TRAJETÓRIAS DO CONCEITO DE PAISAGEM NA GEOGRAFIA

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R. RA’E GA, Curitiba, n. 7, p. 79-85, 2003. Editora UFPR 79 TRAJETÓRIAS DO CONCEITO DE PAISAGEM NA GEOGRAFIA Trajectories of the concept of landscape in geography Raul Alfredo SCHIER 1 RESUMO Este artigo discute a paisagem na geografia desde as abor- dagens organicistas, positivistas do século XIX, até as abor- dagens funcionalistas e culturais a partir dos anos sessen- ta, mostrando como esse conceito evoluiu através das di- versas abordagens geográficas e qual idéia sobre a paisa- gem permeia nos dias de hoje. Demonstra-se que as con- cepções modernas de paisagem têm incorporado novas abordagens, tentando conciliar interesses sociais e ecológi- cos numa visão do desenvolvimento sustentável, modifican- do assim antigas visões utilitárias e descritivas do conceito de paisagem. Palavras-chaves: Paisagem, geografia, novas abordagens. ABSTRACT This essay analyses the landscape discussing the main geographical conceptions of landscape, since the initial organic and positivist ideas of the 19th century up to the functional and cultural approaches of landscape, showing how this conception has developed down the ages into the geography’s approach and how it’s conceived nowadays. It could be shown throughout this text that – during the nineties the landscape conceptions have shifted to a new approach, which includes ecological, social and individual particular interests, combined in the vision of sustainable development and, thus, abolishing the predominant utilitarian aspect of the older landscapes concepts. Key words: Landscape, geography, new approaches. 1 Mestre em Geografia, UFPR.

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SCHIER, R. A. Trajetórias do conceito de paisagem na geografia

R. RA’E GA, Curitiba, n. 7, p. 79-85, 2003. Editora UFPR 79

TRAJETÓRIAS DO CONCEITO DE PAISAGEM NA GEOGRAFIA

Trajectories of the concept of landscape in geography

Raul Alfredo SCHIER1

RESUMO

Este artigo discute a paisagem na geografia desde as abor-dagens organicistas, positivistas do século XIX, até as abor-dagens funcionalistas e culturais a partir dos anos sessen-ta, mostrando como esse conceito evoluiu através das di-versas abordagens geográficas e qual idéia sobre a paisa-gem permeia nos dias de hoje. Demonstra-se que as con-cepções modernas de paisagem têm incorporado novasabordagens, tentando conciliar interesses sociais e ecológi-cos numa visão do desenvolvimento sustentável, modifican-do assim antigas visões utilitárias e descritivas do conceitode paisagem.

Palavras-chaves:Paisagem, geografia, novas abordagens.

ABSTRACT

This essay analyses the landscape discussing the maingeographical conceptions of landscape, since the initialorganic and positivist ideas of the 19th century up to thefunctional and cultural approaches of landscape, showing howthis conception has developed down the ages into thegeography’s approach and how it’s conceived nowadays. Itcould be shown throughout this text that – during the nineties− the landscape conceptions have shifted to a new approach,which includes ecological, social and individual particularinterests, combined in the vision of sustainable developmentand, thus, abolishing the predominant utilitarian aspect of theolder landscapes concepts.

Key words:Landscape, geography, new approaches.

1 Mestre em Geografia, UFPR.

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INTRODUÇÃO

A discussão da paisagem é um tema antigo nageografia. Desde o século XIX, a paisagem vem sendodiscutida para se entenderem as relações sociais e na-turais em um determinado espaço. Dentro da geografia,a interpretação do que é uma paisagem diverge dentrodas múltiplas abordagens geográficas. Observa-se queexistem certas tendências “nacionais” mostrando que oentendimento do conceito depende, em muito, das in-fluências culturais e discursivas entre os geógrafos.

