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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO LIA DE MATTOS ROCHA Uma favela “diferente das outras?”: Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro 2009

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Uma favela diferente das outras? Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro.Tese de Doutorado em Sociologia, defendida no Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em Julho de 2009.

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

LIA DE MATTOS ROCHA

Uma favela “diferente das outras?”:

Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro

2009

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II

LIA DE MATTOS ROCHA

Uma favela “diferente das outras?”:

Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro.

Tese apresentada ao Instituto

Universitário de Pesquisas do Rio de

Janeiro como requisito parcial para a

obtenção do título de Doutor (a) em

Ciências Humanas: Sociologia.

Banca Examinadora:

Luiz Antonio Machado da Silva (orientador)

Adalberto Cardoso

Diana Lima

Márcia Leite

Dulce Chaves Pandolfi

Rio de Janeiro

2009

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III

AGRADECIMENTOS

Aproveito esses agradecimentos para expressar a minha gratidão àqueles que foram

fundamentais não apenas para a realização desta tese, mas que também tiveram papel na

minha formação profissional, além de terem me dado o apoio pessoal sem o qual essa

tarefa teria sido muito mais inglória e solitária. Muitas vezes me escapou a capacidade e

a oportunidade de agradecer ao vivo e a cores, e por isso o faço agora, no papel, onde as

ironias (ou autoironias) perdem a graça.

A Luiz Antonio Machado da Silva, meu orientador, agradeço imensamente. Pela

orientação dedicada, por tudo que aprendi sobre Sociologia Urbana e outros assuntos

aleatórios, e pelo respeito que sempre demonstrou às minhas idéias, mesmo quando elas

vinham na forma de “bobagens” ditas em sala de aula. Minha gratidão é enorme pelas

lições sociológicas e de vida, pelas pílulas de sabedoria dadas com imensa generosidade

e humildade, por ter sido meu mestre e guru apesar de odiar hierarquias, e por ter me

acolhido quando decidi estudar os “marginais, excluídos e subalternos”. Espero um dia

estar a altura da confiança depositada, dos caminhos abertos e da paciência e amizade

que me dedicou (e haja paciência!).

A Márcia Leite Pereira da Silva, agradeço a orientação informal, por ter sido minha

maior interlocutora e incentivadora, sempre apresentando saídas para dramas teóricos,

metodológicos e, porque não, pessoais. Agradeço também pelas conversas fora das salas

de aula e de reuniões (que foram muitas): pelos chopes, cafés e águas de coco, onde

aprendi a admirar, além de sua inteligência, também seu humor, sua sensibilidade e seu

carinho por todos. Márcia me fez ver as sutilezas do campo, as possibilidades

escondidas, os achados que eu tinha na mão e não percebia, e sempre com graça,

gentileza e respeito pelo meu trabalho. Márcia, sou sua fã!

A Dulce Pandolfi, Diana Lima e Adalberto Cardoso, pelas importantes e sugestivas

considerações feitas durante a defesa da tese. Os questionamentos colocados durante as

arguições não apenas fizeram-me refletir sobre os percursos e pontos de chegada desta

tese, como também inspiraram novos pontos de partida.

Aos colegas da Pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em

busca de reconhecimento”, pelas discussões e sugestões feitas, sem as quais esse

trabalho não teria rendido uma tese. Agradeço especialmente a Luiz Carlos Fridman,

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que me fez entender que a “tranquilidade” do Pereirão não era um problema, mas o

problema desta tese, e também a Itamar Silva, a quem devo importantes reflexões sobre

os moradores de favelas cariocas e os dilemas de suas lideranças.

A Marion Aubrée, pelo acolhimento no Centre de Recherche sur le Brésil

Contemporain, na École des Hautes Etudes en Science Sociales, e pela oportunidade de

apresentar meu trabalho aos colegas do CRBC. Agradeço ainda a François Bovin, pela

amizade inestimável e as incríveis aulas de francês e de sociologia, a bordo de um

carrinho vermelho pilotado pelo próprio em alta velocidade.

A Janice Perlman, pela oportunidade de fazer parte do projeto de pesquisa “The

Dynamics of Urban Poverty in Rio de Janeiro”, meu primeiro contato com as favelas

enquanto campo de pesquisa. A ela e a Ignácio Cano agradeço pelo aprendizado e pelas

experiências nos quatro anos em que trabalhamos juntos.

A Lia e Caroline (e também Valéria), que na secretaria do Iuperj zelaram pela minha

figura jurídica com competência, cuidado e zelo, apesar da desorganização que sempre

causei quando confrontada com o labirinto dos formulários e prazos. Agradeço também

a Simone Sampaio pela gentileza e carinho demonstrados todas as vezes que entrei na

biblioteca nesses longos quatro anos. Sereias, gratidão eterna.

Aos professores, diretores e funcionários do Iuperj, pelo apoio institucional, pela

estrutura e tranquilidade que oferecem àqueles que por ali aportam. Agradeço aos

colegas e amigos Doriam, Carolina e Vanessa, e especialmente a Ludmila, pela amizade

e carinho nesses quatro intensos anos.

Ao CNPq e a CAPES, pelas bolsas concedidas no Brasil e no exterior.

A Graziella Moraes, com enorme admiração e gratidão, por ter sido minha amiga tão

querida por todos esses anos, com quem tive a honra de trabalhar, e que me motivou a

ser uma pesquisadora (e uma pessoa) melhor, simplesmente por seu exemplo.

A Christina Vital, companheira de percurso, pela generosidade, trocas intensas de dados

do campo, dicas intelectuais, pela imensa amizade e pela magia. As queridas amigas

Fabiene Gama e Juliana Farias, “favelólogas” como eu, que me levaram pela mão

quando comecei a fazer esta pesquisa, compartilharam comigo suas descobertas e

ouviram as minhas, dando sempre sugestões preciosas, tenham sido elas acatadas ou

não. Estendo os agradecimentos a Palloma Menezes e Raíza Siqueira, pelo carinho e

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pela torcida. Também agradeço a Jussara Freire pela amizade tão preciosa e pela

inteligência e generosidade, atendendo sempre a todos os meus pedidos de ajuda.

Aos amigos que fiz há dez anos, na graduação do IFCS, e que ainda são tão importantes

na minha vida e carreira. A confraria de 96.1, meus primeiros interlocutores: João

Marcelo, José Renato, Guilherme, Gustavo, Cláudio, Felipe e Cecília. A Eliska e Bruno

Carvalho, pela amizade e pela confiança, e também por trocarem comigo as delícias e as

dores do parto que é escrever uma tese. A Denise Lopes, amiga de uma década, com

quem comecei a fazer pesquisa e com quem estou sempre aprendendo.

A Emanuelle Araújo, companheira fiel de tantas roubadas, risadas e urgências

sociológicas.

As “amigas de infância” que fiz no estágio em Paris, que foram minha família por seis

meses: Larissa, Isabel, Eliana, Iara, Juliana, Alexandra e Renata.

Agradeço a minha família e amigos de toda a vida, pela torcida e admiração que me

deram uma autoconfiança que beira a megalomania. Wilson, João Vicente, Vó Gumê,

Tias Nelcy e Lurdinha, Bia, Gabriela, Fernanda (a irmã que escolhi), Ingrid, Aninha,

Pedro, Pupi, Tia Verinha – amo vocês. A Lurdes e Euclides, que leram e editaram a

maior parte da tese, muito obrigada pelo carinho e pelas dicas (e pela pegadinha

também). Agradeço especialmente a minha mãe, Léa, que me apresentou a sociologia

(afinal, é a primeira socióloga que conheci) e as favelas cariocas, minha maior

incentivadora e meu maior exemplo. Ao tio Silas, que quando eu era ainda criança me

deu “História do Mundo para crianças”, do Monteiro Lobato, para que eu pudesse

começar a entender algumas das questões que já me tiravam do sério (e a ele também).

A Jarek, pelo amor sem fronteiras e sem tamanho.

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VI

Resumo

Esta tese investiga as novas configurações do associativismo em favelas do Rio de Janeiro a partir do estudo de caso de uma pequena favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que goza de uma situação particular e quase excepcional: a ausência de conflitos frequentes entre traficantes de drogas e entre esses e a polícia, sem ser dominada por grupos para-militares (grupos como é o caso em muitas favelas cariocas). Para seus moradores, trata-se de uma favela “tranquila” e, por isso, “diferente das outras”.

A partir deste caso real do possível discuto as implicações dessa “tranquilidade” para a sociabilidade local, e particularmente para sua associação de moradores e para a organização não-governamental ali localizada. Argumento que a ausência de conflitos frequentes é uma importante dimensão na vida local, pois permite aos moradores não apenas a manutenção de sua “segurança ontológica” (Giddens, 1991), como também oferece à população local um importante recurso acionado nos processos de limpeza moral que executam. No entanto, afirmo que tal “tranquilidade” é acompanhada de um silenciamento por parte dos moradores e de suas organizações sobre suas rotinas e sobre os riscos por eles vivenciados. No caso de sua associação de moradores, tal silenciamento tem como consequência, entre outras, uma imobilidade no que diz respeito à mobilização para ações coletivas que demandem melhorias para a localidade. No caso da ONG local, o silenciamento se dá de outra forma; o trabalho executado está relacionado a representações sobre a criminalidade violenta e sobre a “vulnerabilidade” da juventude local frente a ela. Nesse sentido, os participantes da ONG possuem umavoz sobre a vida nesses territórios, mas que está “ajustada” ao enquadramento atual do “problema da favela”. Elevando a discussão a uma dimensão mais geral, analiso o “ajustamento” (Boltanski e Thévenot, 1991) de associações de moradores e organizações não-governamentais tanto aos novos parâmetros da atuação estatal nessas localidades quanto ao discurso mais recente sobre sociedade civil e movimentos sociais– que modelam esse atual “problema da favela”. Por fim, discuto qual a “voz possível”para moradores de favelas, dentro das condições dadas pelas representações coletivasexistentes sobre eles e sobre o lugar que ocupam na dinâmica socioespacial da cidade.

Palavras-chave: sociologia urbana, segregação socioespacial, criminalidade violenta, movimento social, favelas, ONGs, silenciamento.

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VII

Summary

This thesis investigates the new configurations of grassroots organizations in slum quarters (known as favelas) of Rio de Janeiro from the case study of a small slum quarter located in the South Zone of the city, which enjoys of a particular and almost exceptional situation: the absence of frequent conflicts between drug dealers and between these and the Policy Forces, without being dominated by groups of milicianos (as it is the case in many favelas). For its residents, it’s a “quite” favela and, therefore, “different from the others”.

From this case I argue the implications of this “tranquillity” for the local sociability, and particularly for the resident’s association and the non-governmental organization located there. I argument that the absence of frequent conflicts is an important dimension of local life, since it allows the maintenance of the residents’ “ontological security” (Giddens, 1991), as well as it offers them an important resource applied in the processes of “moral cleanness” executed by them in regular tenses. However, I affirm that this “tranquillity” goes along with the residents’ (and theirs organizations’) silence about their routines and the risks they experience. In the case of the resident’s association, such silence provokes its immobility regarding the improvement of the locality’s quality of life, among others consequences. The local NGO, on the other hand, produces representations on violent crime and how the local youth are “vulnerable” to it. Therefore, its participants have a voice over the life in these territories, but that voice is “adjusted” to the recent framing on the “favelas’ problem”. Raising the discussion to a more general level, I analyze the “adjustment” (justesse, as presented by Boltanski and Thévenot, 1991) of resident’s associations and non-governmental organizations to the new parameters of the state performance in these localities, as well as to the most recent speeches on civil society and social movements.Finally, I discuss the possibility of voice for favelas’s residents, regarding the conditions given by collective representations about them and about the place they occupy in the socio-spatial dynamics of the city.

Key words: urban sociology, socio-spatial segregation, violent criminality, social movement, slum quarters, favelas, NGO, silence.

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VIII

Résumé

Cette thèse enquête les nouvelles configurations de l'associativisme dans des bidonvilles de Rio de Janeiro (connue comme favelas) à partir de l'étude de cas d’une favelalocalisée dans la Zone Sud de la ville de Rio de Janeiro, qui profite d'une situation particulière et presque exceptionnelle : l'absence de conflits fréquents parmi des trafiquants de drogues et entre ceux-là et la police, sans être dominé par des groupes paramilitaires (comme c'est le cas dans beaucoup d’autres favelas). Pour leurs habitants, il s'agit d'une favela« tranquille » et, donc, « différente des autres ».

À partir de ce « cas réel du possible » je discute les implications de cette « tranquillité » pour la sociabilité locale, et particulièrement pour l’association d'habitants et pour l'organisation non gouvernementale y localisée. J’argumente que l'absence de conflits fréquents est une importante dimension de la vie locale, donc permet aux habitants la manutention de sa « sécurité ontologique » (Giddens, 1991), et aussi elle offre à la population locale une importante ressource actionnée dans les processus de « nettoyage moral » qu’ils exécutent. Néanmoins, j'affirme que telle « tranquillité » est accompagnée d'un silence de la part des habitants et de leurs organisations gardé sur leurs routines et sur les risques intensément vécus par eux. Dans le cas de l’association d'habitants, tel silence provoque comme conséquence, entre autres, l’immobilité concernat la mobilisation pour des améliorations de la localité. Dans le cas de l'ONG locale, leur travail tourne autour de représentations sur la criminalité violente et sur la « vulnérabilité » de la jeunesse locale face à elle. Dans ce sens, les participants de l'ONG ne gardent pas le silence sur la vie dans les favelas, mais ils possèdent une parole « ajustée » au plus récent encadrement du « problèm de la favela ». En élevant la discussion à une dimension plus générale, j'analyse la « justesse » (Boltanski et Thévenot, 1991) des associations d'habitants et des ONG par rapport aux nouveaux paramètres de la performance d'état dans ces localités, ainsi que le discours plus récent sur la société civile et les mouvements sociaux. Finalement, je discute la possibilité d’une voix pour les habitants de favela, par rapport à la représentation collective existante sur eux et sur la place qu’ils occupent dans la dynamique socio-spatiale de la ville.

Mots-clé : sociologie urbaine, ségrégation socio-spatiale, criminalité violente, mouvement social, bidonville, favelas, ONG, silence.

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IX

Sumário

Introdução __________________________________________________________________ 1

I. Uma favela onde “reina a paz”. _______________________________________________ 23

1.1. O passado da “comunidade” do Pereirão.____________________________________ 25

1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma favela “tranquila”._______________________________________________________________ 27

1.3 “Em paz”: rotina e tensões. _______________________________________________ 35

1.4. Silêncio e medo em um cotidiano “tranquilo”.________________________________ 43

1.5. Diversas apropriações possíveis da “tranquilidade” do Pereirão.__________________ 50

II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”. _________________________________ 55

2.1. A associação de moradores. ______________________________________________ 572.1.1. A gestão de Antônio. ________________________________________________ 572.1.2 A gestão de Jennifer. ________________________________________________ 69

2.2 “Tempos da política” nas favelas cariocas. ___________________________________ 73

2.3. Política e criminalidade violenta nas favelas do Rio de Janeiro. __________________ 78

2.4. Voz e silenciamento da representação de moradores de favelas. __________________ 92

III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.____________________________________ 96

3.1. TV Morrinho: a ONG do Pereirão._________________________________________ 97

3.2 História do Morrinho. ___________________________________________________ 99

3.3. A ONG TV Morrinho. _________________________________________________ 107

3.4 Os múltiplos significados do Morrinho. ____________________________________ 1163.4.1 Colocando a violência em evidência, mas como problema.__________________ 1163.4.2 Colocando a violência em evidência, mas como experimentação._____________ 126

3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”. ________________________________ 136

IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais: rupturas e continuidades. 138

4.1. Da profissionalização da militância a representantes dos favelados: movimentos sociais e ONGs. _________________________________________________________________ 139

4.2. O “duplo ajustamento” ao “problema das favelas”. ___________________________ 152

Conclusão: Paz sem voz. _____________________________________________________ 165

Referências Bibliográficas. ___________________________________________________ 176

Anexos.___________________________________________________________________ 188

Anexo I: Lista de entrevistados.______________________________________________ 188

Anexo II: Sites, Artigos de jornal e documentos oficiais (impressos ou digitais). _______ 189

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Introdução

Eu Sou Favela(Sergio Mosca - Noca Da Portela)

Em defesa de todas as favelas do meu Brasil,aqui fala o seu embaixador.

A favela nunca foi reduto de marginalA favela nunca foi reduto de marginal

Ela só tem gente humilde, marginalizada,E essa verdade não sai no jornal

A favela é um problema socialA favela é um problema social

Sim, mas eu sou favelaPosso falar de cadeira

Minha gente é trabalhadeiraNunca teve assistência social

Ela só vive láPorque para o pobre não tem outro jeito

Apenas só tem o direitoA um salário de fome e uma vida normal

A favela é um problema socialA favela é um problema social.

Desde seu surgimento, há mais de um século, as favelas são vistas pela maioria

da sociedade brasileira como local “infestado de vagabundos e criminosos que são o

sobressalto das famílias” e “cidadelas da miséria” (Valladares, 2005:26 e 32).

Concomitantemente, foram produzidas também representações “idealizadas” da favela,

como na música apresentada acima e outras que retratavam as favelas como “pertinho

do céu”, um “cenário de beleza”, lugar de “gente boa”1. Porém, nas últimas décadas o

crescimento no número de eventos violentos tem agravado o estigma secular que recai

sobre as favelas. Ao mesmo tempo em que se dá o agravamento deste estigma, as

favelas têm sido palco de intervenções do poder público e de atores da sociedade civil,

através dos quais são executadas ações que tentam dar conta do que seria “o problema

da favela”.

1 Nas músicas “Opinião”, de Zé Kéti; “Hino de Exaltação a Mangueira”, de Chico Buarque; e “Favela”, de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho, respectivamente.

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2

Para Valladares (2000), desde seu início as favelas foram “problematizadas” por

jornalistas, médicos e engenheiros – que liam a “favela como doença, moléstia

contagiosa, uma patologia social que precisava ser combatida”. A partir dos anos 1930 a

favela é reconhecida oficialmente e, como tal, “passa gradativamente a ser vista como

um problema a ser administrado”. Quando as ciências sociais estão constituídas no país

as favelas se tornam objeto de suas investigações, pois foi “a necessidade de administrar

a favela e os seus pobres que despertou o interesse em conhecê-la e conhecê-los mais de

perto”. Dessa forma, como Valladares demonstrou neste e em outro importante trabalho

(Valladares, 2005), a história das favelas cariocas está fortemente relacionada com a

identificação delas enquanto um “problema”. Porém a interpretação sobre qual tipo ou

dimensão do problema modifica-se a cada período histórico e contexto político

nacional: problema “sanitário”, habitacional, de “ordem pública”, de segurança ou

problema “social” – dimensões que se sobrepõem na maior parte das vezes, mas que

recebem maior ou menor destaque em contextos diferentes. No entanto, “o problema da

favela” permanece sendo entendido na maioria dessas abordagens como um problema

de (pouca ou nenhuma) integração das classes subalternas à institucionalização

democrático-legal, e poucas vezes enquanto um problema de desigualdade (um abismo

de poder entre “asfalto” e “favela”) e, portanto, um tema que diz respeito à sociabilidade

precária e à alteridade inconsistente que caracterizam as relações entre subalternos e

classes superiores na sociedade brasileira (Machado da Silva, 2002: 235).

Esta tese versa sobre moradores de favelas e suas organizações coletivas locais e

supralocais, e a forma como têm tentado combater a representação corrente que os

estigmatiza e os confundem com os traficantes de drogas que controlam esses territórios

e submetem seus habitantes. Na percepção social dominante, a contigüidade territorial

com criminosos violentos transforma todos os moradores de favela em cúmplices,

coniventes ou eles próprios potenciais criminosos (Zaluar, 1985; Machado da Silva e

Leite, 2004). Dessa forma, o “o problema da favela” atualmente está identificado como

um problema de segurança pública e combate à criminalidade violenta. Esta mutação do

antigo estigma tem profundo impacto sobre as vidas dos moradores, pois, entre outras

conseqüências negativas, serve de justificativa para a violência policial

sistematicamente praticada contra essa população e afeta a capacidade de se fazerem

presente e ouvidos nas arenas públicas, através de suas lideranças. Assim, a presença de

traficantes nas favelas representa impedimento para a ação coletiva por dois lados: os

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traficantes muitas vezes controlam e cerceiam a ação das associações de moradores; ao

mesmo tempo, os líderes são desqualificados, por serem identificados como porta-vozes

de interesses criminosos2. Essa perda de legitimidade também acontece dentro das

próprias localidades; denúncias de corrupção, de uso dos recursos da associação para

interesses pessoais e até de envolvimento com o tráfico têm afastado os moradores da

participação nos movimentos de base e desacreditado a atuação de seus representantes

(Zaluar, 1985; Leeds, 2003; Machado da Silva e Leite, 2004). Porém, neste contexto

surgem outros atores sociais que apresentam novas credenciais para participar da

discussão pública sobre as favelas, e que entram na disputa sobre a imagem dessas

localidades e também sobre quem pode falar de forma legítima pelos moradores.

Segundo dado anunciado pelo Instituto Pereira Passos (IPP – ligado à Prefeitura

do Rio de Janeiro) no começo de 2009, o Rio de Janeiro possuía 968 favelas3. Em

relação aos dados sobre a população dessas favelas, no entanto, as informações mais

recentes são do último Censo Demográfico, realizado em 2000. Naquele momento,

segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existiam 513 favelas4 na

cidade, nas quais moravam 1.092.783 habitantes – em torno de 19% da população

carioca. A partir de dados disponibilizados pelo IBGE, o IPP calculou as taxas de

crescimento para a cidade do Rio de Janeiro, os setores considerados subnormais (as

favelas) e os setores normais. Segundo este relatório, a população da cidade cresceu,

entre 1991 e 2000, a taxas anuais de 0,67%, mas enquanto nos setores normais a

população cresceu 0,38% ao ano a população das favelas aumentou a taxa de 2,4% ao

ano, particularmente nas regiões da Barra da Tijuca e Jacarepaguá (IPP, 2002).

Contudo, as favelas têm crescido em ritmo cada vez menor: segundo o IPP (Viana,

2008), entre 1950 e 1960 a população residente em favelas cresceu 98% (enquanto a

2 Em diversos artigos de jornais e revistas de grande circulação os presidentes de associação de moradores são identificados imediatamente como representantes dos traficantes locais; Cf. “A vida no fio da navalha. Prisão de líder comunitário revela ligação do tráfico com associações de moradores de favelas” (VEJA, 2005) e “No curral e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha responde a 14 ações por roubo, furto e estelionato” (O Globo, 2008).3 Cf. O Globo, 10 de janeiro de 2009. Expansão Horizontal: Favelas crescem 3 milhões de metros quadrados no Rio.4 Há divergências entre a contagem do IBGE e do IPP, pois o primeiro considera favela (aglomerado subnormal na nomenclatura do Instituto) “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais;ocupando ou tendo ocupado até período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular);dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais” (Araújo, 2006: 2). Já o segundo baseia-se em fotos de satélites para determinar o número de favelas, e não determina a quantidade mínima de unidades habitacionais. Além disso, a contagem do IPP é feita com maior freqüência que a do IBGE, que acontece, sobretudo, durante a realização do Censo (a cada 10 anos em média).

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taxa de crescimento da população carioca como um todo foi de 38%); entre 1980 e 1991

a população de favela cresceu 22% (e 8% para a população como um todo); e entre

1991 e 2000 a população das favelas cresceu 24% (e 7% para a população total da

cidade). Internamente, sabe-se que as favelas possuem grande heterogeneidade interna

(Machado da Silva, 1967; Preteceille e Valladares, 2000; Viana, 2008): as favelas não

são local de moradia da maioria dos pobres da cidade, e nem todos que habitam em

favelas são pobres. Segundo Viana (2008) apenas 1/3 dos pobres cariocas vive em

favelas, e dos habitantes destas apenas 1/3 é considerada pobre, i.e., têm renda

domiciliar per capita mensal inferior a meio salário mínimo.

Apesar de ser local de moradia de quase 1 em cada 5 cariocas (e os próprios

institutos de pesquisa acreditam que esse número tenha aumentado), as favelas são

vistas ainda por boa parte dos cariocas como um espaço que não é a cidade, e seus

habitantes como não-cidadãos. Essa imagem fica evidente a cada vez que as favelas se

tornam tema de debate público, seja através de propostas de remoção, da construção de

muros em seu entorno, entre tantas que tentam resolver o “problema da favela”. Nesses

momentos fica evidente que, apesar da redemocratização do Brasil, as favelas ainda

convivem com uma forte repressão que não é igual para o resto da sociedade “não-

favelada”. Essa repressão vem tanto do Estado – especialmente seu aparelho policial –,

quanto de grupos locais de traficantes de drogas, cuja presença nas favelas modifica as

relações entre os moradores e desses com o resto da cidade. Dentro das favelas, o tráfico

de drogas estabelece uma nova dinâmica ao impor modos de conduta e pela restrição de

direitos básicos como o da inviolabilidade da propriedade e do corpo e o de ir e vir. Para

fora, a existência do tráfico faz com que seus moradores sejam cada vez mais

estigmatizados.

O problema da “criminalidade urbana” tem sido considerado pela sociologia há

bastante tempo, mas os autores, em sua maioria, identificam que nas últimas décadas

houve uma modificação na forma como o crime tem sido praticado e vivenciado nas

cidades brasileiras. ‘A violência aumentou’ é que todos falam e ouvem, e em grande

parte essa mudança está relacionada, no senso comum, ao crescimento do tráfico de

drogas. Ao analisar uma reportagem de revista semanal sobre a chacina de Vigário

Geral, em 1993, Machado da Silva (1995) afirma:

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De início, vale notar que o termo criminalidade, tal como usado ao longo de toda a matéria, é uma noção geral que reúne um variado leque de fenômenos distintos. Entretanto, a simples lembrança de que a reportagem dedica toda uma seção ao narcotráfico já permite perceber que esta atividade concreta fornece o núcleo central daquela ideia. De fato, essa associação permeia toda a análise desenvolvida; nela, ‘criminalidade’ e ‘narcotráfico’ como que se definem mutuamente, até porque o tráfico de drogas é concebido como o responsável pelo caráter orgânico da criminalidade atual (Machado da Silva, 1995: 499).

O aumento da comercialização da cocaína demandou dos traficantes de drogas

uma reorganização de sua estrutura (Zaluar, 2004). Uma das conseqüências mais

visíveis dessa reorganização é o aumento do controle territorial das favelas por essas

quadrilhas, e da disputa entre quadrilhas por territórios. Além da preocupação com o

aspecto econômico, de garantir os pontos de venda, os traficantes passaram a exercer

um controle sobre a rotina dos moradores, decretando toques de recolher, lei do silêncio,

impedindo a circulação em áreas sob controle de quadrilhas rivais, determinando as

gírias e as marcas de bens que podem ser usadas; ou seja, um conjunto de regras de

comportamento que aumentam a dimensão da submissão imposta aos moradores para

além do âmbito da manutenção do controle territorial. O endurecimento do tráfico, em

termos de controle de território e de armamentos também foi seguido pelo

endurecimento do conflito com outras quadrilhas e com a polícia, o que aumenta a

insegurança e o medo de todos os moradores da cidade, e especialmente dos favelados.

Alba Zaluar (2003a) afirma que o período da redemocratização brasileira

coincidiu com a “dramática transformação na organização transnacional do crime, que

afetou principalmente as regiões metropolitanas, e nelas, os bairros populares e as

favelas” (2003: 210). Em “A Máquina e a Revolta” (1985) a autora já abordava as

conseqüências para os moradores do conjunto habitacional de Cidade de Deus da guerra

travada entre as quadrilhas rivais de traficantes de drogas e entre esses e a polícia, dando

destaque para o que os moradores acreditavam ser uma mudança no perfil dos bandidos

da área, que não seriam mais os “formados” (bandidos mais velhos, conhecidos dos

moradores, muitas vezes oriundo da favela), e sim “jovens descontrolados”. Nesse

trabalho ela afirma que um grande contingente de jovens pobres entrou para essas

quadrilhas no período, movidos por um sentimento de ‘revolta’ contra um sistema que

os humilhava, impedindo que saíssem da posição subalterna que era destinada aos

pobres.

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O aumento da criminalidade, especialmente ligada ao tráfico de drogas, é

reconhecido pelos dados e sentido pela população em geral, e de acordo com Zaluar

(2004) está diretamente ligada à questão do crescimento e internacionalização do tráfico

de drogas. Para a autora não existe uma mudança qualitativa no perfil dos traficantes de

drogas, comparando os anos 1980 com o momento atual, pois em ambos os momentos

os líderes das quadrilhas eram homens jovens interessados tanto no comércio quanto no

poder que exerciam. O que teria mudado seria a forma como esses líderes seriam

escolhidos, e como o poder seria transferido em caso de prisão ou morte, pois no final

da década de 1980 essa decisão passou a ser tomada de fora da favela, e não mais por

bandidos locais. Assim, os traficantes selecionados para o posto de liderança não seriam

mais ligados à população local, o que para os moradores representou uma mudança de

traficantes criados na favela, e assim conhecidos, para outros que não teriam o mesmo

tipo de relação baseada no respeito pelos moradores (Zaluar, 2004: 358).

Outros autores encontram motivos para a mudança na criminalidade urbana na

questão da exclusão e da falta de cidadania, negada a uma parcela considerável da

população: os jovens pobres das favelas e periferias dos grandes centros urbanos. A

‘juventude excluída’ seria a principal vítima e a principal agente da nova criminalidade.

A análise de Luis Eduardo Soares (1996), por exemplo, afirma que a entrada desses

jovens no crime é uma busca de reconhecimento, uma forma de tornarem-se visíveis

para a sociedade que os ignora, ainda que essa visibilidade se dê através da violência

extrema. Assim, o combate à violência deve passar (junto com o combate ao tráfico de

armas), necessariamente, por políticas públicas voltadas para a integração à sociedade

da juventude pobre (Soares, 1996: 258), proporcionando uma alternativa de

reconhecimento que não seja a vida criminosa. A integração dessa população teria que

ser feita através de atuações mais focais, que garantissem o acesso aos direitos mais

básicos da cidadania, já que o Estado (por sua natureza excludente em relação a essa

população), estaria em crise quanto à sua capacidade de proteger os direitos de seus

cidadãos. A proposta de combater a criminalidade com atuações focadas na juventude

moradora de favelas é implementada em diversos “projetos sociais” existentes hoje no

Rio de Janeiro.

Machado da Silva (1995), por sua vez, afirma que a violência urbana não é

causada por um desvio da ordem institucional vigente – ou seja, em função de uma crise

de legitimidade do Estado –, nem um conflito entre grupos políticos que resultem em

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7

uma transformação do sistema social. Para ele, a criminalidade atual tem as

características de uma nova sociabilidade, que não é nem contrária nem alternativa à

sociabilidade convencional, mas paralela. Assim, a criminalidade urbana não é

conseqüência da crise de legitimidade do Estado Brasileiro, e, portanto, deve ser

entendida a partir de outros pressupostos (Machado da Silva, 1995: 507). O autor

defende a separação analítica dessas duas formas paralelas e contíguas de sociabilidade

– a convencional e a que ele denominou ‘sociabilidade violenta’ (Machado da Silva

1995, 2002, 2004, 2008a). Na sociabilidade violenta o que orienta a ação do ator é a

força, e a única resistência do ambiente à ação desse ator é física; o ator sabe a força que

tem e a força que os outros atores envolvidos têm, e somente essa é a sua limitação. Não

existe, assim, “acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada”

(Machado da Silva, 2004: 40). Toda a interação existente se resume à submissão do

mais fraco pelo mais forte, sem que a vontade e a subjetividade dos outros envolvidos

seja considerada5.

Nesse sentido, os moradores de favela estão, como todos os moradores das

cidades, inseridos ao mesmo tempo nas duas sociabilidades, mas estão mais diretamente

submetidos à sociabilidade violenta que o resto da população. No caso da sociabilidade

convencional, apesar da posição subordinada em que se encontram, os favelados

conseguem ter projetos individuais e coletivos, possuem ação coletiva, e estão dessa

forma “ativamente engajados (as) no entendimento de sua própria situação,

independente da direção das praticas que esse entendimento indica” (Machado da Silva,

2004: 42). Porém, sua inserção na sociabilidade violenta é, segundo o autor, sempre

uma submissão, sem a possibilidade de condução autônoma de suas ações. A ‘lei do

silêncio’, que impede que os moradores falem sobre a opressão que sofrem do tráfico,

seria para o autor a conseqüência mais perversa da sociabilidade violenta, pois obriga os

moradores de favela a continuarem a conduzir sua vida sem poderem se comunicar a

respeito de seu cotidiano, por medo e desconfiança, e assim impedidos de “se apropriar

coletivamente da ‘outra parte’ dessa mesma normalidade cindida” (Machado da Silva,

2004: 43).

5 Neste sentido, não se trata de um tipo puro de dominação, como conceituou Weber, pois esta “costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a sua legitimidade” (Weber, ano: 128, grifos do autor), enquanto a submissão imposta pelos traficantes aos moradores de favela não precisa basear-se na legitimidade já que está apoiada na força.

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8

O conceito de que a violência que experimentamos nos dias atuais é diferente da

conhecida anteriormente encontra respaldo na análise proposta por Michel Wieviorka

(2006). Para esse autor, não é possível abordar a questão da violência hoje da mesma

forma que há vinte ou trinta anos atrás, pois o mundo transformou-se consideravelmente

nesse período de tempo. O fim da Guerra Fria, o declínio do movimento operário (que

nos países capitalistas centrais teve características diferentes das encontradas nos países

de capitalismo tardio), a globalização e o reconhecimento de identidades particulares

(que o autor define como “a era das vítimas”), apresentam novas condições onde a

violência aparece com um repertório diferente do que tinha antes dessas transformações.

Assim, as diferentes abordagens para a questão da violência – seja as que privilegiam

sua função como ‘válvula de escape’, as que consideram sua dimensão instrumental ou

as que valorizam as relações entre cultura e violência – não dão conta de dimensões

importantes da violência. Não explicam, por exemplo, a crueldade, a violência gratuita,

quando o ator não apenas destrói o outro, mas a si próprio também. Para Wieviorka,

essas novas dimensões só poderiam ser captadas por uma abordagem que reconhecesse

a lógica de ‘perda de sentido’ que caracteriza essas ações – que pode ser dar tanto como

déficit quanto como sobrecarga de sentido. Para tanto, o autor propõe o conceito de

Sujeito – enquanto a capacidade de cada ator de se construir, decidir sua vida e fazer

suas escolhas – para compreender esse fenômeno.

Para além da questão da natureza dessa nova criminalidade, a forma como os

moradores de favela são vistos pelo resto da população também se modificou. Apesar

do estigma contra os favelados ter sempre existido, a concepção de que os moradores de

favelas são cúmplices dos traficantes que dominam seus locais de moradia tem se

radicalizado. Os trabalhos de Janice Perlman (1977) e Anthony e Elizabeth Leeds

(1978) demonstram que os favelados, nas décadas de 1960 e 1970, também enfrentavam

um forte sentimento de rejeição por parte da população (não-favelada) em geral e

também de muitos pesquisadores. A preocupação daqueles autores era pensar a forma

como os favelados integravam-se à ordem social vigente, e assim buscaram combater

com suas pesquisas a visão de que os favelados seriam ‘atrasados’ e não possuiriam os

valores capitalistas modernos de trabalho, organização coletiva, moral cristã, etc. Leeds

e Leeds, por exemplo, afirmam que a concepção corrente sobre os favelados estava

condensada em dois mitos: a ruralidade e a marginalidade dos favelados (Leeds e Leeds,

1978: 86), o que reforçava o afastamento dessa população da sociedade mais ampla. Em

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9

suas pesquisas, apesar de importantes diferenças no enfoque teórico e nos pressupostos

analíticos, todos os três autores demonstraram que os favelados possuíam os valores

modernos e urbanos que organizavam a sociedade brasileira, e que o estigma que

sofriam impedia que pudessem reivindicar sua participação na vida social do país.

Nos anos 1980, quando a questão da criminalidade passa a ocupar o debate

público a respeito das favelas e áreas populares cariocas, Zaluar (1985) aborda o

problema do estigma que os moradores do conjunto habitacional Cidade de Deus

passaram a sofrer, já que o aumento da violência no local gerou uma cobertura por parte

da mídia que estendeu para todos os moradores a adesão à criminalidade e violência dos

grupos de traficantes locais, aumentando o estigma que essas pessoas já vivenciavam.

Para Leite (2000), que analisou o período dos anos 1990, o aumento da violência

vivenciado nessa ocasião foi interpretado por diversos atores das classes médias,

jornalistas, políticos e acadêmicos como a transformação do Rio de Janeiro de uma

cidade ‘maravilhosa’ em uma cidade ‘partida’ (termo divulgado a partir do livro de

Zuenir Ventura, de 1994). Essa ruptura estaria ligada ao esgarçamento do tecido social,

em função de um modelo econômico e de expansão da cidade excludente para a maioria

da população. Mas a imagem da ‘cidade partida’ também aludia, segundo a autora, a

uma oposição entre morro (e subúrbios) e asfalto, ou seja, entre as classes pobres e ricas

da cidade, e ao sentimento de medo e insegurança que os ricos sentiam em relação aos

pobres. O conceito de ‘cidade partida’ se propunha a ser uma crítica à transformação

das favelas e subúrbios em os bárbaros da cidade, mas de acordo com a autora acabou

por “reforçar os nexos simbólicos que territorializavam a pobreza e a marginalidade nas

favelas cariocas” (Leite, 2000: 74).

A representação coletiva de que existiria uma guerra em curso, entre ‘o mundo

civilizado’ do asfalto e a ‘barbárie’ dos traficantes localizados nas favelas justificaria,

assim, atitudes mais agressivas por parte da polícia, inclusive contra todos os moradores

de favela. Para Leite essa concepção seria cristalizada em uma “Metáfora da guerra”,

relacionada ao surgimento de um “pensamento refratário ao respeito e/ou

reconhecimento de direitos de cidadania de segmentos considerados potencialmente

disruptivos da ordem social” (Leite, 2000: 75). A metáfora da guerra justificaria a

ambigüidade para com os direitos dessa população por considerá-la prejudicial para o

combate à violência, e seria fortalecida cada vez que a percepção do aumento da

violência na cidade se ampliasse, convocando a população a escolher um dos lados

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dessa guerra. Sua força foi tanta que fez parte da agenda política dos candidatos à

prefeitura e ao governo do estado na época (Leite, 2000: 75).

Comparando os argumentos de Perlman (2002 [1977]) e Leeds & Leeds (1978) à

análise de Alba Zaluar (1985) e Márcia Leite (2000) é possível identificar um trabalho

de diferenciação (ou limpeza moral) por parte dos favelados, buscando reforçar suas

identidades de trabalhadores e, portanto, integrados ao sistema social capitalista da

sociedade brasileira. No entanto, enquanto que nos anos 1960 e 1970 a distinção era

feita em relação aos vagabundos – ladrões, malandros, bêbados, pessoas sem trabalho

fixo ou valores morais –, hoje o esforço é maior, porque a distinção é feita em relação

aos traficantes e assassinos identificados como uma séria ameaça à ordem civilizada,

como inimigos principais da ordem pública. Dentro desse forte contexto de estigma, as

populações faveladas ficaram isoladas do resto da cidade, enfrentado sozinhas tanto a

violência do tráfico de drogas quanto a da polícia. A partir da compreensão de que

estaríamos em “guerra”, os moradores de favela não seriam diferenciados do ‘inimigo

público’ representado pelos traficantes, e por isso são tratados pelos policiais na maioria

das vezes como potenciais alvos. Pesquisas feitas sobre a atuação da polícia mostram

que o número de vítimas em ações realizadas nas favelas é seis vezes maior que no

“asfalto”; além disso, exames dos laudos cadavéricos apontam que os tiros dados pelos

policiais nas vítimas visam partes vitais do corpo, demonstrando uma “intenção

homicida” (Cano, 1997: 65). Tal tratamento diferenciado é aceito por grande parte da

população, que passa a considerar os favelados “matáveis” (Farias, 2008), e resulta em

grande descontentamento e desconfiança dessa população em relação à polícia. Como

afirma Leeds (2003):

O modo pelo qual o Estado reage ao tráfico de drogas nas favelas constitui um exemplo atual (numa série de paralelos históricos) de repressão do ‘comportamento aberrante’ da classe inferior e, logo, de repressão de segmentos expressivos de toda uma classe (Leeds, 2003: 235).

A questão do estigma que envolve todos os moradores de favela torna-se um

obstáculo especialmente para as lideranças comunitárias que pretendem falar pelos

moradores de favela. Para esses, apresentar-se no espaço público, seja frente ao

governo, financiadores de projetos sociais ou à mídia, exige que primeiro eles provem

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11

não falar pelos traficantes que habitam suas localidades. A “limpeza moral” torna-se

condição para sua legitimidade enquanto representantes dos moradores ‘de bem’ das

favelas. Todavia, a contigüidade que vivenciam com os traficantes muitas vezes é

acionada por essas organizações supralocais quando sua entrada nas favelas é

necessária, como, por exemplo, nas situações em que a prefeitura confirma com as

associações de moradores a autorização para a realização de obras e serviços, exigindo

que a associação demande aos traficantes de drogas pela ‘autorização’ e eximindo-se

assim do contato com eles (Miranda e Magalhães, 2004). Assim, ao mesmo tempo em

que se exige o afastamento das lideranças em relação às quadrilhas de tráfico de drogas,

essa mediação é requisitada em diversos outros momentos, o que traz grandes

dificuldades para as associações – que são frequentemente identificadas como

coniventes e cúmplices dos traficantes.

Fica claro então o quanto à atuação dessas lideranças é limitada, particularmente

no que diz respeito à denúncia das violências sofridas pela população e a intervenção no

debate a respeito da segurança pública. Em função das limitações de ação impostas pelo

tráfico, somente parte da violência cometida contra os moradores de favela pode ser

denunciada – a violência policial. A atuação da polícia dentro das favelas, ou junto à

população pobre no Rio de Janeiro em geral, tem sido marcada pela violência e injustiça

com que os agentes policiais agem, o que coloca os moradores entre dois opressores

poderosos. Aliada à violência policial está o problema da corrupção, que é parte

fundamental da organização das quadrilhas de tráficos de drogas. Esses dois aspectos da

atuação policial dentro das favelas, ou como opressores externos ou aliados dos

opressores internos, faz com que a população das favelas encare um encontro com a

polícia sempre como uma possível situação de violação dos seus direitos civis ou como

um encontro com ‘protetores’ dos traficantes (Leeds, 2003). Dessa forma, pela relação

com a polícia ser marcada por essa imprevisibilidade, é que os moradores de favela

muitas vezes afirmam preferir os traficantes à polícia.

A crítica à violência policial é constante entre os moradores de favela, mas o

pensamento cristalizado no conceito “Metáfora da Guerra” (Leite, 2000) faz com que

aqueles que não estão do lado da polícia sejam considerados, por contraste, aliados ou

cúmplices dos traficantes de drogas. Da mesma forma, por parte dos traficantes todos

aqueles que se colocarem contra a opressão que exercem são vistos como inimigos e

correm o risco de serem assassinados. Assim como todos os moradores de favela, as

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lideranças comunitárias enfrentam o estigma de serem tratados como “cúmplices dos

traficantes ou como informantes da polícia” (Leeds 2003: 251). É fato que muitas

lideranças foram assassinadas ou tiveram que fugir de suas localidades por colocarem-

se contra os interesses dos grupos armados. Até as manifestações feitas contra a

violência policial são muitas vezes reprimidas, com o argumento de serem

manifestações de apoio aos traficantes. Como afirma Leeds (2003), o que seria

permitido dentro das regras do processo democrático (opor-se à violência exercida

contra os moradores) é uma dificuldade para as associações de moradores, o que

enfraquece sua atuação e ameaça o senso de coletividade dos moradores.

Nesse contexto – sendo pressionados pelos traficantes, estigmatizados pela

polícia e pela população em geral, e cooptados pelo Estado –, sobra pouco espaço para a

atuação das associações na defesa dos interesses dos moradores. Porém, mesmo dentro

deste contexto de submissão outras formas de organização coletiva têm surgido dentro

dos espaços das favelas. Organizações não-governamentais que executam “projetos

sociais” nas favelas, grupos culturais, reunindo artistas de diversos tipos, associações de

familiares de vítimas de violência em busca de justiça e reparação, etc., representam um

novo espectro de formato associativo que tem atuado com maior intensidade e obtido

maior reconhecimento. Particularmente as ONGs têm sido vistas como “novos sujeitos

na cena política”, não apenas nos espaços da favela, mas em toda “a cena política e

social nacional e internacional” (Cicconello, 2006).

O termo ONG aparece nas pesquisas oficiais englobando diferentes categorias

de instituições, como na pesquisa feita pelo IBGE e divulgada em agosto de 20086. Sob

o termo Fundações Privadas e Associações sem fins lucrativos encontram-se

congregações religiosas, associações patronais e profissionais, organizações de

assistência social, de defesa de direitos (que inclui associações comunitárias, de

moradores e de defesa de minorias)7, entre outras, o dificulta mensurar o real tamanho

das organizações não-governamentais que executam “projetos sociais” como

6 Ver Por dentro do Universo das ONGs. Revista Época, 11 de agosto de 2008.7 Segundo dados do IBGE, e computados pela Revista Época, a distribuição das ongs é a seguinte: 24,8% são Congregações Religiosas; 17,8% são entidades de Defesa de direitos (sendo metade associações comunitárias, um terço são associações de moradores e 10% entidades de defesa de grupos específicos eminorias); 17,4% são associações patronais e profissionais; 13,9% são entidades de Cultura e recreação; 11,6% são de Assistência Social; 5,9% Educação e pesquisa; 1,3% Saúde; 0,8% Meio ambiente e proteção animal; 0,1% Habitação e 6,4% outras atividades.

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mencionado acima. De qualquer forma, a pesquisa citada acima traz informações

importantes para estimar o tamanho deste setor. Segundo o IBGE, em 2005 elas eram

mais de 338 mil, e a cada dia 57 ONGs são criadas no país. De acordo com dados

citados pela Revista, essas organizações receberam em 2007 R$ 1.150 milhões – o que

representa uma duplicação dos investimentos sociais feitos no ano de 2001.

Pelos números fornecidos pelo IBGE não é possível estimar a quantidade de

ongs que atualmente executam “projetos sociais” no Rio de Janeiro, particularmente em

suas favelas e territórios periféricos, mas é possível imaginar que não são poucas,

especialmente porque muitas delas atuam junto ao poder público nas diversas políticas

executadas nos últimos anos nesses espaços8. A elas somam-se os grupos culturais e

associações mencionadas acima, atuando junto à mesma população. Ainda que com

abordagens, pressupostos e intenções variadas, essas novas organizações de moradores

de favela parecem gravitar em torno da temática da juventude moradora de regiões

periféricas e de favelas. São jovens os principais participantes de grupos e movimentos

culturais fortemente identificados com esses territórios (por exemplo, o funk, o hip-hop,

o jongo, etc. 9); e são também jovens o público-alvo principal de ações públicas e

privadas realizadas nesses espaços que visam o “combate à pobreza e à vulnerabilidade

social”. É evidente que tal escolha não é aleatória ou (somente) ideológica: não apenas

os jovens são as maiores vítimas de homicídios dolosos no Rio de Janeiro como são

também os jovens “negros, mulatos, pardos e quase brancos” que se engajam em

“quadrilhas de traficantes, quadrilhas de assaltantes” e iniciam uma “guerra fratricida”

(Zaluar, 2003b). Mas de forma similar à construção do “problema da favela” como um

problema de segurança pública, a questão da juventude pobre hoje (e desde a última

década) é apresentada como a questão da potencial adesão deste grupo etário à

criminalidade violenta (Sposito e Carrano, 2003; Abramo, 1997), e a atuação de muitas

dessas organizações, as não-governamentais particularmente, passou a ser voltada para

“resgatar” a juventude dos riscos dessa adesão. Vale ressaltar, contudo, que muitas

dessas organizações desenvolvem também o papel de mediadoras entre as populações

faveladas e os moradores do “asfalto”, através de suas apresentação artísticas e também

pela participação em palestras, programas de TV e outros espaços disponíveis. Seus

8 Refiro-me aqui ao Projeto Favela-Bairro, ao Plano de Aceleração do Crescimento para as Favelas, o Programa Nacional de Segurança e Cidadania, entre outros. Tais políticas públicas serão abordadas com mais profundidade no Capítulo II desta tese.9 Ver, entre outros, Herschmann (2005), Souto (2003) e Cecchetto (2003).

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participantes buscam não apenas dar visibilidade ao trabalho que realizam, mas também

comprovar – através da apresentação de si mesmos – que “nem todos os favelados são

bandidos”. Dessa forma, aproximam estratos sociais que se encontram afastados

geográfica e socialmente, e combatem a generalização, “palavra-chave da ‘cultura do

medo’” (Novaes, 2003: 153).

O contexto geral apresentado acima, de forma bastante resumida e sem abordar

diversos outros aspectos da literatura das ciências sociais que colocam sobre as favelas

seu foco de interesse analítico, serve para situar o debate maior em que esta tese está

inserida. Alguns dos temas e das abordagens teóricas que foram anteriormente

mencionados serão recuperados ao longo deste texto. Todavia, esta tese fala sobre um

caso específico, circunscrito a um território da cidade do Rio de Janeiro. A favela do

Pereirão tem uma história particular e, além disso, está localizada em uma região do Rio

de Janeiro que é considerada privilegiada em termos de aparelhos urbanos, transporte,

serviços públicos, etc. Por outro lado, a pesquisa ali realizada permitiu recolher

evidências da proximidade do cotidiano dos moradores do Pereirão com o de outras

favelas cariocas – caracterizadas como mais violentas e com menor acesso a bens

públicos. Dados do Censo 2000 (IBGE) demonstram também que há uma grande

distância entre as condições socioeconômicas do Pereirão e do bairro de classe média no

qual está localizado:

Laranjeiras Pereirão

Moradores alfabetizados 94% 81%

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com mais de 15 anos de estudo

54% 3%

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com renda de 10 ou mais salários mínimos (de 2000)

61% 2%

Renda média do responsável pelos domicílios particulares permanentes (em salários mínimos de 2000)

19.6 3

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15

No entanto, busquei ao longo do texto construir pontes entre o caso do Pereirão e

o do conjunto de favelas cariocas – ainda que ciente da heterogeneidade intra e entre

favelas característica desse fenômeno. Ainda que a partir de um “caso particular do

possível”, acredito que a reflexão sobre o Pereirão auxilie a refletir sobre as

complexidades que definem a situação das favelas no momento atual da história

brasileira e da relação entre a cidade e seus moradores, especialmente aqueles que

moram em territórios estigmatizados. Assim, esta tese está organizada em quatro

capítulos, além desta introdução e da conclusão.

No primeiro capítulo, apresento o Pereirão e discorro sobre suas especificidades,

especialmente no que diz respeito à sua construção como uma “favela tranquila”.

Abordo também quais os mecanismos acionados pelos moradores para tentar manter

essa representação da “tranquilidade” local, e as tensões resultantes dessas tentativas.

No segundo capítulo analiso o caso da associação de moradores local e as dificuldades e

soluções encontradas para a situação de paralisia em que ela se encontra.

Particularmente, abordo como o risco representado pelos traficantes de drogas limita e

cerceia a atuação da associação de moradores, ainda que sua força não seja reconhecida

pelos dirigentes como um obstáculo à ação coletiva. No terceiro capítulo investigo o

caso da organização não-governamental que atua na localidade, como ela foi formada e

para que fins, e como funciona. Discorro ainda como ela enquadra a temática da

violência e da vulnerabilidade juvenil, dentro do contexto mais amplo de atuação das

ONGs em favelas cariocas. No último capítulo analiso as rupturas e as continuidades

existentes entre associações de moradores e organizações não-governamentais no que

diz respeito ao tratamento dado por elas à questão da violência urbana e dos direitos dos

moradores de favelas, fazendo referência a uma selecionada e parcial bibliografia sobre

movimentos sociais. Por fim, na conclusão discorro sobre o significado da

“tranquilidade” do Pereirão a partir da oposição entre voz e silêncio, sendo voz a

possibilidade de se apresentar no espaço público como um ator portador de direitos e

silêncio a ausência dessa possibilidade.

Antes de iniciar a tese, contudo, é preciso fazer algumas ressalvas

metodológicas. O trabalho empírico que subsidia a análise aqui apresentada foi

realizado dentro do âmbito do Projeto de Pesquisa “Rompendo o cerceamento da

palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, coordenada pelo Prof. Dr.

Luiz Antonio Machado da Silva e realizada por uma rede de pesquisadores de diferentes

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universidades e instituições10, e financiada pela Faperj e pela Unesco. A pesquisa foi

feita entre os anos de 2005 e 2007, e recolheu relatos de 150 moradores de 45 favelas

cariocas através da realização de 15 grupos focais. Tais grupos focais foram

organizados de forma a permitir que os moradores de favelas sentissem-se seguros para

relatar os tipos de coerção pelas quais passam diuturnamente. Dessa forma, eles foram

reunidos em ambientes fora das favelas, em salas alugadas que permitem a gravação das

conversas (aceita pelos participantes). Além disso, todos os participantes convidados

possuíam contanto pessoais anteriores com pesquisadores ligados ao grupo, de forma a

construir um ambiente de confiança onde pudessem abordar temas sobre os quais os

moradores de favela se sentem impossibilitados de falar, por medo de retaliações.

