja ele estético ou político. A visibilidade deve transcender o caráter estético e ótico, a fim de traduzir a presença dos excluídos na produção e circulação de cultura (2010, p.121).
No caso da Lei Griô Nacional, a iniciativa de articular política cultural com
política educacional contribui para que esses saberes populares não sejam mais
colocados como tema secundário, ou subalterno, ocupando, de fato e de direito, os
espaços de construção do conhecimento. Sugere a elaboração e implementação de
conteúdos e práticas destinadas à valorização e legitimação dos saberes e fazeres
da cultura popular, da memória, e da preservação do patrimônio cultural imaterial
nacional.
2.4 Perspectivas futuras: lidando com as conquistas e dificuldades
A Ação Griô Nacional, embora relativamente recente, vem adquirindo grandes
proporções e conquistando os mais variados espaços e contextos. Assim, como em
todo projeto, além das conquistas, novos impasses e negociações passam a surgir
durante a caminhada, ou como afirma Moacir Gadotti:
Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em função das promessas que cada projeto contém de estado melhor que o presente (2000, p.37).
Nesta caminhada, em 2012, a Ação Griô iniciou a execução de um projeto de
implementação da Universidade Griô, que consiste num convênio com
universidades públicas do país para a realização de cursos de extensão, integrados
à diversas práticas de diálogo entre tradição oral, educação e cultura digital.
71
Tal ação, como as demais projetadas pela Rede Ação Griô, funciona numa
gestão compartilhada entre griôs e mestres de tradição oral, griôs aprendizes e
educadores griôs em parceria com as universidades públicas. Segundo seus
idealizadores:
O primeiro grande passo da Universidade Griô foi a participação ativa no Fórum de Pró-reitores de Extensão e Cultura para diálogo e implantação de políticas públicas relativas aos cursos de extensão nas universidades, em diálogo com a tradição oral brasileira. Os reitores identificam na iniciativa da Ação Griô uma estratégia inovadora e concreta para a realização dos objetivos acadêmicos da extensão no Brasil (Ação Griô Nacional).
A Universidade Griô já fechou parcerias e realizou suas primeiras ações, em
2012, com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com a Universidade
de São Paulo (USP). Na UFRJ, o projeto lançou o Laboratório de Políticas Culturais
Universidade Griô, “uma ação de pesquisa e extensão com gestão compartilhada
entre a universidade e movimentos sociais para elaborar, programar, hackear e
implementar políticas públicas para a cultura no Brasil” (Ação Griô Nacional). A USP
firmou sua parceria com a criação do curso de extensão na Pedagogia Griô e na
Produção Partilhada do Conhecimento, um curso que conta com a participação de
“tradicionalistas da capoeira angola, das etnias Karajá, Xavante e Bororó, e com os
griôs aprendizes Márcio Griô e Marcelo das Histórias”. (Ação Griô Nacional). Já
estão encaminhas, para 2013, as parcerias com a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG) e outras
universidades federais.
Um impasse enfrentado atualmente pela Ação Griô refere-se ao
cancelamento, por parte do Ministério da Cultura, das Bolsas de Incentivo Griô em
2010. Esta suspensão no repasse das verbas provocou dificuldades e até
cancelamento de ações de alguns pontos de cultura participante da Rede, fato
amplamente debatido durante o último encontro de avaliação da Rede Ação Griô.
Entre os dias 15 e 17 de março de 2012, aconteceu, na cidade de Lençóis, o
último encontro de avaliação e planejamento da Rede Ação Griô. O evento,
coordenado pelo Grãos de Luz e Griô em parceria com Ministério da Cultura,
72
Secretaria de Educação e Cultura de Lençóis e Secretaria de Cultura do Estado da
Bahia, envolveu, além de representantes do Ministério da Cultura, a Comissão
Nacional dos Griôs e Mestres de Tradição Oral, coordenadores nacionais e
regionais da Rede Ação Griô, e representantes de parceiros do Grãos de Luz e Griô.
Com o essencial objetivo de reforçar as parcerias firmadas com instâncias
governamentais, este encontro apresentou como principais resultados:
(i) Criação de vínculo e pactuação de gestão compartilhada com a
Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC MinC) em
relação à Rede Ação Griô Nacional, firmada com a secretária Márcia
Rollemberg;
(ii) Conhecimento e contextualização histórica para a SCDC MinC da
Rede Ação Griô através de relatos e memória da Ação de 2006 a
2012, entregando à SCDC MinC registros e produtos que
instrumentalizam o plano para 2012;
(iii) Criação de um plano para a Ação Griô Nacional 2012, com ações
conclusivas e ações de continuidade conjuntas entre a Rede Ação Griô
e a SCDC MinC, diante do contexto político e orçamentário atual de
ambos, dentro dos temas: editais de bolsas de incentivo Griô; projetos
de coordenação da rede Ação Griô; Lei Griô no congresso nacional; e
relatórios do edital de bolsas de incentivo Griô.
Outra questão a se enfrentar, é o desafio encontrado pela Ação Griô em se
consolidar nos territórios urbanos, seja pela grande quantidade de ofertas de
projetos socioeducativos e culturais já existentes, ou pela maior dificuldade em se
articular estratégias de mobilização comunitária. A esse respeito, em sua pesquisa
sobre a Associação Grãos de Luz e Griô e a atuação da Ação Griô Nacional no
Centro de Cultura e Educação Lúdica da Rocinha, Rio de Janeiro, Juliana Lopes da
Silva conclui que:
(...) ficou evidente ser necessário realizar avanços na relação estabelecida entre a proposta pedagógica [da Ação Griô] e os professores/espaço escolar. Reconheço que um primeiro diálogo
73
está consolidado, porém a integração entre os pontos de cultura e escola precisa de uma maior atenção e talvez de novas estratégias de troca e possíveis conexões (2009, p.83).
Para melhor compreendermos o alcance e os limites desta proposta, além do
contato direto com o Grãos de Luz e Griô e o acompanhamento dos
desdobramentos das ações da Rede em âmbito nacional, realizamos um
mapeamento das atividades desenvolvidas pelos Pontos de Cultura participantes da
Rede Ação Griô, na cidade de Salvador21. O intuito foi estabelecer uma aproximação
que nos permitisse compreender os trabalhos que vêm sendo realizados em
conjunto com a Ação Griô, mapeando os fracassos e as conquistas, e sinalizando
para as possibilidades que este projeto pode realmente apresentar no que diz
respeito à valorização e legitimação dos saberes populares e a integração destes
com os saberes institucionalizados.
2.4.1 Com a palavra, os Pontos de Cultura
Embora já discutida durante minha estada na sede do Grãos de Luz e Griô,
em Lençóis, a questão da dificuldade em se optar por uma metodologia “eficaz”
quando tratamos de investigar a cultura popular e seus mestres confirmou-se em
minha prática.
Preparei-me para as visitas aos pontos de cultura munida de roteiro de
entrevistas, câmera fotográfica e gravador, mas foram as serenas e demoradas
conversas com os representantes dos espaços e principalmente com seus mestres,
que possibilitaram a emergência dos fatos e constatações mais relevantes para
nossa investigação.
Assim, buscamos em cada encontro, percorrer de forma intensa os caminhos
que nos foram apresentados, observando as condutas, percebendo as falas,
aproveitando cada história, cada depoimento, apreendendo cada informação e
registrando relatos.
21 Atualmente a Regional Bahia conta com a participação de 7 pontos de cultura em Salvador. Efetuamos o contato e a visitação com 5 desses espaços.
74
Espaço Cultural Pierre Verger
Anexo à sede da Fundação Pierre Verger, o Espaço Cultural Pierre Verger foi
criado em 2005, com o objetivo de colaborar com o desenvolvimento social e com a
formação dos moradores da comunidade da Vila América, que abriga a Fundação,
no bairro do Engenho Velho de Brotas. Neste mesmo ano, o Espaço tornou-se um
Ponto de Cultura, através do programa do MinC.
Enfatizando a cultura afro-brasileira, o Espaço desenvolve projetos culturais,
cursos e oficinas que visam a contribuir para a formação pessoal de jovens, adultos
e idosos daquela localidade, favorecer o intercâmbio com a África (desejo de Verger
presente no estatuto da Fundação) através de uma abordagem mais ampla das
temáticas afro-brasileiras junto àquela população, além de inserir a Fundação
efetivamente na comunidade.
Segundo a coordenadora geral do Espaço, Angela Elisabeth Lühning,
Verger tinha uma aproximação com a comunidade, embora ele não tivesse feito um trabalho sistemático”. [Em sua época], “...os vizinhos vinham muito para fazer perguntas, pedir autorização para pesquisar, receber uma orientação ou uma informação sobre Orixás, folhas, etc. (...) Verger tinha interesse que aquilo que ele tivesse, servisse para o público local. Agora, nós da Fundação e do Espaço Cultural, de certa maneira, interpretamos e expressamos esse modo de ser de Pierre Verger (Fundação Pierre Verger).
Minha visita ao Espaço Cultural Pierre Verger foi previamente agendada pela
coordenadora, Angela Elisabeth Lühning. Cheguei ao espaço por volta das 13:30
horas, e me pediram que aguardasse um pouco, pois Angela estava a caminho. Me
acomodei num banco próximo a um local bastante amplo, chamado de “praça”, onde
alguns meninos se atracavam, brincando de “lutar”, esperando o professor da oficina
de esporte chegar para iniciarem a aula. Logo vi uma senhora, caminhando com
certa dificuldade, seguir em direção a uma mesa onde haviam várias folhas de
bananeira. Calmamente ela pegou uma pequena faca que estava no bolso de seu
avental e começou a retirar as folhas, deixando apenas o caule central. Ainda bem
devagar ela se dirigiu aos meninos, que continuavam “lutando”, dispôs os caules
paralelamente no chão, e começou a ensiná-los uma outra forma de luta que ela
75
conhecia, uma luta muito antiga, onde um oponente deveria derrubar o outro,
olhando sempre nos seus olhos, sem ultrapassar os espaços delimitados e tocando
apenas nos seus braços. Em pouco tempo outros meninos, marcando os espaços
paralelos com suas sandálias, experimentavam, também, essa “outra forma mais
antiga de luta”.
Neste momento veio a meu encontro a coordenadora pedagógica do Espaço
Cultural, Jucélia Teixeira, que me vendo acompanhar os passos da senhora, disse:
“Você já conhece vovó Cíci?”
Fomos, então, formalmente apresentadas. D.Cíci, ou vovó Cíci como é
carinhosamente chamada por todos, é mestre-griô do Espaço Cultural Pierre Verger.
Logo D.Cíci sentou-se ao meu lado, perguntou se eu já conhecia o espaço e
eu respondi que não, que aquela era minha primeira visita à Fundação.
Prontamente, ela disse: “Então chega mais perto. Olha, não é porque eu sou
contadora de história não, mas você sabia...”. Ali passei um bom tempo ouvindo as
histórias de D.Cíci, desde a época em que ela trabalhava diretamente com Verger,
quem ela chama de “meu fatumbi”, catalogando fotografias e organizando
documentos, histórias das crianças que ela ajudou a criar e hoje são seus “netos”,
da importância da Fundação para a comunidade, e até como preparar a folha de
bananeira para cozinhar o abará.
D.Cíci perguntou, então, sobre o motivo de minha visita ao espaço. Ao lhe
falar que se tratava de um trabalho sobre a Ação Griô Nacional, ela imediatamente
começou a contar que infelizmente a Pierre Verger não estava mais realizando as
atividades nas escolas, que depois que as bolsas de auxílio foram canceladas ficou
bastante difícil manter só com o voluntariado. “Eu ainda mantive as atividades
voluntariamente por 3 meses, mas só para eu poder me deslocar até as escolas já
estava ficando muito caro, aí não deu mais”(D. Cíci).
A Mestre relata que, para ela o Projeto Griô é muito importante,
principalmente para as crianças conhecerem as histórias da sua comunidade. Diz
ainda, que sente muita falta de ir até as escolas e as crianças também sentem falta
76
de suas visitas. “Quando elas me encontram na rua, ou aqui no espaço mesmo, elas
já perguntam: Quando a senhora vai na minha escola de novo?” (D.Cíci).
D.Cíci enfatiza também a relevância para ela de uma proposta como a da
Ação Griô, que possibilita que suas histórias e sua cultura conheçam outras pessoas
e outros lugares, e sejam conhecidas por eles. Segundo D.Cíci afirma no livro Ação
Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro (2008, p.138):
Ao trabalhar com Pierre Fatumbi Verger, meu amado pai, comecei a aprender e a me interessar pelas histórias do maior griô da nossa cultura jêje-nagô, (...). Ao ter meu nome somado ao Projeto Griô, vi realizado um sonho de levar um pouco da minha cultura além do Espaço Cultural Pierre Verger. (...) O Projeto Griô me deu a oportunidade de conhecer outros costumes, outras culturas e outras vivências das quais eu só ouvia falar, e a grande oportunidade de contar por aí histórias de deuses, homens, bichos e mil encantamentos. O Projeto Griô fez minhas histórias criarem vida.
Com a chegada de Angela, me despeço de D. Cíci, e nos dirigimos,
acompanhadas por Jucélia, para a sala da administração. Expliquei rapidamente
sobre meu trabalho de pesquisa e pedi que elas contassem um pouco como
funciona a parceria com a Ação Griô Nacional.
Angela inicia relatando que a parceria com a Ação Griô aconteceu pela
primeira vez há cerca de 4 anos, através do edital da Ação para os Pontos de
Cultura. Segundo a coordenadora, este primeiro trabalho aconteceu de forma
bastante consistente e efetiva. Os projetos contaram com a figura da mestre griô,
D.Cíci neste caso, como eixo principal, com a colaboração do griô-aprendiz na
mediação dos trabalhos com as escolas e com a parceria de duas escolas que
“abraçaram” a ideia do projeto.
Entretanto, especialmente após o cancelamento das bolsas de auxílio, as
ações passaram a ser mais espaçadas, sendo rompidos os ciclos dos projetos,
inviabilizando a realização de um trabalho contínuo e significativo. De acordo com
Angela, eventualmente há convites das escolas para que D. Cíci participe de
algumas atividades, o que acaba favorecendo o encontro do que é feito no espaço
da Fundação com o espaço da escola, mas isso tem ocorrido de forma bem pontual,
77
e totalmente desconectado da proposta da Ação. Atualmente o Espaço Cultural
Pierre Verger não desenvolve nenhuma ação nos espaços escolares de seu
entorno.
Angela relata a forma positiva como a proposta da Ação Griô foi recebida pelo
Espaço Cultural, influenciando inclusive na maneira de pensar e executar seus
projetos. Ela afirma também que acredita na importância da proposta da Ação Griô
para a educação, na importância das crianças, especialmente as socialmente
excluídas, compreenderem que seu lugar, sua comunidade, têm história, e que essa
história é repleta de fatos e pessoas especiais e importantes. Porém, a
coordenadora aponta alguns fatores que ela considera primordiais para que “a Ação
realmente se firme, e não se transforme em mais uma proposta copiada e esvaziada
de sentido” (Angela Lühning).
Para a coordenadora, a existência (presença) do griô-aprendiz é de
fundamental importância na mediação das relações entre as escolas, ONGs, e
mestres, inclusive no trato de assuntos mais burocráticos, como aproximação e
agendamentos com os espaços escolares. Neste sentido, além do voluntariado se
tornar bastante complicado, pois requer disponibilidade de tempo e flexibilidade de
horários, há ainda a dificuldade de se encontrar (identificar) a pessoa com perfil do
griô-aprendiz, ou seja, conectado com a comunidade local, articulado com a
educação formal, e que tenha proximidade com os mestres.
Um outro ponto diz respeito à necessidade de uma parceria mais efetiva do
Ministério da Cultura ou qualquer outra instância governamental, no sentido de dar
continuidade ao projeto que foi muitas vezes interrompido por corte nas verbas,
mudanças de prazos, etc... Para isso, Angela e Jucélia concordam que a aprovação
da Lei Griô poderia contribuir, “provocando a ‘obrigatoriedade’ de manutenção da
proposta, de cursos de formação, de discussões a respeito, e não ficar à mercê do
próximo secretário, ou se tem ou não verba” (Jucélia Teixeira).
Por fim, as coordenadoras apontam como uma das principais dificuldades a
dependência da gestão e corpo docente da escola “abraçar” ou não o projeto.