A geografia alemã, por exemplo, introduziu o con-ceito da paisagem como categoria científica e a com-preendeu até os anos 1940 como um conjunto de fato-res naturais e humanos (Otto Schlüter, SiegfriedPassarge e Karl Hettner). Os autores franceses, sobinfluência de Paul Vidal de la Blache e Jean Rochefort,caracterizaram a paysage (ou o pays) como o relacio-namento do homem com o seu espaço físico. A revolu-ção quantitativa, iniciada nos anos 40 nos Estados Uni-dos, substituiu o termo landscape, que estava, até en-tão, em uso nesse país sob influência da geografia ale-mã (Carl Sauer), pela idéia da “região” (RichardHartshorne), sendo esta um conjunto de variáveisabstratas deduzidas da realidade da paisagem e da açãohumana. Paralelamente, surgiu na Alemanha e no Les-te europeu uma idéia mais holística e sinérgica daLandschaft, denominada Landschaftskomplex (PaulSchmithüsen), que definiu as unidades da paisagem peloconjunto dos seus processos ecológicos. Esta idéia seencontra, entre outros, também na Landschaftsökologie(ecologia da paisagem), como foi proposta por Carl Trolle mais tarde por Hartmut Leser. A Human ecology, decunho norte-americano, definiu igualmente a paisagemcomo um sistema ecológico.

A maioria destes conceitos se atrela, no fundo, adeterminadas abordagens filosóficas. Pode-se dizer queo conceito de paisagem foi originalmente ligado aopositivismo, na escola alemã, numa forma mais estáti-ca, onde se focalizam os fatores geográficos agrupa-dos em unidades espaciais e, numa forma mais dinâmi-ca, na geografia francesa, onde o caráter processual émais importante. Ambas tratam a paisagem como umaface material do mundo, onde se imprimam as atividadeshumanas. A abordagem neopositivista direcionou parao termo região tentando dar enfoque ao processo deabstração da realidade física, conforme a sua meto-dologia quantitativa. A abordagem marxista (materialis-ta), pouco interessada na geograficidade da paisagem,identificou-se com o termo região, o qual define comoum produto territorial da ação entre capital e trabalho.As abordagens da ecologia humana, entretanto, benefi-ciam-se da idéia da paisagem ao demonstrar suas ca-

racterísticas sistêmicas, reunindo diversas categoriasno mesmo recorte espacial.

Hoje, a idéia da paisagem merece mais atençãopela avaliação ambiental e estética. Neste sentido, de-pende muito da cultura das pessoas que a percebem ea constroem. Ela é, assim, um produto cultural resulta-do do meio ambiente sob ação da atividade humana.

O aspecto cultural tem desempenhado um papelimportante na determinação do comportamento daspessoas em relação ao ambiente. Determinadas paisa-gens apresentam, na sua configuração, marcas cultu-rais e recebem, assim, uma identidade típica. A proble-mática ambiental moderna está ligada à questão cultu-ral e leva em consideração a ação diferenciada do ho-mem na paisagem. Desta forma, a transformação dapaisagem pelo homem representa um dos elementosprincipais na sua formação.

TRAJETÓRIAS DO CONCEITO DE PAISAGEM NAGEOGRAFIA

Tradicionalmente, os geógrafos diferenciam en-tre a paisagem natural e a paisagem cultural. A paisa-gem natural refere-se aos elementos combinados deterreno, vegetação, solo, rios e lagos, enquanto a pai-sagem cultural, humanizada, inclui todas as modifica-ções feitas pelo homem, como nos espaços urbanos erurais. De modo geral, o estudo da paisagem exige umenfoque, do qual se pretende fazer uma avaliação defi-nindo o conjunto dos elementos envolvidos, a escala aser considerada e a temporalidade na paisagem. En-fim, trata-se da apresentação do objeto em seu contex-to geográfico e histórico, levando em conta a configura-ção social e os processos naturais e humanos.

Dentro da diversidade conceitual em que se en-contra o termo, Georges BERTRAND (1971, p. 2),geógrafo francês, traz que “a paisagem não é a simplesadição de elementos geográficos disparatados. É umadeterminada porção do espaço, resultado da combina-ção dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, bi-ológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente unssobre os outros, fazem da paisagem um conjunto únicoe indissociável, em perpétua evolução”. Percebe-se, as-sim, que Bertrand não privilegia nem a esfera natural nema humana na paisagem e demonstra certa facilidade emenxergar a paisagem de forma homogênea, entendendoque sociedade e natureza estão relacionadas entre elasformando uma só “entidade” de um mesmo espaço geo-gráfico.

