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  • 8/18/2019 Ser Um Individuo

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    Ser um indivíduo chez Marcel Duchamp

    António Olaio - [email protected] 

    António Olaio, nasceu em 1963, em Sá da Bandeira, Angola e vive em Coimbra.Licenciado em Artes lásticas!intura "ela #scola Su"erior de Belas Artes do orto, em 19$%.& "ro'essor no (e"artamento de Ar)uitectura da *aculdade de Ci+ncias da niversidade, tendo

    a"resentado, em -, disserta/0o de doutoramento, construda a "artir da obra de 2arcel (ucam".& membro da Comiss0o Cient'ica do (A45 desde Abril de -.& "residente da Comiss0o edagógica do (A45, desde 2aio de -.

    índice

    Introdução

    Ser um indivíduo segundo Marcel Duchamp

    O indivíduo enquanto imagem

     A noção de plasticidade

    Duchamp e a racionalidade A ideia de espaço

    O conteúdo empírico de imaginar 

     A ideia de infra mince

    Sendo dado as obras de Duchamp

    !"tant donn#s e a alegoria do esquecimento$

    %pílogo paranormal

    &otas

    Sugest'es bibliogr(ficas

    indíce . 1 | 107

    mailto:[email protected]:[email protected]

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     Introdução

    «Não quis ser chamado artista, sabe. Eu quis desfrutar da minha possibilidade de ser

    um indivíduo, e suponho tê-lo conseguido, não?)

    %sta declaração de Marcel Duchamp* parecendo menospre+ar a import,ncia de serartista* acaba por nos sugerir e-actamente o contr(rio Mais do que a manutenção de

    uma ideia de arte . qual não se questiona o sentido # revelada a arte como manifestação

    da possibilidade de se ser um indivíduo

    /ara se ser um indivíduo não # preciso fa+er nada* basta s01lo

    Mas ser um artista que prefere apresentar1se como algu#m que ter( querido desfrutar

    da sua possibilidade de ser um indivíduo* # completamente diferente /or questionar o

    facto de o ter conseguido considera que para ser um indivíduo não basta e-istir " como

    artista* querendo ou não chamar1se assim* que ele procura os caminhos para desfrutar

    plenamente da possibilidade de ser um indivíduo

     A noção de indivíduo aparece como o lugar fundador da produção artística

    &a relação dos indivíduos com todas as coisas a ideia de indivíduo parece abarcar

    tudo Aqui a definição de arte surge da indefinição dos seus contornos /ara al#m de

    qualquer acentuação sub2ectivista* a ideia de indivíduo nesta obra que* manifestamente*

    não se assume como autobiogr(fica !daí a criação da personagem 3rose S#lav4$* ganha

    o seu sentido mais abstracto e universal % # o sentido filos5fico do que significa ser um

    indivíduo que # o principal alimento e motivação da sua obra

    Daí ter sido evidente o título deste livro e do seu primeiro capítulo O sentido desta

    publicação* mais do que dar a conhecer um trabalho singular no conte-to das artes

    pl(sticas* # e-plorar a potencialidade que a sua obra tem para nos a2udar a entender a

    comple-idade de se ser um indivíduo /odemos ler a obra de Duchamp como se

    estiv#ssemos numa esp#cie de processo de introspecção colectiva 6ma introspecção

    em que cada indivíduo se dissolve física e temporalmente* numa apro-imação .s

    ess0ncias que fa+em dos indivíduos indivíduos

    Ou* simplesmente* a arte como forma de desfrutar a possibilidade de o ser De certa

    forma* aqui* podemos encarar a arte como forma de ultrapassar constrangimentos para

    fruir em maior transpar0ncia a possibilidade de sermos indivíduos

    &a feli+ coincid0ncia deste te-to ser publicado numa colecção que se chama !ontes

    da "rquitectura* a noção de indivíduo tradu+ida na obra de Duchamp* não por uma

    refle-ão te5rica mas pela pr5pria pr(tica do fa+er artístico* ganha um sentido mais amplo

     A pr5pria ideia de !onte* a que fa+ corresponder cruamente* um urinol invertido !o seu

    mais famoso read4made$* # tradu+ida na comple-idade de ser origem e* ao mesmo

    tempo* devir &a infinita reciclagem de líquidos sugerida por esta !onte* o antes e o

    depois* são ambos* simultaneamente* origem e consequ0ncia % em arte* as causas são

    os efeitos e os efeitos são as causas

    6ma obra de arte não # a materiali+ação de uma ideia imaterial A ideia em arte #

    sobretudo uma antecipação dos seus efeitos* dos efeitos gerados pela sua

    materialidade Daí a sua famosa frase7 # espectador fa$ a obra

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    " a e-ist0ncia da obra de arte na ob2ectividade que permite a apreensão sub2ectiva %