Assim, esses grupos focais foram nomeados “coletivos de confiança”. Outra fonte de

material empírico para a pesquisa foi o trabalho de campo realizado em três favelas

cariocas: uma considerada “tranquila” (sem tráfico de drogas ostensivo nem grandes

operações policiais), outra violenta e uma terceira onde há a presença de grupos de

milícia11. O resultado dessa pesquisa foi publicado no livro “Vida sob cerco: violência e

rotina nas favelas do Rio de Janeiro” (Machado da Silva, 2008c).

Dessa forma, a pesquisa de campo aqui apresentada começou dentro da pesquisa

acima mencionada, mas ainda se estendeu durante alguns meses de 2008. Ela se deu na

favela considerada “tranquila” pelo desenho da pesquisa: a Favela Vila Pereira da Silva,

mais conhecida como Pereirão, localizada no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio de

Janeiro. Aqui vale uma observação em relação à difícil decisão de tornar público o

nome da localidade onde foi realizada a pesquisa. No momento da publicação dos

resultados da pesquisa, a equipe optou pelo anonimato em relação não apenas aos

entrevistados, mas também ao nome das três localidades pesquisadas. No entanto, a

história recente do Pereirão já foi alvo de trabalhos científicos (Cf. Soares, 2005) e,

portanto, já é de conhecimento público. Além disso, suas especificidades – a vizinhança

com o BOPE, a existência de uma pousada e de um grupo de artistas ligados à produção

audiovisual – tornaram-na facilmente reconhecível. Em função desses aspectos decidi

enunciar seu nome, ainda que mantendo o anonimato dos moradores entrevistados

(através da escolha de nomes fictícios e de biografias modificadas). Durante o trabalho

10 São elas: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj); Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Universidade Federal Fluminense (UFF); e Universidade do Norte-Fluminense (Uenf).11 Sobre os campos feitos em outras favelas ver Machado da Silva (org.), 2008; Mesquita, 2008.

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de campo garanti aos entrevistados o anonimato de seus depoimentos, mas, como

sempre cogitei mencionar o nome da favela, todos os informantes foram informados

dessa possibilidade. Estou ciente que tal escolha pressupõe certos riscos, e informações

foram retiradas do texto para proteger alguns entrevistados. Mas como toda escolha,

esta também oferece perdas e ganhos, e nessa intricada aritmética achei que o trabalho

ganharia mais em densidade e em riqueza de informações com a divulgação do nome.

Assim, entre 2005 e 2008 fiz trabalho de campo no Pereirão (ininterruptamente

durante o ano de 2005, com alguns retornos pontuais em 2006, 2007 e 2008) e

entrevistei 20 moradores (cujos perfis sociodemográficos e curtas biografias estão

disponíveis no anexo I). Mas, acima de tudo, observei como os moradores vivenciam

cotidianamente os efeitos da dinâmica especial de ocupação daquele território pelos

traficantes de drogas. Como dito acima, o Pereirão é considerado uma favela

“tranquila”; em certas situações essa condição local é interpretada e acionada pelos

moradores como um recurso, um capital simbólico (Bourdieu, 2004). Em outros

momentos, ela é apresentada como um problema (especialmente nos momentos de

reivindicar ao poder público investimentos na localidade). Dessa forma, o objeto desta

tese são as interpretações dos moradores do Pereirão (as interpretações “nativas”) sobre

a localidade, sobre a relação que estabelecem com a submissão imposta pelos traficantes

de drogas (que, de acordo com a situação, estão ausentes ou presentes da localidade

segundo as interpretações “nativas”), a forma como grupos organizados de moradores

interpretam e movem-se dentro do território, e como articulam suas ações para fora

dele. Particularmente, interessou-me a questão da ação coletiva e das possibilidades de

apresentação no espaço público para esses moradores, a partir dessa experiência

específica.

É importante sublinhar que, apesar de discutir a forma como os moradores

identificam a presença ou ausência de traficantes de drogas em seu território, e como

essa identificação modifica-se de acordo com a situação em que estão concernidos, não

busquei em nenhum momento investigar e determinar se as declarações dos moradores

sobre o tráfico de drogas local eram falsas ou verdadeiras; se haveria ou não tráfico de

drogas na localidade. Busquei apenas entender o que eles queriam me dizer quando

afirmavam “aqui não tem tráfico” e quando diziam “aqui é uma favela como as outras”.

Apesar de saber as limitações desse tipo de investigação, busquei compreender a

Page 27: Tese_Lia_Rocha_2009

18

representação do tráfico de drogas “a partir do ponto de vista do nativo”, tentando

seguir as recomendações de Geertz (1983):

To grasp concepts that, for another people, are experience-near, and to do so well enough to place them in illuminating connection with experience-distant concepts theorists have fashioned to capture the general features of social life, is clearly a task at least as delicate, if a bit less magical, as putting oneself into someone else's skin. The trick is not to get yourself into some inner correspondence of spirit with your informants. Preferring, like the rest of us, to call their souls their own, they are not going to be altogether keen about such an effort anyhow. The trick is to figure out what the devil they think they are up to (Geertz, 1983: 58).

Buscando entender “o que diabos eles pensam que estão fazendo”, tentei

contrastar teorias “nativas” com outras explicações – do senso comum e da teoria. Para

tanto, segui as pistas apresentadas por Peirano (1992):

Relembro também que, na antropologia, de Malinowski a Geertz, passando por Lévi-Strauss, sempre houve lugar para uma consciência crítica das representações de outros povos e outros lugares. A antropologia tem como projeto formular uma idéia de humanidade construída pelas diferenças, resultado do contraste dos nossos conceitos (teóricos ou de senso comum) com outros conceitos nativos (Peirano, 1992: 4).

Ou ainda:

Mas todo bom antropólogo aprende e reconhece que é na sensibilidade para o confronto ou o diálogo entre ‘teorias’ acadêmicas e nativas que está o potencial de riqueza da antropologia (Peirano, 1992: 10).

Por fim, vale um último comentário de caráter metodológico. Minha entrada no

campo foi intermediada por uma colega de equipe da Pesquisa “Rompendo o

cerceamento da palavra: moradores em busca de reconhecimento”, que em função de

contatos feitos durante outra investigação conheceu dois diretores da associação de

moradores local. O objetivo inicial da minha investigação era realizar uma observação

Page 28: Tese_Lia_Rocha_2009

19

de inspiração etnográfica como parte do levantamento de dados empíricos para a

pesquisa, que visava descrever e analisar os relatos de moradores de favela sobre

práticas violentas e como eles compreendiam e vivenciam o fenômeno coletivamente

identificado como “violência urbana”. Assim, minha tarefa no Pereirão era observar a

rotina dos moradores e como eles lidavam com as situações de tensão e conflito geradas

pela atuação dos traficantes e/ou da polícia. Porém, em função da peculiaridade do

Pereirão – ser uma favela “tranquila”, sem confrontos entre traficantes e entre esses e os

policiais – meu olhar foi direcionado para compreender a dinâmica dessa

“tranquilidade”, e também seus limites. Pois somente depois de decorrido algum tempo

de minha presença na favela as pessoas passaram a falar a respeito do tráfico de drogas.

Tais relatos se deram em contextos de conversas informais, referida às atividades

rotineiras (conversas de vizinhos nos portões, almoços, passeios etc.) fruto de minha

convivência com aquelas pessoas. Quando a pergunta sobre o tráfico de drogas era feita

de forma direta, mesmo com o gravador desligado, as pessoas não respondiam, ou então

repetiam o mesmo argumento do “lugar tranquilo”12. Por causa disto, o gravador foi

aposentado após a primeira semana de trabalho de campo, só sendo utilizado em

algumas poucas entrevistas (especificamente em quatro delas, com participantes da

associação de moradores e da ONG). Assim, os materiais empíricos sobre os quais se

assenta a minha análise são, sobretudo, anotações de observações feitas em campo e

relatos de conversas informais com os moradores.

Ao longo do trabalho de campo tive contato com inúmeros moradores, tanto em

situações formais de entrevista quanto em momentos informais, mas boa parte dessas se

deu em companhia do presidente da associação de moradores local, Antônio13. Quando

este não me guiava pessoalmente (inclusive ao entrar e sair da favela), outros moradores

se propunham a fazê-lo; mesmo em ocasiões onde marquei encontro com moradores

sem a intermediação do presidente, estes também faziam questão de me acompanhar.

Quando afirmei não precisar de guia justificaram a companhia dizendo que eu me

perderia por não conhecer o local – o que realmente aconteceu no primeiro dia que

consegui me desvencilhar dos meus guias, e em alguns outros depois disso. Apesar do

acompanhamento constante, em nenhum momento me senti escoltada, ao contrário; a

12 Já é possível adiantar, por essa informação, que apesar da “tranquilidade” propagada os moradores do Pereirão possuem a palavra cerceada (Machado da Silva, 2008) de forma bastante similar aos outros moradores de favelas; dimensão que será discutida detalhadamente mais à frente.13 Nome fictício.

Page 29: Tese_Lia_Rocha_2009

20

presença dos moradores ao meu lado parecia uma gentileza, ainda que evidenciasse

minha posição de visitante na favela. Além de guia, Antônio se tornou também meu

principal informante, e um dos poucos moradores a me conceder entrevistas gravadas14.

No começo do trabalho de campo não só ele me escoltava como me ajudou a recrutar os

primeiros entrevistados, me acompanhando nas entrevistas (ainda que em muitas delas

permanecesse fora das casas, “para me dar mais liberdade”, segundo ele). Ainda que a

possibilidade de ter Antônio escolhendo meus entrevistados não fosse muito sedutora,

não recusei sua ajuda, e por causa dele comecei a construir minha rede de informantes.

Como para ele eu deveria estar escrevendo a “história” do morro, no começo conversei

com muitos moradores idosos; mas com o tempo minha rede de contatos passou a

incluir também moradores de outras faixas etárias.

Após um mês de trabalho fui convidada por Antônio para participar de uma

reunião na casa de uma moradora da rua que leva à favela (no “asfalto”), a respeito de

um vídeo que ela gostaria de fazer sobre a história da favela. Nessa reunião fui

convidada (e de certa forma convocada) pelo presidente a ajudar na realização do vídeo

entrevistando os moradores e, apesar da minha recusa inicial por receio de que minha

ligação com um vídeo sobre a história da favela pudesse prejudicar meu trabalho na

localidade, aceitei o convite/convocação. Durante dois meses, junto com uma equipe de

vídeo formada por participantes de uma ONG sediada em outra favela, além de alguns

membros da ONG local15, realizei dezenas de entrevistas com moradores idosos. Essa

experiência foi útil não só para me aproximar do presidente da associação, como para

propiciar meu contato com os jovens moradores participantes da ONG. Em função

dessa dupla entrada – pela pesquisa e pelo vídeo – entrevistei muitos moradores antigos

e suas famílias. As entrevistas seguiam um roteiro parecido: era só perguntar sobre o

passado na favela que as lembranças se repetiam. Árvores cheias de fruta, bosques,

passeios sem preocupação, sem luz nas ruas e nas casas, histórias de fantasmas de

escravos mortos ali na senzala, de lobisomem e mula-sem-cabeça... Diziam-me: “era

como uma fazenda”. As lembranças também se referiam à união entre os moradores, ao

sentimento de comunidade em sua acepção mais clássica16 - local da proximidade e do

afeto. Este sentimento de comunidade era reforçado pelos elogios feitos frequentemente

14 O material sobre Antônio e a associação de moradores foi analisado no capítulo 2 desta tese.15 A iniciativa foi analisada no capítulo III desta tese.16 Refiro-me às concepções de Tonnies (1957), onde a comunidade se manifesta através das relações de afeto, do hábito e da memória.

Page 30: Tese_Lia_Rocha_2009

21

à localidade, ao prazer de habitar ali, aos convites para que eu me mudasse também para

o Pereirão.

Essa foi a tônica do primeiro ano de trabalho de campo realizado na Favela do

Pereirão. Após um afastamento durante as férias, o retorno já se deu em uma nova

dinâmica: algumas vezes em que fui à localidade não encontrei Antônio, que estava fora

da associação resolvendo algum problema, e essa ausência me possibilitou conhecer e

frequentar com mais familiaridade o espaço da ONG TV Morrinho. Assim, pude

entrevistar alguns dos meninos, observar a preparação para as viagens, participar do

momento em que voltavam dessas turnês e, principalmente, acompanhar o lançamento

do documentário sobre o grupo e a repercussão da ida deles à Bienal de Arte de Veneza,

em 2007. A partir da oportunidade de conhecer e investigar a atuação da ONG meus

interesses analíticos passaram a ser não apenas a construção da representação local de

“favela tranquila”, mas também como associação de moradores e ONG atuavam dentro

daquele território, quais as semelhanças e as diferenças no tipo de atuação, e como elas

estavam orientadas para a questão da criminalidade violenta tanto em sua dinâmica local

quanto na discussão mais ampla sobre moradores de favelas, juventude e violência

urbana. No final do trabalho de campo a direção da associação de moradores mudou, e

começou a gestão de Jennifer que, em função da minha necessidade de finalizar o

trabalho de campo para começar a redação, foi entrevistada por mim apenas uma vez.

Inicialmente eu não pretendia realizar a pesquisa para minha tese de doutorado

(sobre associativismo em favelas cariocas) no Pereirão, mas sim em favelas com maior

tradição organizativa. Mas o caso daquela pequena favela, cujos moradores a

apresentavam como “diferente das outras” em alguns momentos, mas que de acordo

com a situação e com os agentes envolvidos reivindicava uma condição de “igual às

outras” passou a ser, para mim, um caso bom para pensar novos formatos associativos

adotados por moradores de favelas, e como eles estão “ajustados17” ou não ao contexto

17 É importante destacar que a construção analítica expressa no conceito de “ajustamento” aqui utilizado não comporta um julgamento ou avaliação moral: como ressaltam Boltanski e Thevenot (1991: 50 e seguintes) tal ajustamento pode estar orientado para o sentido de justiça (algo ser justo ou injusto) ou para o sentido de justesse, que significaria bom (ou mal) funcionamento, seja de coisas ou de pessoas. É neste segundo sentido que utilizo o termo “ajustamento”, ou seja, a maior ou menor “adequação” dessas organizações ao enquadramento atual do tema das favelas. O conceito recupera também a idéia weberiana de ação racional com fins a um objetivo (Weber, 2004): seriam “ajustadas” as ações que conseguem chegar com maior eficácia aos objetivos determinados, e são “desajustadas” as ações que não alcançam os fins desejados. A dimensão da justiça, ou seja, se este enquadramento é justo ou injusto, não está contida na análise aqui feita.

Page 31: Tese_Lia_Rocha_2009

22

mais geral de enquadramento do “problema da favela” e da nova sociabilidade que nelas

aparece. Espero ter feito jus ao Pereirão, a seus moradores e à complexidade de suas

experiências.

Page 32: Tese_Lia_Rocha_2009

23

I. Uma favela onde “reina a paz”.

Fonte: www.favelinha.com

Em janeiro de 1999 uma pequena favela da Zona Sul do Rio de Janeiro foi

visitada pela Vice-Governadora do Estado, pelo subsecretário de Segurança e por

diversos políticos e oficiais da Polícia Militar. Naquele dia era inaugurada uma das

iniciativas-piloto nomeadas “Mutirão Pela Paz”18, projeto da Secretaria Estadual de

Segurança que pretendia fazer uma “ocupação social” da favela, em oposição às

“ocupações” policiais. Da “ocupação social” não participariam apenas policiais, mas

18 O Projeto “Mutirão Pela Paz” será mais bem delineado à frente.

Page 33: Tese_Lia_Rocha_2009

24

também serviços públicos, como acesso à documentação, provisão de carteiras de

trabalho e defensoria pública, além de projetos sociais. A escolha do Morro do Pereirão

como palco dessa intervenção se deu em um contexto particular, onde eventos ligados

ao combate ao tráfico de drogas na cidade tiveram grande repercussão pela proximidade

da favela com importantes vias e prédios públicos, além de sua localização em um

bairro tradicional de classe média. Dessa forma, o local foi escolhido como modelo de

um novo padrão de intervenção preconizado pelo governo do estado. Porém essa não foi

a única ação executada no local; além do “Mutirão pela Paz”, em 2000 a sede do

Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio

de Janeiro foi transferida para uma rua perto da entrada da favela19. Em função desses

eventos essa favela tem estado “em paz”, sem conflitos entre grupos de traficantes ou

entre estes e a polícia20. De acordo com os moradores o Pereirão é desde então um lugar

“tranquilo” para se morar. Vale ressaltar que tanto “tranquilo” quanto “em paz” são

termos nativos, i.e., utilizados pelos próprios moradores, fazendo parte do repertório

utilizado por eles para descrever seu local de moradia, seu cotidiano. Por isso elas se

encontram entre aspas, o mesmo valendo para o termo “comunidade”.

Este capítulo descreve e analisa de que forma os moradores vivem essa

“tranquilidade”, e como organizam e vivenciam suas rotinas em uma localidade onde os

riscos representados por encontros indesejados, sejam com traficantes de drogas ou com

policiais, não se apresentam de forma cotidiana. Segundo seus moradores, a diferença

entre essa e as outras favelas do Rio de Janeiro repousa na avaliação de que naquela

localidade ”há tranquilidade, pois não existe tráfico de drogas”. No entanto, quando os

moradores começam a falar sobre seu lugar de moradia e sobre suas vidas, sem a

formalidade das pesquisas e dos testemunhos, diferentes modalidades de presença e

ausência do tráfico de drogas são mobilizadas e apresentadas, dependendo do contexto

discursivo em questão. Busquei, portanto, demonstrar as explicações locais para tal

situação de “tranquilidade”, em que condições ela foi possível, como atualmente ela é

compreendida pelos moradores e quais são as ameaças identificadas por eles à situação

de favela “em paz”.

19 O BOPE é responsável, entre outras ações especiais, pelas operações realizadas em favelas. O tema será mais aprofundado à frente, neste capítulo.20 Ao longo do trabalho de campo ocorreu um conflito, que será descrito mais à frente. No entanto, mesmo após esse evento o Pereirão ainda é considerado uma favela “em paz”.

Page 34: Tese_Lia_Rocha_2009

25

É a partir da memória dessa época, de comunidade pequena e tradicional, que os

moradores entrevistados começam a analisar o presente do Pereirão. A avaliação tem

sempre como contraponto esse passado idílico e bucólico, e a oposição é estabelecida

em relação à situação de incerteza atual sobre o futuro da localidade. Apesar de serem

bastante positivos na avaliação sobre a favela, particularmente no que diz respeito à

“paz” hoje vivenciada, muitos dos moradores entrevistados demonstraram preocupação

com a manutenção dessa situação, ou seja, o possível retrocesso à situação de constante

conflito. Para compreender como a favela chegou à situação de “paz” e quais as

ameaças identificadas pelos moradores, discuto na seção a seguir os discursos dos

moradores sobre sua localidade.

1.1. O passado da “comunidade” do Pereirão.

A favela do Pereirão, ou Vila Pereira da Silva – seu nome oficial – fica

localizada no final da rua de mesmo nome, em Laranjeiras, e ao lado de um túnel

importante que liga essa região ao centro da cidade. Além da entrada por essa rua é

possível entrar na favela por cima, pelo bairro de Santa Teresa. De baixo, olhando para

a favela, vê-se ao lado esquerdo o muro de uma grande propriedade e ao lado direito os

prédios do um luxuoso condomínio e o Batalhão do BOPE, e ao longe a Baía de

Botafogo, coroada pelo Pão de Açúcar. Na favela morariam atualmente 3500 pessoas,

segundo informações da Associação de Moradores, mas nos últimos tempos estaria em

processo de expansão, atraindo novos moradores em função de sua “tranquilidade”, bem

como de sua localização privilegiada, perto do centro da cidade e com acesso a diversos

meios de transporte, inclusive o metrô.

No relato de moradores antigos, entrevistados por mim para um vídeo sobre a

história do local, o território começou a ser ocupado há muitos anos, pois a região em

que se localiza seria parte de uma fazenda produtora de café. Seria possível encontrar

ainda resquícios de uma senzala entre as construções atuais. Pelas informações

recolhidas, a favela existiria há mais de 70 anos, mas nenhum morador soube precisar

exatamente quando ela começou. A uma favela pequena, chamada Pau da Bandeira

(nome muito comum em outras favelas também), foram incorporados dois outros

Page 35: Tese_Lia_Rocha_2009

26

terrenos, um deles doado aos moradores por freiras do colégio católico vizinho à favela.

Um dos moradores entrevistados, de 75 anos, afirmou ter nascido já no Pereirão, mas a

maioria dos moradores mais antigos teria ali chegado na década de 1960. O terreno no

lado esquerdo é ocupado há muitos anos por uma grande casa no estilo palacete, que

pertenceria a um duque. Antigamente era possível entrar no bosque localizado na

propriedade, pois não havia então o muro que separa os dois terrenos, e os moradores

mais antigos ali passeavam, brincavam, colhiam frutas, etc. A favela dessa época foi

descrita por alguns como uma chácara, ou uma fazenda; para outros se assemelhava a

um pomar, pela quantidade de árvores frutíferas. De qualquer forma, as palavras

selecionadas faziam referência a uma vida rural, de cidade pequena ou de roça,

inclusive porque eram poucas as famílias que ocupavam o território, o que permitia um

espaçamento entre as casas, além de fortalecer os laços de vizinhança entre os

moradores. Os moradores mais antigos também fazem referência às condições de vida

nessa época, descrevendo os melhoramentos feitos na localidade desde então:

mencionam que antigamente não havia iluminação nem calçamento, citam uma grande

enchente no ano de 1966 onde muitos ficaram desabrigados, mas alguns lamentam que

as melhores condições de vida atualmente sejam acompanhadas da expansão da favela e

da diminuição da vegetação local. Para os mais jovens, que fazem pouca referência a

esse passado do Pereirão, os laços de vizinhança são frequentemente mencionados

durante a descrição da favela do passado, onde todos se conheciam e as crianças

chamavam os vizinhos de “tio” e “tia”. Também são feitas referências ao fato de muitos

serem “nascidos e criados” na favela. Assim, nas diferentes gerações entrevistadas, o

passado do Pereirão é a sua constituição enquanto “comunidade”, de parentes, de

vizinhos, de conhecidos por muitos anos.

Esse passado quase rural é contrastado com o período mais recente, nos anos

1990, quando a favela era um dos pontos de drogas mais frequentados da Zona Sul do

Rio de Janeiro. Segundo os moradores entrevistados, o chefe do tráfico no local,

conhecido como Português, realizava nos fins de semana bailes funk com três mil

participantes (contingente maior que o de moradores da favela), e as filas para compra

de drogas saíam da quadra de esportes na entrada do morro (onde se localizava a

associação de moradores21) e desciam pela Rua Pereira da Silva. Devido a sua

21 Atualmente o local é ocupado por algumas casas e um bar, onde no final de semana acontecem bailes de forró e pagode, alternadamente.

Page 36: Tese_Lia_Rocha_2009

27

localização estratégica e à possibilidade de posicionar a boca de fumo tão perto da

entrada da favela e, portanto, do “asfalto”, é possível estimar a importância do Pereirão

na venda de drogas na cidade, naquele momento. Essa época é bastante lembrada

também pelos constantes conflitos entre os traficantes locais e a polícia, que aconteciam

de manhã e no final da tarde, horário de entrada e saída dos moradores e principalmente

de crianças em idade escolar. Foi nessa época, entre 1994 e 1998, que a favela ficou

famosa nos jornais pela violência dos conflitos, que culminaram com o assassinato da

liderança local do tráfico no final de 1998. É a partir desse evento que a história do

Pereirão começa a mudar.

1.2 O “Mutirão pela Paz” e vizinhança com o BOPE: de uma favela violenta a uma

favela “tranquila”.

No final ano de 1998 a favela do Pereirão esteve na capa dos jornais, quando

traficantes do bairro ordenaram o fechamento de estabelecimentos comerciais na rua

principal do bairro, durante um domingo, como represália à execução do chefe do

tráfico local por policiais. De acordo com denúncias de moradores, ele teria sido

assassinado por policiais corruptos, que receberiam subornos mensais para permitirem a

venda de drogas na favela e não achacarem nem agredirem os moradores da favela. Ele

teria acusado os policiais de não cumprirem o acordo, e por causa disso teria sido

executado junto com um comparsa e um morador sem envolvimento com o tráfico, mas

que teria dado carona aos dois bandidos. Tal fato teria acontecido durante o dia, na

esquina de ruas movimentadas do bairro próximas à favela, e na frente de diversos

moradores. Os relatos recolhidos diferem um pouco, mas todos afirmam que o traficante

foi executado pelos policiais num ajuste de contas entre cúmplices. Essa é a versão

apresentada também por Luis Eduardo Soares (2000), um dos principais atores no

enredo que se desenrolou a partir desse evento. Segundo ele, a repercussão nos jornais à

época retratava o clima de conflagração social que permeava a cidade, e evidenciava o

distanciamento entre os moradores do morro e do “asfalto”:

Page 37: Tese_Lia_Rocha_2009

28

No dia 27 de dezembro, domingo, os traficantes que dominavam os morros do bairro mandaram recados aos comerciantes, donos de restaurantes, padarias e lanchonetes, para que fechassem as portas. Quem desrespeitasse as ordens arcaria com as conseqüências. Apesar do prejuízo e da revolta, todos obedeceram, indignados. O coronel Noaldo desdenhou: “Foram funcionários que avisaram os patrões sobre tais ameaças. Tem gente que não quer trabalhar, principalmente num domingo” (O Dia, 29 de Dezembro). Ao JB, declarou: “Foi coisa de empregado querendo descansar no domingo” (...).(Soares, 2000: 67).

[Sobre as denúncias feitas pela família do morador assassinado, de que ele não teria envolvimento com o tráfico] De seu gabinete, o coronel secretário prestou a seguinte declaração à imprensa: “Menos um seqüestrador no Rio. Foi um presente de Natal para muita gente” (JB, 29 de dezembro, 1998). (Soares, 2000: 68).

Os episódios violentos acima relatados tiveram grande repercussão não apenas

pela gravidade dos fatos, mas também porque aconteceram em um dos bairros nobres da

cidade, próximo da sede do Governo do Estado e da residência oficial do governador.

Dessa forma, escolheu-se aquela favela como um dos locais para o projeto piloto

demonstrativo da nova gestão da secretaria de segurança, modelo a ser reaplicado em

todas as outras favelas do estado — o “Mutirão pela Paz”. No entanto, quando comecei

o trabalho de campo em 2005 – seis anos depois da execução do “Mutirão pela Paz” e

dois mandatos de governador mais tarde – o único resquício dessa ação ainda visível

naquela favela era o trailer da Polícia Militar na entrada principal (retirado em 2006) e a

sede do BOPE vizinha ao morro.

O “Mutirão pela Paz” era um dos pilares da nova política de segurança pública

implementada por Anthony Garotinho e sua equipe, junto com a modernização das

delegacias, treinamento e aumento da força policial e combate à corrupção policial.

Anthony Garotinho foi eleito em 1998, em uma campanha na qual a questão da

segurança pública teve papel muito importante. Sua plataforma para a Segurança

Pública estava fundamentada nas sugestões de um grupo de pesquisadores liderados

pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares22, que posteriormente assumiu

posições executivas na Secretaria de Segurança, especificamente na Subsecretaria de

Pesquisa e Cidadania. As indicações dos pesquisadores, reunidas em livro

(Criminalidade e violência no estado do Rio de Janeiro, publicado pela Editora Hamas

22 Entre 1999 e 2000 Luiz Eduardo Soares foi Sub-Secretário de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança. Além dele faziam parte da publicação Bárbara Musumeci Soares, João Trajano Sento-Sé, Leonarda Musumeci, Silvia Ramos e Antonio Carlos Carballo Blanco. Alguns desses pesquisadores o acompanharam na Subsecretaria. Para maiores informações ver Soares (2000).

Page 38: Tese_Lia_Rocha_2009

29

em 1998), tinham por princípio que era possível e necessário executar uma política de

segurança que conjugasse eficiência policial e respeito aos direitos humanos,

contrapondo-se às políticas anteriores do governo do estado, quando os índices de

criminalidade eram bastante altos e eram acompanhados de muitas denúncias de

violência e corrupção policial.

Dentro dos parâmetros sugeridos pelo grupo e adotados pelo governador, o

“Mutirão pela Paz” assumia um papel muito importante, pois tinha por objetivo:

(...) articular os programas sociais do estado, da prefeitura e de entidades civis, combinando iniciativas de segurança pública. O objetivo central da proposta era criar condições de enfrentamento do tráfico a partir de uma lógica diferenciada do que havia sido a prática até então vigente que, segundo o governo, estimulava a ação policial violenta (Miranda e Magalhães, 2000).

Além da favela em questão, outras foram foco de atuação similar por parte do

governo. Segundo Luiz Eduardo Soares, seu idealizador:

O programa se caracterizava por uma combinação original: presença de uma polícia respeitosa da lei e dos direitos humanos e intervenção social, com atendimento de demandas populares e investimento governamental em infra-estrutura. (Soares, 2000: 36)

Tal concepção expressava as concepções do antropólogo Luiz Eduardo Soares a

respeito da segurança pública. Para ele o combate à violência deve passar

necessariamente (junto com o combate ao tráfico de armas) por políticas públicas

voltadas para a integração da juventude pobre à sociedade, e os projetos sociais

localizados em favelas teriam essa função (Soares, 1996: 258). Assim, o “Mutirão”

deveria ser não só uma “ocupação policial” (ou seja, uma presença policial constante e

não apenas momentânea, como nas “operações” policiais), mas também uma “ocupação

social” das favelas, que buscaria atender “às principais demandas da sociedade local,

através da mobilização de diversas secretarias de estado, além da contribuição de

entidades da sociedade civil” (Soares, 2000).

Page 39: Tese_Lia_Rocha_2009

30

No entanto essa proposta teve vida curta no governo. Em 17 de março de 2000 o

governador demitiu Luiz Eduardo Soares, após este ter denunciado ao Ministério

Público a existência de um grupo de policiais corruptos e criminosos (a ”banda podre”,

como ficaram conhecidos) na cúpula da Secretaria de Segurança. Segundo Luiz

Eduardo Soares (2000), o projeto “Mutirão pela Paz” nunca alcançou a dimensão

esperada, derrotado por dificuldades de diferentes tipos. Por um lado, o programa

enfrentou dificuldades relacionadas à gestão da administração pública, já que sua

execução dependia do trabalho coordenado de diversas secretarias e autarquias

estaduais, como as Secretarias de Trabalho, Educação, Saúde, Justiça, Meio Ambiente,

Ação Social, Esporte e Lazer, além da Defensoria Pública, do Detran – que forneceria

as carteiras de identidade para os atendidos, da FAETEC (Fundação de Amparo às

Escolas Técnicas) e dos CCDCS (Centros Comunitários de Defesa da Cidadania) – que

ofereceriam cursos para os moradores das localidades atendidas. Por outro lado, o

“Mutirão pela Paz” se baseava em propostas que nunca foram consensuais dentro da

Secretaria de Segurança Pública e do próprio governo, e que acabaram sendo

descartadas junto com seu idealizador23.

Hoje, passados dez anos da inauguração do “Mutirão pela Paz” no Morro do

Pereirão, a maioria dos moradores faz pouca menção à iniciativa. Para um dos

presidentes da associação de moradores entrevistados, eles foram enganados pelo

Governador Garotinho e pela Governadora Rosinha (sua esposa, que o sucedeu no

governo do estado), que prometeram que aquela seria uma “favela-modelo” e nada

fizeram. Os moradores fazem referência às obras do Projeto “Bairrinho” 24 e ao Projeto

“Jovens pela Paz” 25, mas nenhuma iniciativa ligada ao “Mutirão pela Paz” foi

mencionada. O que ficou na memória coletiva relacionada ao período foi a ida da sede

do BOPE para um terreno fronteiriço à favela, em 2000; tal evento teve um forte

23 Para maiores informações sobre os bastidores da gestão de Soares na Secretaria de Segurança ver Soares, 2000.24 Projeto da Secretaria Municipal de Habitação, era uma versão do Programa Favela-Bairro, de urbanização de favelas, para favelas de pequeno porte. Política executada durante o governo do Prefeito César Maia (1993-1997 e 2001-2008).25 O Programa “Jovens Pela Paz” foi criado em 2000 pelo Governo do Estado como parte das políticas públicas para combate à violência, e oferecia atividades de cultura e esportes a moradores de “áreas de risco”. Os jovens participantes eram capacitados como instrutores e agentes sociais, atuavam nas suas localidades de moradia e recebiam uma bolsa-auxílio. Atendeu até o ano de 2006 cerca de dez mil jovens de 400 localidades populares no estado do Rio de Janeiro, com idades entre 16 e 24 anos. (FOLHA ON-LINE, 2006). No começo do governo de Sérgio Cabral (2007) o programa foi cancelado.

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31

impacto na vida dos moradores, tanto que eles consideram essa proximidade como um

dos motivos para a “tranquilidade” local.

Criado em 1978 com o nome de Núcleo da Companhia de Operações Especiais,

a missão do BOPE é desenvolver ações de Segurança Pública em situações onde as

demais unidades da Polícia Militar não têm capacidade para intervir26. Dessa forma, o

BOPE não faz o policiamento cotidiano nas favelas. Quando realiza uma “operação” em

alguma favela geralmente trata-se de confronto com traficantes, tão violentos que

muitas vezes resultam em mortes de traficantes e/ou moradores, e em menor escala até

de policiais. Assim, por sua postura de confronto e sua metodologia de ação, o Batalhão

é visto com apreensão pelos moradores das favelas cariocas. Em suas incursões, o

BOPE utiliza um veículo blindado, chamado pelos policiais de “Pacificador” e pelos

moradores de favela de “Caveirão” (referência ao símbolo do Batalhão, uma faca

cravada em uma caveira ladeada por duas pistolas). A justificativa oficial é que ele

permite aos policiais entrarem nas favelas sem serem atingidos pelos tiros dos

traficantes (Justiça Global, 2006). Para algumas organizações de moradores de favela e

de defesa dos direitos humanos, entretanto, o uso do Caveirão possibilita que excessos

na atuação policial sejam cometidos, visto que o blindado não permite a identificação de

fora dos policiais que o ocupam. Existem também denúncias de que seus altofalantes

transmitem ameaças aos moradores e aterrorizam as crianças, como por exemplo: “O

‘Caveirão’ veio buscar sua alma”, “O que Deus constrói o ‘Caveirão’ destrói”, “Não

adianta correr, o ’Caveirão’ vai pegar você” 27.

O tom e a linguagem utilizados pela polícia durante as operações com “Caveirão” são hostis e autoritários. As ameaças e os insultos têm um efeito traumatizante sobre as comunidades, sendo as crianças especialmente vulneráveis (Justiça Global, 2006).

Assim, a tática de intimidação utilizada pelo BOPE não se restringe ao uso do

“Caveirão”. Toda a simbologia ligada ao Batalhão remete à morte. Por exemplo, o site

do BOPE menciona a localização exata da sede como sendo “Palácio da Caveira, Vale 26 A missão do BOPE é desenvolver ações que exijam uma capacidade técnica e bélica de que os outros batalhões da polícia militar não dispõem, como o combate ao crime organizado, o enfrentamento de bandidos fortemente armados, o resgate de reféns, rebeliões de presos, “execução de missões no campo da contraguerrilha urbana e/ou rural” e o “apoio às operações policiais militares em favelas em que quadrilhas organizadas estão posicionadas e fortemente armadas”. Fonte: www.boperj.org.27. Denúncias ouvidas pela autora em oficina organizada por ONG internacional em favela da zona norte.

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32

dos Ossos Secos, na Rua Campo Belo, Laranjeiras”28. A origem dos nomes Palácio da

Caveira e Vale dos Ossos Secos não está explicada no site, mas o nome do palácio faz

menção ao símbolo do Batalhão que, de acordo com o site, representa a vitória sobre a

morte. “Vale dos Ossos Secos” é uma referência bíblica. Em uma de suas passagens,

Ezequiel é levado pelo Senhor para pregar em um vale repleto de ossos ressequidos, e

durante a pregação os ossos se transformam em um exército numeroso de homens. Em

seguida, Ezequiel os enche com o sopro do Espírito Santo, dando-lhes vida29. A

passagem representaria a capacidade de superação pela fé de todas as dificuldades, até

mesmo da morte.

Apesar das duas imagens pretenderem remeter à representação de sacrifício e

superação da morte, os símbolos e os nomes adotados são ameaçadores e intimidadores,

e cumprem uma função de aterrorizar a população mais do que tranquilizar. Quando,

após mobilização popular, organizações de moradores e ONGs de direitos humanos

foram convidadas pelo BOPE a discutir o uso do “Caveirão” nas operações em favelas,

a reunião realizou-se no Palácio da Caveira, e a sala de reuniões tinha nas paredes

desenhos e imagens de caveiras. Para completar a intimidação, a reunião foi assistida

por policiais vestidos de preto e armados de fuzis30.

A imagem acima descrita do BOPE, ligada à violência policial, não é

compartilhada por todos, vide a repercussão, positiva para a corporação, do filme

“Tropa de Elite”, de José Padilha, em que policiais do BOPE são retratados como heróis

incorruptíveis que precisam enfrentar traficantes de drogas, policiais corruptos e a

sociedade conivente e cúmplice do comércio de drogas. Há alguns anos atrás a

corporação também era bem avaliada por intelectuais ligados ao combate à violência

28 Fonte: http://www.boperj.org/29 “Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um vale que estava cheio de ossos e me fez andar ao redor deles; eram mui numerosos na superfície do vale e estavam sequíssimos. Então, me perguntou: Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos? Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito em vós, e vivereis. Porei tendões sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós estenderei pele e porei em vós o espírito, e vivereis. E sabereis que eu sou o Senhor. Então, profetizei segundo me fora ordenado; enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam, cada osso ao seu osso. Olhei, e eis que havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a pele sobre eles; mas não havia neles o espírito. Então, ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam. Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército sobremodo numeroso” (Ezequiel 37:1-10).30 Relato da reunião à autora por uma militante de organização em prol dos Direitos Humanos.

Page 42: Tese_Lia_Rocha_2009

33

policial31, como o já citado antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares. Ele

propôs acionar o BOPE em momentos de crise em questões de Segurança Pública por

confiar em sua formação técnica de elite:

Por que não concentramos as operações mais exigentes, difíceis e arriscadas no batalhão especialmente capacitado para esses confrontos, mais bem treinado, mais bem equipado, em melhores condições psicológicas, menos sujeito à corrupção e à indisciplina, contra o qual há menos denúncias, que infunde mais respeito e reduz as reações? Referia-me ao BOPE (Soares, 2000: 107).

Também para os moradores do Pereirão o BOPE é avaliado positivamente:

segundo os relatos recolhidos, os policiais do BOPE são mais educados e tratam a

população com mais respeito do que os policiais militares dos outros batalhões. No

entanto, nem todos os moradores compartilham dessa opinião. Um jovem morador

afirmou: “(...) o BOPE entra na casa de todo mundo, bebe refrigerante na sua casa,

revira a geladeira, abre armário, arrebenta tudo”.Vale ressaltar, porém, que o BOPE não

realiza nessa favela as mesmas atividades (as “operações”) que marcam sua atuação em

outras. Isto se deve em parte ao fato de que já não há mais a presença ostensiva de

traficantes armados a justificar um confronto com a polícia, além de tratar-se de um

morro extremamente íngreme, o que impediria o uso do carro blindado. Assim, o perigo

de confrontos entre policiais e traficantes ficaria diminuído, ainda que não cancelado

(um incidente deste tipo aconteceu durante o período do trabalho de campo, e será

descrito mais à frente). De acordo com os entrevistados, é a presença do BOPE nas

proximidades da favela que afasta o perigo do controle do território pelos traficantes, e

por isso o Batalhão e, principalmente, sua localização são bem avaliados pelos

moradores.

Dessa forma, no caso do Pereirão a ausência de traficantes de drogas armados

controlando o território e submetendo seus moradores a um poder arbitrário se deveu a

uma ação externa organizada pelo estado, o que faz deste caso distinto do de outras

favelas do Rio de Janeiro também consideradas livres do tráfico, que chegaram a tal

situação através da atuação de “milícias” compostas por policiais ou ex-policiais,

31 Ainda que a opinião sobre a atuação do BOPE possa ter mudado durante a última década, especialmente após denúncias de excesso no uso da força em diversos casos, não encontrei análisesrecentes de pesquisadores na área que identifiquem tal processo de transformação.

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34

também chamadas de “polícia mineira” ou “mão-branca”32, que cobrariam

‘mensalidades’ pelo ‘serviço de segurança’ prestados, mas que no último ano foram

denunciados como controlando através da força todos os serviços e comércio existente

nas favelas que controlam33. Nesses casos, os agentes da segurança são identificados

como moradores da localidade e como agentes estatais, que atuariam à margem da lei

por considerarem os aparatos estatais de segurança limitados, ou pouco eficazes.

Apesar das diferenças, o caso do Pereirão tem semelhanças com os das favelas

controladas por milícias no que diz respeito à ausência de conflitos armados e ao

enfraquecimento do tráfico de drogas local. Nesse sentido, ao afirmar que a favela é

“tranquila” os moradores entrevistados fazem referência a esses aspectos da vida

cotidiana na localidade. A rotina do Pereirão e as estratégias dos moradores para a

manutenção dessa “tranquilidade” são descritas e analisadas na próxima seção.

Antes, contudo, vale ressaltar que compreendo a construção da categoria de

“tranquilidade” presente na favela do Pereirão como resultado de diferentes eventos

encadeados: inicialmente, o assassinato do principal traficante local enfraqueceu a

organização do tráfico no local; além disso, a vizinhança com o BOPE dificultaria a re-

organização e fortalecimento novamente do tráfico de drogas. A partir dessa conjunção

de fatores um ambiente propício para a inexistência do tráfico de drogas ter-se-ia

estabelecido, ou pelos menos para uma composição mais subterrânea e intersticial deste,

e assim menos ameaçadora da vida cotidiana dos moradores. No entanto, eles afirmam

também que é fundamental para a manutenção dessa “tranquilidade” a coesão interna

dos moradores, impedindo que o Pereirão volte a ser como “as outras favelas”;

mantendo sua excepcionalidade. Assim, o suposto crescimento da favela e a entrada no

território de novos moradores são encarados pelos antigos como uma ameaça a seu

estilo de vida; ainda que os “recém-chegados” não sejam identificados como potenciais

traficantes, eles representam um risco para a coesão daquela “comunidade”, como

veremos a seguir.

32 Referência ao apelido de um “justiceiro” ligado a grupos de extermínio localizados na Baixada Fluminense, periferia do Estado do Rio de Janeiro. Sua existência é até hoje objeto de discussão entre pesquisadores.33 De acordo com o Gabinete Militar da Prefeitura do Rio de Janeiro existiriam 92 favelas “dominadas” pelas milícias no Rio de Janeiro (O Globo, 10/12/2006), número que pode ter aumentado desde então. Estes grupos têm ocupado diversas favelas cariocas, entrando em confronto com traficantes e instalando uma nova forma de submissão para os moradores dessas localidades. Para maiores informações sobre essa modalidade ilegal de controle territorial, cfr. Mesquita, 2008; Cano e Ioot, 2008.

Page 44: Tese_Lia_Rocha_2009

35

1.3 “Em paz”: rotina e tensões.

Desde o começo do trabalho de campo a “tranquilidade” local foi mencionada e

reforçada nos discursos dos moradores, e por eles contrastada com a situação de outras

favelas. Nas conversas com os moradores antigos e suas famílias estes ressaltavam a

alegria de morar em um lugar onde, além da vista privilegiada da Baía da Guanabara,

estavam a salvo dos riscos implicados na proximidade com traficantes e nos conflitos

destes com a polícia. Reiteravam o fato da localidade não ser palco de incursões

policiais, e sim lugar de treinamento do BOPE34. Em relato recolhido durante um

“coletivo de confiança35” realizado com participantes de diversos projetos sociais

localizados em favelas cariocas, Anderson, morador da favela de 22 anos, afirmou:

Na nossa comunidade tem paz, não tem traficante dando tiro, como antigamente.

Mas hoje a minha comunidade não tem tráfico, só tem usuário. E os moradores saem de lá para usar droga em outra. Então lá a paz reinou. Então os evangélicos falam: Graças a Deus, Ele olhou para cá. Mas olhou para tirar as armas, tirou o traficante (...). O BOPE é do lado. Então ele tirou o traficante.

A excepcionalidade dessa favela é mencionada repetidamente pelos moradores.

Uma vez, esperando pelo micro-ônibus que leva até metrô em um ponto que fica na

entrada da favela, observei que um policial militar de moto se aproximava. Ele chegou

até a entrada da favela, onde ainda era possível chegar de automóvel, fez o retorno e

desceu a rua. A moradora que estava ao meu lado, com um bebê no colo, comentou:

“Veja só isso! É porque aqui é muito tranquilo mesmo, se fosse em outro lugar já tinha

tomado bala!”. Desde o primeiro dia os moradores não só elogiavam a favela como me

convidavam para ir morar lá, onde eu teria “a vista mais bonita do Rio de Janeiro!”. Os

elogios à beleza eram seguidos pelos elogios à “tranquilidade”, e culminavam com a

34 Segundo os moradores, a favela é utilizada como campo de treinamento pelos policiais do BOPE, o que foi apresentado como motivo de orgulho pelos moradores, como uma distinção em relação às outras favelas, que são alvos de ações policiais. Apesar de esses treinamentos serem descritos como algo rotineiro, durante a realização do trabalho de campo eles não aconteceram. 35 A metodologia e o uso do material recolhido estão apresentadas na Introdução desta tese.

Page 45: Tese_Lia_Rocha_2009

36

constatação: “não é igual às outras favelas não, Graças a Deus!”. No entanto, os

moradores sempre alertavam que a situação de excepcionalidade podia estar sendo

ameaçada, e a maior ameaça seria o crescimento da favela e a chegada de novos

moradores.

Atualmente, apesar de pequena, a favela do Pereirão encontra-se em expansão

segundo seus moradores – o que pode ser observado pelas diversas construções e

reformas existentes no local. Ainda que a maioria das construções se localize no centro

da favela, em suas extremidades existiria também expansão, ainda que em menor escala.

Segundo dados do Censo 2000 do IBGE, e tabulados pelo Instituto Pereira Passos

(ligado à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro), na época morariam 1011 pessoas na

localidade. A população atual varia, na avaliação dos moradores, entre 3.500 a 4.000

pessoas, mas os dados oficiais só serão levantados no próximo Censo, em 2010. Se for

confirmada tal população o Pereirão terá uma das maiores taxas de crescimento entre as

favelas cariocas. Segundo o IPP (2002), novamente usando dados do IBGE, entre 1991

e 2000 o número de pessoas morando em ‘setores subnormais’ – que é a classificação

utilizada pelo IBGE para as áreas de favela – cresceu 2,4% ao ano, enquanto que no

total a cidade cresceu 0,73%. Esse crescimento não foi distribuído de forma homogênea

pela cidade, no entanto: enquanto a taxa de crescimento populacional dos setores

‘subnormais’ da Zona Sul foi de 2% ao ano, na região da Barra da Tijuca esses setores

cresceram no período 10%/ano. Se o Pereirão tivesse crescido na mesma proporção, sua

população atual seria de 2.150 pessoas. Por outro lado, em relação à área ocupada das

favelas, outro estudo do IPP feito em 2006 – utilizando fotografias aéreas das áreas

faveladas – verificou que os territórios das favelas cresceram 3,5% entre 1999 e 2004.

Novamente o crescimento foi diferenciado: enquanto a região da Barra da Tijuca e

Jacarepaguá cresceu 6,4% no período, a Zona Sul encolheu 0,2%. Este segundo estudo

permitiu calcular o crescimento de cada favela na cidade, e o Pereirão não teve variação

em relação à sua área ocupada. No entanto, medir a área ocupada não permite inferir o

aumento da população.

A ocupação recente e o consequente crescimento da favela foram identificados

pelos moradores entrevistados como ameaças à manutenção da situação atual de

“tranquilidade conquistada”. Os novos moradores são descritos como aqueles que não

conheceriam as regras de comportamento locais, não teriam os mesmos laços de

amizade, respeito e solidariedade com seus vizinhos, estando apenas preocupados com

Page 46: Tese_Lia_Rocha_2009

37

eles mesmos e com os seus (parentes, conterrâneos, os que professam a mesma religião,

etc.). As explicações apresentadas para tal comportamento dos novos moradores,

considerado como anticomunitário, vão desde acusações sobre origem e religião dos

recém-chegados (que em geral são identificados como “paraíbas36“ e/ou “crentes37”) a

que eles possuiriam um código de conduta diferente da experimentada no Pereirão em

função de suas vivências anteriores em outras favelas. Ainda que as acusações feitas

sejam de dimensões diferentes, o que está sendo questionado é o não pertencimento

prévio àquela “comunidade”. Nesse sentido, entendo que a categoria acionada nesse

momento pelos moradores antigos faz referência ao conceito de Park sobre “regiões

morais”, proposto para se aplicar a locais “onde prevaleça um código moral divergente,

por uma região em que as pessoas que a habitam são dominadas, de uma maneira que as

pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse

que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo” (Park, 1987: 66).

Dessa forma, os moradores antigos afirmam compartilhar, todos eles, de uma mesma

moral que não é a mesma dos moradores de outras localidades, particularmente de

outras favelas, ou de outras origens sociais. Ainda que o conceito proposto por Park

possa ser usado como uma reafirmação do estigma recorrente sobre os favelados (que

escolheriam uma moral divergente e oposta àquela da institucionalidade legal

burguesa), no caso do Pereirão ele permite articular o conceito de “região moral” com o

de comunidade, para falar de um coletivo reunido em um território específico e que

possui uma moralidade própria.

Vale ressaltar que as categorias de acusação “paraíba” e “crente” poderiam levar

a crer que os moradores mais antigos do Pereirão seriam, pelo menos em sua maioria,

naturais do Rio de Janeiro e católicos. No entanto, tal perfil não pode ser confirmado.

Posso apenas afirmar que, entre meus entrevistados, a maioria se apresentou como

católico, os mais velhos inclusive com funções leigas na hierarquia da Igreja. Além

disso, durante as entrevistas com os moradores mais idosos a maioria era de migrantes,

como muitos dos moradores de favela que começaram a ocupar os morros durante a

36 Paraíba é uma categoria de acusação muito utilizada no Rio de Janeiro para identificar e estigmatizar migrantes do Nordeste. 37 Termo utilizado para fazer referência aos protestantes pentecostais e neopentecostais, que também são conhecidos como evangélicos.

Page 47: Tese_Lia_Rocha_2009

38

década de 196038. Ainda que os perfis utilizados na diferenciação entre moradores

antigos e recém-chegados não sejam comprováveis censitariamente, as categorias de

acusação são eficientes porque ressaltam o que seria a grande diferença entre os dois

grupos: enquanto os moradores antigos pertencem à “comunidade” do Pereirão, os

recém-chegados pertencem a outras “comunidades” – seja a comunidade de fiéis

evangélicos, seja a comunidade de conterrâneos da mesma cidade ou região – e assim

devotam sua fidelidade não a seus vizinhos, mas a outros pertencimentos.

Não foi possível explorar com maior profundidade a oposição estabelecida entre

os moradores “antigos” e os “recém-chegados”, mesmo porque o objetivo da pesquisa

não era investigar configurações de relação entre moradores, no estilo “estabelecidos e

outsiders” (Elias e Scotson, [1994] 2000). Além disso, a rede de contatos e informantes

que construí era formada privilegiadamente por moradores considerados “antigos”, ou

então “recém-chegados” aceitos pelos antigos. Foram essas as pessoas apresentadas a

mim por Antônio e Cristina, que por seu pertencimento anterior à favela seriam

representantes do grupo dos moradores antigos. Enquanto o primeiro nasceu no

Pereirão, a segunda teria se mudado para lá há muito tempo, “há apenas 24 anos”, como

ela me disse, e ali criou todos os seus quatro filhos. No entanto, apesar de não dispor de

informações mais detalhadas sobre essa configuração social, acredito ter recolhido

diversos depoimentos onde a identificação dos “recém-chegados” como ameaçadores à

“tranquilidade” local é bem clara, como veremos a seguir.

Segundo um dos entrevistados, morador nascido na favela e com 55 anos, os

moradores recém-chegados não zelam pela “tranquilidade” da localidade, e acham que

lá é como “Rocinha ou Santa Marta, de onde vieram”. Uma jovem entrevistada, de 18

anos e neta de uma das moradoras mais antigas, afirmou que não compartilha da

avaliação positiva da avó sobre a favela, pois os moradores não seriam mais unidos

“como antigamente”. Outro morador antigo, de 80 anos, afirmou que hoje os moradores

só pensam em si, inclusive aumentando e reformando suas casas sem considerar o

fechamento da ventilação e da vista na casa vizinha, e que “antigamente é que era bom,

comunidade mesmo... hoje em dia não é mais. E a culpa é de quem vem de fora”. Sua

filha, de 53 anos, concordou.

38 Em seu clássico estudo sobre moradores de favelas nesse período, Perlman relata que, entre seus 600 entrevistados, mais de 80% eram migrantes, mas vinham em igual proporção dos estados do Nordeste, Minas Gerais, Espírito Santo e do interior do Estado do Rio de Janeiro (Perlman, [1977] 2002: 94).

