Karin Feldkircher Cantigas

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trovadorismo

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RESUMO

Pesquisa desenvolvida para apontar as diferentes características existentes na lírica trovadoresca na Europa, no século XII, como um todo, e principalmente apresentar as características dessa lírica na cultura galego-portuguesa através de dados e informações históricas. Tendo em vista que a poesia foi a primeira manifestação literária em todas as culturas, possuindo o caráter oral, vinculado à música e dança, foram adotadas as cantigas de Don Dinis para demonstrar os aspectos do lirismo trovadoresco galego-português, nos séculos XII-XII. Palavra-chave: lírica trovadoresca; trovadorismo galego-português.

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1. Introdução

A proposta do trabalho é a de descrever, baseado em dados históricos, o

surgimento, no século XII, da primeira literatura européia na região da Provença e o

desenvolvimento da lírica trovadoresca em diversas regiões. Ressaltando as

dimensões que essa lírica tomou na cultura galego-portuguesa, e suas

características próprias.

O trabalho iniciará, então, com a lírica trovadoresca na Europa, o trovadorismo

galego-português, a identidade nacional de Portugal, passando a tratar da literatura

medieval portuguesa e seu lirismo, das cantigas e seus gêneros, encerrando com a

análise de algumas cantigas de Don Dinis para expor as características desse

movimento cultural galego-português.

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2. A lírica trovadoresca na Europa

Em meados do século XII, surge na Europa o que poderia ser considerada a

primeira literatura européia, mais precisamente na região da Provença, que abarca

toda a civilização do Languedócio. Segundo os estudos de Segismundo Spina

(1996, p. 17), compreende-se aí toda a região entre o Mediterrâneo e o Maciço

Central, os Pireneus e a fronteira italiana. Essa literatura teve como formação uma

língua vulgar, derivada do latim, chamada romance, sendo ela a base e a fonte de

inspiração de todo o lirismo europeu desenvolvido nos séculos seguintes.

Surge aí o movimento trovadoresco. O século de ouro da literatura medieval

na França deu espaço para o que se chamou de renascimento medieval, ali nasceu

a primeira canção de gesta, a primeira poesia lírica, o primeiro torneio cavaleiresco,

o primeiro vitral, o primeiro drama litúrgico, a primeira carta de liberdade de uma

comuna.

Nesse período destacaram-se alguns trovadores como Joseph Bérdier, Turold

com a obra Chanson de Roland e Guilherme IX, duque da Aquitânia. Porém os dois

hemisférios franceses assumiram posturas poéticas distintas, ao norte o destaque é

dado ao épico, ao guerreiro e ao herói, tendo como tema as lutas; e ao sul

apresenta-se o sentimento, a cortesia, a exaltação da figura feminina como temas

centrais. Mesmo que na realidade social a mulher exaltada na lírica trovadoresca do

sul não fosse aquela que estava em casa e criava os filhos e prestava serviços ao

seu senhor. A “escravidão amorosa” declarada pelos poetas não correspondia à

realidade social no sul da França.

Arnaldo Hauser, na sua obra História social da arte e da literatura, explica que

as condições políticas da época poderiam influenciar muito mais a temática da

elevação da mulher do que a própria poesia possa sugerir. Na Provença, devido ao

mercado monetário (A. Hauser, 1972, p. 279) surge uma classe assalariada

chamada de apaniguados, que constituíam em maior número os soldados

montados da cavalaria. A necessidade dos grandes senhores, em meio às

constantes guerras, de proteger suas propriedades, exigia um número muito grande

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de homens, sendo que de nobres, para serem nomeados cavaleiros era mínimo,

faziam-se, então, escravos em homens livres e assalariados, senão livres ao menos

remunerados, para montar essa guarda.

Por vezes os apaniguados recebiam pequenas propriedades como forma de

pagamento, conseguindo assim dar o primeiro passo à nobreza. Quando essas

terras ou pequenos feudos se tornavam hereditários, esses grupos de apaniguados

recebiam também o direito de serem cavalheiros por hereditariedade, contudo nunca

representaram a figura de rival ao seu senhor.

O conceito de fidelidade, servidão, o ‘espírito’ de subalterno não dão a esse

grupo o ‘direito’ de infringir a devoção ao seu senhor e isso se reflete na poesia

provençal.

A cultura de cavalaria e da corte medieval é baseada numa organização

cortesã (1972, p. 286) “a primeira em que se verifica uma autêntica unidade

espiritual entre os príncipes, os cortesãos e os poetas”.

Essa unidade pode sugerir, então, que o fato de um cavaleiro-poeta, um

trovador, renunciando todo seu eu para viver para servir a uma mulher, sublimizando

essa que é seu objeto de adoração, não seja realidade. Na maioria dos casos a

figura feminina louvada no poema é comprometida ou já casada, (1972, p. 297)

levantando a hipótese de que essas Chansons foram criadas apenas a pedido das

próprias esposas e pretendentes dos nobres cavaleiros que solitárias, sentindo a

falta de atenção recebiam “mimos” encomendados em forma de poemas, por

homens que sendo subalternos a esse senhor, criam um eu lírico enamorado por

essas mulheres, cante-as e louve sua beleza.

