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Lanterna mágica: fantasmagoria e sincretismo audiovisual Maria Cristina Miranda da Silva CAp-UFRJ, doutoranda PUCSP Este trabalho analisa as práticas de exibição do aparelho óptico lanterna mágica, em especial os espetáculos de fantasmagoria, mediante os referenciais da semiótica sincrética. Para fundamentar o exame pretendido utilizamos as abordagens de Algirdas J. Greimas e de Jean-Marie Floch. Segundo a definição de Greimas (1985:426), “serão consideradas como sincréticas as semióticas que – como a ópera ou o cinema – acionam várias linguagens de manifestação”. Consideramos, portanto, que o sincretismo se dá pelo procedimento de articulação das linguagens na composição de um texto na produção de sentido. Pretendemos demonstrar que o estudo das exibições proporcionadas por esses aparelhos pode ser melhor apreendido com base no citado referencial. O ato de exibição, que contava não apenas com o aparelho óptico em si, mas também com a ajuda de um “exibidor”, pode ser considerado um texto sincrético. A partir dos procedimentos enunciativos e da descrição e análise da construção de sentido nessas exibições, será colocado em evidência o modo como as várias linguagens podem ser articuladas no plano da expressão, por meio de estratégias de sincretismo. Para empreender a análise, apresentamos um breve histórico do surgimento do aparelho óptico em questão – a lanterna mágica – e, a partir da análise de suas características, examinamos as práticas de sua exibição, em especial nos espetáculos de fantasmagoria. Na seqüência, serão destacados os procedimentos enunciativos e elementos do plano do conteúdo e do plano da expressão. A relação entre os dois planos citados será discutida, evidenciando-se as estratégias de construção/produção de sentido. Cabe ressaltar que o estudo não objetiva um detalhamento exaustivo dos procedimentos de sincretização, mas destacar a relevância da teoria semiótica, sobretudo da semiótica sincrética, para a análise das exibições dos aparelhos ópticos que precederam o cinema. Breve histórico e considerações sobre os espetáculos de lanterna mágica De acordo com Laurent Mannoni (2003:58), podemos definir a lanterna mágica como: uma caixa óptica (...) que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou mesmo couro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre uma placa de vidro. A origem desse aparelho e de sua utilização pode ser localizada em um outro dispositivo que o precedeu – a câmara escura. Apesar de conhecida desde o século XIII, no campo da astronomia, somente no início do século XVI encontramos registros sobre a sua utilização para observação de objetos exteriores. Em 1558, o físico italiano Giovanni Bapttista Della Porta (1540-1615) descreveu em detalhes este dispositivo, em sua obra Magiae naturallis [Mágica natural]. Para o estudo aqui proposto, entretanto, ressaltamos uma nova edição deste texto, publicada em 1588, que trouxe como novidade a idéia de organizar um espetáculo óptico com a câmara escura. Conforme ressalta Mannoni, o espetáculo sugerido por Della Porta prenunciava as projeções de lanterna mágica do século seguinte. A câmara escura desviava-se de sua vocação científica e tornava-se um “teatro óptico”,

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  • Lanterna mgica: fantasmagoria e sincretismo audiovisual

    Maria Cristina Miranda da Silva CAp-UFRJ, doutoranda PUCSP

    Este trabalho analisa as prticas de exibio do aparelho ptico lanterna mgica, em especial os espetculos de fantasmagoria, mediante os referenciais da semitica sincrtica. Para fundamentar o exame pretendido utilizamos as abordagens de Algirdas J. Greimas e de Jean-Marie Floch.