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39

Em outro momento, quando da organização de uma festa junina, Antônio e

Cristina estavam bastante descrentes da possibilidade de organizar um evento que

contasse com a participação dos moradores. Segundo eles, tal iniciativa causaria muitos

problemas, visto que nem todos estavam imbuídos do espírito de cooperação. Para

Cristina, a possibilidade de fazer a festa era “uma dor de cabeça”, e até o sorteio dos

moradores que poderiam montar barracas na festa para vender comida e bebida seria

motivo para discussão. Ela me explicou que durante muitos anos tinha organizado festas

coletivas na localidade, como churrascos e almoços, mas que tinha desistido nos últimos

anos porque muitos moradores não queriam ajudar, mas simplesmente aproveitar a festa

organizada e financiada por alguns. Por isso, recentemente, só organizava festas com

duas vizinhas com quem tinha maiores laços de amizade, e fazia festas privativas para

afastar os vizinhos “bicões”. Em função do clima pouco favorável a festa junina acabou

não acontecendo, como já não tinha sido feita no ano anterior.

Por fim, presenciei um caso que pode não ser ordinário, mas ilustra bem o meu

argumento: como acontece em outras favelas, o Pereirão foi usado como cenário para

uma pequena filmagem que pretendia utilizar a imagem da favela, que ali ainda conta

com a bela paisagem de fundo da Baía da Guanabara e do Pão de Açúcar. Além disso, a

ONG localizada na favela (Cf. Capítulo III) é também uma produtora de vídeo onde,

junto com os diretores, os jovens moradores trabalham na equipe técnica e fazem a

produção e direção dos filmes. Nesse dia a gravação era para um vídeo institucional de

uma empresa de lâmpadas, e fazia parte de um projeto de “responsabilidade social39” da

mesma – por isso a imagem retratada da favela era positiva, e alguns moradores

estavam bastante animados com a iniciativa, particularmente os participantes do projeto

e Antônio. O vídeo estava sendo gravado na laje de uma casa, onde estava localizada

toda a equipe. Alguns moradores assistiam à movimentação de um caminho superior,

inclusive eu e Antônio, protegidos por um corrimão gradeado que dava ao local “ares”

de camarote. Dessa gravação participavam jovens de outros projetos sociais, como

jovens negras que desfilavam roupas confeccionadas por de cooperativas de costura,

jovens músicos tocando instrumentos de música clássica, etc. Uma das partes mais

39 Responsabilidade Social é um termo utilizado pelas empresas e por ONGs para denominar a preocupação de empresários com questões coletivas, como o meio-ambiente e a pobreza, e identificar campos de atuação para as organizações ligadas ao desenvolvimento social e ambiental. Assim, empresas que possuem “responsabilidade social” investem em ONGs, para que essas desenvolvam ações junto às áreas consideradas importantes pelas empresas. No entanto, o conceito é polissêmico, como demonstraram Cappellin et alli (2001).

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40

complexas do vídeo era a mensagem da empresa para seus funcionários, dita por um dos

jovens integrantes do projeto localizado no Pereirão, em cima de uma grua e com a

cidade ao fundo, já com as luzes sendo acesas por causa do pôr-do-sol. A gravação não

podia atrasar porque os produtores desejavam realçar o cenário iluminado, para fazer

referência às lâmpadas produzidas na empresa.

fonte: www.favelinha.com

Assim, quando o sol começou a se pôr, todos estavam ansiosos e concentrados

na gravação. Mas como é típico do horário, nesse momento a maioria dos moradores

que trabalha fora estava chegando a suas casas, e um deles, que morava próximo do

local da gravação, decidiu ligar seu rádio – o que seria corriqueiro, não fosse o volume

alto o suficiente para atrapalhar a gravação. Após algumas visitas de moradores,

inclusive do presidente da associação, pedindo inutilmente para que o rádio fosse

abaixado, alguns moradores decidiram desligar o relógio de luz da casa, localizada fora

dos muros da residência e perto de onde eu estava. A iniciativa foi aplaudida pelos

presentes, ainda que um deles tenha chamado a atenção para o fato de que o corte

abrupto do fluxo de energia poderia danificar alguns equipamentos domésticos. O

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41

morador resistente não saiu de casa para religar seu relógio, e a gravação continuou sem

maiores percalços. Ao comentar comigo o episódio Antônio deu o diagnóstico completo

do morador “inconveniente”: era um recém-chegado evangélico – “deu para perceber

pela música de crente que ele estava escutando, né?” – e não percebia como, com sua

ação, estava prejudicando “a comunidade” como um todo, em um momento importante

em que era preciso apoiar a iniciativa dos jovens moradores. Ou seja, que não

compartilhava dos laços de solidariedade e vizinhança que faziam daquele local uma

“comunidade”.

Entre os novos moradores, um caso se destaca por articular a condição de recém-

chegado com a idéia de “exploração” da “tranquilidade” local: o da proprietária da

pousada localizada dentro do Pereirão. Flávia tem 35 anos, e passou boa parte da sua

vida na Alemanha. Recentemente voltou ao Brasil e, junto com seu ex-marido alemão,

resolveu abrir um empreendimento turístico na favela do Pereirão, onde residia sua tia.

Segundo os entrevistados, Flávia se apresenta como uma moradora do local, mas que

nunca frequentou a “comunidade”, vindo ali se instalar apenas para montar a pousada.

Além disso, ela seria apenas um “testa-de-ferro”, pois o financiador seria o ex-marido,

que não mora no local – os moradores especulam que teriam sido investidos na

construção da pousada em torno de cem mil euros. Flavia se defende das acusações de

“estrangeira” – que no seu caso estão relacionadas a duas dimensões, tanto por ser de

fora da favela quanto por estar “representando” interesses estrangeiros, de investidores

alemães – afirmando que sempre visitou a tia durante a infância e que, portanto, tem

uma forte relação afetiva com o lugar. Nesse caso, o fato de Flavia não ter freqüentado a

favela anteriormente é acionado para justificar a rejeição a sua presença na localidade.

Para se defender das acusações, ela afirma que tem planos de construir um centro

comunitário na favela, onde os jovens possam ter acesso a cursos e atividades culturais.

Segundo ela, é importante trabalhar com os jovens para manter a favela como ela é

atualmente, porque ela pretende “criar seus filhos ali um dia”. Sua maior preocupação é

com a auto-estima dos jovens, porque muitos seriam estigmatizados por jovens de

outras favelas, seriam acusados de “vendidos” por morarem em uma favela “tranquila”

e vizinha do Quartel do BOPE. Flávia também se defende das acusações de

“representante do capital estrangeiro” reforçando sua trajetória de luta para levantar o

dinheiro necessário para o empreendimento, além de se apresentar como alguém que

defende e divulga a favela em seus aspectos mais positivos. Mencionou que alguns

Page 51: Tese_Lia_Rocha_2009

42

turistas estrangeiros tentaram pagar a hospedagem com remédios e roupas usadas, como

se os moradores da favela fossem sujeito de caridade, no que foram devidamente

repreendidos por ela, mas afirmou também que a maioria dos hóspedes se “apaixona”

pelo local, chegando até a dormir na varanda da pousada por acreditarem estar “em

segurança”. Relatou suas dificuldades para legalizar o empreendimento, normalizar a

conta de luz junto à companhia de eletricidade, entre outros. Por fim, se colocou como

objeto do estigma dos não-moradores de favela, ao relatar o interesse de jornalistas em

fazer matérias que privilegiavam o aspecto espetacular da pousada, e que tentavam

representá-la como localizada em um lugar “cercado por traficantes” 40. Apesar de

existirem outras favelas com pousadas no Rio de Janeiro, segundo a proprietária a sua é

mais visada para essas matérias sensacionalistas porque “ninguém” (i.e., traficantes)

impede a entrada de jornalistas, como em outras localidades.

Mas nem todos os novos moradores são vistos da mesma forma. Existem aqueles

que chegaram recentemente e que foram aceitos pelos de dentro, como o casal que me

foi apresentado como “moradores recém-chegados”, mas que sabiam reconhecer o

privilégio de morar em uma favela “diferente das outras”. Habitando há sete anos o

Pereirão, o casal era formado por dois senhores, ela migrante do Nordeste (descrita pelo

marido como “paraíba”) e ele de Minas Gerais. Eles moravam anteriormente em Rocha

Miranda, bairro do subúrbio carioca, mas se mudaram para lá porque o terreno onde

moravam estava sendo cogitado para desapropriação pelo governo, em função da

construção de equipamentos esportivos para os Jogos Pan-Americanos de 2007.

Segundo o casal, eles já moraram em vários lugares, mas ficaram seduzidos pela

combinação entre montanha e mar existente no local. Além disso, a irmã da esposa já

morava no local, o que facilitou a compra da casa (onde investiram R$ 10 mil, além do

mesmo valor para reformá-la). Após a conversa os dois me mostraram a casa, reformada

de forma a permitir que do segundo andar se abrisse um terraço para aproveitar melhor

a vista da Baía da Guanabara. É possível imaginar que o fato de serem parentes de uma

moradora da favela pode ter facilitado sua aceitação pela “comunidade”, assim como o

fato de terem vindo de um bairro pobre do Rio de Janeiro, e não de outra favela.

Assim, o Morro do Pereirão é apresentado por seus moradores como uma favela

“diferente das outras” e “em paz”. Observa-se também o trabalho cotidiano dos

40 Suas experiências com os jornalistas foram tão negativas que Flavia somente aceitou conversar comigo e minha colega de pesquisa quando provamos ser estudantes.

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43

moradores para reforçar essa construção simbólica, inclusive desenhando diferenças e

proximidades com moradores que acreditam pertencerem à mesma “comunidade”, com

quem compartilham os mesmos códigos de conduta que permitem a manutenção dessa

favela como um local “pacificado”. No entanto, alguns episódios que serão discutidos

em seguida permitem visualizar as tensões na construção da “tranquilidade” existente

no Pereirão.

1.4. Silêncio e medo em um cotidiano “tranquilo”.

Apesar do cotidiano da favela ser apontado pelos moradores como “tranquilo”,

foram recolhidas no trabalho de campo evidências que apontam para a existência de um

controle maior sobre os moradores por parte dos traficantes de drogas do que o

reconhecido na fala dos entrevistados. Além disso, após dois anos de trabalho de

campo, um conflito armado entre policiais e bandidos localizados dentro da favela

abalou, ainda que momentaneamente, a “paz” no Pereirão. Nesta seção apresento os

relatos recolhidos e descrevo o evento violento, buscando compreender os limites da

construção de “tranquilidade” local e como os moradores lidam com o risco que

permanece em seus cotidianos, ainda que intersticialmente.

Embora as referências iniciais dos moradores para descrever sua localidade de

moradia remetessem sempre a “tranquilidade” ali experimentada, em diversos

momentos os próprios moradores relataram limitações ou conflitos com a força

representada pelos traficantes de drogas, seja na forma de uma presença no espaço, seja

enquanto potencial risco. Por exemplo, quando funcionários de empresas prestadoras de

serviços públicos, como a Light ou a Cedae, perguntaram ao presidente da associação

de moradores se era “seguro” entrar na favela aquele dia, este ficou zangado e ofendido

com a pergunta, e respondeu que ali é como qualquer outra favela, mas que os

funcionários poderiam entrar sem problemas, porque ele garantia que nada aconteceria.

Assim como outros moradores, ele quis ressaltar que, diferentemente de outras favelas,

o tráfico ali não representa um perigo cotidiano, uma ameaça aos moradores ou aos que

vêem de fora. No entanto, ao mesmo tempo afirmou que a preocupação era necessária,

por ali “ser uma favela como as outras”. Nesse caso, a declaração foi ambígua por

Page 53: Tese_Lia_Rocha_2009

44

ressaltar a semelhança e a diferença entre o Pereirão e outras favelas, onde as

prestadoras de serviço público não entram nas localidades sem avisar à associação de

moradores. Esse procedimento visa, na maioria dos casos, requisitar à associação uma

intermediação junto às quadrilhas de traficantes locais, para garantir a segurança de seus

trabalhadores quando realizando reparos ou obras em favelas. Tal prática é reconhecida

tanto pelo poder público quanto pelos dirigentes de organizações de moradores

(Miranda e Magalhães, 2002; Silva e Rocha, 2008)41. A fala do presidente pode ter tido

a intenção de marcar sua posição como mediador necessário, ao dizer que garantia a

segurança dos trabalhadores, ainda que com a preocupação de confirmar seu

distanciamento em relação aos traficantes de drogas. Porém, confirma que a precaução

dos funcionários é necessária.

Em outro momento, após alguns meses de trabalho de campo, quando minha

presença na sede da associação de moradores não era mais uma novidade, assisti à

conversa entre uma moradora e Cristina, dirigente da associação. A moradora afirmava

ter sido ameaçada por traficantes de uma favela vizinha, pois seu irmão, integrante deste

bando, teria dormido “em serviço”, e após ter sido espancado pelos outros traficantes

teria sido expulso daquela favela. Assim, a moradora também estaria com medo de

retaliações, inclusive dentro da localidade. Ela buscava apoio junto ao presidente e à

dirigente da associação de moradores, de quem sua mãe seria muito amiga, para que

esses auxiliassem na busca por um terreno dentro da favela onde ela pudesse construir

uma casa para seu marido e o filho que estavam esperando, visto que o plano de alugar

uma casa na favela vizinha teria que ser cancelado. Além disso, desejava explicar aos

vizinhos que não tinha relação nenhuma com os atos do irmão, numa possível tentativa

de se proteger de qualquer agressão interna.

Ainda em outro momento presenciado na sede da associação, uma moradora

contou ao presidente e à secretária da associação que, durante uma crise de embriaguez,

seu marido teria gritado que ela estava em casa com um amante que seria traficante. Em

função disso, os “meninos”42 teriam batido em sua porta e pedido, “muito gentilmente”

segundo ela, para revistar a casa, por medida de segurança. A mulher argumentava com 41 A relação entre associações de moradores, traficantes de drogas e poder público foi aprofundada no capítulo 3 desta tese.42 É comum que moradores de favela refiram-se aos traficantes de suas localidades como “meninos”, fazendo alusão a sua pouca idade, mas também, como forma de remeter a um passado comum e assim reduzir o perigo que sua presença representa. Seria mais um elemento do dispositivo acionado na limpeza moral realizada pelos moradores de favela. Cfr. Leite, 2008

Page 54: Tese_Lia_Rocha_2009

45

os dois que seria impossível receber o marido de volta – no momento ele estava

internado em um hospital psiquiátrico – já que ele estaria colocando a sua vida, bem

como de sua família, em risco. Segundo ela, foi por sorte que nada aconteceu, se

referindo aos jovens que entraram em sua casa.

Da mesma forma, quando um morador antigo estava sendo entrevistado para o

vídeo a respeito da memória da favela mencionado anteriormente, um dos membros da

equipe de gravação perguntou sobre a violência na cidade, sem fazer referência

específica ao local. Imediatamente o entrevistado disse que não queria falar sobre esse

assunto, embora continuasse disposto a ser entrevistado. E ainda aconselhou a equipe de

gravação a não tocar mais no tema, pois dificultaria a continuidade do trabalho dentro

de qualquer outra favela. Quando as câmeras foram desligadas e a equipe foi almoçar

com sua família, o entrevistado falou do medo que sentia de estar sendo vigiado, já que

para ele os policiais localizados no quartel do BOPE teriam lentes de aumento

poderosas que veriam tudo o que acontece na favela. Ao ser questionado sobre a

veracidade da informação por uma pessoa presente respondeu que, se existiam satélites

que eram capazes de ver e fotografar casas, ruas e pessoas, seria possível que o BOPE

tivesse acesso a um equipamento parecido43. E se os policiais podiam ter acesso a esses

equipamentos, os traficantes também, o que impossibilitaria qualquer menção ao

assunto. Tal argumentação foi apresentada em um momento informal, um almoço,

quando as câmeras já estavam desligadas, tanto como uma explicação para seu ato

quanto como um conselho importante para nos protegermos no futuro.

A partir desses casos é possível identificar a existência na localidade de formas

de coerção que se assemelham às vividas pela maioria dos moradores de favelas

cariocas, mesmo quando há ausência de bandidos armados em seu território. No caso

citado identifica-se como funciona nesse contexto a “lei do silêncio”, já que os

moradores se sentem impedidos de falar, até entre si, sobre a ordem a que estão

submetidos. Segundo Machado da Silva, a proibição aos moradores de favela de falarem

sobre o tráfico de drogas também entre si, e não apenas para fora, seria a “conseqüência

mais perversa da implantação da sociabilidade violenta como ordem instituída. As

populações que ela submete continuam, de certa maneira, a viver sua vida ‘normal’,

43 O morador fazia referência ao programa de internet Google Terra (ou Google Earth), que reproduz em três dimensões imensas partes do planeta, com bastante capacidade de aproximação, através de fotografias feitas por satélites espaciais.

Page 55: Tese_Lia_Rocha_2009

46

organizadas como subalternas que são à ordem estatal, mas sob a condição de serem

impedidas de se apropriar coletivamente da ‘outra parte’ dessa mesma normalidade

cindida” (Machado da Silva, 2004: 314). O autor refere-se ao direito garantido pela

ordem estatal de livre expressão, que como vimos não se estende aos moradores de

favela. No caso pesquisado, no entanto, tal controle sobre o que pode ou não ser falado

publicamente é particularmente perverso, por contrastar com a aparente liberdade de

que desfrutam os moradores do Pereirão. Ao mesmo tempo em que afirmam seu

afastamento das limitações impostas pela opressão realizada pelos traficantes de drogas,

reconhecem o cerceamento das suas liberdades individuais.

Outra coerção identificada foi o controle do ir e vir, tanto de pessoas que não

residem na localidade (como já disse, fui sempre acompanhada por moradores nas

minhas visitas – e essa precaução não parecia se restringir à minha pessoa), quanto dos

moradores, quando saem do território. No relato abaixo, recolhido “coletivo de

confiança” mencionado, o jovem morador afirmou:

Então eu nunca entrei no [nome da favela]. E eu sinto vontade de ir lá para ver como é. (...) Eu me sinto livre para ir, mas depois você fica naquela assim. Se eu for, neguinho vai dizer que eu estou me aliando à facção rival. ‘Olha lá, ele está deixando de fechar com o Comando para fechar com a ADA’ [facção criminosa que controla uma localidade vizinha]. Então você fica...

No fragmento reproduzido acima novamente chama a atenção a convivência de

sentimentos aparentemente contraditórios: a alegria por morar em uma favela “onde a

paz reinou” (Cfr. pág. 17) e o medo de circular fora dela em função das limitações

impostas pelas dinâmicas territoriais do tráfico de drogas na cidade. Porém, as

declarações podem ser vistas como não-contraditórias quando entendidas enquanto

explicitação dos limites que a situação excepcional do Pereirão apresenta, pois confirma

a importância da ausência de conflitos para a rotina dos moradores ao mesmo tempo em

que reconhece que tal situação não suspende as imposições que os traficantes impõem

diuturnamente aos favelados.

Como no fragmento reproduzido acima, outros moradores afirmaram que a

favela “pertence” ao Comando Vermelho (uma das facções de traficantes de drogas

Page 56: Tese_Lia_Rocha_2009

47

existentes no Rio de Janeiro), uma vez que essa é a facção que domina o conjunto de

favelas (denominados de complexos) no qual o Pereirão se localiza. Dessa forma, apesar

da presença de traficantes ser pouco visível na localidade, o controle que exercem sobre

o que os moradores falam e como vivem é semelhante em alguns aspectos àquelas onde

a força do tráfico de drogas é mais explícita.

No entanto, em um momento durante o trabalho de campo na localidade, a

presença de traficantes de drogas na localidade não foi subterrânea. No dia 31 de Março

de 2007 policiais e traficantes trocaram tiros durante mais de 30 minutos dentro da

favela do Pereirão. O confronto aconteceu durante um evento realizado na quadra

localizada na entrada da favela, deixando na linha de tiros crianças e jovens que

participavam da festa. Segundo o jornal O Globo (1º de abril de 2007), este foi o

primeiro confronto “depois de anos de relativa trégua”. De acordo com a polícia, os

traficantes atiraram contra um carro policial que escoltava uma equipe de TV (não

identificada pelo jornal), que cobriria o evento, até a entrada da favela. Após esse

incidente não foram registrados no local quaisquer outros confrontos entre policiais e

bandidos.

Na primeira visita que fiz ao local depois desse acontecimento (eu não estava lá

no momento e só pude retornar a campo duas semanas depois) um dos moradores ligado

à organização do evento relatou que na semana anterior a polícia teria recebido

reclamações dos moradores dos prédios localizados perto da favela a respeito de um

baile funk – festas realizadas por equipes de som que reúnem jovens em localidades

periféricas do Rio de Janeiro, às vezes milhares – que estaria acontecendo na quadra da

favela. Ainda segundo ele, tratava-se apenas de uma festa de aniversário, mas tal fato

teria despertado a desconfiança da polícia para a possível presença de traficantes na

favela44. No dia do tiroteio a polícia teria subido até a entrada da favela para fazer um

patrulhamento de rotina, e teria sido recebida a tiros pelos traficantes que estariam na

favela – mas sem deixar claro em que condições, se participando da festa ou escondidos,

seja na mata, seja nas casas. Vale ressaltar que no período de trabalho de campo

realizado para esta pesquisa, em momento algum vi ou fui informada sobre

44 Investigações policiais e reportagens investigativas denunciaram que muitos desses eventos são patrocinados por traficantes de drogas. Entre as matérias jornalísticas, o caso de Tim Lopes – jornalista torturado e assassinado por traficantes quando realizava uma reportagem investigativa sobre tráfico de drogas e prostituição infantil realizados em bailes funk na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro – foi o que alcançou mais repercussão. Cfr. Arquivo G1: Tim Lopes é assassinado.

Page 57: Tese_Lia_Rocha_2009

48

patrulhamentos policiais na entrada da favela. Aparentemente este patrulhamento foi

uma exceção, em função do evento que estava sendo realizado na entrada da localidade.

Pelo relato do jovem, os policiais teriam pedido reforço dos policiais do BOPE,

e até helicópteros teriam sido acionados para o confronto. Os policiais teriam entrado na

favela e atirado contra os moradores. Quando cheguei ao local vi que o trailer da PM

que ficava localizado na entrada da favela não estava mais lá. Ao ser perguntado sobre

isso, o jovem disse que há seis meses o trailer tinha sido retirado, e que durante esse

período o tráfico estaria tentando voltar a atuar na favela, ainda que de forma

embrionária – mas em seu relato não ficou claro qual dos eventos aconteceu primeiro.

Ele ressaltou a importância da polícia impedir o tráfico de se reorganizar naquele

território – mas sem colocar a vida dos moradores em risco, e que os moradores, a

“comunidade”, não poderiam deixar o tráfico voltar a controlar o Pereirão. Observa-se

que os moradores estão insatisfeitos com a possível volta do tráfico, pois é a ausência de

conflitos entre policiais e traficantes que garante a “tranquilidade” local – que é sempre

relacionada à ausência de conflitos entre traficantes e policiais, e nunca diretamente

relacionada com a ausência do comércio de drogas em si. O que era comentado sempre

que essa questão surgia nas conversas com os moradores era a diferença entre aquele

momento e o vivido até 1998, época dos grandes conflitos.

O evento acima mencionado, ainda que episódico, confirmou que traficantes de

drogas estão presentes na favela, ainda que não cotidianamente. Em outro momento,

algum tempo depois desse evento, ao realizar mais uma visita à localidade vi um

traficante na entrada da favela, sentado em uma cadeira e com uma arma no colo. Ao

encontrar alguns moradores e exprimir meu espanto (e medo) com o que tinha visto,

esses tentaram me tranquilizar, explicando que esse traficante não era morador do local,

mas alguém de fora. E que a arma era apenas para fazer um tipo, uma forma de

apresentação de si enquanto traficante, e que não representava risco. Continuando o

discurso que identificava aquela favela como diferente, afirmaram que ali não havia

tráfico de drogas armado, mas apenas “meninos” que não representavam risco. Dessa

forma, a construção dos moradores sobre a “tranquilidade local”, ou a explicação

nativa, modifica-se de acordo com as novas dinâmicas que se estabelecem ali.

Percebe-se então que a “tranquilidade” experimentada no Morro do Pereirão é

resultado de uma conjuntura específica, onde diversos fatores são responsáveis ao

Page 58: Tese_Lia_Rocha_2009

49

mesmo tempo pela atual configuração local. Em um dado momento esses fatores – a

visibilidade política que a favela recebeu; a colocação do trailer na entrada da favela

inibindo a compra de drogas; a proximidade com a sede do BOPE; o desinteresse do

tráfico pela localidade, etc. – fez com que a “paz” fosse possível. No entanto, esse

contexto pode estar se modificando: o interesse do tráfico no local pode ter mudado,

talvez em função das disputas territoriais nas favelas vizinhas; o interesse do governo

também pode ter mudado45, o que explicaria a retirada do trailer. Assim, as variáveis

que permitem a “tranquilidade” podem mudar, como aparentemente mudaram haja vista

a pequena boca-de-fumo instalada. Considero, portanto, importante frisar que o

contexto de “tranquilidade” é passível de mudanças, pois nenhum dos fatores que

garantiram sua manutenção é permanente.

É importante reforçar que meu objetivo enquanto pesquisadora realizando

trabalho de campo no local não era de comprovar ou não a presença de traficantes no

Pereirão, se esses são comuns ou extraordinários. Para mim o objetivo é investigar e

compreender a construção nativa sobre a rotina e a sociabilidade dos moradores, como

eles compreendem tal situação e o que consideram “tranquilidade”, “paz” e conflito, e

como as explicações nativas apresentadas modificam-se quando o contexto vivenciado

passa por transformações. Apesar das mudanças, a apresentação do local como

“tranquilo” permanece, pois os conflitos não fazem parte da vida cotidiana. A

importância da ausência de conflitos é ressaltada por moradores de favelas também em

outras localidades, como discutido em outras investigações (Cfr. Machado da Silva,

2008c). Assim, a existência ou ausência de traficantes de drogas parece ser menos

importante para a análise aqui pretendida que a comprovação do controle arbitrário

exercido pela “sociabilidade violenta” sobre os moradores do Pereirão, pois o que

desejo discutir é a construção de uma “tranquilidade” cotidiana que existe lado a lado do

medo e do silêncio dos moradores. É interessante avaliar, portanto, porque permanece –

como verdadeiro espectro – o controle exercido pelos traficantes sobre os moradores,

apesar dos impedimentos materiais já indicados. De fato, os moradores vivem como se a

favela fosse um território diretamente dominado, pois se orientam pelas mesmas regras

impostas em outras favelas onde os traficantes têm presença ostensiva.

45 É importante ressaltar o dado de que tal evento ocorreu menos de quatro meses depois da posse do novo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e de toda a cúpula da Secretaria de Segurança Pública.

Page 59: Tese_Lia_Rocha_2009

50

Dessa forma, se tomarmos como premissa que naquela localidade o tráfico de

drogas, se existe, atua de forma subterrânea (e, portanto, descartamos a possibilidade de

uma grande encenação para enganar a pesquisadora), a obediência às ‘regras do tráfico’

seria motivada pela antecipação à possibilidade de retaliação dos traficantes em caso de

desobediência. E os moradores se antecipariam por compreender que a situação de

“tranquilidade” local é provisória. Pensar que, em um momento futuro, existirá

retaliação para o que foi feito ou dito hoje remete à noção de que o tráfico tem uma

capacidade de controlar e vigiar as pessoas maior do que as evidências apontadas por

diversas pesquisas. No entanto, muitos moradores de favela, inclusive os do Pereirão,

acreditam que estão sendo vigiados constantemente por traficantes ou por policiais. E

neste caso estar sendo ou pensar que está sendo vigiado tem o mesmo efeito46.

Para além das explicações apresentadas acima, acredito ser importante

compreender porque a construção coletiva da favela do Pereirão como uma favela “em

paz” tem tanta força no imaginário da população local, apesar das coações mencionadas.

Na seção seguinte discuto os diferentes usos feitos pelos moradores da representação de

sua localidade como uma favela “tranquila”.

1.5. Diversas apropriações possíveis da “tranquilidade” do Pereirão.

“Paz” e silêncio encontram-se entrelaçados no Morro do Pereirão. Nessa

localidade, a paz é constantemente anunciada, mas o assunto ”tráfico de drogas” é

tratado com o mesmo silêncio que se encontra em lugares violentos. Somando-se à

dimensão do medo e da “lei do silêncio”, a construção discursiva dos moradores sobre a

“paz” e a “tranquilidade” do local cumpre outros papéis. Um deles é transmitir aos

moradores um sentimento de segurança, reforçando a confiança na continuidade das

rotinas cotidianas que muitas outras favelas não têm. Outro é funcionar como

instrumento de controle social, abafando comportamentos considerados desviantes. E

por fim, é a forma dos moradores do local afirmarem seu afastamento moral em relação

aos traficantes. Por outro lado, a linguagem da “tranquilidade” se constitui na versão

local da “lei do silêncio” que os bandos armados impõem às populações das periferias

46 Cfr. Farias, 2008.

Page 60: Tese_Lia_Rocha_2009

51

urbanas; e nesse caso os bandos poderiam estar ligados tanto ao tráfico de drogas

quanto às milícias, pois essas últimas também impõem aos moradores dos locais onde

atuam sua versão da “lei do silêncio” (Mesquita, 2008 e Cano e Ioot, 2008).

A sensação de segurança que a crença de morar em um lugar “tranquilo” traz é

fundamental para a manutenção dessa confiança na continuidade da rotina, denominada

por Giddens (1991) de segurança ontológica. Como se sabe, morar em favelas no Rio de

Janeiro hoje é estar exposto a diversos riscos: submissão aos traficantes, arbitrariedade

policial, exposição a conflitos armados, insegurança frente a uma política de segurança

que os vê como potenciais criminosos. No entanto, estar seguro de quem somos (“auto-

identidade”) e da continuidade da nossa rotina (“constância dos ambientes de ação

social e material circundantes”) é uma necessidade psíquica essencial, segundo Giddens

(1990:95). A crença nesses elementos formaria nossa “segurança ontológica”, que está

enraizada no inconsciente, não sendo fruto de nossa racionalização. Via de regra,

sabemos que o risco existe, mas o colocamos em suspenso:

Imagine alguém que se aflige profunda e constantemente, pensando se os outros nutrem intenções maliciosas entre si. Ou imagine uma pessoa que se preocupa constantemente com a possibilidade de uma guerra nuclear e não põe de lado o pensamento deste risco. Embora os indivíduos ‘normais’ possam considerar estas ansiedades, quando são profundas e crônicas, como irracionais, estes sentimentos são mais o resultado de supersensibilidade emocional do que de irracionalidade. Pois o risco de guerra nuclear está sempre aí, como uma possibilidade imanente do mundo atual; e, como nenhum indivíduo jamais tem acesso direto aos pensamentos de um outro, ninguém pode estar absolutamente seguro, num sentido mais lógico que emocional, de que ideias maliciosas não estejam constantemente na mente de outros com quem se interage (Giddens, 1990: 96).

Pode-se fazer um paralelo entre a malícia alheia ou a guerra nuclear e a situação

atual dos moradores de favela do Rio de Janeiro, que na maioria dos casos

simplesmente não podem ignorar os riscos à continuidade de suas rotinas presentes em

suas localidades. Imaginar-se morador de uma favela “tranquila” transforma-se em

fonte de segurança ontológica na medida em que permite reduzir a ansiedade provocada

pela impossibilidade de suspender a atenção aos riscos. O temor da opressão do tráfico e

dos aparatos de segurança, em suas manifestações mais imediatas, está afastado naquele

contexto, apesar de algumas reverberações permanecerem, como as observações deste

capítulo deixam claro.

Page 61: Tese_Lia_Rocha_2009

52

Outro aspecto que pode ser associado à linguagem da “tranquilidade” é sua

função de controle social. Quando os moradores repetem entre si e para os visitantes

que aquele é um lugar “tranquilo”, ao mesmo tempo em que se referem ao fato de não

mais conviverem com traficantes armados e “operações” policiais, eles também

silenciam os possíveis casos “desviantes” (que, como foi mencionado, reaparecem nas

entrelinhas). Os desvios, quando reconhecidos, são apresentados como exceções e como

reprováveis moralmente, e que não comprometem a totalidade da “comunidade” –

mesmo aqueles que dizem respeito ao espaço doméstico e particular dos moradores,

mas que são freqüentemente mencionados na caracterização do modo de vida dos

favelados. O fragmento abaixo, de entrevista realizada com uma moradora de 35 anos e

nascida no local, é bastante representativo:

[E porque aqui é uma comunidade modelo?] Porque não temos tráfico armado, não temos problemas de gravidez na adolescência, de meninas de 10, 11 anos tendo relações, com filho no braço sem nem saber de quem, como eu vejo em outras favelas. Não temos casos de violência doméstica, três ou quatro no máximo, não temos casos de alcoolismo, graças a Deus, cinco ou seis no máximo. (...) Tem viciados aqui? Tem, mas os nossos meninos não entram para o tráfico, senão alguns casos isolados. E aqui não tem arma. Fora o BOPE, ou quando a polícia vem passear. Mas fora isso a gente não tem arma.

Tal modalidade de controle social poderia ter paralelo, ainda que guardadas

grandes diferenças, com o caso de localidades dominadas por milícias, onde também se

reitera de forma categórica que não existem traficantes ou consumidores de drogas na

favela (Mesquita, 2008). A afirmação, quando repetida e confirmada por todos, pode ter

a força de inibir os efeitos desses atos sobre a sociabilidade local. Por exemplo, usar

certas drogas ilícitas é tido como algo moralmente condenável por todos (dentro ou fora

de favelas), e os moradores negam que elas sejam consumidas em sua favela,

reforçando a representação de “lugar tranquilo” e coibindo o possível uso pelos

moradores. Sem publicidade, o consumo de drogas se mantém, no máximo, como

conduta clandestina, de modo que a negação discursiva funciona como um dispositivo

de controle. A pretensão implícita – cuja possibilidade de sucesso é obviamente limitada

– é impedir a objetivação institucionalizada daquelas condutas que, uma vez saídas da

obscuridade das atividades privadas, poderiam se articular como uma forma de poder

vista como deletério para a vida social local.

Page 62: Tese_Lia_Rocha_2009

53

É no aspecto do controle social, e de seu acionamento como meio para garantir a

manutenção da situação de “tranquilidade”, que fica mais evidente a importância da

construção de “comunidade” ali existente, pois é através dela que se forma a coesão

necessária para impedir e controlar comportamentos desviantes. Ainda que os

moradores recém-chegados não sejam todos identificados como potenciais

consumidores ou traficantes de drogas, a dúvida sobre sua adesão ao “estilo de vida

pacificado” do Pereirão é suficiente para que sejam percebidos como ameaças à “paz”.

Ainda que não veja nesse contexto uma reprodução da divisão social identificada por

Elias e Scotson em Winston Parva, empresto deles a noção de que entre aqueles que

compartilham de uma coesão grupal, e que se veem como membros de um grupo

superior moralmente (os “estabelecidos”), o autocontrole individual é maior, pois está

articulado com a opinião coletiva do grupo ao qual se faz parte (Elias e Scotson, 2000:

41). Assim, para manter a coesão interna e reforçar o autocontrole é preciso retratar os

recém-chegados, aqueles que não participam do grupo e não aderiram da mesma forma

aos valores deste, como uma ameaça.

Além dos aspectos de garantia da segurança ontológica e de controle social,

acredito que as afirmações a respeito da “tranquilidade” local também atuem como

mecanismo de limpeza moral, distinguindo o Pereirão de outras favelas que abrigam

traficantes e, assim, levam à criminalização de seus moradores. Novamente é possível

traçar paralelos com o caso de territórios dominados por milícias. Em ambos os casos,

os temas da violência e do tráfico tornam-se um verdadeiro tabu, pois falar sobre eles é

reconhecer uma presença que deve ser negada (veja-se, por exemplo, o alerta do

morador durante sua entrevista para os realizadores do vídeo). Dessa forma, os

moradores do Pereirão, ao negar a presença de drogas e de traficantes (e dos outros

problemas encontrados não apenas em outras favelas), ressaltam sua singularidade e

demonstram que não estão “contaminados”.

Todavia, este verdadeiro tabu em torno do tráfico de drogas revela o inegável

silenciamento que permeia as afirmações sobre a “tranquilidade” na localidade. Isto

impede que os moradores articulem um discurso crítico, individual ou coletivo, a

respeito da influência dos traficantes e da violência em suas condutas. Em geral, a

proibição vem dos próprios traficantes, que assim se protegem de possíveis indiscrições

sobre suas atividades (para a polícia ou para bandos rivais). No caso do Pereirão,

entretanto, essa “lei do silêncio” é apropriada pelos moradores como forma de

Page 63: Tese_Lia_Rocha_2009

54

autoproteção, pois negando a presença do tráfico de drogas, evitam serem vistos pelos

não-moradores de favela como “coniventes” 47. Dessa forma, estabelece-se um

paradoxo de extrema desumanidade: submetendo-se ao próprio dispositivo que os

oprime, os moradores do Pereirão conseguem evitar sua desqualificação moral por

conivência, mas não conseguem denunciar potenciais ameaças à sua segurança.

O silenciamento dos moradores do Pereirão, assim, possui características

particulares, no sentido de ser acionado como um “capital simbólico” (Bourdieu, 2001:

173) usado para distingui-los dos outros moradores de favela e também para reforçar o

controle social ali existente. No entanto, possui também aspectos que os colocam em

situação semelhante a dos outros moradores de favela, pois não podem (ou não

conseguem) articular discursos, reflexões e denúncias sobre sua situação – análise que

sublinho na conclusão desta tese. No próximo capítulo discorro ainda sobre as

dimensões do silenciamento, mas a partir do caso da associação de moradores local e de

seus dirigentes.

47 Em diversos momentos, representantes do poder público no Rio de Janeiro requisitaram que os moradores de favela denunciassem a localização dos traficantes sob o argumento de que não fazê-lo seria cumplicidade com os mesmos. Cfr Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005; Machado da Silva (org.) 2008.

Page 64: Tese_Lia_Rocha_2009

55

II. A associação de moradores: “eles lá e nós aqui”.

Fonte: www.favelinha.com

Desde os anos 1940, e principalmente no período da redemocratização do país,

as associações de moradores ocuparam um papel importante tanto no campo dos

movimentos sociais quanto no debate público sobre a cidade. Foram atores

fundamentais na luta contra as remoções dos anos 1960 e no processo de urbanização de

grandes favelas, nas décadas de 1980 e 1990, fenômenos que modificaram fortemente a

face das favelas cariocas. No entanto, apesar de existirem em grande número e de terem

uma importância política reconhecida, as associações de moradores de favelas têm

encontrado grande dificuldade para atuar no espaço público nos últimos anos, tanto

dentro quanto fora das favelas. Os problemas enfrentados são de conhecimento geral: as

Page 65: Tese_Lia_Rocha_2009

56

associações de moradores têm voltado à pauta dos jornais em escândalos políticos,

acusadas de favorecerem candidatos nas eleições de 2008 escolhidos por grupos de

traficantes de drogas48. Além disso, há alguns anos é de conhecimento público que o

cerco sobre os moradores de favelas praticado pelas quadrilhas de traficantes se fecha

também sobre as associações, causando a morte ou a expulsão de muitos dirigentes de

suas casas e territórios de moradia49.

No entanto, apesar de todas as dificuldades, muitas associações de moradores

continuam trabalhando e atuando nas favelas. Portanto, continua havendo certa margem

para a ação coletiva, apesar da imposição do domínio dos bandos de traficantes nas

diversas localidades. Ainda seria possível aos líderes atuar em atividades de interesse

coletivo, pelo menos na medida em que elas não interferem com o comércio de drogas.

Ao contrário, aos moradores comuns resta apenas a opção de adaptar-se às imposições

dos traficantes.

Neste capítulo irei apresentar o caso da associação de moradores do Pereirão e

discutir como seus dirigentes constroem suas estratégias de atuação dentro e fora do

território das favelas. Inicialmente apresento as dificuldades encontradas pela

associação de moradores na primeira gestão e as mudanças ocorridas com a mudança na

presidência da associação; na seção seguinte analiso como se transformaram as relações

entre associação de moradores e poder público; para, em seguida, utilizando dados

recolhidos no Projeto de Pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: moradores em

busca de reconhecimento”, discutir os desafios e recursos mobilizados pelos dirigentes

nos dias atuais na cidade do Rio de Janeiro, principalmente frente aos riscos

representados pelo controle dos traficantes de drogas sobre os territórios e os moradores

das favelas.

48 Segundo denúncia da Revista Época de 04 de Agosto de 2008, o traficante que controla o comércio de drogas na Rocinha escolheu o candidato da localidade, não permitirá a entrada na favela de outros candidatos e pretende usar sua quadrilha para fazer a campanha eleitoral. O candidato em questão seria o presidente da principal associação de moradores da região. A reportagem afirma ainda que também nos territórios controlados por milícias existe o favorecimento a candidatos escolhidos por criminosos – em uma versão urbana do coronelismo característico do Nordeste rural.49 Uma pesquisa realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2005, analisou dados sobre 800 dirigentes de associações de moradores de favelas entre 1992 e 2001, e chegou à conclusão que nesse período 300 dirigentes foram expulsos de suas localidades por divergências com traficantes locais, e 100 foram assassinados (Leite, 2005:382). Leite aponta que essas expulsões, de dirigentes e outros moradores, são tão freqüentes quanto invisíveis para a sociedade em geral, muitas vezes não sendo percebida mesmo como uma modalidade de violência praticada pelos traficantes de drogas. Com o aumento de casos, no entanto, a categoria de “refugiados do tráfico” se tornou comum nos meios de comunicação (Leite, 2005: 381-383).

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57

2.1. A associação de moradores.

Como comentado no capítulo anterior, a “tranquilidade” experimentada no

território em questão é permeada por medos e inseguranças comuns à maioria dos

moradores de favela do Rio de Janeiro. A “ausência” de quadrilhas de traficantes de

drogas é entendida de forma contextualizada, ou seja, ela existe em um determinado

momento da história dessa localidade, mas sua presença sub-reptícia – e a possibilidade

concreta de uma volta do regime de opressão – causa impactos na vida dos moradores

que possui reflexos evidentes também na sua vida coletiva. O medo é um elemento

constante no cotidiano dos moradores, e também está presente na associação de

moradores da localidade. Porém, a forma como os moradores organizam suas rotinas, e

como se organizam coletivamente, modifica-se de acordo com o contexto de cada

situação. Assim, observam-se duas abordagens diferenciadas para a ação coletiva frente

à Associação de Moradores, nas duas gestões que acompanhei durante o meu trabalho

de campo. Ainda que uma das gestões tenha sido acompanhada mais longamente (a

segunda gestão tem menos de um ano), pode-se delinear algumas importantes mudanças

de curso na condução do trabalho frente à associação, tanto interna quanto externamente

à favela.

2.1.1. A gestão de Antônio.

No momento do começo do trabalho de campo, a associação de moradores se

localizava atrás de uma quadra de esportes poliesportiva, cercada por um muro de

cimento, bem na entrada da favela. No ano seguinte o Presidente da Associação

construiu sozinho duas salas na entrada da favela, uma para a sede da associação e outra

para a biblioteca e para a recreação infantil. As principais áreas de atuação da

Associação eram: o gerenciamento da correspondência dos moradores, o fornecimento

de declarações de residência aos moradores, e o gerenciamento do programa Gari

Comunitário em parceria com a prefeitura. A diretoria estava esvaziada, tendo como

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58

membro atuante ao seu final apenas o Presidente (durante a realização do trabalho de

campo a secretária da associação começou a trabalhar como auxiliar de serviços gerais

em uma escola e deixou a associação). A atual gestão tinha à época do começo do

trabalho de campo pouco tempo de existência; antes disso a associação esteve fechada

durante dois anos. A antiga gestão ficou à frente da associação por 16 anos, período

durante o qual concorreu em todas as eleições como chapa única. Afastados por

denúncias de corrupção (nunca investigadas), o antigo Presidente e alguns diretores se

mudaram do morro, pressionados pelos moradores e também por traficantes de drogas

locais, segundo relato de moradores.

O então presidente da associação de moradores, Antônio, nunca tinha

participado anteriormente de organizações coletivas. Morador da favela desde seu

nascimento, o presidente em gestão era até recentemente eletricista, um trabalhador

manual especializado e autônomo, sem experiências sindicais (até porque sempre foi um

trabalhador autônomo), em organizações de bairro ou religiosas. Com idade em torno de

50 anos, casado, com duas filhas adolescentes, o presidente vive em uma casa

confortável com um terraço de onde se tem uma bela vista do mar. A casa ainda estava

em construção, como muitas na favela, e era ele próprio quem estava encarregado das

obras. A esposa trabalhava fora como cozinheira, mas também trabalhava em casa

cozinhando por encomenda. Sua vida, segundo seu relato, foi bem mais difícil que a de

suas filhas. Órfão de pai aos três anos, foi criado pela mãe junto com outros nove

irmãos. A mãe e as irmãs, com o trabalho de lavadeiras, sustentaram a família toda. Os

irmãos mais velhos foram trabalhar na construção civil, especialmente em Brasília, e

por isso o entrevistado perdeu contato com muitos deles. Naquele momento tinha mais

contato com um irmão, que morava em uma favela próxima, mas não falava com as

quatro irmãs, por considerá-las “muito fofoqueiras”. Apesar da infância difícil, falava

com nostalgia desse período, e da favela de então, onde era possível comer frutas

colhidas no quintal. Mencionou também que durante sua infância sua família foi muito

ajudada pelo Dr. Sobral Pinto50, que morou na rua que dá entrada à favela.

De acordo com a mulher do presidente, a decisão de deixar o trabalho para se

dedicar à associação foi uma “besteira, uma brincadeira que já passou da hora de

50 Dr. Sobral Pinto foi um famoso jurista, nascido em 1893 e morto em 1991. Mineiro, católico fervoroso, atuou na defesa de muitos militantes políticos durante as ditaduras Vargas e militar, como Luís Carlos Prestes, Graciliano Ramos, Miguel Arraes, entre outros (Isto É, 2008).

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59

acabar”. A filha mais velha parecia apoiar mais a decisão do pai, mas também

reclamava que os moradores não reconheciam o esforço empreendido por ele. No

discurso do presidente a possibilidade de fechar a associação e voltar ao trabalho de

eletricista estava o tempo todo presente, como uma ameaça que seria cumprida quando

ele se cansasse de “levar a associação sozinho”. Pela sua fala, a atuação como dirigente

da associação era quase um “sacrifício” feito em prol da “comunidade”, uma escolha

que levava mais em conta o bem comum que o bem individual ou de sua família.

Segundo ele, teria feito uma loucura ao deixar seu trabalho, que lhe rendia uma renda

razoável, para ficar “batendo cabeça” à frente da associação, sem receber o

reconhecimento devido por parte dos moradores.

Na atuação deste frente à associação de moradores chamava a atenção sua falta

de experiência política e de contatos ou apoios. Ao falar sobre seu cotidiano, o

entrevistado relatava a espera nas salas de gabinetes de secretários da administração

municipal e estadual, de vereadores e deputados estaduais, nunca sendo atendido.

Comentou também de diversos projetos de investimentos já aprovados a serem feitos na

favela, mas que sem perdem na burocracia. Ao relatar sua ida à FAFERJ (Federação das

Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) o presidente comentou que muitos

outros dirigentes também passam por dificuldades, algumas ainda mais graves que as

dele, mas que a federação não tem muito a oferecer em termos de apoio –

principalmente apoio político para a liberação de investimentos públicos. Assim, o ex-

presidente da associação do Pereirão parecia ter poucos contatos e apoios para executar

seu trabalho, o que demonstraria sua falta de savoir faire para a política. Para Pierre

Bourdieu (2004), a vida política exige a posse de competências sociais e técnicas que

não estão ao alcance de todos, e por isso a política é feita por poucos, ainda que afete a

vida de todos. A maioria das pessoas não possui instrumentos materiais e culturais que

permitem sua participação na política, e assim a divisão do trabalho político é definida

pela quantidade de capital econômico e cultural que cada um consegue acumular, e

também pela divisão assimétrica desses capitais, particularmente o capital cultural. “O

mercado da política é, sem dúvida, um dos menos livres que existe” (Bourdieu, 2004:

166).

Essa pouca intimidade com os canais da política institucional de Antônio era

acompanhada também de falta de intimidade com a política cotidiana feita do contato

com os moradores. Para Antônio, ele só era procurado pelos moradores para resolver

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60

problemas como os do serviço de TV a cabo “alternativo51”, para chamar a Defesa Civil

em caso de necessidade (como o perigo representado por uma pedra grande no alto da

favela em dias de temporal), para resolver disputas de marido e mulher. Segundo ele,

todos esses eram problemas que “cada um poderia resolver por si mesmo, é só passar a

mão no telefone e ligar”. Tradicionalmente, as lideranças comunitárias envolvem-se em

todos estes assuntos, ainda que não seja essa sua função principal. Mas o entrevistado

afirmava que os moradores esperavam dele o contato com o órgão público desejado,

seja ele um órgão do executivo municipal, a polícia ou o sistema de justiça. Ele não teria

contatos especiais para realizar os pedidos, nem teria seus pedidos atendidos mais

rapidamente que o morador mediano da comunidade: “(...) as pessoas aqui acham que

eu tenho um poder que eu não tenho”.

Apesar das dificuldades que afirmava encontrar, declarou diversas vezes que

gozava de uma situação privilegiada em relação a outros presidentes de associações,

pois pode atuar de forma autônoma frente a influências exteriores, i.e, os traficantes de

drogas. Segundo ele, “tem presidente que nem trabalha, não consegue trabalhar”, em

função de uma grande interferência por parte dos traficantes. Já no Pereirão, tanto ele

quanto a sua antiga colaboradora, que também foi entrevistada várias vezes, apesar de

reconhecerem implicitamente o poder dos traficantes, afirmaram que ali era “cada um

na sua”, e que existiria uma relação baseada ao mesmo tempo na civilidade (tratando-se

com recíproca polidez, sem agressões de ambos os lados) e na distância social. No

entanto, ambos reconheciam que os traficantes possuiriam uma espécie de reserva de

poder que lhes permitiria interferir no trabalho da associação se quisessem.

Graças a Deus aqui eles não mandam nada, nunca interferiram em nada. Mas também no dia que quiserem mandar alguma coisa eu pego as minhas coisas e saio. Coloco um cartaz na porta da associação: ‘por motivo de saúde o presidente está afastado’. Porque eu tenho família, tenho duas filhas, e não posso me arriscar desse jeito.

Bandidos não dão um pio na vida da comunidade, mas quando acontece alguma coisa não tem como escapar. Por exemplo, quando aconteceu uma matança aqui perto, no ano passado, tive que ficar andando pra cima e pra baixo com a polícia. Depois, quando eles foram embora, tive que fazer a mesma coisa com os bandidos. Sem diferença. Senão ia dar problema.

51 Como em muitas outras favelas do Rio de Janeiro o serviço de televisão a cabo é ilegal, ou seja, o sinal é desviado e transmitido para as residências da favela por um preço bem menor.

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61

Nos relatos acima o entrevistado reconhecia o risco de ser confrontado pelos

traficantes, e deixava clara a sua falta de recursos disponíveis para enfrentá-los. No

primeiro fragmento, o entrevistado afirmava que os traficantes não teriam interesse em

controlar ou interferir na atuação da associação, e essa é sua garantia de segurança. No

segundo fragmento, porém, Antônio afirmou que em certas situações os traficantes se

aproximam da associação de moradores, e que nesse caso é preciso evitar o confronto

para não ter “problemas”. Como veremos adiante, evitar o confronto com os traficantes

de drogas através da passividade, retirando-se da organização ou apenas interagindo

com eles quando confrontado, é uma estratégia muitas vezes utilizada pelos dirigentes

de associações de moradores para manterem-se em segurança sem se tornarem

cúmplices dos traficantes.

Assim, para Antônio, a independência da associação seria atribuída ao

desinteresse dos traficantes, e não à capacidade da organização de mantê-los afastados.

Identificando um profundo desequilíbrio de forças, a única alternativa vislumbrada pelo

presidente, caso essa situação se modifique – o que ocorreria por decisão unilateral dos

traficantes – seria a resistência passiva: o abandono do cargo, sem sequer explicitar o

verdadeiro motivo. Na fala do presidente transparece a avaliação de que a autonomia

frente ao tráfico pode ser passageira, e que ele não dispõe de poder suficiente para evitar

essa mudança. Sua descrença na possibilidade de resistir aos traficantes de drogas fica

explícita em outra fala: numas das visitas à sede da FAFERJ, Antônio encontrou o então

presidente da União Pró-Melhoramentos da Rocinha, preso na Operação Navalha na

Carne junto com outra dirigente e sete policiais, por ligações com os traficantes de

drogas da região. Para o entrevistado, a prisão era injusta, já que todos sabem que é

“impossível ser presidente de associação, ainda mais da Rocinha, sem ter contato com o

tráfico”. A Rocinha era um caso emblemático para Antônio por ser uma favela que

possui muitos recursos, que despertariam o interesse dos traficantes de drogas – como

obras públicas, projetos sociais, comércio aquecido, etc. – além de ser um ponto de

venda de drogas rentável, o que aumentaria o poder bélico dos traficantes locais e a

ameaça que eles representariam.