Também o geógrafo norte-americano Carl Sauer,representante da geografia cultural clássica, destaca queessa interação entre os elementos naturais e antrópicos

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é essencial no entendimento da paisagem. “Não pode-mos formar uma idéia de paisagem a não ser em ter-mos de suas relações associadas ao tempo, bem comosuas relações vinculadas ao espaço. Ela está em umprocesso constante de desenvolvimento ou dissoluçãoe substituição. Assim, no sentido corológico, a altera-ção da área modificada pelo homem e sua apropriaçãopara o seu uso são de importância fundamental. A áreaanterior à atividade humana é representada por um con-junto de fatos morfológicos. As formas que o homemintroduziu são um outro conjunto”. (SAUER, 1998, p.42). Esta colocação sugere uma separação da paisa-gem em natural e cultural, pois explicita que é o homemque atua como sujeito de ação na natureza. Ao mencio-nar a capacidade de transformação, ele projeta duaspossíveis formas de natureza, uma antes e outra de-pois da apropriação humana, privilegiando a sucessãohistórica entre as duas.

Ainda em relação a esse conceito, CLAVAL (1999,p. 420) colabora afirmando que “não há compreensãopossível das formas de organização do espaço contem-porâneo e das tensões que lhes afetam sem levar emconsideração os dinamismos culturais. Eles explicam anova atenção dedicada à preservação das lembrançasdo passado e a conservação das paisagens”. Assim,Paul Claval não só atribui ao homem a responsabilida-de de transformar a paisagem como destaca que dife-rentes grupos culturais são capazes de provocar trans-formações diferenciadas nela, criando assim uma pre-ocupação maior com os sistemas culturais do que comos próprios elementos físicos da paisagem. Não se tra-ta mais da interação do homem com a natureza na pai-sagem, mas sim de uma forma intelectual na qual dife-rentes grupos culturais percebem e interpretam a pai-sagem, construindo os seus marcos e significados nela.Nesta perspectiva, a paisagem é a realização ematerialização de idéias dentro de determinados siste-mas de significação. Assim, ela é humanizada não ape-nas pela ação humana, mas igualmente pelo pensar.Cria-se a paisagem como uma representação cultural.

Ao comentar a nova geografia cultural, LindaMcDOWELL (1996, p. 175) interpreta a paisagem nestesentido como um texto a ser decifrado e lido, assim, “aocontrário dos materialistas culturais, a nova escolapaisagística tem uma herança mais geográfica. Recen-temente a ênfase da escola do paisagismo desviou-sedas análises de produção material do ambiente paraproblematizar as maneiras como as paisagens foramrepresentadas seja em textos escritos, arte, mapas oulevantamentos topográficos”.

Entende-se, com essa colocação, que a paisa-gem não tomou uma nova forma, mas houve sim umanova perspectiva e uma nova proposta de estudo. Em

conseqüência, ela é repensada não apenas como o re-sultado material de interações, mas como uma maneiraespecífica de olhar.

A PAISAGEM COMO ELEMENTO DISCURSIVO NAGEOGRAFIA

Entende-se que a paisagem, na sua materia-lidade, surge juntamente com a formação de nosso pla-neta, podendo ser estudada desde a pré-história. Se-gundo MENDONÇA e VENTURI (1998, p. 65), “as pre-missas históricas do conceito de paisagem, para a geo-grafia, surgem por volta do século XV no renascimento,momento em que o homem, ao mesmo tempo em quecomeça a distanciar-se da natureza, adquire técnica su-ficiente para vê-la como algo passível de ser apropria-do e transformado”.

A partir deste momento a paisagem começa a terum significado diferenciado, deixando de ser apenasuma referência espacial ou um objeto de observação.Ela se coloca num contexto cultural e discursivo, pri-meiramente nos discursos das artes e pouco depois nasabordagens científicas que rompem com a idéia da Ida-de Média de que o mundo inteiro seja a criação de Deus,e por isso santificado e indecifrável.

