Sobre História e Histórias da Arte

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CARAVAGGIO: Michelangelo Merisi MICHELANGELO MERISI É comum nem se saber direito onde ou quando nasceram os gênios. Assim o “onde” desse meu herói: foi talvez Milão, de onde se mudou, ainda miúdo, para cidadezinha perto; o “quando” só se deduziu de cálculos complicados, recentemente, porque achou-se o registro da morte dele, aos 18 de julho de 1610, onde está escrito que tinha então 36 anos, 9 meses e 20 dias, deduzindo-se daí (isso se este dado estiver correto) que nascera aos 28 de setembro de 1573. Mas isso tem importância não! Meu herói é maior que isso! Michelangelo foi filho do Magister Fermo Merisi (Magister = construtor de casas) e de sua segunda esposa Lucia (cuja era da cidade de Caravaggio), que enviuvou com quatro filhos para cuidar. Michelangelo estava com seis anos quando a viúva voltou aos seus pagos, justificando-se aí o apelido que o filho pintor iria ter pela História toda: CARAVAGGIO. Por isso é quê quando se lê: Michelangelo Merisi, quasi-quê ninguém sabe quem é. Já quando se lê: CARAVAGGIO, aí sim. Aos 14 anos o menino voltou para Milão, para estudar pintura, aprimorando talento nato; ficou quatro anos no estúdio (ou “bottega”) de um tal Simone Peterzano (bergamasco), ex-aluno de Tiziano (sic), ao preço de quarenta escudos de ouro a anuidade (o que era um bom dinheiro na época, indicando que a família tinha posses). Aos 18 visitou Roma com o professor, e admirou a cidade e o que tinha nela de Arte, que era montão nesse alvorecer de Barroco. Na volta a Milão teve que fugir (para Veneza) por causa de brigas com desafetos (início dos episódios turbulentos que marcaram a vida curta que viveu); em Veneza conheceu e amou a pintura de Tiziano e de Giorgione, entusiasmando-se com os efeitos que os dois conseguiam com luzes e sombras nas suas telas. Voltando a Milão, meteu-se em enrascadas outra vez: acusado de homicídio, foi condenado; ficou preso só por um ano, pois com o dinheiro da herança paterna subornou guardas e fugiu para Roma. Nessa época, Roma estava em pleno período da maquiagem que os papas se propuseram a fazer nela, para transformá-la na suntuosa Capital da cristandade, proposta mãe da Contra-Reforma bolada no Concílio de Trento. Os Papas Paulo V, Gregório XIII e Sisto V, ajudados pelas ricas famílias romanas Colonna, Orsini, Caetani, Chigi, Borghese e principalmente o clã dos Barberini, botaram abaixo a velha cidade e ergueram uma nova que Montaigne (no “Giornale di viaggio in Italia”, 1580) diz ter dimensões maiores que sua amada Paris e que (em tradução mal-e-mal feita que fiz)... “apesar de não ter a grandeza de Paris, todavia, pelo número e vastidão das praças e pela beleza das avenidas e suntuosidade dos palácios, Roma vence com folga a capital francesa”. Tinha 100.000 habitantes, o que parece não ser muito; mas na década anterior (1570) tinha apenas 50.000, e esse crescimento é significativo. Em um registro de época se lê que... “la città conta 50.000 anime, scluse le migliaia di ebrei” o que traz, primeiro, a curiosidade de a população ter um incremento populacional de 100% em uma década e, segundo, da quantidade de judeus na cidade e da desconsideração que já havia por eles. Os papas e potentados tinham, como plano piloto das reformas, a abertura de grandes vias de acesso aos grandes templos entre si, para facilitar o deslocamento de peregrinos que chegavam para visitar os lugares sagrados da antiguidade (como o Coliseu e as catacumbas) e lugares sagrados recém-erguidos (como as basílicas de São Pedro, São João de Latrão, São Paulo, Santa Maria Maior e as muitas outras já existentes na cidade, além daquelas que estavam sendo construídas na colina da Piazza di Spagna (a Trinità dei Monti), na Piazza Navona (a de Santa Inês) etcétera. Lembro que as esculturas remanescentes da Roma antiga (apesar de poucas ainda tinham muitas) estavam sendo coletadas para o Vaticano e para os palácios dos ricaços. Pretendia-se que Roma se transformasse na demonstração do triunfo de Roma como capital da cristandade (afinal, era lá que estava o Vaticano) sobre a Roma pagã (afinal, Roma imperial fora a última sede do paganismo); explico uma das manobras para isso: o Sisto V pegou o obelisco egípcio que Nero tinha posto no “Circo Massimo” e o

