Energias e Curas - Clara Saraiva

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ENERGIAS E CURAS - Texto Revista Pós Ciências Sociais. v. 8 n. 16 São Luis/MA, 2011. ENERGIAS E CURAS: a umbanda em Portugal1 Clara Saraiva* * Clara Saraiva, Doutora em Antropologia, Professora da Universidade Nova de Lisboa (UNL), pesquisadora do Instituto de Investigação Científica Tropical ( Lisboa) e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-FCSH-UNL). Atualmente realiza pesquisas sobre religiões de origens africanas em Portugal, no Brasil e na África. ________________________________________________________________ ______________________________ RESUMO Portugal tornou-se, nas últimas décadas, um país de imigração, especialmente com Brasileiros e Africanos, vindos das antigas colónias. Com estas populações vieram as suas religiões, práticas terapêuticas, rituais e espíritos. Baseado em trabalho de campo conduzido em Portugal nos templos de Umbanda e Candomblé e com líderes religiosos do Brasil, este texto trata da questão das práticas terapêuticas transnacionais, analisando o modo como os portugueses aderiram a tais terapias, e a forma como conceptualizam essa sua nova pertença religiosa. Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras. Umbanda. Portugal. Transnacionalização. Diáspora. Terapias. ________________________________________________________________ ________________________________ ABSTRACT Portugal became, in the last decades, a country of immigration, especially with Brazilians and Africans, from the former Portuguese colonies. With these populations came their religions, therapeutic practises, rituals and spirits. Based on field work conducted in Portugal in the temples of the Afro- Brazilian cults and with ritual specialists from Brazil, this paper specifically dwells on the issue of transnational therapeutic practises. Furthermore, it will analyse the

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Estudo sobre o candomblé

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ENERGIAS E CURAS - Texto

Revista Pós Ciências Sociais. v. 8 n. 16 São Luis/MA, 2011.

ENERGIAS E CURAS: a umbanda em Portugal1

Clara Saraiva*

* Clara Saraiva, Doutora em Antropologia, Professora da Universidade Nova de Lisboa (UNL), pesquisadora do Instituto de Investigação Científica Tropical ( Lisboa) e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-FCSH-UNL). Atualmente realiza pesquisas sobre religiões de origens africanas em Portugal, no Brasil e na África.

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RESUMO

Portugal tornou-se, nas últimas décadas, um país de imigração, especialmente com Brasileiros e Africanos, vindos das antigas colónias. Com estas populações vieram as suas religiões, práticas terapêuticas, rituais e espíritos. Baseado em trabalho de campo conduzido em Portugal nos templos de Umbanda e Candomblé e com líderes religiosos do Brasil, este texto trata da questão das práticas terapêuticas transnacionais, analisando o modo como os portugueses aderiram a tais terapias, e a forma como conceptualizam essa sua nova pertença religiosa.

Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras. Umbanda. Portugal. Transnacionalização. Diáspora. Terapias.

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ABSTRACT

Portugal became, in the last decades, a country of immigration, especially with Brazilians and Africans, from the former Portuguese colonies. With these populations came their religions, therapeutic practises, rituals and spirits. Based on field work conducted in Portugal in the temples of the Afro-Brazilian cults and with ritual specialists from Brazil, this paper specifically dwells on the issue of transnational therapeutic practises. Furthermore, it will analyse the relationship the Portuguese maintain with such new therapies, and the way they conceptualize their new religious appurtenance.

Keywords: Afro-brazilian religions. Umbanda. Portugal. Transnationalization. Diaspora. Therapies.

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1 INTRODUÇÃO

Quando se fala de religiões afro-brasileiras, mesmo fora dos circuitos de discussão académica, imediatamente vêm à mente os nomes de Roger Bastide e de Pierre Verger. Ambos franceses, ambos atraídos pelo Brasil e suas referências culturais, acabam também por partilhar a paixão

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por essas religiões. Roger Bastide publicou vários livros sobre a temática e sobre a história das relações entre África e o Brasil. Pierre Verger, tendo inicialmente sido conhecido pela sua actividade enquanto fotógrafo, transformou-se num pesquisador com uma visão muito emic, já que se iniciou no candomblé tendo-se tornado numbabalawô especializado no culto de Ifá e na advinhação, e , nas suas várias visitas a África, aí procurou as raízes para os cultos que observava na Bahia.

Em 2011 muitos portugueses não académicos já leram excertos de textos destes dois autores ou, pelo menos, já ouviram falar destes dois nomes. Trata-se de indivíduos que nos últimos vinte anos têm aderido às religiões afro-brasileiras e passaram a ser assíduos frequentadores de terreiros de Umbanda ou de Candomblé. Para além desses escritos, leram provavelmente obras de Jorge Amado e, sobretudo, já viram as telenovelas, importadas do Brasil, produzidas a partir dos livros de Amado. A primeira novela da Globo que chegou a Portugal foi “Gabriela Cravo e Canela”, na segunda metade dos anos setenta, e teve um impacto enorme no país. Muito mais do que a imigração portuguesa para o Brasil desde o século XVIII, e a sua importância na economia ou nos costumes e “aculturação” portuguesa ao Brasil, Gabriela pôs os portugueses a “falar brasileiro”, e as mulheres portuguesas a cortarem o cabelo “à Malvina” 2. Novidade na televisão portuguesa, que só então se tornava um meio comum de informação acessível à grande maioria da população portuguesa, Lisboa parava todos os fins de tarde, “à hora da novela”, em que as pessoas regressavam apressadamente a casa para saber o que teria sucedido entre Gabriela e Nacibe. Após Gabriela, as novelas brasileiras paulatinamente inundaram Portugal e tornaram-se extremamente populares.

“Tenda dos Milagres” e outros seriados brasileiros que retratam o mundo das religiões afro-brasileiras divulgaram as figuras dos orixás, e sobretudo de Iemanjá, deusa das águas dos mares, e considerada a “grande mãe” nesse universo religioso, mostrou esse universo religioso aos portugueses. Hoje em dia, a imagem de Iemanjá apresenta-se nas vitrines de muitas casas funerárias3 ou de lojas esotéricas, lado a lado com a imagem de Nossa Senhora de Fátima, a mais popular e internacional dos santos portugueses.

O presente texto tem como base o trabalho de campo, realizado desde 2005 até ao presente, em terreiros de Umbanda e Candomblé em Portugal, que inclui observação dos rituais e cerimónias, entrevistas com pais e mães de santo, com médiums e seguidores (clientes) destas religiões. Na primeira parte, partindo do trabalho pioneiro de Ismael Pordeus Jr. sobre a temática (PORDEUS JR., 2000; 2009), explicito o contexto geral do início e desenvolvimento dos terreiros de Umbanda e Candomblé em Portugal. Numa segunda parte, desenvolverei aspectos relacionados com a aceitação pelos portugueses destas religiões, focando primordialmente a Umbanda, a partir de um estudo de caso de um terreiro de Umbanda situado no Norte de Portugal, em Braga, mas usando igualmente alguns exemplos retirados do trabalho de pesquisa noutros terreiros em Portugal e de entrevistas com pais e mães de santo e com portugueses seguidores destas religiões. Revisitando a vasta literatura sobre esta temática, discutirei algumas noções acerca do conceito de equilíbrio, doença e cura pertinentes na concepção religiosa afro-brasileira que se aplicam ao caso português. Na última parte, focarei especificamente a questão da relação unívoca entre a Umbanda e o catolicismo e ainda as pontes que esta estabelece, por um lado, com a biomedicina, e, por outro, com práticas mais próximas da Nova Era.

2 UMBANDA EM “PORTUGUÊS DE PORTUGAL”?

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Desde muito cedo o Brasil foi procurado pelos portugueses como alternativa para uma melhoria nas condições de vida (praticamente desde o início da colonização do Brasil, e, com o estatuto de emigrantes, sobretudo a partir do século XVIII). Na segunda metade do século XX esta tendência inverteu-se e, mercê das conturbações sociais, políticas e económicas, os brasileiros viram-se forçados a deixar o seu país, basicamente pelas mesmas razões que tinham levado os europeus até às Américas. Nas várias vagas de imigração brasileira que tiveram como destino a Europa, a partir das décadas de 1980 e 90, Portugal surgiu como um destino preferencial. A preferência baseava-se não só na facilidade da existência de uma língua comum, mas também na retórica do ideal de relações especiais entre “nações irmãs”, alimentada por relações efectivas de consanguinidade e afinidade decorrentes de séculos de colonialismo português e de migração portuguesa para o Brasil, mas também por idealismos políticos que escondem múltiplas ambiguidades decorrentes desse longo processo de relações históricas (PADILLA, 2003; MACHADO, 2002; FELDMAN-BIANCO, 2001)4.