Mesmo porque, tanto o servo quanto a esposa desse grande senhor, ao

menor sinal de adultério, poderiam ser condenados e sofrer severas punições. Não

se generaliza também essa idéia, é bem possível sim, que um servo e/ou trovador

possa ter cultivado um amor arrebatador por alguma dessas figuras femininas.

No decorrer do século XI, essa tendência lírica se espalhou por toda a Europa

romana e anglo-germânica. O amor se tornou o grande tema de inspiração lírica, a

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morte e a natureza são apenas complementos, ou meros tópicos dessa poesia em

que o trovador é considerado o mártir pela sua vassalagem amorosa. Spina (1996,

p. 24) diz ainda que “o amor cortês, estranhamente aparece enlaçado com os

quadros picturais da natureza primaveril, talvez sobrevivência da poesia folclórica

dos cantos da primavera”.

A partir do século XI surge, principalmente na França e na Alemanha, a

poesia dos Goliardos que eram frades sem emprego, afugentados pela crise das

prebendas e o rigor da ordem monástica. Viviam em um ambiente secular, ou seja,

espalhados pelas ruas, praças e acabaram por se refugiar em tavernas, criando

assim uma poesia boêmia de característica satírica, romântica e confessional

envolta “por uma acentuada obscenidade” (S. Spina, 1996, p. 27).

O surgimento das universidades medievais deu um toque a mais ao clima

boêmio, com um número considerável de escolares itinerantes, ambulantes e

clérigos a procura de cursos de teologia, gramática e estudos clássicos. A vida

errante se tornou quase uma profissão.

Os Goliardos como conhecedores de certa cultura letrística, escolástica

conheciam também poetas como Vergílio, Horácio e Ovídio. Esse último foi a

principal fonte de inspiração para os clérigos vagantes que, em contato com a

natureza e com as camadas populares, levando uma vida próxima ao ambiente

cortesão, criam uma literatura intermediária, na qual o convite ao carpe diem é um

excelente modelo do ideal desse grupo de trovadores. A celebração da juventude,

dos deleites carnais e o abandono às preocupações são propostas que, segundo o

eu lírico, são sugestões feitas pelos próprios deuses, ou seja, assim como viviam os

deuses, assim deveria ser a vida, pois a velhice traz consigo preocupações e

debilidade.

Bem como a poesia dos Goliardos, a poesia provençal também chegou à

Alemanha por volta de 1170 estendendo-se até 1340, aproximadamente, tendo

como o maior trovador Walther von der Vogelweide (1230). Iniciando assim uma

tradição lírico-cavalheiresca com os chamados Minnesängers, dedicados à Minne,

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ou seja, a arte de cantar o amor sutil e sublime, pertencia a todos os graus

hierárquicos da sociedade, desde os grandes senhores, príncipes até os

vagabundos.

Spina explica que a lírica dos Minnesänger pode ser verificada em três fases

principais: 1ª fase: do cavalheiro autro-bávaro (1170-1180), em que a influência

provençal ainda não se faz presente e se desconhece as convenções da cortesia; 2ª

fase: chamada de a primavera do Minnesäng (1180-1190) é quando se percebe com

facilidade a influência cavalheiresca francesa e provençal: o amante é o home-lige, o

suplicante e submisso; 3ª fase: (O verão do Minnesang) é o período clássico a idéia

da Minne, de um amor idealizado desliza para uma concepção terrena, realista; (S.

Spina, 1996, p. 36) “o preciosismo formal deriva o tecnicismo ornamental e o

elemento didático triunfa”.

Na Cataluña, o movimento trovadoresco foi simultâneo ao de Provença, e isso

se deve aos fatores políticos, sociais e lingüísticos que aproximavam as duas

populações vizinhas. Por volta de meados do século, pouco antes do grande

momento do trovadorismo galego-português, pode-se encontrar uma forma

aristocrática como expressão de cultura palaciana, tentando superar as primitivas

composições jogralescas de fundo popular e religioso. Quando então, na segunda

metade do século XII, nasce a primeira geração de trovadores: Berenguer de

Pelazol, Martin Codax, Afonso III o Casto (1152-1196) – Afonso II de Aragão e I da

Cataluña, Rossilão, Bertan de Born, e Giraut de Cabrera, o maior representante da

poesia didática; Raimon Vidal de Besalau (1160?-1210). Na Segunda metade do século XIII, na corte de Jaime I, destaca-se o nome

do jogral Cerveri de Girona, a mais notável representação da jogrália deste século e

o último dos trovadores catalães. Cultivou formas poéticas mais variadas e foi tão

fecundo como D. Dinis havendo deixado umas 120 composições. A atividade

jogralesca se estendeu, como em Portugal, pelo século seguinte, começando a

permear o convencionalismo; o brilho e o gosto vão diminuindo à medida que vamos

nos aproximando do pré-Renascimento, no então reinado de D. Juan I.

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3. O trovadorismo galego-português 3.1. A identidade nacional

Há duas condições a serem levadas em conta quando a questão é determinar

as produções escritas de origem galego-portuguesa ou produções de outras regiões

como Leão, Castela ou Aragão: uma é o limite lingüístico e outra é o limite cultural.

Saraiva e Lopes, na obra História da Literatura Portuguesa, esboçam esses

limites como sendo uma “unidade cultural e literária peninsular” (2000, p. 11).