78
Quando essa parceria não se estabelece de forma concreta, fica difícil envolver o
corpo docente, tornando, muitas vezes, as intervenções pontuais, como se fossem
atividades extra curriculares ou um momento de lazer e, assim, raramente o material
produzido é utilizado nas aulas ou em outros momentos na escola.
Angela exemplifica relatando uma experiência do próprio Espaço Cultural ao
firmar uma parceria da Ação Griô com uma escola municipal do entorno. Segundo a
coordenadora, a diretora da unidade escolar na época deste trabalho era bastante
engajada nas discussões de questões raciais e sociais, o que facilitou a entrada e
atuação da proposta da Ação Griô neste local, promovendo inclusive, com esta
parceria, mudanças significativas na escola, tanto no aspecto físico (limpeza,
manutenção do patrimônio) quanto nas questões pedagógicas e de convívio social.
Entretanto, houve o deslocamento dessa diretora para outra unidade escolar,
provocando a instalação de uma nova gestão, a qual decidiu não dar continuidade
aos trabalhos desenvolvidos pelo Espaço Cultural na escola, resultando no término
da parceria. Angela relata que tempos depois chegou à ela a informação de que a
interrupção do projeto aconteceu em função da nova gestão escolar relacionar a
proposta da Ação à atividades de caráter religioso, referindo-se as religiões de
matrizes africanas, o que, além de não compor o “conteúdo” escolar, distanciava-se
bastante da concepção religiosa dessa nova direção.
Neste viés, Jucélia reafirma seu entendimento de que a implementação da
Lei Griô poderia contribuir para que o projeto da Ação Griô não fosse mais entendido
como um apêndice, um momento de contação de história ou de atividade extra
curricular. Para ela, é “importante que o saber de tradição oral não seja visto apenas
como folclore, mas que faça parte do currículo, que seja visto como um saber
legitimado e não apenas como um instrumento de festa”. Jucélia defende a
importância da Ação Griô, “especialmente para que nossas crianças, que, muitas
vezes, têm vergonha de falar onde moram, conheçam e se reencontrem com suas
histórias, seus personagens e seu valor, para que possa se estabelecer, a partir
desse reconhecimento, relações com outras realidades”.
79
Apesar do breve contato, a disponibilidade e o acolhimento das pessoas que
me acompanharam durante a estada no Espaço Cultural Pierre Verger
possibilitaram que muitas facetas de sua parceria com a Ação Griô emergissem.
Logo de início ficou evidente a relevância da presença da mestre griô, D. Cíci,
para o Espaço. Observei o lugar da mestre se confirmando com o respeito das
crianças pedindo sua benção ao chegarem para as atividades, com os educadores
narrando episódios onde, muitas vezes, a vivência e sabedoria de D.Cíci
ultrapassavam os conteúdos dos livros, com as coordenadoras destacando a figura
da mestre griô como eixo principal em todas as atividades desenvolvidas com a
Ação Griô, e, como pude testemunhar, o esmero de D.Cíci ao compartilhar seus
muitos saberes com as outras pessoas, dos visitantes às próprias crianças.
A presença de concepções e práticas apresentadas pela Ação Griô nas
atividades do Espaço Cultural também são visíveis. A valorização da figura do
mestre de tradição oral e de seus saberes ancestrais, a utilização das rodas para
realização das atividades, bem como a cultura popular local como norteadora das
ações, são alguns elementos que foram introduzidos pelo Projeto Griô, e ainda
contemplam as atividades do Espaço Cultural Pierre Verger.
E, por fim, a conversa com as coordenadoras deixou bastante claro que a
proposta principal da Ação Griô Nacional de aproximação dos mestres e saberes da
cultura popular de tradição oral com a educação formal não obteve o êxito esperado
inicialmente. Para Angela e Jucélia, ainda que considerem o projeto de extrema
importância, concordam que a proposta ainda está muito longe de atingir seus
objetivos, que há uma longa jornada a ser trilhada com muitos desafios a serem
vencidos.
Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió
A Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió (ECAIG),
surgiu nos anos 60, na cidade de Alagoinhas, interior baiano. Hoje, com instalações
80
no Pelourinho e no Forte Santo Antonio, em Salvador, a escola oferece aulas de
capoeira angola aos alunos e comunidade em geral.
“Enquanto escola de capoeira angola, os ensinamentos repassados pelo
mestre Curió adotam uma metodologia de ensino e aprendizado mantedor da
tradição da capoeira angola adotados pelo mestre Pastinha” (ECAIG)22.
Agendada anteriormente, minha conversa com mestre Curió aconteceu numa
segunda-feira à tarde, no Forte Santo Antônio23. Ao chegar no espaço de
funcionamento do seu grupo de capoeira, encontrei o mestre sentado numa cadeira,
ouvindo a televisão e remexendo alguns papéis. Apresentei-me, confirmei o
encontro combinado para aquele dia e perguntei se poderíamos conversar um
pouco. Ele me fitou por alguns instantes, levantou-se vagarosamente e arrastou uma
cadeira para que eu pudesse me sentar também. Então me perguntou: “Pois não, o
que a senhora deseja?”.
Expliquei ao mestre Curió as preocupações, objetivos e aspirações de minha
pesquisa, mencionando a relação com o Grãos de Luz e Griô e o projeto da Ação
Griô Nacional. Ao terminar minhas explanações, o mestre levantou seu olhar,
encarou-me, e disse: “Primeiro eu gostaria de fazer uma pergunta. Qual seu
interesse em estudar sobre isso?”.
Confesso que não esperava aquela pergunta. Busquei, então, trazer para
nosso diálogo além das motivações que impulsionaram a realização do estudo, um
pouco de minha vivência, de minha crença na riqueza de saberes inerente ao
universo da cultura popular e da importância, aos meus olhos, desses saberes e
fazeres dialogarem com os saberes escolares.
Mestre Curió inicia, então, nossa conversa. “Já vou logo te dizendo que eu
sou muito honesto, que o que eu tenho pra dizer eu digo logo, sou até conhecido por
22 Cf. http://ecaigblogspot.com.br 23 Construído no séc. XV, o Forte Santo Antônio Além do Carmo serviu de fortaleza durante as invasões Holandesas no Brasil. Em 2006, após passar por uma grande reforma, o forte foi reaberto como Forte da Capoeira – Centro de Referência, Pesquisa e Memória da Capoeira na Bahia, tendo como objetivos preservar e promover a capoeira.
81
aí como ‘encrenqueiro’, mas é porque se eu não concordar eu falo. Eu acho que a
universidade não ajuda a gente em nada. A universidade vem aqui, aprende com a
gente, usa o nosso saber e depois não dá nada em troca”.
A partir deste depoimento, mestre Curió relatou diversas situações onde sua
relação com a universidade se estabeleceu de maneira conflituosa, envolvendo,
segundo ele, até problemas com direitos autorais. Neste mesmo viés, o mestre
coloca que entende a postura do governo da mesma forma, como uma instância que
se aproxima da cultura popular e de seus mestres apenas com o intuito de servir-se
deles. Para ele, “O governo, a universidade não reconhecem nossa sabedoria nem
valorizam nosso trabalho, então porque eles querem se aproximar? Pra poder usar,
essa é a palavra, usar!”.
E assim, durante um bom tempo, mestre Curió discorreu sobre os mais
diversos episódios em que seus projetos ligados ao governo ou à universidade
resultaram em verdadeiros fracassos e decepções. Sua fala expressava muito
claramente sua incredulidade e desconfiança em relação a programas
governamentais e universitários destinados à cultura popular.
Assim, peço ao mestre que me fale um pouco sobre a maneira como funciona
a parceria entre o seu grupo de capoeira e a Ação Griô. Ele relata que a parceria
com o Grãos de Luz iniciou-se quando o seu espaço de capoeira virou Ponto de
Cultura. Afirma, entretanto, que já realizava um trabalho de levar a capoeira angola
para as comunidades carentes e para os meninos em situação de risco, muito antes
de estabelecer a parceria com a Ação, e que essa parceria contribuiu especialmente
com a questão financeira, pois as verbas que chegaram inicialmente permitiram uma
melhor realização das atividades e eventos do grupo.
Entretanto, problemas com o repasse de verbas do Ministério da Cultura para
a Ação Griô, e com a prestação de contas de alguns Pontos de Cultura levaram ao
bloqueio das verbas para diversas instituições, fato que mestre Curió relata com
bastante desapontamento. “Além do restante do dinheiro para nossos projetos
estarem presos, eu já tive que ir até Brasília prestar conta de coisas que eu nem
82
entendo. Eu acho que o pessoal de Lençóis tinha obrigação de dar uma assistência
jurídica pra gente, eu já falei com eles, ficaram de mandar alguém pra ajudar nessas
contas, e até agora nada. A gente entra no projeto, vai chegando dinheiro na nossa
conta, nós fomos fazendo o trabalho sem saber direito o que podia e o que não
podia ser feito. Graças a Deus, eu tenho um nome conhecido e respeitado, e eu
consegui esclarecer tudo, mas o dinheiro ainda tá lá, preso”.
Mestre Curió continua enfatizando a maneira como as propostas de trabalho
com a Ação funcionaram apenas no início, tanto na parte financeira, quanto na
efetivação de projetos. Para o mestre “O pessoal lá de Lençóis até tem boa vontade,
mas começaram a ficar grande demais e não deram mais conta. Só duas pessoas
pra resolver tudo. Eu acho que eles tinham que ter um grupo de pessoas pra dar
assistência aqui na Bahia, outro pra São Paulo, assim... cada um pra um lugar, aí
ficava melhor”.
Perguntei ao mestre se a efetivação da Lei Griô não poderia ser uma forma
de contribuir com o sucesso deste projeto junto aos grupos que participam dele. Ele
colocou que “a lei é outra forma do governo usar os mestres e o que a gente sabe
pra se promover. Fica que nem aquela lei de colocar a história da África nas
escolas, é só pro governo parecer que tá fazendo alguma coisa. Uma vez me
chamaram pra fazer um trabalho com a capoeira numa escola, pra atender essa lei.
Já começa que lá tem o caso do preconceito, porque a maioria é cristão e acha que
nós estamos mexendo com coisa de religião. Depois, quando veio um pagamento
pelo nosso trabalho, o valor da aula era 3 reais e qualquer coisa, não dava nem pro
transporte. Não é pelo dinheiro não, é pela desvalorização do nosso trabalho, por
usar um conhecimento nosso, que não está no banco da ciência, no papel, mas um
conhecimento que está nos 62 anos dentro do que eu faço, que é a capoeira
angola”.
No tempo que passamos conversando, muitos assuntos vieram à tona.
Mestre Curió contou passagens de sua vida como chefe de cozinha, histórias de
outros mestres que também têm seus espaços no forte, de sua dificuldade em
manter o espaço e de viver somente da capoeira; enfim, de como conduzia seu dia a
83
dia. Em todos os episódios narrados, o mestre deixa muito explícito seu
desapontamento e descrença nos projetos concebidos fora do universo da cultura
popular e que se propõem a contribuir, de alguma forma, com seu fortalecimento.
Denotando em muitos momentos uma revolta pessoal, para ele não há preocupação
ou intenção com a cultura popular em outras instâncias que não perpasse pelo
interesse.
Insisti com mestre Curió que eu realizava meu trabalho de pesquisa na
universidade porque acreditava que ele podia colaborar, de alguma maneira, com as
questões de valorização e legitimação desses saberes populares e de seus mestres;
ele me respondeu: “Eu estou vendo sua boa intenção, mas pode acreditar que você
é mais uma isca que estão jogando para pegarem nosso saber e se aproveitarem”.
Despedi-me de mestre Curió agradecendo muito nossa conversa, ao mesmo
tempo em que ele se desculpava pela sua extrema franqueza.
Fica evidente nas narrativas do mestre que muitos de seus posicionamentos
relativos às instâncias acadêmicas e governamentais são frutos de suas
experiências pessoais com esses universos. Experiências narradas que corroboram,
conforme debatemos anteriormente, com a perspectiva da habilidade de instâncias
hegemônicas em cooptar os saberes e fazeres desse rico universo que é a cultura
popular, usurpando sua criatividade, manipulando seu potencial crítico e contestador
e transformando-os em produtos de mercado.
Com relação à parceria firmada com a Rede Ação Griô Nacional, o
distanciamento das ações da Rede em relação ao Ponto de Cultura apontado nos
depoimentos do mestre, confirmou-se com a observação das atividades em
andamento e projetos futuros do espaço, que não apresentam, nem mesmo
mencionam, a parceria com a Ação Griô.
84
Associação Cultural Beneficente de Apoio aos Trabalhadores da Bahia (ACAT)
Instituição privada sem fins lucrativos, a Associação Cultural Beneficente de
Apoio aos Trabalhadores da Bahia foi fundada em 31 de agosto de 1999, com o
objetivo de capacitar adolescentes com ensino profissionalizante em artes plástica e
artesanato, inclusão digital e reforço educacional e alimentar, atuando no bairro da
Boca do Rio, Salvador, Bahia. No ano de 2004 foi selecionado como Ponto de
Cultura pelo Ministério da Cultura, passando a integrar também a Rede Ação Griô
Nacional com o projeto Sementes da Roça, referenciando o Terno de Reis de
Mestre Gaguinho.
Tendo à frente a griô-aprendiz Maria das Graças Santos da Silva, a ACAT
conta com a parceria de Mestre Gaguinho na fundamentação e execução da maioria
de seus projetos. Nascido na cidade de Santa Bárbara, interior do estado da Bahia,
Mestre Gaguinho é compositor, cantador, sambador e coordenador do Terno de
Reis24 Semente da Roça.
Cheguei ao espaço da ACAT pela manhã, uma casa simples no bairro da
Boca do Rio, recém alugada pela Associação. Fui recebida pela própria
coordenadora e griô-aprendiz Maria das Graças, que me pediu que aguardasse
alguns instantes, pois ela estava atendendo um grupo de senhoras da comunidade.
Pouco tempo depois fui encaminhada para uma das salas do espaço, onde nos
sentamos e iniciamos nossa conversa.
Apresentei-me a ela, expliquei sobre o propósito de minha visita, sobre meu
trabalho de pesquisa e então pedi que ela me falasse um pouco sobre a Associação
e a parceria com a Ação Griô.
Marias das Graças iniciou seu relato contando que a parceria com a Ação
Griô estava “muito devagar!!!”. Segundo a coordenadora, desde 2010, quando
24 Tradição que chegou ao Brasil por intermédio dos portugueses, no Terno de Reis, durante o mês de dezembro até o dia 6 de janeiro, um grupo formado por cantadores e instrumentistas percorrem as casas de uma localidade do início da noite até o amanhecer. Na chegada saúdam os donos da casa e pedem para entrar, louvam o menino Jesus, e a cantoria é cessada quando os moradores, a exemplo dos Reis magos, presenteiam o grupo com comidas e bebidas. Diz a tradição que quem recebe o Terno de Reis tem sua casa abençoada.
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houve o cancelamento das bolsas de auxílio financeiro para os mestres e griôs-
aprendizes, os trabalhos em parceria com a Ação quase não acontecem. Ela
colocou que, com o corte das verbas, a Associação acabou perdendo alguns de
seus colaboradores que precisaram trabalhar em outros lugares, e até mesmo o
próprio Mestre Gaguinho precisou retomar algumas atividades extras para
complementar a renda e sustentar sua família.
Maria das Graças relata ainda que os trabalhos de atendimento à população
do bairro da Boca do Rio pela ACAT já vêm acontecendo há algum tempo, antes
mesmo da parceria com a Ação Griô. Segundo a coordenadora a Associação
desenvolve seus projetos com apoio de editais e programas governamentais em que
são contemplados, e que inclusive foi através destes mecanismos que estabeleceu
a parceria com a Ação.