    # enquanto espectador* na antecipação do seu duplo papel de artista e espectador* que

    concebe as suas obras " frequente tentar entender o sentido conceptual de uma obra

    de arte na procura das suas causas* mas ser( uma procura completamente equívoca e

    desconhecedora da comple-idade do pensamento artístico se não se procurarem

    tamb#m as causas nos efeitos

    &a procura de uma apro-imação . comple-idade de se ser um indivíduo em

    Duchamp* em cada capítulo deste livro e-ploram1se algumas das quest'es levantadas

    pela!s$ sua obra!s$7

    . A ideia de indivíduo como sendo definido pela comple-idade das suas relaç'es e a

    criação artística como resultado da relação din,mica entre a habilidade* o habitat* a

    habitação e a habituação

    O artista como e-emplar de indivíduo* afastando1se da ideia rom,ntica do artista com

    uma sub2ectividade única* fa+ coincidir a indiferença* ou indiferenciação da

    banalidade* com a ma-imi+ação simb5lica

    . O indivíduo enquanto imagem A imagem do corpo como pertença do indivíduo mas*

    ao mesmo tempo* sua representação

    O indivíduo enquanto representação de múltiplas realidades

     A forma como a imagem do indivíduo se dissolve na comple-idade das suas relaç'es*

    na geração de novas entidades resultado da multiplicidade das relaç'es conceptuais

    .  A noção de plasticidade # gerada para al#m de qualquer relação meramente

    formalista com a arte* sobretudo se encararmos o formalismo na sua relação

    tradicional com o puramente visual

     A plasticidade ao ser entendida no campo mais amplo dos significantes e* ao mesmo

    tempo* produ+ida no domínio da mente* ultrapassa o estritamente visual

    %ncarado o pr5prio título de uma obra como mais um elemento pl(stico como o são as

    cores e as formas* as ideias participam na produção da plasticidade de uma obra de

    arte

    . Ao relacionar arte com a racionalidade demonstra que a arte # capa+ de alcançar

    domínios inacessíveis . simplificação racional

     A racionalidade* enquanto forma de estruturação da relação do indivíduo com a

    realidade #* inevitavelmente* alheia . sua ambiguidade

    %m simult,neo a ambiguidade afasta1se de qualquer sentido de aleatoriedade

    % na intuição de uma outra l5gica na abordagem da realidade a arte evidencia1se

    como ampliação das potencialidades da intelig0ncia* ou melhor* como revelação da

    intelig0ncia enquanto um campo bem mais vasto do que a mera racionalidade pode

    revelar

    . A e-ploração do espaço ultrapassa as meras quest'es da representação

    &a sua obra* mais do que representar o espaço* amplia a ideia de espaço A pr5pria

    refer0ncia . e-ist0ncia de uma quarta dimensão* mais do que uma procura de

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    metafísica* introdu+* na ideia de espaço* uma dimensão sobretudo mental A ideia de

    espaço não # tomada como e-tensão mensur(vel* mas como campo onde as coisas

    poderão e-istir e acontecer

    .  A associação tradicional da arte com a imaginação remete frequentemente para a

    ideia de onírico

    &este caso* o imagin(rio* utili+ando o humor como estrat#gia recorrente* # despo2adodessa dimensão onírica para ser encarado como se tratasse de uma e-peri0ncia

    ob2ectiva

    &a sua obra podemos encontrar um interessante paralelismo com uma questão de

    8ittgenstein7 # que chamaremos ao conte%do empírico de ver e ao conte%do

    empírico de imaginar?9

     A imaginação encarada como e-peri0ncia ob2ectiva dilui a dist,ncia entre o domínio

    da percepção e o domínio da imaginação* no campo vasto do domínio da mente

    De facto* no domínio da mente* a percepção e a imaginação poderão ser encaradas

    como duas realidades afins

    &a mente* o que se imagina pode surgir com uma presença tão real e consequente

    quanto o que se percepciona

    % a ideia de imaginação enquanto tornar imagem  pode coincidir com a pr5pria

    definição de percepção

    . :om a criação da noção de inframince* entidade de dimensão ínfima* # ma-imi+ada

    a import,ncia do detalhe e do pequeno acontecimento na abordagem da realidade

     Assim* de certa forma* denuncia as limitaç'es de um pensamento estritamente

    racionali+ador* cu2a generali+ação se torna demasiado simplista face . comple-idade

    da realidade

     A ideia de inframince* sendo mais uma criação do humor duchampiano* sugere ser o

    resultado de uma abordagem científica da realidade

    &a aparente cientificidade da noção de inframince são sobretudo as estrat#gias da

    ci0ncia e da ra+ão !onde a ideia de inframince nunca teria lugar$ que são postas em

    causa

    % o inframince* entendido na sua condição de ad2ectivo* na sua relação com a arte*

    qualifica o pr5prio acto criativo valori+ando a import,ncia da subtile+a

    . &a intenção de que as suas obras fossem encaradas no seu todo* nas

    potencialidades das suas inter1relaç'es* mais do que a import,ncia de cada obra #

    sublinhada a import,ncia de um percurso

    Sendo simultaneamente arte e meta1arte* o con2unto das suas obras* pelas refle-'es

    que catalisa* pode ser usado como um tratado de est#tica* comunicando nas

    potencialidades po#ticas das imagens

    :omo catalisadora da teoria de arte* a obra de Duchamp # incontorn(vel não s5 para

    o entendimento dos produtos da arte mas* sobretudo* para o entendimento dos seus

    fundamentos e ess0ncias

    Duchamp* na diversidade de formas que a arte assume na sua obra* defende a arte

    da facilidade de qualquer definição Sendo eu artista pl(stico* o estudo sua obra revela1