Os brasileiros vieram viver e trabalhar para Portugal, e constituíam nos finais de 2008, segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o maior grupo de imigrantes – num total de cerca de 106. 961 indivíduos, 24% do universo total de emigrantes5. Pensando nesta avalanche de brasileiros em Portugal, quando em 2006 iniciei a pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, esperava encontrar terreiros cheios de brasileiros expatriados, à procura das suas “raízes culturais” nos templos. Esta minha noção revelou-se uma idealização muito freyriana dos brasileiros em solo lusitano a afirmarem uma suposta pertença luso-afro-brasileira. A frequência inicial dos terreiros e as informações dadas por colegas que já trabalhavam esta temática rapidamente me mostraram que era uma concepção errónea. Os brasileiros que se encontram nos terreiros de Umbanda e Candomblé portugueses têm, na grande maioria, cargos específicos e de destaque no seio da estrutura da casa de culto e da religião, como pai ou mãe de santo ou ogã6, e constituem uma extrema minoria, alguns indivíduos no seio de grupos grandes de portugueses na corrente mediúnica e de clientela que acorre aos templos. Os restantes brasileiros residentes em Portugal optam pela opção religiosa oferecidas pelas igrejas evangélicas, pentecostais e neo-pentecostais, de que a Igreja Universal do Reino de Deus é um dos melhores exemplos.

De um ponto de vista histórico e apesar das múltiplas referências à presença dos negros em Portugal a partir do século XV (LAHON, 1999), aos cultos de quimbanda, assim como a outros predecessores dos cultos afro-brasileiros no meio colonial luso-brasileiro, tais como as “bolsa de mandinga”, surgirem em vários textos históricos (HARDING, 2003; SANSI-ROCA, 2007; SWEET ), a expansão dos cultos afro-brasileiros em Portugal é relativamente recente. Os primeiros terreiros7 em Portugal apareceram no país após o 25 de Abril de 1974 e a abertura do país à liberdade cívica e religiosa, trazidos por mulheres portuguesas que, tendo imigrado para o Brasil, aí foram iniciadas nessas religiões e no seu retorno, começaram a atender pessoas e abriram as primeiras casas. O papel de Vírginia de Albuquerque, uma mulher portuguesa imigrada no Rio de Janeiro, onde foi iniciada na Umbanda, bem como de outras mulheres suas contemporâneas, meticulosamente documentados por Pordeus Jr (2000; 2009), mostra esses primeiros tempos de desenvolvimento dessas religiões em território português após a revolução de 1974.

Nos últimos vinte anos a prática destas religiões tem aumentado, rondando as 40 casas abertas em 2011. Os portugueses têm aderido em número elevado (em termos relativos) a estas religiões, influenciados por uma série de factores que identificam como extremamente atraentes. Muitos deles surgem como factores que se opõem à disciplina e regras mais rígidas

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do catolicismo, a religião maioritária no país e tradicionalmente seguida pela grande maioria das pessoas.

Entre eles figura a ideia de que estas religiões dão soluções imediatas às situações de crise na vida, tais como as relacionadas com problemas de saúde, amor ou dinheiro; a isto se junta o facto de serem religiões sedutoras, em que a expressão das emoções individuais é permitida e encorajada, sem um código moral rígido como o do catolicismo. A possibilidade de entrar em transe é também valorizada, e conceptualizada como uma forma de comunicar com o divino sem a mediação dos padres. Os sacerdotes dos cultos (pais ou mães de santo) são líderes carismáticos importantes, que conduzem os seus seguidores nas práticas religiosas, ditam as regras da casa e estabelecem linhas de conduta. A força do líder reflecte-se na fama e prestígio de cada “terreiro” e, por conseguinte, na quantidade de fiéis. Do mesmo modo que acontece no Brasil, a mobilidade entre casas dos seguidores é grande, e muitas pessoas saiem de um terreiro e vão para outra quando entram em conflito com os líderes religiosos ou por qualquer situação menos agradável que possa surgir no seio da comunidade.

Os terreiros que existentes em Portugal, sejam de Umbanda ou de Candomblé, estão sob a direcção de um líder religioso máximo, o pai ou mãe de santo. As diferentes ligações que esses líderes têm com o Brasil permitem classificá-los em três grandes grupos, que simultaneamente definem também relações de migração e trânsito de pessoas (e de espíritos) entre Portugal e o Brasil, bem como as diversas formas de estabelecimento de redes transnacionais (CAPONE, 2004; ARGYADIS, 2004).

No primeiro grande grupo estão os portugueses que têm o Brasil como referência primordial. Temos aqui indivíduos que ilustram casos como o da Mãe Virgínia de Albuquerque: portugueses que emigraram para o Brasil, tomaram contacto com as religiões afro-brasileiras e que, uma vez regressados a Portugal, fundam terreiros ou abrem casas onde fazem atendimento. Por outro lado, há também portugueses que partem para o Brasil já com o objectivo de aí encontrarem ou alargarem as suas capacidades mediúnicas e uma via de desenvolvimento espiritual no quadro das religiões afro-brasileiras.

No segundo grande grupo, encontramos os brasileiros que efectuaram o movimento contrário, e se deslocaram do Brasil para Portugal. Dentro desta faixa há brasileiros que vieram para Portugal como imigrantes, com o objectivo de trabalharem noutras áreas, mas que acabam por retomar as suas funções, já antes exercidas no Brasil, de especialistas religiosos; ou ainda brasileiros que emigram tendo já em vista a sua actuação enquanto líderes religiosos e é esse, logo à partida, o objectivo primordial.

Um terceiro grupo, também importante, ilustra os casos que Pordeus Jr. (2009) denomina, a partir das classificações de Victor Turner, como “anti-communitas”. Trata-se de brasileiros que vêm a Portugal, dão consultas e voltam para o Brasil, sem abrirem templos e sem criarem em torno deles comunidades religiosas duradouras.

Importa ainda referir o caso de pais e mães de santo que reivindicam uma ligação directa com África, que, a seu ver, ultrapassa a relação com o Brasil, já que a origem destas religiões está em África. Trata-se sobretudo de portugueses que nasceram e viveram (eles e também os seus progenitores ou outros familiares) nalguma das antigas colónias portuguesas em África, sobretudo Angola.

Estes vaivéns entre o Brasil e Portugal, aliados à relação estabelecida com África –fruto de desígnios coloniais que não obstante estabeleceram laços entre indivíduos exteriores e

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práticas locais --, criam o que tantos autores, desde os clássicos escritos de Bastide e Verger, referem como o “triângulo atlântico” , em grande parte responsável pela existência de uma ”black atlantic religion”, parafraseando Matory 8.

3 À PROCURA DA CURA

Desde o início da sua expansão no Brasil, o Espiritismo se afastou das vertentes mais racionalistas do Kardecismo e se definiu como uma forma religiosa (Ortiz 1988); o primeiro movimento espírita organizado e datado de 1873 denominou-seSociedade de Estudos Espíritas  do Grupo Confúcio, no Rio de Janeiro, com o motto “os verdadeiros espíritos não existem sem caridade”, defendendo os princípios da prática da homeopatia e da cura pela fé (ORTIZ, 1997). Com o tempo a orientação terapêutica foi assumindo mais importância, passando a ser um dos focos centrais da religião. Esta vertente da caridade e da cura foi integralmente incorporada na Umbanda, afirmando-se como central na filosofia umbandista9, no Brasil como em Portugal.