A coordenadora conta que a aproximação com as concepções e propostas do
projeto griô foi de fundamental importância tanto para a estruturação de novos
projetos da ACAT quanto para repensar e reorganizar os trabalhos que já vinham
sendo realizados pela Associação. Em seu relato, Maria das Graças explica: “por
exemplo, eu já conhecia Mestre Gaguinho há algum tempo, de outros trabalhos que
a ACAT realizou; eu sabia que a arte, a vivência do mestre podiam contribuir muito
com os nossos trabalhos, mas eu não sabia como agregar toda aquela sabedoria
aos objetivos dos projetos. Aí, quando eu conheci as propostas, o modelo de ação
do projeto griô, eu descobri que não era apenas possível, mas era necessário
desenvolver esse trabalho de resgate das tradições orais e de seus mestres,
especialmente para as comunidades tão carentes como a nossa”
Maria das Graças contou sobre alguns projetos que a Associação
desenvolveu em escolas públicas da região, destacando o projeto “caminho das
águas”, onde o objetivo era levar as crianças a conhecerem as etapas percorridas
pela água, até chegar às torneiras das casas. Este trabalho iniciou-se com Mestre
Gaguinho rememorando os percursos e histórias que envolviam as questões da
distribuição de água no bairro em tempos remotos. O Mestre refez, juntamente com
os alunos, os caminhos por onde corriam os riachos que antigamente abasteciam o
86
bairro; contou-lhes como alguns homens viviam da venda da água, que era
transportada dos riachos até os “fregueses” em pequenos barris carregados por
burros ou cavalos – dentre outros conhecimentos. Após a finalização desta primeira
etapa, seguiram-se as aulas e visitas a outros locais de tratamento e abastecimento
de água, dando continuidade ao projeto.
A coordenadora reforça que acredita ser muito importante esse modelo de
ação, que valoriza a cultura popular local e seus mestres, principalmente em regiões
onde a dificuldade financeira, a violência, a desestruturação familiar, dentre outros
problemas sociais são tão agravados. Para Maria das Graças, é necessário que as
crianças e jovens possam estabelecer relações positivas com os locais onde vivem,
perceber a importância histórica e cultural que cada local possui, valorizar suas
tradições, seus mestres, enfim, estabelecer relações de afeto com sua comunidade,
processos que, para ela, são amplamente contemplados pelas propostas e
concepções da Ação Griô.
Perguntei à coordenadora se ela acredita que a efetivação da Lei Griô
poderia, de alguma forma, contribuir para que projetos como esses possam ser
realizados nas escolas novamente. Graça afirma que não entende muito bem o que
a Ação pretende com essa lei: para ela, a lei do projeto Cultura Viva do Ministério da
Cultura já é suficiente para o funcionamento da Rede, desde que seus termos sejam
cumpridos.
A narrativa da coordenadora deixou bem claro o seu desconhecimento sobre
o conteúdo e a proposta da Lei Griô, bem como a situação em que se encontram as
tramitações legais para sua efetivação, denotando tanto uma alienação por parte da
ACAT sobre esse processo quanto um certo distanciamento da Ação Griô, no que
se refere ao suporte e acompanhamento deste Ponto de Cultura integrante da Rede.
No decorrer deste encontro – entre conversas, exemplos e observações –
ficou evidente que a ACAT funciona de acordo com os financiamentos (editais,
projetos governamentais) disponíveis. Seja na área cultural, de educação ou saúde,
87
o objetivo primeiro da Associação é atender, de alguma forma, a comunidade em
que está inserida.
Porém, ficou explícita também a relevância do encontro com o Projeto Griô
para a Associação. Embora não apresente uma única linha norteadora de seus
trabalhos, as concepções da Ação Griô, via de regra, encontram-se presentes em
suas ações. Um exemplo é o atual projeto em andamento no espaço que, em
parceria com a prefeitura municipal de Salvador, desenvolve na comunidade uma
campanha de melhoria na qualidade de vida, pautada na reeducação alimentar e na
medicina natural. Para isso, além da parceria com médicos e nutricionistas, a
Associação buscou nas rezadeiras e benzedeiras25 locais a sabedoria ancestral das
ervas medicinais para integrar o projeto.
Maria das Graças relata também que para o próximo ano de 2013, ela tem
um projeto de seguir a trilha de Mestre Gaguinho em sua cidade natal, Santa
Bárbara, pois afirma estar sentindo necessidade de conhecer mais a fundo sua
história, suas tradições, (re)viver seu terno de reis, enfim, como ela mesmo diz: “tem
hora que é preciso beber direto da fonte”.
Ao final de nosso encontro, agradeço a ela pela atenção e pela agradável
manhã que passei no espaço e me despeço, com Graça dizendo: “Qualquer outra
informação que você precisar e eu puder dar é só entrar em contato comigo, viu! Até
porque, mesmo se a Ação Griô acabar um dia – eu espero que isso nunca aconteça
– eu vou continuar fazendo este trabalho, eu vou ser sempre uma griô, sempre
aprendiz!”.
Grupo Cultural de Entretenimento Mamulengos da Bahia
O Grupo Cultural Mamulengos da Bahia nasceu na escola de teatro da
Universidade Federal da Bahia em 1975, quando alguns alunos do curso de
formação de atores participaram de uma oficina com um importante bonequeiro do
25 Originárias das culturas africanas e indígenas, as benzedeiras ou rezadeiras são curandeiras que, através da sabedoria popular das rezas e do uso medicinal das ervas, tratam de diversos “males” do corpo e do espírito.
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Recife, despertando um interesse especial em Elias Bomfim dos Santos (fundador
do grupo) pela arte e pela manutenção da tradição do teatro de mamulengo na
Bahia.
Com sede no Pelourinho e uma filial em São Tomé de Paripe, subúrbio de
Salvador, o Grupo Mamulengos da Bahia trabalha viabilizando a formação de novos
bonequeiros e grupos de teatro de bonecos em comunidades carentes, além de
utilizar-se da arte do boneco de mamulengo como ferramenta pedagógica em
projetos sociais e educacionais nas escolas públicas da cidade.
O encontro com Mestre Elias aconteceu no bairro de Tubarão, Subúrbio
Ferroviário, local onde reside. Sentados à beira mar, na companhia da griô-aprendiz
Adriana Rosário dos Santos iniciamos nossa conversa. O mestre começou falando
sobre sua história pessoal com o teatro de bonecos, contou sobre a formação do
grupo de bonequeiros e de como “o medo da arte do teatro de bonecos acabar levou
um grupo do curso de teatro da UFBA a fundar o Mamulengos da Bahia”. Continuou
explicando como funcionam hoje seus projetos dentro do ponto de cultura e do
centro cultural que eles fundaram no bairro de Tubarão, e sobre a relação de seu
trabalho com a escola local. Mestre Elias relata que a parceria com a escola já vem
acontecendo há algum tempo, o que contribuí para que direção, gestão e
professores colaborem com a realização de diferentes trabalhos na unidade escolar;
além de parte dos alunos da escola também frequentarem os cursos oferecidos pelo
centro cultural, facilitando o diálogo. Segundo o Mestre, “esses jovens da escola,
que participam das atividades do centro cultural, eles próprios procuram trazer
outros jovens, os amigos, para a arte do teatro de bonecos”.
Ao enfatizar que o grupo de teatro de bonecos é sempre convidado para
participar de eventos promovidos pela escola, pergunto sobre a relação de sua arte
com o cotidiano escolar, com os processos de ensino e aprendizagem, para além
das festividades. Mestre Elias coloca que neste sentido se sente um privilegiado,
pois sua arte, o teatro de bonecos, é também muito requisitada como ferramenta
para o ensino das disciplinas, o que favorece sua permanência na escola. Adriana
complementa, afirmando que “os professores descobriram que o teatro de bonecos
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é uma possibilidade de ensino muito prazerosa, pois realiza o aprendizado através
do lúdico, da brincadeira, que é muito mais próximo da linguagem das crianças,
muito mais fácil e eficiente que os métodos convencionais”. Mestre Elias conclui,
afirmando que não enfrenta dificuldades para trabalhar com a escola da
comunidade, pois tem acesso livre para criar e realizar suas atividades no espaço
escolar, para ele, a dificuldade está mesmo em fazer com que próprios jovens se
interessarem pela arte. “Com tanto bombardeio de informação da mídia de massa é
muito difícil fazer os meninos se interessarem pelas cantigas de roda, pelas nossas
histórias, pela arte dos bonecos. Eu já fiz trabalhos em muitas comunidades, em
diferentes locais, e a maior dificuldade mesmo é fazer com que os meninos
apreciem uma outra cultura que não as da grandes mídias” (Mestre Elias).
Aproveito o momento e pergunto se a parceria com a Ação Griô Nacional não
tem como proposta justamente interferir, modificar este cenário, onde as
manifestações da cultura popular são, quase sempre, folclorizadas e
desvalorizadas? Mestre Elias relata que quando conheceu e se aproximou das
propostas da Ação o que ele vislumbrou foi um meio de fortalecer um trabalho que
ele já desenvolvia e acreditava, a manutenção e valorização de uma cultura popular
de tradição oral que estava desaparecendo, o teatro de bonecos. Ele narra: “Quando
eu conheci a proposta da Ação Griô eu descobri que eu era um griô, e que eu podia
espalhar a semente, manter viva a arte do teatro de bonecos e possibilitar que
jovens envolvidos com os projetos percebam que há outras alternativas na vida”.
Sobre a parceria com a Ação Griô atualmente, Mestre Elias afirma que o que
vem acontecendo são ações bastante pontuais, participações esporádicas em
projetos e oficinas na sede do Grãos de Luz, alguns encontros para discutir sobre a
Lei Griô, mas nada sistemático. Segundo o mestre, desde o ano de 2010, quando as
bolsas de auxílio financeiro foram canceladas, não são efetivados projetos contínuos
em parceria com a Ação. O mestre afirma ainda que, “o grupo Mamulengos da
Bahia já tem um trabalho consolidado de muitos anos, então, quando a parceria com
a Ação Griô funciona, potencializa suas ações, inclusive pelo suporte financeiro.
Mas, como agora, que já estamos há uns 2 anos sem a parceria, os trabalhos do
90
grupo e do centro cultural continuam acontecendo. Já os pontos de cultura que se
estruturam especificamente para as atividades da Ação Griô, hoje não estão
conseguindo funcionar”.
Pergunto então ao mestre se a efetivação da Lei Griô não poderia ajudar a
modificar essa situação, e ele argumenta: “Eu não acredito que assinar uma lei vá
mudar muita coisa. A lei vai sim ajudar no sentido dos mestres terem suporte
financeiro, pedagógico e de estrutura com as bolsas para realizar seus trabalhos,
mas como eu já disse antes, a dificuldade de consolidar essa proposta está em tocar
as pessoas, em fazer elas entenderem a importância desses saberes da cultura
popular de tradição oral para a vida”.
Mestre Elias finaliza nosso encontro afirmando que para ele “esse trabalho da
Ação Griô é muito bom e muito importante, mas também acho que esses meninos,
Márcio e Líllian, tem um grande desafio aí pela frente”.
A conversa com Mestre Elias evidenciou que o encontro com as propostas
da Ação Griô contribuiu para fortalecer um trabalho, já em curso, de reconhecimento
e valorização da cultura popular de tradição oral – neste caso o teatro de bonecos –
reforçando o lugar de importância dos mestres e griôs, viabilizando projetos e
potencializando ações. Apontou, também, como em outros momentos, que esta
parceria não vem se estabelecendo de maneira efetiva. O distanciamento entre a
Ação Griô e os espaços parceiros, bem como a escassez de recursos financeiros,
vem inviabilizando ações mais contínuas e a consolidação da proposta junto aos
pontos de cultura participantes da Rede Ação Griô.
Grupo de Capoeira Ginga e Malícia
O Grupo de Capoeira Ginga e Malícia, tendo como líder Valcir Batista Lima –
Mestre Marinheiro – nasceu na Baixa da Égua, comunidade do bairro do Engenho
Velho da Federação. A entidade se destaca pelo ensino e divulgação da capoeira
regional e pelos projetos sócio-culturais e educacionais que desenvolve na
comunidade.
91
Com aproximadamente 20 anos de existência, o grupo tem como objetivo
preservar as tradições culturais através da capoeira, desenvolvendo ações culturais
e educacionais na comunidade em que está inserida.
O encontro com Mestre Marinheiro aconteceu na orla de Salvador, local onde
ele trabalha como salva vidas. Ao chegar apresentei-me, falei sobre o projeto de
minha pesquisa e sobre os propósitos da visita. Pedi, então, que ele me contasse
um pouco sobre a parceria com a Ação Griô. Mestre Marinheiro foi logo afirmando
que “o encontro com a Ação Griô, com Márcio e Líllian, foi uma maravilha, uma
benção para nós que trabalhamos para o fortalecimento da cultura popular”.
Marinheiro narrou como o encontro com a Ação Griô foi importante para seu
trabalho, tanto no sentido de dar visibilidade ao que ele já vinha fazendo quanto pela
possibilidade de aprender com as trocas de informações e conhecimentos que eram
gerados nos encontros promovidos pela Ação e/ou pelo Ministério da Cultura,
através das Teias de Cultura26.
O Mestre relembra alguns destes momentos pontuando a beleza do encontro
com as diferentes etnias indígenas; a aprendizagem construída com as mais
diversas manifestações da cultura popular, oriundas de vários cantos do país; e a
possibilidade, neste manancial cultural, de divulgar o seu saber, que é a capoeira.
Neste contexto, Marinheiro destaca também a relevância deste processo para que
os próprios mestres da cultura popular se autorizassem produtores e socializadores
de conhecimentos e ocupassem seus lugares de importância cultural e social. Ele
afirma: “sabe lá o que é pra uma cara lá da roça, lá da favela, onde ele não era
nada, pegar um avião e entrar num hotel cinco estrelas em São Paulo para discutir
com gente do governo sobre política de cultura? Você sentar, conversar, discutir, de
igual para igual, e no final do dia ter lá um documento com as propostas, os
encaminhamentos? Isso era um aprendizado e uma conquista!”
26 Teia é o encontro nacional dos Pontos de Cultura, e também os encontros regionais que integram o Programa Cultura Viva.
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Em outras oportunidades durante nossa conversa, Marinheiro ainda destaca
as possibilidades que as propostas da Ação Griô trouxeram para que os mestres
pudessem se firmar e se afirmar enquanto agentes culturais, políticos, educacionais
e sociais, dentro e fora de suas comunidades de pertencimento, ocupando
diferentes papéis e lugares sociais.
Neste viés, a partir de sua vivência na capoeira regional, ele aponta a
dificuldade que a capoeira e seus mestres têm em ser reconhecido e valorizados
para além do espetáculo, especialmente aqui no Brasil. Em seu relato Marinheiro
diz: “me lembro quando eu tentava fazer algum trabalho nas escolas e era barrado
na hora porque os professores achavam que aquilo não era importante, ou que ali
não era lugar. Veja bem, eu não tô falando dos porteiros, das cozinheiras, que não
têm estudo, eu tô falando dos que tiveram instrução, os professores! Eu já tive
algumas experiências fora do país, e pra mim foi muito diferente. Nos lugares que eu
visitava, que eu passava, eu era valorizado, eu era respeitado como mestre de
capoeira.” O Mestre continua sua narrativa, colocando que, para ele, as concepções
e práticas da Ação Griô contribuem muito com esses processos de reconhecimento
e valorização da cultura de tradição oral e de seus mestres.
Pergunto, então, como vem se estabelecendo essa parceria. Com bastante
penar, Marinheiro afirma que desde que a nova presidente assumiu o governo e
efetuou algumas mudanças no MinC, todas as ações foram interrompidas. Para ele,
um dos motivos refere-se à mudança no quadro de funcionários – apontando para o
descaso e o desinteresse por parte dos atuais ministros e secretários. Outro
argumento refere-se ao cancelamento das verbas, ocorridas em função do corte nos
financiamentos e dos ajustes nas prestações de contas de recursos já
contemplados. Segundo o Mestre, “Eles [o governo] deram o dinheiro e uma oficina
explicando como prestar contas. Nós fizemos exatamente como foi orientado por
eles, e depois, não era mais daquele jeito! O que eu posso fazer, se a orientação
veio deles? O pior é que tem um monte de pontos de cultura nessa mesma situação,
com verba presa lá!”.
93
O Mestre continua, quase num desabafo, afirmando que está cansado de
“nadar contra a corrente”, que ele está vendo sua comunidade cair nas mãos do
tráfico, aumentando a violência, e não consegue fazer nada, se sente de mãos
amarradas. Ele enfatiza que o encontro com a Ação Griô fortaleceu suas atividades
e orientou muitas ações, mas que ao longo destes mais de 20 anos de trabalho na
sua comunidade, ele aprendeu que para as coisas funcionarem é necessário
dinheiro. Segundo Marinheiro, “As conversas se vão e o dinheiro dos projetos é que
fazem eles funcionarem. O dinheiro dos editais chega, você implementa o trabalho,
e depois não tem como dar continuidade. Eu não posso pagar um professor, fazer
uma manutenção nos equipamentos, e tudo mais. Acabam sendo projetos com
duração de um ou dois anos, e não é isso que a comunidade precisa!”.