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    se como um estímulo importante* nos múltiplos caminhos que continua a abrir %*

    enquanto artista pl(stico docente num curso de arquitectura*; este estudo pode contribuir

    para o entendimento das ess0ncias das pr(ticas artísticas para al#m do campo das artes

    pl(sticas

     A refle-ão sobre a sua obra* mais do que ao domínio específico das artes pl(sticas*

    pertencer( ao campo vasto da est#tica* lugar das motivaç'es e* simultaneamente* das

    consequ0ncias da pr(tica artística Dado o conte-to desta colecção* não quero dei-ar dereferir que a pr5pria nature+a da arquitectura* motivada pela est#tica mas tamb#m pela

    utilidade* pode não ser alheia . ideia duchampiana de fa$er obras que não se&am 'de

    arte' * no seu afastamento estrat#gico de vis'es puramente esteti+antes " esta impure$a

    da arquitectura enquanto forma de arte* no sentido que tradicionalmente se atribui . arte

    no afastamento de qualquer funcionalidade* que torna pertinente* neste conte-to* esta

    refle-ão

     Ao apro-imar arte da utilidade* na evid0ncia que em arquitectura a dicotomia não

    e-iste* prova1se a falta de rigor da distinção entre forma e função %m arquitectura* na

    relação do processo de pro2ectar com o programa do pro2ecto* o pensamento conceptivo

    não pode ser alheio a uma l5gica* na evid0ncia e inevitabilidade da arte como coisa

    mental %ste livro situa1se na procura do que consistir(* em arte* a ideia de intelig0ncia

    &a (asa da bomba de ar+im* )?@;1)?@$* a

    simulação da destruição parcial de uma parte da casa pela e-plosão imagin(ria de uma

    bomba influenciou todo o processo pro2ectual A casa foi desenhada como um cubo no

    qual a e-plosão de uma bomba imagin(ria numa das suas arestas* tivesse provocado a

    sua destruição parcial* tendo como consequ0ncia aumentado a sua comple-idade

    compositiva

     A austeridade geom#trica do cubo como ponto de partida poder( sugerir* por

    acentuação* a relação com a ideia da pure+a racional do modernismo para* pela

    e-plosão* estabelecer relaç'es mais comple-as e com contornos menos evidentes

    &este sentido* esta obra de

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    cumpre* numa relação po#tica entre forma e função em composição coerente entre o

    que ser( a habitação e o acto de habitar

    6ma casa* como qualquer ideia* # todo o seu campo de possibilidades

    Se os par,metros da arquitectura orientam o processo pro2ectual !e tamb#m a intuição

    das suas qualidades$ as qualidades na arquitectura são todo um devir na infinita

    criatividade do uso* da Cist5ria* dos acontecimentos* do tempo* da evolução dos 2uí+os*

    das afectividades e das indiferenças" nesta perspectiva* em que qualquer coisa nunca e-iste num sentido estrito* que ser(

    tamb#m pertinente a obra de Duchamp* onde a arte se define no despoletar de um

    campo de possibilidades* provavelmente para nele encontrar a sua definição mais

    rigorosa

     A relação que a arquitectura estabelece com a utilidade # evidente* mas que utilidade

    tem a obra de arte Duchamp mostra1nos o esplendor pl(stico da inutilidade* em formas

    de utili+ar a intelig0ncia cu2a sofisticação # ma-imi+ada ao ponto de não ser possível

    qualquer ponte com o pragmatismo racional que possa permitir a ligação com o útil

    Simultaneamente* ultrapassando quaisquer ideias preconcebidas do que ser( uma

    obra de arte e defendendo a arte das suas definiç'es* revela a sua utilidade na procura

    das ess0ncias do conhecimento Ealve+ por isso Duchamp definisse o artista como

    aquele que* do labirinto* procura o caminho at uma clareira

    Mas* como ele di+ia* il n/ a pas de solution, parce quil n/ a pas de probl0me Assim*

    a arte revela1se como uma forma bi+arra de intelig0ncia* abalando quaisquer certe+as do

    conhecimento e duvidando* parado-almente* da pr5pria validade da interrogação* ao

    ousar procurar as suas ess0ncias

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    i

    ser um indivíduo segundo Marcel Duchamp

    «1or e2emplo, as viagens interplanet3rias parecem ser um dos passos pioneiros na viado chamado 4progresso científico5 e no entanto, numa %ltima an3lise, não são mais do

    que um aumento do territ6rio posto 7 disposi)ão do homem. Eu não posso dei2ar de

    considerar isto como uma simples variante do 8"9E:;" " palavra 'cren)a' um erro tambm. como a palavra '&ulgamento'.