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CARAVAGGIO: Michelangelo Merisi

MICHELANGELO MERISI

É comum nem se saber direito onde ou quando nasceram os gênios. Assim o “onde” desse meu herói: foi talvez Milão, de onde se mudou, ainda miúdo, para cidadezinha perto; o

“quando” só se deduziu de cálculos complicados, recentemente, porque achou-se o registro da morte dele, aos 18 de julho de 1610, onde está escrito que tinha então 36 anos, 9 meses e 20 dias, deduzindo-se daí (isso se este dado estiver correto) que nascera aos 28 de setembro de 1573.

Mas isso tem importância não! Meu herói é maior que isso! Michelangelo foi filho do Magister Fermo Merisi (Magister = construtor de casas) e de sua segunda esposa

Lucia (cuja era da cidade de Caravaggio), que enviuvou com quatro filhos para cuidar. Michelangelo estava com seis anos quando a viúva voltou aos seus pagos, justificando-se aí o apelido que o

filho pintor iria ter pela História toda: CARAVAGGIO. Por isso é quê quando se lê: Michelangelo Merisi, quasi-quê ninguém sabe quem é. Já quando se lê: CARAVAGGIO, aí sim. Aos 14 anos o menino voltou para Milão, para estudar pintura, aprimorando talento nato; ficou quatro anos no

estúdio (ou “bottega”) de um tal Simone Peterzano (bergamasco), ex-aluno de Tiziano (sic), ao preço de quarenta escudos de ouro a anuidade (o que era um bom dinheiro na época, indicando que a família tinha posses). Aos 18 visitou Roma com o professor, e admirou a cidade e o que tinha nela de Arte, que era montão nesse alvorecer de Barroco. Na volta a Milão teve que fugir (para Veneza) por causa de brigas com desafetos (início dos episódios turbulentos que marcaram a vida curta que viveu); em Veneza conheceu e amou a pintura de Tiziano e de Giorgione, entusiasmando-se com os efeitos que os dois conseguiam com luzes e sombras nas suas telas. Voltando a Milão, meteu-se em enrascadas outra vez: acusado de homicídio, foi condenado; ficou preso só por um ano, pois com o dinheiro da herança paterna subornou guardas e fugiu para Roma.

Nessa época, Roma estava em pleno período da maquiagem que os papas se propuseram a fazer nela, para transformá-la na suntuosa Capital da cristandade, proposta mãe da Contra-Reforma bolada no Concílio de Trento. Os Papas Paulo V, Gregório XIII e Sisto V, ajudados pelas ricas famílias romanas Colonna, Orsini, Caetani, Chigi, Borghese e principalmente o clã dos Barberini, botaram abaixo a velha cidade e ergueram uma nova que Montaigne (no “Giornale di viaggio in Italia”, 1580) diz ter dimensões maiores que sua amada Paris e que (em tradução mal-e-mal feita que fiz)...

“apesar de não ter a grandeza de Paris, todavia, pelo número e vastidão das praças e pela beleza das avenidas e suntuosidade dos palácios, Roma vence com folga a capital francesa”.

Tinha 100.000 habitantes, o que parece não ser muito; mas na década anterior (1570) tinha apenas 50.000, e

esse crescimento é significativo. Em um registro de época se lê que... “la città conta 50.000 anime, scluse le migliaia di ebrei”

o que traz, primeiro, a curiosidade de a população ter um incremento populacional de 100% em uma década e, segundo, da quantidade de judeus na cidade e da desconsideração que já havia por eles.

Os papas e potentados tinham, como plano piloto das reformas, a abertura de grandes vias de acesso aos grandes templos entre si, para facilitar o deslocamento de peregrinos que chegavam para visitar os lugares sagrados da antiguidade (como o Coliseu e as catacumbas) e lugares sagrados recém-erguidos (como as basílicas de São Pedro, São João de Latrão, São Paulo, Santa Maria Maior e as muitas outras já existentes na cidade, além daquelas que estavam sendo construídas na colina da Piazza di Spagna (a Trinità dei Monti), na Piazza Navona (a de Santa Inês) etcétera.