Explicam que a integração existente entre os reinos de Leão e Castela, de Galiza e

Portugal permitiam que os dialetos usados fossem próximos, porém nem sempre as

produções das cantigas escritas em um dialeto correspondiam à nacionalidade do

autor. Há muitas cantigas de autores bilíngües que foram arroladas como produção

portuguesa sendo de Castela e vice-versa.

Segundo José Mattoso, no ensaio A formação da Nacionalidade, explica que,

para determinar a nacionalidade das obras, não basta repousar os olhos somente

em questões “lingüísticas e culturais” (A formação da nacionalidade, p. 19), e sim

verificar que o processo da formação dessa nacionalidade se deu por um longo

período de conscientização, ou seja, o processo partiu de uns poucos capazes de

perceberem, racionalmente, a idéia de uma coletividade, desse momento em diante,

surge a necessidade de se agruparem por questões de segurança política, e explica

que não é sem motivo que o primeiro movimento cultural português, ou seja, o

trovadorismo galego-português, coincida com o momento em que se firmou,

realmente, um Estado nacional e explica dizendo:

Ora ele (o trovadorismo) atinge a sua plenitude

justamente durante meados da segunda do século XIII, ou seja, coincide com o período da montagem de um Estado verdadeiramente nacional, isto é, que influência de facto a vida da nação no seu conjunto. As objecções que se podem fazer a esta afirmação invocando a origem galega de muitos dos trovadores e jograis, e o facto de muitas composições terem

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sido na corte Castelhana de Afonso X e de Sancho IV, não afectam a interpretação global do fenómeno cujo âmbito coincide grosso modo com Portugal e cujos principais núcleos permanentes se situam entre nós.”

A partir do século XIII, depois de já ter sido instituído o Estado de Portugal, os

padres Franciscanos e os Dominicanos romperam o isolamento, passando a ter

influência nas camadas populares. Como a produção escrita era feita manualmente,

a literatura se fez por duas vias, a oral e a escrita. Os conventos que funcionavam

como oficinas de manuscritos eram de Larvão, Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça.

Nesse sentido os pregadores clericais se tornavam elo entre o “saber livresco e a

massa popular” (Saraiva e Lopes, 2000, p. 37).

Há também os jograis-recitadores, cantores e músicos ambulantes, figuras

preciosas para a lírica trovadoresca. Contudo, a literatura escrita e oral se

diferenciavam, pois enquanto as produções escritas nos conventos eram restritas a

textos religiosos, tratados, obras de devoção produzidas em latim, o “repertório”,

como chamam Saraiva e Lopes (2000, p.37), dos jograis eram baseados na vida e

nos assuntos de interesse público. Esses textos eram direcionados aos vilões,

burgueses e nobres, constituídos nas línguas locais.

Aqueles que tinham interesse de freqüentar uma universidade, no entanto,

deveriam ir às universidades de Mompilher, Bolonha ou Paris, sendo essa última a

favorita dos portugueses. A partir de 1290, com o início do reinado de D. Dinis, com

aumento do interesse pelo direito, Teologia e Filosofia Aristotélica, fundou-se o

Studium Generale de Lisboa, seguindo os padrões da universidade de Bolonha.

3.2. A literatura medieval e seu lirismo

Outro fator que colaborou para a difusão na Península Ibérica da poesia

provençal e trovadoresca foram a das relações políticas firmadas através de

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casamentos entre príncipes peninsulares com princesas provençais ou francesas,

que traziam consigo um pequeno séquito composto de músicos e poetas

jogralescos. Junto com esses casamentos veio, é claro, o apoio das ordens

religiosas e militares de origem francesa que nos primeiros anos da nacionalidade

contribuíram para a reconquista de áreas, até então, dominadas pelos mouros.

É dessa aliança entre a poesia tão bem desenvolvida pelos jograis da

Provença e das antigas cantigas de “mulher moça enamorada”, como chama Esther

de Lemos no ensaio A literatura medieval. A poesia., página 40, é que nasce a

poesia galego-portuguesa, que aparece registrada, desde o século XIII, em coleções

conhecidas como Cancioneiros.

Tais coleções são conhecidas como o Cancioneiro da Ajuda (A), por estar na

Biblioteca do Palácio da Ajuda, um manuscrito em pergaminho inacabado, que

reserva espaços em branco destinados às notações musicais das cantigas, no qual

há também iluminuras de músicos, jograis e bailarinas que não foram terminadas de

pintar. Esse livro, em particular, traz composições somente do gênero cantiga de

amor. O Cancioneiro da Vaticana (V) é pertencente à Biblioteca do Palácio Pontifício

de Roma, conhecida como a Biblioteca Vaticana e o Cancioneiro Nacional aos

cuidados da Biblioteca Nacional em Lisboa.

Estes dois últimos são manuscritos italianos do início do século XVI, não

destinam espaço às notações musicais e apresentam “certa dificuldade de leitura”

(Esther de Lemos, p. 42) comportam em si os três gêneros cultivados pelos poetas

galego-portugueses: as cantigas de amigo, cantigas de amor, e ainda as de escárnio

e maldizer. Sendo o Cancioneiro Nacional o mais volumoso dos três que possui

muitos poemas já arrolados nas outras duas obras, traz consigo algo interessante

como um pequeno fragmento do que poderia se chamar de “arte poética dos

trovadores”, ou seja, “arte de trovar” (Esther de Lemos, p. 42), no qual estariam as

definições dos gêneros que deveriam ser cultivados pelos travadores medievais e

quais recursos estilísticos ali deveriam existir. Infelizmente tal “arte poética” aparece

incompleta e truncada, a partir do capitulo IV como lembra Esther de Lemos.