    =ão dados terríveis sobre os quais o mundo est3 baseado. Espero que, na

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    Juando Kertrude Stein escreve a rose is a rose is a rose* o sentimento que transmite

    # semelhante . imagem dada por Lellini em @ulieta dos espíritos onde saber1se que uma

    maçã # uma maçã # o supremo limiar da sabedoria Juando uma rosa # uma rosa # uma

    rosa* não se sublinha o seu car(cter de coisa em si mas a sua indestrutível banalidade

    Juando falamos de potencialidades simb5licas das coisas banais não # no sentido emque a imagem de um coração pode pretender sugerir o amor* o branco a virgindade ou

    uma foice e um martelo a glorificação do trabalho O car(cter simb5lico da banalidade*

    sendo fruto dessa sua enorme solubilidade* não reside na substituição de uma ideia por

    outra " na solubilidade do banal na realidade* de que a indiferença # uma prova* que se

    potencia o seu car(cter simb5lico

    % aqui a indiferença não dever( ser entendida como sendo algo de an(logo . pura

    distracção A indiferença pode ser uma atitude* não uma não atitude A indiferença

    enquanto atitude* consiste em não procurar encontrar uma relação imediata entre o que

    se percepciona e os dados que o c#rebro cont#m

    %* na consci0ncia de que os pr5prios conceitos* enquanto condicionadores dapercepção* poderão produ+ir uma imagem fragmentada da realidade e at# tornarem1se

    preconceitos face . comple-idade da realidade perceptível* a indiferença poder( ser uma

    forma de potenciar a maior permeabilidade da intelig0ncia a todos os estímulos

    sensoriais

     A indiferença pode ser uma forma de manifestação da intelig0ncia por permitir

    preservar a realidade e a veracidade das coisas* sem procurar encontrar substitutos

    pretensamente e-plicativos nos dados que* . priori* o c#rebro possua

    O banal como entidade simb5lica ultrapassa o universo dos conceitos e o pr5prio

    universo das ideias Assim* mais do que uma simb5lica da sub2ectividade* apro-ima1se

    de uma simb5lica da ob2ectividade no seu sentido mais lato&a impossibilidade de uma real e-peri0ncia da ob2ectividade na incontorn(vel relação*

    sempre e fatalmente sub2ectiva* que temos com as coisas* s5 pelo simb5lico poderíamos

    aceder a uma relação com a ob2ectividade

    O banal e-iste Simplesmente e-istir # comungar da ilimitada e indelimit(vel e-ist0ncia

    das coisas que são A simb5lica do banal # o parado-o de apenas e-istir e* ao mesmo

    tempo* desculpem o intencional pleonasmo* comungar de uma absoluta universalidade*

    pois são atenuados os factores sub2ectivos nos quais a realidade se relativi+a

    Juando Duchamp escreve7 il n/ a pas de solution, parce quAl n/ a pas de probl0me *

    ultrapassa o campo da realidade enquanto ob2ecto de refle-ão sub2ectiva e sugere1a

    enquanto e-istir inquestion(vel

     A problemati+ação da realidade pertence ao domínio dos artifícios sub2ectivos cu2as

    pretens'es perdem o sentido na pura ob2ectividade

     A sua obra* sendo uma refle-ão particular sobre o que # ser um indivíduo,  não

    consiste na formulação de 2uí+os racionais ou racionali+adores e* como veremos o que

    chamamos racionalidade não # mais do que uma componente do e-istir

    O sentido filos5fico do seu trabalho evidencia1se mais na intuição do que na ra+ão

    /ossivelmente pela sua consci0ncia dos limites da ra+ão ou pela crença de que a

    realidade do que # e-istir s5 se poder( conhecer pela intuição

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 8 | 107

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    Desta forma* a intuição # um precioso instrumento do conhecimento* admitindo que a

    ra+ão não passa de uma construção paralela . realidade e que s5 atrav#s da intuição se

    conquista empatia com o real

     A enorme e insaci(vel capacidade de artifício # o que fa+ do Comem* Comem e odistingue dos outros animais Assim podemos tradu+ir a din,mica de 'ser um indivíduo'

    na relação entre a habilidade e o habitat* na habitação e na habituação

    Duchamp concebia o artista como fa+edor@  &esse sentido* podemos considerar a

    habilidade como sendo essa grande capacidade de artifício* de reordenar* de recompor

    os dados que o habitat fornece para outras entidades

    /or isso* a criatividade não tem o sentido da criação da absoluta novidade* mas sim

    da reorgani+ação de elementos para outros significantes O que se fa+ ao fa+er arte #*

    mais do que criar novas coisas* criar novos significantes A novidade em arte* mais do

    que a criação de novas e-ist0ncias* consiste na criação de novas formulaç'es

    :oncebendo o tempo como sucessão de eventos e sucessão de eventos como a

    derivação de estado para estado* Alfred &orth 8hitehead escreveu7

    «"rist6teles concebeu a 'matria' como pura potencialidade que aguarda a chegada

    da forma para se tornar actual. 1or isso, utili$ando as no)Bes aristotlicas, podemos

    di$er que a limita)ão da pura potencialidade, estabelecida pelas ob&ectiva)Bes do

     passado estabelecido, e2prime a 'potencialidade natural' - ou a potencialidade da

    nature$a - que a matria com a base da forma inicial reali$ada, pressuposta como a