    Segundo a definio de Greimas (1985:426), sero consideradas como sincrticas as semiticas que como a pera ou o cinema acionam vrias linguagens de manifestao. Consideramos, portanto, que o sincretismo se d pelo procedimento de articulao das linguagens na composio de um texto na produo de sentido. Pretendemos demonstrar que o estudo das exibies proporcionadas por esses aparelhos pode ser melhor apreendido com base no citado referencial. O ato de exibio, que contava no apenas com o aparelho ptico em si, mas tambm com a ajuda de um exibidor, pode ser considerado um texto sincrtico. A partir dos procedimentos enunciativos e da descrio e anlise da construo de sentido nessas exibies, ser colocado em evidncia o modo como as vrias linguagens podem ser articuladas no plano da expresso, por meio de estratgias de sincretismo.

    Para empreender a anlise, apresentamos um breve histrico do surgimento do aparelho ptico em questo a lanterna mgica e, a partir da anlise de suas caractersticas, examinamos as prticas de sua exibio, em especial nos espetculos de fantasmagoria. Na seqncia, sero destacados os procedimentos enunciativos e elementos do plano do contedo e do plano da expresso. A relao entre os dois planos citados ser discutida, evidenciando-se as estratgias de construo/produo de sentido. Cabe ressaltar que o estudo no objetiva um detalhamento exaustivo dos procedimentos de sincretizao, mas destacar a relevncia da teoria semitica, sobretudo da semitica sincrtica, para a anlise das exibies dos aparelhos pticos que precederam o cinema. Breve histrico e consideraes sobre os espetculos de lanterna mgica

    De acordo com Laurent Mannoni (2003:58), podemos definir a lanterna mgica

    como: uma caixa ptica (...) que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou mesmo couro branco, no sculo XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre uma placa de vidro.

    A origem desse aparelho e de sua utilizao pode ser localizada em um outro

    dispositivo que o precedeu a cmara escura. Apesar de conhecida desde o sculo XIII, no campo da astronomia, somente no incio do sculo XVI encontramos registros sobre a sua utilizao para observao de objetos exteriores. Em 1558, o fsico italiano Giovanni Bapttista Della Porta (1540-1615) descreveu em detalhes este dispositivo, em sua obra Magiae naturallis [Mgica natural]. Para o estudo aqui proposto, entretanto, ressaltamos uma nova edio deste texto, publicada em 1588, que trouxe como novidade a idia de organizar um espetculo ptico com a cmara escura. Conforme ressalta Mannoni, o espetculo sugerido por Della Porta prenunciava as projees de lanterna mgica do sculo seguinte. A cmara escura desviava-se de sua vocao cientfica e tornava-se um teatro ptico,

  • um mtodo de iluminao capaz de projetar histrias, cenrios fictcios, vises fantasmagricas. Deixou o domnio da cincia e da astronomia para mergulhar nos do artifcio, da representao, do maravilhoso, da iluso (Mannoni 2003:36-37) Assim, a cmara escura foi convertida em uma diverso amplamente utilizada

    durante todo o sculo XVII. Entretanto, pela complexidade do funcionamento da cmara e, sobretudo, pela necessidade de luz intensa para iluminar o cenrio exterior, aqueles que utilizavam o aparelho ptico para encenar aparies sobrenaturais, rapidamente encontraram um outro instrumento para difundir a superstio, a lanterna mgica.

    De acordo com Mannoni (2003:58), o princpio da lanterna mgica permaneceu o mesmo, com algumas poucas variantes, do sculo XVII ao fim do sculo XIX. Uma caixa ptica que projeta em uma tela imagens pintadas sobre uma placa de vidro. Bastava introduzir uma placa de forma invertida no passa-vistas, na frente do foco luminoso de uma vela ou de uma lmpada a petrleo, para que as imagens projetadas surgissem na tela.

