Sufixação -Eiro Nas Cantigas de Santa Maria

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  • Comunicao feita no IX Congresso Brasileiro de lngua portuguesa - IP. So Paulo: PUCSP, 2002.

    SUFIXAO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA

    Mrio Eduardo Viaro (USP)

    1. Introduo

    O percurso diacrnico dos sufixos portugueses muito pouco conhecido. Quando seconcentra a ateno em um sufixo de alta produtividade, como eiro, observa-se que huma diversidade semntica nos adjetivos e substantivos por ele formados. O sufixo, svezes, est associado a profisses (marceneiro, aougueiro), s vezes, a rvores frutferas(pereira, macieira), a palavras abstratas (besteira), a objetos em se guarda algo (saleiro,aucareiro), entre outros. A antigidade desses significados no a mesma.

    sabido que eiro provm de arius, que, no momento da queda das desinnciascausais, se teria transformado em *ariu e, posteriormente, por mettese, em *-airu no

    latim vulgar. Da, o sufixo rio do portugus pode ser considerado uma forma divergente,de idntica etimologia, reintroduzido em vocbulos eruditos.

    No entanto, se do ponto de vista formal, essas transformaes fonticas soinquestionveis, a modificao semntica e a distribuio lexical no to clara. O longo

    percurso da histria do latim e sua transio para as lnguas romnicas reserva algunsproblemas ainda no totalmente resolvidos.

    2. O corpus e as etapas de trabalho

    O presente trabalho coletou todas as ocorrncias de eiro(s), -eira (s) num corpusrepresentado das 420 cantigas de Santa Maria, de Afonso X (1252-1284), que foramcompostas no ltimo quartel do sculo XIII (entre 1274 e 1282). Ao todo, extrados oscasos que no tinham relao com arius (mosteiro, cheiro, lazeira) e outros de etimologiaduvidosa (fazfeiro, beira) foram obtidos 84 vocbulos. Um exame da etimologia dessesvocbulos mostra que sua formao se deu em momentos diferentes. possvel separar osseguintes momentos de formao:

  • a) Vocbulos documentados no perodo dos sculos VII a III a.C., cuja listagemformaria um vocabulrio latino arcaico.

    b) Vocbulos documentado no perodo pr-clssico e clssico (sculos III a.C. a Id.C.)

    c) Vocbulos documentados no perodo tardio do Imprio (sculos II a V d.C.)d) Vocbulos documentados na Alta Idade Mdia (sculos V a XI)e) Vocbulos hipotticos do latim vulgar das pocas (b) e (c)f) Vocbulos hipotticos de carter regional romances (sculos IX a XIII)g) Vocbulos documentados nas lnguas romnicas na poca (f)

    Na prtica, difcil reconhecer as etapas, uma vez que o latim escrito falseia ascaractersticas fonticas que facilitariam o reconhecimento do perodo. Dessa forma, num

    texto posterior ao sc. IV encontra-se homicidiarius (Pan. ad Const. 4), palavra que geraromezieiro (213:94), tambm presente em castelhano (COROMINAS sv. hombre). Osignificado o mesmo: homicida. Duas dvidas se impem, com referncia formao eao significado:

    1) A palavra omezieiro fruto de tradio contnua de homicidiarius? Amanuteno do contedo semntico que as une e as transformaes fonticasjustificariam uma resposta afirmativa a essa indagao.2) Dada a raridade de abonaes possvel admitir que sejamformaes independentes, ou seja, frutos, respectivamente, dehomicidium+arius e de omezio+eiro? Outros casos, em que h significadoscompletamente distintos (carnarius local em que se coloca a carne, isto , ocorpo do defunto=tmulo e carneiro animal til por causa da carne, em

    oposio quele que servia para a procriao), mostram que essa hipteseno de todo absurda.

