[Tese] Curas Através Do Orun
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
ANTROPOLOGIADOUTORADO EM ANTROPOLOGIA
CURAS ATRAVS DO ORN:
rituais teraputicos no Il Yemanj Sb Bassam
(Recife)
MARIA ODETE VASCONCELOS
RECIFE
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA
CURAS ATRAVS DO ORN: Rituais teraputicos no IlYemanj Sb Bassam (Recife)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFPE pela alunaMaria Odete de Vasconcelos, para obteno do ttulo de
Doutora em Antropologia, tendo como orientador o Prof.Dr. Roberto Mauro Cortez Motta.
RECIFE2006
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Vasconcelos, Maria OdeteCuras atravs do Orn : rituais teraputicos
no Il Yemanj Sb Bassam (Recife) / MariaOdete Vasconcelos. Recife : O Autor, 2006.
313 folhas : il., fot.Tese (doutorado) Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. Antropologia, 2006.
Inclui bibliografia, apndice e anexos.
1. Antropologia - Xang. 2. Etnlogia Antro-pologia cultura. 3. Cura Terapias religiosas. 4.Cura - Fitoterapia. Ttulo.
39 CDU (2.ed.) UFPE390 CDD (22.ed.) BC2006-456
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A terra no cansa nunca,a terra quieta, rude,
a princpio incompreensvel.A Natureza rude e a princpio
incompreensvel,no desanime, siga em frente: existem
coisas divinas bem acondicionadas,juro a voc que existem coisas divinas
mais belas do que possam as palavras dizer.
Walt Whitman, 1983.
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DEDICATRIA
Letcia:tia e amiga
maternal.
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta, amigo constante e orientador
generoso, que concedeu tempo, idias e livros, conduzindo de modo efetivo e
afetivo cada etapa deste trabalho.
Profa. Dra. Maria do Carmo Tinoco Brando, pelo empenho e
obstinao despendidos para instaurar o Doutorado no PPGA da UFPE, e por
alertar-me no sentido de estudar o Terreiro Yemanj Sb Bassam.Ao Corpo Docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da
UFPE, especialmente, o Prof. Dr. Antonio Motta, pelo carinho, interesse e falas
tranqilizadoras nos momentos pontuais do Doutorado.
Ao Prof. Dr. Bartolomeu Figuera de Medeiros, Coordenador do
Doutorado, pela atitude colaborativa com os alunos da primeira turma.
Agradeo o apoio recebido pelas instituies: Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFPE, Universidade Federal da Bahia,
Universidade Cndido Mendes e Centro de Estudos Afro-Asiticos, que me
proporcionaram a realizao do Curso Fbrica de Idias.
A Profa. Gislia Potangy, amizade construda ainda no Mestrado em
Antropologia da UFPE, pelas palavras de apoio, to caras nos momentos mais
difceis desses ltimos anos.
Aos amigos e colegas da primeira turma do Doutorado: Ktia Medeiros
de Arajo, companheira de todas as horas, que com os ps sangrados como os
meus, nos instantes finais do trabalho, esteve presente todo tempo. E Eduardo
Fonseca, sempre prestativo.
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Aos amigos fiis, pela presena, apoio e colaborao, dentre os quais,
destaco: Grzia Cardoso, Rosa Aquino e nio Mariz.
Um especial agradecimento Profa. Dra. Hlia Maria Cannizzaro,
companheira constante durante o trabalho de campo, leitora vida do texto, bem
como, pelo reconhecimento da fidelidade dos dados.
Profa. Dra. Marion Teodsio de Quadros, amiga fiel, pelo interesse na
minha caminhada nas Cincias Humanas, incentivadora mpar e leitora crtica.
Historiadora e Arquivista, Aneide Maria de Santana, pela franquia do
Documento do Arquivo Ultramarino Brasil/Portugal (Abcedrio das plantas
curativas usadas no Nordeste em 1778) que se constituiu em fonte primria.
Suziene Davi Silva pelo tratamento dado s fotografias, muitas delas
prejudicadas pelo tempo, e por fotografar o assentamento de Ossim, que veste
a capa.
Aos Prof. Jos Amaro Santos Silva, Julia e Adilson Annes, pela
disponibilidade e extremada pacincia em suprimir dvidas e ajustar minhas
interpretaes sobre os dados coletados.
Regina Salles de Souza Leo e Ana Maria Costa, pelo atendimento
administrativo gentil e eficiente.
Ao Prof. Antonio Jos Cavalcante Albuquerque, fiel escudeiro na arena da
computao e de to grande ajuda nos instantes finais da impresso.
Vernica e Letcia, sempre concretamente presentes.
Ao povo-de-santo do Terreiro Yemanj Sb Bassam.
Para Deus e os Orixs.
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RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo estudar as aes curativas praticadas no
Terreiro de Xang, Yemanj Sb Bassam, situado no Brejo de Beberibe,
Recife. O estudo procura identificar os aspectos simblicos e a lgica, usados
pelos fiis para a compreenso do binmio doena/cura, bem como, as dinmicas
que norteiam as representaes construdas em torno dos elementos
estruturantes do Xang, elementos aliados dos processos da cura religiosa. O
trabalho confere relevncia s ervas sagradas usadas como instrumentos
teraputicos. Por outro lado, realiza um resgate da histria e percurso religioso de
Dona Elizabeth de Frana Ferreira (Me Betinha), de grande atuao como
agente de cura, lder religiosa do Terreiro, e de sua importncia para a
religiosidade afro-brasileira do Recife. A metodologia usada foi etnogrfica. As
tcnicas aplicadas foram: observao participante, gravaes de entrevistas semi-
estruturadas e de conversas informais com os membros da comunidade religiosa
e usurios dos processos de cura. Constaram, tambm, da coleta de dados:
filmagens em VHS, fotografias dos espaos e cerimnias presenciadas no
Terreiro. A anlise dos dados permitiu revelar as concepes do conceito de
doena elaborados pelos adeptos do culto e verificar a existncia de
complementaridade entre as terapias religiosa e mdica.
Palavras Chave: Xang Cura Ervas
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ABSTRACT
This dissertation examines healing practices in the specific context of an Afro-
Brazilian Xang shrine: the Terreiro of Xang, Yemanj Sab Bassam,located
in the Brejo de Beberibe, Recife in Northeast Brazil.The aim of the study is to
identify some symbolic aspects of to the logic applied by the followers of this
religion, to the understanding of the couple disease/healing. The dissertation alsoexamines the symbolic representations built around the Xangos structure
studying the meaning of sacred herbs considered as therapeutic tools. It also
contains a biographical outline of Dona Elizabeth de France Ferreira (Mea
Bettina) leader of theshrine stressing the importance of her role within the \afro-
Brazilian religious context of Recife. The methodology was of investigation was
the ethnographic work, based on participant observation, semi-structured andrecorded interviews and informal conversations with members of the religious
community enriched with The collected qualitative data also includes VHS films
and photographic pictures of the setting and religious ceremonies of the Terreiro.
Keywords: XANG - CURE - HERBS
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SUMRIOSUMRIOSUMRIOSUMRIO
INTRODUO..................................................................................14
CAPTULO 1 Consideraes sobre o Xang do Recife............25
1.1. Quatro pilares: aspectos fundamentais do Sistema Religioso..35
1.1.1. Do sacrifcio.............................................................................. ...35
1.1.2. Da Folha........................................................................................44
1.1.3. Do Transe......................................................................................59
1.1.4. Da festa..........................................................................................65
CAPTULO 2 Da Cura....................................................................80
2.1. Cura Mdica.............................................................................. 82
2.2. Consideraes em torno da Doena..................................... ....84
2.3. A Cura religiosa como objeto de estudo da
Antropologia da Sade............................................................. ..90
CAPTULO 3 - O Terreiro Yemanj Sab Bassam ...................... ..99
3.1. Contextualizao................................... ....................................101
3.2. Descrio do Terreiro......................................................... .......104
3.3. Da Aquisio...............................................................................105
3.4. Descrio dos espaos ..............................................................110
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3.4.1 Espao Sagrado............... ....................................................... 111
3.4.1.1. ... Pej dos Exus........................................ ..........................................111
3.4.1.2. ... Salo de Toques...............................................................................112
3.4.1.3. ... O Peji dos Orixs..............................................................................114
3.4.1.4. ... A Cozinha Sagrada......................................................................... .117
3.4.1.5. ... A rvore Sagrada.............................................................................119
3.4.2. Espao Urbano......................................................................................... 121
3.4.3. Espao Mata..............................................................................................128
3.5 Panteo, Calendrio Litrgico, Genealogia Sagrada..................................133
CAPTULO 4 A Comunidade do Terreiro Yemanj Bassame Trs
Retratos.......................................................................140
4.1. Me Betinha, filha de Yemanj: Uma Ialorix Singular...........................143
4.2. Jos Amaro Santos da Silva, filho de Xang Aganju iyr
Oxogum do Terreiro.................................................................................162
4.3. ngelo Frutuoso...................................................................................... 167CAPTULO 5 O Orn enquanto agente de cura no Terreiro Yemanj
Sb Bassam.................................................................................171
5.1. Clientela e formas de Diagnosticar...........................................................172
5.2. Aes Curativas........................................................................................186
5.2.1. Oferendas Sacrificiais usadas para curar.......................................................198
5.2.2. Pratos de Cincia ...........................................................................................203
5.2.3. Limpezas Corporais........................................................................................205
5.2.4. Amassi............................................................................................................209
5.2.5. Obor (Bori).....................................................................................................212
CONSIDERAES FINAIS.............................................................................216
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................... 222
ANEXO A - Planta Baixa do Terreiro Yemanj Sb Bassam....................... 242
ANEXO B Documento do Arquivo Histrico Ultramarino..............................245
ANEXO C Cerimonial deObori.....................................................................288
APNDICE A Relao de Plantas Curativas Usadas no
Terreiro..................................................................................................291
APNDICE B Fotografias do Terreiro Yemanj Sb Bassam.
(arquivos da pesquisadora e da Dra.Mareila Seeber-Tegethof................298
CAPA: Assentamento de Ossim.Fotografia de Suziene Davi.
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INTRODUO
Esta tese persegue um resgate atravs de trabalho etnogrfico do
Terreiro Yemanj Sb Bassam,j extinto, situado na periferia do Recife, Brejo
do Beberibe. Os seus objetivos principais so compreender os elementos que
norteiam as prticas simblicas e a lgica nativa que existe nos processos de cura
usados nessa casa de culto de Xangde Pernambuco.