Lembro que as esculturas remanescentes da Roma antiga (apesar de poucas ainda tinham muitas) estavam

sendo coletadas para o Vaticano e para os palácios dos ricaços. Pretendia-se que Roma se transformasse na demonstração do triunfo de Roma como capital da cristandade

(afinal, era lá que estava o Vaticano) sobre a Roma pagã (afinal, Roma imperial fora a última sede do paganismo); explico uma das manobras para isso: o Sisto V pegou o obelisco egípcio que Nero tinha posto no “Circo Massimo” e o

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transportou para enfeitar o meio da Praça de São Pedro, o que era demonstração do triunfo da cristandade católica (ou vaticana) sobre o paganismo egípcio e do Império Romano; o mesmo Sisto V recomendara (em 1585), explicitamente, aos seus bispos, que explicitaram aos párocos de igrejas de Roma, que se procedesse a reformas com vistas a uma decoração exuberante com enfeites e efeitos que as propostas estéticas conciliares de Trento desejavam, enriquecendo as igrejas (exterior e interiormente) para que ficassem muito mais belas que os despojados e assépticos templos dos seguidores de Lutero.

Recorro novamente ao Montaigne que na obra citada escreveu mais, e nesse mais tem isso de “embelezar” ao máximo as igrejas:

”Il popolo romano - i la città - apare meno religioso di quello francese, ma molto più dedito alle cerimonie e ale feste”

Agora: ao lado da “gente fina” a cidade abundava do que havia de pior entre os “foras-da-lei”: ladrões, doentes,

mendigos, pedintes, prostitutas e prostitutos, adúlteros e adúlteras, pencas de foragidos de seus lugares de origem; montes de “fuorileggi”. O papado se preocupou em “limpar”, como pudesse, esse... “lixo” social; em um edital saído do Vaticano se lê que

“ogni delinquente deve morire” e o edital foi cumprido, pois uma crônica de época refere que havia “più teste tagliate sul ponte Sant’Angelo que meloni al mercato della cità”. Pois foi nesta cidade remodelando-se que Michelangelo Merisi chegou, em 1592, mão na frente e outra atrás (e

ambas manchadas de sangue de assassinato), apresentando-se como “de Caravaggio”. Vinha sem fama nem fortuna, para modificar a arte da pintura na História. Agradou o negociante de arte

Giuseppe Cesare d’Arpino que o colocou ao serviço do clérigo Monsignor Pulci, para fazer cópias de quadros religiosos para as igrejas da sua paróquia. Criou fama com tais cópias; tanto que em 1595 já estava a serviço do chefão da Câmara Apostólica (Monsignor Petrignani), que lhe encomendou pinturas religiosas como “O Sacrifício de Isaac”. E logo passou a ser um “protegée” do poderosíssimo Cardeal Francesco Maria Del Monte.

Mas apesar da fama crescente (sem fortuna, pois gastava muito mais que o pouco que recebia), Michelangelo continuava um desregrado social: vivia cercado de meninos prostitutos, que usava como modelos de muitos quadros (“Baco jovem”, “O Triunfo de Eros”, “São João Batista Menino”, “Baco Jovem Doente”, “O Tocador de Alaúde”, “Jovem com cesto de frutas” etcétera):

Duas das pinturas citadas: “O sacrifício de Isaac” e “Baco jovem”

Notinha: nas obras “profanas” Caravaggio começou colocar muito do seu talento em “complementos” do tema: vasos ou cestos de flores e frutas usados para compor a pintura (queném a “natureza morta” que se vê no “Baco Jovem”. Aí, resolveu valorizar os... complementos, e fez a primeira “Natureza morta” da História da Arte: “O Cesto de frutas”. Sua vida, que ele vivia sempre acompanhado de belos “ragazzi”, causava espécie à sociedade romana, que

tradicionalmente abominava o “pecado secreto” (a sodomia – que já estragara a vida do Leonardo da Vinci antes). Lê-se, em um registro de época sobre o Caravaggio:

“La polizia pontificia incomincia presto a tenerlo d’occhio”.