    Uma terceira dvida tambm apareceria, embora no seja aplicvel nesse casoespecfico, devido datao de homicidiarius: a forma latina documentada no se trata deuma transposio do romance para o latim? Ou seja, homicidiarius no seria uma forma

  • latinizada do romance que gerou omezieiro? Uma pesquisa sobre a localidade dos

    manuscritos em que aparecem homicidiarius poderia ser um ndice.Embora as pesquisas sobre esses assuntos estejam apenas iniciando, sero

    apresentadas neste trabalho algumas solues.

    3. Anlise cronolgica dos dados

    Das palavras cuja etimologia se encontra documentada nos textos latinos das etapas(a), (b) e (c) listadas acima, citem-se, com certeza, primeiro, terceiro, ceveira, dinheiro,obreiro, senlheiro e febreiro, de primarius, tertiarius, cibaria, denarius, operarius,singularius, februarius (8,43%). Todas elas passaram para o latim vulgar, embora nemtodas sejam documentveis no romeno e, no caso de senlheiro, apenas na Pennsula Ibrica.Observa-se a preponderncia do valor adjetivo das palavras derivadas nessas palavrasantigas. O trao semntico relativo a profisses desponta apenas em operarius, que originaobreiro. Alm dessas, outras palavras tambm poderiam ser includas: cavaleiro, escudeiro,usureiro, lumeeira (4,81%), mas o significado mudou das etapas (a) e (b) para (c) e (d):caballarius que monta mau cavalo passou a significar cavaleiro, scutarius fabricante

    de escudo tornou-se quem carrega o escudo, usurarius relativo ao uso tornou-se quevive de lucro, luminaria que produz luz tornou-se vela.

    Alguns termos surgem no latim tardio, da etapa (c), com valor de profisses. Listem-se, com certeza, pegureiro, porteiro e figueira de pecurarius, portarius, ficaria (3,61%),que tambm passaram para o latim vulgar. O termo ficarius relativo a figos j significavafigueira sob a forma ficaria no sc. IV e tem distribuio irregular no latim vulgar, umavez que s aparece no Norte da Itlia e na Pennsula Ibrica. Somadas a essas esto

    palavras com forma ou valor semntico alterado: caldeira e fogueira (2,41%). A formacaldarium relativo ao calor tornou-se caldeiro, j no sc. IV, mas a forma *caldaria vulgar; focaria cozinheira, palavra tardia gera o sentido vulgar pan-romnico, no-documentado, de fogueira na mesma poca.

  • Importantes para a caracterizao de um latim medieval ibrico so vocbulos

    documentados na etapa (c) e (d) so: tesoureiro, terreiro, baesteiro, semedeiro, merceeiro,omezieiro de thesaurarius, terrarium, ballistarius, semitarius, mercedarius, homicidiarius(7,23%). Todas essas formas sobreviveram na Pennsula Ibrica, mas provavelmentetiveram uso mais amplo no final do Imprio. Alm dessas, duas outras palavras: denteira e

    seeleira (2,41%) podem gerar dvidas, mas so provavelmente referentes s etapas (f) ou(g). A palavra denteira no sentido de careta em que se mostram os dentes parece ocorrers no portugus e derivao tardia de dentarius referente aos dentes. Tambm a palavraseeleira bolsa para guardar selos derivao tardia exclusiva do portugus, embora hajasigillarius fabricante de selos em inscries tardias.

    Somadas a essas, encontram-se duas outras palavras, a saber, maneira e ribeira(2,41%), cujas etimologias so documentveis nas etapas (a), (b) e (c), mas adquiremsentidos especficos na etapa (d): manuaria provm de manuarius relativo s mos,donde habilidade, modo, maneira; riparia, de riparius relativo margem, dondeterreno adjacente s margens do rio. Esses significados aparecem documentados no latimmedieval (riparia aparece com este sentido em 1021) e foram cunhados regionalmente,provavelmente na Frana, de onde irradiou para toda a Europa Medieval, inclusivePortugal. Tambm devem ter surgido na Frana, na etapa (e), formas como *carraria,*companiarius, *archarius, *marinarius, *werrarius que aparecem em outras lnguasromnicas (mas no no romeno), entre elas o portugus: carreira, companheiro, arqueiro,marinheiro, guerreiro (6,02%).