Dados coletados nesta e em outras pesquisas (Zaluar, 2004; Leeds, 2003;

Machado da Silva e Leite, 2004) apontam que os traficantes aproximam-se das

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62

associações de moradores visando controlar os recursos de que essas dispõem. Os

recursos podem ser financeiros (repasses do poder público, contribuição mensal dos

moradores etc.) ou de poder (indicação de pessoas para trabalhar em projetos do

governo ou de ONGs, influência sobre a gestão destes projetos etc.). No caso da

associação de moradores do Pereirão, a falta de ambos os tipos de recursos poderia ser

responsável pelo desinteresse e consequente afastamento dos traficantes de drogas da

associação.

São muitos os relatos sobre a coação do tráfico às lideranças. Zaluar (2004)

afirma que os líderes que coordenam nas favelas os programas municipais, como o Gari

Comunitário, Favela-Bairro e outros mais, são obrigados a colocar traficantes na lista de

pagamento. O fato dos traficantes terem de ser consultados sobre as atividades da

associação também é comentado pela autora:

Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução (Zaluar, 2004:362).

Leeds (2003), por sua vez, afirma que o tráfico de drogas em algumas favelas já

ocupa o papel de mediação entre as favelas e os políticos, antes desempenhado pelas

associações de moradores:

(...) são as alianças entre candidatos a cargos públicos e grupos de traficantes, as quais costumam ocorrer nas comunidades onde estes últimos são particularmente poderosos. (...) É sabido que candidatos inescrupulosos passam por cima da autoridade legítima nas favelas, preferindo obter um acesso mais exclusivo através de grupos de traficantes que lhes permitam fazer campanha à vontade ou que pressionem a associação de moradores a proibir a campanha de outros candidatos(Leeds, 2003:255).

Apesar de afirmar que os traficantes não interferem no trabalho da associação

(ao mesmo tempo reconhecendo, implicitamente, sua presença), o presidente e a ex-

secretária relataram momentos em que eles interferiram em assuntos que envolviam a

favela em seu conjunto. Em um caso relatado durante o trabalho de campo, a Prefeitura,

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63

através do programa Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), da Secretaria

Municipal de Urbanismo, não estaria liberando a construção de novas casas dentro da

favela. Segundo a ex-secretária da associação, quando queriam construir, os moradores

buscavam a associação para que essa interferisse junto à Prefeitura. Entretanto, como o

presidente afirmava não dispor de autoridade para modificar decisões relativas à

ocupação do espaço, eles acabavam pedindo autorização aos traficantes. Além de

reconhecer que não tem autoridade para isso, Antônio sempre se colocou contrário ao

crescimento da favela, pois segundo ele o aumento no número de moradores acabaria

por fazer dali uma favela “igual às outras”, onde não seria possível impedir que “coisas

erradas acontecessem”. Por outro lado, ainda segundo Cristina, muitos moradores

acabavam, apesar de tudo, desistindo de construir por medo de verem as casas

derrubadas pela prefeitura. Para ela, os traficantes autorizavam a construção porque isso

não interferia nos assuntos “deles”, muito embora a licença fosse contrária à orientação

da associação. Segundo a versão dos entrevistados, a liberação dada pelos traficantes de

drogas não teria força para se contrapor à proibição da Prefeitura. Isso explicaria o

respeito à determinação oficial. Vale ressaltar que está implícita na declaração dos

entrevistados uma ridicularização dos traficantes da localidade, presente em muitos dos

depoimentos dados pelos dois informantes. Em diversos depoimentos coletados os

traficantes foram descritos como bobões, fracos, covardes, “os primeiros a se esconder

embaixo da cama quando ouvem som de tiro”, etc. Vale ressaltar, porém, que de fato

foram construídas novas casas na favela, o que demonstra não apenas que a proibição da

associação de moradores não tem efeito prático, mas também que alguns moradores

podem estar construindo por se sentirem apoiados pelos traficantes de drogas (embora

não se possa descartar que as construções possam estar sendo realizadas à revelia de

ambos os poderes locais).

Em outro momento o presidente mencionou que a Prefeitura tinha oferecido a

construção de algumas casas para os moradores, como forma de compensar a localidade

pela impossibilidade de construir a creche pedida pela associação por razões

orçamentárias. Segundo ele a construção dessas casas seria um problema, visto que

poderia pô-lo em confronto com o tráfico:

Eu já falei com a Prefeitura que se eles quiserem construir essas casas aqui eles vão ter que se responsabilizar pela distribuição delas. Porque não tem casa para todo

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64

mundo, e se aparecer alguém dizendo que mandaram [referindo-se aos traficantes] dar a casa para ele, o que eu vou fazer? Eu sei quem precisa de casa realmente, mas nem sempre é esse que recebe.

Dessa forma, apesar de afirmar a autonomia do trabalho da associação, o

presidente confirmava que frente à vontade e ao poder dos traficantes ele não tem

possibilidade de resistência. Como estratégia de ação para continuar trabalhando, este

líder buscava manter distância dos traficantes em sua função pública de representante de

uma organização. Entretanto, ele não via tal afastamento como necessário quando se

trata de contatos privados – afirmou, por exemplo, que como simples vizinho

aconselhou alguns moradores a procurarem os traficantes em uma situação em que

considerava não poder interferir enquanto presidente. Interessante notar, na citação

abaixo, que está implícito que, não fora o receio de que a situação saísse do controle, o

recurso aos traficantes poderia ser válido.

O pessoal aqui de cima veio reclamar comigo que tinha umas meninas que bebiam um pouco, ficavam meio doidonas, e tacavam pedras no telhado dos moradores. Eles queriam que eu tomasse uma atitude, mas o quê que eu posso fazer? Posso falar com elas, mas elas não vão me escutar. Então eu mandei eles irem nos caras, mas não nesses daqui, que são muito bobões, nos lá de cima. Eles vieram e deram um pau nas meninas que elas nunca mais jogaram pedra no telhado de ninguém. Mas eu não posso ir lá reclamar, porque vai que um dia morre alguém, ou acontece alguma coisa dessas? Como é que eu vou olhar para a família delas de novo?

Em outro contexto, no entanto, Antônio não propôs a resolução do conflito

através da intervenção dos traficantes de drogas: um dos motoristas do micro-ônibus

que faz a rota entre a estação de metrô do Largo do Machado e o Pereirão, através do

Parque Guinle e da Rua Pereira da Silva, exigiu que Antônio interviesse junto aos

jovens moradores da favela, que estavam se comportando de maneira inadequada no

transporte coletivo, gritando, usando palavrões e incomodando os outros usuários do

serviço, muitos deles moradores da rua e do condomínio. Antônio recomendou que o

motorista procurasse a polícia, que seria para ele a instituição responsável por conter

baderneiros. O presidente novamente evitou intervir diretamente na situação, reforçando

as limitações de seu poder enquanto liderança local, mas não recomendou a intervenção

dos traficantes.

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65

As duas situações são diferentes; enquanto uma era assunto interno da favela,

conflito entre moradores, o outro envolvia agentes externos – a companhia de transporte

público. Assim, para Antônio o reconhecimento da validade da intervenção dos

traficantes de drogas depende do contexto de cada conflito. Em ambos os casos,

contudo, o presidente buscou o distanciamento em relação aos traficantes; ainda que

internamente ao território da favela reconhecesse o poder destes e até tivesse sugerido

que ele fosse acionado quando fora necessário. Mesmo nessas condições, porém,

alguma distância teve que ser mantida (ele não se propõe a fazer diretamente a

solicitação), pois a impossibilidade de prever ou garantir o que os traficantes iriam fazer

seria um risco que ele não pretendia assumir, como presidente ou como morador antigo

e conhecido das pessoas envolvidas. Porém, o afastamento que este líder busca em

relação ao tráfico – ainda que compreensível, em função do medo, e louvável, ao tentar

evitar qualquer contaminação – muitas vezes acaba por comprometer sua atuação

enquanto presidente da associação de moradores. Ao recusar participar da divisão das

casas pela prefeitura por temer a intervenção injusta dos traficantes, por exemplo, acaba

por não cumprir um dos papéis importantes da liderança comunitária.

A paralisia de ação do presidente se reflete na associação, que estava

praticamente inativa, sem atuação concreta a não ser nos serviços de distribuição de

cartas e na cessão de sua sede para atividades do programa estadual “Jovens pela Paz”.

Nas conversas com o presidente ele confirmou o esvaziamento da associação, culpando

por isso o desinteresse do poder público pela localidade e o desinteresse dos moradores

em se organizar em prol da coletividade – segundo ele, há muita desunião entre eles,

ninguém tem interesse em melhorar as condições de vida na localidade ou pressionar o

poder público para fornecer serviços52. Assim, seria muito difícil obter do poder público

o investimento necessário para melhorar as condições daquela localidade sem a pressão

popular, visto que eles não possuem um “padrinho político”. Essa explicação para a

paralisia da associação chama a atenção por dois diferentes pontos: i) a noção de que a

atividade principal da associação é ser um canal entre os moradores e o poder público,

para demandar investimentos localizados; ii) a compreensão de que a atuação do poder

público nessas localidades se dá através da mediação de um agente político, um

52 Note-se que, se tal avaliação está correta, que ela se opõe à ideia muito difundida de que são fortes os laços primários e a solidariedade de vizinhança nas favelas pequenas.

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66

vereador, deputado ou secretário de governo que interceda em nome da “comunidade”,

em troca de votos.

A compreensão de que é necessário um “padrinho” para ter acesso aos bens

públicos é resultado da experiência de anos dos moradores de favelas (e de bairros

populares, em geral) com o poder público. No período da “política da bica d’água”

(anos 1970), por exemplo, muitos dirigentes procuravam políticos com inserção no

poder público para que investimentos fossem feitos nas localidades em troca de votos

(Pandolfi e Gryszpan, 2002: 247). Vale ressaltar, porém, que naquele momento não

existiam políticas públicas específicas para as favelas, e por isso o acesso a esses

investimentos era feito na base dos contatos pessoais entre líderes de associações e

políticos locais. Mas o fenômeno do apadrinhamento, ou do clientelismo, é corrente na

cultura política brasileira.

Para Carvalho (1997), o conceito de clientelismo perpassa toda a história política

do país, e indica a relação entre atores políticos que trocam benefícios públicos (como

empregos, isenções e benefícios fiscais, entre outros) por apoio político. De acordo com

o momento político vivido, a relação entre o governo, que controla esses benefícios, e a

população pode ser feita com ou sem a mediação de um chefe, um coronel ou um

político local.

Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida que os chefes políticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os eleitores, transferindo para estes a relação clientelística (Carvalho, 1997).

Analisando comunidades rurais no sul e no nordeste do país, e suas relações com

a política, Heredia (1996) demonstra que o voto é a “moeda de intercâmbio” com a qual

pessoas ‘comuns’ podem ter acesso a bens que se localizam fora de sua comunidade,

das relações de vizinhança ou compadrio, e que para serem alcançadas precisam da

ajuda de alguém de fora.

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67

(...) emprego na prefeitura, no correio e no hospital, como professor de uma escola, serviços de saúde, serviços jurídicos, acesso a crédito bancário, obtenção de aposentadoria e documentos pessoais, liberação de impostos. Estas são coisas que supõem ajuda de pessoas de ‘fora da comunidade’, que possuam um capital profissional ou disponham de relações sociais ou econômicas que lhes permitam mobilizar recursos para atender tais demandas (Heredia, 1996: 63).

No caso analisado, a lógica parece ser a mesma, ainda que os bens desejados

sejam coletivos: a construção de uma creche, investimentos em projetos sociais para a

juventude, entre outros. Apesar disso, é evidente que esse tipo de troca permite também

ganhos pessoais, sejam eles materiais ou simbólicos – as vantagens em questão estão

sempre associadas à posse de capital simbólico representado pela atuação política

(Bourdieu, 2004: 173). No entanto, diferentemente do que acontecia no período da

“política da bica d’água”, atualmente existem intervenções específicas do poder público

nos territórios das favelas, e nesses casos os dirigentes comunitários podem concentrar

mais poder, ao dispensar algumas mediações e a controlar diretamente os recursos

aplicados. No caso do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC53, realizado em

algumas favelas cariocas, os dirigentes de associações de moradores negociam

diretamente com o poder público estadual e federal, bem como com as empresas

privadas responsáveis pela execução das obras.

A explicação dada para esse desinteresse de atores políticos como secretários e

vereadores no Pereirão teria como motivo, segundo Antônio, o fato de a favela ter

poucos habitantes, em torno de dois mil e quinhentos, o que daria em torno de apenas

700 eleitores, de acordo com seus cálculos. Assim, os candidatos não teriam interesse

em gastar recursos para ganhar “apenas setecentos votos54” – e por isso ele, enquanto

mediador dos moradores junto aos poderes públicos, teria dificuldade em ter suas

demandas atendidas. Na troca necessária do atendimento a demandas locais por votos,

53 O PAC é uma iniciativa federal apresentada durante o segundo mandato do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. O programa prevê uma série de investimentos para aumentar o dinamismo da economia brasileira. No Rio de Janeiro, por exemplo, estão previstos investimentos em portos, aeroportos e estradas, bem como na produção de energia, saneamento e urbanização. O investimento previsto é de 165,6 bilhões de reais só no estado, sendo que R$ 89,8 bilhões até 2010. Desses, R$ 8,8 bilhões serão investidos nas áreas social e urbana – urbanização, saneamento e habitação (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, 2008). Estão previstas obras em algumas favelas, como Rocinha, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho (Zona Sul do Rio de Janeiro), em Acari e nos conjuntos de favelas do Alemão e de Manguinhos (Zona Norte), além de favelas localizadas nos bairros do Caju e Bangu. 54 O entrevistado deixa implícito que todos (ou a maioria) os moradores votariam no candidato que se tornasse o “padrinho” local, reforçando a representação das favelas e espaços populares como currais eleitorais de políticos clientelistas.

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ele não tem muito a oferecer, e assim não poderia pagar a dívida contraída com o

“padrinho” na moeda em que essas trocas são feitas: votos que garantam a eleição do

“padrinho” (Heredia, 1996). Além dos poucos votos arrecadáveis na localidade, o

presidente destaca que o fato dessa não ser uma favela com visibilidade pública

(referindo-se à exposição na mídia) faz com que o poder público ou políticos “ignorem-

nos”, por não auferirem publicidade para suas gestões ou mandatos através de atuações

ali. A invisibilidade da favela na mídia se daria pela sua “tranquilidade”, pela falta de

conflitos violentos na região (entre traficantes ou entre esses e a polícia), pois “somente

assim as favelas saem no jornal”. Outros dirigentes de associações de moradores,

ouvidos pela pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra” e que participaram dos

“coletivos de confiança” mencionados na Introdução, também apresentaram a mesma

relação de causa-efeito entre eventos violentos e ações públicas. Onde acontecem

conflitos violentos, especialmente com vítimas fatais, seriam os locais privilegiados

para investimentos públicos; até como uma forma de resposta do Estado aos

acontecimentos. A lógica de que ações sociais, executadas pelo governo ou por

entidades do terceiro setor, podem ser ferramentas contra a criminalidade – “estratégias

de prevenção ao crime” (Soares, 1996) – perpassa discursos e práticas no campo da

segurança pública (como discuto nos capítulos III e IV).

Essa falta de um “padrinho político” (pelo desinteresse dos políticos pela

localidade), assim como o desinteresse da população local em pressionar o poder

público, pode ser confirmada pela falta de investimentos no local que podem ser vistos

em outras favelas. Como dito anteriormente, quando da execução do “Mutirão Pela Paz”

na localidade, o governo do estado garantiu que diversos programas e políticas sociais

seriam executados no local. No entanto, à exceção da sede do Batalhão do BOPE e do

trailer da Policia Militar instalado na entrada da favela, nenhum outro serviço

permaneceu em funcionamento. Segundo o presidente da associação, apenas o

Programa “Jovens Pela Paz” foi executado por mais tempo.

O caso analisado aqui não é, contudo, único ou excepcional no que tange à

denúncia da ausência de investimentos públicos. Nos “coletivos de confiança”

mencionados foram coletadas reclamações de dirigentes de associações de moradores

sobre o desinteresse do poder público em investir em favelas pequenas ou de pouca

“visibilidade” (entendida como presença nos meios de comunicação e debates públicos).

De acordo com esses relatos existiria uma disputa de mercado entre favelas, e os

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69

investimentos seriam alvo de competição entre elas, por não serem homogeneamente

distribuídos entre todas as áreas pobres da cidade. A noção de uma competição entre

favelas por recursos públicos é apresentada por Machado da Silva (2002), ao comentar a

relação entre o poder público, no caso o municipal, e os representantes de diferentes

favelas a partir da implantação do Programa Favela-Bairro55. Segundo ele, tal política

pulveriza a luta coletiva por melhorias, pois cada favela passa a defender seus interesses

separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações e despolitiza as

reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-financeira na

qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).

Na avaliação de Antônio, sem um “padrinho” político e sem “mortos aparecendo

nos jornais”, o único canal possível para que o poder público atendesse as necessidades

dos moradores do Pereirão seria a pressão popular: “todo mundo invadir o gabinete do

secretário ou do prefeito sentar no chão e só sair quando ele se comprometesse a liberar

os recursos”. No entanto, os moradores não se dispunham a participar de demonstrações

como essas, e esperariam que ele fizesse tudo sozinho. Como me disse Cristina: “o povo

aqui gosta de mole”. Dessa forma, estabeleceu-se entre os moradores do Pereirão e sua

liderança local uma situação insustentável: os primeiros estavam insatisfeitos com o

presidente, e esse não encontrava caminhos para sua ação política, permanecendo inerte

por se considerar sem os meios para agir. Consequentemente, Antônio não foi reeleito, e

sua gestão foi substituída pela presidência de Jennifer, jovem nascida e criada no

Pereirão, acompanhada por outras mulheres que, como ela, são ligadas à organização

não-governamental atuante no Pereirão.

2.1.2 A gestão de Jennifer.

Após o fim do trabalho de campo, ao retornar ao Pereirão para rever Antônio, fui

surpreendida pela informação de que agora a presidente da Associação de Moradores

era Jennifer, que conheci quando acompanhei as atividades da ONG TV Morrinho (Cfr.

Capítulo III). “Nascida e criada” no Pereirão, tem “30 anos de comunidade”. Sua

55 As linhas gerais do programa, bem como de outras políticas públicas executadas em favelas, serão apresentadas a seguir, em um pequeno histórico.

Page 79: Tese_Lia_Rocha_2009

70

família não mora mais lá: perdeu pai e mãe, seus irmãos moram fora da favela, e um dos

irmãos ela “perdeu para o tráfico”. No momento acumula o trabalho na associação com

seu expediente na ONG, e como as duas organizações são vizinhas ela passa o dia se

movimentando entre as duas salas. A participação na associação não foi sua primeira

experiência no trabalho comunitário: durante seis anos participou de um programa do

Governo estadual onde coordenava trabalho com jovens da localidade. Também

participou de outras gestões da associação de moradores. Diz que sempre foi uma

liderança e gostou do trabalho comunitário, sendo uma de suas responsabilidades na

ONG facilitar que essa tenha um envolvimento maior com a localidade (como na

realização de festas coletivas, de campanhas, etc.).

Segundo Jennifer, Antônio não ligava mais para nada e mantinha a sede da

entidade fechada o dia inteiro: “a associação estava entregue à própria sorte”. Assim,

junto com outros moradores que desejavam “mudar a situação, e não apenas reclamar”,

montou uma chapa de oposição e foram eleitos “com o dobro dos votos necessários”.

Após eleita, seu desafio é reconquistar a confiança dos moradores, que estariam

decepcionados com a associação após quase vinte anos de gestões insatisfatórias. Ainda

que goste de Antônio pessoalmente, seu conhecido “desde a barriga da minha mãe”,

avaliou que ele não estava mais preocupado com o bem-estar coletivo, e era autoritário

em suas decisões, o que afastou os moradores da entidade. Desde o começo de sua

gestão tem realizado reuniões semanais, que se no começo contavam com poucos

participantes hoje reúnem mais de 120 moradores na quadra que se localiza na entrada

da favela. Conseguiu aumentar também o número de moradores que contribuem com a

taxa de manutenção da favela coletada pela associação, de cinqüenta para duzentas

contribuições – feito alcançado após reduzir o valor da taxa de cinco para dois reais56.

O discurso de Jennifer sobre sua gestão na associação contrasta com o de

Antônio na primeira impressão. Enquanto este apontava com bastante ênfase as

dificuldades que encontrava, Jennifer não se cansa de discorrer sobre as qualidades da

favela do Pereirão, sempre se referindo à “tranquilidade” e ampliando a

excepcionalidade do local para seus moradores:

56 Para aqueles que são proprietários de casas alugadas a taxa é de R$ 10,00 por cada quarto existente na casa.

Page 80: Tese_Lia_Rocha_2009

71

Aqui é uma comunidade modelo, e pode ser muito mais. Porque o nível de tráfico e de violência, graças a Deus, não é nada gritante, tendo em vista o que está acontecendo aí fora. Mas dá para a coisa ficar ainda melhor.

É importante considerar que há uma diferença entre o trabalho de campo

realizado com Antônio e com Jennifer: enquanto no primeiro caso acompanhei o

cotidiano do presidente da associação e realizei com ele uma série de entrevistas (após

termos estabelecido uma relação de mínima confiança), com Jennifer não tive tempo

para acompanhar sua rotina, e realizei apenas algumas entrevistas. A relação de

confiança construída não foi a mesma que com Antônio, evidentemente, ainda que o

fato de ter conhecido Jennifer anteriormente, em função de seu trabalho na ONG,

facilitou a aproximação inicial. Além da diferença no tempo dos dois trabalhos de

campo, entendo que em uma entrevista a “apresentação de si” é mais facilmente

incorporada e ativada que nas situações concretas do cotidiano – que só podem ser

acessadas quando este cotidiano é acompanhado pelo pesquisador, e não apenas descrito

pelo entrevistado. Apesar das ponderações metodológicas mencionadas acima, acreditei

ser possível observar diferenças na atuação dos dois dirigentes: percebi que a associação

de moradores estava mais cheia, e vi Jennifer atuando como mediadora de conflitos

entre moradores em algumas situações, papel que era pouco executado por Antônio.

Como exemplo dessa mediação de conflitos assumida por Jennifer, em uma de

minhas visitas à localidade ela me relatou que, na noite anterior, tinha chamado o

Conselho Tutelar57 do bairro para intervir junto a um casal, que tinha deixado seu bebê

de poucos meses sozinho em casa e tinham ido a um bar. Durante a conversa o pai da

criança foi à associação, reclamar com ela sobre a convocação que tinha recebido do

Conselho. Jennifer argumentou que estava apenas cumprindo seu papel de presidente da

associação, que incluía intervir em situações de “negligência paterna” (em suas

palavras) acionando o órgão público adequado. Quando o morador afirmou que, caso

fosse prejudicado em seu trabalho, iria “cobrar” por essa intervenção, Jennifer saiu da

sede da associação e gritou para que alguns jovens que estavam parados na entrada da

favela viessem em seu auxílio, pois estava sendo “ameaçada”. Um dos jovens chamados

avisou ao morador que ali era uma “comunidade”, e que ele não poderia fazer ameaças a

57 Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos na Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990, que entrou em vigor no dia 14 de outubro de 1990. Cf. site Portal do Conselheiro Tutelar.

Page 81: Tese_Lia_Rocha_2009

72

ninguém. Nesse momento acredito que ele estava fazendo referência ao fato de, em uma

“comunidade”, existirem forças que regulam os conflito – possivelmente os traficantes

de drogas. Apesar de não ter confrontado Jennifer sobre este caso, creio que ela não

acionou os jovens ao acaso; ela parecia estar ciente de que aqueles rapazes seriam

identificados pelo morador como representantes de uma “força” maior. A manobra

surtiu efeito, pois o morador desculpou-se pela forma “exagerada” pela qual tinha

reagido e disse que estava apenas preocupado por ter que faltar ao trabalho para ir a

audiência marcada pelo conselheiro tutelar. Em seguida foi embora. Além deste caso

específico, as reuniões mensais da associação, das quais não pude participar também por

motivos de tempo, já representam uma mudança em relação à maneira como Antonio

tomava as decisões frente à associação, sem consultar ninguém.

É nos discursos, no entanto, que a diferença entre os dois ficou mais evidente. A

concepção de que é necessário um “padrinho político” para a comunidade, repetida em

entrevistas por Antonio, é rejeitada por Jennifer. Segundo ela, “Não gosto disso, porque

o padrinho de hoje vai te sugar amanhã. Eu não quero padrinho”. Ao relatar como se

passaram no Pereirão as eleições municipais recém terminadas, disse que não escolheu

candidato, não indicou ninguém, e que todos os candidatos que quiseram realizar

campanha na favela foram recebidos – ainda que na imprensa só tenha sido mencionada

a visita do candidato a prefeito vencedor e que na favela, um mês após a eleição, eu só

tenha visto material de campanha de um único candidato a vereador, do mesmo partido

do prefeito (mas que não foi eleito). Jennifer afirmou ainda que mais importante que

padrinhos é o dirigente “(...) saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve

ir”. Assim, demonstra estar mais ciente que Antônio de uma das competências mais

acionadas pelos dirigentes de associações de moradores: a capacidade se mover na

burocracia e de acionar as pessoas-chave na estrutura. Além disso, Jennifer fala

constantemente na necessidade de fazer “parcerias” com o poder público, empresas e

pessoas físicas, demonstrando compreender que as relações entre poder público e

favelas passam atualmente por esse conceito, e não pelas antigas dinâmicas clientelistas,

como acreditava Antônio. Todavia, a efetividade do discurso de Jennifer, em termos de

conseguir tais “parcerias” em forma de investimentos, não pôde ser mensurada dentro

do tempo disponível para a realização desta pesquisa.

Assim, o dinamismo de Jennifer faz pensar se a paralisia de Antônio era apenas

receio das arbitrariedades dos traficantes de drogas ou se as críticas feitas pela nova

Page 82: Tese_Lia_Rocha_2009

73

presidente procedem, no sentido do desinteresse dele pelas questões coletivas do

Pereirão. Seria necessário acompanhar o trabalho de Jennifer para avaliar se uma

atuação mais ativa à frente da associação de moradores será alvo dos traficantes de

drogas ou não, e quais as estratégias que Jennifer escolherá nesse caso. Em relação à sua

capacidade de trabalho e de realizar uma gestão eficiente do ponto de vista dos

moradores da favela, também seria preciso mais trabalho de campo. No entanto,

percebe-se que os moradores têm começado a se aproximar mais da associação, ainda

que tal movimento não represente uma mobilização dos moradores em torno de suas

questões coletivas. Para Jennifer, o afastamento dos moradores também representa um

problema na condução das reivindicações feitas.

A saída é reivindicar, saber reivindicar. Com quem você deve falar, aonde deve ir. Se mover. Mas não vai ser o presidente sozinho, vai ser a comunidade que assina embaixo e vai dizer junto: nós estamos pedindo há tanto tempo e não temos nada. Isso vai estar ajudando. Porque se a associação não trabalhar direito, não fizer a coisa certa, nem mil padrinhos vão resolver.

Diferentemente de Antonio, Jennifer não apresentou esse afastamento como um

desinteresse, e sim como resultado de mal sucedidas gestões da associação. Na seção

seguinte discuto o conceito de “tempos da política” (Heredia, 1996) e como através das

décadas passadas as organizações de moradores de favelas passaram por momentos de

maior mobilização ou de maior esvaziamento, de acordo com as condições impostas

pelas dinâmicas políticas de cada período histórico.

2.2 “Tempos da política” nas favelas cariocas.

Apesar do afastamento dos moradores e conseqüente esvaziamento da

associação ser considerado grave pelos dirigentes, não é uma situação única nem

inédita. Em muitas outras associações a avaliação por parte dos dirigentes é parecida.

No entanto, eles comparam a situação atual a um passado onde os moradores estariam

engajados na vida política das suas localidades, ainda que esse passado seja identificado

Page 83: Tese_Lia_Rocha_2009

74

em momentos históricos diferentes, de acordo com cada interlocutor. Podemos

observar, no entanto, que em alguns momentos na história das favelas no Rio de Janeiro

realmente houve uma mobilização maior por parte dos moradores, sobretudo quando a

permanência desses nos seus territórios de moradia estava ameaçada. Também houve

grande mobilização em algumas favelas em torno do tema da urbanização.

O trabalho de Beatriz Heredia (1996), mais uma vez, auxilia na compreensão

desses movimentos de oscilação entre períodos de maior e menor mobilização dos

moradores de favelas em torno de suas associações locais. Segundo a autora, a política

não está presente cotidianamente nas comunidades camponesas que estuda, mas em

momentos específicos ela se torna parte importante da vida coletiva:

Nas comunidades camponesas, a política não é um tema que faça parte do cotidiano. No entanto, isso se altera no período eleitoral, quando a política está presente tanto através da mídia, especialmente rádio e televisão, quanto pela presença física dos políticos e de seus símbolos – bandeiras, cartazes e músicas. Essa presença da política em tempos de eleição permite-nos dizer, sem temor de equívocos, que nesses momentos ela faz parte de seu cotidiano. É essa presença maciça da política, e a maneira como ela se dá, que faz referirmo-nos ao período eleitoral nas comunidades camponesas como sendo o tempo da política (Heredia, 1996: 57).

Assim, ainda que a autora se refira às comunidades camponesas e ao momento

das eleições, podemos traçar paralelos com os diferentes momentos da história das

favelas – a cada momento de ameaça à existência das favelas, ou de perspectiva de

melhorias, houve ações de mobilização dos moradores e o fortalecimento da ação

coletiva.

O surgimento das primeiras associações de moradores de favelas, nos anos 1940,

acontece em um contexto de reação dos favelados às propostas de remoção das favelas

para lugares distantes do centro da cidade. Já no início da década de 1960, para tentar

conter o crescimento das favelas, o governo municipal estimulou a formação de diversas

associações, que seriam agências estatais dentro das favelas para “auxiliar o governo na

implantação de serviços básicos e na manutenção da ordem interna. (...) Não foi por

acaso que, num curto espaço de tempo, entre 1961 e 1962, a Serfha, sob direção do

sociólogo Artur Rios, criou mais de 75 associações, entre as quais a União Pró-

Melhoramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR)” (Pandolfi e Grynszpan, 2002:

Page 84: Tese_Lia_Rocha_2009

75

243). A política do governo estadual, nesse período, oscilava entre a remoção e a

urbanização das favelas, mas o golpe militar de 1964 possibilitou o ambiente para que

as propostas remocionistas se fortalecessem, reprimindo de forma violenta qualquer tipo

de ação coletiva, intervindo e enfraquecendo o movimento das associações de

moradores. As associações passaram a atuar como representantes do governo dentro das

favelas, gerenciando os serviços públicos e evitando o crescimento das favelas.

Algumas associações, inclusive, passaram a defender as remoções (Pandolfi e

Grynszpan, 2002: 245). Nessa época as relações entre poder público e moradores de

favelas já se davam na dinâmica da troca de votos por recursos de fonte externa, o que

garantia às lideranças locais uma posição elevada dentro da hierarquia social e

econômica da favela, formando junto com pequenos capitalistas a “burguesia da

favela”, como definiu Machado da Silva (1967). O autor ressaltou ainda que a

participação da maioria dos moradores era muito pequena ou inexistente, e somente

aqueles que pertenciam ao estrato social mais elevado se envolviam nas atividades

políticas. O controle dos recursos internos disponíveis garantia a permanência do

dirigente na associação e impedia o acesso coletivo aos recursos mencionados (1967:

38-9).

No final dos anos 1970, com o processo de redemocratização do país e o (re)

surgimento de movimentos sociais, o ritmo das remoções começou a diminuir, tanto

pelos problemas relacionados aos custos das obras dos conjuntos habitacionais e ao

pouco retorno dado pelos financiamentos, quanto pela pressão do movimento de

favelados. Nesse momento é a bandeira da urbanização que impulsiona a organização

coletiva, mas a inexistência de políticas públicas específicas para esses territórios faz

com que as associações de moradores passem a se relacionar com os políticos de forma

clientelista (Burgos, 2003: 39), trocando benefícios para as localidades por votos. O

governo de Leonel Brizola (que durou de 1983 a 1987) representou uma mudança na

relação entre poder público e favelas, especialmente por ele ter sido o primeiro

governador do Estado do Rio de Janeiro eleito de forma direta após a fusão entre os

Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 197558. Segundo Burgos (2003: 41)

Brizola foi eleito com o voto dos “excluídos” – moradores de favelas e conjuntos

habitacionais cariocas. Para o autor a motivação dos que votaram em Brizola era o

58 Após a fusão, Floriano Peixoto Faria Lima foi nomeado governador (entre 1975 e 1979). Em seguida, Chagas Freitas foi eleito indiretamente, e governou entre 1979 e 1983.

Page 85: Tese_Lia_Rocha_2009

76

“ressentimento” em relação à forma como essa camada foi tratada anteriormente pelos

governos. Assinalando o fim das políticas de remoção, a urbanização de favelas

começou a ser implantada, e o governo do estado passou a investir em sistema de esgoto

e água e na coleta de lixo nessas localidades, bem como em tentar modificar a forma

como a polícia atuava dentro das favelas (Burgos, 2003: 42). Dentro dessa nova

perspectiva trazida por Brizola, as lideranças tornaram-se interlocutoras frequentes do

governo, continuando a assumir os papéis de agência estatal que lhes tinham sido

atribuídos anteriormente. Assim, as associações negociavam suas demandas diretamente

com o governo, sem a intermediação dos políticos como no período da “política da bica

d’água”. Foram atribuídas às associações tarefas públicas em acordos firmados com

agências estatais, que incluíam a contratação de mão-de-obra para trabalhar nas obras e

na manutenção e garantiam à associação de moradores uma taxa de administração de

5%, segundo informação coletada por Burgos e citada por Pandolfi e Grynszpan (2002:

249). Os autores ressaltam que essa forma de relação entre associações e Governo

fortaleceu a atuação de muitas associações, já que estar na associação significava ter

acesso a recursos como empregos, controle dos serviços, etc., o que acarretou inclusive

a contratação de muitas lideranças como funcionárias do governo, no posto de agentes

comunitários.

Assim, Brizola escolheu a interlocução direta com as associações de moradores

sem a mediação de políticos, incentivando que essas se aproximassem mais do poder

público em suas demandas, que participassem mais da administração pública presente

em suas localidades, entre outros. Tal aproximação com o poder público seria o que

Doimo (1995) denominou “integração ao sistema”, em seu estudo sobre os movimentos

sociais urbanos a partir da década de 1970. Segundo a autora, nesse período os

movimentos sociais optam por uma abordagem mais “propositiva” em suas relações

com o estado, em detrimento de um posicionamento contestador e reivindicatório.

Pandolfi e Grynszpan (2002: 249) ressaltam que essa forma de articulação entre

associações e Governo incentivou a adesão de moradores às organizações, já que estar

na associação significava ter acesso a recursos como empregos, controle dos serviços,

etc., o que acarretou inclusive a contratação de muitas lideranças como funcionárias do

governo, no posto de agentes comunitários. No entanto, tal posicionamento mais

conciliador foi identificado por parte do movimento de base como uma “cooptação”

Page 86: Tese_Lia_Rocha_2009

77

dessas lideranças pelo poder público, e a transformação das entidades em atores da

política institucional.

A relação de proximidade entre associações e Governo permaneceu nos anos

1990, agora institucionalizada como “parcerias”, e inclusive teve sua atuação aumentada

nesse campo na gestão municipal de César Maia, especialmente em função do Programa

Favela-Bairro, iniciado em 1994. Dentro do Programa Favela-Bairro as associações são

gerentes de programas financiados com recursos públicos, e concentram cada vez mais

poder através da contratação de funcionários e serviços. Como dito anteriormente, o

Programa Favela-Bairro pulveriza a luta por melhorias, pois cada favela passa a

defender seus interesses separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações

e despolitiza as reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-

financeira na qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).

No momento atual, as obras do PAC nas favelas cariocas parecem reproduzir o

mesmo tipo de relação entre associações e poder público, mas agora incluindo também

na rede o poder federal. O formato das ações continua sendo a ação localizada,

privilegiando algumas favelas em detrimento de outras. As associações de moradores

continuam atuando como “parceiras”, mas participando como executoras das políticas, e

não como copartícipes de sua elaboração. Ao mesmo tempo, a política de segurança

pública permanece como monopólio da Secretaria de Segurança Pública do Estado, e as

denúncias de que as associações de moradores atuam como mediadoras do poder

público junto aos traficantes de drogas (quando não são acusadas de cúmplices destes)

são cada vez mais frequentes na mídia59.

Este pequeno histórico das relações entre associações de moradores e poder

publicou permite questionar a afirmativa, feita por Antônio e por outros dirigentes de

associações ouvidos, de que não há “interesse” por parte dos moradores de favelas na

luta por melhorias em suas condições de vida. A forma como o poder público e os

favelados se relacionam politicamente é que oscila entre momentos de maior

mobilização (quando não há tanta repressão à organização e a participação coletiva é

59 Cf. Elos Perdidos. Entre o Palácio do Planalto e os traficantes, as associações de moradores de favelas (Revista Piauí, julho de 2008); Quem decide o voto é o crime. Traficantes e milicianos do Rioresolveram entrar para a política. Seus métodos são a violência, a intimidação e a criação de currais eleitorais (Revista Época, agosto de 2008); No curral, e com ficha suja. ‘Candidato único’ da Rocinha responde a 14 ações por roubo, furto e estelionato (O Globo, 26 de julho de 2008).

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78

incentivada) e outros de apresentação das demandas coletivas através dos canais

institucionais. Na atual configuração das relações entre esses atores, as competências e

habilidades que devem ser acionadas e que permitem o sucesso nas demandas não são

ligadas ao carisma interno ou à força de mobilização coletiva, e sim às capacidades de

articulação política e de mediação entre os interesses internos e externos. Mais

“ajustada60” aos novos tempos, Jennifer substituiu Antônio propondo cumprir os papéis

de mediação que ele se recusou a fazer, seja com as forças externas seja com as forças

locais – entre elas possivelmente os traficantes de drogas (como no caso dos jovens que

foram chamados para intervir quando um morador teria ameaçado Jennifer).

As mediações que as associações têm que fazer ao assumirem o papel de

representante dos moradores é um tema que preocupa e mobiliza seus dirigentes. Ao

mesmo tempo em que consideram como um importante recurso a capacidade de fazer

todas essas articulações, os dirigentes sabem que esses contatos são perigosos e

ameaçam tanto sua imagem de lideranças comprometidas e honestas quanto sua

segurança pessoal. Ao estabelecerem contatos com o poder público, as “parcerias”,

correm o risco de serem acusados de favorecimento pessoal. E ao aceitarem o papel de

mediadores junto aos traficantes de drogas estão cientes do risco de serem rotulados

como cúmplices destes, além do perigo de atraírem para si as ameaças recorrentes da

convivência com essa força violenta. Na próxima seção, analiso o discurso de outros

dirigentes de associação de moradores de favelas, de diferentes partes da cidade,

tamanhos e contextos internos, e discuto como eles trataram esses temas,

particularmente a relação com os agentes da criminalidade violenta que se instalou nas

favelas ainda na década de 1980, e se tornou um problema de grandes proporções a

partir dos anos 1990.

2.3. Política e criminalidade violenta nas favelas do Rio de Janeiro.

Nesta seção irei analisar as representações sobre política e criminalidade

violenta de alguns dirigentes e ex-dirigentes de associações de moradores de favelas do

Rio de Janeiro. Esses relatos foram coletados no âmbito da Pesquisa: “Rompendo o 60 Para o conceito de ajustamento (ou justesse), ver Boltanski e Thévenot (1991: 59 e seguintes) e nota 18.

Page 88: Tese_Lia_Rocha_2009

79

cerceamento da palavra: A voz dos favelados em busca do reconhecimento”, como

mencionado na Introdução desta tese. Dos 12 participantes presentes ao coletivo de

confiança, quatro estavam naquele momento atuando como presidentes de associações

de moradores; dois eram vice-presidentes, um era dirigente de federação de associações,

dois eram ex-dirigentes (e no momento atuavam em ONGs em suas favelas), um era

diretor de associação, um não declarou seu cargo e outro não tinha função na associação

e trabalhava como agente comunitário contratado pela Prefeitura da Cidade do Rio de

Janeiro. Percebe-se pelo grupo formado uma amostra da diversidade possível de

organização coletiva dentro das favelas, particularmente no que diz respeito à

participação de ex-dirigentes de associações de moradores em organizações não-

governamentais, atuando dentro das favelas em que dirigiram anteriormente associações

de moradores. No momento em que esta tese é escrita, quase três anos após a realização

do encontro em questão, a maioria dos participantes não se encontra mais à frente de

associações de moradores, e um deles foi assassinado enquanto ocupava o cargo de

presidente.

A relação entre os grupos armados de traficantes e as associações de moradores

deve ser pensada dentro do contexto da convivência desses grupos com os moradores

em geral, relação essa que é marcada pela submissão a uma forma de vida que não

reconhece outra forma de orientação da ação que não a força (Machado da Silva, 1995,

2002, 2004a, 2004b, 2008a). Assim, como os outros moradores de favela, os dirigentes

de associações de moradores estão submetidos a uma ordem violenta, na qual não existe

“acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada” (Machado da

Silva, 2004b: 40). A condição de liderança local os coloca em evidência, o que pode

representar uma proteção, por serem “pessoas públicas”, mas pode também representar

um risco se eles forem considerados um impedimento para a ação dos traficantes de

drogas. Como vimos anteriormente no caso do Pereirão, os dirigentes tentam dar

continuidade ao trabalho que desenvolvem como representantes dos moradores, mas são

cotidianamente confrontados com a presença dessa força no território. No entanto, as

estratégias escolhidas para evitar o conflito com os traficantes e as consequentes

retaliações podem ser diferentes, como mostramos ao comparar as duas gestões à frente

da associação de moradores local. Também os dirigentes e ex-dirigentes que

participaram do coletivo de confiança apresentaram diferentes estratégias para resistir,

sobreviver e agir em uma situação de convivência forçada, como veremos a seguir.

Page 89: Tese_Lia_Rocha_2009

80

Para algumas das lideranças entrevistadas os traficantes são descritos como

moradores comuns, alguns deles tendo crescido ali e mantendo uma convivência

anterior à entrada nas quadrilhas. Como diz o participante do coletivo de confiança

abaixo:

Agora, esse papo de jogar bola com o cara, a gente com o pessoal {do tráfico}, a gente bebe até cerveja, mas cada um na sua. Eles sabem que sua vida é essa, a dele é aquela. Você não vai ignorar o cara, é a realidade. O cara hoje é vagabundo, ontem, ele foi, é filho do seu amigo. Eu vou ignorá-lo por causa disso? Agora, ele tem que me respeitar como morador, eu o respeito como vagabundo.

No fragmento acima, como em outros ao longo do coletivo de confiança, os

participantes afirmam que, por serem moradores também, os traficantes devem ser

tratados como tal, ou seja, não se pode ignorar seu pertencimento àquele grupo. O que a

princípio parece uma ambiguidade no tratamento dado aos traficantes de drogas pelos

dirigentes e pelos moradores pode ser um “recurso social/simbólico” acionado para

tentar lidar com o risco representado por esses agentes de uma ordem violenta (Leite,

2008: 128). O participante respeita o “vagabundo” porque reconhece “a realidade” de

sua presença e de sua força; além disso, “jogar bola com o cara” pode ser utilizado em

outra situação como estratégia para se proteger, ou a pessoas próximas, de alguma

violência. Nesse sentido, a proximidade se apresenta enquanto um “recurso ativo”, a ser

acionado em momentos de risco (Leite, 2008: 130).

Para além de sua dimensão enquanto recurso, no fragmento acima o dirigente

está em um momento informal, o que é diferente de estar na posição de dirigente da

associação. Nesse caso, é possível aproximar-se do traficante, embora deixando claras

as diferenças morais e existenciais: o “respeito” é o mesmo, mas os mundos não são. O

encontro entre os dois mundos, tornado possível pelo entrelaçamento anterior das

trajetórias pessoais, ocorre como se fosse uma trégua – uma suspensão, mais que

apagamento – nas insuperáveis diferenças atuais. É essa suspensão que permite a

continuação da confiança na durabilidade das rotinas, ou seja, que dá ao morador a

sensação (não racional, segundo Giddens, 1991) de que controla alguns elementos de

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81

sua vida cotidiana e dos riscos que enfrenta diariamente: ver o traficante também como

“filho do amigo” ou “amigo de infância” permite ao morador (seja ele dirigente ou não)

vislumbrar uma estratégia para reduzir os danos potencialmente causados pelos contatos

entre moradores e traficantes.

Neste sentido, o trabalho dos moradores para se diferenciarem dos traficantes

precisa ser diuturno, especialmente quando o morador pretende desempenhar o papel de

liderança política, ou seja, um status público. Outra participante do mesmo coletivo de

confiança reforça a ideia de que os traficantes são moradores também, e assim merecem

a atenção das lideranças, mas ao mesmo tempo delimita o afastamento necessário entre

os bandidos e a organização comunitária:

Eles são moradores iguais a qualquer um. Procurou pra saber, é isso, isso. E isso, isso, aquilo. Não procurou, estou na minha também. Então o negócio é meio termo. Não tem também que ficar dando satisfação de tudo, e nem como ele colocou, ficar aceitando as coisas. Aceitou, é um favor, {o traficante} vai querer guardar armas, vai querer guardar drogas, vai querer se esconder da polícia. Não tem esse tipo de jogada. E deixar bem claro, a sede da associação é dos moradores, entendeu? A sede não é do tráfico, é dos moradores.

Percebe-se no fragmento acima que a associação de moradores, enquanto

instituição, precisa afastar-se dos traficantes, pelo risco destes exigirem da associação

acobertamento as suas práticas. No entanto, sabe-se que esse afastamento é muito

difícil, porque os traficantes podem forçar uma aproximação. Da mesma forma que o

resto dos moradores, as lideranças podem ser obrigadas, através de ameaças à

integridade física, a colaborar com os traficantes. Segundo o depoimento acima, negar

essa colaboração fica ainda mais difícil quando se aceita ‘coisas’ dos traficantes –

mesmo que não sejam benefícios pessoais como, por exemplo, a oferta de donativos

para a realização de festas comunitárias.

Em outro depoimento o participante afirma que a liderança que atua de forma

mais efetiva dentro da sua localidade não consegue impedir essa aproximação com os

traficantes. E essa aproximação é tanta, segundo o relato, que a pessoa corre risco de

vida na eventualidade de a favela vir a ser ocupada por uma quadrilha rival:

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82

(...) se o comando é com ele, ele que é o cara no morro, se eu realmente... eu estou ali, fazendo um trabalho, fortalecendo, e eu estou sempre em contato com eles. Se entrar esse grupo aqui, irmão, pode ralar peito (...) Vai morrer. É onde muitos morrem. Mas muitos porque se envolvem. Não é que eles não queiram se envolver não, o grupo está ali, os caras, como ele falou: ‘Criado junto’. O pessoal ali, eles procuram, você não tem como (...).

Observa-se que mesmo quando os grupos de traficantes não intervêm

diretamente no trabalho das lideranças comunitárias eles podem diminuir a autoridade e

a legitimidade da representação dessas lideranças, por tornarem evidente para o

conjunto dos moradores que, naquele território, têm mais força que os dirigentes. No

caso do Pereirão, tal descrédito da autoridade da associação de moradores foi observado

no caso da autorização para a construção na favela, que teria sido dada pelos traficantes

contra a orientação do dirigente local. Ou ainda quando Antônio afirmou que não

participaria da partilha das casas que seriam construídas pela prefeitura, para não ser

contradito pelos traficantes. Segundo Zaluar (2004:362), as lideranças comunitárias

perderam poder e respeito para os ‘donos do morro’, e não possuem mais controle sobre

o que acontece dentro da sua ‘comunidade’. Nos relatos recolhidos nenhum entrevistado

reconheceu receber ordens de traficantes (mesmo porque não é fácil admiti-lo, para

quem se pretende líder), mas todos tematizam as limitações que a proximidade com o

tráfico trazem para as atividades priorizadas.

A pessoa que filma nos procura. Você não pode... Infelizmente você é presidente, você não é dono da comunidade. (...) O dono da comunidade é o tráfico. Não tem como fugir disso, se alguém falar que é diferente, não é. Porque não é mesmo.

Em função desse domínio do local pelos traficantes, muitos entrevistados

afirmaram não poder impedir a atuação desses grupos junto à associação. No

depoimento abaixo o participante do coletivo de confiança argumenta que muitas vezes

não é possível dizer não:

Participante: “(...) Ele falou ali: Ah, não vou receber nada de ninguém! Concordo plenamente com ele, mas muitas vezes o cara chega aqui... ele vê que você vai fazer um evento. Ele chega pra você: E aí meu cumpadi! E olha que hoje não tem mais dinheiro não, hein? Hoje eles não têm dinheiro. Hoje eles estão passando fome (...).

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83

Mas mesmo assim ainda chega um ali, com aquela boa vontade dele, querendo ajudar o grupo: (...) Aí o cidadão: Não irmão, está tranquilo, não esquenta não, pode deixar que a gente vai... Não cumpadi, eu quero ajudar. Aí chega lá, digamos com duzentos reais, tudo bem. Você não pode chegar pra ele e dizer: "Não, não quero o seu dinheiro não”.

Moderador: “Não pode?”.

Participante: “Não vou dizer isso pra ele. É a mesma coisa que eu estar desfazendo dele. Tudo bem, ele pode até colaborar com duzentos reais, mas eu tenho que mostrar pra ele que o que eu fiz custou dois mil. Se não tivesse aqueles duzentos reais ali, ia acontecer do mesmo jeito, está entendendo? Agora, aquilo ali, você pode até receber, mas isso hoje... não tem mais dinheiro também não, que eles não têm mais dinheiro não”.

Percebe-se que as lideranças tentam criar limites para a aproximação dos

traficantes de drogas, diferenciando o que é patrocínio e o que é apenas uma

“colaboração”. Segundo o relato acima, aceitar dinheiro do tráfico é, além de inevitável,

não-problemático – desde que não seja uma proporção muito alta da quantia necessária

à realização da atividade. Fica claro também que a aceitação dessa ajuda por parte do

tráfico é tácita, uma estratégia para evitar um conflito inglório com os portadores da

força. A necessidade de não “desfazer” do traficante demonstra implicitamente o risco

da recusa ao contato ou à aproximação, representada pela rejeição da oferta de

colaboração financeira.

Existiria, assim, um campo de estratégias de ação possíveis, que vão desde

aceitar uma simples contribuição em dinheiro, como mencionado acima, até pedir

autorização para realizar atividades (próprias ou de agentes externos) na favela, como

também foi indicado em depoimento anterior. No entanto, todos os participantes do

coletivo de confiança confirmaram que não existe a possibilidade de evitar

completamente a relação com os traficantes, visto que sua presença no território das

favelas é um fato. Como será essa relação depende de diversos fatores, principalmente

da forma como os traficantes se colocam frente à favela que dominam e, por extensão, à

sua associação. No relato abaixo, o participante desenha uma linha de afastamento

possível em relação ao tráfico:

Moderador: “Eu pergunto o seguinte: É possível hoje não negociar?”.

Page 93: Tese_Lia_Rocha_2009

84

Participante: “Não. Tem que negociar. Tem que negociar desde o momento que você seja procurado. (...) Tem que negociar. Se não negociar, você não vai trabalhar lá, se não negociar, você vai morrer”.

(...).

Moderador: “E o que é negociar?”.

Participante: “Negociar é... Você não precisa ficar procurando. A partir do momento que eles vão te procurar, aí sim”.

Assim, a diferença está em tomar ou não iniciativa. Ao afirmar que quando

procurados os líderes têm que negociar, o entrevistado está apenas reconhecendo uma

situação concreta de extremo desequilíbrio de força. Ele reconhece o risco de se negar a

conversar, reforçando a noção de que o tráfico se coloca como um poder que submete

todos os moradores, mesmo aqueles que dispõem de mais recursos, como as lideranças.

Ainda que no “coletivo de confiança” os participantes tenham dado maior destaque à

própria capacidade de se conduzirem autonomamente frente aos traficantes, inclusive

porque estavam envolvidos em um processo de apresentação de si mesmos (visando

garantir que seriam vistos como lideranças legítimas e distantes dos traficantes), são

muitos os relatos sobre a coação do tráfico aos dirigentes de associação de moradores.

Zaluar (2004) afirma que os responsáveis por coordenar nas favelas os programas

municipais, como o Gari Comunitário, o Programa Favela-Bairro e outros mais, são

obrigados a colocar membros das quadrilhas na lista de pagamento. O fato dos

traficantes terem de ser consultados sobre as atividades da associação também é

comentado pela autora:

Tudo se passa como se os traficantes fossem atores políticos que não podem deixar de ser consultados para a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão deles, sob pena de sofrer represálias que inviabilizariam essa execução. (Zaluar, 2004:362).

A gravidade da situação é também ressaltada por Burgos (2003), que compara a

opressão do tráfico sobre os favelados com a repressão que esses sofriam na época da

ditadura militar:

Page 94: Tese_Lia_Rocha_2009

85

Os constrangimentos que esses poderes paralelos impõem às organizações políticas locais, inclusive com o assassinato de muitas de suas lideranças, dão prosseguimento ao terror policialesco antes imposto pelo Estado {durante o regime militar}. Inibe-se, com isso, a adesão dos excluídos à institucionalidade democrática, o que representa um desafio à própria democracia. (Burgos, 2003: 44).