No texto, saliento os aspectos simblicos envolvidos nos processos
teraputicos observados no Terreiro; as representaes em torno da categoria
doena; as dinmicas balizadoras das representaes construdas em torno dos
elementos estruturantes doXange abordo as aes curativas mais freqentes.Para atingir os objetivos propostos, a pesquisa se deteve nos principais rituais do
Xangdando especial relevncia atuao dos mesmos nos processos de cura.
Destaquei trs atores da comunidade religiosa, fundamentais para a
realizao desses rituais e/ou das prticas curativas: Dona Elizabeth de Frana
Ferreira (Me Betinha), Jos Amaro Santos Silva e ngelo Frutuoso. Me Betinha
fundou e administrou os saberes religiosos praticados no Terreiro Yemanj Sb,
tendo sido a me-de-santo atuante, mais antiga do Recife na poca de sua morte.
O babalorix Jos Amaro, Oxogum (oficiante de sacrifcios) da casa, alm de
pertinente atuao na realizao das cerimnias rituais, inclusive, aquelas com
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fins curativos. ngelo Frutuoso, og do Terreiro, que este cargo foi pessoa
importante no contexto laico da casa. Mdico. Utilizava a profisso, cuidando da
sade dos membros da comunidade religiosa. Sua participao nos contextos
curativos exercidos na casa era um exemplo vivo da convivncia entre dois
campos diferentes - o cientfico e o religioso - relacionados aos processos de cura.
Na minha Dissertao de Mestrado, defendida em 1995, meu interesse
se caracterizou por realizar um consrcio entre aspectos mdicos e
antropolgicos. Naquela ocasio, pesquisei o simbolismo que confere lgica ao
ato da doao de rgos entre pessoas vivas, especificamente o rim.
Em 1993, me movimentei para a religio afro-brasileira com resultante
vinculao e pertencimento. O olhar que deitei ao universo do Terreiro
freqentado, disciplinadamente, carregava um interesse para os fazeres e as
prticas religiosas, conflitos e tenses perceptveis, e outros aspectos
pertencentes ao mundo laico que habitavam o Terreiro. Interessei-me pelos rituais,
principalmente, aqueles relacionados com cura. Os conceitos de doena, a
qualidade da clientela e os instrumentos de cura associados as suas indicaes
fizeram parte dos dados coletados.
A multiplicidade dos interesses me levou a disciplinar minhas
observaes e, da, nasceu um dirio de campo. Somando-se a ele, foram
realizados registros sob a forma de fotografias, filmagens em VHS, e gravaes
em fita cassete (das msicas cantadas durante as cerimnias, de conversas
informais, e de entrevistas semi-estruturadas). Este trabalho etnogrfico
aconteceu no perodo compreendido entre 1993 at 2002.
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Quando o Programa de Ps Graduao em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco, instaurou seu Doutoramento, nele me
engajei. O desejo de aprofundar meu conhecimento antropolgico sobre o
Terreiro, agora, com a sistematizao conferida pelos conhecimentos tericos e
prticos oferecidos pelo curso constru um projeto, onde, imergisse no tema das
religies afro-brasileiras, tendo, como alvo, as questes relacionados com o
binmio doena/sade, que vm me interessando, desde minha formao mdica
e antropolgica. O projeto tinha como objetivo aprofundar aspectos como: verificar
os processos teraputicos exercitados no universo do Terreiro; perseguir as
lgicas nativas sobre as aes curativas; compreender o papel dos rituais
curativos, e, neles, o das plantas, bem como, os simbolismos que revestiam esses
processos. As temticas acima citadas, portanto, se tornaram legitimadas em um
projeto institucional, aps dez anos de observao e registros realizados no
terreno estudado. Gostaria de enfatizar, que as observaes e registros
etnogrficos, iniciadas desde quando passei a freqentar o Terreiro, muito antes
da construo do projeto de tese, eram generalizadas. Isto significa dizer que, at
2000, minhas preocupaes no eram focadas, exclusivamente, no objeto desse
trabalho. Entretanto, os seus temas faziam parte do todo observado, e, mesmo
sem especificidade rigorosa, eles eram pontuados. Isto porque, primeiro, a
inquietao com a cura sempre existiu, e, segundo, as pessoas pertencentes
comunidade religiosa apresentavam um comportamento singular, quando se
tratava do uso de servios teraputicos. Parecia haver uma simbiose, entre as
diferentes prticas curativas (religiosa e mdica), mesmo que as compreenses
das categorias sade/doena aparentassem divergncias. Por outro lado, para
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aumentar esta inquietao, os profissionais da sade, afiliados ao Terreiro
estudado, tambm assumiam um comportamento singular, quanto s questes da
cura. Eles buscavam pari em si, para os familiares e amigos o auxlio da cura
viabilizada pelo Terreiro.
A preocupao com a cura no Terreiro, sempre esteve presente,
mesmo, quando o doutoramento no estava em pauta e, inexistia um projeto de
estudo definido. Foi a partir dessas observaes, que as plantas se revelaram
para mim, revestidas de uma importncia capital dentro das aes curativas, ali
praticadas.
Durante o Doutorado, j com meu interesse especificado, me dei conta
da necessidade de me debruar sobre o campo, agora sabendo o alvo que
deveria perseguir. Quando este entendimento aconteceu, e o carter curricular do
PPGA permitiu, o Terreiro no mais existia. Acontecera o falecimento de sua lder
religiosa com conseqente dissoluo da instituio. Como continuei mantendo
contato com as pessoas da comunidade religiosa do Terreiro (inclusive, para
continuar realizando as minhas obrigaes rituais), passei a ter, com elas,
dilogos gravados e conversas informais que acresceram, ratificaram e filtraram
meus dados sobre o tema deste projeto.
Entrevistei os profissionais da sade, ligados ao Terreiro, a fim de
verificar como entendiam o fenmeno da cura ou alvio ocorridos naquele
universo. Entrevistei, ainda, babalorixs, ialorixs, filhos e filhas-de-santo, com a
finalidade de me aprofundar nas suas interpretaes sobre os ritos, mitos e o
fenmeno da cura. As ervas sagradas, mais usuais nas aes curativas, foram
cotejadas.
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Para enriquecer os dados, sobre Dona Elizabeth de Frana Ferreira,
entrevistei seus familiares biolgicos (filha e genro). Com o intuito de seguir a sua
trajetria religiosa, enquanto adepta da religio afro-brasileira, entrevistei a filha e
o neto biolgico da me-de-santo que a consagrou.
Entrevistas com erveiros do mercado pblico de S. Jos, permitiram
verificar semelhanas e diferenas, entre as formas como eles e o povo-de-santo,
coletavam e se relacionavam com as plantas.
Realizei, na Prefeitura do Recife (Secretarias de Desenvolvimento
Econmico e de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente) e IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica), levantamento de dados scio-demogrficos
do bairro onde se situava o Terreiro com o propsito de sentir o pulso social da
populao circunvizinha.
Necessrio se fez, uma pesquisa bibliogrfica sobre Antropologia das
Religies Afro-brasileiras, Etnobotnica, Antropologia da Sade, e concepes de
sade/doena dogmatizadas pela medicina oficial.
Para aproximao terica sobre religies afro-brasileiras em geral,
enfatizando seus aspectos basilares (sacrifcio, transe, folha, festa, cura) me
detive nas interpretaes dos textos de: Aflavo,1997;Santos, 1993; Alves 1998;
Amaral, 2002; Augras, 1983, 1986; Bastide, 1950, 1974, 1978; Braga, 1992;
Brando,1987; Carneiro, 2005; Caroso & Bacelar,1999; Lima,1937; La Porta,
1979; Loyola, 1996, Motta, 1976, 1985, 1986, 1988, 1991,1995,1999; Montero,
1985; Povas, 1999; Prandi, 1995, 2001, 2005; Ribeiro, 1954,1978,1982; Ortiz,
1988; Ramos, 1940; Riserio,1996; Rodrigues, 1988; Pvoas, 1999; Verger,
1981, 19951997. Dentre estes, foram fundamentais as contribuies de Motta
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para a compreenso dos conceitos bsicos do Xang, da importncia dos rituais
do sacrifcio, do amassi,e do papel do sistema religioso para a sobrevivncia dos
afiliados. Montero, Loyola e Augras foram importantes para as reflexes
relativas cura religiosa e seus elementos estruturais e estruturantes, posto que,
ela trafega na teia de mltiplas relaes entre: ordem e desordem, pureza e
impureza, fora e fraqueza, o eu e o outro, etc., e na busca pelas coerncias e
incongruncias, bem como, pelos sentidos instauradores e reveladores de
estruturas que povoam o humano.
Sobre ervas, enquanto, objeto da fitoterapia, e, suas relaes com as
Religies Afro-brasileiras, seja na enumerao das espcies e dos usos curativos,
seja sobre os modelos classificatrios construdos pelos nativos, que permeiam as
indicaes, foram importantes os textos, aqui citados: Albuquerque, 1997;
Arajo, 2002; Cabrera, 1992; Camargo, 1988, 1989, 1990; Caroso,1999;
Caprara, 1998; Lunhing, 1999; Barros 1993; Barros e Napoleo, 2003;
Bornhausen, 1991; Macioti,1993; Martins eMarinho,2002; Meyer &Ribeiro,
2004; Prandi, 2001; Verger, 1995, 1981; Voeks, 1997. Dentre estes,
Albuquerque, CamargoeVergerpermitiram uma familiarizao com os vegetais
usados ritual e curativamente, e a partir da, compar-las com aquelas mais
usadas no Terreiro. BarroseBarros & Napoleo indicaram os parmetros que
do lgica aos sistemas classificatrios nativos das plantas de utilidade litrgico-
teraputica no mundo das religies Afro-brasileiras.
Como fonte primria, trabalhei o documento do Conselho
Ultramarino: Abcedrio de varias ervas, razes e frutos medicinares produzidas no
Brazil, Cidade da Paraba do Norte e sua Comarca, anexada a uma carta remetida
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para Portugal, pelo ento governador, Thomaz Jos de Mello, para identificar as
ervas usadas na nossa regio em 1788, e , verificar similitudes de indicao
medicamentosa com as utilizadas no Terreiro (ANEXO B).