Encontra-se, em um momento histórico subse-qüente, que essa ruptura não se deu de forma drástica,preservando, dialeticamente, os valores místicos e es-pirituais agregados à idéia de paisagem antes dosurgimento da geografia acadêmica. Segundo LEITE(1994, p. 32), “por volta de 1700, a Igreja perdeu o apoiodas classes influentes educadas, que passavam a de-fender a idéia de que a nação deveria ser o principalobjeto de preocupação da sociedade. Essa proposiçãoera apoiada pelo sonho do ‘paraíso terrestre’, onde aharmonia entre o homem e a natureza, dentro dos limi-tes da nação, traria como resultado uma vida terrenaespiritual e materialmente gratificante. A discussão des-sas questões filosóficas, os estímulos das grandes via-gens, a moda de colecionar trabalhos de pintores italia-nos do século XVII, tudo contribuiu para o surgimentode novas idéias sobre a paisagem, que eram mais re-presentativas da realidade do que quaisquer outras dosperíodos precedentes, porque eram asserções não so-mente sobre filosofia da estética, mas sobre a paisa-gem real, visível”.

O surgimento da representação da paisagem, noOcidente, assinala também a emergência da paisagemcomo fenômeno social, percebido e operado pela socie-dade. ROGER definiu duas condições suplementares,indispensáveis para que a paisagem aparecesse napercepção histórica e na imagem do Ocidente, sendo

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que a primeira é a laicização dos elementos naturais.Árvores, rochedos, rios, etc. não passavam de signosnum mesmo espaço sagrado, até o início da épocamoderna. Por isso, se ocorriam tais elementos naiconografia medieval, de dominância religiosa, não ti-nham em si qualquer valor próprio, mas deviam serdecodificados, por exemplo, segundo o interesse dabíblia. A segunda condição era a organização dessesmesmos elementos naturais em um grupo autônomo ecoerente. (ROGER,2 apud MENESES,1996, p. 144).

Nesse momento histórico, no século XVII, a socie-dade burguesa, quando surge junto ao Estado-Naçãona Europa, redefine a paisagem num discurso novo,agora meramente científico.

O DISCURSO DA PAISAGEM NA GEOGRAFIA ACA-DÊMICA CLÁSSICA

As obras “Cosmos” de Alexander von Humboldt, a“Geografia comparada” de Carl Ritter e a“Antropogeografia” de Friedrich Ratzel são alguns dosexemplos clássicos em que se utilizou o conceito da paisa-gem como método e transcrição de dados sobre áreasdistintas do planeta. Em alemão, utilizou-se o termoLandschaft para esta concepção da paisagem.

Humboldt destacou-se por sua visão holística dapaisagem, de forma que associava elementos diversosda natureza e da ação humana, sistematizando, assim, aciência geográfica. Seus estudos se concretizaram comsuas viagens no final do século XVIII. A transformaçãoda prática de viagem em conhecimento complexo e inte-grado faz lembrar as tentativas do Renascimento e doIluminismo, quando se desenvolveu uma geografiacosmográfica (Merian) na Alemanha e na Suíça – estatradição até associada pelo próprio título da obra-primade Humboldt − ou dos enciclopedistas na França.

Após esses estudos, outros geógrafos, principal-mente os que se dedicam à natureza, procuram definir,a partir do século XIX, o que significa a idéia da“Landschaft” na geografia. Eles se aproximam da idéiapositivista de Humboldt, que vê nela um conjunto derelações de fatos naturais (visão de geossistemas na-turais), mas negam o elemento libertador e estético.

Com a obra de Carl Ritter, a geografia tornou-se,além do positivismo dinâmico e histórico, uma ciência

enciclopédica, organizando o conhecimento sobre de-terminados países e regiões. A paisagem, no entanto,não era o principal objeto de estudos de Ritter, quecomplementou e organizou o trabalho de Humboldt dedi-cando especial atenção às descrições e análises regio-nais, pois considerava que os fenômenos nelas exis-tentes, criados pela sistematização, ocorreriam nas di-versas regiões, justificando assim, o título de sua obra“A geografia comparada”.