     primeira fase na auto-cria)ão da situa)ão presente. " no)ão de 'pura potencialidade'toma aqui o lugar da 'matria' de "rist6teles e a 'potencialidade natural' a 'matria'

    com aquela imposi)ão de forma dada, a partir da qual emerge cada coisa actual.C 

     A mat#ria1prima da arte são os dados que o habitat fornece

    Sendo o Comem Comem* na constante relação entre a habilidade e o habitat* o

    habitat # inevitavelmente produto do artifício* e-iste na medida da nossa percepção*

    física e conceptualmente /ara o indivíduo as coisas são como se concebem ser7 uma

    torneira que p3ra de verter quando não a escutamos ? %* para Duchamp a arte tem

    sempre uma componente read4made de pr#1fabricação* de que a pr5pria pintura* usando

    os tubos de tinta pr#1fabricados pode ser um e-emplo prosaico

    %* ao mesmo tempo* sendo a pintura coisa mental * o pr5prio 2ogo conceptual # 2( um

     2ogo de read4mades* não físicos* mas mentais

    «Estou sentado com um fil6sofo no &ardimD ele di$ repetidamente 4Eu sei que aquilo

    uma 3rvore5, apontando para uma 3rvore perto de n6s. #utra pessoa chega e ouve

    isto e eu digo-lhe 4Este tipo não doido. Estamos a filosofar'.)

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 9 | 107

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    &a criação* a mente # a criadora e a  pura potencialidade* assim sendo*

    simultaneamente* o artifício e a matria. % quando a cria)ão passa a ser   o  criado, a

    acção de criar transforma1se em renovada pura potencialidade, na medida em que o que

    # criado pode ser encarado como parte integrante da mat#ria1prima para novas criaç'es

    %ncarando a arte como uma particular manifestação da relação com o habitat* a arte #

    produto da habitação* da din,mica da habitação Cabitar # ser1se ao relacionar1se " a

    din,mica da fruição do habitat e da arte* enquanto forma de comunicação* que tradu+

    essa relação sub2ectiva A arte # o acto sub2ectivo de tornar imagem a habitação

    Ser1se ao relacionar1se com o habitat # tamb#m ser1se ao relacionar1se com os outros

    e* desta forma* na arte* a est#tica tem uma dimensão #tica incontorn(vel

    % a habituação* ao atenuar a novidade e a surpresa na relação com os dados do

    habitat* como que fa+endo do habitat artificial uma nova nature+a* fa+ encar(1lo como se

    natural fosse* no sentimento de uma empatia que* sendo adquirida* parece instintiva

     A habituação ao artifício de uma cidade* por e-emplo* confere1lhe a qualidade depaisagem como se fosse natural

     A relação com o artifício* o reconhecimento do artifício enquanto tal* implica sempre o

    sentimento de surpresa % o h(bito* gerando a indiferença* transforma a relação com o

    artifício no sentimento de uma relação com o natural % o natural* pela sua pr5pria

    definição* # o primitivo* no sentido do pr#1artifício % assim* encarando o artificial como

    se fosse natural* o empírico surge no sentimento de que não # fruto da e-peri0ncia mas

    sim do instinto

    &o que di+ respeito aos artifícios e especificamente ao que chamamos arte* a

    habituação* se por um lado lhes atenua as potencialidades est#ticas enquanto estímulo

    est#tico* em processos onde por repetição e habituação a est#tica deriva num mero vícioou em fen5menos de gosto* por outro* devolvendo a surpresa do artifício . informalidade

    paisagística do habitat* a habituação enriquece o conte-to para a criação de novos

    estímulos

    %ncarando a arte como produto da insaciabilidade no sentido em que contraria o

    h(bito e* a consequente naturali$a)ão do artifício* ela contraria a naturali$a)ão do !eito

    atrav#s renovado artifício do fa+er O facto de* pela habituação* os seus produtos

    perderem a efic(cia interventiva* pode ser factor da criação de novas imagens e de

    novos estímulos que mantenham viva a relação est#tica com as coisas

     A sugestão que Duchamp fe+ da possibilidade de utili+ar um 3embrant como t(bua de

    passar a ferro* para al#m de ser uma ideia que o apro-ima do niilismo corrosivo dos

    Dada* poder( resultar da evocação de* por habituação* as obras de arte se diluírem no

    habitat* onde podem ser lidas ao mesmo nível que os utensílios vulgares banali+ando1se

    por habituação

    /or outro lado* nos seus read4mades* ao escolher simplesmente um ob2ecto banal e*

    pela escolha* torn(1lo obra de arte* Duchamp resgata os utensílios da banalidade

    utilit(ria potenciando as suas capacidades est#ticas

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 10 | 107

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     Aqui as potencialidades est#ticas dos ob2ectos não residem nas suas qualidades

    formais mas são estímulo . est#tica como coisa mental* mais do que coisa puramente

    visual* retiniana

    &ão estamos aqui perante qualquer investimento criativo* no sentido formal ou* pelo

    menos* no sentido que o termo formal tradicionalmente assume Mais do que quaisqueraspectos puramente formais* interessaria a Duchamp o car(cter performativo da