O simbolismo e a eficcia simblica foram vistos, principalmente, pela
tica de Lvi-Strauss(1975) e, foi um dos fios condutores que usei para percorrer
os significados contidos nos processos rituais curativos.
As interpretaes das escolhas das modalidades de cura tiveram
embasamento em Douglas (1973, 1996, 1998). Para a reviso conceitual e
histrica da cura e da doena, tanto no vis medico, quanto no religioso, utilizei,
Canguilhem, 1978; Hegenberg,1998;Porter, 2002. Autores que pesquisam nos
campos da Antropologia da Sade e da cura religiosa foram de suma importncia,
para balizar conceitos e comparar os dados encontrados, e dentre eles, cito:
Canesqui, 1998; Ferretti, 1988; Hoffnagel, 1986, 2002; Minayo, 1998, 1994a;
Medeiros, 2002.
Organizei, analisei e selecionei dos meus registros, os filmes em VHS
(oito), as fotografias (trinta e oito) e gravaes em cassete (doze). Eles so
referentes ao Terreiro enquanto espao, transes e rituais (quando foi permitido
registr-los), as festas pblicas, e as pessoas. Neles, esto contidos as conversas
informais com Dona Elizabeth de Frana Ferreira, as oferendas e algumas
cerimnias rituais, os cantos executados nos toques etc. Foram produzidos
durante os quase dez anos de vivncia no Terreiro.
Como se sabe, muitas vezes, o antroplogo vai para o campo sem ter
clareza do que seja importante para delimitar seu objeto de estudo, sendo
fundamental a imerso no universo estudado para essas definies. Na trajetria
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do meu campo, esse caminho foi realizado em duas etapas. Numa primeira etapa
(quando os interesses no estavam legitimados por um projeto), as observaes,
anotaes e outros registros foram difusos, e o tema desse trabalho,
possivelmente, no foi especialmente privilegiado naquela ocasio. Ele existe,
igualitariamente, entre os dados globais coletados. Numa segunda etapa, j aluna
do doutorado, sem contar mais, com a existncia do Terreiro para re-visitaes
etnogrficas, procurei entrevistar e/ou conversar informalmente com alguns
membros da comunidade extinta. E, nesses contatos, o tema cura, passou a
ocupar a merecida posio de estaque. Esses encontros permitiram
complementar os dados do meu objeto especfico de estudo, esclarecer dvidas
que a escritura das anotaes de campo suscitavam. Analisei, detidamente, meu
antigo dirio de campo, deitando sobre ele um olhar aguado para a questo da
cura e do simbolismo que a reveste, para as prticas curativas mais usuais no
Terreiro, bem como, para as ervas sagradas que participavam como instrumentos
de cura.
O estudo essencialmente etnogrfico. Justifico minha opo pela
etnografia, por considerar que ela congrega uma srie de caractersticas que, vo
se tornando fundamentais para o conhecimento antropolgico, assumindo um
carter, inclusive, resiliente, nas palavras de Almeida (2004), mais do que as
teorias que, como o funcionalismo, a acompanhou desde o seu nascimento.
Acredito que a Antropologia Interpretativa, de Geertz (1989), tem sido
um marco de referncia, pois questiona as implicaes positivistas do
conhecimento que possibilita dilogo e comparao entre fenmenos culturais.
Assim, a etnografia, como descrio densa preconizada por Geertz, foi a minha
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opo metodolgica de dilogo dentro de um campo especfico da Antropologia, o
das religies afro-brasileiras, e da cura religiosa no meu terreno.
Questes relacionadas a campos e espaos de atuao diferenciados,
agentes e saberes distintos, que encontravam no Terreiro um ambiente para o
exerccio de prticas curativas; a elaborao e vivncia de costumes; ensinamento
de atitudes; estabelecimento de significaes das coisas e das aes, capazes de
gerar mudanas nas vises de mundo e nos comportamento dos sujeitos foram
fundamentais para a anlise etnogrfica aqui empreendida.
A multiplicidade de relaes de complementaridade, hierarquia e poder
estabelecidas entre saberes e prticas relacionados cura no Terreiro, bem como,
o reconhecimento de diferenas entre o transcendente, o sutil, o puro, etc., e o
material, o ordinrio, o impuro foram analisados, relacionando indicadores de
autoridade e liderana que sustentavam a comunidade religiosa estudada.
O trabalho est subdividido em cinco captulos, alm dessa Introduo
e das Consideraes Finais. No Primeiro Captulo, fao uma digresso terica
sobre o Xang do Recife, levando em conta, os elementos estruturais que
embasam as prticas religiosas. O Segundo Captulo trata da conceituao da
categoria doena na medicina oficial, levanta a importncia do estudo dos temas
correlatos pela Antropologia e aponta matrizes tericas para realizao dos
mesmos. Pontua alguns aspectos sobre a cura religiosa. No Terceiro Captulo
contextualizo o Terreiro no bairro onde se localizava e descrevo seus principiais
espaos. Aponto as entidades do panteo cultuado, e pontuo as principais festas
do calendrio litrgico da casa. Trao, ainda, a linha genealgica de sua tradio.
No Quarto Captulo, sumarizo a composio da comunidade religiosa. Achei
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temerrio descrever suas caractersticas, desde o incio, at sua fragmentao
(por s ter conseguido informaes muito fragmentadas). Mas, elaboro uma
galeria de trs retratos, pinados da comunidade. O critrio de escolha de duas
delas, atores das trs cenas, foi perpassado pela importncia das mesmas no
contexto do Terreiro, bem como, e principalmente, pelos seus envolvimentos com
os rituais de cura religiosa. A terceira pessoa foi escolhida por sua atuao na
cura mdica (que tambm era ministrada no Terreiro). No Quinto Captulo
descrevo as representaes feitas pelas lideranas e comunidade sobre a doena
e da cura, aponto a lgica nativa que permitia a realizao dos diagnsticos, e
descrevo os instrumentos mais usados para determin-los. Pontuo, tambm, as
principais aes curativas que constelavam as estratgias de cura existentes,
juntamente com os mais representativos rituais teraputicos. Analiso a
coexistncia de prticas curativas baseadas em lgicas diferentes nos processos
de cura do universo estudado.
Constam dois Apndices: A, uma relao das ervas curativas mais
incidentes no Terreiro, e um quadro comparativo, elaborado a partir da fonte
primria, representada pelo documento do Conselho Ultramarino Brasil/Portugal,
de 1788; O Apndice B um ensaio fotogrfico do Terreiro.
A planta baixa do Terreiro produzida por Adilsom Annes, tem a
importncia de representar a viso da estrutura arquitetnica e a distribuio dos
espaos, pelo olhar de um membro da coletividade e constitui o ANEXO A. Como
ANEXOBincluo a fonte primria, denominada Abecedrio de vrias ervas, razes
e frutos medicinais produzidos no Brazil. Cidade da Paraba do Norte e sua
Comarca, das quaes uzo muitos nascionais nos seos curativos com
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aproveitamento pela sade perdida, datado de 1788, e enviada para o Conselho
Utramarino em 1788, pelo governador Thomz Jos de Mello. O ANEXO C o
roteiro da cerimnia de Obori realizado na lder do Terreiro, elaborado pelo
BabalorixJos Amaro Santos Silvae usado na ocasio.
Os embasamentos tericos que respaldam a interpretao dos
argumentos esto diludos ao longo dos captulos.
Optei, por chamar os informantes pelo primeiro nome, seguido de suas
respectivas filiaes sagradas, exceto aqueles que, assumida e legalmente,
permitiram o uso de sobrenomes.
As palavras iorubanas esto grafadas semelhantemente aos
Dicionrios de Cultos Afro-Brasileiros,Cacciatore, (1977), e Antolgico da Cultura
Afro-Brasileira, Fonseca Junior(1995).
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CAPTULO 1 - Consideraes sobre oXang do Recife
Senti uma vontade louca de penetrar no mistrio do Xang. De v-lo
de perto. De assistir suas danas. De conhecer o que de extraordinrio
e secreto dentro dele se passava.
Valente, (1976. p: 9).
Como estudei a cura em uma casa de culto da religio afro-brasileira,
categorizada como Xang de Pernambuco (Xang do Recife) farei algumas
consideraes conceituais sobre este sistema religioso que serviro de rotas
interpretativas para os dados etnogrficos.
O Xang do Recife a forma de religiosidade, onde, as entidades
cultuadas so os Orixs, deuses de origem africana, que aqui aportaram,
juntamente, com os escravos. O modelo religioso do Xangassemelha-se ao do
candombl da Bahia. Um dos aspectos relevantes do Xang sua razovel
fidelidade essncia cultural africana. Esta fidelidade s razes culturais quilo
que os prprios fiis, quando se trata do nag, chamam de nag puro. E nesse
particular, diferencia-se de outras manifestaes religiosas afro-brasileiras
existentes no Recife, que Roberto Motta, numa feliz e didtica classificao,
diz:
(...) o Xang apenas uma das religies afro-
pernambucanas(...) [e continua], (...)Distinguirei ento
quatro grandes variedades dentro desse domnio
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religioso, que constituem na verdade tipos ideais, pois
o concreto est cheio de gradaes, interpenetraes
e aberraes. So o Catimb, o prprio Xang, a
Umbanda e uma variedade intermdiaria, mas a tal
ponto espalhada que merece reconhecimentoexplcito, o Xang umbandista. Motta (1991: 18)
Assim, Motta destaca quatro modalidades de cultos afro-brasileiros
vivenciados no Recife: a) Xang(que procura preservar o panteo e as tradies
litrgicas africanas); b) Jurema1 ou Catimb (culto dos mestres2 - espritos
curadores brasileiros de origem portuguesa, caboclos espritos curadores, mas
de descendncia indgena, ciganos,exusmasculinos e femininos pombas-giras);
c) Umbanda Branca, que cultua um panteo flexibilizado, no sentido de englobar
entidades do Xang, da Jurema, e espritos acatados pelo kardecistas; d)
Xang Umbandizado, que cultua os orixs, re-elaborando os elementos
mitolgicos, entidades kardecistas, e entidades da Jurema (1999).
Desse modo, as outras manifestaes religiosas afro-recifenses
permitem-se associar, nas suas prticas religiosas, e no seu panteo, elementos
indgenas e cristos (catlicos e kardecistas).