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“Cesto de frutas” (primeira “natureza morta” importante da |História da Arte

Apesar de estar sob a tutela do Del Monte (também “chegado” a rapazolas), ele não se emendava. Acusações

sobre ele acumulavam-se: brigava em brigas de rua, onde entrava mesmo que não fossem suas, só pelo prazer de brigar; portava espada à cinta (o que era proibido por edito papal); usava de linguagem obscena na quotidianidade; espancou e feriu com sua espada um Gerolamo Montepulciano; era socialmente violento (ficou falado o processo judicial que teve que enfrentar por ter jogado um prato cheio de alcachofras quentes na cara de um garçom só porque as tais foram cozidas no azeite e não na manteiga – ou vice-versa, e o garçom ficou com a cara toda queimada). Criticava com acidez a pintura de todos os seus colegas pintores, que diziam dele:

“Chi non è dell’arte sua è nemico suo” E vai por aí a fora. Ficha feia. Barra suja. Que os amigos poderosos (eclesiásticos quasi-quê sempre) livravam

de pena maior. Porque talento é talento. E perdoa! Aí, em 1599, o Del Monte conseguiu-lhe a primeira encomenda importante: a decoração da Capela da Famíglia Contarelli na igreja de São Luis de França, sobre a vida de São Mateus; apresentou três temas sobre o apóstolo: “A Vocação (ou o “Chamamento”) de Mateus”, o “Martírio do Apóstolo” (neste último ele se auto-retratou em um canto escuro da cena) e “A escrita do Evangelho” (que precisou fazer duas versões, pois não gostaram da primeira (hoje perdida); o “modelo” era muito... vulgar. Prontas as pinturas e abertas ao público, sua fama atingiu apogeus. De logo a comunidade da prestigiosa igreja de Santa Maria del Popolo encomendou-lhe o par de telas gêmeas “Crucificação de São Pedro” e “Conversão de São Paulo”. Agradou à beça. E aí veio outra encomenda mãe, sobre a “Morte da Virgem”, escandalizou (pois reconheceu-se, para modelo de Maria morta, o cadáver inchado de uma prostituta suicida que se atirara no Tibre); grande escândalo!

Aí acumulou a cabeça de um advogado (apropriadamente chamado Pasqualone d’Accumulo) de pancadas, por causa da disputa dos favores de uma “bohème” de nome Leda, modelo de Caravaggio; teve que sair da cidade até a barra ficar limpa. Quando voltou, não adiantou: outra encrenca: aos 26 de maio de 1606 matou Antonio Bolognese durante um simples jogo de bola; mesmo ferido, fugiu.

“In tempo”: toda essa violência sugere um indivíduo grandalhão, um rompante gigante rasgando ruidosamente as ruelas romanas. Quê nada! Um biógrafo seu contemporâneo o descreveu como

“di statura piccola ma brutto di volto”.

O Baixinho era fogo. E feio. E estrábico. Comprava roupas caras para si, de veludos e brocados; mas deixava essas ficarem farrapos, até acabarem, quando e só então comprava outra; não as tirava para trabalhar, dormir ou brigar. O baixinho, além de feio, era fedido. Não deu para ficar em Roma depois desse último delito, mesmo porque, profissionalmente, desagradara os mecenas pelo escândalo provocado pela tela da morte de Maria. Foi para Nápoles. No caminho, foi parando e pintando: as duas magníficas telas sob o tema da “Ceia dos Discípulos de Emaús” são desse tempo (hoje, uma está em Milão e a outra em Londres):

As duas “Ceias de Emaús”, respectivamente de Londres e de Milão

Lá em Nápoles (que não era Itália, pois lá reinava o rei de Espanha) pintou “As sete obras de Misericórdia”, a

“Madona do Rosário” e outras telas. Enquanto esperava condições para voltar a Roma, foi a Malta onde pintou “A degolação de São João Batista” (“Il più grande quadro del secolo” conforme escreveu Longhi, famoso crítico de época,).

Foi, por essa obra, reconhecido como membro da fechadíssima Ordem de Malta, mas aprontou tanto que foi expulso alguns meses depois como “membro pútrido e fétido”.

Foi para Messina, iniciando uma peregrinação pelas cidades da Sicília, fugindo de desafetos.

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Aí, contraiu malária e acabou morrendo pobre, esquecido e miserável em Porto Ercole, perto de Roma, para onde não conseguia voltar pois não obtivera perdão papal pelos seus crimes.

Alguém historiou que... "foi colocado numa cama, com febre muito forte, e ali, sem ajuda de Deus ou de amigos, morreu depois de alguns dias, tão miseravelmente quanto viveu". Suas últimas telas são do menino Davi segurando cabeça cortada de Golias. As caras dos Golias são auto-retratos. Baixinho, feio, fedido e triste. Muito triste! Coitado!

Os dois “Davi com a cabeça de Golias”