Friedrich Ratzel, diferentemente de Humboldt,utilizou o conceito da paisagem em uma formaantropogênica, demonstrando que ela é o resultado dodistanciamento do espírito humano do seu meio natu-ral. Desta forma, descreve uma dialética entre os ele-mentos fixos da paisagem natural, como o solo, os rios,etc., com os elementos móveis, em geral humanos. Nasua abordagem, este distanciamento é importante por-que inicia um processo de libertação cultural do meionatural, pela transferência de artefatos entre os povos,ou seja, pela migração destes, contrariando bastante avisão comumente propagada que Ratzel pode ser apon-tado como geo-determinista. Pois Ratzel não destaca apaisagem como uma forma local e delimitada, que exer-ce uma influência direta na sua cultura, mas utiliza otermo em forma genérica misturando-o com o termo “ter-ra”. O termo “geografia cultural” foi utilizado primeira-mente por Ratzel, ao escrever sobre a geografia dosEstado Unidos com ênfase econômica.3

É preciso considerar ainda Paul Vidal de LaBlache, contemporâneo de Ratzel, para o qual a rela-ção homem-natureza aparecia mais ligada ao concretoe regional, no conceito de “pays”. Em relação à culturaque transforma a natureza, afirmou que “é preciso partirda idéia de que uma região é um reservatório onde dor-mem energias das quais a natureza depositou o germe,mas das quais o emprego depende do homem...” (LABLACHE4 apud GOMES, 1996, p. 203).

Paisagens são, em quase todas as abordagensdos séculos XIX e XX, entidades espaciais que depen-dem da história econômica, cultural e ideológica decada grupo regional e de cada sociedade e, se com-preendidas como portadoras de funções sociais, nãosão produtos, mas processos de conferir ao espaçosignificados ideológicos ou finalidades sociais combase nos padrões econômicos, políticos e culturais vi-gentes.

2 ROGER, Alain. Histoire d’une passion théorique ou comment on devient un Raboliot du paysage. In: Berque, A., dir., cinq propositionspour une théorie du paysage. Seyssel: Champ Vallon, 1993, p. 105-23.

3 Título original: “Kulturgeographie der Vereinigten Staaten von Nord-Amerika unter besonderer Berücksichtigung der wirtschaftlichenVerhältnisse” (CLAVAL, 1999, p. 20).

4 VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Principes de géographie humaine. In: GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1996, p. 115-116.

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Ambos, Friedrich Ratzel e Paul Vidal de La Blache,são geralmente vistos como os principais expoentes dopositivismo geográfico. Vale lembrar, entretanto, que setrata do positivismo dinâmico de Auguste Comte, emque existe uma relação dialética entre “Ordem e pro-gresso”, estado e processo. O que movimenta este pro-cesso, é o espírito do homem (Ratzel) e a capacidadede inovação (La Blache). Nesta visão, o positivismo ébem diferente do positivismo simplificado e descritivoque vem se desenvolvendo entre os seus sucessores,que vêem na paisagem meramente um conjunto está-vel de elementos, como se propagou no começo doséculo XX até os anos 50. Há de se destacar que, comLa Blache, a geografia torna-se claramente antideter-minista, observando as relações mútuas entre o homeme o ambiente físico, nas quais não se podem estabele-cer limites entre fenômenos naturais e culturais porqueeles se interpenetram.

A PAISAGEM NO DISCURSO DO INÍCIO DO SÉCU-LO XX

Otto Schlüter, que desde 1890 vinha se espe-cializando no estudo dos estabelecimentos humanos,casas, campos, cercados, etc., redige, em 1907, umacurta brochura na qual faz da paisagem o objeto da geo-grafia humana. Segundo CLAVAL (1999, p. 23), “O ecoque encontra esta publicação é considerável. Ela man-tém a unidade da geografia, pois uma paisagem é tantomodelada pelas forças da natureza e pela vida, quantopela ação dos homens”. Otto Schlüter dedica, assim,boa parte de sua obra a retratar o estudo desde a pré-história das flutuações da cobertura florestal até as zo-nas humanizadas no espaço germânico.