Quanto ao Xangde Pernambuco / Xangdo Recife, ele orgulha-se da
manuteno da tradio africana, mesmo que a permanncia dos traos
1 Tenho observado no Centro de Jurema de Pai Adilson Annes, situado no bairro daMacaxeira (Recife), que, pretos/as velhas so categorizados como mestres.A invocao dasentidades, para que aconteam os transes, feita, atravs, de cantos especficos para cadauma delas (sem acompanhamento instrumental), concentrao, fumaa (cigarros, charutos,cachimbos, defumadores, incensos), e luzes de velas. Osmdiuns(pessoas que atravs dotranse, recebem as entidades), algumas delas, so iniciadas no culto, por um processocomplexo de rituais, que culmina com a ingesto do sumo da raiz, casca ou frutos dovegetal Jurema (Pithocolobium tortum).2Motta (1999) neste trabalho, chama ateno para o sentido semntico da palavra mestreassociado ao de mdico,antigamente usado em Portugal.
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originrios esteja presente, em alguns terreiros, em menor grau. Desvincular o
Terreiro Yemanj Sb Bassam dos fundamentos nag, causava desagradado
e irritao nas lideranas da casa.
No Terreiro estudado, sacerdotes e afiliados, durante os momentos
pontuais de cultuao no aceitavam incorporaes de espritos3, mas sim, de
orixs. Considere-se aqui, espritos, como sendo a parte do ser humano que se
desprende do corpo com a morte, e que o kardecismo, a jurema e a umbanda,
admitem capazes de incorporar as pessoas, possuindo-as transitoriamente.
Estes seres imateriais denominados eguns, no deviam apropriar-se do corpo
de nenhum participante durante a cultuao aos Orixs.
Todos acreditavam que os orixs, representavam as foras da natureza
(mar, rio, pedreira etc.), mas acatavam, ao mesmo tempo, os relatos mticos que
falam terem sido eles: reis, rainhas, caadores ou guerreiros. Estas entidades
eram consideradas, ainda, administradoras dos fazeres da vida social (agricultura,
metalurgia, caa etc.), alm de expressarem as sentimncias e os desejos
essenciais da vida humana (justia, amor, sade). Entretanto, curiosamente,
embora admitissem os relatos mticos como verdadeiros, afirmavam que as
entidades no viveram biologicamente e, por isso, temiam a morte e os mortos.
Afirmavam que Iansera a nica entidade que enfrentava os eguns.
O transe, pouco oralizado no Xang, ao contrrio do que ocorre na
Jurema, Umbanda e espiritismo kardecista a manifestao da incorporao dos
orixs, considerados, como foi citado acima, foras da natureza, vibraes
3 Tenho registros em Dirio de Campo, que muitas vezes, Me Betinha, referia-se a umadada incorporao como tendo sido de um egun e no de orix. Nestas ocasies percebia-se sua insatisfao.
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telricas, energias representativas dos elementos fundamentais do planeta (fogo,
gua, vento, trovo, tempestade etc.).
O Xang uma religio dinmica. Dinmica, no s pela diversidade
dos seus deuses, como tambm, pela riqueza ritualstica vivenciada nas prticas
de culto. Este dinamismo, creio, ocorre pelo fato de que a teologia iorubana
repassada oralmente. No existem livros sagrados. Quando muito, os terreiros
tm documentos rudimentares, escritos caligraficamente, que so os cadernos,
copiados e recopilados e ofertados para aqueles que se consagram.
Quanto oralidade, Vergerescreve:
(...) A transmisso oral do conhecimento considerada
na tradio ioruba como o veculo do ax, o poder, a
fora das palavras que permanece sem efeito em um
texto escrito. As palavras para que possam agir,
precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido
oralmente tem o valor de uma iniciao pelo verbo
atuante, uma iniciao que no est no nvel mental da
compreenso, porm na dinmica docomportamento(...). Verger, (1995:20)
O Xang uma religio que se aprende com o tempo e o exerccio das
prticas rituais. Para tal, so absolutamente necessrias pacincia e humildade.
Pacincia contada pelos anos que o fiel tem de esperar para realizar todos os
passos, que vo desde seu processo inicitico, at a consagrao e a
confirmao. Humildade balizada pelo adobal4. Considero que a prostrao aos
4 Reverncia realizada aos ps dos objetos que representam os orixs, dossacerdotes/sacerdotisas da casa (ou visitantes), das pessoas que ocupam lugar destacadona hierarquia da comunidade do Terreiro. Forma explcita de demonstrar, publicamente,sujeio.
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ps de pessoas e de objetos um instrumento eficaz para administrar a
onipotncia, que Freud (1966) j julgava responsvel por algumas das mais
infelizes manifestaes patolgicas da mente.
Este dinamismo do Xang perceptvel atravs da concepo da
existncia do Ax - fora, circulante que ocupa todos os espaos, todos os
fazeres, todas as possibilidades de mudar o destino humano. Esta fora, ao
mesmo tempo em que funda o terreiro, tambm o mantm vivo, ligando todos os
membros da comunidade entre si, e eles aos orixs. Santos,quando se refere
ao ax, informa:
(...) O ax como toda fora, pode diminuir ou aumentar.
Essas variaes esto determinadas pela atividade e
conduta rituais. A conduta est determinada pela
escrupulosa observao dos deveres e das obrigaes
regidos pela doutrina e prtica litrgica de cada
detentor do ax, para consigo mesmo, para com o grupo
de Olorix a pertence e pra com o terreiro.
Santos, (1993:40)
O ax fora incorporada s pessoas, transferido para elas pelo orix,
ou por elementos que o possui. Mas,o ax doado pela entidade retorna para ela,
atravs de sacrifcios e oferendas. Os veculos concretos desse trfego de energia
e de graas so os elementos considerados possuidores de fora. A comunicao
oral, as relaes inter-pessoais, as trocas entre os humanos e os orixs, so
permeados por este elemento dinamizador.
Segundo Motta (1986), o Xang um modelo religioso de carter
intramundano. Carter este, que se explicita atravs do alvo final dos interesses
que representa a concretude do mundo material (problemas existenciais,
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problemas relacionados com o bem estar social, problemas amorosos/afetivos,
problemas de sade). Para solucionar, ou tentar minimizar as dificuldades
pessoais, aqui relacionadas, os sacerdotes/sacerdotisas do Xang usam de
liturgias especficas. Logo, o imediatismo visvel, e constitui-se, inclusive, em um
motivo de aproximao evidente para novos afiliados.
Motta (1986)respalda-se em Weber, quando este ltimo admite existir
umas religies que, essencialmente, preocupam-se com a ascese espiritual, e
outras, que se mobilizam para a administrao do aqui e do agora. E esta a
alavanca, a fora motriz, o empenho, diria at, a motivao maior para a cultuao
sistemtica e disciplinada dos Orixs. Cultuao que ocorre nas datas
referendadas pelos calendrios litrgicos dos terreiros, ou em outras ocasies,
nas quais, existam emergncias em afiliados e/ou simpatizantes.
Percebe-se nos fiis do Xang, nosbabalorix / Ialorixs, e diria, at
mesmo, nos prprios orixs (perceptvel nas narrativas mitolgicas), uma
despreocupao com a ascese. Nunca assisti no Terreiro, um transe, onde, o
orix realizasse qualquer discurso que extrapolasse os interesses imediatos de
quem com ele falava. Pelo menos, h uma despreocupao em correlacionar o
viver eticamente e uma possvel hierarquizao na vida depois da morte. No
existem, no discurso religioso da comunidade, exigncias preceituais
condicionadas s normas rigidamente ticas. claro, que estimulado o
cumprimento das regras sociais necessrias para uma convivncia salutar. Mas, o
esperado - at mesmo o exigido - que um liame, um compromisso incorruptvel
seja mantido entre o fiel e o orix. Como entre o humano e o orix existe a
obrigatria mediao do sacerdote/sacerdotisa, a estes se dediquem o respeito, o
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acatamento e a obedincia. H um contrato de reciprocidade entre os fiis e os
orixs. E por extenso, entre os fiis e seus pai e me-santo.
A reciprocidade tem visibilidade atravs da obrigatoriedade por parte
dos humanos de ofertar aquilo que os orixs (gostem e/ou o exijam) e por parte
dosorixs,obrigatoriedade de realizar o contra-dom. Entre os fiis e mediadores,
a reciprocidade refletida por demonstrao de respeito, dedicao, obedincia e
inquestionvel crena na validade das prticas litrgicas. Os
sacerdotes/sacerdotisas devem ser responsveis por aqueles que botou a mo
na cabea. O zelo pelo bem estar dos mesmos, e a disponibilidade para atender,
religiosamente, suas necessidades aflitivas um dos aspectos do compromisso
assumido pelos pais e mes-de-santo. Portanto, o comprometimento circula na
trade composta por: Orix, pai e me-de-santo, filhos e filhas-de-santo.
O contrato de reciprocidade entre os fiis e orixs, entre fiis e
sacerdotes/sacerdotisas, entre sacerdotes/sacerdotisas e fiis, reflete uma
preocupao maior com a vida pragmtica. Os aspectos ligados ao mundo
material se sobressaem na religiosidade vivida no Xang. Preocupao
firmemente atrelada ao fazer religioso.
O Orn (espao alm, onde permanecem as divindades, os ancestrais,
os mortos) no espelha os fatos vivenciados no Ai (mundo material, tempo de
vida). Nas falas ouvidas no universo estudado, as pessoas ocupariam uma
posio diferenciada ou privilegiada depois da morte, se viveram corretamente
religio. Viver corretamente a religio seria realizar os rituais corretamente, com
assiduidade apropriada, alimentando os orixsde axs. Este seria o passaporte
de maior validade para adquirir privilgios depois da morte. A manuteno dos
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laos criados com as entidades, o cumprimento dos interditos preceituais5, o
respeito e obedincia aos sacerdotes e sacerdotisas carimbariam o passaporte
etreo.
claro, que pais e mes-de-santo do Terreiro, no acatavam nem
estimulavam, ou eram permissivos, com erros sociais e indignidades cometidas
por seus filhos e filhas-de-santo.Tenho registrado em Dirio de Campo, uma fala
da Ialorix do Terreiro, Me Betinha, de que certa vez foi procurada por um
senhor, para que ela lhe deitasse o jogo6. Na pergunta inicial, quando solicitou
de Yemanj a informao bsica: se falaria ou no, tem como resposta um
inflexvel no. Yemanj no dir nada para o consulente. Ao indagar,
preocupada, o porqu do silncio da entidade, o orix ento, responde: o
consulente um matador. Inquieta, a me-de-santo diz ao consulente que no
teve permisso de sua santa para jogar. Hostil, a pessoa solicita uma explicao.