    e-posição destes ob2ectos e as reacç'es despoletadas* onde a pr5pria indiferença

    estaria prevista !quando NcriaN o read4made porta-garrafas prev0 que este* como obra de

    arte* se2a confundido com um vulgar porta1garrafas que* originalmente* era e que* de

    facto* #$

     Ao revelar que* nos seus read4mades* orientava a escolha dos ob2ectos pelo seu grau

    de indiferença* clarifica sobretudo a origem banal desses read4mades Ao

    desconte-tuali+(1los colocando1os no conte-to da arte e da hist5ria de arte* o que

    provoca est( nos antípodas da indiferença

    &as e-pectativas* por habituação* do que seria um ob2ecto est#tico* os read4made

    t0m um sentido estrategicamente provocat5rio &o interior da arte minam a passividade

    da habituação e contribuem para clarificar o pr5prio sentido da arte

    &a concepção duchampiana onde o espectador fa$ a obra* os read4mades* sendo

    arte* e-ploram a capacidade de ser essa relação entre o espectador e a obra a provocar

    estímulos est#ticos* mais do que as características físicas dos ob2ectos em si

    /odendo ser entendidos como anti1arte* no sentido em que destroem as convenç'es

    do que seria um ob2ecto artístico* os read4made resultam sobretudo no revitali+ar da

    pr5pria arte* porque não a relacionam com o gosto mas com a sensação :omo refere

    ean Sucquet o PnãoQ de Duchamp não ser( mais do que sombras criadas pelo sol deum 'sim'.))

    %m rigor* at# deveríamos considerar o gosto a verdadeira e absoluta anti-arte,  na

    medida em que uma relação com o ob2ecto artístico pelo mero gosto retira1lhe quaisquer

    potencialidades est#ticas ignorando completamente a sua pr5pria artisticidade

    O fa+er arte #* sempre* instituir uma renovada relação est#tica* inclusive quando a

    atitude artística não # orientada por qualquer intenção predominantemente vanguardista

    ou pela mera procura do novo Sendo a arte potenciadora da sensação # sempre

    renovada a relação com as coisas* ainda que não se2a manifestamente inovada

    %ste sim referido por Sucquet* sim como sol  pelo qual as nega)Bes não passariam de

    sombras* tem este sentido da arte como renovação mais do que inovação =im  que

    surge* sobretudo como preservação da arte enquanto produção de sensação e de

    sentido

     A arte* sendo arte* não busca a satisfação de e-pectativas nem a repetição do que 2(

    foi assimilado e* de alguma forma* tornado in5cuo pelo gosto

    /elo gosto* as imagens poderão perder a sua pr5pria inteligibilidade* numa falsa

    percepção* na passividade absoluta de confundir o que deveria ser uma afectividade

    verdadeira com uma mera aceitação

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 11 | 107

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    ean Sucquet tamb#m di+ que esse aparente não de Duchamp trou2e gl6ria ao seu

    nome Aqui evidencia o facto dos fen5menos de glorificação e de 2ulgamento medi(tico

    tamb#m serem orientados pelo gosto At# porque* se se sobrevalori+a numa obra* a sua

    capacidade de contrariar e-pectativas e o gosto vigente* # porque se mant#m o gosto

    como factor de aferição da sua qualidade ou import,ncia ainda que pela negativa&um 2ulgamento est#tico ideal o gosto não deveria ter lugar* nem pela valori+ação de

    um imagin(rio contr(rio At# porque a palavra gosto  não admite contr(rio ou* se

    acreditarmos que sim* chegaremos . conclusão que o contr(rio de gosto # gosto

    Devemos admitir que a obra de Duchamp # de uma afirmatividade veemente

    Ribertando1se do gosto e instaurando uma atitude renovada perante o ob2ecto est#tico*

    potencialmente liberta do gosto* a relação com a obra de arte potencia leituras

    renovadas para arte do passado e instaura e-pectativas renovadas para a percepção

    das formas que a arte* no futuro* venha a assumir

     Ao fa+er t(bua rasa das convenç'es artísticas* Duchamp retoma* de alguma forma* os

    princípios do Cípias Maior de /latão* que consistiam em desmascarar sistematicamente*na relação com a ideia de =elo* o facto de se tomar por conceito o que não passaria de

    preconceito /latão* pela boca de S5crates* denuncia* pela pr5pria palavra* o sentido

    demag5gico que a palavra pode assumir* distinguindo* assim e em absoluto* PpalavraQ de

    PconceitoQ

    /rodu+indo read4mades* inclassific(veis como arte perante as obras que os

    antecederam* torna evidente que não ser( apenas tendo as obras de arte como padrão

    que encontraremos o conceito de arte

    %m di(logo com um sofista* S5crates rebatia* sucessivamente* que o =elo fosse

    definido pelas características de determinada coisa ou situação

     Ao concluir que a noção de =elo # difícil* S5crates demonstrava que o =elo* podendoser ob2ecto de refle-ão* dificilmente seria ob2ecto de significação 6ma 2ovem bela não

    significa o =elo* uma marmita útil tamb#m não* mas tanto uma 2ovem bela quanto uma

    marmita útil podem ser referidas numa refle-ão sobre o =elo

    «=6crates - #ra, se a e2periência que tenho do nosso homem não falha, quase te

    garanto o que a seguir vai di$er 4Fe&amos meu e2celente amigo, e uma marmita bela,

    não ser3 tambm isso, belo?5GH 

    Duchamp sustenta* como /latão* que a refle-ão sobre a est#tica não poder( ser feita

    tendo como padrão determinadas coisas entendidas como belas

     A refle-ão sobre a est#tica poder( e* em rigor* dever(* transcender a mera mem5ria

    das obras que a buscaram Eranscendendo a mem5ria das obras de arte evidencia1se

    como sendo mais filos5fica que hist5rica

     A hist5ria de arte # feita a partir da mem5ria das obras de arte e* não sendo alheia ao