Questiono qual o papel da Lei Griô neste processo. O mestre afirma que ele
entende a lei como um apoio para as escolas, para a educação, mas que,
particularmente no seu caso não será muito eficiente, uma vez que ele já tem um
trabalho bastante consolidado na escola pública local. Para ele, a falta absoluta da
presença do Estado, nos mais diversos sentidos, é que vem guiando a sua
comunidade para o caminho perverso que ela está tomando hoje.
A conversa com Mestre Marinheiro apontou que, a principal contribuição que
a parceria com a Ação Griô trouxe para seu espaço de trabalho foi o fortalecimento
do lugar de importância política, cultural e social da cultura de tradição oral e de
seus mestres, promovendo situações e experiências de valorização e
reconhecimento destes mestres e de seus saberes. Denotou, também, que a
parceria não vem se efetuando e que a falta de apoio das instâncias governamentais
aparece, novamente, como responsável por esse enfraquecimento.
Enfim, a aproximação com os espaços parceiros da Ação Griô Nacional
revelou que o encontro com as propostas da Ação Griô contribuiu, de algum forma,
com o fortalecimento dos trabalhos de valorização da cultura de tradição oral que
esses espaços já realizavam. Seja na ampliação dos projetos, no encontro com os
griôs e com as escolas, no reconhecimento do lugar de importância dessas
manifestações e de seus mestres, ou mesmo na questão financeira (apontada aqui
94
como uma das partes fundante das parcerias), essa aproximação vem revigorando
concepções e práticas de afirmação e valorização da cultura popular de tradição
oral.
Entretanto, de acordo com os próprios pontos de cultura, essa parceria não
tem mais se efetivado, sendo apontado como principal causa o corte – por parte do
Ministério da Cultura – nas verbas para os projetos da Ação Griô. Essa situação de
distanciamento além de enfraquecer, ou mesmo findar, os propósitos e objetivos da
Ação, ratificam uma relação de dependência com as instâncias governamentais e
legais que acabam por subordinar a execução e êxito da proposta às ofertas
advindas dessas instâncias. É tão evidente a necessidade de suporte financeiro
para a execução de qualquer projeto, quanto a importância das contribuição do
Estado nestas questões. Entretanto, o que apontamos aqui, é a necessidade de um
cuidado para que essa parceria com o poder público não se torne uma condição de
existência, e que assim, a autonomia e autenticidade dessas propostas sejam
garantidas.
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3 CAPÍTULO 3 – DIALOGANDO COM A REALIDADE
Com inspiração na Bahia
Contra a escravidão e a opressão
Malês
Ícones da insurreição
E o poder da África? Esta aqui
E a força da África? Esta entre nós
E a comunidade negra clama numa só voz:
Reparação já, não estamos sós!
Trecho da música: Malê, a insurreição (Malê Debale e Emicida).
Para melhor acompanhar e compreender as propostas e ações desenvolvidas
pela Ação Griô Nacional, bem como identificar suas potencialidades no que se
refere ao diálogo com a educação formal, foram necessárias aproximações com
diferentes instâncias.
Num primeiro momento, mais do que conhecer, foi essencial vivenciar o
Projeto Griô, entender sua filosofia, suas origens, de onde veio e para onde
pretende ir. Para isso, como já descrito27, estivemos na sede do Grãos de Luz e Griô
em Lençóis, participando de suas atividades, conhecendo suas ações, descobrindo
seus atores e visualizando seu alcance.
Com o intuito de mapear e compreender o alcance político e educacional que
a proposta da Ação Griô Nacional vem atingindo (ou possa atingir), buscamos
conhecer mais detalhadamente os projetos realizados pelos Pontos de Cultura
participantes da Rede Ação Griô, na cidade de Salvador. Assim, conforme já
explicitado28, através da aproximação com estes locais, visamos traçar um
panorama geral dos intentos e trabalhos desenvolvidos pela Ação em parceria com
estes espaços.
27 Cf. seção 2.1. 28 Cf. seção 2.4.1.
96
E, por fim, de maneira mais sistemática, acompanhamos os trabalhos
desenvolvidos pela escola municipal Malê Debalê, local de atuação da Ação Griô
Nacional, buscando identificar as propostas da Ação em seu cotidiano, bem como
diagnosticar as implicações que a aproximação com o projeto griô vem
apresentando nas práticas e procedimentos desta comunidade escolar.
3.1 Primeiras aproximações
O encantador encontro com o espaço da escola Malê Debalê se deu de forma
inesperada. Pouco tempo depois de minha estada na sede do Grãos de Luz e Griô,
na cidade de Lençóis, recebi o convite de Márcio Caíres para participar de um
evento que aconteceria na cidade de Salvador, no espaço de uma escola municipal
do bairro de Itapuã, e contaria com a presença do Grãos de Luz e Griô.
Assim, no dia 10 de junho de 2011, pela manhã, me dirigi ao endereço
enviado por Márcio. Chegando ao local, para minha surpresa, tratava-se de uma
escola municipal localizada no mesmo espaço de funcionamento do tradicional bloco
afro baiano, o Malê Debalê. Ao adentrar aquele espaço, deparei-me com um
ambiente físico que em nada remetia a uma escola pública convencional. Paredes
matizadas, emblemas e cores do bloco carnavalesco Malê Debalê, painéis pintados
com os rostos de heróis negros e indígenas – outros símbolos e referências.
Naquele momento, foi impossível identificar o que era escola e o que era bloco.
97
Paredes do refeitório. Escola Municipal Malê Debalê.
Com o início das atividades, descobri que se tratavam de parte de um curso
de formação continuada para professores promovido pela instituição durante todo o
ano de 2011, que apresentou como tema geral: Caminhos da Escola: Vivências e
Saberes para a Inclusão das Relações Étnico-raciais. Segundo a direção da escola,
tratava-se de um projeto sistematizado pela professora da unidade e griô-aprendiz,
Edméia Nascimento, que tinha como parte dos objetivos apresentar e introduzir
concepções e práticas da Ação Griô naquela comunidade escolar (alunos,
professores e gestores), a partir da discussão de temas relevantes para o cotidiano
do espaço. Assim, a realização deste curso efetivou 22 encontros, reunindo
professores, gestores, poder público, educandos, palestrantes e mestres da cultura
popular, abordando e discutindo temáticas relativas: à convivência pacífica entre
religiões, às relações étnico-raciais, aos afro-ameríndios para o processo de
democratização, às temáticas indígenas na escola, ao racismo institucional, aos
quilombos urbanos, dentre outras.
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Nesta ocasião, o tema específico abordado foi: Vivências e saberes com
mestres e griôs de tradição oral. Este encontro, sob a orientação de Edméia
Nascimento (Mel Griô), contou com a participação de grupos e mestres da cultura
popular, representantes da Secretaria Municipal de Educação, de Pontos de Cultura,
e do Grãos de Luz e Griô. As impressões neste dia foram bastante positivas. Havia
uma participação efetiva das professoras da escola durante as palestras e
dinâmicas propostas; algumas apresentações de canto e dança protagonizadas
pelos alunos da unidade demonstravam o envolvimento e a alegria das crianças em
participarem do projeto; e notava-se, também, uma mobilização de todos os
funcionários da escola na organização do evento.
Atividade cultural apresentada durante o curso de formação: Caminhos da Escola: Vivências e Saberes para a Inclusão das Relações Étnico-raciais. Escola municipal Malê Debalê, junho/2011.
No decorrer das atividades pude conversar com algumas professoras e
coordenadoras da escola sobre o projeto de formação continuada, e as opiniões e
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expectativas eram sempre otimistas em relação aos resultados e possibilidades
criadas com a iniciativa.
Neste mesmo evento, relatando meu interesse a respeito dos temas
abordados durante o curso e colocando meus anseios em relação ao projeto de
pesquisa, houve o convite, por parte da diretora da unidade, Rosyvone Pereira, para
que eu me aproximasse do espaço. Dessa forma, esse encontro representou o
primeiro dia de minha pesquisa de campo, a qual se estendeu por toda trajetória de
construção deste trabalho.
Costumo afirmar que eu não escolhi o campo de minha pesquisa, fui
escolhida por ele. Reconheci naquele espaço um mundo de contextos, pessoas,
informações e possibilidades conectados diretamente ao cerne do meu trabalho.
Além de me encontrar com um espaço público de educação formal em diálogo direto
com as propostas da Ação Griô, me percebi diante de um manancial de nuances e
subjetividades aflorando num local onde a tradição de um bloco afro, o Malê Debalê,
mistura-se, cotidianamente, com a vida escolar de sua comunidade.
Fundado em 23 de março de 1979, no bairro de Itapuã, a Sociedade Cultural,
Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê, ou simplesmente bloco afro Malê Debalê,
foi criado por um grupo de moradores que desejava ver seu bairro representado no
carnaval de Salvador.
Os diálogos com as vivências trazidas por jovens de outros bairros, moldados
ao jeito “Itapuazeiro” de ser, formaram o alicerce para a criação de uma entidade
que “além de carnavalesca e promotora de valores significativos da cultura negra,
também fosse um espaço de afirmação positiva da história e do sentido do bairro de
Itapuã, da Lagoa do Abaeté e arredores” (Malê Debalê).
Assim, para os fundadores do bloco:
(...) é possível afirmar que a história do Malê Debalê se confunde com os mistérios da Lagoa do Abaeté, fonte de inspiração e afirmação de uma comunidade composta por pescadores, lavadeiras, quituteiras, artesões e artistas. Aqui, um espaço de possibilidades e encantos (Malê Debalê).
100
Segundo Carlos Eduardo Santana:
O nome do bloco é uma homenagem aos Malês, negros muçulmanos, que lutaram contra o processo de escravidão, representando na Bahia, uma resistência ativa. Portanto, o Malê Debalê , como afrodescendente, tem na história dos Malês, um mito de referência, o que de certa forma confere a missão de não apenas contá-la, mas, principalmente, se tornar um exemplo dessa história, seguindo e interferindo na cultura baiana com a mesma postura de resistência à dominação de seus ancestrais (2009).
Josélio de Araújo, membro fundador e atual presidente do bloco,
complementa afirmando que o nome Debalê foi uma criação de seus próprios
fundadores, e que traduz uma ideia de positividade, de alegria.
Parte da trajetória do bloco pude conhecer através das longas e prazerosas
tardes que passei conversando com Seu Délcio Silva, mais conhecido como Seu
Peruano, 74 anos de vida, há 42 anos morador de Itapuã, membro e funcionário do
Malê Debalê desde sua fundação.
Foram vários os momentos em que passei sentada à frente da sede do bloco
conversando com Seu Peruano. Conversávamos sobre muitos assuntos, sobre
política, sobre a história do bloco, a história de Itapuã, sobre a escola, e outros.
Porém, quando pedi que ele me concedesse um “entrevista”, onde eu pudesse
gravar ou anotar as informações, ele logo se recusou. Disse que não, que para isso
ele precisava se preparar. Mas nunca Seu Peruano se preparou para nossa
“entrevista”. Assim, desisti de entrevistá-lo, continuamos nossas prosas mesmo,
cheias de memórias e histórias, e que, autorizadas por ele, contemplam este
trabalho.
101
Seu Délcio Silva, Seu Peruano.
Segundo Seu Peruano, o bloco foi criado para levar o carnaval para o bairro
de Itapuã, que não participava do carnaval de Salvador. “No início a sede do bloco
era num outro lugar; era tudo aberto, tinha os ensaios e a comunidade ficava num
areião que tinha perto da lagoa [do Abaeté]”29. Ele narra como o lugar ficava repleto
de gente de todas as idades brincando e dançando. Conta saudoso, como Abaeté
era bonita, com a areia branquinha e as lavadeiras trabalhando lá, mas que hoje não
se pode mais, e que se tornou até um local bastante perigoso, com muitos assaltos.
29 Lagoa de águas escuras, cercada pelas areias brancas das dunas, Abaeté situa-se na área de proteção ambiental do Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté, no bairro de Itapuã, Salvador, BA.
102
Atualmente o bloco afro Malê Debalê possui sede própria, localizada no
Parque Metropolitano do Abaeté, onde ocorrem os ensaios para o carnaval, bem
como outras atividades ligadas ao bloco, como festas, aulas de dança, de capoeira,
e de percussão para crianças (malezinho).
Com relação à escola, Seu Peruano relata que foi iniciativa da vereadora
Olívia Santana que, ao conhecer a localização, o espaço e a comunidade que o
Malê Debalê atendia, lançou a proposta. Assim, os dirigentes do bloco se reuniram,
discutiram e acataram a ideia, uma vez que o espaço físico ficava ocioso durante a
semana, e essa seria uma forma, também, de atender a população do entorno. Para
Seu Peruano a escola é muito importante para aquele local, pois “é um lugar onde
os meninos podem se encontrar, se conhecer, já que o Malê é, praticamente, a
única opção pra nossa comunidade, até de lazer mesmo”.
E assim, desde 2006, o bloco cede parte de seu espaço para o
funcionamento de uma escola de educação infantil e ensino fundamental, que
passou a se chamar Escola Municipal Malê Debalê.
Durante o primeiro semestre de minha estada na escola, continuei
participando dos eventos relativos ao curso de formação continuada, além de visitar
o local em dias variados. Com esta aproximação, em 2011, embora meu
relacionamento com as professoras e gestoras tenha se estreitado bastante,
procurei não intervir diretamente nas atividades realizadas. Limitei-me a observar e
perguntar, informalmente, sobre alguns hábitos e procedimentos que ocorriam. Essa
forma de aproximação, menos direcionada, possibilitou meu trânsito por diversos
espaços e momentos do cotidiano da escola. Pude estar nas salas de aula,
observando métodos e condutas, nas festas, no pátio durante os intervalos,
observando as relações entre os alunos e dos alunos com os professores e
funcionários, a relação das famílias com a escola, da escola com o bloco afro que
divide o espaço; enfim, transitar pelo que havia de formal e informal na escola.
Em fevereiro de 2012, com início do ano letivo, dei continuidade ao trabalho
de campo, agora de maneira mais sistemática. Amparada por um carinhoso
103
acolhimento da gestão e corpo docente da escola, minha presença no espaço
tornou-se mais frequente e efetiva. Passei a colaborar com a construção e
elaboração de projetos, a me envolver com a organização dos eventos, além de
assumir a realização de algumas atividades. É nesta nova etapa do trabalho
empírico que minhas relações com esta comunidade escolar se estreitaram, que me
foi permitido partilhar os sucessos e os fracassos daquele cotidiano, e que assim, de
alguma forma, passei a também fazer parte daquele universo.
Este intenso envolvimento com o local da pesquisa possibilitou minha
imersão naquele contexto, e a emersão de uma gama de informações, observações,
impressões e sensações que, unidas às concepções teóricas e metodológicas que
alicerçam este trabalho, delineiam o corpo de nossas discussões e compreensões.
3.2 Perspectivas metodológicas
A metodologia, em geral, mostra-se uma parte bastante complexa do trabalho
científico. Como observa Minayo (1994, p.43), “mais que uma descrição formal dos
métodos e técnicas a serem utilizados, indica as opções e a leitura operacional que
o pesquisador faz do quadro teórico”. Dessa maneira, toda prática de pesquisa tem
uma filosofia do pesquisador implícita, intencional ou não, onde diferentes
concepções da realidade implicam diferentes abordagens na escolha metodológica.
Como dito anteriormente30, este trabalho de pesquisa pretende abranger,
alicerçado pelas ações da Ação Griô Nacional, as contribuições que o diálogo com
os saberes populares podem trazer para as práticas educativas escolares. Para
isso, além de rastrear e mapear as atividades da Ação Griô Nacional, buscamos
investigar as concepções e práticas dos professores e gestores da escola municipal
Malê Debalê, local de inserção desta Ação e campo desta pesquisa. Dessa forma,
nos aventuramos por um terreno complexo de relações, contradições e hierarquias,
que envolve valores e atitudes de diferentes sujeitos, com diferentes referências
sociais e históricas.