Ela diz o motivo. O homem cai em prantos, segundo seu relato, e se retira
reafirmando a validade da informao7. Em outra ocasio registrei em minhas
anotaes, que uma filha da Oxum, membro da comunidade, foi flagrada
surrupiando dinheiro e objetos das bolsas das pessoas. Testemunhei Me
Betinhasolicitar seu afastamento da casa, justificando a imposio, pelo fato da
mesma ser ol (ladra).
5 As interdies no Terreiro estudado, frequentemente, estavam relacionadas vivncia
religiosa: tabus dietticos (ingesto de certas comidas e bebidas alcolicas), limpezacorporal (abstinncia sexual, proibio das menstruadas participarem dos rituais). Estasinterdies, freqentemente, eram transitrias, e estavam associadas s cerimnias rituais.6 Rito divinatrio realizado com bzio, dologum, tambm conhecido comodilogun.(Cacciatore, 1977).7Percebo, nessa fala, um julgamento moral que explicita uma sano (no permisso para
realizar o jogo) e esta atitude tem uma franca similitude com o modelo judaico-cristo.
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O que observei que no Terreiro inexistia uma atitude coibitiva, ou
mesmo, um ajuizamento de valores, ao menos, naquilo que concerne vida
ntima das pessoas. Ao contrrio, havia uma quase cumplicidade, ou um
aparente desconhecimento (no noto, no vejo, no julgo), no que se refere,
principalmente, s opes sexuais e as infidelidades conjugais. Essa atitude foi
percebida tanto nos sacerdotes e sacerdotisas (em relao aos seus filhos e
filhas-de-santo), quanto na comunidade (em relao a todos).
Por outro lado, o panteo cultuado no Xang, ele prprio, constitudo
por deuses plenos de humanidade, ricos de traos de carter, no mnimo
questionveis, como soe acontecer com os humanos. Xang reconhecido pela
sua grande sexualidade, pela seduo exacerbada, pelos inmeros
relacionamentos amorosos (Oxum, Ob, Ians); Nan, conta-se, colocou no
charco o prprio filho Omulu,para que morresse,envergonhada do mesmo, por
ser uma criana completamente chagada; Oxum, amante ciumenta,
astuciosamente, engana Ob estimulando-a a extirpar uma das orelhas (para
comprometer a esttica), e com a mesma fazer uma iguaria palatvel para Xang
(alimento que o enojaria). Sem esquecer a considerao demonstrada por todos,
para com a entidadeExu, que representa a ambigidade e a indefinio. Retribui
a quem mais oferecer, mesmo que o agraciamento se contraponha a quem menos
lhe deu. Esta venalidade mpar no diminui seu prestigio junto ao povo-do-santo.
Esses so apenas, uns dos muitos relatos mticos, que ouvi no TerreiroYemanj
Sb Bassam, que mostram a tonalidade humana dos deuses (portadores de
falhas e imperfeies comportamentais). Algumas delas, inaceitveis para as
religies ticas.
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No Xang, o que esperado e exigido dos adeptos a permanncia
do contrato de reciprocidade entre o fiel, oorixe os sacerdotes. imperdovel
quando acontece uma ruptura da manuteno dessas relaes recprocas.
Contrato este, visvel nas oferendas propiciatrias ou expiatrias, bem como, no
contra-dom retribudo pela divindade. Se aceitas, as oferendas propiciatrias, o
orix compromete-se a conceder resposta favorvel s necessidades mais
prementes e atuais do doador (cura de doenas, empregos, ascenso nas
ocupaes dos que trabalham, soluo para relacionamentos amorosos
conturbados, favorecimentos em questes jurdicas, proteo para as
perseguies em qualquer mbito). Do mesmo modo, nas oferendas expiatrias, o
retorno esperado o perdo, a musurao8.
Portanto, pertinente a fala de Motta (1986), quando coloca que o
Xang pretende, em primeira instncia, o dom exterior, em oposio ao dom
interior, pretenso caracterstica das religies ticas. Mas, ressalva que, esta
concepo no deve ser interpretada, como se o Xang, enquanto sistema
religioso, no possusse interiorizao. Ao contrrio, nele, a essencialidade
profunda. Existe de modo intenso, na medida em que, atravs do transe acontece
a mais ntima relao de humanos com deuses.
Esta discusso me parece importante para entender que os rituais do
Xang, tm entre seus propsitos, ingerir (mediata ou imediatamente) no
cotidiano dos adeptos. uma religio alimentada pelos dons, pelas graas, pelos
resultados favorveis que exterioriza. Desse modo, percebia nas minhas
8 Verbalizao muito utilizada no terreiro estudado que significa solicitar clemncia,
piedade ou perdo aoorix.
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observaes, uma aderncia entre os ritos e as aes sobre o cotidiano da vida
dos adeptos. Ora, a doena faz parte do cotidiano. O adoecimento faz parte da
vida das pessoas. E condio aflitiva. Dentre outras condies aflitivas, a
doena um dos motivos que mais aproximam as pessoas do Xang. Realizar a
cura das doenas oportuniza o Xanga exteriorizar seus poderes. O centro de
gravidade do Xangest nos resultados visveis e concretos, viabilizados pelo
ritual. A seguir, discutirei os aspectos fundamentais do Xang, pois eles esto
presentes, em maior ou menor grau, em todos os rituais envolvidos nos processos
de cura observados no Terreiro.
1.1 Quatro pilares: aspectos fundamentais doSistema Religioso.
Quatro aspectos caracterizam o Xang, e dele, so indissolveis: o
sacrifcio, a folha, a festa e o transe. A essncia, a ara simblica dessa religio,est montada nestes quatro pilares.
1.1.1Do sacrifcio
O sacrifcio percorre a histria da humanidade. Por ser sacralizante,
torna-se capaz de estabelecer um movimento biunvoco entre os seres humanos e
os seres do universo divino. Ele se faz atravs do aniquilamento concreto ou
metafrico de animais, plantas, ou objetos. A histria da humanidade est plena
de relatos da imolao sacrificial de animais, inclusive, humanos. Rememoro a
predisposio de Abrao para sacrificar Isaac, seu prprio filho, como devoo
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inconteste ao Deus. H uma correlao entre sacrifcio e religies. As antigas
tradies judaicocrists, os livros de Gnesis 4:4 e o Levtico 1:7 descrevem
ofertas sacrificiais de animais. E o Novo Testamento oferece, claramente, uma
conotao sacrificial para a morte de Jesus.
Considerando a atualidade, Michel Leiris (2001) enxerga as touradas
sendo mais do que um esporte espanhol. Acredita que ela um evento sacrificial.
Defende a idia de que, a mobilidade entre o sacrificador (toureiro), e a vtima
sacrificvel (touro), pode inverter, mudando as posies na arena e esta
possibilidade, carrega a tourada de uma tonalidade de tragicidade gradativa que
tem nuances de sacralidade. Por outro lado, o significado da Eucaristia, no
Catolicismo Apostlico Romano, traduz em sua essncia, a idia de que a carne e
o sangue de Jesus so banqueteados9para selar uma comunho do devoto com
Deus.
O exerccio de oferendas concretas s divindades do panteo do
Xang, tem sua visibilidade maior atravs da regularidade e do nmero dos
animais sacrificados. Ela torna-se mais relevante, quando por ocasio das
grandes obrigaes10, o sangue derramado vem de animais de grande e mdio
porte (quatro ps), ou de outros, com os quais, no mantemos maior intimidade
(cgado, por exemplo).
O Xang categorizado por Motta (1991) como uma religio
sacrificial, diferentemente da Jurema que considera infra-sacrificial, e da
Umbanda Branca que preenche condies para ser tida como supra-sacrificial.
9A palavra hstia, etimologicamente, vem do latim: hostia, hosteacujo significado vtimaofertada aos deuses10Ofertas rituais obrigatrias, que atendem as exigncias das entidades, capazes depropiciar benesses. No fazer as oferendas demanda sofrimentos (Cacciatore, 1977).
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Neste estudo classificatrio, considera que no Xang, o sacrifcio de animais
acompanha todas as etapas vivenciadas pelo fiel, desde sua iniciao, at a
consagrao, na qual, ele prprio se faz o sacrificado.
Por outro lado, seja para propiciar a realizao de graas, seja para
expiar erros, ou seja, simplesmente, para cultuar as entidades, o sacrifcio
transcende estas trs possibilidades, pois permite uma comunho entre o doador,
o orix e o sacerdote. No momento do sacrifcio, esta trade esta interligada.
Na compreenso do devoto, vrios so os motivos que justificam o ato
sacrificial. Destaco um dos mais relatados pelas pessoas do Terreiro estudado.
Entendiam as pessoas, que as divindades carecem do sacrifcio para alimentar a
essncia e o poder prprios. A essncia nutrida atravs da fora simblica,
contida nas vtimas sacrificiais e, o poder aumenta, quando a retribuio ocorre
(quando uma graa recebida) confirmando a autoridade. Os adeptos da casa
referiam que o sangue e outros componentes do corpo da vtima possuam
poderes especiais. Eram portadores de Ax. A vida e o sangue da vtima
sacrificada contm, ax (poder, fora, mana), que alegram e fortalecem a
divindade, e a obriga ao contra-dom. Esta crena confere lgica a oferenda. No
Terreiro estudado, por diversas vezes, ouvi frases de preocupao, proferidas pela
me-de-santo que liderava o Terreiro, referindo-se aos filhos e filhas-de-santo
que no alimentavam seus orixs. Afirmava que eles estavam contribuindo para
tirar-lhes a fora, o ax. Sua fala foi confirmada quando vivi uma fase de
encantamento pelo orix Ob (orix da ventania). Meu fascnio se devia, em
parte pela beleza do seu porte, pela leveza de sua dana, pela riqueza de sua
coreografia, alm, claro, dos seus poderes de levar como um vento os
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o beb, mas tambm, transferisse substncias para a nutriz. Alm do que, no
existe uma equivalncia entre o que dado e o que recebido. As posies
relativas entre o humano, submetido s fragilidades do acaso (pobreza,
desemprego, doenas, ou desamores) de um lado, e o orix, do outro lado,
protetor, dono do seu destino, forte e dativo de graas, passam a permitir a
existncia de canais distributivos entre os dois. Mas convenhamos, uma galinha
menor que um emprego.