     2uí+o e . refle-ão sub2ectiva* tem sempre* em relação aos ob2ectos e .s ideias* um

    sentido prioritariamente documental %-istirem obras de arte # condição suficiente para

    e-istir hist5ria de arte

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 12 | 107

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    %m rigor* poderemos di+er que a refle-ão est#tica* podendo ter como ob2ecto as obras

    de arte não # dependente da sua e-ist0ncia At# poderíamos admitir a e-ist0ncia de uma

    refle-ão est#tica num mundo sem obras de arte* num mundo onde a e-peri0ncia est#tica

    consistisse na contemplação e refle-ão ou* simplesmente* na pura contemplação

     A refle-ão est#tica tem como principal campo as motivaç'es das obras de arte sem tercom elas uma relação aposteriorística % at# poderemos considerar as obras de arte um

    aspecto particular da refle-ão est#tica que ultrapassa o domínio do puramente mental

    para se manifestar no fa$er 

     A possibilidade de estabelecer afinidades entre o Cípias Maior e os read4made

    permite apro-imar Duchamp da filosofia enquanto refle-ão est#tica para al#m da

    e-ist0ncia de obras de arte ou da hist5ria da arte

    Se tanto uma bela 2ovem como uma vulgar panela podem ser* no Iípias 8aior *

    referidas numa refle-ão sobre o =elo* porque não poderão um porta1garrafas* um cabide

    ou um urinol* serem referidos como obras de arte ou como frutos ou catalisadores darefle-ão est#tica

    «=er3 que podemos fa$er obras que não se&am 'de arte'?GJ

     Ao questionar a possibilidade de fa+er obras que não se2am de arte* tendo em conta a

    apar0ncia de não artisticidade dos seus read4mades e para al#m de outras refle-'es que

    a ambiguidade da questão pode sugerir* Duchamp pode estar a manifestar a intenção de

    fa+er obras que não se2am de arte

    &esta interrogação # possível ler a intenção de preservar a ideia de arte das pr5prias

    obras de arte defendendo o sentido da arte enquanto refle-ão est#tica* para al#m dae-ist0ncia da Cist5ria da Arte ou de obras de arte A ideia de arte encontra o seu sentido

    na relação directa com a vida e com as coisas

    % assim* mais do que a criação de ob2ectos relacionados ou relacion(veis com a

    pr(tica artística e com a hist5ria de arte* Duchamp fa+ coincidir a refle-ão est#tica com a

    visuali+ação de ser um indivíduo* encontrando uma autonomia que lhe permite apro-imar

    a sua obra . pure+a de uma forma de refle-ão filos5fica

    &a língua portuguesa que estamos a utili+ar para reflectir sobre a sua obra * a

    palavra ser   poder( conter múltiplos sentidos* na pr5pria din,mica que e-iste entre

    palavras e conceitos enquanto invenç'es humanas Mesmo se* como ele* considerarmos

    que o conceito ser  não passa de uma invenção humana

     A palavra ser pode tradu+ir* simultaneamente* verbo e substantivo /odemos di+er

    que o indivíduo enquanto ser # um verbo que # agente da acção Assim a palavra ser

    não tem dois sentidos* de verbo e substantivo* mas sim um* que # produto da

    simultaneidade dos dois

    Sendo ser  verbo e substantivo* um substantivo que # a pr5pria acção* os limites do

    indivíduo diluem1se enquanto coisa e ultrapassam o seu corpo para* atingir

    possivelmente* os limites que ser * enquanto acção* pode abarcar ou conceber

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 13 | 107

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    %ventualmente o corpo ser( o núcleo do serKac)ão ou uma mera representação do

    serKac)ão

    6m indivíduo # muito mais vasto do que o seu corpo % o seu corpo pode assumir a

    função de representação imag#tica do que consiste ser um indivíduo

    6m read4made de )?)F* uma p( para a neve a que chamou 4;n advance of the broLenarm5 * evidencia essa incorporalidade dos contornos do indivíduo

    fig) P;n advance of the broLen arm5, GMG 

    Se em 4;n advance of broLen arm'  uma p( pode ser o prolongamento ou a premonição

    do braço* at# que ponto # que* para al#m do braço se ob2ectivar atrav#s deste seu

    prolongamento* a p(* pela mesma ra+ão* não ser( e-tensão do indivíduo % assim se

    entende como o conceito de introspecção assume o mais rigoroso e absoluto sentido*