Se na Umbanda a questão da cura é central, ela é igualmente crucial no Candomblé, e em Portugal muitos adeptos chegam inicialmente a estas religiões à procura da solução para situações de crise directamente ligadas à doença. A afirmação de que “se não se chega pelo amor, chega-se pela dor”, comum na explicação da forma de chegada a práticas religiosas variadas, é amiúde ouvida a respeito da Umbanda e do Candomblé. Mesmo quando o problema não é directamente de doença, a somatização do que aflige os indivíduos faz com que a face visível desses distúrbios seja frequentemente o mal-estar físico e a doença.

Podemos aqui seguir o que Paula Montero (1985) descreve e analisa, ao explicitar, muito no seguimento da linha teórica de Mary Douglas, a ideia de que a desordem é conceptual e cognitivamente equiparada à doença, e que portanto qualquer coisa “fora da ordem”, a nível psíquico ou simbólico, equivale e provoca problemas físicos. Tal como Montero afirma, as fronteiras entre o que é muitas vezes denominado “doença material” e “doença espiritual” são muito fluidas, e nos contornos da conceptualização do que são “doenças materiais” estão já presentes as matrizes que possibilitam uma interpretação mágico-religiosa (MONTERO, 1985, p. 118). Paralelamente, a eficácia da intervenção mágica tem como contraponto o fracasso da terapêutica oficial. Ou a medicina oficial não consegue “ver” a doença, porque o mal é de outra natureza—isto é, espiritual, não passível de diagnóstico pelos métodos físicos da medicina ocidental—ou, apesar de a identificar, não a consegue curar porque a sua origem está num problema, numa “desordem” do foro não material10. Isto está patente no discurso dos indivíduos:

Eu realmente estava muito doente, mas os médicos não conseguiam perceber o que se passava. Foi o preto velho que me disse que era qualquer coisa no meu peito, e que eu tinha de ser tratada. Foi ele primeiro que percebeu o que se passava, antes mesmo dos médicos saberem que eu tinha cancro (Sofia, 32 anos, caixa de supermercado).

A relação estabelecida entre a doença e a noção religiosa de perda de equilíbrio permite não só estabelecer a ponte entre os dois sistemas (o da biomedicina e o da religião), mas abre também espaço para a actuação mágico-religiosa, tal como Paula Montero explicita (MONTERO, 1985, p. 126):

O processo de mutação que transforma a noção médica de “doença” na noção religiosa de “desordem” termina pois numa inversão interessante: por um lado, a noção de “doença espiritual” implica a negação da doença (ou da sua representação) tal como ela é atribuída à esfera da atuação do médico – negação necessária [...] à determinação de um espaço legítimo

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de atuação mágica; por outro, a própria noção de “doença espiritual” reenvia novamente ao âmbito da atuação médica -- já que o corpo sofre as consequências da acção desordenada dos espíritos, ou está irremediavelmente condenado à doença, em virtude das suas faltas anteriores --, mas inverte as posições iniciais de importância e legitimidade.

Neste processo, a medicina transforma-se num apêndice que pode secundar a acção mágica e ajudar a curar, ou servir de suporte aos que já não conseguem escapar ao sofrimento e à morte, e que também por vezes se voltam para a medicina para minorar a dor (MONTERO, 1985).

Na tipologia tripartida que Montero identifica encontram-se três tipos de fenómenos mórbidos: as doenças causadas pelos próprios indivíduos, as provocadas por terceiros, e as kármicas. Apesar das diferenças, todas elas têm por base a concepção, comum em todas as religiões afro-brasileiras, de uma ideia de bem-estar baseada na concepção holística da pessoa, em que o corpo e a mente estão interligados, rejeitando assim dicotomias cartesianas que os separam. Ser saudável significa estar equilibrado11. Assim, as categorias nosológicas das variadas doenças são explicadas através da visão do mundo do Candomblé e da Umbanda. Tanto a doença como o seu diagnóstico não podem ser dissociadas das suas cosmologias e conceptualizações mágicas e religiosas que reflectem as relações sociais e os princípios básicos destes universos (BARROS; TEIXEIRA, 1989). Deste modo, a maioria das performances rituais são estratégias para manter ou restaurar o bem-estar físico, mental e social.

O equilíbrio está identificado com a saúde; se uma pessoa está doente quer dizer que ela está perturbada, o que se pode dever a uma larga variedade de causas. Pode relacionar-se com falhas no cumprimento das obrigações para com os espíritos dos mortos, e nesse caso só pode ser curada quando essas obrigações forem cumpridas, restaurando o equilíbrio entre a pessoa e o seu orixá. A doença tem portanto origem numa falta de equilíbrio entre forças que têm a sua origem no sobrenatural e que actuam sobre o indivíduo. A noção de axê é central, já que axê é definido como uma força, uma energia vital sagrada presente em todos os seres naturais. Esta energia precisa de ser dinamizada; é através dos ritos que este processo é assegurado, iniciando-se com o tocar dos tambores e a entoação dos pontos cantados12 que potenciam a descida dos deuses e entidades.

4 O CORPO COMO LOCUS DE ACÇÃO

No processo de construção do carácter sobrenatural da doença e a cura o corpo humano transforma-se no mais importantelocus de acção, em que a crença e as emoções estão concentradas, e em torno do qual uma série de representações que ultrapassam largamente a caracterização biológica do corpo humano são construídas.

O papel do corpo neste processo prende-se com dois aspectos distintos, mas relacionados entre si. O primeiro tem a ver com a importância da relação constante e permanente que é mantida entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, que em tempos possuíram corpos físicos, mas que são agora seres sem aparência física concreta. O valor desta relação entre os dois mundos é também visível na conceptualização da vida social, que implica não apenas o relacionamento com os parentes vivos, mas também como os defuntos, que se tornaram, entretanto—na Umbanda, por exemplo13-- espíritos e antepassados.

Esta relação leva-nos ao segundo aspecto, o da importância do corpo e do papel central que a incorporação joga nestas religiões.

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A possessão é crucial, a base para se compreender todo o sistema religioso, que opera através de uma sistemática exploração do corpo como locus para a manifestação do sagrado (BRUMANA; MARTINEZ, 1997, p. 11). É o corpo o veículo de comunicação com os deuses e os espíritos, pensados enquanto representações das forças da natureza; é o corpo que se transforma para permitir a manifestação física dos espíritos e a sua comunicação com os vivos. A possessão suprime, temporariamente, a distância entre o mundo dos humanos e o dos deuses, ou entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Como Márcio Goldman refere:

[…] o transe e a possessão […] suspendem todas as distâncias entre o Aiê e o Orum, fazendo com que os orixás encarnem nos homens e transmitam alguma coisa da sua essência divina, ao mesmo tempo que uma certa dose de humanidade lhes é insuflada pelos fiéis que concordam em recebê-los” (GOLDMAN, 1987, p. 111).

Considerando a possessão como uma celebração da vida e da comunicação, ela só é no entanto possível através de um complexo processo de iniciação, no qual o corpo tem um papel essencial.

5 PARA SE SER INICIADO

A possibilidade de uma pessoa ser médium é muitas vezes expressa através de queixas físicas, sinais dados pelos deuses de que essa pessoa deve trilhar o caminho da iniciação e aprender a domesticar as suas capacidades mediúnicas. Subjacente está a ideia de um desequilíbrio que deve ser corrigido, sob pena de a condição se agravar e poder até levar à morte de um indivíduo. A percepção de que os deuses e as entidades são cruéis e rígidos, e não aceitam recusas, discutidas amplamente na literatura antropológica14 aplica-se aqui com toda a segurança: se a pessoa é escolhida, não pode virar costas e não aceitar essa condição.

Cada terreiro é um universo e segue as suas próprias linhas de acção ditadas pelos orixás e entidades que o guiam, assim como pelas directrizes concebidas pelo líder religiosos, o pai ou mãe de santo, e portanto há sempre diferenças e especificidades próprias de cada casa. Isto acontece tanto no Brasil como em Portugal. O que passo a explicitar é, como tal, um modelo ideal, que por vezes sofre alterações; a descrição que forneço resulta do cruzamento entre a literatura antropológica que se debruça sobre estes passos da iniciação (nomeadamente BARROS; TEIXEIRA, 1989; SILVA, 1995), e dos dados recolhidos na pesquisa em Portugal e no Brasil.