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Outra obra que possui cantigas de termos religiosos que vale registrar-se, é o

livro Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, Rei de Castela e Leão. São

exclusivamente poemas para se cantar em louvor de Nossa Senhora. Nessas

pequenas loas, cânticos de louvor, há relatos de milagres escritos na língua galego-

portuguesa.

Muitos são a poetas que possuem suas cantigas reunidas nesses

cancioneiros medievais, vindos de diferentes extratos sociais: são eles Clérigos,

Burguês, Nobres, Reis como Afonso X, D. Dinis e os infantes Afonso Sanches e D.

Pedro. Pouco se sabe da biografia desses, há ainda os jograis que, claro, exerciam

a poesia como profissão.

Já nos Reinados de Afonso V, D. João II e D. Manuel quando aparece o

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), como explica Segismundo Spina

em seu livro A Lírica Trovadoresca, a intimidade que havia entre a música, a dança e

as cantigas d’amigo e nas se mais começa a desaparecer: “em fins do século XV,

época em que os progressos de ambos, da Música e da Poesia, iniciam a sua

separação e novos rumos na sua autonomia” (S. Spina, 1999, p. 44).

3.3.Os Gêneros

São três os gêneros utilizados pelos trovadores galego-portugueses: as

cantigas de amor, a cantigas de amigo e a cantigas de escárnio e maldizer. Segundo

a “arte de trovar” do autor anônimo existente no Cancioneiro da Biblioteca Nacional,

na cantiga de amigo a voz lírica é feminina e na cantiga de amor a voz do eu poético

deve ser masculina.

No entanto, bem mais do que a distinção latente entre as vozes emissoras da

cantiga, há outras características que podem ser ressaltadas.

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3.3.1. Cantigas de Amigo:

Ao lermos as cantigas de amigo, percebe-se que há uma retomada do que

Esther de Lemos chama de “temas iniciais” (A Literatura Medieval. A Poesia, p. 45).

O lirismo feminino traz características de temas folclóricos muito antigos, são

motivos simples “relativos às forças elementares da alma e da natureza, ou certas

situações tópicas, de valor quase mágico (...)” (E. de Lemos, p. 45).

Até mesmo o clima, o ambiente geral que esse canto de voz feminina

reproduz é distinto dos das cantigas de amor, pode-se dizer que recupera os ritos

pagãos de amor, ou seja, as danças sob as árvores em flor, os encontros nos

templos, os animais simbólicos como as aves e os veados do monte, o segundo

compartilhado com a mãe ou amigas.

Além destas características, nota-se que há distinção também na linguagem,

nas formas, ou seja, esquemas estróficos e rimáticos, até mesmos na forma de

encarar o amor.

O esquema estrófico e rimático seguem a forma do paralelismo, no qual os

dois primeiros versos se repetem na estrofe seguinte, alterando-se somente a última

palavra. O refrão apresentado logo após o dístico inicial se repete ao longo do

poema. Porém esse paralelismo se entrelaça com a introdução do processo

chamado leixa-pren, ou seja, “deixa e pega”, forma que consiste em começar cada

estrofe retomando o último verso de uma estrofe anterior.

A exemplo a cantiga de amigo de Martim Codax:

Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo? e, ai Deus se verrá cedo? Ondas do mar levado, se vistes meu amado? e, ai Deus, se verrá cedo? Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro?

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11 e,ai Deus, se verrá cedo? Se vistes meu amado, o por que ei gran coitado? e, ai Deus, se verrá cedo?

De início aparece o esquema paralelístico, ou anafórico, que é a repetição da

primeira estrofe, com a substituição das últimas palavras. Em seguida, o processo

trovadoresco do leixa-pren que vai à primeira estrofe e forma o segundo verso, para

então iniciar um terceiro dístico. Daí para frente a seqüência se torna ritmada, no

qual o 2º verso do dístico da 1ª estrofe é o 1º verso do dístico da 3ª estrofe.

Esther de Lemos, no seu ensaio Literatura Medieval. A Poesia sugere que a

formação das estrofes de algumas cantigas da época fosse específica para coral,

formando quase um “cânone”, sendo que uma parte do coro cantaria o 1º dístico e a

outra faria o “eco” cantando o 2º. Lembrando bem que muitas dessas cantigas eram

destinadas à dança enquanto o coro cantava, com possível coreografia combinando

com o ritmo da cantiga.

3.3.2. Cantigas de amor

Já nas cantigas de amor temos a figura masculina que canta à amada e

expressa amor que a ela dedica. Conserva as características do lirismo provençal

em manter em segredo a identidade da donzela, a fidelidade incondicional e a

convicção de que o amor enobrece.

No entanto, a lírica galego-portuguesa se sobressai com outras

características, não se manteve simplesmente em seguir padrões estrangeiros.