Outro aspecto deve ser levado em considerao: parte da comunidade
do Terreiro concretamente beneficiada pela redistribuio dos corpos dos
animais imolados. Esta redistribuio favorece, mesmo que periodicamente, um
aporte razovel de protena para os adeptos economicamente desfavorecidos
Motta (1988).
Sobre a redistribuio de carnes, sistematicamente realizada para os
devotos, nas grandes obrigaes, Motta (1995) analisa e ressalta os aspectos
econmicos do Xang, afirmando:
(...)Entre os afro-brasileiros, como entre os antigos
gregos, o sacrifcio, ao lado de seu papel
propriamente simblico, exerce funes de carter
claramente alimentar e portanto econmico.
Motta, (1995:14)
O autor reafirma este aspecto do Xang (Motta, 1993), quando diz
que, o sacrifcio constitui-se em uma estratgia de sobrevivncia, pelo menos,
para as classes sociais mais desfavorecidas e certas etnias12. O animal
12Os afro-descendentes so bastante representativos no Xang. Em seu grande percentual
pertencem aos patamares da sociedade de menor poder aquisitivo, embora, outras etnias,
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sacrificado raramente ofertado por inteiro (somente quando o orix exige). O
sangue e as vsceras so ax. Eles so obrigatoriamente oferecidas entidade13.
J as pores no sacralizadas do animal, denominadas eran,so os msculos
dos grandes animais, msculos e carcaas das aves. Estes so redistribudos com
a comunidade do terreiro. Freqentemente, esta redistribuio no terreiro
estudado era realizada com as pessoas menos dotadas financeiramente.
Mottaconcebe que o sacrifcio noXangno pode ser divorciado da
utilidade nutricional. Defende o autor, que os aspectos simblicos que recobrem o
ritual estimulam as abstraes, logo, bom para pensar. Entretanto, a
redistribuio das carnes para a comunidade bom para comer14 (1991:7).
Percebo que esta interpretao leva em conta as possibilidades de existncia de
verdadeiras teias estruturais, transparentes quando observadas, onde razes e
motivos se mesclam. O autor afirma que em qualquer evento sociocultural, e no
somente os religiosos, devem ser analisados em toda complexidade de seu
contexto (estrutural, formal e funcional).
Fao esta discusso para apoiar minha inferncia de que no Xang
h uma circularidade entre dar e receber. Os fiis do os axs aos orixs, os
orixs retribuem o recebido com graas. O Terreiro transfere para os fiis mais
faam parte da comunidade religiosa, constituindo um contingente quantitativamenterespeitvel.13
As penas, a cabea, o pescoo e os ps das vitimas vo servir para arrumar e enfeitar demodo plstico e funcional, a comida colocada no recipiente que faz parte do conjunto deobjetos que compem a representao material da entidade (assentamento).14 A alimentao ocupa um lugar especial no Xang. Alm, da distribuio de carnes dasvtimas sacrificiais imoladas nas grandes obrigaes, a prpria festa pblica, no seu recorteprofano, oferece comunidade e visitantes, um farto e a variado cardpio (carnes, bolos,refrigerantes etc.). Percebia no Terreiro, em Me Betinha, e tambm, nos responsveis poruma dada obrigao, a preocupao com as comidas, com um grande bolo, com ossalgadinhos, com os doces etc. que ornamentariam a mesa de refeies.
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necessitados, o que excedente do que foi ofertado por todos. Logo, as trocas
so simblicas e concretas.
Quando as entidades, no momento dos transes, oferecem s
pessoas presentes na festa pblica (afiliados e visitantes), pequenas pores dos
alimentos que lhes foram ofertados (e que permanecem nos seus
assentamentos) ocorre uma espcie de eucaristia, onde todos comungavam da
simblica refeio. Antes o Orixcomeu ou est comendo as comidas que se
encontram aos seus ps. Agora ele esta redistribuindo. Estas pequenas pores
de comida so portadores de ax.Axacrescido pelo Orix quando recebeu a
ddiva. No Terreiro, quando este fato ocorria, todos que comiam estas pequenas
pores doadas pelas prprias mos das entidades, acreditavam estar sendo
alimentados de pores do ax15. Uma translcida redistribuio de axspara o
pblico presente, semelhante redistribuio do eran que fora realizada com
alguns membros da comunidade.
No terreiro estudado, mesmo pertencendo classe mdia ou alta,
algum poderia receber, em uma dada obrigao, partes considerveis do eran.
Esta doao no estava atendendo a necessidade nutricional de quem recebia.
Mas estava atendendo a necessidade de axs. Quando ocorria (e era raro), o
receptor sempre demonstrava grande satisfao, por considerar que estas carnes,
tendo origem a partir de um ato sacrificial, estavam energisadas, logo, portadoras
e transmissoras de energia benfica. De acordo com o que observei no terreno, o
simblico que reveste o sacrifcio remete para a admisso de que mesmo estas
15Freqentemente, a comida era retirada de pratos preparados com peixes, amal, acaraj,abar, frutas, etc.
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pores, as profanas, esto imantadas pela energia que banhou o ato. No
sacrifcio, est contido o contedo simblico, que recobre os outros fazeres e
prticas religiosas do modelo Xang, inclusive os rituais curativos. Os adeptos da
religio acreditavam que as partes da vtima sacrificada eram salutares.
Assim , que quando faz uma reflexo compreensiva sobre o sacrifcio,
Mottadefende que ele o embasamento da religio e, acrescenta, no sentido de
fortalecer seu argumento, que:
(...) o sacrifcio (denominado obrigao e eb pelos
xangozistas), no constitui simplesmente um rito (como
queriam meus predecessores), porm o rito por
excelncia de todo o culto, ponto de partida e/ ou de
chegada de todos os demais ritos. Na realidade, toda a
religio afro-brasileira, pelo menos em suas formas mais
tradicionais ou ortodoxas, poderia ser descrita como um
vasto sistema de prestao de sacrifcios, a que tudo o
mais se subordina. (...) Motta, (1991:7)
Por viabilizar o trnsito de ax, o sacrifcio inaugura todos os outros
rituais.
Por outro lado, o sacrifcio o grande administrador da sentimncia de
culpa, exercendo papel semelhante ao das atitudes ascticas, comuns s religies
consideradas ticas. Ele decorrncia de um carter universalista do
comportamento humano, e que se faz, como um contraponto do modelo tico de
outras religies.
Nas palavras de Motta:
(...) o sacrifcio [pode ser visto] representando tambm
um aspecto virtualmente universal da condio humana:
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o sentimento de dependncia, desvalimento, dvida e
culpa que penetra a vivncia. Motta, (1991:2)
Conceituao, tambm, defendida por Freud (1966)e Money-Kyrle
(1930), pelo menos no que se refere a culpa. Mas, a administrao das aflies
pode ser realizada atravs dele e por este vis que participa como restaurador
de esperanas. (Durand, 1997) concebe que o sacrifcio capaz de administrar o
destino humano. Desse modo, o destino humano pode ser metamorfoseado, at
atingir o nvel suportvel, atravs do ato sacrificial. Esta possibilidade acalanta.
Confere foras para suportar aflies. Viabiliza curas.
Acrescento que para o povo-de-santo o sangue da vtima vida.
muito mais. vida saudvel, livre do sofrimento e da doena16. Quando espargido
sobre o assentamento17 representa, em ltima anlise, a comunho entre o
filho/a-de-santo e seu orix, ou quando derramado sobre o prprio corpo do fiel,
est lhe alimentando de sade. A pureza, a harmonia, e bem-estar so os
ingredientes dessa refeio. E a redeno.
La Portaoferece uma passagem interessante, quando em seu livro Estudo
Psicanaltico dos Cultos Afro-Brasileiros, escreve:
(...) Em certos momentos do rito, observa-se que o
filho-de-santo, ao ter seu corpo coberto de sangue
(que foi vertido sobre sua cabea e escorreu sobre sua
face e corpo), parece a figura de Cristo, habitualmente
ajoelhado ou deitado, algumas vezes com os braos
estendidos para os lados como que crucificado. (...)
queremos frisar o seguinte: como Cristo, o filho que
16Os animais sacrificados e qualquer outro tipo de oferenda (frutas, flores, comidas secas)
so cuidadosamente escolhidos para que no tenham qualquer tipo de falha.17Pedra, rvore, smbolos metlicos, ou outros objetos, que materializam o Orix.A fora eo poder da entidade encontram-se assentada nestes objetos.
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queria ser Deus, o crente tem que ser sacrificado para
ser tambm divindade. Alm de expressar identificao,
ele se redime de estar sacrificando o animal-Deus.La Porta, (1979: 66)
Ao Deus, ao sagrado, ao sacralizado pressupem-se atributos de
pureza e sade.Portanto, o sacrifcio no Xang (uma das suas principais vigas
mestras) , tambm, uma manifestao pragmtica de busca de pureza e sade.
Mottadiz:
(...) A graa dos Orixs supe-se que produza sade,estabilidade financeira, satisfao sexual e afetiva,
etc. (...) Motta (1986a: 78 -79).
No presente estudo que enfatiza a cura no terreiro estudado, o sacrifcio
dentre os diversos papis que exerce, salienta-se como instrumento litrgico, que
busca a cura das doenas fsicas, emocionais e mentais. um dos contra-dom
esperado.
1.1.2 Da Folha
A relao dos humanos com os vegetais tem datao to antiga que
se confunde com seu prprio aparecimento no planeta. Esta relao, para lhe dar
relevncia, precedeu at mesmo o aparecimento do ser humano,na medida em
que os primatas dependeram das rvores como proteo fsica, alimento e
estradas para seus deslocamentos. Os vegetais so as fontes, em grande
percentual dos alimentos que originam a energia responsvel por todos os
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eventos vitais do corpo animal. Desde o nascimento at a morte, o vegetal
mantm com os humanos uma relao protetora em todos os aspectos do viver.