30 Cf. Introdução.
104
Neste sentido, tanto o contexto quanto o objetivo deste estudo nos conduzem
à uma compreensão mais profunda de determinados fenômenos sociais, apoiados
na condição de maior relevância dos aspectos subjetivos, não podendo, portanto,
serem reduzidos a elementos quantificáveis. Assim, foi feita a opção pela pesquisa
qualitativa.
Segundo Minayo (1994), a pesquisa qualitativa:
(...) se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalizações de variáveis (p.22).
Dessa forma, há na essência da pesquisa qualitativa um profundo
envolvimento com as subjetividades, condição ímpar para investigações referentes
ao mundo social, pois suas análises prescindem o contexto apenas dos fatos
observáveis e se estruturam muito mais na compreensão das particularidades e
significados dos fenômenos. De acordo como Macedo (2004, p.82), “é no seio da
história das epistemologias qualitativas que percebe-se um resgate e uma afirmação
da subjetividade enquanto âmbito significativo para se compreender pela pesquisa a
especificidade da ação humana em sociedade”.
Nesta perspectiva, Merleau-Ponty aponta que:
A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo (...). O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade.... (1999, p.18).
Assim, inspirados pela fenomenologia crítica como movimento filosófico
desta pesquisa, procuramos desvendar os fenômenos para além das aparências,
aguçando o olhar para o mundo dos significados implícitos, que permeiam o mundo
social.
Masini sugere ainda que, o enfoque fenomenológico:
105
(...) furta-se a validação do já conhecido sem prévia reflexão e volta-se para o não pensado, através de uma reflexão exaustiva sobre o objeto do seu estudo, denunciando os pressupostos subjacentes (1989, p.66).
Entendemos, então, como fundamental para desvendar esses campos de
significados das ações e relações humanas a imersão na realidade observada,
buscando na convivência, na interação máxima com o grupo investigado e nas
relações ali construídas cotidianamente, o substrato para compreender em
profundidade certos fenômenos.
Assim, fortalecemos nossas relações com a escola municipal Malê Debalê,
intensificando a presença no local, maximizando as participações nas atividades,
interagindo com os atores escolares, ou seja, compartilhando a vida cotidiana da
comunidade escolar, pois, como afirma Brandão (1984, p.38), “a convivência do
investigador com a pessoa ou grupo estudado cria condições privilegiadas para que
o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma compreensão que de
outro modo não seria possível”.
Neste viés, assumimos os princípios da observação participante como
ferramenta metodológica para a condução desta pesquisa.
Segundo Queiroz (2007), a observação participante consiste na inserção do
pesquisador no interior do grupo pesquisado, interagindo no seu cotidiano,
buscando observar, apreender e compreender os significados da realidade social
que o rodeia. Dessa forma, para o autor:
Na observação participante é preciso atentar para o aspecto ético e para o perfil íntimo das relações sociais, ao lado das tradições e costumes, o tom e a importância que lhe são atribuídos, as ideias, os motivos e os sentimentos do grupo na compreensão da totalidade, verbalizados por eles próprios mediante suas categorias de pensamento. Assim, é preciso observar o conjunto das regras formuladas ou implícitas nas atividades dos componentes de um grupo social (p. 278).
É importante ressaltar que, neste caso, observar não significa apenas ver,
examinar, mas sim “mergulhar na espessura do real, captar a lógica dinâmica e
106
contraditória do discurso de cada ator social e seu relacionamento com os outros
atores e situações (...)” (Oliveira e Oliveira, 1986, p.25).
Para colaborar com esse processo de desvendamento dos aspectos e
dinâmicas das estruturas e relações sociais (neste caso o cotidiano de uma escola
pública), nos utilizamos também do recurso da entrevista não-estruturada, como
forma de provocar o afloramento de informações mais profundas, intrínsecas,
banhadas por ideologias e afetividades.
Parga Nina costuma definir a entrevista não-estruturada como “conversa com
finalidade”, em que:
(...) o roteiro serve de orientação, de baliza para o pesquisador e não de cerceamento da fala dos entrevistados. A ordem dos assuntos abordados não obedece a uma sequência rígida, e sim, é determinada frequentemente pelas próprias preocupações e ênfases que os entrevistados dão aos assuntos em pauta (apud Minayo, 1999, p.122).
Isso não significa dizer que as entrevistas não-estruturadas devam ser
realizadas na base da intuição ou do bom senso; ao contrário, cada conversa que
realizamos nesse trabalho perpassa pelos pressupostos teóricos, e foi conduzida no
sentido de provocar a emersão de conteúdos afetivos, culturais e ideológicos
latentes nos entrevistados, contemplando os diferentes aspectos que circundam os
objetivos desta pesquisa.
Dessa forma, compartilhar o cotidiano da escola municipal Malê Debalê,
observando-o de forma intensa, sistemática e consciente aliado aos conteúdos
verbalizados nas inúmeras “conversas com finalidade” realizadas ao longo da
estada em campo, possibilitaram, além do acesso a informações antes consideradas
de domínio privado do grupo, a reunião de uma diversidade de dados. Entretanto,
como afirma Thiollent, “os dados por si só não são geradores de conceitos nem de
explicações” (1987, p.17). É necessário que cada dado, de cada observação, de
cada entrevista, seja minuciosamente analisado para “tentar encontrar os sintomas
relativos aos sistemas de representações, de condutas, de valorizações afetivas, e
de regras sociais (...)” (ibid).
107
Para isso, em nossas análises, voltamos nossa atenção para os elementos
subjacentes aos discursos e práticas que se manifestaram nas entrevistas e
observações realizadas com a comunidade da escola Malê Debalê, procurando,
como orientam Barros e Lehfeld (1999), significados nas relações estabelecidas
entre as falas individuais, as afetividades, as culturas, as ideologias, enfim, nas
relações estabelecidas entre as ações e contradições do cotidiano escolar.
3.3 O cotidiano escolar: ações e contradições
Ao citar Durkheim, Thiollent afirma acreditar “fecunda esta ideia de que a vida
social deve ser explicada não pela concepção que dela fazem os que dela
participam, mas por causas profundas que escapam à consciência” (1987, p.220).
Nesta perspectiva, buscamos, através da integração entre investigação e
convivência com a comunidade escolar Malê Debalê, escarafunchar e capturar
momentos e processos gerados nas próprias contradições experimentadas e
vivenciadas no cotidiano do grupo, apreendendo e compreendendo aspectos que se
explicitam aos poucos, para então apontar o alcance que as propostas da Ação Griô
tiveram neste espaço, nas suas dimensões individuais e sociais.
Desde os primeiros contatos com a escola municipal Malê Debalê, foi
possível identificar a intensa relação daquele espaço com as questões da cultura. O
privilegiado acervo histórico e cultural do bairro de Itapuã, onde se localiza a
unidade escolar, intensificado pela forte relação bloco/escola, promovem, naquela
comunidade escolar, um esforço contínuo em abarcar a demanda cultural que
emerge daquele contexto.
O estreito relacionamento da escola com o bloco Malê Debalê assinala, de
fato, parte decisiva nesse diálogo perene entre o espaço escolar e a cultura,
sobretudo a cultura local. O encontro entre essas duas instâncias não se deu
apenas no espaço físico, mas principalmente nas ações e concepções. O bloco abre
suas portas diariamente para a comunidade escolar, perde seus espaços
(camarotes) que viram salas de aula, convive e participa ativamente do cotidiano de
108
uma escola que atende 380 crianças de seu entorno. A escola, inserida num
ambiente onde questões raciais, sociais e culturais ocupam lugar privilegiado,
precisou afrouxar suas amarras, perceber e valorizar diferentes e novas maneiras de
construção e socialização de saberes. Neste movimento, a história, vida e obra do
bloco, que se emaranha com as histórias de vida de cada ator daquela comunidade,
inunda o ambiente escolar, configurando seus espaços e momentos de
aprendizagem.
Neste contexto, vislumbrar a discussão de questões sociais, culturais, raciais
– enfim, educacionais – a partir das manifestações artísticas viabilizadas pela
interação com o bloco fez surgir um manancial de possibilidades pedagógicas
absorvidas pela escola e continuamente expressas em suas práticas. A narrativa da
diretora da escola, Rosyvone Pereira, a respeito dessa interação bloco/escola
reforça essa perspectiva.
“Ah! O bloco é muito importante para a escola, sem a parceria com o bloco eu
acho que a escola nem funcionaria. O Malê é um bloco que vem de uma luta social,
além da importância do nome, que traz a história do levante dos Malês, ele traz nos
temas do carnaval o que está nas entrelinhas da história do Brasil, o que não
aprendemos da história da África, e que nossas crianças precisam conhecer, porque
é a história delas. Com isso, também, podemos desmistificar boa parte dos
conteúdos que se tem nos livros didáticos, podemos trazer outras histórias, outros
heróis, e legitimá-los” (Rosyvone Pereira).
Essa integração do bloco com a escola se expressa também nas atividades
(aulas de capoeira, dança e percussão) oferecidas pelo bloco Malê Debalê às
crianças da comunidade. Embora se apresentem como atividades independentes, a
princípio foi difícil identificar o que era trabalho escolar e o que era trabalho do bloco.
Com ampla participação dos alunos da escola, os horários, locais e atividades do
bloco e da unidade escolar misturam-se continuamente. Os constantes ensaios em
turnos de aula, as frequentes apresentações dos grupos infantis do Malê Debalê nos
eventos promovidos pela escola, os inúmeros projetos construídos em parceria com
109
as atividades do bloco, entre outros diálogos assinalam a relação de contiguidade
entre essas duas instâncias.
Seguindo nesse viés, as comemorações de aniversário dos 33 anos do bloco
Malê Debalê deram início aos trabalhos desenvolvidos durante o ano letivo de 2012.
Esta atividade, que contou com o envolvimento de toda a comunidade escolar,
suscitou discussões sobre a revolta dos Malês, inspiradora na criação do bloco,
resgatou temas, músicas e roupas usadas pelo bloco em carnavais passados; em
outras palavras, efetivou um trabalho de pesquisa, diálogos e descobertas que
resultou num verdadeiro (re)avivamento do acervo histórico e artístico do bloco, bem
como o seu (re)conhecimento pela comunidade escolar.
Comemoração dos 33 anos do bloco Malê Debalê. Evento realizado pela escola municipal Malê Debalê.
110
Se a interação bloco/escola já era completamente visível, a organização
desta comemoração provocou a imersão de um universo no outro. Durante o
período de sua realização, o cotidiano escolar fundiu-se com o cotidiano de um
bloco afro. Os ensaios tomaram o lugar dos intervalos de aula, com a meninas
repassando repetidamente as coreografias. As mesas e cadeiras deram forma aos
instrumentos, com os meninos aperfeiçoando as “batidas” de cada música. E, nessa
intersecção cultural, as canções do bloco inundaram o repertório musical dos
professores e gestores, e tornaram-se as protagonistas do acervo dos alunos.
Cabe ressaltar que, independente da participação dos alunos nas atividades
extra escolares oferecidas pelo Malê Debalê, foram nos momentos de maior
comunhão entre bloco e escola que se configuraram grandes momentos de
aprendizagem naquele espaço. Refiro-me, aqui, não apenas às aprendizagens
técnicas, do tocar, cantar ou dançar, mas principalmente, como vimos defendendo, a
uma aprendizagem latente, dinâmica, que se realiza na interação com o outro, na
relação com outros saberes e fazeres, e com outros lugares e momentos.
Eram especialmente nestes momentos, de maior integração entre bloco e
escola, que as responsabilidades se acentuavam: responsabilidade com os
instrumentos, com a letra correta das músicas, com as coreografias, com uma
apresentação perfeita. As vaidades emergiam, com os cabelos, com a maquiagem,
as roupas, a melhor batida nos tambores, a melhor expressão corporal. A
solidariedade aflorava, ajudando o companheiro a marcar o ritmo dos instrumentos,
emprestando roupas e acessórios, finalizando o cabelo ou a maquiagem umas das
outras, repassando parte da coreografia, ou anotando num pedaço de papel a letra
da canção esquecida pelo colega. E assim, eram em especial nestes momentos,
onde o fenômeno da aprendizagem ia, continuamente, se instaurando.
Os diálogos travados nesta pesquisa com as questões dos deslocamentos
identitários também ganharam fôlego a partir da (con)vivência com este espaço
escola/bloco. Para além da ludicidade e do prazer da música e dos movimentos da
dança, (in)vestir-se de Malê, naquele contexto, tocando os instrumentos, dançando
as coreografias ou somente cantando suas músicas, permitia, à grande parte
111
daquelas crianças, despirem-se de seus papéis, delegados e/ou incorporados, de
“feios”, “cabelo ruim”, “bagunceiros”, “repetentes” ou “alunos problema”, e
assumirem os papéis de líderes, de protagonistas, de parte integrante do bloco afro
Malê Debalê, com toda a força e reconhecimento que isto significa para aquele
lugar. Bauman complementa:
Essa contínua transgressão de barreiras lhes permite espiar a inventividade e engenhosidade humanas por trás das sólidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e intransponíveis, dando-lhes a coragem necessária para se incorporar intencionalmente à criação cultural (...)” (2005, p.20).
A execução do curso de formação continuada Vivências e saberes com
mestres e griôs de tradição oral, idealizado pela professora e griô-aprendiz Edméia
Nascimento no ano de 2011, e referendado pelas concepções e práticas da Ação
Griô, também contribuiu de forma expressiva para que as questões da cultura
popular se estabelecessem naquele espaço escolar.
Ainda que o ambiente da escola municipal Malê Debalê já se apresentasse
impregnado pelas referências culturais locais, a aproximação com as práticas e
concepções da Ação Griô, promovidos pela griô-aprendiz, provocaram, naqueles
atores escolares, uma sensibilização e reflexão em torno do diálogo entre os
saberes e fazeres da cultura popular e os saberes e fazeres institucionalizados,
sinalizando caminhos de interação entre os saberes ancestrais da tradição oral e as
ciências formais.
Refletindo sobre as possíveis contribuições que as propostas da Ação Griô
vem trazendo para sua prática docente, a professora do segundo ano31 relata que:
“Quando eu cheguei na escola em 2010, eu pensei em desistir. Não tinha esse clima
que tem hoje, era um horror. Professor com professor, entre alunos, era horrível, eu
chorava todo dia. Foi em 2011, quando Mira32 e Mel [griô] trouxeram essa proposta
dos griôs que as coisas começaram a melhorar. Eu estou com a minha turma desde
31 A pedido das professoras, seus nomes serão preservados, sendo identificadas por suas respectivas turmas de trabalho na escola. 32 Docente da escola que auxiliou a professora Mel na sistematização do curso de formação continuada em 2011. O nome completo da professora foi omitido a pedido da mesma (Cf. nota 30).
112
a educação infantil, era difícil trabalhar com eles. Além de não saberem nada de
conteúdo, eles não respeitavam nem colegas nem professores. Ainda tinham os
pais, que até ameaçada eu fui! Depois, com o tempo, fui construindo um laço de
confiança com os alunos e com os pais, foi ficando melhor e eu me sinto até um
pouco mãe deles. O curso de formação do ano passado, com a proposta de
trabalhar temáticas indígenas e africanas, de trazer os mestres para a escola,
mudou meu olhar como professora e pessoa também, por isso eu trabalho estes
temas o ano todo. Lógico que damos mais ênfase nas datas comemorativas, mas eu
procuro fazer o ano todo. Trabalhando com essa proposta, eu fui descobrindo que o
conhecimento desses mestres, dessas tradições, é muitas vezes mais importante e
significativo para os alunos do que alguns conteúdos que estão nos livros didáticos;
então fui aprendendo a usar esse conhecimento em minhas aulas. Percebi também
que desta forma não é só aprender a ler e a escrever que nós trabalhamos,
principalmente no nosso caso que atende uma comunidade tão carente quanto a
Baixa do Soronha33, é uma questão de mexer com a auto estima das crianças,
sabe? De valorizar, de perceber a beleza, a importância como pessoa mesmo”
O conteúdo da narrativa desta professora faz emergir aprendências
significativas sobre sua formação e atuação como docente a partir de sua
aproximação com outros saberes e suas possíveis conexões, articulações,
pertinências e assincronismo, deslocando sua prática de uma perspectiva insular de
ensino e (re)descobrindo a aprendizagem em múltiplas atividades e diversos
contextos sócio-culturais.
