paisagem e geografia física global. esboço metodológico1

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R. RA´E GA, Curitiba, n. 8, p. 141-152, 2004. Editora UFPR 141 PAISAGEM E GEOGRAFIA FÍSICA GLOBAL. ESBOÇO METODOLÓGICO 1 Georges BERTRAND “Paisagem” é um termo pouco usado e impreci- so, e por isto mesmo, cômodo, que cada um utiliza a seu bel prazer, na maior parte das vezes anexando um qualificativo de restrição que altera seu sentido (“paisa- gem vegetal”, etc.). Emprega-se mais o termo “meio”, mesmo tendo este termo outro significado. O “meio” se define em relação a qualquer coisa; este termo é im- pregnado de uma finalidade ecológica que não é en- contrada na palavra “paisagem”. 2 O problema é de ordem epistemológica. Real- mente, o conceito de “paisagem” ficou quase estranho à geografia física moderna e não tem suscitado nenhum estudo adequado. É verdade que uma tal tentativa implica numa reflexão metodológica e pesquisas específicas que escapam parcialmente à geografia física tradicional. Esta é, com efeito, desequilibrada pela hipertrofia da pesquisa geomorfológica e por graves carências, em particular no domínio das ciências biogeográficas. Enfim, ela permanece essencialmente analítica e “separativa”, qualificativo emprestado de P. PÉDELABORDE que opõe a climatologia clássica “separativa” (estudo das temperaturas, das precipitações, etc.) à climatologia “di- nâmica” (estudo global das massas de ar) 3 enquanto que o estudo das paisagens não pode ser realizado senão no quadro de uma geografia física global. A paisagem não é a simples adição de elemen- tos geográficos disparatados. É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. A dialética tipo-indivíduo é próprio fundamento do método de pesquisa. É preciso frisar bem que não se trata somente da paisagem “natural” mas da paisagem total integrando todas as implicações da ação antrópica. No entanto, deixaremos provisoriamente de lado as paisagens fortemente urbanas que, criando problemas originais, determinam possivelmente, para alguns de seus aspectos, métodos análogos. Estudar uma paisagem é antes de tudo apresentar um problema de método. 1 Tradução: Olga Cruz. Trabalho publicado, originalmente, na “Revue Geógraphique des Pyrénées et du Sud-Ouest”, Toulouse, v. 39 n. 3, p. 249-272, 1968, sob título: Paysage et geographie physique globale. Esquisse méthodologique. Publicado no Brasil no Caderno de Ciências da Terra. Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, n. 13, 1972. 2 Meio: “Espaço que envolve imediatamente as células ou os organismos vivos e com o qual os seres vivos realizam trocas constan- tes de matéria e de energia”. Grand Larousse Encyclopédique, t. 7, p. 358. 3 PEDELABORDE, P. Introduction à l’étude scientifique du climat. Paris: C.D.U., 1995. p. 3.

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PAISAGEM E GEOGRAFIA FÍSICA GLOBAL. ESBOÇO METODOLÓGICO1

Georges BERTRAND

“Paisagem” é um termo pouco usado e impreci-so, e por isto mesmo, cômodo, que cada um utiliza aseu bel prazer, na maior parte das vezes anexando umqualificativo de restrição que altera seu sentido (“paisa-gem vegetal”, etc.). Emprega-se mais o termo “meio”,mesmo tendo este termo outro significado. O “meio” sedefine em relação a qualquer coisa; este termo é im-pregnado de uma finalidade ecológica que não é en-contrada na palavra “paisagem”.2

O problema é de ordem epistemológica. Real-mente, o conceito de “paisagem” ficou quase estranho àgeografia física moderna e não tem suscitado nenhumestudo adequado. É verdade que uma tal tentativa implicanuma reflexão metodológica e pesquisas específicas queescapam parcialmente à geografia física tradicional. Estaé, com efeito, desequilibrada pela hipertrofia da pesquisageomorfológica e por graves carências, em particular nodomínio das ciências biogeográficas. Enfim, elapermanece essencialmente analítica e “separativa”,qualificativo emprestado de P. PÉDELABORDE que opõea climatologia clássica “separativa” (estudo dastemperaturas, das precipitações, etc.) à climatologia “di-

nâmica” (estudo global das massas de ar)3 enquanto queo estudo das paisagens não pode ser realizado senão noquadro de uma geografia física global.

A paisagem não é a simples adição de elemen-tos geográficos disparatados. É, em uma determinadaporção do espaço, o resultado da combinaçãodinâmica, portanto instável, de elementos físicos,biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamenteuns sobre os outros, fazem da paisagem um conjuntoúnico e indissociável, em perpétua evolução. A dialéticatipo-indivíduo é próprio fundamento do método depesquisa.

É preciso frisar bem que não se trata somente dapaisagem “natural” mas da paisagem total integrandotodas as implicações da ação antrópica. No entanto,deixaremos provisoriamente de lado as paisagensfortemente urbanas que, criando problemas originais,determinam possivelmente, para alguns de seusaspectos, métodos análogos.

Estudar uma paisagem é antes de tudo apresentarum problema de método.

1 Tradução: Olga Cruz. Trabalho publicado, originalmente, na “Revue Geógraphique des Pyrénées et du Sud-Ouest”, Toulouse, v. 39n. 3, p. 249-272, 1968, sob título: Paysage et geographie physique globale. Esquisse méthodologique. Publicado no Brasil no Caderno deCiências da Terra. Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, n. 13, 1972.

2 Meio: “Espaço que envolve imediatamente as células ou os organismos vivos e com o qual os seres vivos realizam trocas constan-tes de matéria e de energia”. Grand Larousse Encyclopédique, t. 7, p. 358.

3 PEDELABORDE, P. Introduction à l’étude scientifique du climat. Paris: C.D.U., 1995. p. 3.

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A exposição que se segue dá ênfase suces-sivamente a problemas de taxonomia, de dinâmica, detipologia e de cartografia das paisagens.

A ANÁLISE DA PAISAGEM

A noção de escala é inseparável do estudo daspaisagens. As escalas temporo-espaciais de inspiraçãogeomorfológica de A. CAILLEUX e J. TRICART foramutilizadas como base geral de referência para todos osfenômenos geográficos (a ordem de grandeza é indicadaentre parêntesis, abreviada G. I, G. II, G. III).4

1 – As classificações elementares - cada disciplinaespecializada no estudo de um aspecto da paisagemse apóia em um sistema de delimitação mais ou menosesquemático formado de unidades homogêneas (aomenos em relação à escala considerada) ehierarquizadas, que se encaixam umas nas outras. Aclassificação fitogeográfica de H. GAUSSEN: ANDAR(ex. mediterrâneo) – SÉRIE (ex. carvalho verde) –ESTÁDIO (ex. garrigue) é a melhor ilustração disso. Emqualquer dos casos, trata-se de unidades específicasque podem ser qualificadas de “elementares” em relaçãoao complexo formado pela paisagem. Esses sistemassão tão variados quanto numerosos; nós não reteremossenão os que apresentam um interesse do ponto de vistada taxonomia das paisagens.