Os rituais preliminares na iniciação incluem a “lavagem das contas”, em que a pessoa recebe o colar feito de contas das cores do orixá pessoal; o bori, um rito que reforça a relação da pessoa com os seus orixás e o terreiro, e que requer um período de reclusão e descanso; o “assentamento”, em que a representação material do orixá pessoal é reconhecida ritualmente e esses objectos são sacralizados; e, finalmente, a feitura, em que se conclui a iniciação. Deste modo, o processo de iniciação formaliza o pacto entre o indivíduo e as divindades; esta relação implica uma conexão directa com os deuses, mas também a integração social do indivíduo na sua congregação religiosa. A ligação com os deuses dá-se pela identificação com os elementos naturais (água, fogo, terra e ar) e os fenómenos meteorológicos, as cores, os dias da semana, os animais e as espécies minerais e vegetais. Cada orixá está ainda relacionado com determinadas actividades, padrões de personalidade e comportamento.

O apuramento15 do orixá de cabeça da pessoa (“dono da cabeça”) é geralmente feito anteriormente à realização de qualquer ritual, já que qualquer pai ou mãe de santo experiente consegue perceber, através da cuidadosa observação da personalidade, comportamento,

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reacções16, qual o orixá de cabeça da pessoa. Este processo de apuramento é confirmado no “jogo de búzios”, o processo de adivinhação em que se ratifica essa pertença.

Se a identificação do orixá constitui um mapeamento da personalidade da pessoa, passa-se em seguida ao mapeamento do corpo de acordo com a relação que se estabelece com os deuses que formam o seu panteão pessoal (SILVA, 1995). O líder religioso identifica assim, não só orixá de cabeça, mas também o juntó, o orixá de trás, o que ocupa o peito, etc. O corpo é assim inteiramento concebido e organizado como uma manifestação do sobrenatural17. Desta forma, a cabeça é conceptualizada como o locus da decisão, onde razão e emoção se encontram. A expressão ritual  fazer a cabeça significa a descoberta do self enquanto pessoa e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de um laço social sério e permanente com a comunidade religiosa18.

O corpo transforma-se assim numa espécie de livro que pode ser lido, interpretado e manipulado pelos especialistas religiosos (BARROS; TEIXEIRA 1989), seguindo certas lógicas ideais. Como ideais, importa aqui mais uma vez frisar que muitas vezes elas sofrem desvios, transformações e adaptações, consoante a variante da religião afro-brasileira em presença, e de acordo com a própria capacidade inventiva dos líderes religiosos e dos praticantes.

A parte frontal do corpo está relacionada com o futuro, e as costas com o passado; o lado direito é masculino e o lado esquerdo feminino; os membros inferiores ligam-se aos antepassados. Em todos os rituais deve-se permanecer descalço, para que as solas dos pés estejam em contacto directo com o chão, de modo a estabelecer a conexão com os poderes que imanam da terra. As mãos são o veículo de entrada e saída das forças que vêm dos orixás, incorporados nos seus filhos e filhas. As palmas das mãos abertas, viradas para cima, em frente ao corpo, exprimem a aceitação da submissão à vontade dos orixás, como quando se pede a bênção ao pai/mãe de santo. Dentro da mesma lógica, é com as mãos que os médiums incorporados realizam a purificação ritual, através dos passes que limpam as pessoas dos maus fluidos e energias negativas. Carregadas de energia positiva, as mãos do médium executam determinados movimentos ao longo do corpo da pessoa, do topo da cabeça até aos pés, batendo no final com firmeza no chão, para descarregar19 todas as más vibrações, purificando assim corpo e espírito.

6 EQUILÍBRIOS E DESEQUILÍBRIOS

A importância de manter um equilíbrio para se estar saudável implica a pressuposição da importância de manter uma boa relação entre os dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, ou entre os humanos e o sobrenatural. Só se esta relação se mantiver positiva existirá um equilíbrio; caso contrário, os problemas surgem. Desde o começo do processo de iniciação, o corpo é pensado como o centro das inscrições que os orixás desejarem fazer, e como símbolo do pacto social e religioso que se instala entre o deus e o indivíduo. Diferentes acções negativas têm consequências variadas, e é no corpo que se manifestam e se tornam visíveis os distúrbios decorrentes dessas faltas20.

Uma das possibilidades é a marca ou acção do orixá sobre alguém escolhido para ser iniciado, como vimos. O sinal de que a pessoa foi escolhida pelos deuses para desenvolver a sua mediunidade manifesta-se através de problemas físicos, que desaparecem quando a pessoa aceita a sua condição e começa o processo de iniciação.

Uma segunda possibilidade é a doença ser uma acção ou marca em alguém que negligenciou as suas obrigações e deveres rituais para com os deuses ou antepassados. A violação de regras

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e a transgressão de tabus (sexuais, alimentares) é, como tal, também uma causa para o surgimento de queixas físicas. O que a pessoa faz afecta-a não apenas a ela mas a toda a família de santo, e só pode ser reparado através de um estrito cumprimento dos rituais e acções prescritas. Já que tais violações põem em risco a posição do indivíduo enquanto membro de uma congregação, são vistas como extremamente perigosas e devem ser tratadas pelo pai ou mãe de santo, que define as sanções e as purificações rituais que devem ter lugar a fim de restaurar o equilíbrio individual e social.

Uma terceira causa de distúrbios advém de um contacto excessivo com os espíritos dos mortos, os eguns; tal situação ocorre no caso de uma morte recente na família que não tenha sido tratada adequadamente, isto é, em que não se tenham realizado todos os necessários rituais de purificação. A ocorrência de tal falta ritual leva a que os espíritos dos mortos não sigam o seu caminho para o outro mundo, e façam os vivos sofrer pela sua negligência. A realização de ritos de purificação e a oferta de ebós21 reinstala as fronteiras entre a vida e a morte e restabelece o equilíbrio e o bem-estar.

A contaminação devido a agentes naturais pode também ser uma causa de problemas físicos. Mas, apesar da doença ser provocada por agentes patológicos, há a noção de que estes atacam a pessoa porque ela está frágil, a sua força interior (o seu axê) está fraca, e mais uma vez é necessária a realização de ritos de purificação para restaurar a força vital da pessoa.

7 RESTAURAR O BEM-ESTAR

No seio de uma religião que celebra a vida através do uso do corpo, manter um corpo saudável é uma prioridade máxima. Se considerarmos todas as razões acima expostas, em que se percebe bem a relação entre os estados físicos e as relações entre os humanos e os espíritos, percebe-se que o início de qualquer procedimento terapêutico deve começar por práticas que restauram essas boas relações.

Todos as causas acima mencionadas como responsáveis pelos distúrbios estão directamente ligados à qualidade da pessoa enquanto membro da congregação religiosa. Mas, além desses, em todos os terreiros há um importante grupo de pessoas, que podemos categorizar como “clientes”, que aí chegam à procura de alívio para as situações de crise, em que mais uma vez os problemas de saúde têm uma grande visibilidade. O diagnóstico para os problemas é muitas vezes relacionado com um encosto  (espírito de um morto que não atingiu o seu lugar no além), e a purificação é o primeiro passo para a cura. Muitas vezes, estas pessoas que chegam aos terreiros pela doença, acabam por descobrir a sua mediunidade e começam a percorrer o caminho da iniciação:

Primeiro fui a uma terapeuta brasileira, que usava aromaterapia e gemoterapia22; daí passei para o terreiro, e descobri a importância dos orixás. Comecei o meu caminho de iniciação. Quando me diagnosticaram o câncer no peito, fiz cura por magnetismo, gemoterapia e aromaterapia, mas teria morrido se não fossem os meus orixás (LAURA, mulher, 31 anos, desempregada).

Em qualquer dos casos, após o diagnóstico, realizado pelo especialista religioso usando os métodos divinatórios anteriormente explanados, a cura implica a restauração da unidade fragmentada pela perda do axê. Se bem que as sequências rituais difiram de terreiro para terreiro, basicamente compreendem sempre um período de preparação, em que a pessoa se desliga das suas actividades mundanas, seguida dos primeiros ritos de limpeza e purificação. Estes incluem libações, banhos de ervas, uso de ervas para colocar por cima da parte do corpo

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lesada, defumações, uso de pólvora, epasses. Algumas entidades especializadas na cura, como é o caso dos pretos-velhos, fazem também massagens ou cura através do toque.