Neste panorama, Macedo colabora afirmando que:
É urgente que o sistema escolar compreenda isso de forma intelectualmente honesta, epistemológica e pedagogicamente responsável, fundando-se numa reaprendizagem para uma realiança, que tem como suporte a recursividade e a autopromoção, que rompe com a causalidade linear; o princípio dialógico que não exclui, mas comporta a contradição e o hologramático, em que o todo contém a parte, sem reduzir-se à soma delas. A articulação dessas inspirações implica num repolitizar, repensar, religar, numa
33 Com cerca de 12.000 habitantes, a comunidade da Baixa do Soronha é a principal localidade de atendimento da escola e do bloco Malê Debale.
113
aprendizagem fundada na compreensão das diferenças e heranças culturais, além da aprendizagem do afeto que recruta uma sabedoria cuja transmissão deve ser impregnada por Eros: desejo de conhecer, o prazer de ensinar, de comunicar, de doar (2002, p.110).
Outros momentos deste cotidiano escolar demonstraram a maneira como,
paulatinamente, as questões abordadas nos encontros em 2011, aliados a um
trabalho contínuo de aproximação das concepções da Ação Griô com a comunidade
escolar, orquestrados pela griô-aprendiz, vêm reconfigurando as práticas deste
espaço. A presença frequente dos mestres da cultura popular no local, visitas
programadas a locais significativos do entorno, convite para grupos populares locais
participarem dos eventos escolares, dentre outras, são práticas que passaram a ser
pensadas na construção dos projetos e ações da escola municipal Malê Debalê.
Edificando este processo, Muito prazer, meu nome é Itapuã, foi o projeto
desenvolvido durante o segundo semestre do ano de 2012. Com a participação mais
efetiva da griô-aprendiz e um diálogo mais intenso com as propostas da Ação Griô,
o objetivo principal deste trabalho foi o de (re)aproximar a comunidade escolar da
história e memória de seu entorno, através do levantamento e (re)conhecimento de
seus aspectos físicos, históricos e culturais.
Abordando temas como origens de Itapuã, brinquedos e brincadeiras de
Itapuã, personalidades de Itapuã, historiografia oral de Itapuã, corpo em Itapuã,
Itapuã ontem e hoje, dentre outros, esse projeto buscou ampliar o conhecimento dos
alunos e professores sobre o bairro em que vivem e convivem. Para isso, num
intenso trabalho de pesquisa, gestão e corpo docente, idealizaram atividades que
contemplaram desde a confecção de mapas e construção de maquetes dos espaços
relevantes do bairro, até peças teatrais, apresentação de dança, exposição
fotográfica e produção de um pequeno documentário sobre algumas personalidades
de Itapuã.
Acompanhar o processo de construção e realização deste trabalho
possibilitou a identificação, em diversos momentos, de elementos e práticas
amplamente conectados às concepções apresentadas pelas propostas da Ação Griô
114
ao espaço. A opção de parte do corpo docente por trabalhar seus temas em diálogo
direto com os mestres e grupos da cultura popular local, apontam nesta perspectiva.
Num esforço em atrelar o conteúdo do projeto às manifestações da cultura
popular local, algumas professoras realizaram um movimento ímpar de aproximação
entre saberes e gerações no espaço da escola, trazendo os mestres e os grupos da
cultura popular local para o ambiente escolar, promovendo rodas de conversas com
mestres, alunos e professores, visitando os espaços de manifestação dessa cultura
e, assim, construindo um conhecimento que não se encontra apenas pelos livros,
mas, especialmente, nas histórias e memórias compartilhadas pelas próprias
pessoas que vivenciaram os acontecimentos.
Atividade com a participação de personalidades locais. Seu Reginaldo34, Amadeu Alves35 e o grupo
ganhadeiras de Itapuã36. Projeto muito prazer, meu nome é Itapuã.
34 Importante compositor do bairro de Itapuã, Seu Reginaldo é autor de mais de 260 músicas, entre sambas, sambas de roda e marchas. 35 Nascido e criado no bairro de Itapuã, Amadeu Alves Ribeiro Filho, é cantor, compositor e coordenador da Casa da Música, importante espaço cultural da localidade.
115
O voô da Asa Branca nos tambores do Malê, foi também um dos projetos
desenvolvidos pela escola neste ano. Um trabalho que aliou as comemorações
referentes ao centenário de Luiz Gonzaga às festividades de São João.
Bastante atrelado às comemorações juninas, o desenvolvimento deste
trabalho reafirmou o envolvimento e comprometimento de toda comunidade escolar
com a execução dos projetos da escola. Num processo ativo de pesquisas e
criações, atividades como o levantamento biográfico e discográfico de Luiz
Gonzaga, elaboração de peças teatrais, números musicais, e confecção de
figurinos, promoveram um intercâmbio de informações intenso entre professores de
classe, professores especialistas e entre os próprios alunos, que participaram de
diferentes atividades na execução do projeto.
Cabe ressaltar que, embora a realização deste projeto tenha promovido
momentos singulares de construção e socialização de conhecimentos, com uma
grande integração entre as diferentes linguagens artísticas e os conteúdos de
trabalho, muitas das preocupações e atenções de parte do corpo docente voltavam-
se, essencialmente, para a execução de um grandioso espetáculo de encerramento,
o que de fato se efetivou.
36 Iniciativa que surgiu em 1994, onde um grupo de pessoas se reúnem, motivadas pelo interesse no fortalecimento da identidade cultural de Itapuã, para trocar informações sobre as antigas tradições locais.
116
Evento de encerramento, projeto O voô da Asa Branca nos tambores do Malê.
A oportunidade de participar da construção e/ou realização dos projetos de
trabalho da escola Malê Debalê durante o ano de 2012 contribuiu para confirmar
quão embrenhadas estão, naquele ambiente escolar, o universo da cultura local. A
escolha dos temas, o envolvimento de toda a comunidade escolar, bem como a
forma de conduzir as atividades, expressam como as experiências e vivências dos
atores escolares são partes constituintes daquele espaço e contexto, e exprimem
ainda de que forma as ações da escola promovem o florescer de uma cultura que
germina no local.
Concordamos, entretanto, com Minayo (1999, p.144) que “...a visão sobre o
grupo é constituída pelo pesquisador na interação com os atores sociais que o
compõem e nas relações que consegue captar”. Dessa forma, a convivência ativa
com a comunidade escolar Malê Debalê foi, gradativamente, exibindo e
desvendando os diferentes e múltiplos olhares de seus atores em relação às
questões que integram o universo de uma instituição formal de ensino, promovendo,
ao longo dessa jornada, a manifestação das muitas contradições, opacidades e
117
ambivalências presentes nos atos e discursos desses atores, e que são também
estruturante para a compreensão desse mundo social.
Assim, logo no início do ano letivo, em 2012, ao receber a orientação sobre
algumas modificações nos planejamentos e nas dinâmicas de trabalho da escola,
comecei a compreender que certas questões do cotidiano educacional se
instauravam muito além daqueles momentos de comunhão entre a escola e a
cultura popular local, vivenciados até então.
Uma das primeiras informações que recebi foi a de que, embora o curso de
formação continuada para os professores tivesse continuidade durante o ano de
2012, os temas eleitos contemplariam mais a parte de didática e de práticas de
ensino, do que as questões culturais. Segundo a coordenadora pedagógica da
unidade, esta “mudança de foco” havia sido uma demanda das próprias professoras,
pois elas estavam preocupadas com a deficiência apresentada pela maioria dos
alunos no que se referia à alfabetização (leitura e escrita), preocupação esta que se
agravava com a aproximação da Provinha Brasil37.
Esta colocação da coordenadora se consolidou nos discursos da gestão e
corpo docente, suscitados durante a apresentação deste trabalho de pesquisa na
unidade escolar, oportunizado pela diretora.
Atenta para a importância de esclarecer, especialmente ao corpo docente da
escola, os objetivos e intenções de minha pesquisa naquele espaço, solicitei à
coordenação um momento para apresentar e discutir meu trabalho com as
professoras. Atendendo ao pedido a gestora disponibilizou o espaço de uma reunião
de Atividade Complementar (AC)38 para o encontro.
Iniciei minha exposição apresentando o tema da pesquisa, os objetivos e a
questão norteadora. Discutimos um pouco sobre os referenciais teóricos e
37 “A Provinha Brasil é uma avaliação diagnóstica aplicada, pelo governo, aos alunos matriculados no segundo ano do ensino fundamenta” (Cf. http://portal.mec.gov.br). 38 “AC é o espaço/tempo para o diálogo, as vivências, a reflexão e a socialização das práticas pedagógicas e curriculares que orientam o planejamento, a avaliação e o acompanhamento à escola”. (Cf. http://educar.sec.ba.gov.br)
118
metodológicos, momento onde houve um entusiasmo particular por parte das
professoras em relação aos autores referenciados no texto, e sobre alguns livros
que levei para o local. Para finalizar, propus que discutíssemos, a partir de um breve
roteiro, algumas questões referentes à pesquisa; debate este realizado sob a
perspectiva da prática daquelas educadoras.
Algumas questões discutidas no encontro foram:
Ø Qual a importância da cultura popular local para os processos de ensino e
aprendizagem dentro dos espaços escolares?
Ø Qual a importância da presença/participação dos mestres da cultura popular
para os processos de ensino e aprendizagem nos espaços escolares?
Ø Qual a importância em se relacionar a “cultura da rua” e a “cultura da escola”
para os processos educacionais?
Ø Quais os cuidados que podem ser tomados para que essas propostas não se
tornem vazias de significados?
Depois de apresentadas as questões, iniciou-se a discussão. A princípio, um
silêncio absoluto tomou conta da sala. Um tempo depois a professora do terceiro
ano inicia sua fala:
“Acho muito importante trazer para a escola a cultura da criança, da vivência
dela, ela acaba se identificando mais com a escola”.
Logo em seguida, a auxiliar de classe do grupo 5 da educação infantil se
manifestou:
“Trazer essa questão da cultura popular para a escola é importante também
para podermos trabalharmos melhor as questões raciais, de afirmação da
negritude”.
Na sequência, a fala da psicopedagoga:
119
“Trazer essa cultura, esses mestres para dentro da escola é muito importante
para que os alunos se identifiquem com os processos de ensino e possam participar
dos processos de produção do conhecimento”.
E assim seguimos, com falas pontuais de outras professoras, sempre
sinalizando a importância deste encontro da cultura popular com a escola. Peço,
então, para que elas me narrem como isso era realizado na prática, dentro da sala
de aula de cada uma delas.
A coordenadora pedagógica inicia:
“Sabe o que é? Estamos num momento bastante delicado agora, pois vamos
enfrentar, em breve, a Provinha Brasil; então, tivemos que deixar um pouco de lado
agora essas questões culturais e focar mais nos processos de alfabetização”.
A professora do primeiro ano continua:
“Ah! É mesmo. Os meninos tem muita dificuldade de aprendizagem, mal sabem
ler e escrever; então, estamos dando um reforço nesta parte agora, para ver se dá
uma acelerada no processo”.
Intervenho, questionando se não seria possível que essa aproximação com a
cultura popular local contribuísse de alguma forma com esse processo de
alfabetização.
A psicopedagoga da escola coloca:
“Você sabe que é muito difícil fazer com que o aluno compreenda a importância
deste processo. Nós estamos sempre fazendo trabalhos sobre a cultura local, e
quando vamos ver, eles estão cantando aqueles pagodes, descendo até o chão....”.
A professora do terceiro ano continua:
“É mesmo. Às vezes parece que não adiante fazer nada. Quantas vezes nós
trazemos algum convidado pra escola e eles não respeitam a pessoa. É difícil pra
gente, porque essa é uma disciplina que eles não têm em casa”.
120
A coordenadora pedagógica, na sua colocação, argumenta:
“Eu acho que esse é um processo muito complexo pras crianças. Eu, que já sou
adulta, agora que estou descobrindo minhas referências de pertencimento,
descobrindo a cultura do meu lugar, então eu acho que esse é um processo de vida
muito longo, difícil pros meninos interiorizarem”.
Entre falas, questionamentos e proposições, ratificou-se, neste encontro, a visão
da coordenadora pedagógica da escola sobre a necessidade, naquele momento, de
“...deixar um pouco de lado agora essas questões culturais e focar mais nos
processos de alfabetização”, sinalizando como ainda se encontram dicotomizadas
as relações entre os saberes formalizados e os não formalizados naquele espaço
escolar, além de apontar para uma ilegitimidade desses saberes que não são
institucionalizados, pois, embora o universo da escola Malê Debalê transborde
conhecimentos em múltiplos aspectos, no momento de se pensar os processos de
alfabetização, letramento e avaliação nacional, eles têm de ser deixados de lado.
Uma outra orientação da gestão da escola para o ano de 2012 aponta como os
aspectos burocráticos também se apresentam sedimentados no universo da escola,
tornando penosa a efetivação de propostas não oficializadas nestes espaços.
Com o início do ano letivo de 2012, a professora e griô-aprendiz, Mel
Nascimento, que até então realizava um trabalho de estruturação dos projetos e
eventos da escola, colaborando com os professores na construção dos projetos
piloto, realizando oficinas com os alunos e professores, trazendo convidados de
diferentes instâncias, e promovendo a aproximação de mestres e grupos da cultura
popular com o universo escolar, passaria a cumprir as 40 horas de trabalho dentro
de sala de aula, abrangendo o conteúdo do programa de artes, conforme rege sua
contratação pela Secretaria Municipal de Educação.
Essa decisão, dentre outras, por parte da gestão da escola, evidencia quão
enraizados ainda estão as práticas e procedimentos escolares aos modelos
conservadores de educação. Ao optar pela utilização de sistemas pré-moldados,
121
com características lineares, sequenciais, terminam por fundamentar suas ações e
decisões na estabilidade e na regularidade das coisas e das pessoas.
Com o objetivo de compreender os motivos e observar os resultados destas
mudanças, além de continuar vivenciando o cotidiano da escola nas diferentes
esferas, optei por acompanhar a professora Mel Nascimento em sala de aula.
Assim, às segundas-feiras, durante todo o primeiro semestre de 2012, acompanhei
as aulas de artes do segundo ao quinto ano do ensino fundamental vespertino.
Presenciei, com a professora Mel Nascimento, aulas de 40 minutos de duração,
que embora abordassem as questões da cultura, da etnia, da comunidade, dentre
outros, desconectavam-se completamente dos conteúdos que estavam sendo
trabalhados por muitas das professoras de classe. Presenciei, mais que isso, um
profundo desalento da professora em ver seu trabalho acontecendo de forma
pontual, com pouca, ou nenhuma relação com outros momentos de aprendizagem.
No decorrer deste período, em diferentes momentos e situações, a professora
Mel Nascimento discorreu sobre a dificuldade de se realizar, efetivamente, as
propostas da Ação Griô na escola, sobre como alterar algumas regras e convenções
ainda é muito complicado para a instituição escolar. Mel coloca, por exemplo, que a
exigência da coordenação em se cumprir 40 horas de trabalho em sala de aula, tem
impedido, inclusive por falta de tempo, que ela elabore e desenvolva projetos
contínuos e significativos, pensados para construir as pontes que viabilizam a
aproximação com os mestres, e os traga para a escola. Para a griô-aprendiz, “É
uma angústia muito grande não conseguir aproximar as instâncias. Trata-se de um
confronto entre o que a legislação manda e o que é significativo para o aluno”.
Mel Griô relata que, quando se aproximou das propostas e concepções da Ação
Griô, vislumbrou um processo de abertura, de inovação para os ambientes
escolares, um movimento que vinha para afrouxar suas amarras. Entretanto,
confessa que sofreu algumas decepções ao se deparar com a dificuldade da escola
em se permitir conhecer e compreender a proposta. Para ela, “Tudo isso é muito
122
novo para a escola, por isso é preciso encontros sistemáticos para preparar o
espaço. A proposta não chega na escola com os mestres na rua”.
Em seu discurso, Mel defende ainda que a força da proposta da Ação Griô está
justamente na oportunidade de aproximar pessoas e seus saberes, e que isso é
extremamente importante para o ambiente da escola pública. Para a professora, “o
saber da cultura não está tão distante do saber acadêmico; aliás, ele está presente
no cotidiano das aulas. Por isso é tão importante olhar para as relações
interpessoais, para as questões de pertencimento, evitando a separação dos
saberes e das pessoas. Por isso, também, a importância dos mestres no ambiente
da escolar”.