    Quanto etapa (f), o iberorromance gera formas presentes tanto no portugus quantono castelhano (38,55%): monteiro, certeiro, arteiro, moleira, parleiro, vozeira,dereitureiro, justiceiro, covilheira, verdadeiro, torticeiro, evangelisteiro, cabeceira,caleiro, vidreira, mentireiro, outeiro, postremeiro, fronteiro, duradeiro, herdeiro,falcoeiro, mandadeiro, dianteiro, sombreiro, esmoleiro, prazenteiro, carneiro, cordeiro,solteiro, tendeira, despenseira. A esses, devem-se incluir formas que so presentes apenasno portugus, isto , caractersticas de uma etapa (g): terreiro, vertudeiro, sabedeiro,azinheira, giesteira (6,02%). Outras, formaram-se independentemente, com sentidos

  • diferentes no castelhano e no portugus: grueiro, pedreiro (2,41%). Por fim, algumasformas s aparecem no castelhano em registro dialetal e tardio: regueiro, costeira,terronteiro (3,61%).

    Ainda na etapa (g), decorrentes de outros romances, aparecem palavras de origemestrangeira. Comuns ao iberorromance e ao provenal esto: ovelheiro, capeiro,mercadeiro (3,61%). Do francs provm ligeiro, mineira, barreira, peleteiro, fronteira(6,02%). Do francs ou do italiano: taboleiro, romeiro (2,41%).

    Se se separam duas etapas: uma que inclua de (a) a (e), anteriores s lnguasromnicas e outra, posterior escrita dessas lnguas, isto , (f) e (g), obtm-se os seguintesvalores: 29 palavras (34,94%) foram formadas e mantidas durante o primeiro grupo e 54(65,06%) a partir do segundo. Isso mostra que a produtividade de arius ampliou-se muitono iberorromance. Se se imagina uma terceira etapa, at os dias de hoje, observa-se quedessas 83 palavras, 65 ainda se usam ou, ao menos, esto abonadas no dicionrio Houaiss(78,31%).

    4. Anlise morfolgica e semntica dos dados

    Do ponto de vista da derivao, -eiro forma substantivos e adjetivos que podem serdenominais, deadjetivais, deadverbiais ou deverbais. Todavia, nem todas as possibilidadesforam produtivas em todas as pocas.

    Dos sculos VII a.C. a I d.C. (7 exemplos) h, no corpus, apenas substantivosdenominais e sobretudo adjetivos deadjetivais. O nico caso de substantivo deadjetival dinheiro. Apenas uma ocorrncia de substantivo com valor semntico de profisso

    (obreiro). Paralelamente, com datao entre III a.C. e V d.C. (11 exemplos) s hsubstantivos (denominais e deadjetivais), dos quais muitos (45,45%) so profisses, h umcrescente nmero de indicaes locativas (caldeira, ribeira, fogueira) e um vegetal(figueira). Do latim tardio e medieval (6 exemplos), continua a predominncia desubstantivos denominais, mas tambm h adjetivos (um deadjetival e outro deverbal:merceeiro). Paralelamente, as formas hipotticas (ao todo 5 exemplos) para o intervalo

  • entre III a.C. e XIII d.C. aponta para a maioria de substantivos denominais, a maioria

    denotadores de profisses.As formas mais recentes, do sc. IX a XIII (ao todo 54 exemplos) so sobretudo

    substantivos denominais (55,55%) seguidos de adjetivos denominais (14,81%), adjetivosdeadjetivais e denominais (ambos com 11,11%), substantivos deadjetivais (9,26%),adjetivos deverbais (5,55%), substantivos deverbais (dois exemplos: mercadeiro,mandadeiro, 3,7%), adjetivos deadverbiais (um exemplo: dianteiro, 1,85%). Dessaspalavras mais recentes, 29,63% so profisses, mas h outros derivados que possuem otrao [+humano], como solteiro, herdeiro, enquanto um nmero significativo (12,96%) temum trao durativo evidente (parleiro, mentireiro, prazenteiro etc.) ou um valor locativo(moleira, cabeceira, outeiro: 12,96%), mas apenas dois exemplos de vegetais (azinheira,giesteira: 3,7%).