Essas características se apresentam na tonalidade afetiva como explica Esther de

Lemos:

Na canso de amor provençal, o sentimento dominante é o jubilo de amor, uma espécie de êxtase da alma e dos sentidos que transporta o poeta ao cantar a sua amada, mesmo quando tudo é adverso à realização do amor, a primavera, a alvorada, o canto das aves

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12 enamoradas não são, na poesia provençal, meros motivos ornamentais, mas antes figuras, expressões concretas desse estado de deslumbramento e arrebatamento que dá o tom dominante. Na cantiga de amor galego-portuguesa esta luminosidade radiosa apagou-se. A palavra-chave já não é de jubilo – é coita, a pena de amor, a mágoa incurável incessante repetida e lamentada.

Ao mesmo tempo em que o poeta se mantém fiel aos modos provençais,

passa a inserir na cantiga lamentações, mágoas, imagens de morte e por vez deixa

de lado “toda a mesura imposta pela disciplina da escola cortês” (E. de Lemos, p.43)

para lançar imprecações contra Deus que permite tamanho sofrimento.

Outra grande distinção das cantigas de amor galego-portuguesa

relativamente às provençais é o caráter abstrato e descolorido das expressões

usadas. Não há descrição de paisagem, ou recurso imagéticos, as poucas

descrições sobre a donzela amada limitam-se à referências aos olhos que resume

todo encanto, instrumento de feitiço, pelo qual o poeta recebe tanto o bem quanto o

mal. Quanto às características físicas dessa dama, limita-se dizer que é fermosa, de

bom parecer, de bom semelhar.

A cantiga de amor de D. Dinis, de número 52 da coleção contida no livro Do

Cancioneiro de D. Dinis, é um bom exemplo:

Senhor fermosa, vejo-vos queixar porque vos am’, e no meu coraçon ey muy gram pesar, se Deus mi perdon, porque vej’end’a vós aver pesar e queria-m’en de grado quytar, Mays non posso forçar o coraçon, Que mi forçou meu saber e meu sen des i meteu-me no vosso poder e do pesar que vos eu vej’aver par Deus, senhor a min pesa muyt’en e partir-m’ia de vos querer ben, mays tolhe-m’end’o coraçon poder, Que me forçou de tal guisa, senhor, que sen, nen força non ey já de mi

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13 e do pesar que vós tomades hy tom’eu pesar, que non posso mayor. e queria non vos aver amor mays o coraçon pode mays ca mi.

3.3.3. As cantigas de escárnio e maldizer

Essas ainda se distinguem entre si, seguindo a orientação da “arte de trovar”

apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional. As cantigas de maldizer são aquelas

em que o trovador fala abertamente de algum aspecto da realidade que seja

provocador de riso, não há nenhuma intensão de se esconder ou disfarçar o alvo da

crítica. Já nas cantigas de escárnio procura-se fazer críticas com palavras ambíguas

que possam provocar duplo sentido, dando ao leitor “o prazer de um jogo de

interpretação” (E. de Lemos, p. 49).

Muitas das alusões existentes nessas cantigas tornaram-se muito sutis para o

leitor de hoje, dificultando assim a leitura e a distinção entre os dois subgêneros

dessa poesia satírica. Os temas, em geral, desse lirismo são os vícios e ridículo

individuais como a bebedeira, avareza, “defeitos” físicos ou até mesmo o mau gosto

no traje. Por vezes essa caricatura chega a possuir um caráter grosseiro e obsceno.

Outros temas usados, mais politizados, são os da crítica à sociedade

ambiciosa a procura de melhorar os seus títulos na nobreza e até pequenos

burgueses e vilões que buscam a todo custo enobrecerem-se.

A covardia de homens que abandonam o campo de batalha, a falta de lealdade

e a falta de fidelidade aos juramentos prestados, qualidades tão preciosas ao código

do comportamento feudal, são postos também nessas cantigas de escárnio e

maldizer.

Não podemos deixar de citar a autocrítica que o poeta faz à vida que leva, o

mundo boêmio e marginal em que vive.

Muitas dessas cantigas satíricas acabam tendo um caráter documental sobre a

vida da época. De um lado as cantigas de amor e de amigo, que como já explicado no

primeiro capítulo deste trabalho, citando Arnold Hauser, não correspondiam

necessariamente à realidade da vida social, do outro lado as cantigas de escárnio e

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maldizer que expunham o contraste do cotidiano e da realidade medieval, que

acabara de sair da violência das guerras, repleta de vícios do urbanismo, buscando

chegar a um ideal de perfeição moral, de convívio e civilidade, que cercavam os

reinos cristãos da Penísula durante o século XII.

Cantiga de escárnio, número 3, página 127

Joan Bol’anda mal desbaratado e anda trist’ e faz muit’ aguisado, ca perdeu quant’ avia guaanhado e o que lhi leixou a madre sua: uu rapaz, que era seu criado, Levou-lh’o rocin e leixou-lh’ a mua Se el a mua quisesse levar a Joan Bol’e o rocin leixar, non lhi pesara tant’, a meu cuidar, nem ar semelhara cousa tan crua; mais o rapaz, por lhi fazer pesar, levou-lh’ o rocin e leixou-lh’ a mua. Aquel rapaz, que lh’o rocin levou, se lhi levass’a mua que lhi ficou a Joan Bolo, como se queixou, non se quixar’, andando pela rua; mais o rapaz, por mal que lhi cuidou, levou-lh’ o rocin e leixou-lh a mua.