Acompanhar as aulas da professora Mel viabilizou também que eu me
aproximasse, de maneira mais efetiva, da forma como as professoras abordavam os
conteúdos e desenvolviam seus trabalhos em sala de aula. As atividades registradas
no quadro, a observação dos cadernos e exercícios dos alunos, bem como a
realização de entrevistas, ou “conversas com finalidade”39 como vimos assumindo,
possibilitaram traçar um panorama entre a compreensão, o discurso e a prática
daquele corpo docente, no que se refere à valorização e legitimação de outros
saberes – que não os institucionalizados.
Uma breve análise do material de classe dos alunos ilustrou a forma como a
segregação e hierarquização de saberes, tão sedimentadas nos espaços formais de
educação, ainda se estabelece de forma concreta e, quase sempre desapercebida,
por grande parte do corpo docente da escola Malê Debalê. Os textos eleitos para se
trabalhar os conteúdos escolares, em especial das disciplinas matemática e língua
portuguesa, pouco contemplavam o vasto universo de outros saberes
absolutamente presentes naquela comunidade.
De forma geral, o que encontramos nos cadernos e atividades de sala foram
excertos de contos e fábulas importados, ou “problemas” matemáticos, que nem
sequer faziam alusão ao mundo social vivido pela comunidade escolar. Este cenário
39 Cf. seção 3.2.
123
indica, também, uma forte desconexão entre os conteúdos disciplinares abordados
em sala e as propostas dos projetos pedagógicos elaborados pela escola, situando-
os à margem dos processos “oficiais” de ensino e aprendizagem, o que evidencia a
invisibilidade desses fenômenos educacionais não formais, tão recorrentes naquele
espaço, para os olhos da maioria dos educadores.
Neste sentido, Macedo observa que esses processos são, em grande parte,
heranças de uma regularidade, de uma linearização pedagógica impostas ao
professor pelo mecanicismo e funcionalismo implícitos nas lógicas escolares. Para o
autor:
(...) no caso da escola, os professores não precisavam aprender as matérias de seus estudos nos seus intrincamentos, nem precisavam entender o contexto sócio-cultural no qual o conhecimento a ser ensinado era fabricado. Deveriam apenas identificar o assunto a ser transferido ao aprendiz, separando-o em seus componentes para apresentar a esse aprendiz e aí então testá-lo para dizer do seu destino escolar (2002, p.70).
Alguns momentos das entrevistas apontam para essa dificuldade da gestão e
do corpo docente da escola em valorizarem e legitimarem, em suas práticas, os
conhecimentos que, embora não oficializados, inundam aquele ambiente escolar.
Levantamos, em nossas conversas, discussões sobre a forma como dialogar com
essa sabedoria popular, na construção do conhecimento escolar.
A professora do quinto ano afirma: “Acredito ser totalmente possível utilizar
esses saberes populares para ajudar nas disciplinas escolares. É o que nós
fazemos nos nossos projetos. Por exemplo, a partir do trabalho que fizemos agora
para as festividades do São João, com a biografia de Luiz Gonzaga, pudemos
trabalhar vários conteúdos do programa. Usamos, por exemplo, o Mandacarú no
conteúdo de biologia, estudando as partes das plantas”.
Observa-se, na fala da professora, que o trabalho com a biografia de Luiz
Gonzaga, atrelado aos momentos festivos e comemorativos, foi apenas considerado
na sua capacidade de colaboração para a abordagem dos saberes acadêmicos e
científicos. Embora tenha se efetuado, para a realização do projeto, um consistente
124
trabalho de pesquisa, elaboração e efetivação de ações, configurando um intenso
processo de ensino e aprendizagem, estes momentos não são compreendidos, pela
docente, como construção de conhecimento, sinalizando a dificuldade em se
(re)conhecer, nos espaços escolares, diferentes saberes e práticas como produção
de conhecimento escolar.
Neste mesmo debate, a professora do quarto ano defende que “é possível
fazer esse trabalho trazendo a vivência do dia a dia do aluno, esses saberes
simples, para a sala de aula. A matemática da feira, as letras das músicas do bloco
[Malê Debalê], e por aí vai. O problema que temos em algumas disciplinas é que
não encontramos material que aproxime esses universos. Falta esse tipo de material
didático na escola”.
Neste depoimento, ainda que vislumbrando a possibilidade de aproximação
entre os saberes populares e os saberes institucionalizados em sala de aula, a
professora inicia classificando o conhecimento dos alunos como “saberes simples”,
ratificando um processo de hierarquização de conhecimentos bastante frequente e
muitas vezes velado dentro dos espaços escolares. Outra questão que emerge
deste depoimento é a necessidade de validação e legitimação do material de
trabalho. A “dificuldade de se encontrar material didático” colocada pela professora,
não qualifica os saberes e fazeres da cultura oral, especialmente rica e presente
naquela espaço, como conhecimento, reforçando a ideia de que os materiais
impressos e certificados são as únicas e legítimas fontes de saber.
Neste sentido, Santomé observa:
Não podemos esquecer que o professor atual é fruto de modelos de socialização profissional que lhe exigiam unicamente prestar atenção à formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua incumbência a seleção explícita dos conteúdos culturais. Essa tradição contribuiu de forma decisiva para deixar em mãos de outras pessoas (em geral, as editoras de livros didáticos) os conteúdos que devem integrar o currículo e, o que é pior, a sua coisificação. (...) Ao mesmo tempo, criou-se uma tradição na qual os conteúdos apresentados nos livros didáticos aparecem como os únicos possíveis, os únicos pensáveis [grifos do autor] (2011, p.156-157).
125
Levantamos também, nas entrevistas, a questão da importância da cultura
popular se aproximar da educação escolar.
A professora do quarto ano coloca que “essa aproximação é muito
importante, é a vivência deles [dos alunos], e às vezes eles sabem mais que a
gente, mais que os livros que são arrumadinhos e tão diferentes da vida deles”.
Na mesma perspectiva, a professora do terceiro ano diz que “é muito
importante trazer para a escola a vivência deles [dos alunos], os saberes do dia a
dia. Por exemplo, uma vez nós trabalhamos a lenda do Abaeté num projeto. Então,
os professores pesquisaram e trouxeram duas versões diferentes da lenda. Quando
fomos trabalhar com eles um aluno falou: Mas minha avó conta diferente! Acredita
que ele trouxe uma terceira versão que ninguém conhecia?”
Para a professora do primeiro ano, “é muito importante valorizar o que as
crianças trazem de casa, o que o pai, a mãe, o avô conhecem e passam para eles, a
cultura que não está nos livros”.
Neste mesmo debate, a professora do grupo 5 da educação infantil levanta a
questão do envolvimento com o bloco Malê Debalê, considerando que “nesta
aproximação com a cultura popular, a parceria da escola com o bloco é muito
importante, pois é neste espaço [do bloco] que os alunos se reconhecem; é daqui,
até, que tiramos alguns conteúdos que trabalhamos em sala”.
Estas afirmações sinalizam a forma como o discurso sobre a aproximação
entre os saberes populares e institucionalizados está construído naquele ambiente
escolar. De maneira geral esse diálogo é compreendido como pertinente, positivo, e
até mesmo necessário. Entretanto, cabe analisar que, em todos os registros, formais
e informais, a compreensão desse corpo docente em relação ao saber popular, é a
de um saber oriundo do outro, do aluno, da família do aluno, da comunidade do
aluno, nunca dos professores ou gestores da instituição escolar. As falas e
colocações ainda denotam um entendimento de que esses saberes populares
pertencem, exclusivamente, ao corpo discente daquele espaço, e que, a entrada
126
desse conhecimento, dessa vivência no ambiente escolar é pertinente e importante,
como se eles já não fossem parte constituinte daquele espaço, em todas as esferas.
Ainda buscando compreender as formas de relação entre os saberes
instituídos e instituintes da escola municipal Malê Debalê, trouxemos o currículo
para o espaço das discussões.
Conforme vimos discutindo, embora a escola Malê Debalê venha
apresentando em suas ações um processo mais conectado e contextualizado com
as vivências, experiências e demandas de sua comunidade, processo este
intensificado pela integração com o bloco afro Malê Debalê, suas práticas, no que
tange à construção do conhecimento escolar, ainda apresentam uma forte
desconexão entre os saberes formais e não formais. Ao trazermos o currículo para o
campo de debate, observamos que essa questão também se estabelece na área
curricular.
Durante uma conversa informal com a coordenadora pedagógica da escola,
falávamos sobre a enorme demanda de tempo exigida no desempenho das
atividades burocráticas. Entre queixas e exemplos de trabalhos desnecessários, são
mencionadas por ela a construção do Projeto Político Pedagógico e a formalização
do currículo.
Segundo a coordenadora, “hoje em dia tem toda essa discussão sobre o
currículo, só que a universidade discute o currículo muito longe da realidade do dia-
a-dia da escola. Na verdade, para nós da gestão escolar, o currículo acaba sendo
mais um documento que precisamos ter em mãos quando somos cobrados. É só
mais um trabalho burocrático pra gente fazer”.
Outros momentos de observação reiteram essa concepção. A construção do
Projeto Político Pedagógico da escola, iniciado pela gestão em 2011, e ainda não
colocado para discussão, colaboração e/ou finalização com as docentes, a pouca
clareza das professoras ao mencionarem o currículo da escola, além da ausência de
discussões sobre a construção curricular nas reuniões pedagógicas, apontam como
a compreensão do currículo, na escola Malê Debalê, ainda se encontra
127
predominantemente sedimentada na ideia de um “artefato burocrático prescrito”,
constatando “uma dificuldade marcante por parte dos trabalhadores em educação
em nocionar/conceituar o currículo, bem como de perceber a sua dinâmica e
implicação político-pedagógica própria” (MACEDO, 2009, p.13).
Uma das consequências observadas neste processo é, novamente, a
fragmentação dos saberes acontecendo nesta unidade escolar. De um lado está o
“currículo oficial”, abrangendo todas as obrigatoriedades disciplinares a serem
cumpridas, devidamente descritas e especificadas dentro de um modelo “esperado”;
do outro lado, encontram-se, nos atos desse currículo, as demandas sociais e
culturais daquela comunidade escolar, contempladas nas comemorações, nas
festividades, nos projetos, nos eventos compartilhados com o bloco, etc..., como se
esses espaços/momentos estivessem desvinculados da aprendizagem escolar.
Este cenário vem também reforçar quão distante dessa comunidade
educacional está a noção de que eles são os autores e atores curriculares no
espaço escolar, de que eles podem e devem autorizarem-se protagonistas neste
processo. Moreira (1995, p.15), aponta para o fato de que:
(...) no currículo desenvolve-se representações, codificadas de forma complexa nos documentos, a partir de interesses, disputas e alianças, e decodificadas nas escolas também de modo complexo, pelos indivíduos nela presente.
O desafio posto é que esses atores educacionais exerçam decodificações de
forma a implementar uma prática que não trabalhe exclusivamente na manutenção
das estruturas curriculares instituídas, mas que estabeleça, no campo curricular,
uma aproximação entre saberes, legitimando um conhecimento que integra o
cotidiano desta escola, que interage com os saberes disciplinares, que tem
significados para aquela população, e que, portanto, interfere no processo formativo
dos indivíduos deste espaço.
128
3.4 Ação Grio Nacional: indicando possibilidades
Compartilhar o cotidiano da escola municipal Malê Debalê, investigando as
contribuições que o diálogo com os saberes populares podem trazer para este
espaço, revelou as possibilidades e as contradições que se estruturam quando
tratamos de aproximar saberes e fazeres não institucionalizados aos ambientes
formais de educação.
Conforme já apresentamos40, o espaço da escola Malê Debalê, embrenhado
nas manifestações da cultura popular local, fortalecido pela intensa relação com o
bloco afro Malê Debalê, traz constantemente para suas práticas elementos e
conhecimentos inerentes a esses universos de saberes. As músicas, danças,
personalidades e heróis referendados pela memória e vivência dos atores sociais
daquela comunidade alicerçam projetos, ações e concepções de trabalho da escola,
(re)afirmando a presença da cultura popular local naquele espaço.
Neste cenário, aproximar os projetos e atividades da escola às concepções e
práticas da Ação Griô, corroboraram, num primeiro momento, com o estreitamento
dos diálogos entre a instituição escolar e os espaços não formais de educação.
Embora de forma um pouco tímida estabeleceu-se, especialmente por intermédio da
griô-aprendiz, uma parceria da escola Malê Debalê com pontos de cultura, com
espaços importantes do entorno – como “a Casa da Música”41 – dentre outros
espaços. Esta parceria proporcionou a presença, conversas e ensinamentos de
muitos mestres da cultura popular (e de seus grupos) nos eventos e atividades
realizadas pela escola, acentuando, dessa forma, a participação de outras práticas
educativas e formativas naquela unidade escolar.
De maneira mais intensa, reforçaram-se os laços entre a escola e o bloco afro
Malê Debalê. A aproximação da unidade escolar com as propostas da Ação Griô
proporcionaram mais que uma parceria de trabalho entre bloco e escola:
40 Cf. seção 3.3. 41 Inaugurada em setembro de 1993 com o objetivo de abrigar acervos que retratem a história da música baiana, a Casa da Música é hoje um espaço cultural que trabalha incentivando a produção cultural da comunidade e na democratização do acesso à cultura (Cf. casadamusica.wordpress.com).
129
promoveram um (re)encontro daquela comunidade escolar com os elementos e
saberes de uma cultura de tradição oral inerente à vida do bloco, e,
consequentemente, inerente à vida de sua comunidade. Mais que cantar e dançar
suas músicas, o esforço passa a ser pelo reconhecimento das mensagens que
essas músicas carregam; por compreender o significado político e social explícito e
implícito nas canções; e pelo debate e entendimento da relevância de cada tema
abordado pelo bloco ao longo dos anos. Mais do que tocar seus instrumentos vem-
se (re)descobrindo o sentido de “ser parte” do bloco Malê Debalê, traduzindo toda a
força cultural e social que o bloco representa e destacando a importância política e
econômica que este lugar de pertencimento tem (ou pode ter) não apenas dentro
daquela comunidade, mas principalmente em outros territórios, viabilizando a
ocupação de outros lugares sociais.
Apontamos também como uma das conquistas provenientes do encontro da
escola Malê Debalê com as propostas da Ação Griô a inserção dos mestres, grupos
e personalidades da cultura popular local no ambiente da escola. Despertar, a partir
do diálogo com as referências pedagógicas da Ação, para o lugar de importância
social, cultural e política destes mestres nos processos educacionais, dentro e fora
das escolas, instaurou um movimento efetivo de partição dessas pessoas no
cotidiano escolar. Ver seu Peruano, a convite das professoras, dar uma grandiosa
aula sobre a história do bloco Malê Debalê; ver seu Alcides, pescador antigo da
comunidade, adentrar a sala de aula e ocupar o “lugar” de professor, ensinando os
alunos as artes e mistérios de uma profissão tão antiga e tão presente naquela
comunidade, que é a atividade da pesca; ver o grupo das ganhadeiras invadir o
pátio da escola com histórias e memórias pertencentes às famílias de muitas
daquelas crianças; além de representarem momentos singulares de construção e
socialização de conhecimento, significou também ver muitas daquelas pessoas
(re)descobrindo a beleza e a importância de serem filhos e netos de seus pais e
seus avós, e a força de serem quem são.
130
Seu Alcides. Aula na sala do segundo ano vespertino.
Entretanto, conviver com esta comunidade escolar, buscando desvendar os
fenômenos para além das aparências, e aguçando o olhar para o mundo dos
significados implícitos que permeiam o universo daqueles atores escolares, revelou
também os confrontos e contradições presentes entre discursos e atos e, dentro dos
próprios discursos, que defendem e enaltecem a aproximação entre os saberes
populares e a escola, ao mesmo tempo, não conseguem percebê-los ou legitimá-lo
enquanto conhecimento.
Compreendemos que estes confrontos e contradições entre, e nos, discursos
e práticas, quase sempre desapercebidos pelos atores escolares, acompanhado da
dificuldade em se incorporar à construção do conhecimento escolar aprendências
que se manifestam além das salas de aula, dentro e fora da escola, são heranças de
131
um processo de formação e atuação docente linear, estático, sequencial, e
compartimentado, que cerceiam o olhar para outras possibilidades formativas.