As plantas, ervas e raízes usadas nas terapias todas têm um significado específico e uma relação particular com os orixás. Do mesmo modo que cada orixá requer o sacrifício de um determinado animal e a oferenda de uma comida específica, também cada um deles tem uma relação especial com o mundo vegetal. Como tal, as plantas são usadas não apenas nos ritos religiosos, mas também nos ritos terapêuticos. Um dos aforismos recorrentes nos terreiros é “kosi ewe, kosi orisha”: sem folhas, não há orixás”.

A grande maioria dos ritos de purificação requer o uso de plantas, já que as folhas são consideradas uma das fontes primordiais de axé. Os pais e mães de santo muitas vezes afirmam que o uso da folha correcta pode matar ou curar um indivíduo: as folhas “quentes”(associadas com os orixás do fogo e da terra, como Ogum e Exú), agitam as atmosferas, as emoções e os indivíduos, e podem causar mal, enquanto que as folhas “frias” (relacionadas com os orixás da água e do ar, como Oxum e Oxalá) apaziguam e tranquilizam. O conhecimento profundo da adequação das plantas e das folhas a cada ritual ou terapia é portanto uma das mais importantes qualificações de qualquer pai ou mãe de santo respeitado (SILVA, 1985, p. 209). Associadas à proclamação de palavras mágicas que potencializam a sua eficácia, flores, plantas, ervas, raízes, sementes e casacas de árvore são usadas na preparação de medicamentos, bebidas e libações profilácticas 23.

Na diáspora, a importação de ervas e folhas envolve certas dificuldades, e muitos pais de santo que viajam até ao Brasil retornam com malas cheias de plantas. Quando não é possível obter as plantas originais, estas são substituídas por outras, que se encontram em Portugal, o mais parecidas possível (em forma, aroma, características ou efeitos terapêuticos) com as originais.

Os ebós de saúde24 são preparados com determinados ingredientes e seguindo determinadas regras rituais que respeitam a relação directa com o mal que se pretende curar e, sobretudo, o orixá directamente ligado a essa pessoa. Cada orixá tem uma comida própria, confeccionada a partir de ingredientes específicos. Por isso mesmo, o ebó de saúde de uma pessoa cujo orixá de cabeça é Iansã incluirá sempre o acarajé, prato feito com feijão-frade, partido e moído de modo a formar uma massa fina a que se junta cebola e se frita em azeite de dendê; o de alguém filho de Oxum inclui obrigatoriamente uma comida ritual denominada ado, fabricada com milho vermelho torrado e moído e temperado com azeite de dendê e mel.

Nos ebós de sáude figuram obrigatoriamente as pipocas. Sendo que as comidas rituais se ligam directamente à mitologia de cada orixá, as pipocas estão relacionadas com o orixá por excelência da doença, Obaluaiê (também conhecido como Omolu)25. De acordo com o mito, Obaluaiê ficou doente com varíola; as pipocas, também denominadas “flores de Obaluaiê”, representam as marcas deixadas na pele por essa doença. Curado por Iemanjá, Obaluaiê é o orixá que rege a saúde e a doença, e as pipocas são a sua comida primordial.

Cada terapia envolve elementos específicos, que dependem das características dos pacientes e das suas energias, as especificidades dos seus orixás, os traços da própria doença. As práticas terapêuticas envolvem não apenas a cura imediata, o tratamento dos sintomas, mas também um objectivo profiláctico, como a prevenção de subsequentes problemas. Qualquer terapia é supervisionada por um orixá ou pela entidade responsável, e são eles que indicam quais os métodos curativos apropriados, os ingredientes a serem usados, e são eles próprios que, em última análise, procedem à cura, incorporados nos seus cavalos. A este tipo de cura praticado

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nos terreiros, normalmente no decorrer da própria gira26, em que sobretudo pretos velhos e  caboclos actuam, juntam-se as performances em sessões de cura especiais. Estas sessões incluem toda uma série de técnicas que podem ser englobadas na panóplia mais vasta de terapias Nova Era, que nas últimas décadas se tornaram disponíveis em Portugal e que, a avaliar pelo número de sites na internet, a publicidade nos jornais, revistas e rádio, e a difusão de lojas esotéricas, agradam imenso aos portugueses, que se transformaram em seus fiéis consumidores.

8 O TRIÂNGULO DE CURA ATLÂNTICO

Vejamos agora a ligação entre a incorporação de práticas Nova Era nas sessões de cura nos terreiros portugueses, a relação desses procedimentos terapêuticos com a biomedicina, e o modo como as relações com o Brasil lhes servem como pano de fundo que gostaria de concluir. Este aspecto envolve a discussão que se desenvolve em solo luso, sobre a existência ou não de uma variedade portuguesa dos cultos afro-brasileiros27, e do modo como a relação Portugal-Brasil é conceptualizada para efeitos das práticas terapêuticas e do papel da cura nas religiões afro-brasileiras “transnacionalizadas” para o espaço português. Para além das reflexões dos académicos sobre este assunto, interessa-me aqui o modo como os próprios líderes religiosos constroem em Portugal essa identidade, e a forma como a utilizam, sublinhando umas vezes as diferenças, e outras vezes as afinidades entre Portugal e o Brasil. Utilizarei aqui exemplos extraídos do trabalho em dois terreiros de Umbanda, um situado no Norte do país (Minho), e outro nos arredores de Lisboa.

A discussão acerca da “pureza” dos cultos é recorrente no Brasil, e chega também a Portugal; no caso de terreiros assumidamente de Umbanda, a ênfase desloca-se das raízes afro e vai para as várias influências sofridas pela religião, que, na opinião dos seus praticantes, a enriquecem, sobretudo no plano da intervenção pela cura.

As variantes das religiões afro-brasileiras que se encontram em Portugal reproduzem o cenário de tensão entre os dois pólos do “continuum religioso”28 afro-brasileiro, a Umbanda e o Candomblé queto, a primeira pensada como mais próxima da matriz católica tradicional portuguesa29, e a segunda mais relacionada com as práticas e ritos originais africanos, que integram o sacrifício de animais. Apesar das variedades e cruzamentos diversos de Umbanda e de Candomblé que se encontram em Portugal30, em que aspectos mais relacionados com o catolicismo ou com práticas africanas são enfatizados, podemos dizer que, dos cerca de 40 terreiros que recenseei em 2009, a grande maioria segue uma linha Umbandista. Muitos destes optam por uma vertente cruzada, a chamada Umbanda Omolocô, que incorpora ritos de origem Angola, e que Pordeus Jr. considera uma variedade bem adaptada a Portugal, já que permite a permanência de práticas esotéricas portuguesas mais antigas, mas coloca simultaneamente em paralelo o panteão do catolicismo, da Umbanda e do Candomblé31.

Na vertente da cura, podemos afirmar que todos os terreiros (de Umbanda, Umbanda Omolocô, Candomblé etc.) praticam alguma forma de procedimento terapêutico, divergindo em forma entre eles32. De qualquer modo, o que foi acima explanado acerca da concepção do equilíbrio, da saúde e do corpo humano é válido como concepção de fundo do que se faz em todos os terreiros no âmbito da cura.

Na casa do Norte de Portugal que aqui refiro as sessões de cura seguem basicamente as mesmas linhas mestras que noutras do resto do país onde pesquisei. É a partir das consultas nas giras semanais que são identificadas as pessoas que necessitam de um

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acompanhamento terapêutico mais profundo, e essas pessoas são conduzidas para as sessões de cura:

O trabalho no terreiro é complementado com o trabalho de cura. A maior parte das vezes as pessoas aparecem com problemas de quezílias de família ou de amor mas que têm somatização a nível corpóreo. Estas situações são identificadas no trabalho semanal no terreiro e as pessoas são reconduzidas para a sessão de cura. (Mãe de Santo V).