    No mesmo perodo, interessante observar que uma outra fonte que detalhe melhor o

    que aconteceu nesse perodo: o dicionrio Houaiss, que acusa predomnio do nome devegetais (60%) e de profisses (20%) no sc. IX e X. Para o sculo XI abonam-se, ao ladodos vegetais (30,77%) e das profisses (23,08%), sobretudo palavras com valor locativo(38,46%). No sculo XII, computam-se 18,51% de vegetais, 37,04% de profisses (semfalar que aparecem, pela primeira vez, casos afins, associados funo, mas sem o trao[+humano]: falcoeiro, podadeira) e 22,22% de locativos. No sculo XIII, num corpus de117 termos, as profisses somam 44,44%; os locativos aparecem em 14,53%; os vegetais,em 9,4%. Nesse sculo computam-se ainda adjetivos: 6,84%, assim como algumas palavrasesparsas com o trao [+humano], mas no referentes a profisses (solteiro, herdeiro,companheiro, quinhoeiro) ou palavras sem o trao [+humano], mas com algum valorfuncional (coelheiro, grueiro). Pela primeira vez, os valores locativos parecem gerarsignificados referentes a conjuntos homogneos (nevoeiro) ou a doenas (pulmoeira).

    5. Concluses

    De tudo o exposto, parece ser possvel traar alguns percursos semnticos comreferncia a eiro no portugus:

  • 1) O valor prototpico de arius o formador de adjetivos deadjetivais.Aparentemente h nele um valor de reforo puro, o que justificaria formarprimarius de primus, tertiarius de tertius, singularius de singulus. Esse valor nuncadesapareceu no latim vulgar falado na Pennsula Ibrica: certeiro de certo. Damesma forma, as formas denominais cedo se tornavam substantivos: operarius, de

    opera, era inicialmente adjetivo, posteriormente substantivo com o trao[+humano]. Tambm denarius, de deni, era inicialmente um adjetivo,posteriormente um substantivo sem o trao [+humano], abrindo, dessa forma umprecedente como o encontrado em cibaria, de cibum. Muito cedo, as formas com

    trao [+humano] passaram a indicar profisses, mas nem todas (parceiro,companheiro, solteiro).

    2) O valor prototpico, dessa forma, gera derivados a partir de nomes defrutas, surgindo nomes de rvores frutferas: ficaria, de ficus. A partir da, o sufixose associa a nomes de plantas, em geral (rosa roseira). A produtividade de ariuscom esse significado regional (Norte da Itlia e Pennsula Ibrica). Nessemomento, a maior parte das formaes so substantivos denominais.

    3) Paralelamente, o sufixo com seu valor prototpico passa a indicarvalores locativos (terra terrarium, ripa - riparia).

    4) Num estgio posterior, o romance iberorromnico, que apresenta osufixo bastante produtivo para indicar profisses, transforma-o metaforicamente emindicador de funo, quer de animais (grou grueiro, coelho coelheiro), quer deobjetos (podar podadeira). Nessa etapa, tambm surgem formas deverbais edeadverbiais.

    5) Outros valores para o sufixo aparecem de maneira incipiente, masganharo maior produtividade nos sculos subseqentes.

    Referncias bibliogrficas:

    COROMINAS, J. Breve diccionario etimolgico de la lengua castellana. Madrid,Gredos, 1994.

    GAFFIOT, F. Dictionnaire latin-franais. Paris, Hachette, 1934.

  • HOUAISS, A. & VILLAR, M. S. (org.) Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa.Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.

    MEYER-LBKE, W. Romanisches etymologisches Wrterbuch. Heidelberg, CarlWinters, 1981.

    METTMANN, W. (ed.) Cantigas de Santa Mara. Madrid, Castalia, 1988. 3v._____. Cantigas de Santa Maria. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1959-72. 4v.