É neste contexto de uma escola inundada pela cultura popular local,
transbordando de múltiplos saberes que movimentam-se e interagem construindo e
socializando conhecimentos – mas que muitas vezes são colocados à margem dos
processos de ensino e aprendizagem – que apontamos os desafios da Ação Griô
em suas contribuições para o espaço da escola municipal Malê Debalê:
O esforço por sensibilizar: sensibilizar a comunidade escolar, através do
diálogo perene entre “tradição e invenção, escola e comunidade, vivência e
consciência, saber tradicional e conhecimento científico”42, para o fato de que esses
saberes populares que adentram diariamente os portões da escola, através de seus
alunos, professores, funcionários, bloco e comunidade, são conhecimentos
instituintes do cotidiano educativo. Representam momentos e situações que
alicerçam saberes que podem, e devem, compor o complexo cenário de
aprendizagem.
A necessidade de encantar: encantar, compreendendo o que afirma Oliveira:
O encantamento não é um estado emocional, de natureza artística que nos arrebata os sentidos e nos impõe sua maravilha. Não é da ordem sublime, à qual não podemos resistir, muito menos da ordem religiosa, à qual devemos obedecer. O encantamento é uma experiência de ancestralidade que nos mobiliza para a conquista, manutenção e ampliação da liberdade de todos e de cada um. Assim, é uma ética, uma atitude que faz sentido se atualizando na contemporaneidade (2012, p.43).
Trata-se, portanto, de encantar a escola “acolhendo a subjetividade, a
invenção, a criatividade, a imaginação, o cotidiano, como novas possibilidades
teórico-metodológicas” (Tourinho, 2003. p.126). Um esforço por relativizar conceitos
como verdade, objetividade e razão, despertando as práticas escolares para a força
e a beleza das manifestações da cultura popular enquanto produtoras e
socializadoras de conhecimento legítimos, para a sapiência de seus mestres, para a
integração das rodas, para a transcendência dos rituais, para a energia coletiva da
42 Ação Griô Nacional.
132
memória; enfim, buscar fascinar, cativar, provocar desejo e admiração e causar
satisfação, chamando ao exercício do encantamento desse ambiente escolar.
Finalizamos este momento com o depoimento da griô-aprendiz e professora
da escola municipal Malê Debalê, Edméia Nascimento:
“Respondemos ao convite da Ação Griô e da pedagogia do velho griô de
Lençóis, e ‘invadimos’ a escola. Como? Acolhendo os educandos, com músicas,
sentados em esteiras no chão, sensibilizados, disponíveis, despertos para o novo
tão antigo que é a arte de ouvir, criar, contar, cantar e dançar a tradição oral de
nossa cultura, do nosso saber de matrizes africanas e indígenas. A princípio
conquistar a escola não foi lá muito fácil. O corpo docente se manteve muito
resistente ao projeto, ao contrário das crianças. No início houve uma resistência,
estranheza, mas que a cada dia vem se acabando”.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”.
Rolnik Suely
Percorrer a trajetória de construção e de execução desta pesquisa, buscando
compreender, a partir das propostas da Ação Griô, as contribuições que a
aproximação entre os saberes populares e os saberes formalizados pode trazer para
os processos educacionais, possibilitou-me a oportunidade de conhecer, partilhar e
me relacionar com múltiplos e diferentes espaços e momentos de produção do
conhecimento. Vivenciar o Projeto Griô, partilhar o cotidiano escolar, percorrer os
espaços não formais de educação, me encontrar e me encantar com os mestres da
cultura popular, promoveu uma avalanche de saberes e práticas que precisaram ser
observados, desafiados e destrinchados, para serem compreendidos.
Adentrar o espaço da escola Malê Debalê e conviver com essa comunidade
escolar durante 18 meses, trouxe à tona, juntamente com seus êxitos e fracassos, a
complexidade do cotidiano deste espaço educacional. Lidar diariamente com as
idiossincrasias e subjetividades, com as heterogeneidades de etnia, de religião, de
culturas familiares, de histórias e trajetórias de vida, significa lidar com embates e
confrontos contínuos na realização de qualquer proposta pedagógica. Entretanto,
participar do processo de aproximação das concepções e práticas da Ação Griô com
este ambiente escolar confirmou também a necessidade de a escola colocar-se o
mais aberta possível para outras possibilidades formativas, que colaborem no
diálogo com essas diversidades, e promovam uma construção do conhecimento
mais pertinente, encantadora e significativa.
Amparada pelo olhar fenomenológico, portanto buscando compreender “não
o sujeito nem o mundo, mas o mundo enquanto vivido pelo sujeito” (GIL, 2007,
p.14), vi, reforçado pelo encontro com as concepções do projeto griô, a comunidade
escolar Malê Debalê se abrir para uma proposta de vinculação com saberes e
134
fazeres de uma cultura que invade seus espaços diariamente. Um processo de
(re)aprendizado da arte de ensinar, onde as trocas simbólicas, afetivas e de
informações, vêm tomando o lugar dos “depósitos de conteúdos”. Vi, no (re)encontro
desta comunidade com seus mestres, sua história, sua memória, e sua
ancestralidade, um movimento de fortalecimento do sentimento de pertencer àquele
lugar. Um processo lento, longo, de aceitações e contradições, que avançam e
retrocedem, mas que vem suscitando debates e promovendo a valorização de
sujeitos e conhecimentos que há muito vinham sendo deixados à margem pelos
espaços formais de ensino.
Neste contexto é que apresentamos os argumentos que dialogam com a
questão fundante desta pesquisa: De que maneira uma proposta de aproximação
entre os saberes populares e os saberes institucionalizados pode interferir nos
processos de construção do conhecimento e nas relações sociais dentro dos
espaços escolares? Apontamos algumas possibilidades: promover a associação
cultural entre escolas e comunidades, enxergando e interagindo com uma cultura da
rua que inunda a escola cotidianamente, e utilizando esses múltiplos recursos
formativos para o enriquecendo do aprendizado escolar; oportunizar o encontro
entre as gerações de tradição oral e as novas gerações de tradição escrita,
travando, no espaço escolar, o diálogo entre diferentes saberes, pessoas e lugares
sociais; superar a folclorização das manifestações da cultura popular, valorizando-as
enquanto conhecimento e legitimando, assim, outros saberes na escola que não
apenas os institucionalizados; e, finalmente, estabelecer vínculos afetivos e de
aprendizagens que permitam, através do (re)encontro da comunidade escolar com
sua história e sua ancestralidade, o fortalecimento de seus lugares de pertencimento
e a transgressão de papéis, normas e valores impostos por uma classe hegemônica.
Com relação aos espaços não formais de educação, pude, através do contato
com os pontos de cultura parceiros da Rede Ação Griô e com outros espaços não
escolares, observar quão distante estão suas concepções e práticas de trabalho das
apresentadas pela maioria dos espaços educacionais formais.
135
De forma geral, a educação não formal abandonou a rigidez dos horários e
prazos, o isolamento das salas de aula, a fragmentação do conhecimento, e a
hierarquização de pessoas e saberes, tão frequentes e nocivos na educação
institucionalizada, e concentrou-se em promover um aprendizado contextualizado,
que se estabeleça, predominantemente, pelas práticas sociais, através da
(con)vivência entre as pessoas, das trocas de experiências individuais e coletivas,
flexibilizando tempos e locais, e otimizando os momentos de aprendizagem.
Pontuar essas diferenças entre o sistema escolar convencional e a educação
não formal não significa supor uma hierarquização de modalidades, muito menos a
substituição de uma pela outra. Significa sinalizar como ambas estão contrapostas,
como a segregação de seus recursos educacionais contribuem para um
empobrecimento do ato de aprender, especialmente frente às novas necessidades
decorrentes dos avanços tecnológicos e das mudanças culturais e sociais atuais.
Trata-se, portanto, não apenas de destacar todas as vantagens da educação não
formal, mas sim de, através de uma atuação integrada e intensa entre essas duas
instâncias educacionais, enfrentar as desvantagens da educação formal. Como
afirma Ghanem, essa integração entre educação formal e não formal faz-se
necessária:
(...) não só para fazer frente à “sobrecarga” da escola com demandas diversificadas, pela limitação dos recursos financeiros ou pela degradação da escola devido à massificação. Essa amplitude e integração são, sobretudo, necessárias para uma educação criadora e para uma educação como convivência democrática: existência de um espaço público vigoroso, colaboração entre Estado e sociedade civil, não exclusivamente a atuação do Estado sobre a sociedade civil, nem estritamente para esta (2008, p.85-86).
Seguindo nossos objetivos, procuramos, ao longo deste trabalho,
perceber/explicitar, através da compreensão das ações da Ação Griô Nacional, as
contribuições e implicações que essa proposta pode acarretar para a educação
como um todo. Falar dessas contribuições requer, aqui, falar de encantamentos,
possibilidades e dificuldades.
136
Conhecer as propostas e ações do Projeto Griô se mostrou encantador em
muitos sentidos.
Encanta no sedutor encontro com o universo da cultura popular enquanto
estabelecedor de um universo educacional pleno, onde o desejo de educar se funda
nas vivências, no compartilhamento, nos encontros simbólicos e afetivos entre as
pessoas e se alicerça num processo de coesão interna, onde o novo e o antigo se
entrelaçam continuamente, orientando e revigorando comportamentos. Um educar
que se desenvolve num movimento que, através de diferentes linguagens, integra
cantigas, danças, símbolos, mitos e arquétipos, integrando, assim, afetividades e
saberes.
Encanta no fascínio com a sabedoria dos mestres das culturas de tradição
oral. Na sapiência desses mestres em compartilhar saberes, amparados pela força
restauradora das tradições, pelo poder da memória e do saber oral em reconstruir
afetiva e coletivamente experiências passadas e pelo vigor do ritual em ressignificar
gestos, locais e o tempo, transpondo o hoje, o agora, para épocas remotas e lugares
divinos.
Encanta por permitir surpreender a escola, aproximando-a de concepções e
práticas mais vivas e pulsantes, conectadas às vivências e anseios de seus
educandos, e (re)ligadas ao movimento da vida dos saberes e fazeres da cultura de
tradição oral.
Enfim, encanta por facilitar o encantamento, por fortalecer o sentimento de
pertencimento, e (re)significar histórias e vivências a partir do (re)encontro com
nossa própria ancestralidade.
No campo das possibilidades, os diálogos travados com as propostas da
Ação Griô contribuem para que a escola desperte para as novas demandas que a
educação vem solicitando, e se abra, se disponha para outros contextos formativos
que, via de regra, já permeiam seus ambientes. Trata-se de acentuar os encontros
com outros espaços/momentos (não oficiais) de ensino e aprendizagem, de
promover uma atuação mútua entre a educação formal e não formal, e de ratificar a
137
entrada e a parceria das manifestações da cultura popular e de seus mestres nos
processos educacionais institucionalizados, afim de que se estabeleça uma
aprendizagem o mais rica possível, em quantidade e qualidade de recursos.
Neste mesmo contexto as propostas da Ação colaboram para que a cultura
de tradição oral e seus mestres assumam o lugar efetivo de produtores e
socializadores de conhecimentos. Propõe-se pensar nesses saberes para além das
festividades ou de sua folclorização, mas sim ocupando um espaço importante nos
processos oficiais de educação. Isto não significa disciplinarizar seus
conhecimentos, mas sim de compreender e utilizar a força política e educativa
destas manifestações, desenvolvendo práticas alternativas de ensino, que
agreguem conhecimentos e contribuam para a desestabilização de uma lógica de
dominação dentro e fora das escolas.
Percorrendo os “entre lugares” deste projeto, foi possível reconhecer as
possibilidades de deslocamentos identitários e de mobilidades sociais, angariando
outras potencialidades. Os mestres assumem o lugar dos professores, os
professores tornam-se novamente educandos. Os educandos tornam-se
protagonistas em seus ambientes escolares e sociais. Os griôs, multiplicando-se em
diferentes papéis, não são tão somente cantadores e contadores de histórias, mas
desempenham, também, a função de agentes culturais e políticos, fazendo com que
política e cultura interpelem a educação. Enfim, são mestres, griôs, professores,
alunos e comunidade experimentando e assumindo papéis, identidades e lugares
sociais de escolha, diferentes dos impostos, autorizando-se a negociar e participar
das estruturas mais amplas de poder que atravessam a vida pública.
Ao pensar sobre a dimensão das ações da Ação Griô Nacional chegamos,
com a proposta de implementação da Lei Griô, no âmbito das políticas públicas.
Propor, por meio de um projeto de lei de iniciativa popular, a instituição de uma
política nacional de transmissão dos saberes de tradição oral em conexão direta
com os sistemas oficiais de ensino significa mobilizar sociedade civil e poder público
no debate, formulação e implementação de políticas públicas de valorização e
preservação do patrimônio cultural imaterial nacional, e de renovação de propostas
138
metodológicas para a produção do conhecimento. Um movimento ímpar, que
articula sociedade civil, política cultural e política educacional.
Assim, compreendemos a importância desta batalha para a afirmação do
lugar político, social, cultural e econômico dos mestres populares e de seus saberes,
bem como para o fortalecimento dos mecanismos de diálogo entre a cultura de
tradição oral, seus mestres e a educação formal, legitimando conhecimentos que
compõem o processo educacional dos estudantes brasileiros, mas que se localizam,
quase sempre, à margem dos processos oficiais de ensino. Assim, entendemos a
implementação da Lei Griô como um importante passo na colaboração para que
essa proposta se firme, participe ativamente dos processos de construção do
conhecimento e de cidadania, e não se torne apenas mais um apêndice na
educação.
Concordamos, entretanto, que a efetivação da lei, por si só, não é garantia de
êxito dos projetos da Ação Griô. Vimos, nas entrelinhas desse processo, surgirem
armadilhas, astúcias e artifícios capazes de desviar, ou mesmo imobilizar suas
ações. Apontamos, então, os obstáculos que se colocam à frente da Ação Griô
Nacional nesta caminhada de efetivação de suas propostas.
É preciso ver com atenção os limites entre o apoio, a necessidade e a
dependência de se agregar às instâncias governamentais. Torna-se importante
delimitar uma relação que garanta, por meios legais, os direitos aos espaços, aos
financiamentos, enfim, à existência pública, sem que a proposta se torne refém
destas instâncias, dependentes delas para sua existência.
Neste cenário, é importante cuidar para que os diálogos entre o universo da
cultura popular e outros espaços institucionalizados, não signifiquem a simples
apropriação dos saberes e fazeres desse universo, usurpando seus discursos e
práticas de resistência e de transgressão, transformando-os em mercadoria, em
mero entretenimento, e, dessa forma, desmobilizando e enfraquecendo a
capacidade crítica e de contestação inerentes às suas manifestações.
139
Outro desafio com relação à concretização das propostas da Ação Griô que
se apresentou ao longo desta pesquisa, refere-se aos benefícios e perigos de sua
expansão. Expandir mostra-se positivo, uma vez que se firmam possibilidades de
discussão, (re)conhecimento e implementação do projeto em múltiplos lugares e em
diferentes instâncias (governamentais, educacionais, sociais), contribuindo com
possíveis aperfeiçoamentos e com o fortalecimento das concepções. Torna-se
perigoso, como já sinalizamos, quando cresce a ponto de escapar às mãos,
resultando num desamparo às parcerias, num abandono das ações firmadas, numa
falta de entendimento de suas concepções e objetivos, enfim, no perigo de tornar-se
mais uma proposta de ação plagiada e vazia de significados.
Assim, ao refletir sobre os encantamentos, as possibilidades e os desafios
resultantes desta pesquisa, finalizo esta jornada. Feliz, com a enxurrada de
ensinamentos que este trabalho me proporcionou, e que carrego para minha vida
acadêmica e pessoal. Confiante, na perspectiva de ter contribuído para que as
propostas da Ação Griô Nacional possam ser conhecidas, discutidas e reconhecidas
como possibilidade para o fortalecimento de uma educação pensada para a vida. E
certa de que há, ainda, um grande caminho a ser percorrido, visto que tratamos de
enfrentar escleroses sociais, verdades absolutas, e paradigmas estabilizadores.
140
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