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4. Dom Dinis o rei-trovador Dom Dinis, nascido em 1261 e tendo data de falecimento em 1365, é o rei que

assume o poder logo após o Estado de Portugal ter sido consolidado por seu pai o rei

Afonso III, teve um reinado um tanto diferente do Demais.

Sua preocupação já não era tanto a conquista de terras, mesmo que nesse

período o sul peninsular ainda estivesse sob domínio dos mouros e por vezes ou

outra, fosse necessário se ocupar de algumas querelas políticas, eclesiásticas e

conflitos pessoais com seu irmão que pretendia o trono, seu interesse estava

direcionado à cultura de sua nação.

Dom Dinis chegou a receber o cognome de Lavrador, por ter se destacado ao

aplicar em plantações dos “imensos pinhais de Leiria” como fala João Ameal em

Breve Resumo da História de Portugal, página 23. Tinha também os olhos voltados

para o Comércio e a Marinha, contudo seus cuidados foram além desses fatos. O rei-

trovador foi responsável pela substituição do latim bárbaro pela língua vulgar

portuguesa na redação de atos e processos judiciais e criou o “estudo geral” que

derivou a primeira universidade, a Universidade de Lisboa transferida em 1308 para

Coimbra.

Não foi sem razão que D. Dinis foi considerado o “príncipe dos trovadores” (Do

Cancioneiro de D. Dinis, p.11), bisneto de Sancho I, o mais antigo trovador português

e neto de Afonso X, o Sábio de Castela, autor das Cantigas de Santa Maria, possuía

nas veias a arte poética.

Sua produção artística soma o número de setenta e seis cantigas de amor,

cinqüenta e duas cantigas de amigo e dez de escárnio e maldizer, essas também se

diferenciam das demais cantigas de escárnio dos outros trovadores, a linguagem do

rei é mais branda e ameniza as críticas com pequenas insinuações ao invés do

despudor nas palavras usadas. Em seguida, então, será destacada de analisada uma

cantiga de cada gênero escrito por D. Dinis retiradas do livro Do Cancioneiro de D.

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Dinis, a fim de percebermos as características da lírica trovadoresca galego-

portuguesa, já anteriormente descrita.

Cantiga de Amigo, número 36, página 115

Coitada viv’, amigo, porque vos non vejo e vós vivedes coitad’e com gran desejo de me veer e mi falar, e por en sejo, sempr’ em coita tan forte que non m’ é se non a morte, come quem viv’, amigo, em tam gram desejo. Por vos veer, amigo, vivo tam coitada, e vós por me vert que oi mais non é nada a vida que fazemos e maravilhada sõo de como vivo, sofrendo tam esquivo mal, ca mais mi valrria de non seer nada. Por vos veer, amigo non sei quem sofreese e tal coita qual eu sofr’e vós que non morresse; e com aquestas coitas eu, que non nacesse; non sei de min que seja e de mort’ ei enveja a tod’ome ou molher que já morresse.

D. Dinis nessa cantiga expõe a voz lírica feminina, por se tratar de uma cantiga

de amigo, seguindo os critérios da “arte de trovar” e insere os elementos que fazem

parte da tradição trovadoresca.

O eu lírico dessa cantiga se atraiu pelo olhar e sofre tamanha coita ou tormento

porque não pode mais ver o seu amado por um motivo ou outro. Na primeira estrofe

temos a idéia de que essa moça acredita que seu amado também sofre desse

tormento de não poder vê-la e possui grande desejo por ela ou de poder olhar para

ela novamente. O sofrimento da donzela é tanto que ela acaba por desejar a morte, e

é aí que podemos notar a grande diferença entre a lírica provençal

e a galego-portuguesa. A ânsia pela morte é maior que o diálogo

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com os elementos da natureza como faz a trova provençal, a coita toma um largo

espaço lançando assim o eu lírico em um sofrimento sem igual.

Na segunda estrofe, o eu lírico mostra tanto o seu sentimento quanto ao

afastamento como o sentimento desse amigo em relação a ela. A coita, então parece

ser compartilhada pelos dois amantes. Tanto é assim que a vida que os dois levam no

dia-a-dia já não significa muito, ou seja, “e vós por me veer que oi mais non é nada / a

vida que fazemos”, e ainda sim ela é “maravilhada” ou feliz com a vida que leve,

mesmo sofrendo tamanho tormento por essa ausência.

Essa cantiga em particular nos leva a um paradoxo, D. Dins utiliza a antítese

para expor o turbilhão de emoções que sente essa moça em relação ao amado e ao

afastamento dele, talvez por motivos de guerra ou de uma expedição marítima. Na

terceira estrofe temos, então, o lamento e a tristeza em sua maior expressão, foi por

ver esse amigo ou namorado é que sofreu tanto e não imagina quem poderia suportar

tamanho sofrimento em seu lugar, ou até mesmo no lugar dele.

A finalização da cantiga retoma o desejo pela morte, a coita da dama é tão

grande que acaba por ter inveja da morte, dos homens e das mulheres que já

morreram.