As classificações climáticas e pedológicas sãotambém tão gerais como teóricas e, além disso, sãobastante discutíveis. A hierarquia bem conhecida desdeMax Sorre: clima zonal (G. I), clima regional (G. I a G.IV), clima local (G. V - G. VI) e microclima (G. VII), podefornecer um primeiro ponto de partida. Osgeomorfologistas nunca demonstraram muito interessepor questões taxonômicas. Podendo citar somente aclassificação morfo-estrutural apresentada por G. VIERSconforme os trabalhos de J. TRICART: o domínioestrutural (ex. Europa herciniana, G. III) a regiãoestrutural (ex. as Ardenas, G. IV) – a unidade estrutural(ex. um anticlinal pré-alpino, G. V).5 A bacia-vertente,unidade hidro-geomorfológica, corresponde a umadescontinuidade essencial da paisagem, mas ela éheterogênea por definição e o limite à jusante é sempre

difícil de ser estabelecido. Enfim, as paisagens ditas “fí-sicas” são com efeito quase sempre amplamente re-modeladas pela exploração antrópica. A divisão emparcelas, territórios, comunidades, quarteirões e “pays”vai então constituir um dos critérios essenciais dataxonomia das paisagens.6

No entanto, a melhor aproximação do problemaé fornecida pela vegetação que se comporta semprecomo verdadeira síntese do meio. As unidadesfitogeográficas citadas acima (andar-série-estádio)correspondem a massas vegetais perfeitamentedefinidas tanto no plano fisionômico quanto no planodinâmico. A fitosociologia moderna com orientaçãosinecológica vem harmoniosamente completar estesistema, permitindo delimitar unidades homogêneas doponto de vista florístico (associações e agrupamentosvegetais, G. VI a G. VII).

Como era de se esperar, essas diversasclassificações elementares não têm entre elas nenhumarelação lógica porque os fenômenos em causapertencem a ordens geográficas diferentes. Certosespecialistas realizaram reagrupamentos parciais queconstituem já uma 1ª etapa para a definição daspaisagens. Nesse domínio, os biogeógrafos, já há muitotempo, precederam os geógrafos.

2 – As combinações bio-ecológicas – A biocenoseé

um agrupamento de seres vivos, correspondendo, pelacomposição e pelo número das espécies e dosindivíduos, a certas condições médias do meio,agrupamento de organismos, ligados por umadependência recíproca que se mantém por reproduçãode maneira permanente”7

O pântano com rãs é um exemplo dessacombinação. A biocenose coloniza o biótopo que é aunidade elementar correspondente ao menor conjuntohomogêneo do meio físico-químico (G. VII-VIII). Oecótopo, a biogeocenose, o microcosmo, o “holocoen”,o “naturcomplex”, o fisiótopo, a geoforma, etc., exprimemcom algumas variações, e de diversas maneiras, umarealidade bem próxima.8

As unidades biogeográficas superiores, como atundra, a savana, a floresta tropical úmida, são

4 TRICART, J. Principes et Méthodes de la Géomorphologie. Paris: Masson, 1965, p. 79-90. Ver também GLANGEAUD, L. Degré derégionalité. Bull Soc. Géol. Fr., 1952.

5 VIERS, G. Eléments de Géomophologie. Paris: Nathan, 1967, p. 27-29.6 Terminologia utilizada por R. BRUNET nos estudos a serem publicados: La notion de quartier rural. Bull A.G. F., 1968 et Rev. Géogr.

Pyr. S. - O., 1968.7 ANGELIER, M. Cours de biogéographie animale, proferido no Centro do 3º Ciclo de Biogeografia, da Faculdade de Ciências de

Toulouse, 1963-1964.8 Cf., mais particularmente, KORMONDY, E. S. Readings of ecology, New Jersey, 1965, 220 p.

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qualificadas de “biomas”. São massas relativamentehomogêneas de vegetais e de animais, em equilíbrioentre elas, e com o clima. As “zonas ecológicasequipotenciais” de P. REY poderiam servir de unidadesintermediárias entre a biocenose e o bioma, tanto maisque elas tentam integrar certos dados geológicos ehumanos (G. V-VI). Apoiando-se nessa noção de“equipotencialidade” ecológica e aplicando métodos deanálises multifatoriais preconizadas por B. L. J. BERRYno domínio da pesquisa sócio-psicológica, M. PHIPPStem a ambição de achar as estruturas da “paisagembiogeográfica” e de definir matematicamente um “modelobiogeográfico” da paisagem.9

Os biogeógrafos modernos foram ainda maislonge a caminho da síntese, definindo o “ecossistema”.Acentuaram as cadeias e as redes tróficas, isto é, asligações alimentares que unem os indivíduos e ascomunidades vivas: “Qualquer que seja o ecossistemaestudado, (…) trata-se sempre, em definitivo, de umproblema de elaboração, de circulação, de acumulaçãoe de transformação de energia potencial pela ação dosseres vivos e seu metabolismo”.10 Entre as melhoresaplicações desse sistema, em particular no planocartográfico, é preciso citar os trabalhos dos norte-americanos, dos belgas, dos alemães, dos soviéticos edos poloneses.11 O ecossistema não tem nem escalanem suporte especial bem definido. Ele pode ser ooceano, mas também pode ser o pântano com rãs. Nãoé, portanto, um conceito geográfico. Nessas condiçõesé melhor renunciar e reajustar a taxonomiabiogeográfica, a escolher livremente unidadesgeográficas globais adaptadas ao estudo da paisagem.Diversas tentativas já foram realizadas nesse sentido.

3 – As primeiras sínteses geográficas - A “regiãonatural” foi durante longo tempo o pilar da geografiafrancesa. “O termo de região se aplica (…) tanto aconjuntos físicos, estruturais ou climáticos como adomínios caracterizados pela sua vegetação”.12

Realmente, a “região natural” escapa a toda definiçãoracional tanto pelo conteúdo como pela superfíciecoberta (G. III à G. V). Pode-se conservar esta unidade

maleável e cômoda com a condição de colocá-la emum sistema taxonômico coerente. De uma maneira geral,as sínteses de geografia física, realizadas durante a“idade de ouro” da geografia regional francesa, pecavampela falta de cultura biológica e ecológica. É fora daFrança que devem ser procuradas as raras tentativaspara apreender a paisagem na sua totalidade. Nósdeixaremos por enquanto de lado todas as delimitaçõesmais ou menos agronômicas ligadas ao “land-use”britânico ou ao “soil-survey” norte-americano.