Ainda na literatura geográfica alemã, SiegfriedPassarge usou pela primeira vez a denominação “geo-grafia da paisagem” e, desde 1913, propôs em váriasobras o conceito de “ciência da paisagem”.

O grande organizador deste conhecimento, toda-via, foi Alfred Hettner, que compõe a geografia em trêsperspectivas, todas de origem kantiana: a geografia geral(dividida em várias disciplinas como geomorfologia, geo-grafia climática, geografia dos solos, geografiaeconômica, etc.), a geografia nomotética e a geografiaidiográfica, os dois últimos fazendo parte da geografiaregional. A perspectiva nomotética trabalha os assun-tos em forma comparativa, estabelecendo uma tipologiade paisagem conforme determinados critérios, enquan-to a perspectiva idiográfica focaliza no conjunto especí-fico de uma única paisagem, buscando entender como

ela se organiza internamente. Para Hettner, a geografiadeveria ser ao mesmo tempo física e humana.

Esta organização do conhecimento é comum naépoca e se observa entre muitos autores, como colocaHOLT-JENSEN (1988, p. 34) “...a geografia alemã dasprimeiras quatro décadas do século XX foi dominadapor pensadores neokantianos tais como Hettner, quebaseou sua epistemologia na idéia de Immanuel Kantde ciências nomotéticas e idiográficas“. Muitos geógrafosda época mostram um pensar fortemente influenciadopela geografia alemã e vêem na paisagem um conjuntode fatores naturais e humanos, reunindo-os num con-ceito regional, passando as delimitações entre a geo-grafia física e humana.

Carl Sauer, por exemplo, em “Morfologia da pai-sagem” tratou a paisagem numa perspectiva morfoló-gica, tanto em aspectos naturais como em aspectos hu-manos. Para ele, a paisagem cultural representa, con-seqüentemente, uma materialização de pensamentose ações humanas, mas nunca sai do seu caráter físico-material, fato que aponta pela forte influência dopositivismo descritivo da época. Segundo CLAVAL (1999,p. 31) “seus métodos para a geografia cultural exigiamuma sólida formação naturalista, que se preocupa coma fauna, agricultura, incêndios, colheita, migrações, pas-tagens, florestas, caça, etc”.

Na Alemanha dos anos vinte começa, porém, umaoutra discussão sobre a paisagem. Esta busca a “almada paisagem” e o seu caráter pessoal; é principalmentepromovida por Ewald Banse e mais tarde por SiegfriedPassarge. Segundo HOLT-JENSEN (1988, p. 81) “esta‘psicologização’ pode ser interpretada como uma certavolta ao entendimento da paisagem como representa-ção, sendo claramente utilizada na interação dos habi-tantes com seu ambiente. Ewald Banse declarou que ageografia deve ser redefinida como arte e entende quea geografia real é uma apresentação de experiências eimpressões espirituais”.

O afastamento entre o discurso positivista-mate-rialista e o discurso “psicologizante” na Geografia dapaisagem se explica, neste momento, provavelmentepelo surgimento de uma ciência psicológica mais atu-ante, como mostram debates semelhantes na área dafilosofia, por exemplo, entre Edmund Husserl e MartinHeidegger. A vertente da “Geopsyche” (Helpach), con-tudo, mostra pouco efeito de médio prazo no discurso,porque muitos dos seus expoentes ficaram ligados aofascismo. Hoje, todavia, a interpretação da paisagem eas novas pesquisas sobre o relacionamento psicológi-co com o ambiente reabrem a possibilidade de uma re-tomada deste tema.