Ele subsidia abrigo, defesa (armas e meios de evaso), arte (instrumentos
musicais, esculturas, etc.), desperta religiosidade, estimula o senso esttico e se
faz remdio. Os saberes religiosos de vrias correntes msticas, inclusive, do
Xang, constroem teorias para conferir poderes, identificar o invisvel e sacralizar
seres e objetos, dentre eles, os vegetais.
Quando a humanidade escolheu a fixao espacial em contraposio
vida nmade deve ter percebido (e esta percepo foi fundamental para a
escolha feita ter dado certo), que das sementes cadas no solo brotavam espcies
semelhantes.
Os vegetais que os gregos denominavam botan,raiz etimolgica da
palavra botnica- cincia que os estuda - esto indissoluvelmente associados aos
processos curativos. Feiticeiros curadores, mdicos eram, entre outras coisas,
conhecedores das vrias propriedades das ervas. No podemos dissociar o
conhecimento sobre plantas, das prticas da medicina primordial. Nem da
medicina moderna. Nem podemos separ-los dos fazeres mgico-religiosos que
permearam e, ainda permeiam os processos de cura.
Fazendo uma rpida viagem atravs dos tempos sobre o tema, verifica-
se que o uso das ervas com finalidade curativa, culinria e cosmtica
encontrado em documentos das mais diversas e antigas culturas. Os chineses,
tm relatos datados de 3700 a. C. nos quais, esto relacionadas cerca de 150
plantas curativas (Le Goff, 1999); os egpcios tem documentos existentes desde
1550 a.C. e neles, existiam dados semelhantes; Os sumrios domentavam
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prescries onde falavam, do uso curativo de erva-doce (Pimpinella vilosa), de
beldroega (Monarda didyma) e de alcauz (Glycyrhiza glabra); o prprio
Nabucodonosor, nos seus jardins suspensos babilnicos, cultivava alecrim
(Rosmarinus officinalis) e aafro (Crocus sativus) (Bornhausen, 1991); 1000
anos a.C. ocorreu um desenvolvimento espetacular, relativo s ervas medicinais e
mgicas na ndia, constituindo-se, um verdadeiro corpus de conhecimento
utilitrio sobre a arte de curar atravs de plantas (Miranda, 2004); Bornhausen
refere que Hipcrates, por volta de 460 a. C., advogava que para tratar o doente
era necessrio o uso de dietas e hbitos higinicos. Nos primeiros, as ervas (sob
forma de alimentos e/ou remdios) e os segundos respaldados em assertivas
filosficas18 que norteassem o modo de viver do enfermo. Ele acreditava haver
uma correlao entre forma e cor da planta com o mal acometidoi19no paciente
(1991).20Mas, na Grcia no podem ser esquecidos os nomes de Aristteles e
Teofrasto que escreveram a Histria das Plantas e A origem das Plantas
(Marques, 1999).
Na Roma antiga, a presena de dois especialistas fundamentais:
Dioscrides (mdico de Nero), autor do livro De Histria Mdica, que um
vademecum da medicina herbria, e Plnio, autor de Histria Natura (Miranda,
2004).No poderia esquecer, tambm, de Galeno, mdico de Marco Aurlio que
prescrevia o uso de plantas (Bornhausen, 1991). Outra figura importante
Avicena, que da sua farmacopia constava indicao, para dirimir males, de
18Hipcrates defendia que o doente quem deveria ser tratado e no a doena que lheacometia.19
Patologias relacionadas com o sangue eram tratadas com plantas que tivessem folhas ou frutosvermelhos.
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ervas como camomila (Matricaria chamomilla), menta (Mentha arvensis) e lavanda
(Lavandula angustifolia) (Marques, 1999). Na Idade Mdia, os mosteiros
passaram a ser depositrios do acervo de toda sabedoria do mundo, inclusive dos
conhecimentos botnicos. sabido que no entorno das igrejas, dos conventos e
dos mosteiros eram cultivados vegetais que serviam como alimentos, fabricao
de vinhos, e medicamentos. Quanto ao Brasil, a vegetao foi seu carto postal.
Caminha, salienta em sua carta para El Rei D. Manuel, que na nova terra h
muita quantidade de ervas compridas; fala tambm sobre a existncia de muitas
palmeiras, e faz referncia a mata escrevendo: esse arvoredo que tanto e
tamanho e to basto e de tanta qualidade de folhagem que no se pode calcular.
Os descobridores se depararam com autctones de corpos pintados com extrato
do urucum (Bixa orellana), que atendia no s necessidade do prazer esttico,
quanto ao repelente aos insetos (Bornhausen, 1991). Os jesutas, ao
chegarem ao Brasil, cuidaram de assimilar os conhecimentos curativos das ervas
que os indgenas detinham. Registraram esses conhecimentos, e deles se
valeram, quando necessrio, o que no era raro, dada dificuldade de suprir os
medicamentos, a partir do Reino.
O livro Viagem pelo Brasil de Martius (1979 [1844]) embora em
nenhum momento, d validade sabedoria fitoterpica indgena, possui grande
importncia porque no deixou de registr-los; Piso (1948), em 1658, na suaHistria Natural do Brasil Ilustrada estuda e descreve plantas brasileiras,
inclusive, pernambucanas, se empenhando em desenh-las. Salienta, no seu
texto, as propriedades medicinais das mesmas. Muitas delas, ainda hoje, so
empregadas como fontes teraputicas, e algumas com as mesmas indicaes
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curativas daquela poca. No Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de
Souza, datado de 1587 existe um repertrio de plantas medicinais nordestinas
(Pereira, 1982).
Atendendo aos aspectos etnobotnicos, existe uma literatura que
remete aos primeiros documentos de viajantes e/ou cientistas que passaram
perodos ou viveram no Brasil, alguns deles em Pernambuco, dos quais, os
principais so: Mello (1788)21, Barleus (1980); Marcgrave (1942); Piso (1948).
Eles escreveram sobre a flora brasileira e citaram seus usos teraputicos e/ou
ritualsticos. Inclusive, em quase todos os textos mencionados, h, no s
descries morfolgicas detalhadas, mas tambm, requintados desenhos das
plantas estudadas.
Ao chegar ao Brasil, o africano, pela maneira de relacionar-se com o
vegetal, sofreu um dos mais traumticos impactos: a confrontao feita entre a
flora africana com a brasileira. Foi necessrio ele identificar as espcies vegetais
conhecidas desde a frica. Necessrio, tambm, para ele foi conhecer espcies
vegetais capazes de substituir as rvores, as plantas as ervas (se aqui, elas no
existissem). Foi fundamental conhecer e dominar esta mata desconhecida,
deslumbrante, e misteriosa como forma de estabelecer a mais urgente maneira de
sobreviver, tanto fsica quanto culturalmente. Portanto, o conhecimento da floresta
brasileira deve ter sido precedido e orientado pela necessidade de preservar a
21MELLO, T. J.A Abcedrio de vrias ervas, razes e frutos medicinais produzidas no Brasil, Cidade
da Paraba do Norte e sua Comarca, das quais fazem uso muitos nacionais nos seus curativos, comaproveitamento pela sade perdida. Arquivo Histrico Ultramarino. Documento manuscrito, nopublicado. Lisboa. 1788.
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viso de mundo e os aspectos culturais identitrios de africanidade, j que em
sua terra de origem, a floresta era referncia bsica. Se para algumas espcies
vegetais, inexistentes no Brasil, era impossvel uma substituio por espcies
assemelhadas, com o passar do tempo, algumas delas foram trazidas
clandestinamente, nos navios negreiros que continuavam, inexoravelmente, suas
viagens sustentadoras do comrcio escravo. Desse modo, entrou no Brasil, a
pimenta-da-costa (Xylopia aethiopica); o obi (Cola acuminata Schott.& Endl.); o
dend (Elaeis guineensis), aqui aclimatando-se (Barros,1993).
Quando substituies foram feitas, os africanos mantiveram os nomes
iorubanos nas plantas substitudas. Como exemplo de substituies de plantas
que so plenamente acatadas no Xang: gameleira branca (Fcus mxima M.)
que foi nomeada de Irko, rvore sagrada, e ela prpria, um Orix; a jaqueira
(Artocarpus integrefolia L.), que recebeu o nome de apaok, e a cajazeira
(Spondias mombim L), que foi chamada de Orik (Barros, 1993:26).
Os critrios balizadores, que serviram para efetivar as substituies das
plantas africanas no encontradas no Brasil, foram, ou parecem ter sido,
principalmente, as semelhanas morfolgicas entre as folhas, as dimenses do
caule e a morfologia das flores e frutos.
O vegetal, ou mato, apresenta, do mesmo modo que o sacrifcio para o
Xang, uma imbricao, na qual, associam-se os aspectos simblicos e osfuncionais. Percebe-se, no primeiro caso, que as rvores so cultuadas e
representam o sagrado, tanto quanto as entidades. Freqentemente, as rvores
que expressam fora simblica so enormes ou, de grande/mdio porte, e quando
ocupam este sitio no imaginrio do fiel, passam a ser consideradas divindades. Os
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elementos botnicos de sua constituio sejam razes, caules, folhas ou flores,
so objetos de uso ritual. Muitos dos materiais simblicos, como alguns
assentamentos e objetos rituais (gamela emblemtica que contm a pedra do
orix Xang, os instrumentos musicais (il) construdos da madeira retirada de
grandes rvores22). As arvores, elas prprias, so seres sagrados, ou
representativos de entidades divinizadas e, como tal, cultuadas. Os vegetais so
matria prima para a preparao de elementos empregados em rituais iniciticos,
o que j suficiente para serem depositrias de respeito e devoo. Eles
exercem um importante papel funcional, como elementos de cura. Na minha
vivncia no Terreiro constatei essa importncia.
Como foi enfatizado no item correspondente ao sacrifcio, vimos que ele
atende, ao apelo simblico e a carncia alimentar (periodicamente) de parte da
comunidade dos terreiros. A folha, segundo minhas observaes do terreno
estudado, tambm, responde s necessidades da economia simblica, e presta
um servio, dirimindo as deficincias do atendimento e ateno bsicas em sade
(oferecidos pelo estado), s camadas populacionais menos favorecidas, que soem
fazer parte dos terreiros de Xang. Exerce este papel, quando instrumento
curativo (banhos, chs, sacudimentos). Mas, mesmo sendo da classe mdia ou
alta, portador de um eficiente seguro-sade, as pessoas no se eximiam de
buscar auxlio, atravs dela, para seus males fsicos, emocionais e mentais.