A noção de “Landschaft” domina toda a geografiagermânica. Desde a 2ª metade do século XIX, uma“Landschaftskunde” tentou precisar as relações do ho-mem e do meio. O determinismo abrupto desta ciênciada paisagem arruinou completamente a iniciativa ecertamente contribui a desviar os geógrafos francesesda ecologia, então em nascimento.13 Ele lançou as basesda “Landschaftsökologie” que é um estudo da paisagemdo ponto de vista ecológico. As paisagens são divididasem “ecótopos” (ou em “landschaftzellen”) que sãounidades inteiramente comparáveis ao ecossistema.Este método representa um progresso decisivo sobreos estudos fragmentados dos geógrafos e dosbiogeógrafos, porque ele reagrupa todos os elementosda paisagem, e o lugar reservado ao fenômeno antrópicoé bem importante nele. No entanto, trata-se mais de umaatitude de espírito do que de um método de estudocientificamente estabelecido. A definição dos “ecótopos”permanece imprecisa e a hierarquização dos fatores nãoé evocada. Nenhuma tipologia sistemática permite lançarclaramente o problema da representação cartográfica.Trata-se em suma de um método mais ecológico quegeográfico.

Pesquisadores soviéticos e americanos ultrapas-saram por generalização o conceito de ecossistema etentaram abordar as paisagens sob o aspectoestritamente quantitativo. (TROLL, 1966). A paisagemé considerada como um sistema energético cujo estu-do se lança em termos de transformação e de produtivi-dade bioquímica. Esta “geochemical landscape” enri-quece e simplifica ao mesmo tempo a noção tradicional

9 REY, R. CABAUSSEL, ARLES, Les bases biogéographiques de la restauration forestière et pastorale dans de département de l‘Aude-Corbières, Razès, Piegè. Toulousse, 1961 (C.N.R.S., Service de la carte de la vegétation, 39 p. ronéo) PHIPPS, M. Introduction auconcept de modèle biogéographique. Actes 2º Symposium Internat. Phot. Interprétation, Paris, 1966, v. 4, n. 2, p. 41-49.

10 DUVIGNEAUD, P.; TANCHE, M. Ecosystème et biosphère. L’ écologie, science moderne de synthese (v. 2). Trav. Centre Ecologiegénérale, minist. Education Nationale, Bruselles, 1962, 127 p.

11 Entre outros citemos: CROWLEY, J. M.; JURDANT, M.; KUCHLER, A. W.; SHELDFORD, V. (Canadá, U.S.A.) J. SMITHUSEN, C.TROLL e R. TUXEN (Allemagne), P. DUVIGNEAUD (Belgique), ICHACHENKO, NEOSTRUEV, PALYNOV, SOTCHAVA, VILENSKY, VINK,etc. (U.R.S.S.), KONDRACKI (Pologne) et PLESNIK (Tchécoslovaquie). Ver mais particularmente J. M. CROWLEY, La Biogéographie vuepar um géographe, C. R. som. Soc. Biogéographie, 1967, n. 380-382, p. 20-27.

12 CHOLLEN, A. La géographie guide de l‘ etudiant. Paris, 1951, p. 31.13 TROLL, C. retomou esta idéia apoiando-se nos trabalhos dos ecologistas anglo-saxões, tirando proveito de sua própria experiên-

cia sobre foto-interpretação. TROLL, C. Landscape ecology. Public of the I.T.C UNESCO Centre for Integrated Surveys, 1966, Delft S. 4, 23 p.

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de “paisagem”. Mas os próprios especialistas se per-guntam como poderão medir (posta de lado, afotossíntese) as transformações de energia ao nível deoutros elementos que não os vegetais, particularmenteao nível da microfauna. Mesmo o cálculo aproximadodo balanço energético de uma paisagem não é aindapossível. No momento, o principal interesse da“geochemical landscape” é chegar a uma tipologia di-nâmica das paisagens em função da migração das subs-tâncias geoquímicas. Distinguem-se 3 categorias depaisagens: um tipo “residual” (estável), um tipo de “trân-sito” (perda de substância) e um tipo de “acumulação”.Sob uma formulação diferente, reencontra-se a bio-resistasia de H. ERHART que certos geógrafos tentamadaptar à geografia física.14 Neste nível de concepção,a paisagem aparece como um objeto de estudo bemdefinido que apela para um ponto de vista metodológico.

A SÍNTESE DA PAISAGEM

Todas as delimitações geográficas são arbitrári-as e “é impossível achar um sistema geral do espaçoque respeite os limites próprios para cada ordem de fe-nômenos.”15 Contudo, pode-se vislumbrar umataxonomia das paisagens com dominância física sob acondição de fixar desde já limites.

1º) A delimitação não deve nunca serconsiderada como um fim em si, massomente como um meio de aproximaçãoem relação com a realidade geográfica. Emlugar de impor categorias pré-estabelecidas,trata-se de pesquisar as descontinuidadesobjetivas da paisagem.

2º) É preciso de uma vez por todas renunciar adeterminar unidades sintéticas na base deum compromisso a partir das unidadeselementares; seria certamente um maumétodo querer superpôr, seja pelo métodocartográfico direto, seja pelo métodomatemático (sistema de rede), o máximode unidades elementares para destacar daíuma unidade “média” que não exprimirianenhuma realidade por existir a estruturadialética das paisagens. Ao contrário, é pre-

ciso procurar talhar diretamente a paisagemglobal tal qual ela se apresenta. Naturalmen-te a delimitação será mais grosseira, masas combinações e as relações entre os ele-mentos, assim como os fenômenos de con-vergência aparecerão mais claramente. Asíntese, no caso, vem felizmente substituira análise.

3°) O sistema taxonômico deve permitir classi-ficar as paisagens em função da escala, istoé, situá-las na dupla perspectiva do tempoe do espaço. Realmente, se os elementosconstituintes de uma paisagem são mais oumenos sempre os mesmos, seu lugar res-pectivo e sobretudo suas manifestações noseio das combinações geográficas depen-dem da escala temporo-espacial. Existem,para cada ordem de fenômenos, “inícios demanifestações” e de “extinção” e por elespode-se legitimar a delimitação sistemáti-ca das paisagens em unidadeshierarquizadas.16 Isto nos leva a dizer quea definição de uma paisagem é função daescala. No seio de um mesmo sistemataxonômico, os elementos climáticos e es-truturais são básicos nas unidades superi-ores (G. I a G. IV) e os elementosbiogeográficos e antrópicos nas unidadesinferiores (G. V a G. VIII).