    Ao longo do sculo XVIII as lanternas passaram a projetar tambm animaes, momentneas ou contnuas, a partir de placas mecanizadas, engendrando espetculos com efeitos de substituies, desaparies, aparies bruscas, movimentos contnuos. A pintura dessas placas, entretanto, era uma arte difcil e para se obter vistas de qualidade eram necessrias muitas horas, s vezes dias, de trabalho, onde artesos, pintores, gravadores, ou miniaturistas profissionais, precisavam de muita habilidade para saber jogar com as cores e as sombras. (MANNONI, 2003: 108-148)

    Ressaltaremos, neste estudo, um tipo de espetculo luminoso concebido por mgicos e cientistas no final do sculo XVIII, denominado de fantasmagoria ou phantasmagoria. Seus primeiros representantes, e tambm os mais conhecidos, foram Paul Philidor e tienne-Gaspard Robert, mais conhecido como Robertson. Conforme indica Tom Gunning (1996:29), a exibio de fantasmagoria, usando a lanterna mgica, era uma forma mais elaborada de entretenimento visual: invocava o sobrenatural projetando imagens de espritos dos mortos em misteriosos ambientes, com encenaes complicadamente dirigidas.

    A diferena destas exibies para as anteriores que, com os aperfeioamentos da lanterna, se aprofundava a diegese: o equipamento de projeo ficava escondido atrs da tela de forma que no fosse visto pelos espectadores, as projees eram bem mais ntidas (graas a aperfeioamentos no tubo ptico da lanterna) e no mais apenas sobre as telas de pano tradicionais, mas sobre uma cortina de fumaa, criando um efeito mais realista, tridimensional. A lanterna utilizada para esse tipo de exibio possua rodas e se deslocava sobre trilhos para frente e para trs, proporcionando, alm da j conhecida animao, o aumento ou diminuio das imagens, o que causava a impresso de que se moviam em direo platia. Alm disso, ao incio da exibio as luzes se apagavam, como parte da encenao planejada e, na maioria das vezes, as paredes da sala eram encortinadas de negro, possibilitando o escurecimento total da sala e acrescentando um tom fnebre encenao, reforando, assim, as sensaes dos espectadores.

    Segundo os documentos da poca, os espetculos de fantasmagoria, ambiguamente, exploravam o gosto do pblico pelo obscurantismo, se esmerando na encenao para impressionar o pblico, ao mesmo tempo que tentavam combater a credulidade do povo em relao a feiticeiros e profetas. Assim, durante a exibio das fantasmagorias, os exibidores sublinhavam o aspecto das imagens de parecer, mas no ser real, advertindo os espectadores de que o que era projetado era apenas uma imagem, mas que, mesmo assim, se acreditaria ser real. Entretanto, depois disso, as

  • luzes se apagavam, e o espetculo ilusionista comeava com aparies de personagens histricos j falecidos, causando um inquietante tipo de medo nos espectadores, ainda que essas sesses fossem efetivamente anunciadas como iluses pticas. (Musser, 1990:22-25)

    Nesse sentido, podemos dizer que as exibies exploravam dois aspectos que julgamos paradoxais: realidade e iluso, visibilidade e fantasmagoria. E justamente nesse aparente paradoxo que situaremos nossa anlise semitica. A produo de sentido nos espetculos de fantasmagoria.

    Utilizaremos neste estudo, para uma anlise semitica das prticas de exibio de lanterna mgica, a descrio de um espetculo de fantasmagoria, testemunhado pelo alemo Johann Samuel Halle, em 1784:

    O pretendido mago conduz o grupo de curiosos a um ambiente revestido de um pano negro, e no qual se acha um altar pintado tambm de negro, com dois candelabros e uma cabea de morto, ou uma urna funerria. O mago traa um crculo na areia, em volta da mesa ou do altar, e pede aos espectadores que no atravessem o crculo. Ele comea sua conjurao, lendo num livro e fazendo fumaa com uma substncia resinosa para os bons espritos e com coisas ftidas para os maus. Num nico golpe as luzes se extinguem por si mesmas, com um forte rudo de detonao. Nesse instante, o esprito invocado aparece pairando no ar, por cima do altar e da cabea da morte, de tal maneira que parece querer alar vo pelos ares ou desaparecer debaixo da terra. O mgico passa a sua espada diversas vezes atravs do esprito, que lana um grito lamentoso. O esprito, que parece elevar-se da cabea da morte numa ligeira nuvem, abre a boca; os espectadores vem ento abrir-se a boca da cabea da morte e ouvem as palavras pronunciadas pelo esprito defunto, num tom rouco e terrvel, quando o mgico lhe faz perguntas. Durante toda essa cerimnia, relmpagos rasgam o ambiente... e ouve-se um rudo terrvel de tempestade. Pouco depois os candelabros acendem-se por si ss, enquanto o esprito desaparece, e seu adeus agita de maneira sensvel os corpos de todos os membros da platia... A sesso mgica chega ao fim, enquanto cada qual parece perguntar ao vizinho, com um palor lvido no rosto, que julgamento deve fazer a respeito desse encontro com o mundo subterrneo.1

    Iniciaremos nossa anlise pelo plano do contedo, buscando os conceitos

    expressos no texto. Como texto, consideraremos a prtica de exibio da fantasmagoria relatada por Halle, assim como o prprio relato de Halle, por onde iniciaremos a anlise. Posteriormente trataremos do que considerado especfico do plano de expresso.

    Numa primeira leitura do relato de Halle verificamos que se trata de um espetculo, apresentado a uma platia, em um ambiente determinado. Verificamos o carter de magia atribudo exibio, uma sesso mgica. Sabemos que se trata do relato de um espetculo de fantasmagoria. Constatamos tambm que o prprio relato de Halle pode ser considerado um exerccio de fantasmagoria. Ao descrever a sesso, assim como os exibidores ocultavam a lanterna mgica das vistas dos espectadores, Halle no revela os procedimentos tcnicos e artsticos utilizados que faziam crer os espectadores nas aparies fantasmagricas. No apenas oculta os procedimentos, como se utiliza textualmente de expresses que sublinham o carter mgico do espetculo, como, por exemplo, quando afirma que num nico golpe as luzes se extinguem por si mesmas (...), ou ainda o esprito invocado aparece pairando no ar. A leitura do relato de Halle, quase nos transpe para o espetculo descrito. Entretanto, no incio do relato, o prprio Halle sublinha a pretensa identidade do exibidor o pretendido mago, assim como a predisposio dos espectadores, um grupo de curiosos. Ao final de seu relato, contudo, Halle deixa em aberto as concluses, que devem ser dos leitores e 1 Johann Samuel Halle, Magie: Oder die Zauberkrfte der Natur (Berlim: J. Pauli, 1784), pp.232-233 Apud Manonni (2003:154-155).

  • espectadores: A sesso mgica chega ao fim, enquanto cada qual parece perguntar ao vizinho, com um palor lvido no rosto, que julgamento deve fazer a respeito desse encontro com o mundo subterrneo. Mas a descrio da sensao dos espectadores um palor lvido no rosto e a caracterizao do pretensamente ocorrido encontro com o mundo subterrneo indica a predisposio de fazer-crer o leitor/espectador.

    Podemos dizer que no plano do contedo, no nvel fundamental, o que h de mais forte o carter de magia - fantasmagoria2, a partir de um ocultamento destes procedimentos versus um desvelamento, uma visibilidade, do que realmente acontece para fazer crer os espectadores; iluso versus realidade. Constatamos ainda que os espectadores saem de uma condio de normalidade para o estado de sensao de palor, provocado pela diferenciao mundo real, conhecido, versus o mundo subterrneo, desconhecido. Verificamos portanto uma relao entre no-sensao vs sensao, conhecido vs desconhecido, desvelamento vs ocultamento, ser vs parecer, certeza vs dvida, realidade vs iluso, verdadeiro vs falso, como categorias do plano do contedo que se reduzem a relao fundamental visibilidade vs fantasmagoria ou real vs aparente.