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O DISCURSO FUNCIONALISTA DA PAISAGEM

Na contribuição de Hartshorne percebe-se umadiferença semiótica no entendimento dos significadosde paisagem e região em relação aos geógrafos clás-sicos: “Para os adeptos do conceito de paisagem, atipologia morfológica é o produto final da pesquisa,sendo esse um raciocínio primitivo, pois ‘a mera men-ção de padrões sem qualquer consideração ulterior éa discussão em sua mais simples e mais acrítica for-ma’. De forma geral, o conceito de região está na baseda concepção científica da diferenciação espacial e, apartir de sua definição, a geografia pode desenvolverum método regional fundado na análise comparativadas estruturas espaciais, onde a região é vista como asíntese das relações complexas entre o campo daspesquisas físicas e humanas” (HARTSHORNE, apudGOMES, 1996, p. 240).

A partir dos anos 60, o termo “região” substitui,sob influência de Hartshorne, quase totalmente o termo“paisagem” nos circuitos geográficos, principalmente naAmérica do Norte. Paralelamente, se desenvolve na Ale-manha um estudo da paisagem, que parte do pressu-posto que a paisagem representa um conjunto específi-co de relações ecológicas, principalmente com os seusfatores físicos. Esta idéia, lançada por Carl Troll, em1939, dá raiz à “Landschaftsökologie” (ecologia da pai-sagem), que reagrupa os elementos da paisagem deum ponto de vista ecológico, dividindo-os em ecótopos,unidades comparáveis aos ecossistemas. Com estemodo de pensar, introduzia-se um entendimentosistêmico das unidades geográficas, que também fazparte da “Nova Geografia”.

Mas, enquanto as pesquisas da Landschaftsökologiese aproveitam de um empirismo da observação direta, le-vantando aspectos visíveis e mediáveis na paisagem con-creta, a Nova Geografia americana parte de um empirismoabstrato, dependendo de dados filtrados por estatísticas ea matemática, com médias, variâncias e tendências. Am-bos, entretanto, se orientam pela terceiridade, no sentidode Peirce, apresentando interpretações do sistema funci-onal da paisagem.

UM JOGO MULTI-PARADIGMÁTICO –A HUMANIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

A partir dos anos 70, ocorrem várias contra-reações ao positivismo e neopositivismo então vigente.A geografia crítica, por exemplo, principalmente na suavertente estruturalista, evitou falar de paisagem, inter-pretando a organização do espaço em termos críticos efuncionalistas. Insiste que em cada lugar se reproduz alógica econômica e social do capitalismo. Desta forma,

segundo LENCIONI (1999, p. 171), “o espaço é inter-pretado nomoteticamente, apontando para as regrasgerais das lutas sociais e das contradições do sistemacapitalista, reproduzindo-se através das desigualdadesregionais”. Uma interpretação estruturalista, desta for-ma, deixa pouco espaço para uma geografia regionalque aponta para o específico de uma região.

Neste período, COSGROVE (1995, p. 42) desta-ca a paisagem como sendo intimamente ligada à cultu-ra e à idéia de que as formas visíveis são representa-ções de discursos e pensamentos. Assim, a paisagemaparece como um lugar simbólico. É agora a maneirade ver, compor e harmonizar o mundo que a torna im-portante. Assim, a paisagem se faz através da criaçãode uma unidade visual onde o seu caráter é determina-do pela organização de um sistema de significação. Olocal é, então, complexo, com múltiplos patamares designificados.

Dentro da geografia física, a visão da paisagemfoi ampliada, na mesma época, com a incorporação deelementos da civilização, como exposto nas obras dosirmãos Odum. Nesta discussão, gradativamente o ter-mo “paisagem” é substituído por “ecossistema”, focali-zando mais nos elementos funcionais, integrativos, emenos na parte descritiva. Esta percepção da unidadeda paisagem por meio das relações dos ecossistemasajuda, em muito, durante os anos 80, a incorporar asidéias de desenvolvimento sustentável e do ecocentris-mo. Nesse aspecto, a paisagem volta a tomar corpotanto como objeto de exploração por grupos econômicoscomo objeto de interesse de proteção de uma coleti-vidade com uma certa consciência ambiental. Ocorreaqui, especificamente, que a visão ecossistêmica per-de um pouco sua espacialidade, tornando-se mais bio-lógica e menos geográfica, já que Odum é, notoriamen-te, biólogo. Assim, a multidisciplinaridade ganha forçano estudo do meio ambiente e da geografia. Neste mo-mento, abre-se um campo para uma nova visão culturalda geografia física. A geografia física precisa do ele-mento humano, sem o qual não teria uma significação,uma vez que o próprio pesquisador é um agente cultu-ral.