O sistema de classificação finalmente escolhidocomporta seis níveis temporo-espaciais; de uma partea zona, o domínio e a região; de outra parte, ogeosistema, o geofácies e o géotopo (observar a tabela1 - a seguir).

1 – As unidades superiores – As pesquisas têm-se limitado às unidades inferiores. No entanto, pareceunecessário apresentar um sistema taxonômicocompleto. Para as unidades superiores, é suficienteretomar o sistema de delimitação consagrado pelo uso,precisando somente a definição e o lugar relativo decada unidade.

O qualificativo de “zona” deve ser imperativa-mente ligado ao conceito de zonalidade planetária. Éentão reservado aos conjuntos de 1ª grandeza (zona

14 ERHART, H. La genèse des sols entant que phénomène géologique. Esquisse d’une théorie géologique et géochimique. Exemplesd’application. Paris, 2. ed., 1967, 177 p.

15 CLAVAL, P. La division regionale de la Suisse. Rev. Géogr. de 1’ Est, 1967, p. 83-94.16 BRUNET, R. Les phénomènes de discontinuité en géographie (These complém. Toulouse, 1965, p. 22-28), sur ex-ronéo (Em vias

de publicação no “Memoires e Documents du Centre de Recherches et Documentation cartogra-phiques et géographiques du C.N.R.S.”).

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temperada). Na realidade, a zona se define primeira-mente pelo seu clima e seus “biomas”, acessoriamentepor certas megaestruturas (os estudos das áreas tropi-cais...).

O “domínio” corresponde a unidade de 2ª grandeza.O domínio mediterrâneo s.s. é um exemplo deste tipo comsuas paisagens vigorosamente individualizadas. Damesma maneira, define-se um domínio cantábricocaracterizado por uma certa combinação de relevosmontanhosos e de climas oceânicos. A definição dodomínio deve ficar suficientemente maleável para permitirreagrupamentos diferentes nos quais a hierarquia dosfatores pode não ser a mesma (domínio alpino, domínioatlântico europeu...).

A região natural, já apresentada, situa-se entre a3ª e 4ª grandeza. Os Picos de Europa constituem, nointerior do domínio cantábrico, uma região natural bemcircunscrita que corresponde à individualização tectônicade um maciço calcário vigorosamente compartimentadoe carstificado. Ele constituiu uma “frente montanhosa”hiperúmida e hipernebulosa caracterizado por um an-

dar biogeográfico original (mistura faia-carvalho verdenas baixas encostas, ausência de resinosas, limitessuperior da floresta bem baixa, passagem da “terra fus-ca” oceânicas aos solos alpinos húmicos).

2 – As unidades inferiores - Foi necessário montartodas as peças das unidades globais inferiores à regiãonatural. Após numerosos ensaios, forjaram-se 3entidades novas: o geosistema, o geofácies e o geótopo.Estes termos têm a vantagem de não terem sidoutilizados, de serem construídos em um modelo idênticoe de evocar cada um o traço característico da unidadecorrespondente. Na verdade, geo “sistema” acentua ocomplexo geográfico e a dinâmica de conjunto; geo“facies” insiste no aspecto fisionômico e geo “topo” situaessa unidade no ultimo nível da escala espacial.17

a) O geosistema – O exemplo de geosistemaSierras Planas (Espanha do noroeste, domíniocantábrico região dos picos de Europa). As Sierras Pla-nas são plataformas escalonadas entre 180 e 450m dealtitude entre o oceano Atlântico e o maciço Cantábrico.Talhadas no arenito e os quartzitos do primário, elas

17 Em um 1° estudo consagrado à análise de um caso concreto (BERTRAND, G. Esquisse biogéographique de la Liébana, Ladynamique actuelle des paysages, R.G.P.S. – O, 1964, fasc. 3, p. 225-262), havia-se utilizado um vocabulário diferente que tinha sidocriticado por um certo número de especialistas.

TABELA 1 –

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representam os vestígios de superfícies deaplainamento de idade miocênica que se ligam aopiemonte norte-cantábrico hoje em sua maior parteafundado e afogado sob o oceano. Esses planaltos,talhados em estreitas línguas, por sulcos de erosão plio-quaternários, mergulham em um clima hiperoceânicoparticularmente úmido e nebuloso. As “landes” atlânti-cas partilham a superfície com as turfeiras oligotróficasde “Sphagnum” e “Polytricum”. As Sierras Planas fo-ram desmatadas e usadas como pastagens desde oneolítico. Atualmente, elas são sub-utilizadas: algunspedaços para pastoreio, reflorestamentos recentes comEucalyptus globulus e Pinus insignis, uma exploraçãoarcaica da turfa. É uma paisagem nítida e bem circuns-crita que se pode, por exemplo, identificar instantane-amente nas fotografias aéreas. Portanto as Sierras Pla-nas se ligam a unidades elementares discordantes ede extensão variável: um piemonte complexo quefranjeia toda a vertente norte-cantábrica, um clima co-mum ao conjunto do litoral asturiano, fenômenos depodzolização que são vistos em todas rochas matrizesquartzíticas das montanhas cantábricas, uma série ve-getal dominada pelo carvalho pedunculado que cobreuma superfície muito mais vasta, enfim uma explora-ção silvo-pastoral, que não é muito diferente das en-contradas nas regiões vizinhas. A unidade da paisa-gem é portanto incontestável. Ela resulta da combina-ção local e única de todos esses fatores (sistema dedeclive, clima, rocha, manto de decomposição,

hidrologia das vertentes) e de uma dinâmica comum(mesma geomorfogênese, pedogênese idêntica, mes-ma degradação antrópica da vegetação que chega aoparaclimax “lande” podzol ou à turfeira). A paisagemdas Sierras Planas caracteriza-se por uma certahomogeneidade fisionômica, por uma forte unidadeecológica e biológica, enfim, fato essencial, por ummesmo tipo de evolução. Este exemplo permite esbo-çar uma definição teórica do geosistema (vide figura 1– abaixo).

O geosistema situa-se entre a 4ª e a 5ª grandezatemporo-espacial. Trata-se, portanto, de uma unidadedimensional compreendida entre alguns quilômetrosquadrados e algumas centenas de quilômetros quadra-dos. É nesta escala que se situa a maior parte dos fenô-menos de interferência entre os elementos da paisa-gem e que evoluem as combinações dialéticas maisinteressantes para o geógrafo. Nos níveis superiores aele só o relevo e o clima importam e, acessoriamente,as grandes massas vegetais. Nos níveis inferiores, oselementos biogeográficos são capazes de mascararas combinações de conjunto. Enfim, o geosistemaconstitui uma boa base para os estudos de organiza-ção do espaço porque ele é compatível com a escalahumana.