Sabe-se que tais submissões existem, mas para os dirigentes, relatar episódios

relativos a esses constrangimentos é reconhecer a perda de legitimidade de sua função

de liderança local, preocupação que os moradores que não possuem esse papel de

representação não demonstram; e por isso junto a eles foram coletados testemunhos tão

contundentes dessas submissões e constrangimentos (Cfr. Machado da Silva, 2008c).

Assim, no coletivo de confiança aqui analisado não foram recolhidos relatos em que

líderes obedeciam a ordens de traficantes, o mesmo acontecendo na realização do meu

trabalho de campo no Pereirão. Também Antônio e Jennifer se preocupavam com a

apresentação que faziam de si mesmos. Mas em um depoimento recolhido no coletivo

de confiança é possível vislumbrar alguns dos constrangimentos existentes:

Eu mandei um gari comunitário embora, que ele falou assim: ‘Ó, mais tarde vou desenrolar com o cara lá’. Eu agarrei no braço dele, segurei até chegar a hora do cara descer, eu falei: ‘Ó, mandei embora, ele falou que ia vir aqui conversar com você’. ‘Ah é? Mas qual foi?’. ‘Porque ele faltou ontem, faltou hoje, ainda inventa de mandar atestado aí, e eu mandei ele embora porque está mesmo [incompreensível] sua função, sua carga horária’. ‘Presidente, você é que sabe!’. ‘Então beleza!’.

Nessa situação, o participante do coletivo de confiança afirmou sua autonomia

em relação ao grupo de traficantes de sua favela, pois teve sua decisão respeitada, mas

reconheceu que não pôde furtar-se de se explicar ao chefe do tráfico de drogas local.

Fica evidente o risco, pois caso seus argumentos não fossem suficientes, ou ele não

tivesse admitido a participação do traficante na resolução do caso, o desfecho poderia

ter sido outro. Assim, mesmo quando não há o confronto ou a cumplicidade com

traficantes, as lideranças comunitárias não podem desconsiderar a presença deles, ou a

força que possuem.

A partir dos relatos e da distinção entre o que é estar próximo e que é se

distanciar dos traficantes, percebe-se que é mais fácil manter autonomia de ação (ainda

Page 95: Tese_Lia_Rocha_2009

86

que limitada e controlada), e também a própria segurança pessoal e da instituição,

quando o tráfico não tem interesse em interferir no trabalho da associação de moradores,

como ficou evidente no caso do Pereirão. Em muitos relatos os entrevistados afirmam

que os traficantes têm interesse exclusivo em manter seu ponto de venda, e desde que

não sejam perturbados em sua atividade não se interessam pelo que acontece na

associação. No entanto, eles sabem que a associação de moradores é uma fonte de

diversos recursos, políticos e financeiros, e assim podem a qualquer momento desejar

usufruí-los. No relato abaixo, por exemplo, os traficantes voltaram sua atenção para a

associação em busca de dinheiro:

Aconteceu um episódio muito chato lá [Nome da favela]. Pra ser sincero, depois da gestão do Garotinho, não sei se todos concordam (...), o Garotinho inibiu a entrada do tráfico61 na comunidade. Só que quando ele inibiu a entrada do tráfico, ele afrouxou a parte de baixo. Aí desceu o morro, pra assaltar a redondeza (...). Nós percebemos que eles [os traficantes] começaram a perseguir um pouquinho mais as associações de moradores. Que a renda estava menor pra entrar, eles têm o padrão de vida deles. A renda por ser um pouco menor, ele começou a pegar no pé da associação.

No relato a seguir o entrevistado afirma que é possível manter distância em

relação aos traficantes, ainda que ela seja parcial e limitada, sempre condicionada pela

potencial intervenção dos traficantes. Como outros relatos já tinham apontado, algumas

lideranças encontraram uma possibilidade de manter-se afastadas evitando tomar a

iniciativa de procurar os traficantes para pedir ajuda, e especialmente não aceitando

favores e contribuições do tráfico:

(...), nossa creche estava desativada há oito meses, ele (representante do tráfico) chamou o meu tesoureiro e falou, ofereceu uma verba pra que nós pudéssemos abrir nossa creche novamente. O meu tesoureiro, sem saber, trouxe pra assembléia e discutimos. Falamos o seguinte: “Só queremos ter espaço pra trabalhar. Não queremos nada desse pessoal! Se der pra pintar a parede hoje, pinta, se não dá, a gente pinta amanhã. Nós não queremos...”. Se você aceitar um real, mil reais ou cem reais, está devendo um favor. E sempre ele vai te cobrar. (...) Quer dizer, não aceitando desde o início, conseguimos trabalhar quase que tranquilo.

61 Mais à frente no relato o participante afirma que o Garotinho impediu a entrada de drogas nos morros, não conseguiu eliminar o tráfico.

Page 96: Tese_Lia_Rocha_2009

87

Dessa forma, novamente os dirigentes presentes reforçam que há alternativas de

ação que permitem se distanciar minimamente da submissão imposta pelos traficantes.

Mas as lideranças comunitárias sabem da dificuldade de manter distanciamento dos

traficantes, ainda mais em situações que apresentam real risco de vida. Nos casos em

que os traficantes tomam a iniciativa de procurar as lideranças locais, essas têm que dar

satisfações do seu trabalho (e, pode-se imaginar – embora nenhum relato o confirme –

até mesmo obedecer a uma eventual ordem dos criminosos). Mesmo assim, muitos

relatos apontam tentativas de manter o afastamento possível:

(...) E na hora de eu assumir a associação de moradores, eu tive que realmente dar satisfação e prestar conhecimento do que seria o meu mandato. Então tive uma conversa, mostrei minha proposta, e eles falaram: ‘Ó, você pode trabalhar tranquilo, desde o momento que você não atrapalhe a gente!’. Eu mostrei também o meu parâmetro, eu acho que eles têm o trabalho deles, a gente não pode fugir disso hoje. Eu acho que é uma realidade que a gente vive. E eu deixei bem afastado, esse sentido de estar realmente participando dentro da questão de financiar alguma coisa e, eu pegar esse dinheiro. E hoje é uma batalha grande. Eu estou há um ano e pouco. Essa pessoa já até faleceu, que me deu um respaldo. Toda hora se muda e você não sabe qual vai ser a questão que vem agora (...).

No relato acima fica claro que o projeto de gestão da associação de moradores

precisou ser aceito pelo tráfico, o que pode representar uma limitação nas ações que a

direção pretende executar. Assim, afirma-se que é possível fazer trabalho comunitário

dentro da favela, desde que não se interfira nos interesses do tráfico, condicionando os

interesses dos moradores de favela aos dos traficantes. Não há afastamento total do

tráfico, apenas o que poderia ser denominado de convivência entre diferentes, de um

lado com a suspensão da hostilidade (qualificando de “trabalho” a atividade de

traficantes armados) e de outro com o desinteresse (“… desde que você não atrapalhe”).

Dessa forma, o poder do tráfico não é contestado, mas também não impede que, pelo

menos em certa medida, o trabalho da associação continue. São poucos os relatos de

casos em que a associação consegue, de alguma forma, contornar o poder do tráfico, ou

ainda diminuir sua importância, mas o fragmento selecionado abaixo pode ser

esclarecedor. Nele, uma participante afirma que uma mudança de atitude em relação ao

tráfico por parte das lideranças se reflete em uma mudança por parte dos moradores, e

assim a legitimidade do tráfico diminui:

Page 97: Tese_Lia_Rocha_2009

88

Moderador: “(...) é possível tentar produzir uma outra atitude?”.

Participante: “Agora é”.

Moderador: “E como é que é?”.

Participante: “Sabe por quê? Porque o presidente que tava na época (...) a associação ela foi muito assim, desmotivada, as pessoas não tinham confiança naquela pessoa que estava na presidência, entendeu? (...) Porque achavam, quer dizer, não tinham aquela visão, então hoje em dia mudou essa consciência. Então as pessoas estão mais acostumadas a não procurar tanto o tráfico, a procurar mais a associação de moradores, porque a gente passou uma certa confiança pras pessoas, não sei se porque a gente é mulher, né?”.

Moderador: “Faz diferença ser mulher?”.

Participante: “Faz diferença ser mulher, entendeu? E faz diferença também você não ter vinculo, vinculo nenhum. Você ser vista, como se você não tem vinculo nenhum com o tráfico, porque a gente não tem e a gente não aceita nada, entendeu? A gente conversa quando eles precisam, pedem, igual ao que ela falou, vai todo mundo, é assim, é meio que assim, né. Quando eles vêm falar, a gente chama o [Nome de uma liderança comunitária antiga], chama não sei quem, vamos lá todo mundo. Aí sempre resolve. Entendeu? Nunca se vai sozinho pra conversar nada. Entendeu? (...)”.

A partir dos relatos apresentados acima é possível perceber que existem

limitações para a atuação das associações de moradores. No caso da associação do

Pereirão, particularmente na gestão de Antônio, as limitações foram reconhecidas como

tão fortes que a única forma encontrada pelo dirigente para manter o afastamento foi a

quase paralisação das atividades, de forma a não despertar o interesse dos traficantes de

drogas. Além disso, é evidente que o medo de retaliações dificulta a ação das lideranças

locais no sentido de denunciar problemas que afetem a vida dos moradores quando estes

são consequência da ação do tráfico (violência, conflito, atos considerados injustos,

etc.). No entanto, uma parte da violência cometida contra os moradores de favela pode

ser denunciada: a violência policial. Mesmo neste caso, apesar das lideranças

denunciarem a violência policial com veemência, seu poder para fazê-lo também fica

limitado, pois além do perigo de serem executadas pela polícia denunciada, as

lideranças não encontram respaldo na opinião pública para suas denúncias. Nos relatos

abaixo as lideranças deixam clara sua insatisfação com a polícia e com a forma como

atuam dentro das favelas:

Page 98: Tese_Lia_Rocha_2009

89

Eles [a polícia] não conhecem, eles não conhecem ninguém. Ele não quer saber em que casa ele vai entrar. Ele não quer saber de nada, porque ele não tem vínculo com ninguém. Entendeu? Então ele vem, atira pra qualquer lado, não quer saber. (...) Porque a polícia não quer saber em quem ele vai atirar, se ele vai atingir o bandido, se ele vai atingir trabalhador, se ele vai atingir o... Ele não quer saber, ele está atirando. E o bandido por sua vez, não. Ele vai naquilo que ele quer. Entendeu? Ele tem a proposta dele, ele não sai matando o morador. Porque ele só mata aquele que se envolve com ele, né? Então eu acho que a polícia é muito pior, cem vezes pior. Porque eles chegam, e não têm noção do que ele vai encontrar, então ele já vai com medo, atirando pra todos os lados.

Ainda que o tema da contiguidade com os traficantes de drogas tenha sido

bastante discutido no grupo, os dirigentes e ex-dirigentes presentes ao coletivo de

confiança aqui relatado deram maior ênfase em suas falas aos problemas enfrentados

enquanto “lideranças de suas comunidades”: a dificuldade em “captar recursos” para

serem investidos em “projetos sociais” de interesse dos moradores da favela; sobre o

que seria uma “cooptação” por parte do poder público de dirigentes para trabalhar

dentro da burocracia estatal; sobre a falta de políticas públicas nas favelas, sobre a falta

de apoio dos moradores. Em relação ao primeiro ponto, a atuação das associações de

moradores como gerente de projetos e programas sociais dentro da favela foi

apresentada por alguns dos participantes como a melhor (ou única) possibilidade da

associação de moradores exercerem sua função de buscar melhorias para o conjunto dos

moradores.

Hoje inclusive, o presidente de {Nome da favela}, eu hoje procurei chamar a atenção dele, porque existem diversos projetos acontecendo em {Nome da favela} e ele fez um pequeno comentário: "Poxa, e a associação continua devendo cinco mil e ninguém traz nada!" Eu falei: "Ué, você tem que ir buscar!”. Eu aprendi assim. Porque em {Nome da favela}, ele de repente deu aquela guinada, porque nós começamos a escrever projetos, isto tem que buscar. Isto não acontece assim.

No entanto, essa posição não foi compartilhada por todos os participantes.

Alguns demonstraram preocupação com o que seria uma transformação da associação

de moradores em ONG ou em microempresa. Esse papel atual estaria sendo executado

em detrimento da função principal da associação, de “representação política”, e poderia

representar uma “bomba” para o dirigente, que teria que lidar com questões sobre as

quais não tem experiência. No entanto, o mesmo participante aponta a dificuldade

Page 99: Tese_Lia_Rocha_2009

90

existente em não desempenhar esse papel, em não buscar captar recursos e projetos para

a favela, pois os moradores cobrariam da associação a realização desses projetos.

Lá {Nome da favela}, nós éramos pichados por fazer muitas assembléias, tudo tinha que chamar os moradores pra discutir, tudo tinha que chamar os moradores pra discutir. Mas naquele momento, a associação tinha um papel. Era o papel de representação política da comunidade. Hoje, ele tem uma visão né, embora não tenha perdido esse papel, mas ela tem uma visão, mais de uma micro-empresa né, uma microempresa, eu chamo 'ONG das ONGs'. Mas na visão real hoje, é uma micro-empresa. (...). Então, eu falei que sou romântico por isso, porque eu, esse papel de representação política dentro da comunidade, esse pra mim é vital. É vital. E na federação, a gente se depara muito, a pergunta que o {Nome do participante} falou: "Ah, mas ninguém trás nada, ninguém faz nada!” É certo! Se não se preparar pra enfrentar essa situação, vai continuar do jeito que tá. E pior: "O que você tá fazendo aí, meu irmão? Ali a favela A, o morro P tem tudo, como aqui não tem?”.

Em relação à denúncia sobre a “cooptação” de lideranças, a participante afirmou

que, além de oferecer cargos e salários aos dirigentes de associações de moradores para

trabalharam na burocracia do governo estadual ou municipal, alguns representantes

desses poderes “desqualificariam” aqueles dirigentes que não aceitassem a oferta de

trabalho.

Oitenta, noventa por cento das lideranças comunitárias hoje, estão nos gabinetes. (...) verdade, estão. Estão nos gabinetes, a maioria delas tem o cargo, que seja trabalhando na prefeitura, trabalhando no governo do estado. Porque a primeira coisa que eles procuram é a liderança comunitária, eles trazem para eles a liderança comunitária. Aqueles que são resistências, eles associam ao tráfico, eles desmoralizam (...).

Apesar da ligação com políticos não ser nova, o momento atual é marcado por

uma maior proximidade entre os dirigentes à frente de associações de moradores e o

poder público, em função da forma como os programas públicos são executados nas

favelas atualmente, onde as lideranças atuam como gestores dessas iniciativas, como

discutido na seção anterior. Assim, os dirigentes de associações de moradores buscam

ampliar o leque de suas ações para áreas como o gerenciamento de serviços públicos,

bem como para o desenvolvimento de projetos sociais via ONGs. Pretendem, dessa

forma, dar maior legitimidade para seu trabalho – tanto para os de fora das favelas

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91

quanto para os moradores. No entanto, segundo os participantes do coletivo de

confiança, ainda assim muitos moradores não apoiam os dirigentes, acusando-os de se

beneficiarem dos recursos obtidos:

Participante: Olha, como é visto a gente na favela, eu não tô generalizando, mas, companheiro, eu não tô generalizando porque sempre que consigo ali uma coisa, que chega na sua vida, é bom isso, é, você não concordar. Mas olha só, como é que aspessoas veem? Você não pode comprar uma bicicleta nova, não pode comprar camisa nova, que diz que todo presidente é ladrão né? O policial te vê como aliado do tráfico, o tráfico vê você como um mané, que você não está chegando junto, pra fechar com eles.

Moderação: E os moradores?

Participante: Ladrão! Como você vive nessa situação? E você não tem um centavo nem pra sair da comunidade...

Ainda que questões sobre a contiguidade espacial com os traficantes de drogas

tenham sido tópico de discussão entre os dirigentes presentes ao coletivo de confiança,

foi dada maior ênfase pelos participantes ao debate de temas como a “cooptação”, a

falta de investimento público e o “desinteresse” dos moradores. Como vimos acima,

foram poucos os relatos de episódios em que foi necessário interagir com os traficantes

de drogas, ainda que tenha sido reconhecido que esses momentos são frequentes em

algumas localidades. Os dirigentes e ex-dirigentes apresentam-se a maior parte do

tempo como “neutros” em relação aos traficantes de drogas (Rocha, 2006) – admitem

certo grau de submissão, recusam a conivência ou a participação em ações ilegais, mas

reafirmam sua legitimidade enquanto lideranças locais. A preferência pelos temas

políticos (“cooptação”, falta de investimento, etc.), ainda que importantes para o debate

sobre as associações de moradores, revelou um desconforto dos dirigentes, e em alguns

casos foram identificadas estratégias de evitação do tema: seja minimizando os

constrangimentos impostos pelos traficantes e valorizando sua autoridade local, seja

deslizando o debate da violência dos traficantes para uma violência difusa praticada

contra os moradores de favela pelo estado (Silva e Rocha, 2008). Apesar do

reconhecimento de que a dificuldade dos dirigentes em abordar esses temas é justificada

– seja por causa das possíveis retaliações, seja pela preocupação em perder sua

legitimidade – o silenciamento e a evitação impedem que os representantes dos

moradores de favela deem publicidade aos problemas que atingem o cotidiano de seus

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92

representados. Pode estar aí mais um elemento que esclareça porque as associações de

moradores de favela estão perdendo legitimidade, segundo seus dirigentes.

2.4. Voz e silenciamento da representação de moradores de favelas.

Ao analisar o conjunto dos dados apresentados, evidencia-se que é mais fácil

manter a autonomia de ação (ainda que limitada e controlada), e também a própria

segurança pessoal e da instituição, quando o tráfico não tem interesse em interferir no

trabalho da associação de moradores. Mas os dirigentes sabem da dificuldade de manter

suas organizações distantes do tráfico. Como mencionado na seção anterior, nos casos

em que os traficantes tomam a iniciativa de procurar os dirigentes da associação é

imperativo dar satisfações sobre o trabalho desenvolvido (e, pode-se imaginar, até

mesmo obedecer a uma eventual ordem de algum traficante).

Em alguns casos, porém, os traficantes têm interesse em controlar ativamente a

direção da associação, inclusive participando dela como membros da diretoria. Por seu

papel de mediação para fora das favelas, as associações de moradores podem ser fontes

de contatos para os traficantes com políticos (Leeds, 2003). Pandolfi e Grynszpan

(2002) afirmam que a participação dos traficantes nas direções das associações de

moradores afasta outros grupos da organização, e que muitas vezes esse afastamento se

dá através de intimidação e ameaça. Para eles a ‘cultura do medo’ tomou conta dos

espaços decisórios das associações, e assim a possibilidade das associações se tornarem

espaços democráticos capazes de organizar as lutas dos moradores está cada vez mais

distante. Apesar de nenhum dirigente apresentar-se como sofrendo intervenção direta do

tráfico, foram recolhidos relatos em que a associação estava desacreditada frente aos

moradores em função de seu domínio pelos grupos de traficantes.

Os motivos para os traficantes aproximarem-se da associação e suas lideranças

não é consenso na literatura. Leeds (2003) afirma que esse interesse do tráfico em

influenciar a ação da associação de moradores tem por objetivo buscar legitimação e

respeitabilidade dentro das favelas. Para Machado da Silva (1995, 2004), porém, o que

orienta a ação desses grupos armados é a força – essa é a fonte de sua capacidade de

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93

mando. Deste modo, ao controlar as associações eles não visam legitimar-se; trata-se de

algo que faz parte do processo de submissão pela força (não da ‘dominação’ weberiana)

dos moradores. Neste sentido, os traficantes se relacionariam com a associação de

moradores e com as lideranças, assim como com todos os moradores, de forma

estritamente instrumental, visando apenas aprofundar a submissão. Essa hipótese

encontra respaldo em alguns dos relatos obtidos; porém, é importante notar que a

intervenção direta do tráfico nas associações não é uma regra, pois se constatou também

pelos relatos e entrevistas que existem associações e dirigentes que atuam com certo

grau de autonomia.

Quando a relação das associações de moradores com os traficantes de drogas

não é tão direta e próxima, há espaço para outras formas de convivência entre esses

atores, ainda que a extensão da distância possível seja variável de acordo com os

diferentes contextos. No caso de Antônio, a distância foi alcançada através da paralisia

da associação. Ainda que seja cedo para conhecer a estratégia a ser adotada por Jennifer,

nos relatos obtidos no coletivo de confiança alguns dirigentes demonstraram que aceitar

algum tipo de contato com os traficantes de drogas é indispensável para viabilizar as

ações da organização de base. O contato se torna necessário particularmente quando um

dos papéis fundamentais da associação de moradores passa a ser a mediação entre atores

externos e traficantes de drogas instalados em seu território. São os representantes do

poder público ou outras instituições que solicitam a mediação dos líderes locais, para

poderem agir nas favelas. Miranda e Magalhães (2004:52) sugerem que essa é a forma

encontrada pelos atores externos para manterem distância dos traficantes e

permanecerem limpos moralmente:

A mediação faz com que, como por milagre, a ilegitimidade do contato se quebre. O fato de alguém que é técnico ou representante de ONG estar negociando com uma liderança permite que, por meio de um artifício cruel, aja como se todas as consultas fossem legais e legítimas. Admite-se que a liderança estabeleça relações com representantes do tráfico. É como se o fato de ser morador (a) eliminasse as barreiras entre legal e ilegal que são válidas para as outras pessoas. Aproximados(as) do ilegítimo, moradores(as) e lideranças são afastados(as) da ordem e reafirmados(as) em sua não-cidadania.

A garantia fundamental da segurança dessas lideranças nestes contatos é a

construção em longo prazo – nem sempre bem sucedida, é claro – de uma imagem

Page 103: Tese_Lia_Rocha_2009

94

pública que depende de uma verdadeira antinomia: de um lado, precisam ser vistos

como desenvolvendo uma atuação política consequente, do ponto de vista dos

moradores comuns e dos próprios traficantes; mas essa atividade, de outro lado, é

dificultada pela fragilidade de seu poder real, que afasta parte considerável de sua

potencial base social de apoio e abre espaço para reações imponderáveis dos traficantes,

minando sua legitimidade. Essa parece ser a dimensão privada, pessoal e local, da

tragédia que se abate atualmente sobre a ação coletiva nas favelas cariocas.

Ao analisar os relatos dos dirigentes comunitários (presidentes e diretores de

associações de moradores de favela) presentes ao “coletivo de confiança”, pode-se

concluir que, apesar das variações na forma como os traficantes atuam em cada

localidade, a coerção e a necessidade de submissão estão sempre presentes, e devem ser

consideradas quando se escolhem as estratégias para lidar com essa força que lhes

aparece como um dado da realidade, sobre o qual não têm controle. Porém, o fato de no

Pereirão o tráfico estar presente de forma menos evidente e opressora que em outros

lugares, poderia representar uma possibilidade de atuação coletiva, sem os

impedimentos que este tipo de ação sofre em localidades com presença mais ostensiva

dos bandos de traficantes. No entanto, isto não aconteceu. Como dito anteriormente, a

associação de moradores local estava esvaziada e deslegitimada. Este é um dos

principais efeitos da submissão dos traficantes de drogas sobre a população das favelas:

mesmo sem pressionar a organização coletiva, o perigo potencial de confrontar-se com

os bandos de traficantes anularia (ou reduziria significativamente) a tentativa de ação

dos dirigentes locais que, para proteger-se, muitas vezes deixam de intervir em assuntos

que deveriam ser de sua atribuição.

As dificuldades das associações de moradores não se restringem à convivência

com os traficantes de drogas. Além das denúncias de autoritarismo e favorecimento

pessoal dos dirigentes (Zaluar, 2004), as organizações de base enfrentam desafios que

estão colocados a todos os movimentos sociais, relativos ao surgimento de novas formas

de participação no espaço público que não as institucionais – ou sociais, como propõe

Touraine (1978, 2005). No entanto, apesar das questões levantadas acima, a existência

dos bandos de traficantes dentro dos territórios de favela representa um obstáculo de

muito mais difícil transposição do que outros, pois frente a estes os moradores e suas

Page 104: Tese_Lia_Rocha_2009

95

lideranças possuem nenhum ou poucos recursos para se defender ou reagir. Porém, para

os líderes comunitários, estratégias estão disponíveis em função de seu papel; como

representantes de associações de moradores essas pessoas tentam encontrar alternativas

que permitam sua atuação dentro das favelas. Para os moradores comuns, que tentam

proteger-se das ações dos traficantes, na maioria das vezes resta apenas a opção de

adaptar-se às imposições feitas pelo tráfico.

Por fim, quero ressaltar que o silenciamento dos dirigentes sobre as submissões

cotidianas que sofrem no exercício do seu papel permite encontrar similitudes com a

situação dos moradores do Pereirão, analisada no capítulo anterior: o silêncio sobre a

submissão vivenciada perpetua seus mecanismos de atuação, criando um dispositivo

que funciona em moto-perpétuo. Assim, delineia-se para os moradores de favela uma

condição de ausência de voz. No entanto, a vitalidade e a multiplicação das ações

coletivas nas favelas cariocas, majoritariamente no formato de “projetos sociais”, e o

destaque que essas ações vêm recebendo no espaço público mostram que, em alguns

contextos e sob condições específicas, os favelados possuem canais de expressão. Eles

têm voz. A forma como alguns dos moradores do Morro do Pereirão se expressam é

abordada no próximo capítulo.

Page 105: Tese_Lia_Rocha_2009

96

III. A ONG TV Morrinho: “Como na vida real”.

Foto da autora

Nos dois capítulos anteriores busquei apresentar o território em que realizei

minha pesquisa e a organização representativa dos moradores ali existente. No capítulo

I discuti a história da localidade e como ela chegou a sua situação atual, de

“tranquilidade” e “paz”. Analisei também a forte ênfase dos moradores na diferença

entre as outras favelas do Rio de Janeiro e a favela do Pereirão, apresentada como

“tranquila” e “em paz”, e os pontos de conflito e tensão entre os moradores que apontam

para a pluralidade de representações locais sobre o tráfico de drogas e a sua presença na

localidade. No capítulo II apresentei os dados levantados na pesquisa sobre a associação

de moradores local, e como essa se encontra paralisada, em parte pela maneira como o

poder público se relaciona com os territórios favelados cariocas – através de políticas

focalizadas e curtas, intermediadas por políticos que estabelecem com os líderes locais

relações de “clientelismo”. Por outro lado, demonstrei como o “estilo” de cada dirigente

Page 106: Tese_Lia_Rocha_2009

97

na condução de seu trabalho frente à associação de moradores tem repercussões na

legitimidade que os moradores dão a esse trabalho. Por fim, analisei como a modalidade

de presença do tráfico de drogas na localidade incide sobre as possibilidades de ação

dos dirigentes e como, apesar de sua presença subterrânea, também no Pereirão os

traficantes representam um risco a ser considerado pelos dirigentes.

Neste terceiro capítulo, discorro sobre uma forma alternativa de organização

coletiva, que vem se tornando cada vez mais comum nas favelas cariocas, aglutinando

diversos setores sociais que se interessam sobre esses territórios e seus moradores, e que

na localidade do Pereirão se apresenta como a iniciativa coletiva mais ativa: a

organização não-governamental TV Morrinho. Novamente cabe uma ressalva sobre a

escolha em revelar o nome da organização pesquisada: utilizo o mesmo critério

empregado no caso da decisão de enunciar o nome do Pereirão; trata-se de uma

organização conhecida, cujo trabalho é único e reconhecido. Portanto, não revelar seu

nome não teria o efeito desejável de proteger a identidade dos informantes. Quando foi

preciso mencionar situações acontecidas com integrantes do grupo, optei por criar

nomes fictícios. Os jovens e dirigentes que foram entrevistados por mim não exigiram

anonimato, nem para si nem para sua organização. Vale sublinhar que participantes de

organizações não-governamentais estão habituados a serem “objeto” de investigações

como esta, e que apreciam oportunidades de tornar público o trabalho que realizam. De

qualquer forma, como relato algumas situações que não me foram relatadas em uma

entrevista, e sim observadas in loco, optei pelo anonimato dos participantes, ainda que

ciente do fato de que minha presença nessas situações não tenha passado desapercebida.

3.1. TV Morrinho: a ONG do Pereirão.

Ao longo do trabalho de campo, frequentemente comparava a imobilidade da

associação de moradores com o florescimento das atividades do grupo de jovens que se

reunia em torno de uma imensa maquete, feita de pedaços de tijolos e habitadas por

bonecos de plástico representando diversos morros cariocas e seus moradores, chamada

Page 107: Tese_Lia_Rocha_2009

98

Morrinho. Ainda que no começo da pesquisa o grupo estivesse desmobilizado, e que as

atividades realizadas não possuam ainda hoje uma constância62, no intervalo que durou

minha presença na favela do Pereirão não apenas o grupo realizou diversas viagens para

expor seu trabalho (além das viagens nacionais eles viajaram para a França, a Alemanha

e a Itália, para a Bienal de Arte de Veneza), como se transformou em organização não-

governamental, com sede na entrada da favela, começou um projeto de turismo na

localidade e lançou um documentário relatando sua história.

Minha primeira visita ao Morrinho foi marcada por sentimentos mistos de

admiração pela obra, uma imensa maquete de 300 metros quadrados representando

diversas favelas, com seus prédios, ruas, moradores e personagens, mas também um

grande estranhamento. Estranhei, sobretudo, o fato de a maior parte da produção do

grupo fazer referência aos traficantes de drogas, e também por considerar a atividade

restrita a poucos participantes, sem se configurar como uma atividade coletiva. No

entanto, as ações do grupo se desdobraram em outras atividades que não apenas a

exposição da maquete, o que acarretou a incorporação de outros jovens ao grupo, seja

na atividade ligada à manutenção e reprodução da maquete seja na atividade turística,

ligada ao circuito do turismo em favelas que cresce na cidade do Rio de Janeiro, e

particularmente na região em se localiza o Pereirão. Dessa forma, o grupo não apenas

expandiu suas atividades como se tornou um “símbolo” importante para os moradores

do Pereirão, mais uma evidência que comprovaria que aquela favela era realmente

“diferente das outras”.

Assim, ainda que o grupo não se encaixasse nas minhas definições sobre o que

era um “movimento social” ou uma “ação coletiva”, suas atividades me pareciam

interessantes, não apenas pelo fato de ser uma iniciativa de jovens moradores, mas pela

maneira como retratavam, em forma e em conteúdo, a temática da violência cotidiana

vivenciada pelos moradores de favelas, e que estava ausente das falas dos moradores do

Pereirão.

Neste capítulo apresento a história do grupo, sua passagem de uma iniciativa de

jovens moradores para sua instituição no formato ONG, sua produção audiovisual e os

diferentes significados possíveis dessa atividade dentro do território, caracterizado pela 62 Como ficará claro na descrição que se segue, no momento a ong não possui financiamento para suas atividades, e assim os jovens mobilizam-se em torno dela em momentos específicos, como viagens, apresentações, filmagens ou outros trabalhos; dessa forma, suas atividades não possuem uma freqüência.

Page 108: Tese_Lia_Rocha_2009

99

presença intersticial do tráfico de drogas. Em função da grande quantidade de material

disponível sobre o grupo, particularmente na internet, o material analisado neste

capítulo inclui, além do trabalho de campo e de algumas entrevistas realizadas, pesquisa

em artigos de jornal e revistas e a observação de vídeos disponibilizados pelo grupo em

seu canal no site YouTube63. Vale ressaltar que as entrevistas realizadas não foram

muitas: primeiro por dificuldades em mobilizar os jovens quando as atividades do grupo

estavam suspensas, e quando as atividades aconteciam era difícil conversar com cada

um separadamente; em segundo lugar porque eles se mostravam decepcionados quando

eu dizia que a entrevista não era para a televisão ou para o jornal, mas para uma tese em

que seus nomes seriam trocados, o que fazia da entrevista um momento não muito

atraente. Assim, privilegiei neste capítulo (como nos outros), além do material

encontrado na internet e na mídia, a observação das atividades do grupo.

3.2 História do Morrinho.

O Morrinho é uma maquete de 300 m2 de diversas favelas do Rio de Janeiro,

habitada por moradores representados por bonecos Lego64 e onde os jovens

participantes desenvolvem performances que representam a vida nas favelas com

bastante realismo, particularmente seu lado mais violento e conflituoso: o tráfico de

drogas. Dessa iniciativa, criada há dez anos, participam atualmente dez jovens de 10 a

24 anos, e o que era uma brincadeira feita no quintal se transformou em instalação

artística reproduzida em museus e festivais de arte no Brasil e na Europa, uma produtora

63 O YouTube é um site na internet, criado em 2005, que permite a divulgação e a troca de vídeos em formato digital. Cada participante pode criar uma conta e “disponibilizar” seu vídeo, com uma limitação de tempo de duração e algum controle sobre direitos de imagem, mas que são pouco respeitados. Também é possível assistir aos vídeos sem ser inscrito no site. Ver: http://br.youtube.com/.64 O Lego é uma marca de brinquedos dinamarqueses, que são produzidos industrialmente desde os anos 1950. Feitas de plástico, as peças possuem um mecanismo de encaixe, que permite a quem está brincando criar diferentes formas, o que possibilitou a construção de cidades inteiras, expostas nos diferentes parques temáticos da marca localizados na Europa. No Brasil os produtos começaram a ser comercializados na década de 1980 e, ainda que sejam bastante populares, não são um produto de consumo de massa por terem um preço elevado (entre R$ 50 e R$ 500, segundo pesquisa realizada emsites de lojas de brinquedos). Para a utilização no Morrinho os participantes compravam suas peças em brechós ou lojas de produtos usados.

Page 109: Tese_Lia_Rocha_2009

100

de filmes que acaba de lançar um documentário sobre o grupo, um ponto turístico que

começa a receber investimentos públicos e finalmente uma organização não-

governamental. Mas como gostam de dizer seus participantes, para eles ainda se trata,

sobretudo, de uma brincadeira.

Segundo seu “fundador”, conhecido como Cabeção, a maquete começou a ser

construída por ele no quintal da sua casa para “matar o tempo”, após sua mudança para

a favela. A partir dessa iniciativa outros sete meninos passaram a brincar na mesma

maquete, cada um construindo a “sua favela”, e representando o papel de “chefe”,

responsável pela construção, manutenção e ação de seus habitantes. Cada participante,

portanto, aumentou a dimensão da maquete original, incorporando outras “favelas”.

Essas representam favelas reais, como as do Fogueteiro, Prazeres, Borel, Grota, Turano,

Querosene, Fallete, Encontro, entre outras. Segundo Cabeção, em entrevista dada ao site

do PNUD Brasil (por ocasião da ida do grupo à Bienal de Veneza, em 2007)65:

A ideia era brincar. A gente não tinha o que fazer, então começou a criar o que via. A retratar o tráfico, o moto-táxi, o baile funk. Tentamos mostrar a realidade, o bem e o mal.

Em diversos materiais de divulgação e em entrevistas concedidas a meios de

comunicação, a chegada recente ao Rio de Janeiro, vindo de uma cidade do interior do

estado, e o estranhamento frente a essa nova realidade foram as motivações que levaram

o adolescente a utilizar os azulejos escamoteados do pai, pedreiro, para construir

réplicas das favelas cariocas. Mas outras motivações também foram relatadas, em

distintos materiais de divulgação e em entrevistas que realizei com o Cabeção durante

meu trabalho de campo. O excesso de tempo livre, em função de ter ficado sem estudar

durante dois anos, aparece como um elemento impulsionador em entrevista concedida a

uma importante revista semanal66. A falta de dinheiro para comprar brinquedos foi

mencionada em vídeo realizado por alunos de uma faculdade privada carioca, e

disponibilizado no site YouTube. Já em outra publicação de grande circulação, e

65 Cf. Favela de brinquedo leva meninos à Itália: Maquete de comunidades cariocas criada como brincadeira há 9 anos por dois jovens pobres ganha espaço na Bienal de Arte de Veneza. Reportagem de Talita Bedinelli para o site do PNUD Brasil.66 Cf. Favela Chique. Depois de fazer sucesso na Bienal de Veneza, o Morrinho, maquete feita por garotos do Pereirão, ganha documentário. Revista o Globo de 15 de julho de 2007.

Page 110: Tese_Lia_Rocha_2009

101

também em entrevista concedida a mim, a necessidade de encontrar espaços de lazer

seguros em um território que era naquele momento palco de freqüentes conflitos

armados entre traficantes de drogas foi o que motivou a iniciativa, e que incentivou a

adesão dos outros meninos participantes. O espaço de refúgio passou a ser o quintal da

casa de Cabeção, que então se localizava numa das áreas mais distantes das duas

entradas na favela, quase dentro da mata (atualmente sua família não mora mais no

local, pois se mudou para outra residência na favela, e a casa virou um centro para

recepção dos turistas que visitam a maquete). Era para lá que iam, após as aulas, os

amigos de infância. Ainda que muitos moradores reclamassem da brincadeira, já que os

jovens roubavam tijolos que estavam sendo utilizados em obras particulares na favela

para construir as casas da maquete, os pais deles apoiavam a iniciativa, tranquilizados

porque seus filhos estavam ali, e não circulando pela favela e expostos ao risco de serem

vítimas em um confronto armado entre traficantes e policiais. Além disso, os pais

estariam satisfeitos por saber que os filhos não estavam envolvidos em “atividades

erradas”, o que pode ser uma referência à adesão às quadrilhas de traficantes.

Assim, em sua origem, o Morrinho está ligado à história do passado violento do

Pereirão. Ainda que essa versão não conste do histórico apresentado no site do grupo,

também não se trata de um segredo ou uma versão “não-oficial”. Cabeção mencionou

também, em entrevista concedida a mim, que os traficantes locais chegaram a participar

em alguns momentos da brincadeira, inclusive fazendo comentários sobre comandos

“rivais” e incentivando invasões das “favelas” existentes na maquete. Em outro

episódio, relatado no documentário feito pelo grupo sobre sua história, policiais

militares em operação na favela obrigaram os jovens a destruir a maquete por

desconfiança que se trataria de um local de treino para estratégias de guerrilha, invasão

de outras favelas, etc. Essa desconfiança seria compartilhada por alguns moradores.

Vale ressaltar que não encontrei no material pesquisado, seja na imprensa seja nos

vídeos, qualquer menção à presença de traficantes no espaço da maquete.

Três anos depois que os jovens começaram a construir a maquete e a encenar

episódios da “vida real das favelas”, dois realizadores de filmes de publicidade foram

conhecer o local e os meninos, interessados em fazer um filme-documentário sobre a

iniciativa. Segundo um desses realizadores, em entrevista a um grande veículo da

imprensa quando do lançamento do documentário, ele foi informado da atividade por

um dos professores dos meninos, e maravilhado com o que encontrou convidou dois

Page 111: Tese_Lia_Rocha_2009

102

amigos para filmar a “brincadeira”. Ainda segundo a reportagem mencionada, os

meninos teriam “fugido para o mato” com a chegada dos diretores e do equipamento:

“Éramos uns estranhos invadindo a brincadeira deles”. No entanto, dois teriam se

interessado pela aparelhagem, e assim eles decidiram deixar as câmeras com os meninos

durante alguns dias. Assim foram feitas as primeiras filmagens na maquete. Já em vídeo

disponível na internet, feito por uma equipe de televisão universitária, um dos

participantes diz que os diretores queriam que eles representassem cenas para serem

filmadas, mas como o tempo da “brincadeira” era diferente do tempo de filmagem (em

função de seu “realismo”, que será descrito a seguir), os meninos acabaram fazendo o

filme eles mesmos.

De qualquer maneira, independente da versão, a origem do grupo é o encontro

entre “meninos da favela” e “homens do asfalto”, interessados na mesma “brincadeira”,

seja como jogo, seja como expressão artística. A partir desse encontro é que se torna

possível a transformação da maquete em instalação artística, reproduzível em outros

contextos e foco do interesse artístico para fora do território da favela, e em ONG.

Contudo, a mudança de status do grupo e a profissionalização de suas atividades

representam uma importante mudança de direção; não se trata apenas de profissionalizar

o que antes era uma brincadeira, mas de começar uma nova atividade: a atuação coletiva

sobre a localidade e seus moradores, através de um formato de ação pública que é

bastante comum nas favelas cariocas atualmente, o “projeto social”. “Projeto social” é

utilizado aqui como termo nativo, isto é, parte do vocabulário utilizado pelos

entrevistados e pelos profissionais do campo do trabalho social – por esse motivo, o

termo será utilizado entre aspas. Nesse sentido, “projeto social” é uma atividade com

duração determinada, que reúne diferentes profissionais e instituições públicas e

privadas, e que pretende atuar sobre uma coletividade, denominada freqüentemente

como público-alvo, que teria alguma necessidade “social”: educação, saúde, trabalho,

entre outras. A utilização do termo projeto pode estar relacionada à forma como essas

atividades são apresentadas, especialmente para fins de captação de recursos: através de

documentos que descrevem intenções, planejamentos, ações futuras, resultados

esperados. No entanto, o termo projeto foi identificado por Boltanski e Chiapello (1999)

como fundamental para compreender o novo espírito do capitalismo contemporâneo67.

67 A aproximação entre os projetos sociais e a “Cité par Projet” de Bolstanski e Chiapello foi abordada no próximo capítulo desta tese.

Page 112: Tese_Lia_Rocha_2009

103

Mas antes de discutir a transformação do grupo em artistas profissionais e em uma

organização não-governamental, vale a pena se deter um pouco nos detalhes da maquete

e da encenação ali feita.

Fonte: reprodução do site do grupo.

O Morrinho é uma maquete que reproduz diversas favelas da cidade, que serve

de cenário para a representação da vida cotidiana nas favelas cariocas, particularmente

daqueles participantes das quadrilhas de tráfico de drogas. No Morrinho cada jovem

participante é dono de um morro, responsável por sua concepção, construção e

manutenção. Não existe um responsável pela maquete inteira – todos são igualmente

“donos” de suas partes da maquete, “donos de suas favelas”, e responsáveis pela sua

manutenção geral. O trabalho de manutenção é contínuo, já que as casas (feitas de

pedaços de tijolos) se localizam sobre terreno acidentado e sem contenção, o que

demanda não só o cuidado cotidiano como a reconstrução após dias de chuva. Ainda

que em termos estéticos a maquete em si chame bastante a atenção, por sua dimensão,

uso de cores e composição artística, o uso feito pelos jovens participantes dela como

cenário para a representação da vida nas favelas é sua mais importante característica.

Habitadas por bonecos Lego (como visto na imagem acima) que representam seus

moradores, as favelas contidas no Morrinho são “controladas” e “ocupadas” por

quadrilhas de traficantes de drogas, e esses são os principais personagens das

brincadeiras realizadas pelos jovens, bem como são as figuras centrais da produção

audiovisual do grupo, ainda que mais recentemente outras temáticas também tenham

sido abordadas. Assim, parte substancial da performance realizada pelos participantes

na maquete tem como tema a vida e o cotidiano dos traficantes de drogas e daqueles que

os cercam, namoradas, cúmplices, inimigos e até a polícia. São encenados conflitos

entre diferentes favelas e entre os traficantes e a polícia, especialmente o BOPE,

representado e localizado na maquete, com direito à sede. Nela existem bonecos que

Page 113: Tese_Lia_Rocha_2009

104

representam os policiais, armas apreendidas em conflitos e uma carceragem, onde

diversos bonecos/traficantes estão presos. Representa-se a antiga “brincadeira” de

mocinho e bandido, mas com adaptações que tornam a performance em questão

particularmente interessante (como apresento na quarta seção deste capítulo).

Foto da autora

A polícia desempenha papel importante na maquete, ainda que não seja

controlada por nenhum jovem em especial – a cada situação um participante diferente

assume o papel da polícia, seja nos conflitos com os traficantes seja em atividades mais

rotineiras, como o momento de buscar a propina com o “chefe” local do tráfico (o

“arrego”), ou a negociação para a libertação de algum bandido preso.

Na execução existe uma preocupação enorme, por parte dos participantes, em

continuar no espaço da representação as regras da realidade; segundo as regras do

Morrinho um bonequinho não pode voar, pular várias casas, se locomover rápido

demais e nem sobreviver a tiros ou acidentes de carro. Personagens que são presos

ficam afastados, sem participar das histórias, e aqueles que morrem, obviamente, não

podem voltar: “Nas nossas histórias não tem espaço para fantasias”, explicou um dos

participantes a uma revista semanal de grande circulação. Outras regras da realidade

também devem ser respeitadas: as “regras do tráfico”. As favelas presentes no Morrinho

pertencem a diferentes facções, e reproduzem com bastante fidelidade a geografia do

controle territorial da cidade do Rio de Janeiro. Assim, se um jovem é “dono” da favela

Page 114: Tese_Lia_Rocha_2009

105

do Borel ele será, portanto, parte do Comando Vermelho, e será aliado de jovens que

controlam “favelas” que são representações de favelas controladas por traficantes da

mesma facção.

Assim, durante as “brincadeiras” os meninos incorporam os traficantes ou a

polícia e recriam vozes, fazem os movimentos dos bonecos e assim gerenciam o

negócio da droga na “favela” que lhes pertence. Geralmente as situações reproduzidas

envolvem conflitos, mas os meninos também podem brincar de realizar bailes funk,

gerenciar o comércio local (inclusive o de drogas) ou simplesmente recriar eventos do

cotidiano das favelas. Chamou-me bastante a atenção que, pelo menos na maquete

original (a que se localiza na favela, em contraste com as maquetes que são produzidas

para as exposições itinerantes), quase não existem moradores “ordinários”, i.e., não

envolvidos na dinâmica da venda ilegal de drogas – os bonequinhos representam em sua

maioria traficantes, policiais ou “mulheres de bandidos”. Em uma das primeiras visitas

perguntei onde estavam os “moradores” mesmo, e um dos jovens me disse que eles

estavam em casa, porém a informação foi dada com um tom possivelmente de

brincadeira. Vale ressaltar que em alguns vídeos, sobretudo aqueles encomendados por

um canal de televisão infantil internacional, as encenações têm como personagens

moradores que não possuem ligação com os traficantes, ou pelo menos as histórias não

se focam nesse aspecto. Falarei mais demoradamente sobre a produção de vídeos feita

pelo grupo a seguir.

Os jovens participantes imprimem à encenação realizada um enorme “realismo”,

que no contexto da “brincadeira” pode fazer referência aos jogos eletrônicos para

adultos que investem no realismo das imagens e das situações68, mas que pode ser

entendido também em sua concepção artística69. Um pequeno relato sobre uma conversa

68 Com o desenvolvimento tecnológico os jogos eletrônicos conhecidos como games passaram a oferecer a seus usuários uma representação gráfica muito avançada, o que permitiu, segundo jornalistas especializados, um maior “realismo” das imagens. Por outro lado, esse realismo passou a preocupar os pais e educadores, pois ainda se especula sobre uma possível correlação entre esse tipo de entretenimento e um aumento na propensão para praticar atos de violência. Cf. “Violência do game Silent Hill ganha realismo”, “Violência impede divulgação do game ‘Stranglehold’ na TV”, “Alta definição em games gera preocupação com violência”, “Estudo nega que games incentivem violência”, “Games tornariam jovens insensíveis à violência”.69 O termo Realismo é usado para descrever movimentos artísticos em diferentes áreas, como nas artes plásticas, na literatura, no teatro, etc. Em comum apresentam a característica de rejeição às idealizações sobre o ser humano, especialmente em relação aos seus desejos e valores e a opção por descrever o real em seus detalhes mais prosaicos e cotidianos (Dicionário Le Petit Robert, Dictionaire de la langue française). Na França seus principais exemplos são a literatura de Flaubert e sua heroína adúltera Madame Bovary, e a pintura de Coubert, em que retratou os trabalhadores em suas rotinas. No Brasil seu

Page 115: Tese_Lia_Rocha_2009

106

com um dos participantes, Sandro, pode ilustrar melhor o “realismo” da brincadeira ali

encenada. Durante o trabalho de campo em um sábado fui informada que, naquela noite,

aconteceria em uma das “favelas” da maquete um baile funk70. Os bailes são realizados

à noite, pois a maquete possui iluminação feita pelos jovens especialmente para esses

eventos, e contam com um aparelho de som para completar a encenação. A música é

tocada alta, e chegou a incomodar os vizinhos. Ao baile vão os moradores da “favela”

em que ele se realiza e também moradores de “favelas” cujos “donos” pertencem à

mesma facção. Assim, segundo Sandro, seus bonecos iriam também, mas ele tinha que

coordenar a ida porque os bonecos têm que se locomover pela maquete com o maior

realismo possível – ele não pode juntar todos em um saco e levá-los até lá, por exemplo.

Quando perguntei se ele organizava bailes em sua própria “favela” Sandro me disse que,

como seus bonecos tinham entrado em conflito recentemente com a “polícia”, ele tinha

cancelado todas as atividades que contassem com a presença de “moradores” de outras

“favelas”, já que tinha certeza que a “polícia” dificultaria a entrada desses no seu morro.

Quando perguntei porque ele tinha entrado em conflito com a “polícia”, respondeu-me

que essa era a característica do “morro dele”: “eles” eram "esquentados" e “tiravam

onda” demais, referindo-se à personalidade de seus bonecos, que teriam uma postura

ousada e arrogante frente à “polícia”.

É a partir da maquete, e da “brincadeira” nela realizada, que se desenvolvem as

outras atividades do grupo, sobre as quais falaremos a seguir. É importante mencionar,

contudo, que a maquete e a performance ocupam papel fundamental na dinâmica das

ações do grupo: no processo de incorporação de novos participantes ao grupo

(nomeados como “Nova Geração”) um dos passos mais importantes é o aprendizado da

confecção das casas e dos bonecos que ocupam as favelas e a posse pelo novato de um

espaço dentro da maquete para a confecção da “sua favela”. Além disso, em diversos

vídeos colocados na internet, por ocasião de viagens internacionais para expor em

festivais de arte, quando perguntados se eles mesmos se consideram artistas, os jovens

afirmam que não, que para eles aquilo não é arte, mas uma “brincadeira”.

maior expoente é o escritor Machado de Assis, cuja obra discorreu sobre as hipocrisias da sociedade brasileira durante a passagem do séc. XIX para o séc. XX.70 Cf. nota feita no capítulo 3 definindo o que é um baile funk.

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107

3.3. A ONG TV Morrinho.

Inaugurada em 2006, a organização não-governamental criada pelos jovens e

pelos cineastas é descrita nos materiais de divulgação como o “ápice” da parceria

firmada entre eles. A ONG gerencia as atividades e capta recursos para outros projetos,

e segundo o site do grupo se organiza em quatro linhas:

a) A exposição da maquete em eventos artísticos, quando o coletivo reproduz em

dimensões reduzidas a maquete original e pode encenar algumas histórias;

b) A produtora audiovisual, que realiza seus próprios filmes e que também faz

filmes sob encomenda;

c) O turismo sustentável, que oferece serviço de visita guiada à maquete;

d) O braço social, que possui um projeto de capacitação profissional na área de

audiovisual para os jovens da localidade, tendo como instrutores os participantes

do grupo, mas que ainda não encontrou patrocinadores.

A abertura da ONG atendeu à necessidade de formalizar juridicamente uma

organização que já existia em termos práticos e que já tinha, inclusive, recebido

patrocínio para comprar equipamentos e montar a estrutura de produção audiovisual do

grupo. O financiamento foi obtido junto a um fundo para pequenos projetos criado pelo

grupo musical O Rappa e a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

(Fase), a partir dos recursos arrecadados na campanha Na Palma da Mão. Segundo o site

da banda, “o principal critério para inscrição dos projetos é que eles tenham como

mobilizadores e executores os próprios jovens”. A partir desse financiamento foi

possível a compra de equipamentos e a abertura da TV Morrinho, a produtora de vídeos

mencionada acima. Além disso, os jovens acompanharam a banda quando essa se

apresentou em um famoso e popular programa de televisão dominical, quando

montaram uma réplica da maquete no palco. Nessa ocasião os jovens pediram apoio

financeiro para bancar uma viagem ao exterior, para apresentar a exposição em um

festival internacional, e foram ajudados por artistas presentes.

Page 117: Tese_Lia_Rocha_2009

108

Portanto, a criação da ONG permitiu formalizar atividades que já estavam sendo

realizadas de forma amadora, além de fazer parte das iniciativas para profissionalizar os

envolvidos com o grupo, tanto os jovens artistas quanto a equipe de apoio

(coordenadores, técnicos, etc.). A ONG possibilita também o pedido de futuros

financiamentos, especialmente os que se destinam a viabilizar “projetos sociais”, e que

são passo importante para a profissionalização mencionada acima. O caminho

percorrido por diversos movimentos sociais e grupos que lhes prestavam assessoria

rumo à profissionalização é processo analisado por Landim (1993), e parece ter

paralelos com o caso do Morrinho, ainda que esse não tenha nascido de um “movimento

social”, e sim da reunião em torno de uma “brincadeira”. Segundo Landim (1993), na

década de 1980 as agências que financiavam o trabalho dos centros de assessoria e

educação popular ‘a serviço dos movimentos sociais’ (que em seguida se tornariam as

primeiras ONGs) modificaram sua relação com essas organizações, muito em função da

entrada de agências multilaterais (como o Banco Mundial) e governos no mercado de

financiamento social. A partir de então os financiadores demonstram interessem em

sustentar projetos que atuem na prestação de serviços diretos, de resolução imediata de

problemas da população, no que a autora chamou de ‘projetos materiais’ – em oposição

aos ‘projetos imateriais’, de política educativa, formação de lideranças, etc. (Landim,

1993: 368).