    No texto, nega-se a visibilidade e o real, e afirma-se a fantasmagoria e o aparente. Podemos representar tais categorias semnticas no quadrado semitico da seguinte maneira:

    visibilidade fantasmagoria

    real aparente

    no fantasmagoria no visibilidade

    no aparente no real, irreal

    relao de contrariedade

    relao de complementaridade

    relao de contradio

    No nvel narrativo percebemos que se desenvolve uma histria: um grupo de pessoas vivencia uma experincia que parece ser sobrenatural, presenciando, a partir da ao de um pretenso mago, o aparecimento e desaparecimento de um possvel esprito, fato que provoca dvida e sensao de medo nos espectadores. O destinador, sujeito responsvel pela alterao das qualidades do sujeito da ao, o mago que invoca o esprito, sujeito da ao, que provoca dvida e medo nos espectadores, os destinatrios. Isto se pensamos no texto como uma exibio do aparelho ptico. Se consideramos apenas o relato de Halle, ento podemos dizer que o destinador Halle, que forja seu prprio relato de forma a conduzir nossa interpretao, e que os destinatrios somos ns, leitores, assumindo o mago e os espectadores outros papis actanciais.

    Podemos dividir o relato de Halle (assim como a exibio de fantasmagoria) em quatro distintas partes: a primeira, onde os espectadores so preparados a partir de um ritual; a segunda a cerimnia em si, durante a presena do esprito, a terceira aps 2 Neste estudo utilizamos o termo fantasmagoria para nos referirmos ao espetculo de lanterna mgica e tambm com o sentido de produo de iluso.

  • a cerimnia, e a quarta composta de dois momentos o da apario e o do desaparecimento do esprito.

    Vejamos como se conduz a narrativa no nvel discursivo. Como parte do ritual para preparar os espectadores, o mago conduz o grupo a um ambiente especfico, que est encoberto com um pano negro nega-se a visibilidade ocultando-se o ambiente real. O altar pintado de negro, os candelabros, a cabea de morto, ou urna funerria, preparam os espectadores para o clima fantasmagrico.

    Ainda na parte ritual, mais uma vez a visibilidade negada, h um espao delimitado que os espectadores no podem invadir, desvendar. Este lugar que no se pode ter acesso o lugar central da apario ( por cima do altar que o esprito aparece), e portanto ele ressaltado pela delimitao. A leitura da conjurao, concentra os espectadores na cena (possivelmente ocultando qualquer procedimento tcnico necessrio a encenao) e a produo de fumaa corrobora a no visibilidade.

    Num jogo de opostos, visibilidade e fantasmagoria se complementam. A visibilidade do esprito, a encenao da fantasmagoria, s possvel, porque as luzes se apagam; a fantasmagoria s se d pela negao da visibilidade e termina quando a visibilidade (o acender das luzes) restabelecida. O apagar e acender das luzes a figurativizao da relao visibilidade versus fantasmagoria.

    Ressalta-se que o ambiente para o qual o grupo conduzido, por si s j estabelece uma relao de cumplicidade com os espectadores. Preparado cuidadosamente, de forma a criar um clima fnebre e estabelecer com os espectadores (ou leitores, no caso do relato de Halle) as bases do que ser presenciado uma apario fantasmagrica. O encortinamento da sala, assim como os objetos escolhidos para o cenrio preparado, provoca a perda do referencial de realidade e possibilita a aquisio de um novo repertrio com os novos elementos dados.

    Para o jogo entre visibilidade e fantasmagoria ser eficaz, estabelecido um contrato de veridico entre enunciador e enunciatrio. O mago, aps conduzir o grupo para o ambiente da encenao, ao traar um crculo na areia, em volta da mesa ou altar e pedir aos espectadores que no atravessem o crculo, estabelece uma espcie de contrato que reeditado quando lida sua conjurao e produzida fumaa com uma substncia resinosa para os bons espritos e com coisas ftidas para os maus como forma de persuaso para o que ser presenciado, a apario do esprito; ou, mais a frente no relato, quando o mgico passa a sua espada diversas vezes atravs do esprito, de forma a tornar crvel a presena do esprito. Formas de persuaso do enunciador para que o enunciatrio encontre as marcas de veridico do discurso. O estado em que fica a platia no final da exibio, com os corpos agitados de maneira sensvel e a sensao de palor demonstram no relato que o contrato foi aceito.