O geosistema corresponde a dados ecológicosrelativamente estáveis. Ele resulta da combinação defatores geomorfológicos (natureza das rochas e dosmantos superficiais, valor do declive, dinâmica das

FIGURA 1 – ESBOÇO DE UMA DEFINIÇÃO TEÓRICA DE GEOSSISTEMA.

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vertentes...), climáticos (precipitações, temperatura...)e hidrológicos (lençóis freáticos epidérmicos enascentes, pH das águas, tempos de ressecamento dosolo...). É o “potencial ecológico” do geosistema. Ele éestudado por si mesmo e não sob o aspecto limitado deum simples “lugar”. Para uma soalheira calcária damédia montanha pirenaica, por exemplo, as paredestalhadas no calcário urgoniano-aptiano da bacia de“Tarascon-Ariège”, o potencial ecológico corresponde avertentes recobertas de camadas de fragmentosrochosos, a uma insolação e a um aquecimento dosubstrato, superiores à média regional, enfim, à ausênciade fontes e mesmo de todo o escoamento epidérmico.Pode-se admitir que existe, na escala considerada, umasorte de “contínuo” ecológico no interior de um mesmogeosistema, enquanto que a passagem de umgeosistema ao outro é marcada por uma desconti-nuidade de ordem ecológica.

O geosistema se define em seguida por um certotipo de exploração biológica do espaço. A vertente Nor-te da Montanha Negra (SW do Maciço central), bemservida por chuvas, fresca e nebulosa, é colonizada poruma floresta de faia montanhosa com urzes, Asperulaodorata, Melia como a flor, etc... em equilíbrio com solosbrunos florestais de vertentes. Há uma relação evidenteentre o potencial ecológico e a valorização biológica.No entanto, esta última depende também muito estrei-tamente do estoque florístico regional. Por exemplo, seo pinheiro pectíneo fosse espontâneo na MontanhaNegra, a floresta de faia seria naturalmente substituída,seja por uma floresta de faia e pinheiro, seja mesmopor uma floresta de pinheiro pura, com Prenanthespurpurea em solos lixiviados ou em solos podzólicos.

O geosistema está em estado de clímax quandohá um equilíbrio entre o potencial ecológico e aexploração biológica. A floresta de faia já citada realizaeste equilíbrio. O potencial ecológico está de qualquermaneira “saturado” e o geosistema caracteriza-se poruma boa estabilidade de conjunto. Mas é um casorelativamente raro.

Com efeito, o geosistema é um complexo essen-cialmente dinâmico mesmo em um espaço-tempo mui-to breve, por exemplo, de tipo histórico. O “clímax” estálonge de ser sempre realizado. O potencial ecológico ea ocupação biológica são dados instáveis que variamtanto no tempo como no espaço. A mobilidade biológicaé bem conhecida (dinâmica natural da vegetação e dossolos, intervenções antrópicas, etc.). De outro lado,parece que os naturalistas se interessaram pouco pela

evolução própria do potencial ecológico que precede,acompanha ou segue as modificações de ordem bioló-gica. Por exemplo, a destruição de uma floresta podecontribuir para a elevação do lençol freático ou desen-cadear erosões susceptíveis de transformar radicalmen-te as condições ecológicas. As noções de “fator –limitante” e de “mobilidade ecológica” merecem um exa-me aprofundado da parte do geógrafo advertido dos fe-nômenos de geomorfogênese e de degradaçãoantrópica.18

Por essa dinâmica interna, o geosistema nãoapresenta necessariamente uma grande homoge-neidade fisionômica. Na maior parte do tempo, ele éformado de paisagens diferentes que representam osdiversos estágios da evolução do geosistema.Realmente, estas paisagens bem circunscritas sãoligadas umas às outras por meio de uma série dinâmicaque tende, ao menos teoricamente, para um mesmoclímax. Estas unidades fisionômicas se unem então emuma mesma família geográfica. São os geofácies (pl.VII A e B).

b) O geofácies e o geótopo: no interior de ummesmo geosistema, o geofácies corresponde então aum setor fisionomicamente homogêneo onde sedesenvolve uma mesma fase de evolução geral dogeosistema. Em relação à superfície coberta, algumascentenas de Km2 em média, o geofácies se situa na 6a

grandeza de escalas de A. Cailleux e J. Tricart.Assim como para o geosistema, pode-se distinguir

em cada geofácies um potencial ecológico e umaexploração biológica. Nessa escala, é muitas vezes estaúltima que vem a ser determinação e que repercutediretamente na evolução do potencial ecológico. Ogeofácies representa assim uma malha na cadeia daspaisagens que se sucedem no tempo e no espaço nointerior de um mesmo geosistema. Pode-se falar decadeias progressivas e de cadeias regressivas degeofácies, como também de um “geofácies-clímax” queconstitui um estágio final da evolução natural dogeosistema. Na superfície de um geosistema, osgeofácies desenham um mosaico mutante cuja estrutu-ra e dinâmica traduzem fielmente os detalhes ecológi-cos e as pulsações de ordem biológica. O estudo dosgeofácies deve sempre ser recolocado nessa perspec-tiva dinâmica.

Às vezes é indispensável conduzir a análise aonível das microformas, na escala do metro quadrado oumesmo do decímetro quadrado (7a grandeza). Umadiáclase alargada pela dissolução (Pr. VIII, B), uma

18 Sur la notion de “mobilité écologique”, cf. BERTRAND, G. Pour une étude géographique de la végétation R.G.P.S. – O., 1966, fasc.2, p. 129-143.

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cabeceira de nascente, um fundo de vale que o sol nun-ca atinge, uma face montanhosa, constituem igualmen-te biótopos cujas condições ecológicas são muitas ve-zes muito diferentes das do geosistema e do geofáciesdentro das quais eles se acham. É o refúgio debiocenoses originais, às vezes relictuais ou endêmicas.Este complexo biótopo-biocenose, bem conhecido dosbiogeógrafos, corresponde ao “geótopo”, isto é, a menorunidade geográfica homogênea diretamente discernívelno terreno; os elementos inferiores precisam da análisefracionada de laboratório.

A tabela 1 resume a classificação sintética daspaisagens. De um lado, ela dá a escala e o lugar relati-vo de cada unidade global na hierarquia das paisagenscomo também os encadeamentos entre as diversasunidades. De outro, ela situa a série geosistema-geofácies-geótopo em relação a um certo número deunidades e de classificação elementares.