Foto da autora

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109

No caso específico analisado, a formação da ONG acarretou também novas

formas de relação dos participantes do grupo com sua atividade artística, que desde o

começo foi concebida uma “brincadeira”, mas que gradativamente vem assumindo o

lugar de um “trabalho” na vida dos jovens participantes. Em diversos momentos do

campo essa nova relação com o grupo e com o produto que realizam ficou evidente.

Inicialmente, destaco o fato de que, nas diversas viagens feitas, os jovens participantes

receberam um cachê das equipes de organização dos eventos, que permite não apenas

cobrir os gastos feitos com a viagem (basicamente hospedagem e alimentação), mas

também que eles tragam dinheiro para casa ao final da estada no exterior. Segundo

relato de participantes foi possível, em alguns momentos, poupar cerca de 2/3 do cachê,

o que garantiu a um dos jovens uma renda durante os três meses seguintes em que ele

não trabalhou. Além disso, o cachê permite aos jovens o acesso a bens de consumo

acima das possibilidades de outros jovens da localidade. Ao relatar as aventuras e

desventuras de cada viagem, eles sempre mencionam as compras feitas no exterior:

cordões que custaram 100 euros, tênis, casacos, bonés, entre outros itens característicos

do consumo de jovens de qualquer classe ou local de moradia.

As viagens são, dessa forma, não apenas momentos onde os jovens são

reconhecidos enquanto artistas, mas também possibilidades de ganho financeiro. Gerar

renda e trabalho para esses jovens é um dos objetivos da ONG, mas em alguns

momentos se torna também fonte de conflitos no grupo. Por exemplo, na fase

preparatória de uma das viagens discutiu-se a possibilidade de um jovem da “segunda

geração”, Beto, acompanhar os colegas no lugar de um jovem do grupo original que não

poderia ir. Não seria sua estréia nas apresentações do grupo – ainda que fosse a primeira

viagem para fora do Brasil – e o jovem estava fortemente decidido a ir, mas alguns

colegas foram contra, visto que ele estava trabalhando já há sete meses em uma empresa

ligada ao ramo turístico na cidade, e contratado de maneira formal. Assim, seus

companheiros argumentavam que era pouco prudente abrir mão de um trabalho de

“carteira assinada” para engajar-se em uma viagem com o grupo, mesmo que o cachê

fosse convidativo; tratava-se de um cachê de 1.500 euros, por uma viagem de duas

semanas para apresentar a réplica da maquete no centro cultural de uma empresa

européia que realizava uma exposição sobre o Brasil. Para completar o cenário, o jovem

seria pai em poucos meses. O grupo discutia coletivamente, dessa forma, a legitimidade

do pedido de Beto, mas a maioria estava fortemente contra: um deles inclusive afirmou

Page 119: Tese_Lia_Rocha_2009

110

que se recusaria a ir se ele fosse, pois se tratava de uma “maluquice”. Muitos

argumentavam: “você consegue um emprego e agora quer pedir demissão para viajar? A

ONG serve para te ajudar a encontrar um emprego, não para te fazer sair dele!” Outros

argumentavam ainda que ele acabaria sendo despedido por justa-causa, o que

dificultaria sua inserção em outro posto de trabalho, e assim quando seu filho nascesse e

ele não tivesse como sustentá-lo sua família acusaria “a ONG” de ter causado tal

situação. Expressavam assim uma preocupação que a imagem da ONG ficasse

prejudicada com o episódio, e argumentavam que o bem da ONG, enquanto coletivo,

era mais importante que o desejo de Beto de viajar. Ao final do debate prevaleceu a

decisão da maioria dos participantes, e o jovem não viajou com o grupo. Vale ressaltar

que a discussão se deu entre os jovens participantes, e não contou com a participação

dos coordenadores da ONG.

Além dos ganhos com os cachês das exposições da maquete, os jovens estão se

profissionalizando no ramo do audiovisual, e já atuam como diretores, roteiristas,

editores, diretores de arte e de fotografia, técnicos de som e aparelhagem, tanto nas

produções próprias do grupo quanto nas filmagens feitas por encomenda, ainda que

essas não sejam frequentes. O contato dos coordenadores da ONG com produtoras de

vídeo cariocas possibilitou que dois jovens participantes estagiassem nessas empresas,

mas essa experiência não resultou em oportunidades mais longas de trabalho após o fim

do estágio. Os pedidos feitos à produtora de filmes deles é uma fonte de renda para os

jovens: um canal de TV internacional, voltado para o público infantil, encomendou

quatro pequenos filmes para a produtora, que foram roteirizados, filmados e editados

pelos meninos, ainda que com o acompanhamento dos coordenadores da atividade. Em

outro momento, uma empresa contratou a produtora para realizar seu vídeo institucional

de final de ano, focado na categoria de “responsabilidade social” e apresentando

algumas ONGs que atuam no Rio de Janeiro. Nesses casos, o valor recebido é dividido

entre os participantes, e os meninos têm acesso a toda a negociação realizada e aos

valores pagos. No entanto, essa atividade não é tão consolidada e frequente quanto a

realização de exposições da maquete.

Outra fonte de ganho para os jovens é o projeto de “turismo sustentável” pois,

quando passeios à maquete são agendados, são os jovens participantes que atuam como

guias, recebendo uma porcentagem do valor pago por cada visitante. Esses passeios são

agendados diretamente na sede da organização ou através de contatos com empresas de

Page 120: Tese_Lia_Rocha_2009

111

turismo especializadas em um turismo de caráter “social”, e a parte mais representativa

dos visitantes são estrangeiros. Como os jovens participantes do grupo às vezes estão

envolvidos em outras atividades, algumas crianças moradoras da favela atuam também

como guias, passando assim a fazer parte da “nova geração” do grupo.

A proposta do “turismo sustentável” compartilha dos mesmos conceitos da

“economia sustentável” ou “sustentabilidade”, onde se busca (segundo os seus

defensores) equilibrar as necessidades de ganho econômico com preocupações com a

preservação do meio ambiente e das populações que podem ser atingidas pelos

empreendimentos econômicos realizados, seja social ou culturalmente. Assim, a

realização de um empreendimento de “turismo sustentável” na localidade pressupõe

reverter positivamente para o local o impacto da atividade; no caso, através do

engajamento dos jovens locais como guias. As ações de “turismo sustentável” em

favelas do Rio de Janeiro são cada vez mais frequentes, abrindo um promissor campo na

economia dessas localidades. O público-alvo são majoritariamente os turistas

estrangeiros que desejam experimentar a “vida na favela”, e em outras favelas cariocas

como a Rocinha já não se trata de novidade71. Freire-Medeiros (2005) identifica este

tipo de destino turístico como parte de um fenômeno recente chamado “reality tour”,

onde os turistas buscam

(...) viajar para lugares idealizados como locus de elementos autênticos pertencentes a outras culturas ou a um passado mistificado, ‘encenações’ das quais participam também os próprios nativos que se beneficiam das oportunidades de trabalho e renda gerados pelo turismo (Freire-Medeiros, 2005:6).

Entre estes “reality tours” a autora destaca os roteiros “sombrios” e os “sociais”.

Entre os primeiros estão lugares onde aconteceram tragédias como Nova Orleans pós-

Katrina, o Ground Zero das Torres Gêmeas em Nova Iorque, os campos de

concentração europeus e a região de Chernobyl. Já nos tours ”sociais” o objetivo é a

participação e a experiência autêntica. Entre estes destinos “sociais” encontram-se

visitas a acampamentos de trabalhadores rurais pertencentes ao Movimento dos Sem-

Terra e a presídios. O objetivo dessas visitas é, além da experiência “autêntica”, ajudar

71 Cf. Carneiro e Freire-Medeiros (2004) e Freire-Medeiros (2006).

Page 121: Tese_Lia_Rocha_2009

112

as populações envolvidas, través de um turismo menos predador, onde “tanto os

anfitriões quanto os hóspedes vivem uma experiência positiva de interação e

conhecimento mútuo” (Freire-Medeiros, 2005:7). A menção às experiências reais ou

realistas vai ao encontro do que é proposto pelo Morrinho: conhecer as favelas como

elas são. No material de divulgação do turismo local os visitantes são convidados a

desfrutar de uma “maravilhosa e segura experiência de arte e vida real” (Enjoy an

amazing and safe experience of art and real life, em inglês no original).

As favelas cariocas encontram-se agora entre os destinos do turismo social,

incentivados pelo governo municipal, que inclui visitas a algumas delas como parte do

roteiro turístico-ecológico da cidade72; Freire-Medeiros (2005) cita a Rocinha, o Morro

da Babilônia, o Morro dos Prazeres e o Morro da Providência. No final de 2008 a

Secretaria Municipal de Turismo, em parceria com o Ministério do Turismo, selecionou

15 ações de “turismo sustentável” em favelas para serem incentivadas com

financiamentos para suas atividades. O objetivo do edital que selecionou esses “projetos

sociais” é o de “dar educação, qualificar e gerar trabalho e renda, promovendo a

inclusão social”73. No caso do morro do Pereirão, o investimento permitiu a construção

de uma sede de acolhida ao turista (antiga casa da família do Cabeção, como

mencionado anteriormente), e a construção de outras instalações para melhorar e

expandir as atividades do grupo. Segundo o site feito especialmente para a ação de

turismo sustentável no Morro do Pereirão, são realizadas em média 80 visitas por mês, e

o objetivo é aumentar para 180/ mês.

A estrutura de turismo sustentável no Pereirão se completa com a Pousada

Favelinha, que propõe a seus hóspedes uma imersão no cotidiano da favela, já que eles

ficariam ali hospedados, convivendo com os moradores – ainda que em muitos aspectos

esse cotidiano assuma a forma de encenação, como aponta Freire-Medeiros, 2005.

Também no caso da pousada os clientes preferenciais são os turistas estrangeiros, pois

segundo a proprietária “os brasileiros têm medo de entrar em favela”.

Os diferentes ramos de atividade propostos pela ONG investem, portanto, na

profissionalização dos envolvidos em suas ações. No entanto, em diversos aspectos a 72 Cfr http://www.rio.rj.gov.br/riotur/pt/guia/?Canal=38.

73 Jornal do Brasil, “Turismo sobe o morro”, 28 de novembro de 2008.

Page 122: Tese_Lia_Rocha_2009

113

organização ainda funciona de maneira informal, e as relações pessoais entre os jovens,

e entre esses e os coordenadores e técnicos, são bastante importantes nas decisões sobre

os rumos do grupo. No caso mencionado acima, do jovem que queria pedir demissão

para acompanhar o grupo em uma viagem, a decisão foi tomada sem a participação dos

coordenadores da ONG, em uma reunião feita pelos jovens no local da maquete,

enquanto ensaiavam para a performance que seria apresentada no exterior. Nesse

mesmo dia, o coordenador convocou uma reunião na sede (na entrada da favela) para

discutir um tema que ele considerava importante, relacionado aos contatos que estavam

sendo feitos com uma instituição pública. Os jovens, todavia, não consideraram essa

reunião importante, e preferiram continuar o ensaio na maquete. Em outro dia, os jovens

discordaram sobre quais atividades deveriam ser realizadas naquele dia, véspera da

viagem à Áustria: enquanto a maioria escolheu confeccionar os bonecos, um deles

decidiu ensacar areia para a obra que está sendo realizada na sede de acolhimento dos

turistas. Por fim, ainda que exista uma separação entre profissionais e jovens, pois os

diretores de vídeo são os coordenadores da ONG, no final do campo fui surpreendida

com a notícia que a presidência da ONG estava sendo ocupada por um dos jovens, já

que o então presidente (um dos coordenadores) não teria disponível o tempo necessário.

Apesar de não ter entendido corretamente a diferença entre o cargo de coordenador e de

presidente, não posso deixar de notar que a hierarquia entre os membros do grupo não é

tão rígida quanto parecia à primeira vista.

Por último, a abertura da ONG permite que o grupo possa entrar no setor em

expansão do financiamento públicos e privados para “projetos sociais”, em sua maioria

ocupado por organizações não-governamentais. Em trabalho recente, Landim (2005)

discute dados de 2002 sobre o setor de Fundações e Associações sem fins lucrativos

(Fasfil) no Brasil74, mostrando como esse tem crescido nos últimos anos (o recorte

temporal da pesquisa é de 1996 a 2002), especialmente o setor de desenvolvimento e

defesa de direitos, onde se encontra a maior parte das ONGs, segundo a autora (2005:

83). Analisando os dados relativos às fundações e associações criadas mais

recentemente, a autora afirma que a maioria é de “vocação territorializada local e de

interesse geral (comunitárias e de moradores)”, e de defesa de direitos de grupos e

minorias (Landim, 2005: 82). Ela aponta ainda que este crescimento acontece em um

conhecido contexto de

74 Cf. ABONG et alli.

Page 123: Tese_Lia_Rocha_2009

114

(...) redefinição das relações entre Estado e sociedade, as transformações nas modalidades de regulação do laço social, as mudanças no mundo do trabalho e nas formas de solidariedade a elas associadas, o aumento da desigualdade e da desafiliação social, as dinâmicas de descentralização político-administrativas, etc. (Landim, 2005: 77).

Dessa forma, as ONGs apresentam características adequadas para atuar em um

cenário onde as mudanças são tantas e tão variadas, como descrito acima. Como afirma

Gohn (2002), a partir da década de 1990 a fome e a miséria passam a ser objeto da

preocupação de organismos internacionais que, ao propor medidas para combater esses

problemas, modificam o paradigma anterior de políticas universalistas, características

do Estado de Bem-Estar. Essas novas políticas reconfiguram a relação entre governo e

sociedade civil organizada, pois algumas das instituições que antes atuavam como

grupos de pressão e interlocutores do governo agora atuam como ‘parceiras’ na

execução de ações governamentais. Para que tal atuação seja possível é necessário um

maior grau de institucionalização dessas organizações, para que elas tenham capacidade

de sustentação e reprodução dentro do mercado, isso é, que sejam capazes de prestar

serviços e arrecadar recursos. Institui-se uma lógica diferente à que orientava os

movimentos sociais, mudando-se o cerne da relação entre poder público e sociedade

civil da interlocução para a “parceria”. Tal lógica atendeu ao mesmo tempo a duas

necessidades do governo, pois permitiu que fosse possível modificar as ações

implementadas e, concomitantemente, a estrutura administrativa da burocracia estatal,

enxugando a estrutura de cargos e transferindo responsabilidades para as ONGs (Gohn,

2002: 300). São as organizações institucionalizadas da sociedade civil que executam as

novas políticas sociais focadas nos pobres, em “parceria” com o poder público, que

entraria com os recursos financeiros necessários e manteria dessa forma o controle final

sobre o tratamento dado aos “problemas sociais”.

Nesse sentido, a profissionalização mencionada anteriormente responde às

necessidades não apenas daqueles que trabalham nas organizações, mas também dos

governos e organismos que nelas investem. Além disso, no caso específico do Rio de

Janeiro (que acredito ser comparável ao de outras cidades em alguns aspectos, mas que

possui ainda assim características próprias) as organizações não-governamentais se

apresentam como os atores sociais mais adequados a executar as políticas sociais que

Page 124: Tese_Lia_Rocha_2009

115

dão tratamento diferenciado aos moradores das áreas populares, e que nos últimos anos

se inscrevem no contexto de combate à violência urbana, como veremos na seção

seguinte.

No entanto, antes de terminar essa seção é importante mencionar que a criação

da ONG representa também, para alguns dos seus participantes, uma forma de “ajudar a

comunidade”. Por um lado, acreditam estar divulgando uma imagem positiva do Morro

do Pereirão, através da divulgação do próprio trabalho. Segundo um dos participantes

entrevistados, alguns jovens moradores do local têm vergonha de dizer onde moram,

pois o Pereirão teria pouco “reconhecimento” entre os moradores de favela, por ser uma

favela pequena, sem atividades como bailes funk, por exemplo. A imagem positiva da

favela seria também divulgada para fora do circuito de moradores de favela, e inclusive

“no exterior”, o que aumentaria a auto-estima dos moradores. Por fim, especialmente

nas falas dos participantes mais velhos, a possibilidade de servir como exemplo para as

crianças da localidade e de transmitir a elas o que aprenderam é descrita como uma das

maiores recompensas alcançadas. Segundo Cabeção:

Você está vendo que a molecada da comunidade não está indo para o caminho da violência, estão seguindo o caminho que eu segui. Você vê eles se espelhando em você. Sente emoção. Acho que isso é consideração e respeito. (em entrevista concedida a uma equipe universitária75).

Considerando que representar positivamente o Pereirão aparece como um dos

objetivos dos participantes, chamou-me a atenção que a violência e os traficantes de

drogas estejam presentes na produção audiovisual realizada, o que poderia representar

um contrasenso. A tensão entre ser fiel à realidade das favelas e apresentar uma imagem

positiva delas também está presente na prática de outros grupos de moradores de favelas

que trabalham com representações alternativas da favela: artistas que produzem imagens

para serem consumidas por turistas que vão as favelas (Freire-Medeiros, Menezes e

Nunes, 2008); grupos de fotógrafos oriundos das favelas e que fazem delas seu principal

tema (Gama, 2009); ONGs organizadas em torno da memória das favelas, etc. No

entanto, a representação de traficantes de drogas no material produzido não é usual,

75 Vídeo disponível no YouTube, no canal do grupo.

Page 125: Tese_Lia_Rocha_2009

116

ainda que em muitos desses casos a busca por autenticidade nas reproduções feitas não

permita esconder a existência desses atores. Por exemplo, o turismo em favelas é

orientado para proporcionar ao turista uma experiência real (Freire-Medeiros, 2007), e

por isso os visitantes vêem os traficantes, ainda que sejam orientados a não fotografá-

los. No entanto, os traficantes não são representados nos souvenires produzidos por

moradores e vendidos aos participantes dos tours. Os traficantes também não aparecem

nas fotografias feitas pelos “fotógrafos favelados” profissionais, ainda que nesse caso

esteja evidente que os traficantes não permitiriam serem fotografados de qualquer

maneira. Contudo, nas duas formas de representar favelas mencionadas acima mais

detalhadamente, os moradores envolvidos querem apresentar ao “de fora” a realidade da

favela, e selecionam como tema de seu trabalho também questões como as condições

precárias de moradia, de saneamento, etc., mas apresentando com bastante ênfase os

aspectos positivos. A produção da TV Morrinho parece, por outro lado, se focar quase

que exclusivamente sobre esses agentes, ainda que outros temas tenham aparecido nos

materiais mais recentes e profissionais. Dessa forma, a imagem positiva que os jovens

participantes dizem produzir pode estar mais ligada ao aspecto cênico (a maquete) do

que a produção de vídeos. Além disso, a elevação dos jovens participantes a condição

de artistas parece cumprir para eles a função de ser uma representação positiva sobre as

favelas e seus moradores.

3.4 Os múltiplos significados do Morrinho.

3.4.1 Colocando a violência em evidência, mas como problema.

Desde o começo do trabalho de campo no morro do Pereirão me chamava

atenção como o discurso local sobre a “tranquilidade” naquela favela (cf. capítulo 2)

contrastava com outras falas que recolocavam naquele território a questão da violência e

da submissão imposta pela contigüidade territorial com os traficantes de drogas. E uma

das falas que mais me pareciam contrastantes era o discurso da importância da

existência e manutenção do Morrinho enquanto um “projeto social” cuja finalidade seria

Page 126: Tese_Lia_Rocha_2009

117

manter seus jovens participantes afastados de “riscos” sociais, como a adesão ao tráfico

de drogas.

Entre os profissionais do campo da assistência social e de organizações não-

governamentais, o conceito de “risco social” é bastante acionado, assim como o de

“vulnerabilidade social”. Ainda que façam parte do mesmo repertório, porém, os

conceitos têm significados um pouco diferentes. O conceito de “vulnerabilidade social”

tem sido usado pelo Banco Mundial, ONU, CEPAL e outras agências internacionais

como conceito alternativo ao de pobreza, que não levaria em conta a complexidade de

suas causas, nem os diferentes recursos de que dispõem os pobres e que não podem ser

medidos de maneira monetária. Assim, propõem o conceito de “vulnerabilidade social”,

entendido como:

(...) o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólico dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêem do Estado, do mercado e da sociedade (Abramovay et alii, 2002: 28).

O conceito de “risco”, por outro lado, é bastante trabalhado pela teoria

sociológica. O risco é o efeito nefasto da modernidade (Giddens, 1991), é uma ameaça

que pode atingir a todos, mas com a qual podemos conviver desde que nos sintamos

seguros. O conceito de “risco social”, por sua vez, pressupõe o conceito de convivência

com o perigo acionada por Giddens: dizer que um jovem está em “risco social” é dizer

que ele ainda não foi atingido pelo perigo, mas está sendo ameaçado. No entanto, o

“risco social” não é homogêneo em sua abrangência; os que podem estar em “risco

social” são os que se encontram, permanentemente, em situação de desvantagem social,

quase sempre de pobreza. Mas ainda que seja usado freqüentemente pelos profissionais

do campo do trabalho social e também por alguns acadêmicos, o conceito não é definido

e delimitado como o de “vulnerabilidade social”; utilizado nos contextos de avaliação

dos problemas sociais urbanos e de proposição de intervenções sobre eles, o conceito

está quase sempre referido aos jovens moradores das grandes cidades e aos perigos a

que estão submetidos por serem agentes e vítimas preferenciais da violência urbana.

Como afirmam Cardia et alii (2003), o conceito de risco alcança “múltiplos atores e

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118

múltiplas formas de atividades”, mas “No mundo ocidental moderno, um dos grupos

mais vulneráveis ao risco social é o constituído por jovens”.

Por sua referência direta à proximidade e ameaça representada pelos agentes da

violência urbana, falar em jovens “em risco social” me pareceu “fora de lugar” quando

confrontada aos discursos sobre ausência de tráfico de drogas no local. No entanto, esse

argumento foi utilizado pela coordenação da ONG, por alguns de seus jovens

participantes e por outros moradores. Quando iniciei o trabalho de campo fui

apresentada à iniciativa pelo então presidente da associação de moradores como algo

muito importante e valioso para os moradores, pois impedia que os jovens “tivessem

ideias ruins ou fizessem coisas erradas” ao ocupar seu tempo livre. Em uma das

primeiras entrevistas que realizei com o coordenador da ONG, em outro exemplo, ele

relatou o caso de um ex-participante do projeto que, mesmo sendo office-boy da Finep

(posição conseguida através de mediações feitas pela organização), escolheu trabalhar

para o tráfico de drogas em uma favela vizinha e acabou sendo assassinado. Segundo o

coordenador, se não fosse pelo projeto pelo menos quatro dos dez jovens que

participavam então da ONG teriam feito a mesma escolha, pois “as necessidades de

consumo e de poder exercem uma pressão muito grande sobre eles”. Também nas

entrevistas dadas pelos jovens participantes aos meios de comunicação a participação na

ONG é apresentada como uma “alternativa” à entrada na vida criminosa; um dos jovens

participantes menciona76 inclusive que cogitou entrar para uma quadrilha de traficantes,

chegando a ter “uma arma nas mãos”, mas que mudou de ideia porque a ONG lhe abriu

outras oportunidades.

Além dos relatos recolhidos e das entrevistas, o argumento que apresenta o

“projeto social” executado pela ONG como uma maneira de evitar ou contornar o “risco

social” que existiria potencialmente na localidade é diversas vezes acionado no Plano de

Negócios77 para suas atividades no ano de 2007 (material disponível no site do grupo).

Por exemplo, o segundo objetivo descrito no plano de negócios é: “Diminuir o nível de

violência e criminalidade na Comunidade do Pereirão”. Em seguida, entre os

indicadores que avaliarão o desempenho do trabalho realizado a ONG apresenta: 76 Além da declaração dada a um jornal, o jovem relatou a mesma história em um “coletivo de confiança” realizado durante a pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”.77 O Plano de Negócios é um projeto que apresenta os objetivos, ações, resultados esperados, fraquezas e forças de iniciativas que podem ser no campo do trabalho social, como no caso, ou em empreendimentos econômicos. Em geral tal plano é utilizado como material a ser apresentado a potenciais investidores.

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119

“Abandono das atividades relacionadas ao tráfico de drogas”; ou seja, que o número de

jovens participantes das atividades do projeto que tinham envolvimento com ações do

tráfico de drogas e que as abandonaram será utilizado como uma medida da eficácia do

trabalho. Os objetivos apresentados, assim como os indicadores, são bastante similares

aos de outros “projetos sociais” que atuam em favelas do Rio de Janeiro. No entanto, a

mobilização do argumento do perigo potencial de adesão dos jovens da localidade ao

tráfico de drogas parece em descompasso com a descrição feita da favela, inclusive no

mesmo Plano de Negócios mencionado; os autores apresentam como uma das forças do

projeto a “Ausência de tráfico armado na região”.

O descompasso que eu identificava entre os discursos da “tranquilidade local” e

do “risco social” a que seus moradores estariam expostos se estendia também sobre a

história dos jovens participantes e da formação do grupo. Afinal de contas, a maquete

tinha sido construída exatamente porque os jovens participantes, à época meninos,

buscavam um refúgio para se protegerem dos constantes conflitos ligados ao comércio

de drogas existentes no local. Em sua origem, ainda que assumindo atualmente

contornos de mito ou lenda (como é bastante comum quando relatamos histórias do

passado ou da infância), o Morrinho é a rejeição dos jovens à violência real que era

bastante próxima deles, ainda que através da recriação dessa violência enquanto

brincadeira e performance. Logo, me parecia pouco lógico justificar a existência de um

“projeto social” com o argumento de impedir a entrada daqueles jovens no tráfico de

drogas, já que eles mesmos tinham rejeitado essa possibilidade anteriormente; além de

pouco lógico, me parecia ofensivo aos participantes que eles fossem apresentados

publicamente como vulneráveis a aderir ao crime.

Apesar disso, o discurso do Morrinho enquanto “projeto social” para impedir a

entrada dos jovens no tráfico de drogas faz todo o sentido dentro do quadro maior em

que se encontram as favelas cariocas, bem como as políticas de combate à violência que

são nelas executadas. O enquadramento dessas políticas sociais enquanto ações

específicas para os territórios populares e para seus moradores, sobretudo os jovens, é

“ajustado” à relação de dominação estabelecida pelo resto da cidade sobre as favelas

desde seu surgimento, no final do séc XIX. Tal enquadramento não apenas representa

uma continuidade dos dispositivos de controle e repressão existentes sobre essa

população, como incorpora sua atualização, na qual as favelas são um “‘mal’ a se

irradiar para a cidade” (Leite, 2000: 74), e seus moradores são coniventes com os

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120

traficantes de drogas que ocupam seus locais de moradia e, portanto, alvo das ações

realizadas nessa “guerra” (Leite, 2000, 2008).

Desde que as favelas passaram a ser vistas como um “problema” , como aponta

Valladares (2005), são planejadas e executadas ações que diferenciaram os territórios

populares (incluindo as favelas) do resto do território da cidade, enquadrando sua

população de maneira diferenciada e, quase sempre, discriminatória. A autora apresenta

com detalhes como a representação social desses espaços enquanto um mundo à parte –

insalubre, anti-higiênico e contagioso (2005: 37) – orientava as políticas públicas a

serem ali executadas, desde as medidas para remoção dos cortiços até a políticas que

visavam administrar e controlar as favelas e suas populações (2005: 49). Nas décadas

que se seguiram ao surgimento das primeiras favelas, as ações públicas sobre elas

visavam sua eliminação, assim como de outras formas de habitação popular como os

cortiços, por seu caráter de “doença, mal contagioso, patologia social a ser combatida”

(Valladares, 2005: 40). A partir dos anos 1930, porém, há uma inflexão na

representação social sobre as favelas, por conta do governo do presidente Getúlio

Vargas, ainda segundo a autora (2005: 49). É na década de 1940, ainda no governo

Vargas, que são criados os Parques Proletários, exemplos de uma nova concepção do

poder público sobre as favelas e seus moradores (Burgos, 2003). Nos Parques

Proletários foram realojados entre sete e oito mil moradores de favelas, e seu objetivo

era não apenas fornecer melhores condições de moradia, mas principalmente:

(...) dar assistência e educar os habitantes para que eles próprios modificassem a sua prática, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir a sua saúde física e moral (Valladares, 2005: 62).

Assim, a existência de políticas territoriais cujo foco são os moradores de

favelas não é novidade, nem seu caráter de “controle de seus comportamentos e do seu

acesso à cidade” (Birman, 2008: 102). Farias (2008) argumenta que as medidas

implantadas para solucionar o “problema” dos moradores de favela teriam por

pressuposto o não compartilhamento por esses do mesmo estatuto dos outros cidadãos

da cidade, necessitando serem objeto de “pedagogias civilizatórias” e “ajustamentos

morais” que, como bem ressalta a autora, se aproximam das medidas analisadas por

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121

Foucault para os pobres, mendigos e loucos na Paris retratada em História da Loucura

(Foucault, 2005b).

Logo, observa-se que as favelas e territórios populares sempre foram local de

políticas diferenciadas, que visavam controlar e disciplinar sua população. No entanto, o

contexto de explosão da violência urbana nos anos 1990 e a sua relação com o tráfico de

drogas inauguram uma nova representação sobre as favelas, que seriam o território da

violência e seus moradores cúmplices dos responsáveis pela violência, os traficantes de

drogas, por “escolherem” viver sob a “lei do tráfico” e não sob a “lei do país” (Leite,

2008: 117). A partir dessa representação surgem apelos por políticas repressivas de

combate ao crime, como demonstrou Leite (2000, 2005):

Neste cenário, o medo do crime violento associou-se ao aumento do preconceito e da discriminação em relação à população que vive nesses territórios, gerando apoios, mais ou menos explícitos, de consideráveis segmentos das camadas médias e abastadas e setores da mídia, a políticas repressivas de segurança pública, que pressupõem a incompatibilidade entre resultados eficientes no combate à violência urbana e respeito aos direitos civis de moradores e moradoras dos territórios favelados. Assim, vêm se renovando e aprofundando as barreiras para seu pleno direito à cidade e à cidadania (Leite, 2005: 66).

As políticas repressivas atuais inauguram um novo momento nas relações entre

sociedade, Estado e favelas, com o endurecimento da repressão e um distanciamento

cada vez maior entre os que moram nas favelas e os moradores do “asfalto”, o que

permite que a duplicidade das políticas públicas, uma para o “asfalto” e outra para o

“morro”, fique ainda mais legitimada e autorizada, como fica evidente nas declarações

do atual secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame, que ao falar sobre o

uso de armas não-letais pela polícia militar do Rio de Janeiro avisou a população que

elas continuariam a ser usadas nas áreas de risco, i.e., as favelas. Citando o artigo: “As

operações em favelas, segundo Beltrame, são casos diferentes78”.

Ainda que a duplicidade de ações públicas permaneça a mesma, o conteúdo

dessas ações se modifica, incorporando a nova representação social de “guerra” contra o

crime e, por extensão, contra as favelas. No bojo do aumento da preocupação com a

violência urbana durante os anos 1990 surgem diferentes explicações para a sua causa e 78 PM já treina com armas não-letais. JB Online. 24 de Julho de 2008.

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122

propostas para a sua solução, que foram sintetizadas por Leite (2000: 74) em duas

linhas. Uma delas demandaria mais ordem e repressão, e defenderia que os direitos dos

moradores das favelas não poderiam ser um impedimento para o combate aos

criminosos escondidos nelas. A outra seria composta majoritariamente por intelectuais,

ONGs e alguns profissionais da comunicação, e defenderia que o combate aos

traficantes de drogas deveria aliar “políticas de promoção da cidadania, destinadas

principalmente a jovens moradores” dessas áreas e iniciativas de segurança públicas

mais eficientes (Leite: 2000:74). Ainda hoje o debate sobre as causas da violência e as

soluções para combater a criminalidade comporta os dois discursos, que disputam

cotidianamente a autoridade sobre a questão. Ambas orientam as ações públicas, pois

vemos ao mesmo tempo um investimento crescente nas políticas de confronto entre

policiais e traficantes de drogas, que resultam em mortes diárias nas favelas (e em

menor número entre policiais), e um investimento em ações que prometem incluir

socialmente os jovens moradores de favelas, como as realizadas por diferentes ONGs

com financiamento público79.

O papel da política social passa a ser, portanto, evitar que os jovens escolham a

carreira criminosa, pois se acredita que a causa da adesão desses à criminalidade seja

sua “exclusão social”. Soares (1996), por exemplo, argumenta que a grande maioria das

vítimas e dos agentes da violência urbana são os “jovens excluídos da cidadania” e que,

portanto, uma das medidas para controlar esse fenômeno é “implementar políticas

públicas e iniciativas da sociedade civil criativas e intensas, emergenciais, voltadas

prioritariamente para a integração da juventude pobre” (Soares, 1996: 258). Assim, os

“projetos sociais” precisam disputar os jovens moradores de favela com os traficantes,

criando “(...) condições de atração da juventude pobre, bloqueando sua cooptação pelos

grupos que operam o tráfico de drogas e de armas (...)” (1996: 298). Segundo Machado

da Silva (2008a), o pressuposto que orienta essas ações é a crença na possibilidade de

cancelamento ou redução das condutas criminosas através de modificações

79 No dia 21 de janeiro de 2009 foi assinado um acordo entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Ministério da Justiça para a liberação de R$ 60 milhões para projetos sociais e esportivos em “áreas carentes” da cidade, vindos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Cf. Segurança: Prefeitura receberá R$ 60 milhões. Globo Online, 21 de janeiro de 2009. Ainda no mesmo mês o Governador Sérgio Cabral anunciou que irá liberar R$ 1,5 milhão para investimento no “projeto social” do grupo AfroReggae, na localidade de Vigário Geral. Cf. AfroReggae ganha novo centro cultural. Globo Online, 14 de janeiro de 2009. No ano de 2008 foi anunciado pelo governo federal que o Rio de Janeiro irá receber R$ 99,9 milhões para investir em ações de segurança pública, também com verba do Pronasci. Cf. Ministério da Justiça libera verbas para estado, e Tarso afirma que Pronasci deve ter efeito em 3 ou 5 anos. Globo On line, 27 de junho de 2008.

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123

institucionais – que buscariam solucionar a “ineficácia intrínseca das leis” ou “a

incapacidade das agências de administração da justiça de fazê-las cumprir” – e de

iniciativas de caráter “civilizador” que diminuiriam o risco da opção pelo crime. No

entanto, o autor chama atenção para o fato de que, no debate sobre a “violência urbana”,

as análises que localizam o problema na ordem social institucional-legal jogam “na

obscuridade” a reflexão sobre o conjunto de práticas sociais que deram origem ao

problema, e que compõem a forma de vida em que estão inseridos os traficantes de

drogas (2008a: 40).

As políticas sociais voltadas para os jovens no Brasil, no geral, enquadram esse

grupo como “problema” mesmo quando não são executadas em favelas. Para Abramo

(1997), o interesse sobre a questão da juventude no Brasil80 não é apenas do poder

público – através de políticas voltadas para a formação profissional e serviços de saúde,

cultura e lazer – mas também de organizações não governamentais, associações

beneficentes, instituições de assistência, etc. No entanto, muitas dessas ações têm por

objetivo, direta ou indiretamente, conter o risco real ou potencial que esses jovens de

camadas pobres dos centros urbanos brasileiros representam, através de seu afastamento

da rua e da ocupação de suas “mãos ociosas”. Isto se daria porque desde a década de

1990 o jovem tem tido na mídia e na opinião pública o estatuto de problema social, de

vítima e ator da desordem. Nessa década eram freqüentes as matérias jornalísticas sobre

meninos de rua, jovens envolvidos em arrastões, surf ferroviário, gangues, galeras,

vandalismo, grupos de pichadores, etc. Assim, a sociedade voltava sua atenção para a

deficiente integração desses jovens, em sua maioria de classes subalternas e moradores

de periferias, ao mundo dos adultos, da ordem social e do trabalho, e demandava a

intervenção tanto dos programas públicos quanto da sociedade civil na resolução deste

problema social.

Segundo Sposito e Carrano (2003), é no bojo do crescimento tanto do tráfico

quanto do consumo de drogas por jovens na década de 1990 que o governo Fernando

Henrique Cardoso cria um conjunto de ações focadas na juventude:

80 Para a autora, o interesse na juventude é recente no Brasil, datando dos anos 1990, mas na Europa e nos Estados Unidos desde o começo do séc. XX agências governamentais são focadas nos jovens, o mesmo acontecendo entre outros países da América Latina, em função do estímulo de organismos como a CEPAL, ONU e de intercâmbios com o governo espanhol (Cf. Abramo, 1997).

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124

Sob a égide da segurança pública foi criado o Programa do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, sob o controle de um general do exército, num claro simbolismo da ‘guerra’ que deveria se travar pela salvação da juventude das garras do crime, do tráfico e da violência (Sposito e Carrano, 2003: 30).

Ainda segundo os autores, os indicadores sobre desemprego juvenil e aumento

da exclusão social desse segmento apontaram para a necessidade de políticas de

assistência e integração social voltadas para os jovens. Nesse sentido, algumas políticas

apresentam outras preocupações que não a criminalidade juvenil. É dentro dessa

perspectiva que surgem as políticas de capacitação profissional, englobadas em sua

maioria pelo Projeto Comunidade Solidária81. Ainda que o foco na entrada no mercado

de trabalho dos jovens permaneça atualmente na orientação das principais políticas

públicas, vide o Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego do governo

federal82, o tema do “risco” ou da “vulnerabilidade” social dos jovens moradores de

favela permanece como uma justificativa acionada pelos representantes das entidades

executoras dessas políticas, como observei em outro trabalho (Rocha e Araújo, 2008:

15).

O discurso que apresenta os jovens como vulneráveis aos riscos representados

pelos traficantes de drogas e que, portanto, precisam ser protegidos pelo poder público e

pela sociedade civil, tem por efeito reforçar a representação existente sobre a

aproximação entre traficantes e moradores de favelas, especialmente os jovens, como

apontam Machado da Silva e Leite (2008):

Aqui talvez resida o mais claro exemplo do encontro entre representação, construção de problemas públicos e políticas de intervenção. Com efeito, as ideias de cumplicidade com os criminosos são em boa parte sustentadas, reproduzidas e objetivadas pelas próprias políticas sociais e/ou ações filantrópicas destinadas aos moradores de favelas em geral e, especialmente, aos seus segmentos mais jovens. À sua orientação claramente focalizada e compensatória é adicionada uma filosofia justificadora que penaliza a clientela, sempre pensada como potencialmente

81 Criado em 1995 pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso e coordenado por sua esposa, a antropóloga Ruth Cardoso, tinha como principal conceito a articulação entre grupos da sociedade civil e o poder público para o enfrentamento da pobreza e da exclusão social. 82 O Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego é uma iniciativa do Ministério de Trabalho e Emprego de geração de oportunidades de trabalho para jovens entre 16 e 24 anos, sem experiência prévia no mercado de trabalho formal, que possuem renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Através de subvenções econômicas às empresas empregadoras – R$ 1.500 por ano/por vaga – o projeto pretende gerar postos de trabalho direcionados para jovens participantes do programa. Cf. Rocha e Araújo, 2008.

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125

criminosa. Os programas passam a ser formulados e implementados em um viés repressivo/preventivo, como uma espécie de ampliação dos instrumentos de controle social, visando a afastar as categorias sociais “vulneráveis” ou “de risco” das tentações da carreira criminal. (Machado da Silva e Leite, 2008: 50-1).

Os discursos do “risco social” têm por efeito perverso o reforço do estigma que

recai sobre os jovens que buscam atender, pois os classifica como potencialmente

criminosos, e servem de justificativa para ações e programas públicos que possuem um

caráter disciplinador, como observado em outro trabalho (Rocha e Araújo, 2008). Ao

analisar as falas de jovens participantes do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro

Emprego (PNPE), do governo federal, percebemos as freqüentes menções a medidas de

caráter disciplinador, que possuíam peso mais elevado na qualificação desses jovens que

conhecimentos técnicos específicos ou conhecimentos mais amplos sobre processos de

trabalho e gestão. Entre essas medidas foi destacada uma grande preocupação com as

roupas usadas pelos participantes (eles eram orientados a não usar roupas curtas e

justas), mas também eram feitos comentário sobre marcas corporais identificadas como

comuns entre moradores de áreas periféricas, como cortes e descoloração de cabelo,

especialmente no caso dos meninos. O mesmo era feito em relação ao vocabulário por

eles utilizados: gírias identificadas como de “favelados” eram desestimuladas, com o

argumento de que não seriam aceitas por seus potenciais empregadores (Rocha e

Araújo, 2008: 11-2).

A combinação entre proteção dos jovens e criminalização desses não é, contudo,

um fenômeno recente. Lefebvre (2008) demonstra que datam do final do séc XIX na

França medidas governamentais que expressavam preocupação com “enfants en

danger” ou “moralement abandonnés”, que também eram apresentadas como futuros

delinqüentes e criminosos. Tal discussão teria, segundo o autor, mais proximidade com

as preocupações com as classes perigosas à época do que com questões sobre a proteção

das crianças. O autor mostra como, mesmo após uma guinada na legislação sobre a

infância em direção a preocupações com a solidariedade social, o conceito de prevenção

à delinqüência juvenil sempre fez parte das ações públicas e privadas voltadas para esse

segmento, e que ainda nos dias atuais o sistema de proteção à infância se encontra

dividido entre as figuras do menor abandonado e do delinqüente juvenil. Já Niget

(2008) apresenta como, na primeira metade do séc XX, a preocupação com a criança

abandonada desliza do campo penal para o social, e em seguida para o da profilaxia

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126

física e mental (2008: 20). O resultado deste “intrigante casamento” (ou “hibridização”)

entre o campo penal e o social é uma ação pública sobre os jovens ao mesmo tempo

protetora e autoritária (2008: 23-4). No entanto, nos dias atuais as crescentes taxas de

criminalidade, sobretudo juvenil, e a incapacidade dos governos de controlar a violência

vêm colocando novamente a juventude em evidência como alvo das políticas de

manutenção da ordem. Segundo o autor, observamos atualmente o retorno das

demandas por aprisionamento de jovens nos países ocidentais, representando um novo

movimento no pêndulo entre os campos penais e sociais. Ou, como disse o autor, uma

“(re) pénalisation” do campo social (2008:23).

Nesse sentido, o discurso sobre o “risco social” a que estariam expostos os

jovens do Morro do Pereirão pode parecer “fora do lugar” vis-à-vis à construção

daquela favela como “diferente das outras”, mas ele se apresenta como “ajustado” ao

discurso vigente sobre as favelas e sobre como resolver seu “problema” (Machado da

Silva, 2002), como argumento no próximo capítulo e na conclusão. Mas o fato de terem

se tornado ONG, e de incorporarem o discurso do “risco social”, faz pensar sobre a

recolocação da questão da violência urbana em uma localidade onde esse tema é

silenciado pelos moradores, ainda que a maneira como essa colocação é feita esteja

orientada pelos discursos de estigmatização dos moradores de favelas. Na próxima

seção, apresento outra forma pela qual o grupo discute a violência e a relação dos

traficantes de drogas com os territórios favelados: através da experiência de ser “dono”

do morro.

3.4.2 Colocando a violência em evidência, mas como experimentação.

Toda criança quando nova fala: ah, eu quero ser bandido!

(depoimento colhido no coletivo de confiança da pesquisa

“Rompendo o cerceamento da palavra: favelados em busca de

reconhecimento”).

Desde o começo do trabalho de campo chamou minha atenção a temática das

encenações realizadas na “brincadeira” daqueles jovens: â primeira vista, tratava-se de

Page 136: Tese_Lia_Rocha_2009

127

jovens brincando de ser traficantes de drogas, e mais ainda, de “donos” de “favelas”,

controlando um exército de bandidos, “soldados”, e engajados nas questões relativas a

essa carreira: confrontos armados, negociação com policiais, venda de drogas,

organização de eventos como “bailes funk”, etc. Pareceu-me estranho que a encenação

da vida de traficantes de drogas, sem condenação moral de sua atividade, fosse o centro

das atividades de um grupo que se apresentava como um “projeto social”. Além disso, a

brincadeira não me pareceria tão estranha se fossem crianças brincando, o que é fato

corriqueiro nas favelas cariocas há bastante tempo (Cf. Zaluar, 1985), mas o fato de

serem jovens homens brincando “de bandido” me pareceu diferente83. Talvez por causa

dessa primeira impressão criei uma resistência inicial a encarar o grupo como produtor

de uma expressão artística que falava, direta e abertamente, sobre um tema que estava

sempre em suspenso nas conversas estabelecidas com os outros moradores do local: a

existência nos territórios das favelas de quadrilhas de traficantes de drogas e os efeitos

da convivência forçada sobre a rotina e a sociabilidade dos moradores.

Ao iniciar minha pesquisa no Pereirão estava mobilizada pela representação

local – que para mim se apresentava de forma bastante frequente como dúvida – de que

se tratava de uma favela “diferente das outras”. Assim, foi com surpresa que encontrei,

no meio deste território, bandidos armados – ainda que feitos de plástico. Causava-me

estranhamento o fato da brincadeira girar inteiramente em torno da rotina dos traficantes

de drogas não fosse uma questão a ser “justificada” para ninguém: nem para o

presidente da associação de moradores, que primeiro me apresentou ao grupo, nem para

os coordenadores da organização, nem para os jovens. Ao contrário, a temática da

“brincadeira” era inclusive descrita pelos coordenadores e jovens participantes como

uma “representação da verdade”:

Não existem heróis no Morrinho, os meninos representam a realidade da cidade do Rio de Janeiro, ainda que de uma forma bem violenta. Mas toda brincadeira tem sua violência (Coordenador da ONG).

83 Adultos brincando não é nada excepcional. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal O Globo, mais de 50% dos adultos americanos jogam videogames, e entre 18 e 29 anos o índice aumentaria para 81%,segundo pesquisa de Pew Internet & American Life Project. Cf. matéria no site O Globo Online “Mais de 50% dos adultos dos EUA jogam videogames, revela pesquisa”, publicada em 09 de dezembro de 2008.

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128

Obs: Ver boneco armado à esquerda, tomando conta do prédio da “prefeitura”. Foto da autora

Para os jovens a opção pelo tema da vida dos traficantes de drogas aparece como

evidente, como me disse várias vezes Cabeção: “Retratamos a vida das favelas como ela

é”. Em uma das minhas visitas ao grupo perguntei a ele se era possível uma “favela” na

maquete não ter “dono”, tentando fazer um paralelo com a experiência do Pereirão, uma

favela “sem tráfico”. Para a minha surpresa, a resposta foi: “Claro que não, não existe

favela sem ‘dono’!”. Quando mencionei o Pereirão, como exemplo de “favela sem

dono”, ele modificou os termos da conversa, passando de uma discussão mais geral

sobre as favelas do Rio de Janeiro para o nível particular da maquete, dizendo que eles

tinham feito uma vez a reprodução do Pereirão na maquete, mas que por falta de

cuidado do seu ‘dono’ ela tinha sido destruída pela chuva e em seu lugar foi construída

outra favela. Em outro momento fiz referência aos lemas escritos em placas e colocadas

ao longo da maquete, que em sua grande maioria fazem referência ao imaginário sobre

os traficantes de drogas: falam sobre traição e inimigos, sobre informantes da polícia,

sobre guerra e confrontos:

Quem nunca errou que atire a primeira pedra, ou dê o primeiro tiro.

Vivo fui traído, preso esculachado, morto deixarei saudades.

Todos aqueles que me invejam um dia terão o castigo que merecem.

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129

Dizem que eu não rezo pela alma dos meus inimigos. Mentira. Rezo para que elas queimem no inferno.

Novamente, quando perguntei sobre as frases, de onde elas vinham, me disseram

que ouviam dos amigos e, quando gostavam, colocavam nas placas. Além das

referências nas placas, e dos bonequinhos armados, as encenações também fazem

referência direta aos traficantes. No canal de vídeos do grupo, entre quase noventa

vídeos diferentes, oito são vídeos com encenações e quatro apresentam histórias

“estreladas” por traficantes, como apresentado a seguir:

Putaria, Marcola e Bill: dois traficantes, Marcola e Bill, vão a um bordel e são enganados pelas prostitutas, que aplicam o golpe conhecido como “Boa noite, Cinderela”, onde a vítima consome uma bebida com um forte calmante e dorme, permitindo que o criminoso a roube sem resistência. O vídeo termina com as prostituas passeando pela maquete no carro dos traficantes.

Cena do Ratatá: “Sargento Trincado” e “Cabo Neurose” ligam pelo rádio para os traficantes do Morro do Ratatá, cobrando o pagamento da propina realizado semanalmente. Os traficantes argumentam que já pagaram o “arrego” a outro policial que se apresentou como amigo do Sargento, e os dois entram em conflito. Começa a troca de tiros entre os traficantes e os policiais, que pedem reforço ao Batalhão onde estão alocados. Mas quando o reforço chega são os policiais que têm uma surpresa, pois foi o coronel responsável pelo Batalhão que tinha recebido a propina que lhes era devida. Ao final os dois policiais são punidos pelo coronel.

O destino insólito de Alex: filmado quase em câmera lenta, com apuro cênico e música de filme de ação, o vídeo mostra o acidente de carro que causou a morte do traficante Alex, e como a polícia comemorou ao identificar quem era a vítima do acidente.

Lágrima e revolta pelo irmão Alex: continuação do vídeo anterior, mostra a família do traficante e os moradores da localidade onde ele “atuava” (a favela do Fogueteiro) iniciando uma manifestação para denunciar que a morte de Alex não foi um acidente, e sim um homicídio perpetrado pelos policiais. Os moradores gritam: “Mataram o Alex! Covardes! Justiça! Justiça!” O vídeo acompanha o Coronel Araújo, que dá uma entrevista a uma rede de TV afirmando que Alex fazia, no momento do acidente, o transporte de armas e drogas entre favelas, e que foram encontrados junto ao corpo quatro quilos de cocaína. Em seguida, a polícia ameaçaos manifestantes que começam a descer o morro: “Quer protestar? Daqui para lá! Porque se ultrapassar... a porrada vai comer!”. O vídeo termina com a família de Alex chorando.

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130

O primeiro vídeo é uma anedota sobre a vida dos bandidos, fazendo referência a

ambientes e figuras marginais, como bordéis e prostitutas. Ainda que seja protagonizado

por bandidos (um deles com o mesmo apelido de um criminoso famoso, líder da facção

que controla diversos presídios brasileiros, o Primeiro Comando da Capital, e

atualmente preso: Marcos Camacho), nesse vídeo os bandidos são vítimas, enganados

pelas prostitutas. Em outro vídeo – do qual assisti apenas os ensaios, mas que ainda não

está disponibilizado na Internet – os bandidos também são ridicularizados, passando por

situações humilhantes. No entanto, nesse vídeo a figura do “chefe do morro” aparece

como positiva, pois ele é o árbitro que castiga os bandidos que tinham desviado uma

carga de drogas e colocado a culpa em um artista da favela. O segundo vídeo descrito

acima tem o aspecto de denúncia, ainda que em tom de comédia, da relação de

promiscuidade e corrupção entre bandidos e policiais. Aqui não existem heróis e vilões,

todos estão envolvidos na dinâmica do comércio ilegal de drogas. A crítica à polícia

permanece nos dois vídeos seguintes, onde os policiais comemoram a morte de um

traficante e impedem a sua família de protestar. No entanto, ainda que pareça ser uma

obra em construção (provavelmente com outros capítulos, mas que não foram

encontrados on-line), a figura do “traficante” Alex não é condenada nem absolvida. Não

sabemos se realmente ele carregava drogas, ou em que medida se justifica a denúncia da

família de que ele foi assassinado pela polícia, especialmente porque não sabemos o que

se passou antes da cena do acidente com o carro. A “novela de Alex” apresenta apenas

um pequeno fragmento da história, um recorte que mostra uma cena da vida de seus

personagens.

Ainda que por ângulos diferentes, com personagens diferentes, os traficantes de

drogas são o tema dos vídeos acima descritos. Observa-se, no entanto, a abordagem de

outros temas, particularmente em encenações que se destinam a um público maior –

como os vídeos encomendados pelo canal de TV estrangeiro. Nesses, a temática ainda é

vida na favela, mas sem fazer referência aos traficantes de drogas. Um deles – “O Saci

no Morrinho” – aborda as dificuldades de um menino com o assédio violento de um

vizinho, da mesma idade, e como ele conseguiu reverter tal situação com a ajuda do

Saci-Pererê84. Outro aborda a relação entre vizinhos, e o que acontece quando um

morador decide construir uma piscina em seu quintal e cobrar dos vizinhos que queriam

84 Este vídeo recebeu o prêmio de Melhor Filme na Mostra Competitiva do Festival ‘Visões Periféricas’, realizado em 2007.

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131

usufruir dela. O terceiro filme é “Acadêmicos do Morrinho”, que dramatiza as dúvidas e

angústias de um cantor de funk (MC), convidado para cantar o samba da escola da sua

“comunidade”. Esse filme, especificamente, é bastante significativo de uma outra

abordagem adotada nos filmes, pois tem uma “lição moral” a ser ensinada: que devemos

enfrentar nossos medos, acreditar em nós mesmos, perseguir nossos sonhos, etc. Por

fim, o filme “A revolta dos bonecos” traz a indignação dos bonecos Lego que são

deixados na maquete original, quando os jovens partem para se apresentar em uma

exposição internacional. Trava-se entre bonecos e jovens uma discussão sobre quem são

os verdadeiros “artistas”, as figuras ou quem as manipula, em um interessante exercício

de meta-linguagem85.