No exemplo do terreiro do Norte do país, nas sessões de cura são utilizadas as técnicas da concentração, o uso de plantas, dos cristais e das pedras. Ao som de uma música muito calma e relaxante, numa sala onde apenas brilham algumas velas, os médiums previamente preparados e treinados para este trabalho, todos vestidos de branco, concentram-se, de modo a conseguirem canalizar energias positivas que ajudem a curar a pessoa. Trata-se pela imposição das mãos e da gemoterapia. As sessões de cura são dirigidas pelos guias da casa33, sobretudo pelo guia principal, que, neste terreiro, é o guia chefe da linha dos baianos, Pé de Vento; foi igualmente ele quem apontou, a partir do largo grupo de médiums da corrente da casa, quem deveria fazer parte do “grupo da cura”.

A relação entre a biomedicina e a cura no terreiro é igualmente enfatizada, como no caso de uma das sessões a que assisti. Na conversa prévia, antes da entrada para a sala de cura, a paciente explicou que sofria de hepatite crónica, que tinha feito uma biopsia há uns anos, e que, por ter tido os valores hepáticos novamente alterados nos exames mais recentes, os médicos lhe queriam fazer uma nova biópsia, que ela recusava. O trabalho de cura foi canalizado para o reequilíbrio dessa pessoa, para que nos próximos exames os valores hepáticos fossem normais, afastando assim a hipótese de biopsia. A responsável pelo grupo de cura explicou expressamente à doente que se ia fazer “um trabalho complementar ao dos médicos”, e “ajudar a equilibrar o corpo”. Na sala onde o trabalho decorreu, à luz das velas e com o fundo musical ambiente, a responsável pelo grupo de cura chamou todos à concentração, de modo que fossem chamadas as energias positivas na ajuda à paciente. A sessão durou cerca de 20 minutos, e nos dez minutos finais ela colocou as suas mãos sobre o corpo da paciente, no local (fígado) afectado pela doença.

Nas sessões de cura “à distância”, sem o paciente presente, o procedimento é basicamente o mesmo, mas são acendidas tantas velas quantos os médiums presentes, e cada médium tem à frente um copo com água; no início a responsável explica qual o problema que afecta a pessoa para quem vão realizar a cura, e proclama em voz alta, três vezes seguidas, o seu nome e a data de nascimento.

Na explicação dada pela responsável pelo grupo de cura e pelo pai de santo da casa, eles (médiums) fazem apenas a concentração, que permite a descida espiritual e a acção benfazeja dos espíritos guias da casa:

A cura funciona seguindo o conceito dos quatro elementos essenciais: terra, água, fogo e ar. O copo de água, além de servir para descarregar os maus fluidos, serve também para abrir um portal de energia (tal como acontece com as velas para o fogo), que atrai energias e as direcciona para o objectivo pretendido, neste caso, a ajuda ao doente (C, pai de santo).

Nas sessões de cura à distância, muitas vezes trata-se de casos complexos, como pessoas com cancros em estado terminal, em que o objectivo da sessão é minorar o sofrimento da pessoa. No trabalho, a concentração requer que haja à priori uma intensa vocação para ajudar os outros. A transferência emocional é também importante: “Temos de pensar que

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essa pessoa poderia ser alguém do nosso círculo pessoal, um filho, um pai…temos de sentir como se essa pessoa fosse um nosso, esta é uma das chaves do sucesso” (C, mulher, 41 anos, grupo de cura).

Nestes trabalhos de cura utilizam-se muitos pressupostos da Nova Era, e muitas das pessoas que vêm pedir ajuda passaram já por outras tentativas de cura, nomeadamente através do reiki, ou da prática do feng-shui34.

O mesmo acontece com os próprios médiums e elementos da corrente. No grupo de cura do terreiro de Umbanda de Braga, composto por nove elementos, seis deles têm profissões relacionadas com a saúde, sendo enfermeiros (no activo ou aposentados), terapeutas, ou fisioterapeutas. Muitos deles já praticaram reiki e outras formas de intervenção holística sobre o corpo, e sentem que o que realizam na Umbanda não é muito diferente do que faziam anteriormente: “Fiz o terceiro nível de reiki. No grupo de cura o que fazemos é muito semelhante ao reiki; por exemplo, a captação de energias, a imposição das mãos…e a atmosfera de concentração é muito parecida…” (M, mulher, 28 anos, grupo de cura).

Os pacientes relatam a forma como se sentem durante as sessões e os estados de espírito quando saiem delas, “como uma grande calma e paz”. Sentem que a cura na Umbanda consegue fazer por elas o que a biomedicina não faz, ao mesmo tempo que a englobam numa espécie de conjunto conceptual, em que uma série de novas opções terapêuticas se inserem: “O meia noite mandou-me ir ao bata branca35, que me disse que não se podia fazer nada; mas com a ajuda dos guias eu vou conseguindo fazer a minha vida, apesar das muletas” (A, mulher, 49 anos, auxiliar de pedagogia)

Fui operada às hérnias discais, duas vezes seguidas. O médico disse-me que nunca poderia estar mais de vinte minutos seguidos sentada, e que teria sempre de fazer natação, para desenvolver os músculos entre os discos. Mas não tenho feito exercício físico nenhum. Agora sou relações públicas de uma empresa e guio cerca de 200km por dia. Quando saio das giras de sábado saio bem, e aguento a semana. São as entidades da Umbanda que me ajudam, senão nunca conseguiria aguentar, teria muitas dores de costas. Com a vida que levo, os quilómetros que faço e o stress, só por causa da ajuda dos guias é que eu consigo (T, mulher, 39 anos, relações públicas).

E ainda: “Quando começamos os tratamentos percebemos que ficamos presos… que eles (os guias) chamam por nós à distância. Quando estou aflito bato três vezes com o pé no chão e chamo o meu guia para me aliviar” (A, mulher, 49 anos, auxiliar de pedagogia).

A conjugação de esforços entre a cura no terreiro, utilizando a acção dos guias, as técnicas das terapias alternativas Nova Era e a biomedicina é também referida pelos próprios ritualistas religiosos:

Quando se está concentrado sente-se uma separação, o chamado desdobramento astral, o espiritual vai onde nós não chegamos…quando nos afastamos a pedir auxílio para uma pessoa, do astral vêm energias que não se imaginam… (A, homem, 65anos, grupo de cura, enfermeiro reformado).

9 ENTRE UMA ESPIRITUALIDADE NOVA E UMA “JOVIALIDADE EMOCIONAL”

Podemos finalizar com uma síntese de propostas analíticas relativas ao êxito que as religiões afro-brasileiras estão a ter em Portugal, sobretudo no que diz respeito à cura.

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A primeira constatação prende-se com a forma como essas opções religiosas chegaram aos portugueses. Se muitas vezes a aproximação se deu através de uma panóplia de novas alternativas terapêuticas como as mencionadas nas entrevistas—aromaterapia, gemoterapia, reiki, feng-shui, etc.— percebe-se que há sobretudo a atracção por novas formas de percepcionar o corpo que englobam não só a necessidade de o pensar de uma forma holística, mas também de incorporar uma esfera de ligação com o sobrenatural. Neste sentido, a Umbanda permite a incorporação de vertentes muito diversas36, fornecendo a teoria e o modus operandi:

"O Povo do Oriente" é composto de espíritos que actuam de modo efectivo nos processos de curas físicas, emocionais e espirituais. È formado por espíritos chamados de “médicos do astral”. Esses médicos do astral, não são necessariamente espíritos de médicos convencionais, como podemos pensar. Mas espíritos muito, muito evoluídos de grandes sábios, profundos conhecedores de química, biologia, psicologia, física, medicina oriental, técnicas de curas milenares com uso e domínio da energia mental e espiritual sobre energia condensada da matéria… (Mãe de santo V).

Procurando ajuda para os vários estados de aflição, os indivíduos elegem a Umbanda como uma opção entre várias, mas que eles sentem que actua e que percepcionam como qualitativamente superior a outras opções:

Os médicos disseram-me que eu não tinha cura e mandaram-me ir às bruxas… pouca gente conhece a Umbanda. Também já me aconselharam outras terapias alternativas. Já fui a um japonês que me disse que ele não podia fazer nada, porque eu estava a ser tratada num templo sagrado, e que estava a ser bem tratada, porque esse templo tem uma luz muito boa. Claro que ele se referia aqui à Umbanda…nas outras terapias alternativas eles sentem as energias da Umbanda, há uma comunicação espiritual, acho eu… (A. 49 anos, auxiliar de pedagogia).