Essa cantiga de D. Dinis segue um esquema rimático distinto da maioria das

outras cantigas: E.R.: {a,a,a,b,b,a / c,c,c,d,d,c / e,e,e,f,f,e}, todo em versos

decassílabos. As cantigas do rei-trovador são conhecidas pela rica variação rimática e

pelos variados esquemas estróficos, mais complexos que as cantigas de outros

trovadores da época, na cantiga em questão o rei se faz valer da forma provençal, a

de maestria, na qual não há refrão, como pediam os textos musicados e feitos para

cantar. Em Portugal e na Galiza, onde a arte de trovar tinha cunho acentuadamente

popularesco, predominavam as cantigas de refrão sobre as de maestria adotadas na

Provença.

Contudo, poeta régio escreveu também cantigas de amigo seguindo a

formalização com refrão, com esquema paralelístico, inserindo o leixa-pren como é o

caso da cantiga a seguir:

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Cantiga de Amigo, número 17, página 96

- Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? Ai, Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado aquel que mentiu do que mi á jurado? ai, Deus, e u é? - Vós me preguntades polo voss’ amigo? E eu bem vos digo que é sã’e vivo: ai, Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’ amado? E eu bem vos digo que é viv’e são: ai, Deus e u é? E eu bem vos digo que é sã’e vivo e seerá vosc’ant’o prazo saído: ai, Deus, e u é? E eu bem vos digo que é viv’e são e s[e]erá vosc’ant’o prazo passado: ai, Deus, e u é?

Essa cantiga é uma das mais conhecidas de D. Dinis por representar tão bem o

estilo trovadoresco galego-português, com rimas assonantes (coincidência das vogais

só a partir do último acento), essa cantiga de amigo, possui algumas características

provençais bem destacadas, trata-se de um diálogo entre a amante e a natureza, seu

diálogo se faz com as flores e a ramagem da árvore de um piño (pinheiro), isso se dá

nas quatro primeiras estrofes, nas quais se encontra o leixa-pren, característica da

lírica galego-portuguesa. Sua indagação sobre o paradeiro de seu amado se faz

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através de várias denúncias sobre o comportamento desse amigo para com ela, a

moça quer saber onde se encontra seu namorado, “aquel que mentiu do que pôs

comigo?” ou que lhe prometeu muitas coisas e nenhuma cumpriu.

Esse sentimento de “abandono” é aplacado, ou ao menos, reconfortado nas

quatro últimas estrofes, como a resposta das flores e dos ramos da árvore, então

personificadas, para darem continuidade ao diálogo. A resposta é de que este amado

está bem e vivo, e “serrá vosc’ ant’ o prazo saído”, certamente o rapaz estará com ela

assim que sair do leito do rio, ou desembarcar da nau. Muito provavelmente a aflição

da dama se faz por pensar que seu namorado a deixou sem se quer dar sinal de vida,

notícias que a natureza pode trazer a ela de que ele não tenha mentido ou

descumprido seus juramentos, e que tão logo que possível estaria com ela.

D. Dinis foi capaz de condensar em suas cantigas as mais diversas estruturas

estróficas, rítmicas e métricas, reunindo no seu repertório, tanto as possuem

características provençais como galego-portuguesa, bem como as que o aparentam

com a lírica culta transpirenaica como as que lembram a tradição popular. Isto mostra

que o rei-trovador era um exímio poeta que não só escrevia as suas cantigas como

também as musicava.

Dando continuidade às demonstrações do lirismo galego-português, através

das cantigas de D. Dinis, as cantigas de amor, também seguem um motivo parecido

com as cantigas de amigo:

Cantiga de Amor, número 35, página 53

Ay senhor fremosa, por Deus e por quam boa vos El fez doede-vos alguã vez de min e d’este olhos meus, que vo viron por mal de ssy, quando vos viron, e por mi. E, porque vos fez Deus melhor de quantas fez e mays valer, querede-vos de min doer

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20 e d’este meus olhos, senhor, que vos viron, e por mim. E, porque o al non é ren, senon o bem que vos Deus deu, queredes-vos doer do meu mal e dos meus olhos, meu ben, que vos viron por mal de ssy, quando vos viron, e por mi.

Na cantiga de amor quem fala é ele, que também foi alcançado pelo mal do

olhar. Foi por ver a “senhora formosa que Deus fez melhor que as demais”, mais bela

que as outras mulheres é que ele pede com veemência que essa se compadeça dele

e de seus olhos que a viram, pois pelo simples fato de vê-la sofre. Na terceira estrofe

ele ressalta que nada mais tem valor “senão o bem que Deus deu a essa dama”, o

elemento da beleza dessa amada não passa de mera citação, a lírica trovadoresca

galego-portuguesa possui essa característica de não descrever a dama, e é nesse

molde que compõe D. Dinis, a figura feminina não possui nenhuma característica

física descrita, ela simplesmente é bela, formosa, mais bonita que as outras, porém

não se sabe nada sobre ela, se é loira, ruiva ou morena. Introduz-se assim outra

característica notória, o código da corte, de manter em sigilo a identidade da dama

cortejada. Era suficiente para o eu lírico saber quem era tal dama, porém o segredo, a

preservação da figura dessa donzela era essencial continuar a cortejá-la e para que a

trova funcionasse dentro das normas da “arte de trovar”.