    Apesar de no constar do relato de Halle, nas prticas de exibio de lanterna mgica, em especial nos espetculos de fantasmagoria, h ainda um outro elemento que faz parte do contrato de veridico entre enunciador e enunciatrio durante a preparao da platia: o anncio de que as cenas que sero presenciadas no tm nada de sobrenatural, mas fazem parte de fenmenos da ptica. Pode parecer paradoxal que faa parte do engajamento do espectador explicitar que o que ser visto ser apenas uma iluso. Entretanto o que estava em jogo era a produo de uma iluso, e para que ela se tornasse crvel, fazia parte do jogo de manipulao anunci-la. O anncio antecipado dava maior respaldo a encenao, transformando-a em coisa sria, cientfica e, ao mesmo tempo, criando uma confiabilidade maior no enunciador. De tal estratgia de engajamento, como vimos na seo anterior deste trabalho, fazia parte tambm as exposies de curiosidades cientficas que precediam a sala da encenao.3 3 Mannoni, op. cit., pp. 172-173

  • Outro elemento que tambm corroborava o engajamento do espectador era a utilizao de fotografias para a apario de fantasmas de entes queridos ou de personalidades conhecidas.4 O reconhecimento dos fantasmas ajudava na manipulao para tornar a apario mais crvel. Este no foi o caso, entretanto, do relato em que nos baseamos para anlise.

    Conhecidas as categorias do plano do contedo e algumas das estratgias de enunciao do texto em anlise, passaremos para as categorias do plano da expresso, de forma a verificar como o enunciado se manifesta acionado pelas vrias linguagens e conferir se temos um caso de sincretismo.

    Considerando a exibio fantasmagrica relatada por Halle, vemos com maior fora de imposio no texto os formantes visuais e sonoros, que se manifestam durante os momentos de apario e desapario do esprito. O apagar das luzes, precedendo a apario do esprito e o acender das luzes ao trmino da sesso, propiciam o escurecimento e clareamento do ambiente. Da mesma forma, durante a cerimnia, relmpagos rasgam o ambiente, iluminando e escurecendo alternadamente a encenao. As categorias do plano da expresso claro vs escuro homologam a categoria semntica visibilidade vs fantasmagoria. Temos aqui um caso de semi-simbolismo. H ainda o forte rudo de detonao5 ao apagar das luzes, a voz em tom rouco e os gritos lamentosos do esprito6 e o rudo terrvel de tempestade ao final da sesso, quando as luzes se acendem, em oposio a ausncia de rudo antes e depois da cerimnia. Os rudos reforavam o clima fantasmagrico, fazendo parecer real a apario ausncia de rudo vs rudo homologam as categorias fundamentais real vs aparente.

    Como vimos na seo anterior deste estudo, as placas de lanterna mgica podiam proporcionar imagens em movimento. No caso da exibio relatada por Halle, o movimento da boca do esprito projetado pode ser considerado como parte do plano da expresso. No-movimento vs movimento, nesse caso, homologam mais uma vez a categoria real vs aparente, visto que o movimento da boca do fantasma faz parecer ser real a apario.