A DINÂMICA DA PAISAGEM

Considerando a paisagem como uma entidadeglobal, admite-se implicitamente que os elementos quea constituem participam de uma dinâmica comum quenão corresponde obrigatoriamente à evolução de cadaum dentre eles tomados separadamente. Somos levadosentão a procurar os mecanismos gerais da paisagem,em particular no nível dos geosistema e dos geofácies.O “sistema de erosão” de A. CHOLLEY inspiroudiretamente esta ordem metodológica. Por que não alar-gar o conceito de “sistema de erosão” no conjunto dapaisagem? Passar-se-ia assim de um fato estritamentegeomorfológicos à noção mais vasta, mais completa e,sobretudo mais geográfica, de “sistema geral de evolu-ção” da paisagem.

1- O exemplo de geosistema “mediterrâneo” daBaixa Liebana e do geosistema hiperoceânico dasSierras Planas (domínio cantábrico, região dos Picosde Europa).19 Os ravinamentos e os desnudamentos dasvertentes são freqüentes na Baixa Liebana. As causassão primeiramente geomorfológicas (possantedissecção plio-quarternária nos xistos tenros, mantossuperficiais espessos e instáveis) e fitogeográficos (ta-pete vegetal ralo e frágil de tipo relictual, isto é, emdesequilíbrio bioclimático). A situação é agravada pelosistema de valorização antrópica que multiplica osdesmatamentos, os incêndios e a degradação das flo-restas claras, dos “maquis” e das “garrigues”. Os solossão descontínuos e mal evoluídos (tipos

“rankeriformes”). A geomorfogênese condiciona entãoa dinâmica de conjunto desse geosistema e domina o“sistema de evolução” da paisagem. Nas Sierras Planasos pastores asturianos destruíram a floresta paraaumentar as áreas de pastoreio. Eles desencadearamuma cascata de processos pedológicos (podzolização,formação de turfa, hidromorfização) botânicos (extensãodas “landes” ácidas) e às vezes mesmo geomorfológicos(movi-mentação dos mantos arenosos jápedogeneizados). A pedogênese tem aí um papelessencial e bloqueia atualmente a dinâmica geral dapaisagem. Cada um desses geosistemas possui entãoum sistema de evolução diferente.

2- O sistema de evolução de uma unidade depaisagem, de um geosistema, por exemplo, reúne todasas formas de energia, complementares ou antagônicasque, reagindo dialeticamente umas em relação às outras,determinam a evolução geral dessa paisagem. Para asnecessidades da análise, pode-se isolar três conjuntosdiferentes no interior de um mesmo sistema de evolução.Com efeito, eles estão estreitamente solidários e seentrecruzam largamente:

- o sistema geomorfogenético tal qual ocompreendem os geomorfologistas moder-nos que insistem no seu caráter “dinâmico”e “bioclimático” (J. TRICART);

- a dinâmica biológica que intervém ao níveldo tapete vegetal e dos solos. Ela édeterminada por toda a cadeia de reaçõesecofisiológicas que se manifestam por meiodos fenômenos de adaptação (ecótipos), deplasticidade, de disseminação, de concor-rência entre as espécies ou as formaçõesvegetais, etc... com prolongamentos nonível dos solos;

- o sistema de exploração antrópica que temmuitas vezes um papel determinante, sejaativando ou desencadeando erosões, sejasomente modificando a vegetação ou solo(desmatamento, reflorestamento...).

3 - O sistema de evolução se define por uma sériede agentes e de processos mais ou menos bemhierarquizados. Sem querer desenvolver aqui essaquestão, podem ser distinguidos agentes naturais (cli-máticos, biológicos, etc...) que determinam processosnaturais (ravinamentos, pedogênese, dinâmica ecofi-siológica...) e agentes antrópicos (sociedades agro-pastoris, florestais...) dos quais dependem os processosantrópicos (desmatamento, incêndio, reflorestamento).

19 G. BERTRAND, op. cit., 1966, note 18, p. 236-248.

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Se não é nunca fácil apreciar a importância dedeterminado agente ou de determinado processoisolado, é no entanto possível classificar os sistemasde evolução em função do ou dos fatores dominantes(geomorgenético, antrópico...). É já um primeiro esboçode classificação das paisagens.

A TIPOLOGIA DAS PAISAGENS

Antes de classificar os geosistemas, é preciso dar-lhes nomes. Trata-se de definir, o mais breve possível,combinações ricas, muitas vezes únicas, que escapamàs terminologias tradicionais. Na verdade, não sãoevitadas perífrases complicadas que a despeito de seremcarregadas, não são sempre explícitas. A solução maisfácil consiste em designar o geosistema pela vegetaçãocorrespondente que representa muitas vezes a melhorsíntese do meio. Como o nome de uma espécie não ésuficiente, pode-se reter o da formação vegetal clímax eseu traço ecológico essencial (geosistema das florestasde carvalho atlântica acidófila, geosistema da floresta defaia montanhosa higrófila...). Todavia, não se pode fazerdisso uma regra geral porque o tapete vegetal não ésempre o elemento dominante ou característico dacombinação (por exemplo, para certos geosistemas dealta montanha ou das regiões áridas). Daí parecepreferível reter o traço ou a associação geográficacaracterística, qualquer que seja sua natureza. Para maiorprecisão, acrescenta-se o nome do conjunto regional aoqual pertence o geosistema. Citemos a título de exemplo:para o vertente Norte do maciço Cantábrico Central, ogeosistema hiperoceânico das Sierras Planas, ogeosistema da montanha média oceânica silicosa daSierra de Cuera, o geosistema do setor das gargantascalcárias com lenhosas, submediterrânea, o geosistemada alta montanha cárstica dos Picos de Europa. Para amontanha Negra ocidental: o geosistema das garupassuper-florestadas da alta Montanha Negra, o geosistemasub-mediterrâneo acidófilo do “Cabardes”...

Os geofácies se definem facilmente no interiorde cada geosistema porque eles correspondem sempreà uma combinação característica. Nesta escala, avegetação fornece os melhores critérios, em particularsob a forma de agrupamentos fitosociológicos, com acondição de completar as definições com a ajuda dosoutros elementos geográficos: geofácies das paredescalcárias de montanha com Potencialletalia caulescentis,geofácies do prado calcícola pastoril com Elyno-seslerietea... A denominação dos geótopos obedece aosmesmos princípios: cabeça de nascentes com Osmundaregalis, tufas de Androsace em “auto-solo” húmico,turfeira com Sphagnum...

A relativa complexidade desse esboço taxonômicosublinha perfeitamente os problemas que aparecem naclassificação global das paisagens. A dificuldade émenos de chegar a uma definição sintética do queadaptar o sistema de classificação ao fato de que aestrutura e a dinâmica das diferentes unidades mudamcom a escala.