Existe, assim, uma variedade de temas abordados na produção audiovisual do

grupo, que pode ter paralelos com sua ‘profissionalização’: ao lado das encenações que

reproduzem as brincadeiras, cujos personagens são os “traficantes”, encontram-se outras

onde aparecem outros personagens e há, até, uma ‘lição de moral’. No entanto, a

temática do tráfico de drogas não desaparece; por exemplo, para a última apresentação

do grupo eles ensaiavam uma continuação da história “Putaria, Marcola e Bill”, que

seria apresentada em parte através de um vídeo e depois seria encenada ao vivo – como

eles já tinham feito em outros eventos. Vale ainda ressaltar que os outros vídeos

encontrados no canal da internet apresentam depoimentos dos jovens feitos por eles

mesmos ou pelos coordenadores, cenas de viagens, dos bastidores da construção das

instalações e seqüências de fotos feitas por eles mesmos, e editadas em formato de

apresentação com direito à trilha sonora.

Parece-me, portanto, que existe uma preocupação em adaptar o enredo de cada

produto de acordo com o público que irá consumi-lo, mas é possível pensar também em

um processo de amadurecimento do grupo, em face de uma maior exposição a outros

ambientes e situações – como o contato com o mundo das artes, as viagens, as diversas

reportagens feitas, etc. – e ao próprio amadurecimento dos jovens: do grupo original,

dois serão pais em pouco tempo, e um segue carreira no serviço militar, limitando sua

participação nas atividades. A dimensão da ‘brincadeira de ser bandido’ ainda

permanece em parte, mas incorpora atualmente outras referências.

85 Novamente o filme foi apresentado no Festival ‘Visões Periféricas’.

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132

A reprodução, enquanto ‘brincadeira’, do cotidiano de traficantes de drogas do

Rio de Janeiro remete aos conceitos de ‘play’ e ‘game’, como proposto por Mead

(1967). Para ele, o self individual é desenvolvido ao longo da infância, através de

interações sociais como a brincadeira e o jogo (play e game) que permitem o contato da

criança com o mundo social. Para ele, o processo começa com o play, quando a criança

assume o papel de personagens do mundo “adulto”: bandido e policial, médico e

paciente, mamãe e filhinho, etc. e experimenta as diferentes posições. Em um segundo

momento, a criança participa de games, onde deve respeitar as regras e lidar com as

expectativas dos outros participantes, entrando em contato com um “outro

generalizado”, o conjunto de normas e expectativas presentes na vida social. Oliveira

(2008) faz excelente uso das categorias de Mead, ao analisar a relação de jovens com a

carreira criminosa, mostrando como o tráfico de drogas pode fornecer a eles imagens e

símbolos que assumem papel fundamental na construção da identidade nessa faixa

etária, o que explicaria o fascínio que os traficantes exercem sobre muitos jovens,

mesmo aqueles que não aderem ao crime (Oliveira, 2008: 277-279). Nesse sentido,

através de uma ‘brincadeira’, que se organiza enquanto ‘jogo’ (em função das regras

criadas), os participantes experimentavam a vivência de uma carreira criminosa,

atividade que observavam em seu cotidiano, ao mesmo tempo em que participavam do

processo de socialização (o mundo social ao qual as crianças são apresentadas através

de jogos e brincadeiras). No entanto, no caso analisado a brincadeira e o jogo

ultrapassariam a fase da infância.

Pensar que se trata de uma “experimentação” da vida criminosa pode, por um

lado, diminuir a importância da encenação e dos diferentes enfoques abordados dentro

dessa temática (como visto nos vídeos descritos). Porém, a forma como os bandidos e

sua atividade são representados pelos jovens foi percebido por mim como um

encantamento com o mundo da criminalidade, em alguns momentos do trabalho de

campo. Por exemplo, ao assistir ao ensaio para essa última apresentação, por exemplo,

presenciei com a conversa de três meninos pertencentes à ‘Nova Geração’ do projeto:

eles falavam sobre armas, e sobre quais queriam comprar para seus bonequinhos – as

armas são negociadas entre os jovens, que criaram um sistema monetário para regular

essas trocas, bem como as outras operações financeiras necessárias: “arregos”, resgates,

etc. – e faziam referências a armas reais (as armas de plástico teriam no contexto da

encenação as mesmas características, em termos de força e alcance, que as armas de

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133

verdade). Compreendo que falar sobre armas faz parte do cotidiano de jovens homens

moradores de favelas, porque essas estão presentes nessa vida cotidiana. Mas falar de

armas reais em uma favela “diferente das outras” me pareceu novamente “fora de

lugar”, e me fez questionar se a temática do tráfico de drogas era uma escolha artística

ou uma forma de viver como jogo a experiência da vida criminosa, não mais como

vítima – o que é comum na experiência dos moradores de favela – e sim como

protagonista.

Outra “pista” que levaria à noção da encenação como “experimentação” da vida

criminosa seria a ausência de meninas no grupo. Ainda que meninas participem da

dublagem de algumas encenações, o grupo é composto unicamente por rapazes. Tal fato

pode dever-se à natureza da atividade realizada – sabe-se que jogos de encenação como

os Role Play Game86 atraem mais os meninos que as meninas, mas ainda assim não se

trata de um universo totalmente masculino. Mas pode também estar relacionada ao fato

de que a brincadeira de ‘bandido’ atraia mais os meninos que as meninas em geral, pois

seria parte importante da experiência nesse tipo de vida o prazer obtido com o risco e

com o desafio, elementos componentes de uma masculinidade “guerreira” (Cf. Soares,

2000; Zaluar, 2004; Cecchetto, 2004). Essas análises se apóiam na evidente

predominância masculina na vida criminosa87.

Contudo, “brincar de bandido” não é exclusividade desse grupo. Como mostra

Zaluar (1985), relatando sua experiência na Cidade de Deus no começo dos anos 1980:

De fato, vi também as brincadeiras infantis em 1980: de revolver de pau na mão, dividiam áreas, defendiam o território contra os inimigos, trocavam tiros, cobravam pedágio dos passantes. Quando um fazia o papel da polícia não vinha impor a lei: matava os bandidos, pedia dinheiro, morria (Zaluar, 1985: 155).

86 Role Play Games são jogos onde os participantes interpretam personagens, e criam em conjunto o enredo da história a ser experimentada. A menção às semelhanças entre as performances realizadas pelo grupo e esse jogo, criado nos Estados Unidos e trazido para o Brasil nos anos 1980, foi feita pelos próprios participantes do Morrinho.87 Pesquisas demonstram que as mulheres respondem por menos de 5% da população carcerária no país. Cf. Souza, 2006. A autora registra um aumento das mulheres presas por tráfico de drogas (54,6% contra 20,8% em 1976, como levantado por pesquisa feita por Lemgruber à época), mas segundo entrevistas feitas com presas do Tavalera Bruce, no Rio de Janeiro, sua inserção nas quadrilhas era subalterna, atuando mais no transporte de drogas entre favelas (mula) do que no planejamento das atividades criminosas (Cf, Souza: 2006: 15).

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134

No entanto, a autora menciona a brincadeira de “ser bandido” ao analisar as

explicações dos moradores (as “teorias nativas”) para a entrada de jovens na vida do

crime, e como esses entendiam que a proximidade com os bandidos, e o fato de

reproduzir o comportamento desses nas brincadeiras, incentivaria a adesão ao crime.

Em seguida, Zaluar afirma que as crianças da localidade se tornaram alvo da atenção de

moradores organizados e de lideranças locais, que criaram atividades como capoeira e

futebol infantil, buscando “orientar o menor” e “ocupá-lo em suas horas ociosas com o

lazer saudável” (2002 [1985]: 155). No caso do Morrinho, ainda que em alguns

momentos a “brincadeira” tenha sido vista e rejeitada por alguns moradores88, não é

essa a imagem que outros moradores, críticos de arte, jornalistas, artistas,

pesquisadores, etc. fazem do grupo.

Compreender que a falta de “condenação moral” sobre a atividade do tráfico de

drogas – a ausência de uma condenação moral ou mesmo de uma discussão interna

sobre a natureza da opressão dos traficantes sobre os moradores de favela – não

significa uma adesão dos jovens ao que o tráfico de drogas representa hoje na cidade só

foi possível durante o processo de redação da tese. Em primeiro lugar, tive que entender

e valorizar que eles falavam sobre violência em um local onde isso é tabu (Cf. Capítulo

2 desta tese), o que por si só indica uma quebra (ainda que pequena) no silenciamento

sobre a criminalidade que incide sobre o local e sobre outras favelas cariocas (Machado

da Silva, 2008c). Vale ressaltar, porém, que existe uma diferença fundamental entre

esses jovens e o resto dos moradores do Pereirão, que silenciam sobre a violência e o

tráfico de drogas como forma de proteção e de “limpeza moral”, evitando acusações de

conivência ou cumplicidade; os jovens possuem sua inserção em um “projeto social”

como instrumento para sua “limpeza moral”. Em segundo lugar, tive que atentar para a

possibilidade de que nós (em geral, e moradores de favela em particular) sejamos

ambivalentes em relação à criminalidade, como afirma Peralva (2000). Para a autora:

Hoje, diante do crime, a ambivalência reina. A ambivalência não é um mal em si mesma. É um atributo da condição moderna. (...) A ambivalência esteve efetivamente no âmago da dinâmica igualitária que preparou no Brasil as condições do ingresso na democracia (2000: 182-3).

88 Além do episódio em que policiais militares no morro obrigaram os meninos a destruir a maquete, os participantes disseram que no começo os moradores da favela que criticavam a brincadeira diziam que eles estavam “treinando para ser bandido”.

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135

A ambivalência em relação ao crime, portanto, seria parte constitutiva do caráter

democrático e ao mesmo tempo desigual da sociedade brasileira, reflexo de condutas

que se tornam, a cada dia, menos definidas por adesão a valores e, portanto, mais

reflexivas e ambivalentes. Para a autora, a ambivalência explica a forma como alguns

intelectuais veem o crime, ou certas modalidades criminosas, assim como a forma como

moradores de favela convivem com os criminosos:

E se, em sua maioria, os favelados disso não tiram nenhum proveito [do comércio de drogas que se realiza em suas localidades de moradia], todos são capazes de entender por que alguns de seus filhos entram “nessa vida”. Diante de uma violência policial desmedida, como pedir-lhes que se oponham, como no passado, ao banditismo? Prevalecem também para eles as estratégias de sobrevivência (2000: 184).

Ainda que a hipótese de uma ambivalência frente ao crime possa explicar a

ausência de julgamentos morais sobre o conteúdo da performance dos jovens, é

necessário ressaltar sua diferença em relação à categoria de ambigüidade, que muitas

vezes é acionada para explicar a densa e complexa relação dos moradores de favela com

os traficantes de drogas. Ambigüidade pressupõe que os moradores não condenam a

atividade dos traficantes de drogas, e que utilizariam os recursos oferecidos pelos

traficantes, sejam eles financeiros ou materiais (como a força). Não afirmo que os

jovens do Morrinho – nem os outros moradores do Pereirão – sejam ambíguos frente às

quadrilhas de traficantes de drogas; escolho operar com a hipótese levantada por Leite

(2008), que entende a violência como um dado empírico incorporado à sociabilidade

dos moradores de favela, e que é levado em conta nos cálculos da vida cotidiana (2008:

120). Trata-se, portanto, de se movimentar na realidade que se apresenta, e evitar ações

ou reações que possam atrair para si os riscos e perigos decorrentes dos encontros entre

traficantes de drogas e moradores. Os efeitos da existência dos traficantes não é foco de

reflexão ou de rejeição, mas como é dito e repetido pelos participantes do Morrinho um

dado da “vida como ela é”.

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136

3.5. O Morrinho e o “silenciamento da palavra”.

Nos dois capítulos antecedentes discuti como os moradores da favela do

Pereirão, e os representantes de sua associação de moradores, vivenciam a situação

específica local de uma presença intersticial e subterrânea no território de traficantes de

drogas. Considerei que a compreensão “nativa” sobre o tráfico de drogas ali localizado é

profundamente orientada pela procura dos moradores em se diferenciar da maior parte

dos favelados cariocas, vistos como cúmplices ou como vítimas impotentes de um

“estado paralelo” – imagens que povoam a representação social. Analisei como essa

compreensão “nativa” incide sobre a falta de iniciativa por parte da organização local,

pois ainda que discursivamente os agentes locais do tráfico de drogas sejam descartados

como impedimento para a ação coletiva, o receio de represálias por parte deles cerceia o

campo de ação dos representantes. Em outras palavras, afirmei que os moradores do

Pereirão estão submetidos a um dispositivo opressor no qual a submissão se reforça pela

negação de sua existência: para se apresentarem como “livres” do domínio do tráfico

silenciam sobre os riscos que se apresentam, inclusive a possibilidade de retorno de

bocas de fumo à localidade.

Após analisar os dados da pesquisa de campo feita sobre a TV Morrinho,

acrescento uma nova camada de formulações “nativas” sobre a forma de vida

representada pelos traficantes: a violência através da qual eles agem está presente no

cotidiano dos moradores, ainda que como representação, performance ou “brincadeira”.

Está presente também como recurso a ser acionado para o melhor “ajustamento” à

linguagem das ONGs e dos financiadores de iniciativas sociais nas favelas, visando

acesso a uma fonte de recursos que é acionada por outras localidades. No entanto, ainda

que representações e discursos sobre o tráfico de drogas estejam presentes no conteúdo

das ações desenvolvidas pelo grupo, o silenciamento também cerceia a palavra deles, no

que diz respeito a elaborar versões e compreensões sobre a vida cotidiana que levam, e

sobre as possibilidades, limites e riscos representados pela situação de “tranquilidade” e

“paz do local”. Ainda que seja foco das performances, e objetivo da ONG, a violência é

tratada de forma abstrata, generalizada, ou sem referência à situação local, localizada e

Page 146: Tese_Lia_Rocha_2009

137

restrita à maquete e à representação que nela acontece. Nesse sentido, essa

representação assemelha-se a de filmes recentes, como Cidade de Deus e Tropa de

Elite, onde não são produzidas reflexões sobre situações complexas de violência, e sim

um “espelho” que apenas constata “um estado de coisas”, como afirmou Bentes (2003:

231).

Vale ressaltar ainda que, como dito acima, o fato de se reunirem em torno de

uma ONG oferece aos jovens do Morrinho uma proteção contra possíveis condenações

morais, que recaem sobre a maior parte dos outros moradores de favelas. Assim,

possuem um campo maior de ação, inclusive nos espaços fora da favela – como o

espaço público, a mídia, os governos, etc. – por conta dessa proteção que “vestem”,

dessa armadura de “projeto social”. O formato de ONG dá ao grupo um status que,

ainda que parcialmente, permite sua circulação social e o reconhecimento de sua

atividade. “Ser” ONG é diferente de “ser” associação de moradores, ou “ser” um

favelado. Essas diferentes formas de “ser” dos moradores de favela, e sobre como elas

se “ajustam” às formulações atuais sobre o “problema da favela”, as novas formas de

atuação pública e um “novo espírito do capitalismo” (Boltanski e Chiapello, 1999) são o

objeto da reflexão apresentada a seguir.

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138

IV. Associação de moradores e organizações não-governamentais:

rupturas e continuidades.

Mosaico localizado na escadaria do Selarón, em Santa Teresa/Rio de Janeiro89.Foto da autora.

A partir da pesquisa de campo realizada no Morro do Pereirão, as proximidades

e as distâncias entre a associação de moradores e a ONG local ficaram bem

evidenciadas, visíveis a quem chegava à favela: localizadas em prédios vizinhos, a sede

da associação encontrava-se a maior parte do tempo fechada, enquanto a sede da ONG

quase sempre comportava mais gente que o adequado, em reuniões, trabalhando ou

apenas servindo de ponto de encontro para alguns dos jovens participantes. Ainda que

pareçam tão diferentes, no entanto, associações de moradores e organizações não-

89 Texto do Mosaico: “Viver na favela é uma arte. Ninguém rouba, ninguém escuta, nada se perde. Manda quem pode; obedece quem tem juízo”.

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139

governamentais compartilham de uma mesma ascendência: ambas são organizações da

sociedade civil e compartilham valores e metodologias inauguradas a partir do

fenômeno nomeado “movimentos sociais urbanos”. Porém, para além dessas

proximidades, tais atores encontram respostas diferentes no espaço público para as

ações que realizam no mesmo território. Tais semelhanças e diferenças estabelecem-se a

partir de seus lugares dentro de uma reflexão maior sobre os “novos movimentos

sociais”, mas também dentro da discussão mais recente sobre o papel do estado

enquanto agente executor de políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a

questão social.

4.1. Da profissionalização da militância a representantes dos favelados:

movimentos sociais e ONGs.

Os “novos movimentos sociais” são assim denominados por apresentarem uma

oposição aos “antigos” movimentos sociais, especificamente os movimentos sindical e

político-partidário, característicos da maior parte do século XX. Nos últimos quarenta

anos, no entanto, esses movimentos perdem sua força aglutinadora das classes populares

e seu capital representativo, em função das transformações recentes no capitalismo.

Com o aumento da precarização nas relações de trabalho e do desemprego estrutural, o

trabalho perde centralidade na vida e na política feita por essas classes, assim como

perde sua capacidade de explicar e organizar a vida social – ainda que para a teoria

social permaneça o desafio de explicar o por quê e o como desse processo, como

adverte Offe (1989). Assim, o movimento dos trabalhadores – que era até então o

grande espaço de reivindicação popular – dá espaço à “novos movimentos sociais”, que

passam a ocupar o espaço público com reivindicações diferentes. Esses “novos

movimentos” representariam outras identidades que não a de trabalhador, como a de

gênero e étnica, e outros valores, como o pacifismo e a consciência ecológica90. A

categoria “movimentos sociais urbanos” também nomeia o mesmo conjunto de

organizações de ação direta e reivindicação coletiva, porém valorizando mais o atributo

90 Mas a transição dos “velhos” para os “novos” movimentos sociais não é tão linear quanto parece; por exemplo, o movimento feminista está presente nos países centrais desde o final do séc. XIX, e no Brasil esse se consolida nos anos 1930.

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140

“urbano” que a idéia de “novo”. O termo “movimentos sociais urbanos” destaca a

adesão das classes populares recém-chegadas nos grandes centros urbanos e organizadas

em torno das questões da cidade, como habitação, saúde, transporte, escolas e creches,

etc., em um movimento diretamente relacionado às profundas transformações

estruturais pelas quais o país passou a partir da segunda metade do séc XX,

particularmente a partir dos anos 1970 (Boschi, 1987: 41). Talvez em função dessa

característica, mais popular e relacionada às reivindicações por melhores condições de

vida, o termo mais comumente empregado na literatura brasileira seja “movimentos

sociais urbanos”.

No caso dos países da América Latina, o surgimento em cena desses novos

atores sociais é concomitante com a luta política pelo fim das ditaduras durante a

segunda metade do século passado. Os autores que analisam tais movimentos sociais no

Brasil identificam nesse período de redemocratização o crescimento no número de

associações de moradores (tanto de favelas quanto de "bairros") e de associações

profissionais de base na classe média, o que representaria uma novidade por colocar no

espaço público novos atores sociais (Boschi, 1987). Avritzer (1997) afirma que o

processo de democratização da sociedade brasileira implicou em mudanças nas práticas

sociais, isso é, na forma como os atores sociais colocam-se no espaço público, e que

uma dessas mudanças seria a pluralização de interesses e de objetivos dos movimentos,

onde a incorporação ao Estado deixaria de ser a principal reivindicação, dando lugar a

uma preocupação com o aprofundamento da democracia. O autor destaca como

características desse ‘novo associativismo’: a) o deslocamento da questão ocupacional

para a territorial, diminuindo a centralidade do movimento sindical entre as associações

coletivas; b) o crescimento de associações de auto-ajuda, como reflexo da diminuição

da política social por parte do Estado (mutirões, cozinhas coletivas, etc); c) a entrada da

classe média nos movimentos sociais, que deixam de ser exclusivamente populares; e d)

o surgimento de associações temáticas, em defesa de questões mais amplas como o

meio ambiente, direitos humanos, entre outros.

Uma característica que dá unidade à diversidade temática dos “movimentos

sociais urbanos” é a rejeição à institucionalização, vista como impedimento para o

acesso democrático às esferas políticas, e o afastamento das estruturas estatais,

responsabilizadas por “cooptar” sindicatos e partidos. Para Machado da Silva e Ribeiro

(1985) a identificação desses movimentos sociais como “expressões populares,

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141

alternativas, independentes e espontâneas (tanto no sentido de não-institucionais quanto

de não dirigidas desde fora)” é uma definição em “contraste” aos outros movimentos

populares – e representa o núcleo central do paradigma teórico a respeito dessas

manifestações coletivas (1985: 324). Sua forma de inserção no processo político,

tomando o estado como interlocutor privilegiado e se apresentando como ator cujas

ações podem ter impacto transformador, é considerada um pressuposto analítico nas

pesquisas avaliadas pelos autores (1985: 325 e seguintes). A partir da crítica formulada

por Machado da Silva e Ribeiro (1985), bem como do trabalho de Ruth Cardoso (1983,

1987), percebe-se que desde os anos 1980 a perspectiva utilizada na abordagem desses

“movimentos sociais urbanos” primava por evidenciar suas diferenças em relação aos

movimentos anteriores, e sua nova forma de articulação com o estado. No entanto, os

autores mencionados, assim como análises feitas posteriormente, buscaram ressaltar as

continuidades e as tensões existentes dentro desses coletivos.

Em relação à base social desses movimentos, Doimo (1995) afirma que no

Brasil:

(...) a grande base social dos novos conflitos sociais é formada por segmentos de baixa renda e os temas desses conflitos passam, sobretudo, pela sobrevivência imediata, como saúde pública, moradia, transporte coletivo urbano, saneamento básico, segurança pública, proteção aos ‘menores abandonados’, entre outros (Doimo, 1995: 61).

Ou seja, as populações engajadas estão à margem do Estado, do mercado e da

cultura, e assim em situação de carência frente a todas essas dimensões. Assim, os

antagonistas e aliados são muitos e oscilam entre essas duas posições de acordo com a

demanda em questão. Por exemplo, o Estado ora é cobrado, por não permitir a

participação dos pobres, e ora é legitimado porque se espera dele prover as necessidades

dos pobres. Boschi afirma que a oposição dos movimentos à penetração do Estado nas

organizações de base é acompanhada da demanda desses mesmos atores por maior

intervenção estatal em áreas que ainda não eram reguladas como, por exemplo, a

questão da violência coletiva (1987: 30). Porém, ainda que os movimentos que mais

demandavam atuação estatal fossem aqueles ligados a populações com menos recursos,

também movimentos de classe média demandavam a regulação do estado,

Page 151: Tese_Lia_Rocha_2009

142

especialmente aqueles que visam direitos, como o feminista ou o negro. No caso

específico dos movimentos por direitos, o autor adverte que a especificidade da

constituição do Estado Brasileiro diferencia os nossos movimentos daqueles

encontrados nos países centrais, “onde, por contraste, os direitos de cidadania foram

conquistados” (Boschi, 1987: 30).

Tal relação de afastamento e aproximação com o Estado, de acordo com o que

está em jogo a cada situação, seria uma das características mais centrais para a definição

dos movimentos sociais urbanos no Brasil: é nela que repousa o binômio “autonomia X

institucionalização”, um debate clássico dentro dos movimentos e também nos estudos

sobre eles. Segundo as categorias em que se travou o debate, quanto maior a

aproximação das estruturas estatais maior a necessidade de formalização, de

mecanismos institucionais; ao mesmo tempo, menor a possibilidade de participação

direta, de democracia interna e de autonomia para os militantes frente à estrutura do

movimento. Ainda que autonomia e institucionalização fossem critérios usados para

classificar e avaliar os diferentes movimentos (na maioria das vezes como categorias de

acusação e como termos em disputa: críticas sobre a falta de autonomia, acusações de

cooptação, etc.) alguns autores defendem que as duas dinâmicas estariam presentes

nesses movimentos. Tal dualidade foi identificada por Boschi que, ao comentar sobre

como os movimentos precisavam de mecanismos institucionais para assegurar a eficácia

na representação de seus interesses, ainda que buscassem um “meio termo” entre

autonomia e institucionalização, definiu a questão como um “dilema bem antigo”

(Boschi, 1987: 14). Já Doimo (1995) considera que os movimentos populares possuem

duas faces, que ao mesmo tempo são inversas e complementares: a face ‘expressivo-

disruptiva’ e a face ‘integrativo-corporativa’. A primeira face diz respeito à

manifestação, por parte dos movimentos, de “(...) valores morais ou apelos ético-

políticos tendentes a deslegitimar a autoridade pública e a estabelecer fronteiras

intergrupos (...)”, enquanto no segundo caso o objetivo é “conquistar maiores níveis de

integração social pelo acesso a bens e serviços, não sem disputas intergrupos e a

interpelação direta aos oponentes” (1995: 69). Para a autora, é do conflito entre essas

duas faces que surgem as ambivalências que caracterizam os movimentos populares, e

também uma das causas para a crise que esses movimentos passam a enfrentar na última

década do séc. XX. A construção analítica de Doimo é particularmente importante para

o argumento aqui apresentado, porque é a partir da disputa entre essas duas faces, e a

Page 152: Tese_Lia_Rocha_2009

143

progressiva vitória do componente integrativo dos movimentos, que as organizações

não-governamentais assumem o papel que desempenham hoje, de executoras de ações

públicas em “parceria” com o estado, como veremos a seguir.

A mudança observada nos movimentos populares no final do século passado

estaria, para Doimo, relacionada a essa ambivalência estrutural, referente à forma de

lidar com o binômio ‘autonomia-institucionalização’, bem como às condições

conjunturais do campo popular. Para a autora (1995), o equilíbrio que existia entre esses

aspectos contraditórios teve que se alterar em função das modificações conjunturais da

época: a) a Igreja Católica repensou sua atuação e interiorizou-se, e nesse processo o

modelo de trabalho de base passou a sofrer muitas críticas internas; b) as ONGs, que

atuavam como redes de apoio aos movimentos, passaram a atuar em ações “mais

propositivas em termos das políticas públicas” e menos na assessoria de movimentos, e

incorporaram critérios de eficácia e produtividade, passando a atuar em questões como

democratização, diversidade cultural e direitos de cidadania; c) os intelectuais passaram

a privilegiar o estudo da transição democrática e da ‘engenharia institucional’,

abandonando um sentimento de ‘otimismo teórico’ que tinham em relação aos

movimentos populares; d) a esquerda engajada no campo popular começou a buscar no

sistema partidário formas de intervir na gestão da coisa pública, ao invés de investir na

“grande transformação social”.

A principal mudança, no entanto, seria a nova postura adotada por esses

movimentos dentro das relações sociedade-Estado, dado que os movimentos passaram a

dedicar-se menos à oposição ao Estado, optando por uma postura ‘ativo-propositivas’

que busca a integração social e que tem como apelo a cidadania (Doimo, 1995: 213). É

nesse contexto que as ONGs passam a ocupar um local privilegiado dentro do espectro

dos movimentos sociais, como uma forma transmutada dessas organizações em um ator

que age “em parceria” com empresas privadas e com o Estado. Doimo demonstra,

contudo, que para essa transmutação acontecer não foi preciso uma transformação

radical dos princípios e fundamentos do campo popular, visto que já existia nele o

componente “integrativo-corporativista”. Sua análise mostra como os movimentos

sociais, ao longo das décadas de 70 e 80, oscilaram entre os pólos da ruptura e da

integração, ou da autonomia e da institucionalização. E que por fim, dada as

circunstâncias mencionadas acima, voltaram-se para o lado da integração e da

institucionalização.

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144

Outro trabalho importante para compreender a passagem que alguns

movimentos fizeram em direção ao formato de ONGs é o de Leilah Landim (1993), já

mencionado no capítulo III desta tese (Cf. pp. 107). Para a autora, o espectro de

organizações que prestavam “assessoria” aos movimentos populares, e que recebiam em

sua maioria financiamento de instituições estrangeiras, entraram nos anos 1990 tendo

que se adaptar as demandas do novo mercado de financiamentos, modificado pela

participação de agências multilaterais e governos interessados em mitigar o problema da

fome e da pobreza. Nesse contexto, “projetos materiais”, de atuação direta com a

população-alvo, se tornaram mais prioritários que “projetos imateriais”, i.e., política

educativa, formação de lideranças, etc. (Landim, 1993: 368). As organizações de

assessoria melhoraram sua infra-estrutura para poder alcançar as metas e os resultados

planejados, e critérios como eficácia passaram a participar da avaliação do trabalho

realizado. Nesse sentido, Landim define essa profissão com contornos de militância de

“associativismo de resultado”. Mas os próprios movimentos, em seu processo de

modificação interna, exigiram dessas organizações uma adaptação, pois o processo de

democratização permitiu que os movimentos se consolidassem dentro do espaço

público, diminuindo assim a importância que os centros de assessoria tinham na

mediação deles com outros atores sociais. Além disso, aumentaram as disputas políticas

internas aos movimentos, e as próprias estratégias de atuação começaram a serem

repensadas. Dessa forma, as transformações nos movimentos reforçaram a necessidade

dos envolvidos na ‘assessoria a movimentos populares’ adaptarem-se a uma nova

situação, esvaziando a atividade de assessoria e passando a assumir o papel de atores

sociais, discutindo a questão do desenvolvimento e da luta contra a pobreza no contexto

dos anos 1990 (Landim, 1993: 350).

Atualmente, a ação de movimentos sociais através de ONGs é uma realidade.

Além disso, alguns novos atores da sociedade civil já nascem como ONGs, sem precisar

fazer a trajetória de movimento à organização. Teixeira (2002) demonstra que a

participação popular na definição de políticas públicas se dá, também, através de ONGs;

no entanto, chama a atenção para a perda deste papel quando a relação entre ONGs e

agências governamentais se dá como uma “troca mercantil”, e não como uma partilha

de responsabilidades entre os atores (2002: 111). Segundo a autora, as ONGs podem

estabelecer diferentes dinâmicas de relação com o Estado, que são denominadas

“encontros”: o “encontro pressão”, onde a ONG pressiona, monitora e critica uma

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145

política estatal, e onde não existem contratos formais estabelecidos entre governo e

organizações; o “encontro prestação de serviços”, onde as relações entre ONGs e

governo são extremamente burocratizadas e distanciadas, e a ONG não participa da

elaboração de políticas, sendo chamada apenas para executá-las; e o “encontro

participativo”, onde ONGs e governos partilham as responsabilidades sobre a

formulação e execução das políticas públicas (2002: 111-2).

Para Teixeira (2002) essas interfaces entre ONGs e Estado são “encontros”

porque um mesmo governo pode estabelecer diferentes dinâmicas com as organizações,

dependendo da política em questão, do tema, da importância dada ao assunto, etc., e

vice-e-versa. Assim, esses três tipos de encontros definidos não esgotam as

possibilidades de relação entre ONGs e Estado, e nem determinam o perfil das

organizações por ela pesquisadas. No entanto, a autora deixa claro que, em “encontros”

onde as relações entre ONGs e agências governamentais são hierarquizadas e não há

partilha das responsabilidades entre os atores, não há uma efetiva participação da

sociedade civil na gestão da coisa pública, e não há democracia (2002: 141). Quando o

poder está concentrado nas mãos dos governos, e eles determinam o escopo e o formato

das políticas a serem executadas, a capacidade das ONGs de executarem seu papel de

monitoramento das ações públicas e de representarem os interesses dos coletivos

populares fica fortemente comprometida. Além disso, as ong’s passam a competir entre

si, enfraquecendo as redes e articulações das quais fazem parte, e tornam-se

dependentes do Estado para seu financiamento, limitando a crítica e o debate a respeito

dos rumos das políticas implementadas (2002: 135).

Fica evidente que os riscos mencionados pela autora são mais frequentes quando

o “encontro” entre ONGs e Estado se dá nos moldes de “prestação de serviços”. Esse

parece ser, no entanto, o tipo mais comum de relação entre o Estado e as ONGs que

atuam nas favelas cariocas, particularmente porque muitas dessas passam a atuar nesses

territórios apenas como executoras de “projetos sociais” diretamente vinculados a

políticas públicas. No entanto, algumas ONGs que também atuam na execução das

políticas tiveram importante papel na discussão a respeito da violência urbana e de

meios para diminuí-la, como vimos anteriormente (especificamente no caso do grupo de

pesquisadores ligados ao Iser e que formaram, posteriormente, o Movimento Viva Rio).

Trabalho recente de Koslinski (2007) mobiliza uma vasta literatura para tratar das

especificidades das ONGs enquanto associações da sociedade civil, mostrando que suas

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146

características particulares as diferenciam de grupos de pressão e de representação de

interesse mais tradicionais na literatura sobre movimentos sociais. A partir de um survey

realizado com 301 organizações de diferentes estados brasileiros e configurações

internas, Koslinski demonstra como mais da metade das organizações pesquisadas têm

acesso a recursos governamentais, sobretudo as mais profissionalizadas, que contam

com trabalho especializado. Dessa forma, é possível afirmar que com a “parceria”

estabelecida entre organizações não-governamentais e governos – definida como

financiamento público dado para execução de “projetos sociais” ligados à políticas

públicas – as ONGs assumem cada vez mais uma função de agência estatal privada, e

cada vez menos de representante de interesses existentes na sociedade civil. De fato, o

papel da sociedade civil enquanto esfera política, onde a cidadania democrática é

exercitada, estaria sendo cada vez mais esvaziado (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000).

A grande presença das ONGs nos espaços públicos dá visibilidade a um

fenômeno que, por contraste, apontaria para uma diminuição da importância dos

movimentos sociais na representação dos interesses da sociedade civil nas articulações e

demandas junto ao Estado. No entanto, determinar se os movimentos sociais urbanos

estão (ou estiveram) em crise exigiria dos analistas uma série de dados estatísticos que

não estão disponíveis ou que possuem limitações metodológicas91; além disso,

pesquisas que pretendam comparar historicamente taxas de adesão a coletivos políticos

podem incorrer no risco de tentar igualar contextos bastante diferenciados. De qualquer

forma, pesquisas quantitativas sobre associativismo no Brasil nos anos 1990

demonstram que poucos entrevistados se identificaram como participantes de

associações, tanto nas classes populares quanto entre as classes médias (Ferreira, 1999;

Avritzer, Recamán e Venturi, 2003). Ainda assim, não é possível determinar um

movimento de crescimento ou de diminuição do número de associados. É possível,

conduto, verificar o aumento no número de associações ao longo dos anos,

especialmente entre os anos 1980 e 1990 (Boschi, 1987). Outras pesquisas, no entanto,

buscam demonstrar como os movimentos sociais se transmutaram em associações e

organizações (entre elas as não-governamentais), que são hoje no Brasil bastante

91 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou em 1996 uma pesquisa sobre associativismo no Brasil, como suplemento de uma Pesquisa Mensal de Emprego (PME), realizada em seis regiões metropolitanas do país. Outras pesquisas foram feitas por outros institutos e pesquisadores, mas todas carecem de critérios de comparabilidade. Além disso, as definições sobre “participação em associação” não são consensuais (Avritzer, Recamán e Venturi, 2003).

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147

numerosas92 e que ocupam um lugar particularmente importante na condução da

questão social nacional (Gohn, 2002; Landim, 1993). Outros trabalhos ainda recuperam

a importância dos movimentos sociais, independente do formato que têm assumido, na

discussão atual sobre novas subjetividades na contemporaneidade.

Autores como Alvarez, Dagnino e Escobar (2000) afirmam que os movimentos

sociais possuem papel fundamental na luta política travada atualmente na América

Latina. Para eles “O que está fundamentalmente em disputa são os parâmetros da

democracia, são as próprias fronteiras do que deve ser definido como arena política:

seus participantes, instituições, processos, agenda e campo de ação” (Alvarez, Dagnino

e Escobar, 2000: 15). Nesse contexto, os movimentos teriam a função de contestar, no

âmbito da cultura política, as noções existentes sobre o que é a política e sobre a

participação no espaço público. Os movimentos sociais, ao questionarem os limites da

participação política, contestam a relação Estado - Sociedade, e a própria forma de

participação na política, fortalecendo a sociedade civil. A função de contestação cultural

dos movimentos sociais não se limitaria aos movimentos definidos mais claramente

como culturais, no caso o movimento de mulheres, de identidade étnica, homossexuais e

de direitos humanos. Para os autores, os movimentos urbanos de bairro e de

trabalhadores, como o movimento dos camponeses, também “(...) tentam dar novo

significado às interpretações culturais dominantes da política, ou desafiam práticas

políticas estabelecidas” (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000: 23). Dessa forma, possuem

papel central na construção de novas formas de participação e de exercício de cidadania

democrática dentro do espaço público, tendo a pretensão de lutar não apenas por

incorporação ao sistema, mas também pelo poder de participar da definição do sistema

político em si.

Nessa mesma linha de argumentação, Dagnino (2000) afirma que os

movimentos sociais percebem essa ‘nova relação’ estabelecida entre política e cultura

quando passam a lutar não “apenas por seus direitos sociais – moradia, saúde, educação,

etc. – mas pelo próprio direito a ter direitos”. No caso, os movimentos estão

combatendo uma concepção de parte considerável da sociedade brasileira que acredita

que os pobres não são sujeitos portadores de direito. Essa visão sobre os pobres seria

92 Um breve panorama das Ong’s no Brasil já foi mencionado na Introdução desta tese, mas vale lembrar que em 2005 existiam no país em torno de 340 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos, segundo o IBGE. Vale ressaltar que dentre essas associações nem todas são Ong’s.

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148

uma regra cultural, que faria parte do conjunto de privações e da exclusão ao qual o

pobre está submetido, pois “(...) a pobreza é um sinal de inferioridade, uma forma de ser

na qual os indivíduos perdem sua capacidade de exercer seus direitos” (Dagnino, 2000:

82). A luta pelo reconhecimento das camadas populares como ‘portadoras de direitos’ é

então uma luta contra uma cultura autoritária, e é através dela que os movimentos

sociais estabelecem a ligação entre cultura e política, o que permitiu que se criasse uma

articulação com outros movimentos sociais de caráter mais cultural (estrito senso). Essa

visão de democracia que os movimentos tentam implementar é operacionalizada pelo

conceito de cidadania, pois é quando as carências sociais passam a ser vistas como

direitos, e defende-se que ‘o pobre também é cidadão’, que os movimentos populares

urbanos dão um passo importante na sua luta, e se encontram com outros movimentos

que também operam com essa noção.

Esse ponto de inflexão representou uma ruptura com as estratégias predominantes de organização política dos setores populares, caracterizadas pelas relações de favor, pelo clientelismo e pela tutela e subordinação. Essas estratégias, evidentemente ainda vigentes, encontram suporte na cultura autoritária dominante e a reforçam, na medida em que não confrontam seus sistemas de classificação e exclusão e suas hierarquias básicas (Dagnino, 2000: 83).

Autor clássico na literatura sobre movimentos sociais, Alain Touraine tem se

debruçado há décadas sobre os “novos movimentos sociais”, realizando séries de

pesquisas sobre movimentos de estudantes, nacionalista, feminista e antinuclear. O

autor lançou em 2006 um livro no qual recupera alguns dos temas de seus livros

anteriores (1978, 1988), mas à luz dos eventos mais recentes do começo deste século.

Ele propõe repensar a capacidade da sociologia de dar conta de uma realidade onde a

vida coletiva não se regula mais por critérios sociais, e sim culturais. Segundo ele, essa

avaliação não é uma surpresa, já que milhões deploram a ruptura dos laços sociais e o

triunfo de um individualismo desorganizador. A volta a um mundo de identidades

coletivas compartimentadas, em oposição a uma identidade social mais ampla, estaria

exemplificada nos confrontos entre Ocidente e Oriente, sendo o principal deles o evento

de 11 de setembro de 2001. Segundo ele, os conflitos atuais não possuem função

política ou social. Outro fenômeno que evidencia tal reestruturação é a questão do

trabalho; com o aumento da duração da aposentadoria (para aqueles que estão nos níveis

Page 158: Tese_Lia_Rocha_2009

149

mais elevados das hierarquias ocupacionais), do desemprego e do trabalho precário,

assistimos ao desmonte da civilização do trabalho. Tais fenômenos levam a uma

reorganização dos princípios em volta dos quais a vida coletiva se organiza. Nesse

sentido, Touraine acredita ser apropriado afirmar que, antes, nos referíamos a nós

mesmos em termos sociais; hoje falamos de nós mesmos em termos culturais. É no

campo cultural que estão em jogo os maiores conflitos da sociedade atual, e onde as

reivindicações apresentam-se com mais força. Multiculturalismo, proteção às minorias,

direito à prática religiosa, à diversidade cultural, etc. são as questões que mobilizam os

países centrais, e que são trazidas à cena pública pelos “novos movimentos sociais”.

Jeffrey Alexander (1998) também acredita que os movimentos sociais não

devem ser entendidos em seu caráter instrumental, mas como formas de novas questões

públicas serem colocadas em discussão pela sociedade em seu espaço público. Dessa

forma, os movimentos sociais não são respostas a problemas reconhecidos, sejam eles

de caráter econômico, cultural, legal, etc. O que pretendem é construir problemas

publicamente, isso é, convencer a “sociedade como um todo” que existe um problema

coletivo (e uma solução para ele), o que dá aos movimentos um caráter mais discursivo

do que as concepções utilitaristas a respeito dos movimentos sociais podem afirmar.

Nesse sentido, o autor conclui que o maior alvo dos movimentos sociais é a esfera civil

– que deve ser convencida da legitimidade do problema – e não o governo, como afirma

a perspectiva clássica que vê os movimentos sociais essencialmente como coletivos

organizados para apresentar demandas ao Estado.

Portanto, as análises de Touraine (1978, 1988, 2006) e Alexander (1998) podem

ser úteis à discussão aqui pretendida por proporem que os “novos movimentos sociais”

não são apenas formas de diferentes grupos sociais reivindicarem soluções para os

problemas trazidos pelo capitalismo flexível, mas também a construção no espaço

público de “novos problemas” que são legitimados pela sociedade, e que conseguem

esse reconhecimento em função de mudanças institucionais. Tal proposta de análise faz

sentido especialmente quando o caso das associações de moradores é considerado, pois

a organização dos favelados existe desde os anos 40 no Brasil, e desde então tem

tentado tornar seu problema legítimo – nessa perspectiva, o trabalho do movimento não

é apenas apresentar suas reivindicações ao Estado, mas também conquistar legitimidade

para o grupo que representa. E o período pós-ditadura militar representaria uma

possibilidade de reconhecimento dessas “novas questões”, em função do próprio

Page 159: Tese_Lia_Rocha_2009

150

processo de democratização da sociedade brasileira – e por isso seria esse o momento

identificado pela literatura e pelos militantes como o auge da mobilização popular em

torno desses coletivos.

No entanto, apesar das associações de moradores de favelas terem publicizado

questões importantes para os favelados, como habitação, saneamento, titulação, etc.,

esses temas se encontram hoje em segundo plano na discussão sobre as favelas e seus

problemas. Primordialmente em função do crescimento do fenômeno da “violência

urbana”, e do enquadramento público dado a ele (Machado da Silva, 1995; Leite, 2000),

o foco do debate se concentrou na identificação das favelas como território dessa nova

criminalidade, o tráfico de drogas, tendo como consequência direta a estigmatização dos

moradores de favela. Assim, se consideramos as indicações analíticas a respeito da

importância da disputa simbólica nos conflitos sociais contemporâneos (Melucci, 1997:

5; Touraine, 2005: 265), é possível afirmar que o debate se trava em torno da

representação sobre as favelas. De um lado, se localizariam aqueles que veem a favela

como “valhacouto de bandidos”, ou o espaço da ilegalidade (incorporada no lema

“Ilegal, e daí?”, série de reportagens veiculadas pelo jornal O Globo a partir de

setembro de 2005); de outro, aqueles que defendem a favela como território de moradia

de trabalhadores, onde apenas “1% dos moradores estaria envolvido” com o tráfico

(Athayde, MV Bill e Soares, 2005).

No embate sobre as diferentes imagens públicas da favela, alguns moradores de

territórios periféricos se organizam para promover uma imagem positiva,

principalmente através de meio audiovisuais. Esse crescente movimento visa produzir

uma imagem alternativa dessas localidades, opondo-se ao olhar externo (da mídia, da

sociedade, do estado), geralmente estigmatizante e negativo (Gama, 2009) 93. Boa parte

deles organizados em torno de “projetos sociais”, esses grupos tentam transformar o

imaginário social, que é informado por essas imagens negativas, visando “estimular o

diálogo, ainda hoje deficiente e hierárquico, entre os setores da sociedade, e fazer

93 Evidentemente, tal disputa simbólica pela representação das favelas não é um fenômeno recente ou inédito. Como demonstrou Valladares (2005), Leeds e Leeds (1978), Perlman (2002), entre outros, a favela sempre foi objeto de olhares externos que a retratavam negativamente; seja como bárbaros, simplórios, matutos, malandros, etc., entre outros estereótipos. No entanto, como apresentado na Introdução desta tese, a variação atual deste embate põe em xeque a própria possibilidade de manutenção de uma disputa entre representações sobre as favelas, dado que um dos lados deste conflito vem sendo estigmatizado e rejeitado a ponto de não ser mais identificado como ator legítimo para participar da produção dessas representações. Dessa forma, o que está em jogo não é a produção de imagens externas e estereotipadas sobre as favelas em si, mas sim a variação observada em seu conteúdo.

Page 160: Tese_Lia_Rocha_2009

151

circular outras imagens sobre as favelas, tornando a representação dessas áreas mais

complexa” (Gama, 2009: 109, grifos da autora). Os participantes desses movimentos

estão assim engajados em uma disputa no campo simbólico, onde o que está em jogo é

como são representados os territórios populares e seus moradores – ainda que, como

afirma a autora, contraponham estereótipos negativos das favelas a estereótipos

positivados, como a favela enquanto espaço da solidariedade e da união (2009: 96).

Retornando a comparação entre ONGs e associações de moradores, as primeiras

parecem estar mais engajadas na discussão a respeito dos conflitos no campo identitário

e simbólico. No caso do Pereirão, por exemplo, a ONG TV Morrinho se coloca

enquanto produtora de uma nova e positiva representação sobre as favelas (ainda que

compartilhe de uma representação negativa também ao apresentar como um dos

problemas locais a “violência”) inclusive através da reprodução de espaços favelados

como obra de arte. Já a associação de moradores permanece no campo do conflito

social, na apresentação de demandas coletivas ao poder público, o que acaba por

reforçar um outro e antigo estereótipo das favelas como lugar da carência. Tal diferença

pode ser tributária das funções públicas de cada organização; ONGs não são entidades

representativas, e assim podem assumir outras temáticas que não a melhoria das

condições de vida dos moradores. No entanto, a partir da colocação de Alexander

(1998) de que movimentos sociais publicizam e tornam coletivas questões que dizem

respeito a grupos, cabe refletir sobre a capacidade das associações de moradores de

serem ainda movimentos sociais, já que encontram atualmente grande dificuldade em

tornarem públicas suas demandas e intervirem no espaço público, legitimando e

tornando justas (Boltanski e Thévenot, 1991) as demandas dos moradores de favelas.

A partir da pesquisa realizada no Pereirão, bem como da revisão da literatura

sobre as favelas cariocas, argumento nesta tese que as associações de moradores

possuem hoje menor capacidade de publicização de temas e demandas que as

organizações não-governamentais, e que esse gradiente deve-se a uma diversidade de

variáveis. A literatura já tratou de algumas delas, que foram abordadas no capítulo II

Page 161: Tese_Lia_Rocha_2009

152

desta tese94 (Cf. pág. 77 e seguintes). No entanto, existiria outra variável menos

abordada na bibliografia sobre organizações localizadas em favelas: o baixo

“ajustamento” das associações de moradores à atual configuração do “problema da

favela”, i.e., ao debate atual sobre segurança pública e sobre qual o papel que essas

localidades desempenham dentro da discussão sobre violência urbana e formas de

combatê-la. No enquadramento dado a esse debate, as organizações não-governamentais

estão “duplamente ajustadas”: em relação à forma pela qual agem e ao conteúdo de suas

ações. Para abordar esse “duplo ajustamento” preciso compartimentar a discussão em

duas partes: “ajustamento” do formato pelo qual as ONGs agem e “ajustamento” do

conteúdo de suas ações. Para realizar o primeiro debate, aciono a categoria formulada

por Boltanski e Chiappello na reflexão sobre o novo espírito do capitalismo: a “cité par

projet” (1999). Para tanto, recupero a discussão de Boltanski e Thévenot sobre a

justificação (1991), para em seguida analisar como as ONGs “ajustam” sua atuação à

gramática que articula o debate público no capitalismo contemporâneo. Posteriormente,

discuto o “ajustamento” do conteúdo das ações das ONGs, recuperando a discussão

feita anteriormente sobre a “metáfora da guerra” e o papel disciplinador das populações

faveladas que essas organizações possuem.

4.2. O “duplo ajustamento” ao “problema das favelas”.

Boltanski e Thévenot (1991) se concentram sobre as justificativas apresentadas

pelos atores para suas ações e que são aceitas, ou não, pelos outros atores. Afirmam que

tais justificativas são modeladas por diferentes conjuntos de valores: familiaridade,

talento, valores econômicos, espirituais, etc. Esses conjuntos de valores formam

diferentes “mundos”, cada um dos quais constitui uma cité ou ordem social, que explica

a desigualdade entre “grandes” e “pequenos” pela contribuição diferencial ao bem

comum, transformando relações de força em relações de grandeza, e permitindo o

debate em torno das provas de grandeza relativa entre participantes de uma humanidade

comum. As justificativas apresentadas devem ter pretensões generalistas, com validade

94 A saber: autoritarismo e favorecimento pessoal (Zaluar, 2004), perda de autoridade frente aos traficantes de drogas (Pandolfi e Gryzpan, 2002; Zaluar, 2004; Silva e Rocha, 2008) e cumplicidade com esses em alguns territórios (Leeds, 2003).

Page 162: Tese_Lia_Rocha_2009

153

universal, e devem ser orientados para uma noção de bem comum – devem ser,

portanto, consideradas justas por todos que compartilham da mesma cité. Por exemplo,

o capitalismo existiria também em outro nível que não o de sua experiência prática, de

obtenção do lucro; ele seria um sistema justificado, capaz inclusive de fazer frente às

criticas que recebe (Boltanski e Chiappello, 1999: 61-62). Nesse sentido, a justificação

se apresenta enquanto base para sustentar o sistema, e também para sustentar as críticas

a ele. No entanto, tais justificações acionam diferentes conjuntos de valores, que estão

sobrepostos na realidade social – por isso as cités são variadas. Se os argumentos

utilizados para argumentar a justiça de certa situação são do âmbito familiar (laços

familiares, proximidades, dependências, hierarquias, etc.), pertencem a Cité

Domestique. Nessa cité aqueles que orientam seus atos a partir desses critérios

familiares têm suas ações justificadas, e são considerados grandes, na gramática

proposta (Boltanski e Thévenot, 1991: 26 e seguintes). Da mesma forma são

organizadas as outras cités: valores ascéticos e artísticos (Cité Inspirée); posse de

mercadorias escassas e da riqueza (Cité Marchande); reconhecimento externo, fama e

renome (Cité du renom); eficácia, capacidade técnica e profissional (Cité Industrielle); e

valores coletivos, a vontade geral e a representação desses interesses (Cité Civique),

além da já mencionada Cité Domestique95.

Para os autores é possível reconhecer na sociedade contemporânea justificativas

para agenciamentos sociais que se baseiam nessas seis cités. Mas em trabalho posterior

Boltanski e Chiappello identificam uma sétima cidade, onde habitariam valores como a

flexibilidade, a polivalência, a comunicação, a capacidade de se desligar de objetos e

pessoas e de se conectar rapidamente a outros, etc. – valores que modelariam um “novo

espírito do capitalismo” (Boltanski e Chiappello, 1999). Assim os autores constroem o

conceito de “cité par projet”, que seria a justificação do capitalismo contemporâneo e

definiria os critérios de grandeza nesta ordem social em construção96. Tal conceito é

particularmente importante para a análise aqui pretendida, pois acredito que as

95 O argumento dos autores aqui se encontra extremamente condensado e simplificado, e nesse sentido o resumo apresentado é injusto com seu enorme trabalho analítico e teórico. Como o objetivo é apresentar rapidamente o arcabouço teórico definido a fim de utilizá-lo em parte na construção do meu argumento, não irei prolongar-me na discussão teórica. De qualquer forma, deixo registrada a superficialidade do tratamento aqui dado ao trabalho de Boltanski e Thévenot (1991).96 Boltanski e Chiappello consideram que a constituição do respectivo “mundo” é dificultada pela paralisação – ou “desajustamento” – da crítica, contraparte necessária do processo de formulação de uma nova metafísica de um bem comum capaz de generalizar uma “comum humanidade”. Esta questão, entretanto, está fora do escopo da presente tese.