D. Dinis se destaca entre os trovadores por saber lidar muito com essas

características tão peculiares ao trovadorismo, a sua formação, um tanto afrancesada,

deu-lhe forte base para que se mantivesse fiel à algumas características da lírica

provençal, contudo soube introduzir a coita galego-portuguesa de maneira que essas

cantigas não se perdessem das definições do que eram as cantigas trovadorescas e

possuíssem as características nacionais galego-portuguesa.

As cantigas de escárnio e maldizer do Rei, por sua vez, são mais brandas se

comparada com as cantigas de outros trovadores pertencentes ao mesmo período.

Ele prefere adotar palavras menos pejorativas e faz apontamentos para

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acontecimentos do dia-a-dia da corte, como pode se notar na cantiga de maldizer que

será apontada em seguida:

Cantiga de escárnio, número 5, página 129

U noutro dia seve Don Foan, A mim começou gran noj’a crecer De muitas cousas que lh’oí dizer. Diss’el: - Ir-m’ei, ca já se deitar an. E dix’eu: - Boa ventura ajades, Por que vos ides e me leixades. E muit’enfadado de seu parlar, Sêvi gran peça, se mi valha Deus, E tosquiavan estes olhos meus. E quand’ele disse : - Ir-me quer’eu deitar, e dix’eu: - Boa ventura ajades, por que vos ides e me leixades. El seve muit’e disse e parfiou, E a min creceu gran nojo poren, E non soub’el se era mal, se bem. E quand’el disse: - Já m’eu deitar vou, Dixi-lh’eu: - Boa ventura ajades, Por que vos ides e me leixades.

Na cantiga de maldizer escolhida podemos analisar a crítica do poeta a um

homem da corte chamado Don Foan que acaba se tornando uma visita indesejável, a

partir do momento que esse começa dizer coisas demais que aborrecem o anfitrião.

Por várias vezes esse visitante diz que vai embora, no entanto continua a

prolongar a conversa e a voz poética reclama da atitude de D. Foan: “E muit’

enfadado de seu palar”, “e tosquiavan estes olhos meus”, ou seja, tosquiavan é uma

forma arcaica de tosquenejar, cerrar os olhos em piscadas mais cumpridas de sono.

Contudo, “El seve muit’ e diss’ e parfiou”, o anfitrião fica irritado a ponto de responder

“ao ilustre” visitante quando esse diz: “Ir-me quer’ eu deitar” e não vai, “Boa ventura

ajades / porque vos ides e me leixades”.

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A insensibilidade de D.Foan é tão grande que o poeta diz que “non soub’

el se x’ era mal, se bem” que o anfitrião se despedia.

As cantigas de escárnio e maldizer do rei-trovador, para alguns críticos,

são facas de dois gumes: de um lado, oferecem excelentes materiais de análise

sociológica, por que em muitas delas são destacadas circunstâncias de convívio

de algumas pessoas em torno do rei, e outras apesar da aparência inofensiva

podem levantar suspeitas obscenas como seria o caso da cantiga de escárnio

número 2, página 126. (Do Cancioneiro de D. Dinis, p.165).

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5. CONCLUSÃO

Verificou-se então que o desenvolvimento da lírica trovadoresca na

Europa tomou rumos distintos, iniciando pelas diferenças existentes entre a

lírica da França do Norte, que mostrava interesse pela épica e temas de guerra,

e a França do Sul, que se voltava para a lírica amorosa, de cortesia e exaltação

da figura feminina até chegar à lírica galego-portuguesa.

Principalmente como foi o desenvolvimento dessa expressão artística

como linguagem para a cultura galego-portuguesa, uma vez que assumiu

características tão próprias como a coita, o sofrer de amor.

Esse trabalho buscou recuperar o início da poesia portuguesa,

procurando entender a sua essência nas cantigas de Don Dinis, o rei-trovador.

Essa poesia possuía sim a influência do provençalismo, mas foi capaz de se

desenvolver muito além do limites provençais. A coita como tema predominante

caracterizou o trovadorismo galego-português como sendo mais sentimental no

âmbito do sofrimento.

A tristeza, o desejo pela morte, a ânsia pelo amado se faz maior ao

coração dos poetas galego-portugueses, e transborda nos versos de suas

cantigas. Nas cantigas de amor e de amigo, pode-se ver o ciúme, a saudade, a

desconfiança e o prazer de ser correspondido, em um único sentimento, a coita.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. História e antologia da literatura portuguesa: século XII-XIV, Lisboa.

HAUSER, A. História social da literatura e da arte, 1972.

NASSAR, I. M. Do Cancioneiro de D. Dinis, ed. FTD, São Paulo, 1995.

PIMPÃO, A. J. da Costa. História da literatura portuguesa: idade média, 2ª

ed. Revisada, editora Atlântida, Coimbra, 1959.

SARAIVA E LOPES. História da literatura portuguesa, 17 ed. Porto Editora,

Portugal.

SPINA, S. A lírica trovadoresca, ed. Edusp, São Paulo, 1996.

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KARIN FELDKIRCHER

A LÍRICA TROVADORSCA GALEGO-POTUGUESA E

SUAS CARACTERÍSTICAS NAS CANTIGAS DE D. DINIS

Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica II em Letras, como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Sandmann

CURITIBA

2006

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