As tipologias estritamente fisionômicas (vertenteflorestal, planalto calcário com “garrigue”) ou ecológicas(geosistema mediterrâneo, atlântico, montanhês...) nãoderam os resultados esperados. Elas são cômodas, mascarecem de rigor e sua generalização é difícil. A escolhacaiu numa “tipologia dinâmica” que classifica osgeosistema em função de sua evolução e que englobapor meio disso todos os aspectos das paisagens. Elaleva em conta três elementos: o sistema de evolução, oestágio atingindo em relação ao “clímax”, o sentido geralda dinâmica (progressiva, regressiva, estabilidade). Estatipologia se inspira portanto na teoria de biorestasia deH. ERHART. Foram distinguidos 7 tipos de geosistemasreagrupados em 2 conjuntos dinâmicos diferentes.

1- Os geosistemas em biostasia – trata-se depaisagens onde a atividade geomorfogenética é fracaou nula. O potencial ecológico é, no caso, mais ou menosestável. O sistema de evolução é dominado pelosagentes e os processos bio-químicos: pedogênese,concorrência entre as espécies vegetais, etc... A interven-ção antrópica pode provocar uma dinâmica regressivada vegetação e dos solos, mas ela nunca comprometegravemente o equilíbrio entre o potencial ecológico e aexploração biológica. Esses geosistemas em estado debiostasia classificam-se de acordo com sua maior oumenor estabilidade:

1a. Os geosistemas “climácicos”, “plesio-climácicos” ou “subclimácicos” correspondem a paisa-gens onde o clímax é mais ou menos bem conservado,por exemplo, uma vertente montanhosa sombreada com“cobertura viva” (P. Birot) contínua e estável, formadapor uma floresta de faia em solos brunos florestais “Mul-Moder”. A intervenção humana de caráter limitado, nãocompromete o equilibrilio de conjunto de geosistema.No caso de um desmatamento ou mesmo de um aci-dente “natural” (corrida de lama), observa-se bem rapi-damente uma reconstituição da cobertura vegetal e dossolos; o potencial ecológico não parece modificado.

1b. Os geosistemas “paraclimácicos” aparecemno decorrer de uma evolução regressiva, geralmentede origem antrópica, logo que se opera umbloqueamento relativamente longo ligado a umamodificação parcial do potencial ecológico ou daexploração biológica. O melhor exemplo é o dogeosistema hiperoceânico das Sierras Planas onde afloresta de carvalho destruída foi substituída por uma

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“lande” empobrecida em equilíbrio com os podzóis. Abase aqui é de origem pedológica. A podzolizaçãointerdita todo retorno espontâneo do clímax florestal. Aevolução não pode prosseguir senão artificialmente parauma outra forma de clímax (reflorestamento comresinosas após aração profunda).

1c. Os geosistemas degradados com dinâmicaprogressiva são bem freqüentes nas montanhastemperadas úmidas submetidas ao êxodo rural. Osterritórios rurais cultivados passam ao abandono, com“landes”, capoeiras e retorno a um estado florestal queé, na maior parte dos casos, diferente da floresta-clímax.É o caso de certas áreas declivosas dos territórios ruraispirenaicos do andar do carvalho séssil, que se cobremde mata de tronco fino como aveleiras, bétulas,castanheiras e carvalhos diversos que não constituemobrigatoriamente a frente pioneira da floresta decarvalho-clímax anteriormente destruída.

1d. Os geosistemas degradados com dinâmicaregressiva sem modificação importante do potencialecológico representam as paisagens fortementehumanizadas onde a pressão humana não afrouxouainda (montanhas cantábricas com economia agro-pastoril). A vegetação é modificada ou destruída, os so-los são transformados pelas práticas culturais e opercurso dos animais. No entanto, o equilíbrio ecológiconão é rompido malgrado um início de “ressecamentoecológico”. As erosões mecânicas, sempre muitolocalizadas, guardam um caráter excepcional (por exem-plo, ao longo dos caminhos vicinais).

2 – Os geosistemas em resistasia - A geomor-fogênese domina a dinâmica global das paisagens. Aerosão, o transporte e a acumulação dos detritos detoda a sorte (húmus, detritos vegetais, horizontespedológicos, mantos superficiais e fragmentos de ro-cha in loco) levam a uma mobilidade das vertentes e auma modificação mais ou menos possante do potencialecológico. A geomorfogênese contraria a pedogênesee a colonização vegetal. No entanto, é preciso distinguiros 2 níveis de intensidade:

- de um lado, os casos de “resistasia verda-deira” ligados a uma crise geomorfo-climática capaz de modificar o modelado eo relevo. O sistema de evolução daspaisagens se reduz então ao sistema deerosão clássico. A destruição da vegetaçãoe do solo pode nesse caso ser total. Cria-se um geosistema inteiramente novo. Estefenômeno é freqüente nas margens dasregiões áridas onde ele é muitas vezes

acelerado pela exploração antrópica (“ter-ras más” do Oeste dos EE.UU.). Pode tra-tar-se também de uma ruptura de equilíbrio“catastrófica”, (por exemplo lava torrencialem montanha);

- por outro lado, os casos de “resistasialimitada” à “cobertura viva” da vertente, istoé, à parte superficial das vertentes:vegetação, restos vegetais, húmus, solose, às vezes, manto superficial e lençóisfreáticos epidérmicos. Esta evolução aindanão interessou suficientemente osgeógrafos e os biogeógrafos. É certo queela é quase negligenciável do ponto de vistageomorfológico porque ela não cria relevos,mesmo que anuncie às vezes os inícios deuma crise geomorfológica. No entanto, seuinteresse é capital do ponto de vistabiogeográfico porque ela mobiliza toda aparte biologicamente ativa da vertente.Pode-se qualificar esta erosão de“epidérmica” para bem distingui-la daerosão verdadeira ou “geomorfológica” epara evitar as confusões e as discussõesinúteis que durante um certo tempopuseram em oposição os contra e a favorda erosão sob cobertura vegetal: eles nãofalavam do mesmo tipo de erosão nem demesma cobertura vegetal e não se situavamna mesma escala. A erosão epidérmicatinha já sido definida sob o nome de erosão“biológica”,20 mas este qualificativo era umafonte de confusão. A tipologia dos geosiste-mas em resistência deve levar em contatodos esses fatos.

2a. Os geosistemas com geomorfogênese“natural”. Nas regiões áridas e semi-áridas, assim comona alta montanha, a erosão faz parte do “clímax”, isto é,ela contribui a limitar naturalmente o desenvolvimento davegetação e dos solos (vertente montanhosa com taludede detritos móvel, superfície de um “glacis” de erosãoalimentado por escoamento anastomosado de “oued”).