Em segundo lugar, estas novas formas de pensar o self e a relação do self com o sobrenatural permitem um salto qualitativo que a biomedicina e a igreja católica, ambas hegemónicas à sua maneira, não proporcionavam. As pessoas sentem-se maravilhadas com as novas formas que lhes permitem aceder ao contacto com o sobrenatural directamente, sem intermediários: “A Umbanda ajuda-me a ajudar o próximo, com a ajuda das entidades…quando não posso cá vir ao sábado não me sinto bem” (V, homem, 57, técnico industrial reformado).

Ao mesmo tempo, tanto clientes como ritualistas religiosos têm consciência da necessidade e da dificuldade em ultrapassar essas hegemonias:

Mas não há dúvida que tem de haver uma relação entre a medicina ocidental e as energias…há países em que isso já é feito; há os hospitais espíritas no Brasil e também hospitais nos Estados Unidos que fazem isso…Se outros fazem, porque é que nós cá não havemos de fazer? (A, homem, 65anos, grupo de cura, enfermeiro reformado).

É preciso muita relação entre nós e a medicina ocidental. Há por exemplo casos de pedra no rim em que é preciso usar o laser, mas a irradiação que aqui fazemos também pode ajudar. O próprio protector vai dizer que é preciso ir à medicina ocidental. Mas no terreiro, a energia circula, e mesmo sem a pessoa pedir, fica melhor”. (mãe de santo V).

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Em terceiro lugar, temos o facto de que essa relação directa e especial é também enfatizada pelos próprios ritualistas religiosos, que valorizam a forma como a Umbanda pode beneficiar as pessoas:

Mesmo quando não há saída a nossa missão é aliviar a dor, pedir ás forças da luz que dêem ao paciente o melhor, que o karma dele tolere o sofrimento e lhe dê forças; os guias ensinam-nos a dar o nosso melhor, mesmo sabendo que a pessoa vai morrer… (A, homem, 65anos, grupo de cura, enfermeiro reformado).

Por último, importa referir o modo como a construção da relação identitária com o Brasil é sublinhada37, sobretudo pelos ritualistas religiosos. De certo modo, é como se estas relações proporcionassem, à priori, uma capacidade para fundamentar a nova conceptualização do corpo e do bem estar, valorizada como qualitativamente superior. O discurso de uma mãe de santo, oriunda do Rio de Janeiro, sobre o trabalho de cura em Portugal, mostra o quanto ela percepciona a importância de ser brasileiro para conseguir bons resultados, focando aspectos que vão, como de Gilberto Freyre a José Gil (2004), da miscigenação ao ethospesado do pessimismo português:

Os brasileiros transmitem mais uma energia que levanta o seu astral… por serem brasileiros e terem uma visão da vida diferente da vossa. O próprio país (Brasil) tem uma energia que transmite isso, é muito rápido, o país é miscigenado, o racismo é combatido…aqui, em Portugal há muito a tradição de falar das mazelas. Encontra-se alguém, pergunta-se se está tudo bem e as pessoas contam coisas más, falam sobre as doenças. Tudo isto cria uma atmosfera pesada.

No discurso desta ritualista, observa-se como os brasileiros estão mais aptos a curar, pela leveza da sua postura de vida, e toda a ideia de cura através da reposição do equilíbrio é vista como uma tarefa mais fácil para um brasileiro. A razão para tal prende-se com a própria concepção de axê, que existe de um lado do Atlântico e não do outro, sendo trazido para Portugal pelos brasileiros:

A alegria, a jovialidade emocional que o Brasil tem, e a fé que o povo brasileiro tem “funciona”, e você consegue sensibilizar alguém para fazer coisas. Os brasileiros não vêm cá buscar axê, o axê deles está do lado de lá do mar…eles vêm para trabalhar.

Aqui, tenho mais acesso às mazelas pesadas do que no Brasil, e isto passa pelo facto de Portugal ter uma história mais pesada, enquanto que no Brasil é menos denso… e tem ligação com os karmas.

À medida que o número de terreiros aumenta em Portugal, e que o número de pais de santo portugueses cresce, resta ver como essa construção da relação identitária e privilegiada com o Brasil se mantém, se desenvolve ou é alterada.

10 RITUAL E TRANSE: cultural e biológico lusitanos

A ideia de que a noção de ritual é frequentemente analisado como representação da ordem social e cultural tem as suas raízes na própria história da disciplina antropológica. Tal como Greenfield sugere num texto de 2005, publicado num volume colectivo sobre ritual, estas noções estavam presentes nas teses dos evolucionistas do século XIX, Tylor, Frazer e no estudo de Durkheim sobre os aborígenes australianos e na concepção deste último sobre os “ritos e rituais como regras de conduta que prescrevem como uma pessoa se deve comportar na presença de objectos sagrados” (GREENFIELD, 2005, p. 175). Após a discussão dos paradigmas

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Durkheimianos, e a crítica dirigida à forma como os pressupostos evolucionistas de que a religião iria eventualmente desaparecer para dar lugar à modernidade, Greenfield refere outros grandes nomes do estudo do ritual na disciplina antropológica que não partilharam essas visões, sobretudo oriundos da tradição académica norte-americana, tal como Franz Boas e Herkovits, e como muitos antropólogos posteriormente os seguiram na análise das influências africanas no Novo Mundo.

Partindo destas discussões, Greenfield refere a importância da história na construção dos fenómenos culturais, mas também sublinha que os aspectos culturais não podem nunca ser separados dos “organismos biológicos” que os fazem existir (GREENFIELD, 2005, p. 176).

O trabalho de pesquisa etnográfico relativo à expansão das religiões afro-brasileiras realizado até à data em Portugal retoma o que muitos autores têm discutido sobre a importância da religião no mundo moderno (ou pós-moderno…). A busca do bem estar e da cura é uma da vertentes em que o cruzamento entre o biológico e o cultural, a biomedicina e o religioso, as práticas médicas e as rituais está permanentemente presente, como já havia sido sugerido mesmo em escritos de antropólogos nos finais do século XX38. Num mundo tecnologicamente avançado, procura-se voltar “às raízes” e a uma visão holística do corpo e da saúde.

As premissas que Laplantine (2001) colocou acerca da incapacidade da ciência médica ser incapaz de enquadrar socialmente o infortúnio e a questão do “porquê eu?” continuam de pé. As religiões afro-brasileiras estão, em Portugal, e o lado de outras alternativas com as quais estabelecem pontes múltiplas (como as acima mencionadas, relacionadas com a Nova Era ou com orientações filosóficas e terapêuticas oriundas do Oriente e de outros cantos do mundo), a cumprir esse papel. Facilitadas por um mundo em que as movimentações de pessoas e saberes é acelerado, e em que os mecanismos audio-visuais e a internet funcionam cada vez mais como veículos de transmissão de conhecimentos, elas são um exemplo da interpenetração do religioso com o terapêutico, e fornecem uma resposta integral a uma série de problemas e insatisfações—ao nível somático, social, psicológico, espiritual:

[…] a religião, ou os seus substitutos laicos, é a única interpretação totalizante do social, do individual e do universo […], os rituais […] são a própria expressão de uma dimensão constitutiva da doença e da própria prática médica: a relação com o social” (LAPLANTINE, 2001, p. 225).

Se este autor pensa que, no final do século XX, “a fé médica preenche em grande parte o vazio deixado pelo desencanto com as grandes religiões em que não mais cremos” (LAPLANTINE, 2001, p. 238), no século XXI, as hipóteses e alternativas são múltiplas e relacionadas, originando cenários em que saberes africanos se entrecruzam com filosofias e práticas orientais (como na Umbanda), e em que cada vez mais se procura repostas que integrem de novo as várias facetas da vida individual e social. Seguindo também uma das orientações fundamentais do texto de Hinnels e Porter (1999), qualquer perspectiva holística não pode ignorar a bagagem cultural e emocional do paciente. E é nessas abordagens holísticas que a ligação incontornável entre a religião e a medicina surgem com mais evidência, se adoptarmos a concepção deste autores, que olham para a religião como mais que um conjunto de crenças ou uma opção de vida, para a postularem como “uma expressão poderosa e condicionante da identidade, a incorporação de uma tradição de concepções de vida ou uma compreensão de valores, prioridades, esperanças e medos” (HINNELS; PORTER, 1999, p. 14)39.