Mas paralelamente continua a diferença na inter-pretação da paisagem. Enquanto na geografia físicaprevalece um entendimento da paisagem como siste-ma ecológico, a geografia humana aponta mais numaabordagem interpretativa. Abre-se, desta forma, umadialética entre o concreto e o abstrato, de novo ao longoda questão do entendimento da paisagem, seja em ter-mos materiais ou de significação. Entendemos que essadiferença é necessária e benéfica, uma vez que cadafenômeno requer uma análise específica para cada ní-vel de interpretação.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEI-TO DE PAISAGEM

Enquanto as abordagens positivistas e funcio-nalistas entendem a paisagem e os seus elementoscomo denotativos, em que cada elemento tem as suasfunções e os seus significados claros, as perspectivasinterpretativas são conotativas e, assim, são ambíguasna compreensão dos elementos paisagísticos. Nestecontexto, cada dimensão hermenêutica da paisagemrepresenta um entendimento específico desta e é váli-do apenas em um limitado campo discursivo. Isto seaplica tanto no caso das interpretações de determina-dos grupos sociais, dos quais cada um se exprime ematividades específicas, formas culturais diferentes e lin-guagens diferenciadas, como para abordagens e inter-pretações entre a paisagem física ou a cultural. As tra-duções entre os diferentes níveis de entendimento, en-tretanto, permitem um diálogo mais abrangente, e po-dem ser vistas como transformações semióticas, cha-madas semioses.

Percebe-se, então, que não existe uma geogra-fia que sirva ao estudo, em todos os níveis, da paisa-gem. Pois sua complexidade torna impossível qualqueranálise geográfica sob a luz de uma única abordagem.Assim, toma-se então que o olhar a partir de uma deter-minada abordagem constrói um filtro que ressalta o queessa abordagem propõe, e a paisagem, seja física oucultural, exige uma filtragem mais ampla que, algumasvezes, foge até mesmo das questões geográficas maisclássicas, necessitando uma filtragem científica, cultu-

ral, filosófica, política, entre outras, mostrando um carátermultidisciplinar no seu estudo.

Defende-se que, em muitos casos, a paisagemdeve ser encarada não apenas como um objeto de es-tudo, refletido e interpretado intelectualmente, mas comouma forma de vivência na sua plena positividade do co-tidiano das pessoas, conforme também coloca DARDEL(1990, p. 54), ao pregar que “a paisagem não se refereà essência, ao que é visto, mas, representa a inserçãodo homem no mundo, a manifestação de seu ser paracom os outros, base de seu ser social”.

Neste sentido, quem sabe perceber uma paisa-gem consegue entender seu valor, perceber a impor-tância dela em sua vida, criar vínculo afetivo com ela e,conseqüentemente, defender a sua perpetuação. “Paraque isso acorra, o indivíduo necessita estar de bem comvida, possuir uma educação que lhe permita meditarsobre sua existência e seu entorno, e precisa de umaatitude cultural e psicológica equilibrada numa socieda-de de justiça social” (SCHIER, 2003, p. 88).

De forma geral, hoje é possível perceber a exis-tência conceitual de várias paisagens, em forma de re-gião, território, lugar, etc. Discutir essa pluralidadeconceitual e cognitiva é, no âmbito da geografia, semdúvida um grande desafio. Para a esfera da geografiafísica já se percebe uma grande mudança ao se focar aproblemática da paisagem, levando em conta o homem,muito embora possa aparecer de forma denotativa efuncional, enquanto para a geografia cultural, há algumtempo, as paisagens são conotativas, cheias de valo-res subjetivos e relacionados às culturas.

REFERÊNCIAS

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