2b. Os geosistemas regressivos com geomor-fogênese ligada à ação antrópica. Já se insistiu longa-mente sobre este aspecto da dinâmica das paisagens.É preciso encarar 3 casos: primeiro, os geosistemasem resistasia bioclimática cuja geomorfogênese é ativapelo homem. Em seguida, os geosistemas marginaisem “mosaico”, isto é, com geofácies em resistasia e

20 (BERTRAND, G. op. cit., note 19, p. 140-143).

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com geofácies em biostasia, caracterizados por um certodesequilíbrio e uma certa fragilidade natural. O exemplotípico é o do domínio mediterrâneo cuja degradação nãoestá ligada somente ao fator antrópico. Enfim, osgeosistemas regressivos e com potencial ecológicodegradado que se desenvolvem por intervenção antró-pica no seio das paisagens em plena biostasia (certasculturas de “plantation” em economia colonial).

Este esboço tipológico deve ser sumariamentecolocado na dupla perspectiva do tempo e do espaço.

“No tempo”, o problema mais delicado é consi-derar a parte das heranças. Com efeito, essas não sãosomente geomorfológicas e pedológicas, mas tambémflorísticas e antrópicas. Seria preciso reconstituir a cadeiahistórica dos geosistemas, sobretudo levando em contaa alternância e a duração respectiva das fases deequilíbrio biológico e das fases de atividade geomor-fogenética. Os resultados combinados da análise depólen, do exame dos depósitos superficiais e dos paleo-solos, do estudo da ação humana, desde os inícios davida pastoril e da agricultura, permitem às vezes obter-se uma idéia precisa da dinâmica recente das paisagens.A região cantábrica se presta bem a essa pesquisagraças aos trabalhos dos pré-historiadores, dos palinó-logos e dos fitosociólogos.

“No espaço”, a justaposição dos geosistemas éum fato geral. No entanto, os geosistemas com equilíbriobiológico ocorrem, sobretudo, nas zonas temperadas etropicais úmidas, assim como em certas regiões deplanície. A alta montanha e as diagonais áridas abrigam,sobretudo, os geosistemas com mais ou menos grandeatividade geomorfogenética. A exploração antrópica estáem vias de perturbar esta distribuição essencialmentebioclimática estendendo os geosistemas em dese-quilíbrio biológico. Mas a erosão “geomorfológica”,muitas vezes rápida e espetacular, não se exerce senãoem superfícies reduzidas. Em compensação, o verda-deiro perigo do ponto de vista da organização do espaçoé a erosão “epidérmica” que, de forma às vezes insi-diosa, arranha a película viva das vertentes em setoresextensos sem que se preste a ela uma real atenção. Oestudo da distribuição espacial dos geosistemas é poisum problema de geografia “ativa” que vem reforçar ointeresse da pesquisa cartográfica.

A CARTOGRAFIA DAS PAISAGENS

A representação cartográfica das paisagens exi-ge um inventário geográfico completo e relativamente

detalhado. A análise deve ao menos descer até o níveldos geofácies mesmo se eles não devem figurar na carta.O essencial do trabalho se efetua no terreno: levantamen-tos geomorfológicos, pedológicos e fitogeográficos, examedas águas superficiais, observações meteorológicaselementares, inquéritos sobre o sistema de valorizaçãoeconômica (gestão florestal, percursos pastoris, direitosde uso, etc...). Essas informações e levantamentostemáticos são completados pelos trabalhos de arquivos einquéritos diversos (cadastro, serviços administrativos,etc...). A consulta da bibliografia especializada é, bementendido, indispensável, mas ela é muitas vezes difícil deser utilizada por causa da diferença de ponto de vista. Paraorientar toda essa documentação volumosa e disparatada,é preciso escolher uma linha mestra. Ela é fornecida pelotapete vegetal cujo levantamento sistemático a 1/50.000,segundo um método simplificado, intermediário entre odo Serviço da Carta da Vegetação a 1/200.000 da Françae o da Carta da Vegetação a 1/100.000 dos Alpes de P.Ozenda, serve de base à cartografia global das paisa-gens. A interpretação das fotografias aéreas constitui umapoio precioso porque ela fornece uma visão sintética einstantânea das paisagens. Ensaios cartográficos foramrealizados em diversas escalas (contentemo-nos emlembrar aqui o método seguido e os resultados obtidosno curso das pesquisas de tese e de direção demestrados).

Na escala média (1/100.000 e 1/200.000) pode-se cartografar os geosistemas de maneira satisfatóriacom a condição de renunciar à acumulação dos sinaisanalíticos e de escolher uma representação sintética.Cada geosistema corresponde a um lugar cuja cor erespectiva trama são escolhidas em função da dinâmi-ca do geosistema, (exemplo: azul para os geosistemasclimácicos, verde para os geosistemas paraclimácicos,amarelo para os geosistemas regressivos com degra-dação antrópica dominante, vermelho para osgeosistemas com evolução essencialmente geomorfo-lógica). Os jogos de trama permitem variar essa tipologia.Na carta 1/200.000 das montanhas cantábricas centrais(cobrindo mais ou menos 6.000 Km2) foram determina-dos 32 geosistemas.21

Na escala grande 1/20.000, pode-se facilmentecartografar os geofácies no interior dos geosistemas. Acor ou a variação na cor de cada geosistemas indica asituação dinâmica em relação ao clímax (geofácies-climax em azul, geofácies degradado em amarelo ouem vermelho). Pode-se assim escolher um tema, porexemplo, como as relações entre a cobertura vegetal ea erosão “epidérmica”.

21 Esta carta a 1/200.000 em 7 cores existe sob forma de maquete e deverá estar terminada em 1968.

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A geografia física global não está destinada asubstituir, nem mesmo a concorrer com os estudosespecializados tradicionais dos quais, aliás, ela senutre. Ela constitui uma pesquisa paralela queaproxima, confronta e completa os dados da análise eque coloca cada elemento no seu complexo de origem,estudando mais especialmente as combinaçõesgeográficas e sua dinâmica global. Sua funçãoessencial é, portanto, de “redescobrir” a geografia física

tradicional e de fazer diretamente apelo às ciênciasbiológicas e às ciências humanas. Mas ainda, dando omeio de descrever, de explicar e de classificarcientificamente as paisagens, ela se abre naturalmentepara os problemas de organização do espaço nãourbanizado. Mas este estudo global dos meios naturaisnão pode ser conduzido somente pelos geógrafos. Elenão pode expandir-se senão na pesquisa e na reflexãointerdisciplinar.