Este texto procurou mostrar algumas facetas e contextualizações do modo como as religiões afro-brasileiras estão a cumprir essas funções do lado de cá do Atlântico.

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NOTAS

1 Uma versão anterior deste texto foi publicado na obra de homenagem a Jill Rosemary Dias, com o título Caminhos “Filhas de santo: rituais, terapias e diálogos afro-brasileiros em Portugal”, in Philip Havik, Clara Saraiva, C. e José A. Tavim, (Orgs) 2010Caminhos Cruzados em História e Antropologia. Estudos de Homenagem a Jill Dias, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais. Agradeço ao Professor Sérgio Ferretti a leitura e comentários ao texto.

2 Personagem feminina da referida novela.

3 Eram as casas funerárias que vendiam imagens de santos até à recente expansão das lojas esotéricas.

4 Beatriz Padilla “Os novos fluxos migratórios: tipos e respostas no velho e no novo mundo”. Paper apresentado na 8ª Conferência Metropolis , Viena 2003; Igor Machado 2002; Bela Fedman-Bianco 2001.

5 Dados do SEF -Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de 2008 (SEF, 2009, p. 28 apud SARAIVA, 2010, p. 176).

6 Tocador dos tambores sagrados usados nos rituais.

7 A palavra “terreiro” refere-se ao espaço físico do templo mas também à comunidade de adeptos destas religiões.

8 A expressão é o próprio título do referido livro de Matory “Black Atlantic Religion…”.

9 Ver, a este respeito, a tese de Mestrado de Ariana Sabrosa “Da aflição à comunhão. Um estudo etnográfico no Templo de Umbanda Pai Oxalá e Mamãe Iansã”, Departamento de Antropologia, Universidade de Coimbra, 2009.

10 Estes processos são análogos aos descritos por Jeanne Favret-Saada a propósito da lógica e dos mecanismos de actuação da feitiçaria no Bocage francês, tal como ela explicita em Les mots, la mort, les sorts, (1977).

11 Ver, a este respeito em Silva (1995) e Pordeus Jr. (2000).

12 Orações em forma de canção dirigidas aos orixás e outras entidades.

13 O processo é diverso consoante as variantes das religiões afro-brasileiras; no candomblé e no tambor de mina, por exemplo, os orixás, voduns e encantados não são mortos, mas seres que se encantaram e passaram a uma outra dimensão. Eles não estão no mundo dos mortos, mas no mundo dos deuses, que estão sempre vivos.

14 Ver, por exemplo, Paulo Granjo (2007).

15 Processo de definição do orixá dono de cabeça da pessoa.

16 Tudo é susceptível de fornecer essas indicações: as características físicas, o modo como a pessoa se move, como fala, como ri, etc.

17 Mais uma vez, o processo não é igual nem está presente em todas as variantes das religiões afro-brasileiras. Convém também notar que, tal como as diferentes partes do ser humano estão relacionadas com os diferentes orixás, também os vários deuses residem nas diversas

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partes do corpo. Por exemplo, no panteão Fon (Bénim) o correspondente do Exu dos Yoruba é Legba, que reside no umbigo, de onde insufla a sua raiva; ver Stefania Capone (2004a).

18 Durante o ritual de iniciação é também na cabeça que são feitos os cortes onde se colocam os oxu, uma mistura de elementos vegetais e sangue sacrificial que instala o espírito dos orixás no corpo da pessoa; Silva (1995, p. 133).

19 Daí vem também a denominação de descarrego, para esta acção.

20 A enumeração destas possibilidades é adaptada da lista de Barros e Teixeira (1989).

21 Os ebós são oferendas feitas para os orixás, seja para apaziguar um problema, alcançar um objectivo, agradecer uma graça alcançada ou simplesmente para presentear e agradar às divindades que se cultuam.

22 A gemoterapia é uma forma de fitoterapia que utiliza remédios fabricados à base de tecidos embrionários de árvores e arbustos, assim como das partes reprodutoras e tecidos jovens das plantas e da seiva, já que se acredita que a energia se concentra nestes elementos das plantas.

23 Cândido Procópio Ferreira de Camargo.

24 Como o nome indica, são oferendas para os orixás directamente ligadas a pedidos para melhoria do estado de saúde da pessoa, para apaziguar maleitas e distúrbios do foro da saúde física ou mental.

25 Apesar desse papel primeiro de Obaluaiê como orixá da doença, cada orixá está directamente relacionado com uma doença específica. Assim, a especificidade de Obaluaiê são as doenças de pele, e as de Oxum e Iemanjá, deusas femininas, os problemas ligados à infertlidade e ao nascimento.

26 Sessão ritual na Umbanda, em que as entidades incorporam os médiums e “praticam a caridade”, dando consultas individuais. É aqui que cada um pode explicar todos os seus problemas e falar livremente com as entidades.

27 Esta ideia, desenvolvida inicialmente por Ismael Pordeus Jr (2000; 2009); é referida igualmente por Guillot (2007) e por Saraiva (2009; 2010a; 2010b).

28 Utilizando aqui a expressão que Cândido Procópio Camargo utilizou para se referir ao continuum entre catolicismo e Umbanda.

29 Salienta-se que a Umbanda em Portugal faz mais apelo e se relaciona preferencialmente com o catolicismo, e não com o Espiritismo em geral ou com o Espiritismo Kardecista.

30 Para uma listagem e análise de alguns dos terreiros e casas mais importantes em Portugal, ver Pordeus Jr. (2009).

31 Pordeus Jr. (2000; 2009); Ver também discussões acerca desta posição de Pordeus Jr. em Saraiva (2009; 2010a; 2010b).

32 Existem, em várias zonas do país, casas especializadas na cura, sendo que nalgumas delas se realizam mesmo cirurgias espirituais, mas neste texto não me vou alongar sobre este aspecto.

33 Entidades espirituais que dirigem a casa.

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34 O Reiki é uma terapia baseada na canalização da energia universal através da imposição de mãos, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio energético vital de quem a recebe e, restaurar o estado de equilíbrio natural (emocional, físico ou espiritual), eliminar doenças e promover a saúde. O Feng Shui é uma corrente de pensamento de origem chinesa, que defende que, estabelecendo uma relação yin/yang, os ideogramas Feng e Shui (respectivamente Vento - yang - e Água - yin -) representariam o conhecimento das forças necessárias para conservar as influências positivas que supostamente estariam presentes em um espaço e redirecionar as negativas de modo a beneficiar seus usuários. Quando as pessoas buscam o equilíbrio com as forças benéficas e as vibrações da natureza, podem gozar de saúde, boa sorte e prosperidade. Quando as ignoram e se alinham com influências nocivas, podem experimentar dificuldades e obstáculos que podem se expressar como doenças, má sorte ou indisposição.

35 Meia –noite é uma das entidades-guia da casa, que dirige os trabalhos de cura; bata branca é o temo pelo qual as entidades se referem aos médicos da biomedicina.

36 Tal como é referido por inúmeros autores; veja-se por exemplo Birman (1985) e Brown (1999).

37 Para além da relação com o Brasil também a relação com África é por vezes enfatizada. Veja-se, a esse respeito, Pordeus Jr (2000; 2009); Guillot (2007) e Saraiva (2009; 2010).

38 Ver, por exemplo, o clássico de Laplantine de 1986 A antropologia da doença (ver LAPLANTINE, 2001) ou ao compilação organizada por John Hinnells e Roy Porter (1999).

39 A tradução é minha, cito igualmente o original em ingles: “Religion is far more than a mere set of beliefs, or an optional way of life. It is also a conditioning, a powerful expression of identity, the embodiment of a received tradition of world views, of personal understanding, of values, priorities, hopes and fears”.

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