Page 163: Tese_Lia_Rocha_2009

154

organizações não-governamentais estão “ajustadas” à gramática moral da “cité par

projet”, a qual articula o repertório das políticas públicas que têm sido executadas nas

favelas cariocas, especialmente as políticas sociais. É através das ONGs, “ajustadas” a

essa nova cité, que essas políticas são executadas e se tornam concretas e reais. É

importante recuperar, rapidamente, a idéia de “ajustamento” já apresentada

anteriormente97: o conceito de justesse, tal como proposto por Boltanski e Thévenot,

significaria bom (ou mal) funcionamento tanto de coisas quanto de pessoas. Nos

parágrafos seguintes analiso o funcionamento das ong’s e seu “ajustamento” à “cité par

projet” formulada por Boltanski e Chiappello (1999).

As ONGs realizam seus propósitos e ações através de projetos, pois é através do

financiamento dado para a execução desses que as organizações se sustentam e

implementam suas atividades. Sem projetos a ong é uma organização fantasma, vazia,

não apenas pela falta de financiamento, mas também porque os projetos são o meio e

também o produto final do seu trabalho. Tais projetos são limitados no tempo, têm uma

duração pré-determinada (que pode ou não ser estendida) e, consequentemente, suas

ações e resultados também são delimitados. A ONG que tem sucesso em suas atividades

é aquela que consegue executar diferentes projetos, que sempre consegue

financiamento, e que, assim, é capaz de começar outro projeto quando o primeiro está

em vias de acabar. As pessoas que trabalham nas ONGs estão, em sua maioria,

ancoradas em algum projeto, ou em vários ao mesmo tempo (algumas possuem

financiamento próprio e assim pagam o salário do pessoal administrativo, mas em

outras até os funcionários administrativos são pagos pelos projetos), e assim seu

pertencimento à organização está vinculado à sua adesão a um desses projetos. Tal

forma de engajamento tem como consequência uma grande rotatividade de

trabalhadores – mas os mais bem sucedidos são aqueles que conseguem rapidamente

“entrar” em outro projeto.

Os projetos, por se realizarem de forma delimitada no tempo, possuem uma

grande flexibilidade em termos de seu escopo, tempo e metodologia. Ao final de um

projeto é possível (re) adequá-lo às diretrizes dos financiadores (sejam eles o estado ou

a iniciativa privada), e assim ele pode sofrer adaptações em termos do local onde é

executado, do público-alvo com o qual pretende trabalhar, sua duração e a forma pela

97 Cf. referência 18 e Boltanski e Thévenot, 1991: 59 e seguintes.

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155

qual é realizado. Muitas ONGs, principalmente as maiores, possuem projetos em

diversas linhas de atuação: gênero, infância, minorias, geração de emprego e renda,

jovens “em conflito com a lei”, etc. – o que demonstraria sua polivalência em relação ao

foco das ações executadas. Muitas vezes o escopo do projeto será decidido de acordo

com as escolhas feitas pelos financiadores. No momento da obtenção dos

financiamentos (ou renovação) as ONGs precisam comprovar não apenas o mérito de

suas ações, como também sua capacidade de “ajustamento” às novas orientações

exteriores98. Por fim, as organizações têm que ser capazes de finalizar um projeto e

abandoná-lo, como muitas vezes acontece por falta de interesse do financiador de

continuar investindo naquela ação. Para continuar seu trabalho a ONG deve buscar

formular outros projetos, que tenham maior aceitação junto aos patrocinadores, para não

ficar “sem projetos”. É na hora de sair de um projeto e entrar em outro que as ONGs

demonstram sua competência, eficácia e credibilidade.

Dessa forma, as características de uma ONG são as mesmas habilidades

necessárias para o “ajustamento” ao “novo capitalismo” ou, como propõe a gramática

de Boltanski e Thévenot, o “estado do grande”99 na “cité par projet”: entusiasta,

flexível, adaptável, polivalente, empregável, autônomo, não-prescrito, que sabe engajar

as pessoas, que escuta, tolerante, em evolução, engajado (Boltanski e Chiappello, 1999:

168-172). Ainda que alguns dos termos citados sejam características individuais, e não

de organizações, eles sintetizam o “espírito” das ONGs e de seus profissionais no que

diz respeito à rejeição ao formalismo e a institucionalização – “espírito” herdado dos

“novos movimentos sociais”, que viam nos “antigos” movimentos uma excessiva

institucionalização que impedia a participação “popular” e “autônoma” (Machado da

98 Como exemplo episódico posso citar os financiamentos oferecidos pela Petrobras S.A., uma das empresas que mais investe em responsabilidade social no país. Por anos o tema da seleção pública de projetos da empresa (mecanismo pelo qual ela escolhe parte dos projetos que financia) foi “Cultura de Paz”, durante parte do governo de Fernando Henrique Cardoso. Com a mudança de governo o tema passou a ser “Fome Zero”, lema do mandato do Presidente Lula. Os projetos apresentados buscaram então se adaptar aos novos tempos, trocando a problemática da segurança pública para o da geração de emprego e renda, ainda que a temática da segurança permaneça através do público-alvo preferencial (jovens entre 16 e 24 anos, considerado o grupo mais “vulnerável” a aderir à vida criminosa).99 Segundo a gramática de Boltanski e Thévenot (1991), o grande é aquele que comporta todas as características consideradas boas, que trazem a felicidade e que são identificadas com o bem comum (1991: 99). É também aquele que encarna fortemente os valores da cité (Boltanski e Chiappello, 1999: 164). Nesse sentido, o estado do grande são as características consideradas positivas e desejadas dentro de cada cité.

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156

Silva e Ribeiro, 1985: 324; Cardoso: 1987)100. Sintetizam também a capacidade dessas

organizações de se “ajustarem” aos objetivos das políticas sociais e das cada vez mais

precárias formas de trabalho e contrato estabelecidas pelo poder público. Além das

grandezas, as maneiras pelas quais as ONGs executam suas ações e se movimentam

entre a sociedade civil, o mercado e o estado são as mesmas identificadas por Boltanski

e Chiappello como o “repertório de objetos e dispositivos” acionados pela “cité par

projet”: parcerias, acordos, redes de organizações, projetos, etc. (1999: 177). Como na

“cité par projet”, as redes são a forma “natural” de organização das ONGs (“figura

harmoniosa da ordem natural”), que permite a multiplicidade de contatos, o término das

conexões não-produtivas e a criação de novas conexões (1999: 167 e 190), e a mediação

é a atividade principal dos seres que a habitam, sua “relação natural” com outras

pessoas e coisas que também estão na mesma cité. Ao final de um projeto as ONGs

demonstram sua capacidade de adaptação e também de serem reconhecidas enquanto

mediadores, pois esses são os elementos avaliados para a continuação do projeto ou para

o financiamento de outro – é o momento da avaliação da justiça das ações, ou éprouve

modele (1999: 187). Assim, a ONG é “grande” na “cité par projet” porque encarna

seus valores fundamentais.

Ainda a partir das referências dadas pelo trabalho de Boltanski e Chiappello,

identifico o “ajustamento” das ONGs ao “novo espírito do capitalismo” também no que

se refere ao formato atualmente em voga para execução das polícias sociais públicas.

Essas também estariam sendo desenvolvidas “por projeto”, i.e., através de ações

focalizadas em alguns grupos identificados como alvo. Para Werneck Vianna (2009), a

partir dos anos 1990 a “questão social” passou a ser definida como a questão da

pobreza, e as políticas sociais que deveriam garantir os direitos sociais definidos pela

Constituição de 1988 passaram a ser vistas como ineficazes, em função de sua tendência

a “desequilibrar o orçamento fiscal, desperdiçar recursos, penalizar investimentos e a

não alcançar devidamente os pobres” (2009: 18). Dessa forma, no lugar de políticas

universalistas, são privilegiadas políticas “focalizadas” em indivíduos, grupos

específicos e segmentos da população pobre. E para implementar essas novas políticas

“focalizadas” foram convocadas as ONGs, definidas como mais ágeis, eficientes, menos

100 Mas, como afirmam os autores, tal “espírito” de autonomia e espontaneidade diz mais a respeito da representação feita pelos pesquisadores sobre os movimentos sociais do que sobre suas realidades cotidianas, que poucas vezes eram objeto das pesquisas feitas à época sobre esse tema.

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157

burocráticas e corruptas (Leite, 1999: 9); em suma, pelos mesmos atributos de

flexibilidade que a fazem “grande” na “cité par projet”.

No entanto, diversos autores chamam a atenção para as conseqüências da

escolha de políticas focalizadas em detrimento de políticas universais (saúde, educação,

e principalmente seguridade social). Para Leite (1999), o Estado exime-se de sua

responsabilidade de promover o bem-estar social, separa cidadania e justiça social e,

dessa forma, enfatiza uma concepção individualista de cidadania, focada no “indivíduo

como proprietário e consumidor” (1999: 9). Para Werneck Vianna, as políticas

focalizadas não geram desenvolvimento, empregos sustentáveis e, portanto, são inócuas

no combate às desigualdades (2009: 19). Por outro lado, ao executarem tais políticas

focalizadas em “parceria” com o Estado, as ONGs deixam em segundo plano sua função

de trazer ao espaço público demandas pela inscrição de novos direitos na ordem legal,

característica de sua atuação junto aos movimentos sociais no período constituinte

(Paoli e Telles, 2000: 109). Assim, abandonam a gramática dos direitos para se

“ajustarem” a uma nova gramática da cidadania.

Guardadas as devidas proporções, um caso já mencionado no Capítulo II,

envolvendo a associação de moradores do Pereirão e a Prefeitura, pode ser bastante

demonstrativa da discussão mencionada acima. Como dito anteriormente, uma das

maiores reivindicações da gestão de Antônio junto à Prefeitura era a construção de uma

creche na localidade101. De acordo com o entrevistado, a Prefeitura argumentou que tal

obra não seria possível, em função de restrições orçamentárias, mas ofereceu ao

presidente da associação a construção de casas para alguns moradores da favela, como

forma de beneficiar a localidade de alguma maneira (oferta que foi recusada por

Antônio, pelos motivos mencionados anteriormente). A Prefeitura, dessa forma, alegou

restrições orçamentárias para a construção da creche, que além do investimento inicial

demandaria manutenção, contratação de equipe técnica, provisão de merenda para as

crianças, entre outros gastos. Por outro lado, a construção das casas seria uma atuação

pontual, sem demandar investimentos futuros por parte do poder público. Já na gestão

de Jennifer a principal reivindicação não era mais a creche, mas que a Prefeitura

financiasse o “projeto” de uma “Casa da Criança” no local, para atender as crianças da

localidade no contraturno escolar. A casa já estava construída, financiada com o

101 Vale ressaltar que a luta por creche é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais urbanos brasileiros. Cf. Gohn, 1985.

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158

dinheiro da dona da pousada local, e seria gerenciada por uma ONG representada uma

mulher alemã (mesma nacionalidade do ex-marido da dona da pousada e principal

financiador do empreendimento) que desejava realizar um trabalho social na favela.

Segundo a entrevistada, as negociações para a obtenção desse financiamento público

estavam em andamento. Caso tal financiamento seja concedido, a Prefeitura irá

financiar um “projeto social” de uma ONG, que daqui a alguns anos poderá ser

financiada por outro agente não-estatal (se o “projeto” for considerado bem sucedido);

situação bem diferente da execução de uma política pública de assistência social e de

educação infantil, como no caso da creche.

Não pretendo que estas considerações dêem conta do espectro total de atividades

das organizações não-governamentais. Restrinjo minha pretensão de generalização

empiricamente fundamentada ao contexto das favelas e, no máximo, às intervenções

sobre os “territórios da pobreza”. Assim é que diversas pesquisas apontam que, dos anos

1990 para cá, os espaços populares, e especialmente os de favela, vem sendo ocupados

por “projetos sociais”, e a maioria deles não é uma iniciativa privada, mas sim uma ação

estatal – além do caso do “Mutirão pela Paz”, analisado no capítulo 1 (pp. 26), o

Programa Favela-Bairro também realizou diversos “projetos sociais” em parcerias com

ONGs (Burgos, 2003). Em ações recentes do poder público nas favelas o mesmo padrão

foi observado, como no caso das medidas implementadas após a Chacina do Alemão,

em 2007. Até o momento esse parece ser também o formato escolhido para as ações do

Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), do Ministério da

Justiça102.

As referências ao Pronasci, ao “Mutirão pela Paz” e à Chacina do Alemão são

significativas, pois permitem costurar as duas pontas deste argumento: em termos de seu

conteúdo, a ação das ONGs através dos “projetos sociais” realizados nas favelas está

“ajustada” à relação que o Estado estabeleceu com os territórios pobres da cidade,

particularmente através de seu aparelho repressor. Não afirmo que as ONGs sejam

agentes repressores, nem que estejam todas de acordo com a política pública de

102 Segundo o site do Programa: “O projeto articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública. Entre os principais eixos do Pronasci destacam-se a valorização dos profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Para o desenvolvimento do Programa, o governo federal investirá R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012”. Cf. Site do Ministério da Justiça.

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159

segurança implementada. Contudo, a política de segurança e as ong’s que atuam nas

favelas através de “projetos sociais” voltados para a questão da “vulnerabilidade ou

risco social” compartilham de um pressuposto analítico: os moradores de favelas, e

particularmente os jovens, são potenciais marginais e, se não forem salvos a tempo,

representarão uma ameaça à sociedade. O enquadramento da questão da violência

urbana pelas ONGs evidencia a adesão a esse pressuposto: nos “projetos sociais” os

moradores são descritos como agentes potenciais das situações de violência, e não como

vítimas – especialmente os jovens do sexo masculino. Daí o enfoque na prevenção, em

disputar com o tráfico “menino a menino” (Soares, 2005a: 241).

Vale ressaltar que, como afirmado anteriormente, a grande maioria das ONGs

apenas executa os “projetos sociais” que são formatados (em termos de seu público-alvo

e ações principais) pelos financiadores desses – configurando-se um “encontro

prestação de serviços” (Teixeira, 2002: 111). Como ressalta a autora, esses “encontro”

caracteriza-se pela pouca ou nenhuma participação dessas organizações na formulação

das políticas; porém, ainda que algumas ONGs pouco participem da formulação atual da

política de segurança pública (à qual os “projetos sociais” muitas vezes estão

vinculados), ao executarem a política elas lhe dão legitimidade. Além disso, as ONGs

participaram intensamente da construção da opinião pública atual que vê “projetos

sociais” como solução para o problema da criminalidade juvenil (como afirmei ao longo

desta tese103).

No caso do Pereirão, a adesão a esse pressuposto evidencia-se pela redação e

justificativa do “projeto social” que a ONG TV Morrinho pretende vender; nele, os

objetivos apresentados são a diminuição da violência e da criminalidade na

“Comunidade do Pereirão” e o “abandono das atividades relacionadas ao tráfico de

drogas” pelos jovens participantes (Cf. capítulo III: 116). Vale ressaltar, no entanto, que

as representações criminalizadoras e estigmatizantes convivem com representações

positivas: no mesmo documento as potencialidades artísticas dos jovens são ressaltadas;

além disso, nos materiais de divulgação da organização os jovens são descritos como

artistas, como exemplos para os outros jovens moradores, etc. (Cf. Capítulo III). Nesse

sentido, a ambivalência de representações possibilita que essa ONG esteja “ajustada” ao

enquadramento da questão da violência urbana localizada nas favelas – necessária para

103 Ver também Soares (1996, 2002, 2005).

Page 169: Tese_Lia_Rocha_2009

160

ser incluída no campo de agentes que estão engajados nessa temática, além de

importante para ser considerada adequada a receber financiamentos – bem como

“ajustada” a um discurso positivo sobre as favelas.

A criminalização dos jovens pelos agentes que se apresentam como seus

salvadores, e que em muitos casos estão realmente engajados nessa ação, seria para

Soares (2005b) uma consequência perversa do posicionamento daqueles que defendem

os “projetos sociais” como ferramentas para o combate da violência, mas que não

anularia os benefícios resultantes:

(...) quando circunscrevemos determinado grupo ou indivíduo como vulnerável, exposto ao risco do envolvimento com a violência e o crime, nossa intenção é protegê-lo, humanizá-lo, abrir-lhe alternativas, evitando a criminalização repressiva que os estigmatiza, demoniza e condena ao círculo vicioso das profecias que se autocumprem. Nossa intenção é esta, mas, frequentemente, caminhamos sobre o fio da navalha, porque tangenciamos, nós mesmos e contra a vontade, a estigmatização e a criminalização (que funcionará comprovando a verdade que previra, ao provocar os efeitos que temia e enunciava). (Soares, 2005b: 209).

Segundo o autor, a tese de que pobres e negros são mais ‘vulneráveis’ a aderir ao

crime é empiricamente correta, mas é responsabilidade da sociedade se eles acabam nas

carreiras criminosas. Porém, tal posicionamento reforça a estigmatização e até autoriza

a violência (principalmente policial), ao reforçar a visão sobre os jovens pobres e negros

como ameaça potencial, ao invés de “enfatizar e defender seus direitos ao acolhimento,

a uma vida saudável, etc.” (Soares, 2005b: 210).

As associações de moradores ocupam um lugar diferente dentro desse cenário.

Ainda que muitas vezes não se pronunciem sobre a violência cotidiana existente nas

favelas cariocas, quando o fazem se apresentam como representantes das vítimas,

particularmente no caso dos excessos cometidos por políticas contra o conjunto dos

moradores. Como dito anteriormente, muitas vezes os dirigentes se calam (ou evitam o

assunto), mas por motivos diferentes dos da maioria das organizações não-

governamentais, seja por medo, falta de interlocutores que os escutem, para não serem

acusados de coniventes ou cúmplices dos traficantes, ou ainda porque alguns são

realmente cúmplices (Silva e Rocha, 2008; Freire, 2008; Leeds, 2003; Zaluar, 2004).

Vale ressaltar, contudo, que como no caso empírico aqui analisado e em outros relatos

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161

recolhidos por outras pesquisas, os projetos sociais são aprovados e desejados por

muitos dirigentes de associações de moradores, principalmente por serem aprovados e

desejados por muitos moradores (Silva e Rocha, 2008), e dessa forma eles também

legitimam em certa medida o enquadramento dado aos moradores de favelas pelas

políticas executadas. Ainda que em menor intensidade, a ambivalência observada na

abordagem das ONGs é também encontrada entre os dirigentes de associações de

moradores. No entanto, no geral e particularmente nos momentos de conflito entre

traficantes e policiais com mortes de moradores de favelas, são os dirigentes de

associações que acionam o discurso que apresenta essa população como vítima tanto da

violência perpetrada pelos traficantes quanto pela polícia. O posicionamento das

associações reflete, assim, a ambivalência dos próprios moradores de favela, que se por

um lado opõem-se ao tratamento que recebem da polícia e do Estado enquanto

“potencialmente criminosos”, por outro aprovam ações de “prevenção à violência” nas

localidades, como observado no caso do Pereirão.

Nesse sentido, para além do “desajustamento” das associações de moradores aos

dispositivos institucionais compatíveis com a “cité par projet” mencionado acima – no

sentido de inadequação ao formato das ações no momento executadas nas localidades

populares – elas também encontrariam dificuldades em se “ajustar” ao conteúdo (isto é,

ao repertório moral) dessas novas relações, onde os moradores de favelas são

enquadrados em termos de sua ameaça, real ou potencial. Isso as excluiria, e aos grupos

que representam, da “comum humanidade” e as obrigaria a recorrer a um conjunto de

dispositivos que lhes permitiria reivindicar – com variáveis possibilidades de êxito – a

participação (certamente crítica) nessa comunidade de diálogo. Em termos do conteúdo

das ações e dos discursos também as ONGs estão mais bem “ajustadas”, e representam

o reverso do discurso que justifica o tratamento estigmatizante e criminalizador dado

aos moradores de favelas.

Dessa forma, a atuação das ONGs, através de projetos sociais que buscam salvar

os favelados de uma potencial vida criminosa através de processos de controle dos

moradores mais “vulneráveis”, se mostra “ajustada” ao enquadramento do “problema

das favelas” em termos da “metáfora da guerra” (Leite, 2000), pois se articula com a

representação das favelas enquanto território do crime e da violência. Assim, a partir da

idéia da guerra, estabelecem-se duas formas socialmente reconhecidas de tratamento

para a questão das favelas e de sua população: o tratamento “civilizador” (através da

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162

abordagem disciplinar dos projetos sociais) ou, para aqueles que não podem ou não

querem ser incluídos na sociabilidade institucional-legal, o extermínio (através da

política pública de segurança de enfrentamento ao crime). A divisão do tratamento do

“problema da favela” em uma solução disciplinar e uma solução final (a morte) remete

ao binômio poder disciplinar-biopoder, como proposto por Foucault (2005a).

No livro “Em defesa da sociedade”, Foucault recupera a teoria sobre o poder

soberano para compreender como se sustenta o direito do rei em dispor da vida e da

morte de seus subalternos. O autor identifica dois outros dispositivos de poder que

sucederam no tempo o poder soberano, e acabaram por se sobrepor a ele: o poder

disciplinar e o biopoder. Segundo o autor, o poder disciplinar visa tornar os indivíduos

dóceis e úteis, através da separação, alinhamento, vigilância e treinamento de seus

corpos, de forma que se tornem mais produtivos para o trabalho. Trata-se de um

tratamento racional e técnico para a questão do desvio individual (Foucault, 2005a:

287). Já o biopoder não ocorre sobre o corpo individual, mas sobre um corpo

“múltiplo”, com “várias cabeças”, uma construção abstrata que transforma as pessoas

em uma “massa global” sobre a qual incidem processos da vida como o nascimento,

morte, doenças, etc: a população (2005a: 292). Enquanto o primeiro poder é exercido

através da disciplina (ações e técnicas focadas no indivíduo e no controle do seu corpo),

o segundo se dá através de regulamentações gerais (vacinas, cuidados sanitários,

estímulos à natalidade ou ao controle dela, etc.). No entanto, poder disciplinar e

biopoder, ainda que pertencentes a níveis diferentes de atuação (indivíduo x população),

não são excludentes; ao contrário, estão articulados (de maneira ortogonal) nas normas

que disciplinam e regulam a sociedade. Questões sociais como a sexualidade e a saúde,

por exemplo, são para Foucault formas normatizadas de atuar tanto sobre a pessoa

(corpo individual) quanto sobre a população (2005a: 297).

No caso das favelas cariocas, poder disciplinar e biopoder também estão

articulados. Incidem sobre os territórios favelados através de ações que são justificadas

por duas linhas de pensamento diferentes, às vezes com posicionamentos opostos dentro

do campo político. Essas duas linhas de enquadramento da questão foram identificadas

por Leite (2000), e passaram a polarizar a discussão pública a esse respeito a partir dos

anos 1990:

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163

A primeira, liderada pelo aparato policial civil e militar e contando com a adesão ativa de vários políticos, de setores da mídia e de parte dos moradores da cidade, oriunda principalmente de suas camadas médias e abastadas, clamava por ordem e segurança e pela disciplinarização das “classes perigosas”. Considerava que a situação excepcional da cidade — de guerra — não admitia contemporizações com políticas de direitos humanos e com reivindicações pelo respeito aos direitos civis dos moradores nos territórios conflagrados. A segunda, liderada por um grupo de organizações não-governamentais e de intelectuais formadores de opinião na cidade, e que contava com a adesão de alguns órgãos de imprensa e de setores médios politizados e/ou intelectualizados, defendia a combinação de políticas de promoção da cidadania, destinadas principalmente a jovens moradores em favelas e periferias, com alternativas eficientes no campo da segurança pública (Leite, 2000: 74).

No entanto, como indica a autora, ambos os enquadramentos estão orientados

em direção à localização da pobreza e da marginalidade nas favelas do Rio de Janeiro

(2000: 74). Meu argumento tem sentido parecido: ainda que muitas vezes justifiquem

ações opostas, representam faces diferentes do mesmo dispositivo que busca controlar,

disciplinar e regular os moradores desses territórios. Disciplina e regulação, como

indicou Foucault, se sobrepõem no tratamento dado aos moradores de favela, através da

representação desses como “o problema da segurança pública”, ou “o problema da

cidade”. Como demonstrado em trabalhos que abordam as diferentes políticas públicas

voltadas para as favelas, a preocupação em disciplinar e “civilizar” os seus moradores

foi constante ao longo do século passado, sendo concretizada nos Parques Proletários,

nos conjuntos habitacionais que receberam moradores removidos das favelas, na

Fundação Leão XIII (Burgos, 2003; Valladares, 2005; Farias, 2008). À abordagem

“civilizadora” se somaria atualmente o tratamento policial-repressivo, cristalizado no

termo “metáfora da guerra” (Leite, 2000), que justifica as ações violentas realizadas

pela polícia nesses territórios, com alta letalidade e ao custo de muitas vidas, em um

processo diuturno de eventos violentos. Tendo como ponto de partida os Parques

Proletários, Farias aborda a “atualização dos mecanismos de controle”, ao discorrer

sobre como essas populações se encontram hoje a mercê de uma atuação estatal que

demonstra pouca preocupação com a letalidade das ações policiais executadas naquele

território. Citando dados levantados por organismos internacionais, afirma que os

favelados são “matáveis”, já que a continuidade dos assassinatos e chacinas envolvendo

moradores de favela constitui-se em “um processo que vem sendo desempenhado por

alguns, legitimado por outros, deixado de lado por outros e denunciado por poucos”

(Farias, 2008).

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164

Nesse sentido, como tentei demonstrar ao longo deste capítulo, ONGs

encontram maior legitimidade para suas ações porque estão mais “ajustadas”, tanto ao

moderno capitalismo flexível quanto à “metáfora da guerra”, que regulam e orientam o

tratamento dado atualmente às favelas. Associações de moradores buscam recuperar sua

legitimidade, através de um “ajustamento” ao formato ONG – no entanto, não

alcançaram essa legitimidade, em função das diferenças de formato e de função que

possuem em relação às ONGs. Assim, as ONGs são hoje a “voz” das favelas, quem fala

sobre os moradores, para eles e por eles, pois são a “voz” que é ouvida e reconhecida.

No próximo capítulo, conclusão desta tese, discuto os limites dessa “voz”, e de que

maneira entendo que uma “voz ajustada” representa uma outra dimensão do

silenciamento que recai sobre os moradores das favelas, tão evidente no caso da favela

do Pereirão.

Page 174: Tese_Lia_Rocha_2009

165

Conclusão: Paz sem voz.

Ao longo da tese, silêncio e silenciamento foram mencionados em diversos

momentos: o silêncio dos moradores, de sua entidade representativa, de sua organização

de base. Às vezes o silêncio aparece como medo; em outros, como evitação, como

forma de tentar não se contaminar pela imagem negativa das favelas e de seus

moradores. Nesta conclusão essa discussão permanece, mas tendo como contraponto a

possibilidade se expressar publicamente, de ter “voz”: Quem tem voz nas favelas

cariocas? Quem fala pelas favelas, ou sobre as favelas? E quem fala para as favelas?

Ao usar o termo “voz” para descrever a participação na arena pública de

entidades compostas por moradores de favelas ou de organizações cujas ações estão ali

enraizadas, refiro-me a capacidade de posicionar-se legitimamente enquanto

organização e de ter suas ações reconhecidas (inclusive através de recebimento de

recursos). Mobilizo para a discussão a categoria “voz” como proposta por Albert

Page 175: Tese_Lia_Rocha_2009

166

Hirschman (1970)104, i.e. tornar público o descontentamento com o estado, com uma

empresa ou com uma organização como forma de reivindicar melhorias – ainda que a

dimensão crítica e reivindicatória da categoria como definida pelo autor possua uma

versão menos contestatória no quadro das favelas e de suas organizações de base. Nesse

contexto, trata-se menos de expressar um descontentamento, e mais de tornar pública

uma demanda, uma reivindicação, um problema. Assim, “possui voz” aquele que é

ouvido em momentos de conflitos (por exemplo: ações policiais, construções de

equipamentos públicos polêmicos, etc.), ou que participa dos debates sobre as políticas

públicas executadas nessas localidades. “Possui voz” também o ator capaz de propor

formulações sobre o que seria “o problema da favela” e sobre como solucioná-lo, e que

é ouvido a esse respeito. Em diferentes momentos, e frente a diferentes audiências,

associações de moradores e organizações não-governamentais possuíram “voz”, mas

esse capital vem sendo distribuído de forma bastante heterogênea, e cada vez se

concentra mais nas mãos de um desses atores.

Como discutido ao final do Capítulo I, o silenciamento e o medo permanecem

no Pereirão, mesmo quando os moradores ressalvam sua diferença frente aos outros

moradores de favela, particularmente em relação à submissão desses ao poder arbitrário

dos traficantes de drogas. Mesmo quando falam sobre seu cotidiano, silenciam-se ao

não tematizar sobre a ordem violenta do tráfico de drogas e da polícia, através de uma

evitação do tema – direta, quando dizem que não querem falar sobre o assunto, ou

indireta, quando acionam o discurso da excepcionalidade local: “aqui não tem tráfico”,

“aqui é uma favela tranquila”. Dessa forma, não expressam sua “voz” no sentido

proposto por Hirschman (1970), pois não expressam crítica ao contexto em que vivem;

e mantendo o repertório do autor, também não expressam lealdade à ordem violenta,

nem renunciam (exit) a ela. Tal silenciamento foi observado não apenas entre os

104 Em seu trabalho mais conhecido, Hirschman (1970) apresenta um modelo de análise de relações sociais que pretende definir os cursos de ação de atores sociais individuais frente a organizações de diferentes tipos: consumidores face ao mal-funcionamento de serviços e produtos comprados, cidadãos descontentes com os serviços públicos ou militantes desapontados com seus movimentos sociais. Ao deparar-se com tais atores sociais, e com sua performance insuficiente, três possibilidades de ação são vislumbradas por Hirschman: a saída, a voz e a lealdade (Exit, Voice e Loyalty). Mantendo o exemplo da relação empresa-consumidor, a saída seria o comprador trocar de marca, desistindo de consumir aquele produto; a lealdade seria o comprador continuar consumindo a mesma marca, mesmo descontente; e a vozseria o comprador reclamar ou mobilizar-se com outros consumidores descontentes, de forma a exigir a modificação do produto.

Page 176: Tese_Lia_Rocha_2009

167

moradores, mas também nos espaços da associação de moradores e da ONG (ainda que

nessa última o silenciamento tenha contornos diferenciados, como veremos adiante).

De forma a apresentar alguns dos achados analíticos deste trabalho, recupero a

discussão feita nos capítulos anteriores. O silenciamento que, acredito, recobre a

sociabilidade no Pereirão apresenta-se de formas diferentes, de acordo com o contexto e

o agente que nele se coloca. Os moradores, na maioria das vezes, evitam falar sobre os

traficantes de drogas locais, negando ou minimizando sua presença na favela. Quando

falam sobre o tema, afirmam que não estão submetidos aos traficantes de drogas como

os outros moradores de favelas cariocas. Nesse contexto, essa fala tem o sentido de

enfatizar que não estão expostos aos riscos e inseguranças que são resultado direto do

encontro forçado entre moradores e traficantes de drogas. Dessa forma, a fala sobre a

“tranquilidade” local independe de se existe tráfico de drogas no local ou não. Os

moradores do Pereirão se apresentam como não-submetidos aos traficantes porque, ali,

os conflitos entre traficantes e entre esses e a polícia são considerados eventos

extraordinários, o que faria essa favela “diferente” face às localidades onde conflitos,

eventos violentos, troca de tiros, retaliações dos traficantes contra moradores,

assassinatos, espancamentos, etc., são mais freqüentes (Machado da Silva, 2008c).

Como dito na introdução desta tese, não pretendo responder à questão se o

Pereirão é ou não uma favela “diferente das outras”. Mais do que isso, não posso

responder com um sim ou um não, pois ela é diferente, e ao mesmo tempo é igual.

Observa-se nos relatos recolhidos e nas observações feitas que a excepcionalidade do

Pereirão não está ancorada empiricamente na ausência de traficantes no local, mas sim à

forma como eles ali se encontram, à configuração da rede do tráfico de drogas na

localidade: “aqui não tem tráfico”, ou “aqui não tem tráfico armado”, ou ainda “aqui é

cada um na sua, eles lá e nós aqui” são definições locais (nativas) sobre aquele tipo de

configuração do tráfico de drogas. É claro que os termos adotados variavam de acordo

com o entrevistado, sua idade, a relação de confiança estabelecida com a pesquisadora,

a situação em que cada conversa se dava. Porém, todos reforçam a importância da

ausência de contatos forçados, e dessa forma de conflitos reais ou potenciais, com os

traficantes de drogas – o que representa uma garantia, ainda que temporária, de que a

segurança pessoal e a rotina estão a salvo do risco que esses contatos representam.

Machado da Silva e Leite (2008) já discutiram a importância da manutenção da rotina

para os moradores de favelas. Nesse sentido, a compreensão dos moradores do Pereirão

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168

sobre ali ser uma favela “tranquila” pela ausência de conflitos vai ao encontro das

representações dos moradores ouvidos na Pesquisa “Rompendo o cerceamento da

palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, que dirigiam suas críticas

sobre a violência, seja ela policial ou vinda dos traficantes de drogas, à sua interferência

sobre o fluxo rotineiro da vida nos territórios das favelas, mais do que à violência ou ao

crime propriamente ditos (Machado da Silva e Leite, 2008: 75).

Assim, é importante ressaltar que, no sentido das garantias à manutenção da

rotina, o Pereirão é uma favela “diferente das outras”, segundo seus moradores. E

quando colocadas em oposição a favelas vizinhas, ou a favelas mais conhecidas da

cidade, ali os conflitos são muito menos freqüentes. No entanto, no que diz respeito à

confiança e possibilidade de expressão no espaço público, os moradores dessa

localidade muito se assemelham aos outros favelados. Sentem-se inseguros e

desprotegidos quando requisitados a falar sobre risco e perigo em suas vidas; evitam

falar sobre certos assuntos; observam regras de circulação no espaço da cidade –

continuam submetidos a uma ordem violenta, ainda que com maiores garantias para a

continuidade de suas rotinas. Essas maiores garantias, contudo, são suficientes para

confirmar a diferença entre o Pereirão e outras favelas cariocas. Segundo Machado da

Silva (2008b), os moradores de favelas fazem um esforço constante para manter o fluxo

de suas rotinas dentro da ordem social dominante – trabalhar, estudar, casar, ter filhos,

entrar e sair de suas localidades. Ter uma vida “normal”, rotineira, uma continuidade

que muitas vezes é interrompida pelos eventos violentos que resultam da proximidade

forçada com os traficantes de drogas (a “sociabilidade violenta”). Os moradores são,

assim, obrigados a uma enorme concentração de atenção, de forma a se protegerem das

conseqüências dos encontros. Portanto, a rotina dos moradores é preenchida por esse

esforço mental de concentração, inclusive para evitar infringir a ordem imposta através

de comportamentos não adequados, resultando em grande dose de desconfiança e medo

entre os próprios moradores (Machado da Silva, 2008b: 22). Ainda que o esforço

mental, a desconfiança e o medo permaneçam, eles seriam menores no Pereirão.

Mesmo que a situação excepcional do Pereirão – sua “tranquilidade” – seja

tópico de conversas e de apresentações sobre o local, os riscos envolvidos, as ameaças

existentes, os momentos de conflito e de violência, não são tematizados pelos

moradores entrevistados, nem sequer mencionados. Assim, apesar das diferenças em

seu cotidiano e da “tranquilidade” que afirmam desfrutar, também os moradores

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169

entrevistados estão submetidos a dispositivos de “confinamento” e de “silenciamento

coletivo” (Machado da Silva, 2008b: 19); e nesse sentido ela é “igual às outras”. Tal

silenciamento pode ser uma conseqüência do medo; como dito anteriormente, os

moradores do Pereirão seguem a “lei do silêncio” que se impõe sobre a coletividade dos

moradores de favelas, o que ficou evidente no comentário feito por um dos moradores

sobre o perigo de falar sobre o tema em entrevistas. Pode ser, dependendo do contexto,

o reconhecimento da inutilidade de falar sobre uma situação considerada inexorável –

observada no argumento “aqui é uma favela como as outras”, usado em um contexto

específico para reconhecer a existência do risco no local, mas também como forma de

encerrar uma discussão sobre o assunto.

Em outros contextos, no entanto, o silenciamento não tem uma função apenas

reativa, como apresentado acima, no sentido da impossibilidade de falar sobre o

assunto. Silenciar sobre os eventos violentos (ou sobre a possibilidade deles

acontecerem) tem também a função de garantir a “segurança ontológica” (Giddens,

1991) dos moradores, sua confiança na continuidade da rotina e na normalidade do

fluxo de suas vidas, quando esses apresentam sua localidade como um ótimo lugar para

morar, “tranquilo”, “em paz”. Ele pode ser acionado pelos moradores ainda como um

recurso que os distingue positivamente, um “capital simbólico” (Bourdieu, 2004: 145):

uma forma de evitar o interesse da polícia na localidade, evitando assim confrontos e

operações no local, ou pelo menos como forma de reivindicar uma abordagem menos

agressiva dos policiais quando entram na localidade. Definitivamente, a “tranquilidade”

local é um “capital simbólico” quando utilizada para rejeitar o estigma que recai sobre

os favelados, acusados de serem coniventes com os traficantes de drogas. É um recurso

usado em momentos de apresentação de si em espaços públicos, acionado pelos

dirigentes da associação de moradores e também pelos jovens participantes da ONG,

além de ser acionado na busca por oportunidades de trabalho (ainda que limitadas

àqueles que reconhecem a especificidade local).

O silêncio pode representar ainda uma forma de evitação de um assunto que

pode colocar aquele que fala sob a crítica dos outros, correndo o risco de ser mal-

avaliado ou até mal-interpretado. Pollack (1989) discorre sobre o trabalho de

reconstrução da memória a respeito de eventos traumáticos, e sobre os silenciamentos

voluntários das vítimas a respeito deles. Em seu trabalho sobre a memória dos

sobreviventes dos campos de concentração o autor argumenta que o silêncio pode ser

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170

uma escolha em diversas situações: quando as vítimas não encontram um ouvido

interessado em seus testemunhos; ou quando a sociedade está concentrada nos esforços

de reconstrução após a guerra e não tem mais energia para “ouvir a mensagem

culpabilizante dos horrores dos campos” (Pollack, 1989: 6). Pode ser ainda uma forma

de proteger os filhos, para que eles não cresçam com o peso das cicatrizes dos pais. O

autor afirma que o silêncio também é, muitas vezes, uma forma de fazer “boa figura” de

si mesmo frente às representações dominantes, como no caso das vítimas do nazismo

que não foram deportadas por motivos políticos, e que se calaram sobre sua condição

para não serem desmerecidas enquanto legítimas vítimas dos nazistas105.

Essa tipologia de discursos e de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos (Pollack, 1989: 8).

O silêncio nos casos acima mencionados é uma estratégia para a valorização de

si mesmo, ou para evitar a desvalorização, pelo menos. Atua de forma semelhante ao

mecanismo de “limpeza moral” mencionado para o caso dos moradores de favela, pois

esses também têm que se apresentar enquanto “bons favelados” para não serem julgados

de forma negativa, assim como aqueles tinham que se apresentar como “vítimas

legítimas”. Seguindo a pista dada por Pollack, do silêncio como forma de evitar mal-

entendidos, não falar sobre o tráfico de drogas permite que os moradores da favela do

Pereirão evitem discorrer sobre as estratégias que precisam utilizar para protegerem-se

dos contatos inevitáveis com os traficantes. Em alguns momentos ao longo do trabalho

de campo os moradores relataram situações em que alguma forma de interação com os

traficantes de drogas foi realizada: por exemplo, nos casos relatados em que a polícia

realizou operações na favela os moradores envolvidos na organização dos eventos que

aconteciam naqueles momentos afirmaram ter tido que explicar para os traficantes que

não tinham relação com o ocorrido. No entanto, silenciavam sobre as circunstâncias

dessas interações, como forma de evitar acusações de conivência com os traficantes,

como observado no caso de moradores de outras favelas cariocas. Todavia, no caso dos

105 As vítimas de crimes políticos seriam as mais valorizadas, o que calaria as mulheres envolvidas nos casos de crimes de “vergonha racial”, ou seja, que foram condenadas por terem tido relações sexuais com “arianos”. Silenciaram-se ainda os sobreviventes homossexuais, que temiam ser novamente julgados e condenados, inclusive com a perda do emprego ou da moradia (Pollack, 1989: 12-3).

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171

deportados pelo nazismo estudados por Pollack (1989), o silenciamento sobre a

condição não-legitimada em que cada um foi deportado não significou que a existência

do Holocausto tenha sido negada. No caso dos moradores do Pereirão, porém, o

silenciamento sobre a situação a que estão submetidos se traduz em negação da própria

submissão, o que dificulta ainda mais a possibilidade de serem ouvidos e reconhecidos

enquanto vítimas.

Veena Das (1999) oferece ainda uma análise sobre o silêncio em relação a

situações de violência. Em sua pesquisa, demonstra como as mulheres de famílias

punjabi discursam sobre as violências cometidas pelos maridos contra elas, relatam

injustiças sofridas e como fizeram para superá-las; essas histórias possuem uma

narrativa, uma temporalidade, atores (vítimas e agressores), e assim “aspectos da

performance ou esforços pelo controle da história” estão presentes (Das, 1999: 33). No

entanto, ao falar sobre o evento da Partição da Índia, em que mulheres foram raptadas e

violentadas nos confrontos, a narração das situações de violência assemelha-se a “slides

congelados” (1999: 33). Para a autora existe, portanto, uma diferenciação entre

situações de violência acontecidas dentro das redes familiares e privadas e aquelas

passadas no contexto da Partição, onde “uma violência que visivelmente rasgava o

próprio tecido da vida” tornou impossíveis “reivindicações da cultura através da

disputa” (1999: 38-9). Segundo Das:

Sugiro, assim, que aquilo que constitui o não-narrativo dessa violência é o que é indizível nas formas da vida cotidiana. Sugiro, ainda, que é porque o alcance e a escala do humano que é testado, definido e estendido nas disputas inerentes à vida cotidiana que ela passa, da violência inimaginável da Partição, para formas de vida que não são vistas como pertencentes à própria vida. Ou seja, essas experiências da violência levantam certas dúvidas quanto à própria vida, e não apenas quanto às formas que ela pode assumir. Foi um homem ou uma máquina que enterrou uma faca nos órgãos genitais de uma mulher depois de estuprá-la? Eram homens ou animais que saíam matando e colecionando pênis castrados como sinais de suas proezas? Existe uma profunda energia moral na recusa de representar algumas violações do corpo humano, pois tais violências são vistas como sendo “contra a natureza”, definindo os limites da própria vida. O alcance e escala precisos da forma de vida humana não são conhecidos de antemão, do mesmo modo que o alcance preciso de uma palavra não é conhecido de antemão. Mas a intuição de que determinadas violações não podem ser verbalizadas na vida cotidiana está no reconhecimento de que não se pode trabalhá-las no âmbito do cotidiano queimado e embotado. (Das, 1999: 39).

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172

A partir da análise de Das (1999) é possível criar duas dimensões de violência

sofridas pelos moradores de favela, e assim duas formas de expressá-las: quando falam

de uma violência “simbólica” ou “econômica” (p. ex. o descaso do poder público, ou a

violência do tráfico e da polícia em termos abstratos), os moradores discorrem sobre sua

condição de marginalizados com maior facilidade e, principalmente, sentem-se mais

legitimados a se posicionarem enquanto vítimas. Contudo, falar sobre situações de

violência que aconteceram a indivíduos próximos ou a si mesmo, em que a própria

humanidade do vitimado foi negada, ou onde havia o sentimento de impotência pela

desigualdade de forças existente, é muito mais complicado, e exige manobras narrativas

diferentes daquelas usadas para descrever situações mais abstratas e que ocorrem de

forma mais generalizada. Tal diferenciação é particularmente rica para pensar o que

acredito ser um silenciamento por parte dos dirigentes da associação de moradores e dos

integrantes da ONG do Pereirão, especialmente os últimos: eles falam sobre a violência,

sobre a submissão imposta, mas o fazem de forma deslocada do contexto daquele

território, de suas experiências pessoais, ou de forma impessoal e não-subjetiva.

De certa forma, o silenciamento dos moradores do Pereirão é também o

silenciamento dos moradores de favelas de forma geral, enquanto cidadãos cariocas

submetidos a uma ordem violenta que limita ou impede que denunciem sua situação.

Sem os aspectos positivos que destacam a “tranquilidade” local como um “capital

simbólico” disponível, o conjunto dos moradores de favelas silencia-se: por medo de

retaliações dos traficantes e de policiais, por medo de serem mal-compreendidos e

estigmatizados, por medo de não encontrar um ouvido disponível para o que desejam

falar. Mas, ainda que para os moradores o silenciamento face às situações de risco seja

uma estratégia possível, para as organizações representativas a escolha por não falar

representa o abandono de uma das principais funções desses atores. Assim, soma-se ao

risco representado pelo contato forçado com os traficantes a possibilidade de perda de

legitimidade do dirigente enquanto representante legítimo do conjunto dos moradores

que lhe deram seu mandato, o que “põe à prova e tensiona a legitimidade do porta-voz e

o horizonte político desta forma associativa” (Freire, 2008: 146). Contudo, este tem sido

o caminho escolhido por muitas das associações de moradores, por motivos semelhantes

aos dos moradores: medo, desconfiança, necessidade de escapar da “contaminação

moral” representada pelo tráfico de drogas. Com a voz silenciada e com seu espaço de

atuação limitado, as associações de moradores buscam na execução de “projetos” e nas

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173

“parcerias” com o poder público um novo desenho para suas atuação, uma nova forma

de estar dentro dos territórios e de ser liderança comunitária. No entanto, enfrentam

nessa nova atividade a competição com as organizações não-governamentais, que são

vistas como menos “contaminadas” pelo contato com o tráfico de drogas e cujo trabalho

encontra, em muitos casos, maior aceitação e legitimidade pública tanto dentro quanto

fora das favelas (Silva e Rocha, 2008).

Enquanto as associações de moradores encontram-se silenciadas, as ONGs são

hoje reconhecidas como “a voz das favelas” – pelo menos aquela que é acolhida no

espaço público. No caso específico do Pereirão, contudo, ainda que atuante e com um

trabalho que se refere diretamente à temática da violência urbana, o tratamento dado

pela ONG local à questão do tráfico de drogas é também uma forma de silenciamento,

pois se apresenta apenas como uma representação estética da realidade, sem

questionamento, reflexão ou crítica sobre ela. Da mesma forma que em filmes

brasileiros recentes cujo tema é violência, nas performances dos participantes da ONG

as imagens produzidas não se pretendem “explicativas” da complexa realidade das

favelas cariocas, nem oferecem julgamento sobre elas; são apenas “‘espelho’ e

constatação de um estado de coisas” (Bentes, 2003: 231). A representação da violência,

nesse caso, não é uma “tomada de voz”, mas um “ajustamento” à representação corrente

das favelas como território da violência.

Não somente a ONG localizada no Pereirão encontra-se silenciada, no sentido

proposto acima; em termos de uma “tomada de voz” sobre a situação das favelas e de

seus moradores, a maioria das ONGs que hoje atuam nessas localidades possui uma

atuação “ajustada”, o que não significa uma representação dos interesses dos moradores.

De forma a refletir sobre essa outra forma de silenciamento, gostaria de retomar as

proposições de Touraine: movimentos sociais colocam em evidência questões centrais

para a sociedade e disputam, assim, qual o rumo dela – sua “historicidade” (Touraine,

1978). Além disso, como indicou Alexander (1989), buscam re-dimensionar essas

questões, transformando-as em preocupações legítimas e justas. No entanto, para tal

precisam do reconhecimento da validade dessa demanda por parte da sociedade. Hoje,

em função da radicalização dos discursos sobre criminalidade e violência urbana, a

discussão sobre os direitos humanos dos moradores de favela não é considerada

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174

legítima, e por isso encontra-se quase ausente dos debates públicos sobre o tema106. O

enquadramento dado ao tema aceita representações que coloquem os favelados na

posição de algozes, ou de potenciais algozes, mas dificilmente como vítimas. É somente

a partir do “ajustamento” a esse pressuposto que se tornaria possível participar do

debate sobre os “problemas das favelas” e quais soluções possíveis para eles e, nesse

sentido, as ONGs podem participar com maior legitimidade do debate por estarem

“ajustadas” a esse discurso. Ter mais legitimidade para participar do debate não quer

dizer, contudo, que as opiniões e as soluções propostas pelas ONGs sejam aceitas pelos

outros participantes desse debate – ou que sejam até homogêneas. Ao contrário, as

ONGs são acusadas de defenderem apenas “os direitos dos bandidos”, ou ainda de má-

utilização do dinheiro público, mais recentemente107. No entanto, apesar das críticas que

recebem, as ONGs recebem financiamentos públicos, privados e internacionais; são

chamadas para dar declarações públicas sobre temas importantes do cotidiano do Rio de

Janeiro; participam de fóruns importantes onde são discutidos temas públicos, etc. – ou

seja, tentam influir no debate sobre as favelas e principalmente sobre as soluções

possíveis.

As associações de moradores, nesse cenário, tentam se adequar ao

enquadramento atual através da formatação de suas ações no mesmo desenho dos

“projetos sociais”; como visto no capítulo II, muitos dirigentes de associações vêem na

execução desses projetos uma saída para sua posição de isolamento em relação ao poder

público (tanto como uma forma de receber recursos quanto de agir sobre os territórios

de alguma maneira). No entanto, encontram dificuldades de adaptação determinadas: i)

por sua função de representatividade do coletivo dos moradores; diferentemente dos

“projetos sociais” as associações de moradores não podem focar-se apenas nos jovens

das favelas; ii) por terem sua imagem fortemente relacionada aos traficantes de drogas,

particularmente depois das mais recentes denúncias de formação de currais eleitorais

nas favelas (Cf. Capítulo II). Mesmo assim, apesar dessas questões, as associações de

moradores ainda se mantém funcionando, mesmo que esvaziadas – como no caso da

associação do Pereirão. Contudo, não conseguem exercer seu papel de representante dos 106 Importante exceção deve ser feita a movimentos sociais que têm na questão da defesa dos direitos humanos sua principal bandeira (Cf. Leite, 2004; Farias, 2005). No entanto, como as próprias autoras apontam, esses coletivos enfrentam grandes dificuldades em ocupar o espaço público com suas demandas, apesar de terem obtido importantes conquistas em suas demandas, ainda que de forma individualizada (alguns casos de assassinato de jovens por policiais foram reconhecidos e os autores condenados).107 No ano passado, foram feitas diversas denúncias do uso de ong’s para desvio de verbas públicas. Cf. Como fazer bem a si mesmo. Revista Época, 2008.

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175

moradores em questões como o escopo e o tipo de política social executada nas favelas,

a abordagem violenta das “operações policiais” nessas localidades, ou a mais recente

discussão sobre muros e remoção de favelas108.

No entanto, ainda que as ONGs sejam uma “voz” atuante no espaço público e

nas discussões sobre “o problema das favelas”, representam uma outra dimensão do

silenciamento imposto aos moradores das favelas: enquanto “a voz que fala das favelas,

pelas favelas”, só é ouvida porque é “ajustada”. Assim, enquanto crítica ativa do sistema

(Hirschman, 1970; Freire, 2008), enquanto denúncia da situação de submissão dos

moradores a um regime de violência, a “voz” dos moradores de favela permanece

silenciada.

Sem uma entidade representativa, a possibilidade dos moradores se fazerem

ouvir fica ainda mais diminuída. Como fazem os moradores do Pereirão, a maioria dos

moradores de favelas protege-se no silêncio.

108 Cf. Governo do Rio de Janeiro constrói muros para conter favelas (O Globo, 29/03/09) e Paes diz que remoção de favelas não pode ser tabu (O Globo, 11/04/09).

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Anexos.

Anexo I: Lista de entrevistados.

S. Anacleto, 74 anos, aposentado, afirma ter nascido na localidade.

Antônio: 55 anos, eletricista, natural do Rio de Janeiro, nascido na localidade, onde

sempre viveu.

D. Berenice: 91 anos, do lar, natural de Minas Gerais, mora na localidade há mais de 50

anos (não soube precisar).

S. Bernardo: 56 anos, aposentado, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

Cabeção, 22 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 10 anos.

Cristina, 48 anos, auxiliar de serviços gerais, natural do Rio de Janeiro, mora na

localidade há 25 anos.

Flávia, 35 anos, empresária, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 4 anos.

S. Ítalo, 82 anos, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 20 anos.

Jennifer: 30 anos, secretária, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

S. Jorge: 74 anos, aposentado, natural do Rio de Janeiro, não soube precisar quando

chegou à localidade.

Jorgina: 32 anos, do lar, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade há 7 anos.

Lucio, 22 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

Newton, 15 anos, estudante e artista, natural do Rio de Janeiro, mora na localidade

desde pequeno.

S. Noaldo: 65 anos, aposentado, natural de Minas Gerais, mora na localidade há 5 anos.

S. Pedro: 75 anos, aposentado, natural da Bahia, mora na localidade há mais de 50 anos.

D. Salete: 71 anos, doméstica (aposentada), natural de Minas Gerais, mora na localidade

desde 1967.

Sandro, 21 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

S. Silvio: 80 anos, aposentado, natural da Bahia, mora na localidade há mais de 50 anos

(também não soube precisar).

Suzana: 53 anos, vendedora, natural do Rio de Janeiro, nascida na localidade.

Tiago, 20 anos, artista, natural do Rio de Janeiro, nasceu na localidade.

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Anexo II: Sites, Artigos de jornal e documentos oficiais (impressos ou digitais).

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