Assim, a folha desempenhava um papel simblico e outro funcional. Como ocorre
no sacrifcio, estas vertentes se mesclam, se imbricam, formam uma teia cujos fios
22No Centro de Jurema de Adilsom Annes, os cachimbos, os ps da mesa sagrada e outros
objetos so produzidos a partir de madeiras consideradas pertencentes ao reino encantadodas Cidades da Jurema (angico, jurema branca e jurema preta).
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so indissociveis, de tal modo que se algum didatismo pretender realizar este
divrcio, possibilitar uma compreenso reduzida do fenmeno.
Por tudo que acima foi referido, e acrescentando sua importncia nos
ritos, a folha de vital para a o Xang. Tanto que existe a clssica afirmao: K
s ew, K s orix(sem folha no h orix).
Quanto existncia e importncia de um espao nos terreiros, destinado
ao verde vivo, Barros (1993) identifica que para alm do acervo de folhas
coletveis para os fazeres ritualsticos e/ou curativos, que est umas vezes mais,
outras menos, neste ambiente, existe a prpria cultuao s arvores consideradas
sagradas.
Textualmente, ele diz:
(...) Paralelamente s prticas vinculadas ao orix
Ossim dono das folhas percebe-se a manuteno de
um culto especfico a certas rvores que compem a
representao simblica da floresta africana (...)
importante fazer referncia a uma outra diviso quepensamos ser mais abrangente, qual seja: alm do
espao mato e urbano, visualizamos resduos do que
poderia ser denominado de espao cultivado, cujo
protetor Oko orix da agricultura.
Barros, (1993:20)
No Terreiro estudado, no existia uma rea especfica para o cultivo de
ervas rituais/curativas. Mas, fazia parte do calendrio litrgico da casa, acerimnia anual propiciatria s colheitas, a Obrigao do Inhame. Escrevo, nas
minhas anotaes, que embora as verbalizaes proferidas na cerimnia pelos
sacerdotes, fizessem referncias s colheitas agrrias, generalizadamente a
nfase dada era que o inhame imolado para Orixal, propiciasse ganhos
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financeiros aos participantes. Ganhos estes, que permitissem (com seu ax) uma
mesa plena de alimentos, um roupeiro cheio de vestimentas, e um corpo
preenchido por sade. Ento, parece-me que um rito agrrio usado para
atender as necessidades da cidade moderna, de um pas economicamente
fragilizado.
Na cosmoviso dos afiliados e simpatizantes do Xang, as rvores e
tudo que lhe constituem (folhas, caules, razes, flores e frutos) so possuidores de
uma fora, de uma energia, de um poder, enfim de um ax, que pode e deve ser
empregado para diversas finalidades, sejam litrgicas ou curativas. Nesta mesma
cosmoviso, o vegetal tido como zelado, energizado, organizado em seu poder
utilitrio. Esta proteo dada ao vegetal vem do Orix Ossim senhor das
folhas,que tambm, orienta com sabedoria, diria botnica e farmacobotnica,
a realizao de preparados usados magicamente, tanto nos rituais, quanto nos
remdios23. Barros, (1993)coloca que alm de Ossim outras entidades (Aron,
OguneOxossi)participam da proteo das folhas, sem contudo, tirar o poder do
primeiro.Estas entidades habitam na floresta, ou no espao mata do universo do
terreiro. Enfim, locais amplos. Amplitude que espacialmente caracteriza, e qui
propicia, a localizao e o aparecimento de florestas. (Verger,1981) acrescenta a
esta trade de divindades associadas com Ossim, o prprio Exu.
A existncia do orix Ossim - relevante membro do panteo, sem o
qual, nenhuma cerimnia ritual pode acontecer - confirma a importncia das folhas
para o Xang. Esta importncia visvel, quando a sabedoria das plantas dada
23Palavra aqui usada no seu sentido etimolgico remedum,que significa recurso utilizado
para se contrapor ou combater doenas.
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para sacerdotes especiais (babalossim) e preconiza-se a manuteno de
reservas, diria mesmo, de segredo sobre esses conhecimentos, de modo que a
divulgao impea a banalizao.
Vergerdiz que:
(...) O nome das plantas e sua utilizao e as palavras
(of), cuja fora desperta seus poderes, so os elementos
mais secretos do ritual no culto dos deuses iorubas
Verger, (1982:122).
O espao - mato dos terreiros possui rvores sacralizadas e no
candombl, o Irko, que desde a frica considerado um um orix
fitomrfico nag(Cacciatore, 1977),(Chlorophora excelsa)era a arvore sagrada
do terreiro estudado. No Xang do Recife esta rvore gameleira branca, que
pode ser das espcies (Fcus doliaria M e/ou Fcus mxima M.) a planta que
substitui a africana. O Irko por ocasio das grandes obrigaes envolvidos
com uma cinta de fazenda. So freqentes o sacrifcio de animais realizados parao Irko. Muitas vezes, presenciei as mltiplas e superficiais razes do Irko do
Terreiro Yemanj Sb, acomodarem entre suas fendas: quartinhas, comidas e
flores resultantes de obrigaes.
Pelo papel que algumas rvores ocupam no panteo, como o orix
(Irko), pela ingerncia nos rituais e pela relevncia assumida no uso nos
processos de cura, a folha tem um significado simblico e funcional no egb24. A
importncia do uso medicamentoso das plantas no Xang, no significou,
unicamente, uma estratgia de resistncia cultural do negro escravizado (embora,
24So as comunidades que ocupam um espao, nele habitam transitoriamente nos perodos
de obrigao, geralmente, localizados na periferia da cidade onde cultuam as entidades,os orixs e os ancestrais.
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tambm, o tenha sido). Durante o perodo escravista, os donos de escravos
estimulavam o uso dos conhecimentos referentes cura, atravs das plantas.
Permitiam que fossem mantidos e aplicados. Essa concesso se deve em parte,
para eximi-los dos cuidados com a sade do contingente negro e, em parte, pelas
prprias deficincias mdicas que a comunidade, como um todo, vivenciava no
perodo colonial. Eles prprios, os brancos, recorriam aos tratamentos com ervas
preconizados pelos escravos (Santos Filho, 1959)25.
Entretanto, concordo com Braga, quando ele coloca que:
(...) ainda que possa possuir algumas virtudesmdicas j testadas pela farmacologia cientifica,
como o caso para um nmero considervel de
plantas, o seu grau de poder curativo est
diretamente ligado ao contedo mgico-religioso
que se lhe empresta (...) Braga, (1980:71)
Desse modo, liberar prticas curativas significou permitir rituais.
O africano para manter viva sua tradio fundadora, necessitou re-
inscrever no Brasil a compreenso da nova floresta. Aqueles vegetais africanos
inexistentes, aqui, ou foram substitudos (por vegetais brasileiros), ou importados
da frica. Esta ltima estratgia tornou-se possvel por conta da manuteno de
contatos entre as duas regies(Verger, 1987).Quanto primeira atitude, valeu-se
o africano das similitudes morfolgicas entre as plantas nativas brasileiras, quando
25A medicina no Brasil vivia em condies de penria. O nmero de mdicos formados no
Reino, residindo no Brasil no perodo compreendido entre os sculos XVII e XVIII, nuncaultrapassou um quantitativo de dez profissionais (Machado, 1978, p.171). Olinda, a despeitode sua importncia, na poca, era medicada por um nico profissional mdico/cirurgio ecinco barbeiros Montero (1985:15).
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comparadas, atravs da memria, com as africanas. Para avaliar as indicaes
curativas, as tentativas (erros e acertos) nortearam a preciso.
Quanto aos contatos, Luhning (1999) informa que os escravos
africanos no Brasil, ao cabo de algum tempo, depois de estruturarem suas novas
vidas, comearam a se comunicar com a frica, atravs de cartas e libertos que
retornavam ao seu pas, o que tornava possvel um intercmbio (nas duas
direes) de sementes e mudas de plantas brasileiras/africanas reafirma estas
informaes e fala, ainda, que este intercambio, tambm ocorreu, atravs, de ex-
escravos que se tornaram marinheiros. Admite-se que aconteceram muitas trocas
nas duas direes: tanto da frica para o Brasil, quanto do Brasil para frica, o
que abonado por autores como (Verger, 1987; Cunha, 1984).
Mas foi imprescindvel uma reclassificao das plantas, inscrevendo os
novos vegetais, na mesma lgica determinante da lgica africana. O sistema
classificatrio criado por Lineu26 em 1735, cientfico na medida de sua
sistematizao, praticidade, universalismo, e por estas razes, acatado pela
botnica oficial. Este sistema permitiu uma anlise muito interessante de
Foucault,quando afirma que a taxionomia viabilizou o aparecimento de um:
(...) espao aberto na representao por uma anlise
que antecipa possibilidade de nomear, a
possibilidade de ver o que se poder dizer, mas que no
se poderia dizer depois, nem ver, distncia, se ascoisas e as palavras, distintas umas das outras, no se
comunicassem, desde o incio, numa representao.
Foucault(2000:172 225)
26Systema Naturae que categorizou os seres vivos, por reas de complexidade decrescente.
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A funcionalidade da compreenso de conhecimentos, como a fitoterapia
passa pelos sistemas classificatrios micos. Como coloca LviStrauss(1976),
no basta identificar as plantas evocadas nos ritos e/ou prticas, necessrio se faz
reconhecer os papis que lhes foram atribudos em um sistema de significaes,
para ento perceber as relaes significantes que elas estabelecem.
Na classificao de Lineu, para os seres vivos, foram levados em
conta, como indicadores normativos: nome, gnero, espcie, atributos, uso e
literatura (nesta ordem descritiva). Desse modo, todo um patrimnio cultural est
contido na classificao (tradies, crenas, potica, etc.). Ora, o sistema
classificatrio das plantas africano diferente da taxonomia de Lineu, pois,
baseado em caractersticas e qualificaes como: tamanho do vegetal;
caractersticas das folhas (tonalidade, textura spera ou lisa, superfcie pilosa);
existncia de movimentos (se fecham as folhas e em que circunstncias o fazem);
ocorrncia de espinhos; qualidades odorficas; sabores (amargo, doce, azedo,
queimante); li