    Ainda no plano da expresso, podemos considerar o prprio suporte onde se forma a imagem do fantasma a fumaa. A projeo da imagem na fumaa torna a apario mais convincente do que numa tela (suporte onde j prevista a visualizao de uma imagem). A fumaa, produzida pelo mago como parte do ritual preparatrio (inclusive com apelo sinestsico, pois era produzida com uma substncia resinosa para os bons espritos e com coisas ftidas para os maus) tornava o ambiente mais turvo, menos ntido. Alm de ser um elemento visual do plano de expresso, que conferia menor visibilidade do local onde se dava a apario fantasmagrica, portanto maior possibilidade de fantasmagoria, por outro lado propiciava uma maior visibilidade do esprito, pois, conforme visto na seo anterior, tornava a imagem projetada mais ntida e conferia-lhe tridimensionalidade.

    Certamente, considerando o que j conhecemos sobre as placas de vidro da lanterna mgica, a prpria imagem projetada deveria possuir caractersticas importantes no plano da expresso, como a cor e o traado das pinturas, intensidade da luz, efeitos de transparncia ou opacidade, tamanho da imagem projetada, que poderiam ser 4 Segundo Mannoni (2003:157), tanto Philidor como Robertson utilizavam este procedimento. Em posse do retrato de qualquer pessoa morta ou ausente, que se queria fazer aparecer, os ilusionistas mandavam pintar a imagem em uma das placas da lanterna. 5 (...) uma mesa de folha-de-flandres utilizada para imitar o trovo e um rolo de carto usado para imitar o granizo. Mannoni, op. cit., p.494. 6 Os efeitos acsticos eram produzidos graas a um tubo de folha-de-flandres. Um segundo assistente, escondido num cmodo adjacente, falava com voz sinistra atravs desse tubo oco [de folha-de-flandres] (...). Mannoni, op. cit., p.155.

  • analisadas caso tivssemos a vivncia do espetculo descrito por Halle, e no somente a sua descrio.

    Nesse breve estudo das prticas de exibio da Lanterna Mgica, pudemos examinar os procedimentos discursivos/figurativos e enunciativos de sincretizao de linguagens. Ao analisarmos o percurso de produo de sentido do texto como um todo, verificamos que os planos do contedo e da expresso se relacionam entre si a partir de visibilidades e fantasmagorias, explicitadas tanto no plano do contedo (iluso vs realidade) como no da expresso (desvelamento vs ocultamento, claro vs escuro, movimento vs inrcia, opacidade vs transparncia). Ou seja, visibilidade e fantasmagoria / realidade e iluso podem ser consideradas categorias do plano do contedo que so homologadas semi-simblicamente pelas categorias do plano de expresso. Temos, portanto, um caso de sincretismo de linguagens, advindo de todo um trabalho gerativo de sentido, atravs da articulao destes dois planos.

    Ressalta-se ainda a estratgia de ocultamento da lanterna e, assim, dos verdadeiros procedimentos de produo da fantasmagoria. Nesse sentido, podemos considerar que a sintaxe narrativa o ocultamento do funcionamento do aparelho e a estratgia de enunciao fazer sobressair o sincretismo. A enunciao usa o sincretismo como estratgia, ocultando os verdadeiros procedimentos de produo de iluso, de fantasmagoria, e fazendo sobressair as diferentes linguagens.

    O texto produzido pelas exibies constitudo por diversas linguagens pertinentes ao dispositivo e s prticas de exibio, combinadas pelo sujeito enunciador. Verificamos no texto escolhido para anlise a existncia de vrios textos superpostos que interagem para a criao de sentido. H, portanto, um caso de semitica sincrtica.

    Ressaltamos, entretanto, que no pretendemos esgotar o tema. A semitica, em especial os estudos referentes ao sincretismo de linguagens, um importante referencial para a anlise das exibies dos aparelhos pticos de produo de imagens. O tema certamente merece ser aprofundado, sobretudo porque as estratgias de engajamento do observador nas exibies proporcionadas pelos aparelhos pticos dos sculos XVIII e XIX podem ser as primeiras referncias de texto sincrtico na histria das exibies audiovisuais mediadas por aparelhos pticos. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semiticos. So Paulo: Humanitas /

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