    onde a noção de indivíduo !parado-almente porque desindividuali+ado$ inclui todos os

    seus artefactos e artifícios6ma p( podendo ser* para al#m de e-tensão* uma premonição do braço* inverte* de

    certa forma* a relação entre o indivíduo e os seus artefactos* entre criador e ob2ecto

    criado

    Se # verdade que o indivíduo inventa utensílios # sugerido aqui que* por sua ve+* os

    utensílios inventam o indivíduo

     A hist5ria da humanidade # tamb#m a hist5ria dos seus artifícios %ntão* se

    considerarmos que nesta obra uma p(* mais do que a premonição de um braço* # a

    premonição de um bra)o partido* a relação entre indivíduo e artifício assume um sentido

    e uma consequ0ncia que ultrapassa o campo do puramente conceptual para a crua

    ob2ectividade&a relação do indivíduo com o seu corpo !inv5lucro ou identidade$* a ideia de um

    braço partido* pela crua ob2ectuali+ação de um braço* confere . ideia de braço o sentido

    de instrumento como se este fosse um utensílio não menos ob2ectual que qualquer outra

    coisa

    &uma e-trema acuidade da intuição a obra de Duchamp define o que ser( e2istir. Se

    for lida como introspecção* na busca da realidade do que # e2istir * # a introspecção de

    quem tem a consci0ncia que a p( # um prolongamento Pdo braço partidoQ* que todo o

    artifício # e-tensão ou pertença de ser um indivíduo %* sendo e2istir  um verbo* sendo

    e2istir  acção* # dinamicamente e2istir  em constante transformação e ampliação

    Ser um indivíduo assim # ser simultaneamente essa transformação constante* ser1se

    em limites indetermin(veis e* ao mesmo tempo* ser1se enquanto indivíduo distinto dos

    outros onde o pr5prio corpo # uma particular representação física e simb5lica

    O corpo #* simultaneamente* o indivíduo enquanto ser físico ob2ectivo e # imagem do

    indivíduo* enquanto sua representação O corpo enquanto imagem # o que possibilita o

    reconhecimento de uma identidade Eendo em conta a impossibilidade de estabelecer

    limites reais na din,mica de se ser um indivíduo* a imagem do corpo tem essa função

    simb5lica de representar o irrepresent(vel A imagem de um corpo não define um

    indivíduo* representa1o

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 14 | 107

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    Juando falamos com algu#m olhamos para o seu rosto não por considerarmos que

    um indivíduo # o seu rosto mas por vermos no rosto a sua representação simb5lica

    «*..., pergunto-me se podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar

    conhecimento, percep)ão. 1enso antes que o acesso ao rosto , num primeiro plano, tico. Ouando se vê um nari$, os olhos, uma testa, um quei2o e se podem

    descrever, que nos voltamos para outrem como para um ob&ecto. " melhor maneira

    de encontrar outrem nem sequer atentar na cor dos olhos> Ouando se observa a cor

    dos olhos, não se est3 em rela)ão social com outrem. " rela)ão com o rosto pode,

    sem d%vida, ser dominada pela percep)ão, mas o que especificamente rosto o

    que não se redu$ a ele.GP 

    "1se enquanto acção e enquanto imagem da acção que o ser define Sou sendo* na

    din,mica que ser implica e sou* sendo imagem

    Juando Duchamp redige o seu pr5prio epit(fio7 =ão os outros que morrem* revela ofacto de a sua morte ser a morte da sua relação com os outros Se a sua morte* # a

    morte dos outros* # implícito que* para ele* a sua identidade não e-istia no conceito de

    indivíduo no seu sentido estrito

     A sua identidade era o seu e-terior* era o universo das suas relaç'es

    «Não me demorou tempo algum a me dar conta que este nada, este buraco onde uma

    cabe)a deveria ter estado não era uma mera ausência, nenhum mero nada. 1elo

    contr3rio, estava bastante cheio. Era um vasto va$io vastamente preenchido, um nada

    que encontrava espa)o para tudo Q espa)o para relva, 3rvores, distantes montes

    sombrios, e ao longe, sobre eles, picos de neve com muitas nuvens angulosascavalgando no cu a$ul.

    9inha perdido uma cabe)a e ganho um mundo.G 

    ser um individuo segundo marcel duchamp . 15 | 107

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    ii

    o indivíduo enquanto imagem

     Ao longo da obra de Duchamp # recorrente a relação entre o ser acção definido pelos

    actos* o ser imagem definido pela sua imagem sensoria l) e o ser simb5lico* enquantorepresentação ou imagem indutora . invisibilidade da ideia de indivíduo

    O Nu descendent un escalier * uma das primeiras obras emblem(ticas reveladora da

    singularidade do seu percurso* confronta a representação do movimento numa

    dissolução de formas pr5-ima da abstracção pura com as e-pectativas da tradição de

    representação do nu

    &a tradição da pintura um nu correspondia a um g#nero de imagens que obedeciam a

    certas convenç'es* tais como a  paisagem  ou a nature$a morta Mesmo quando

    encarados como ponto de partida para a criação de imagens formalmente inovadoras* o

    nu* a  paisagem  e a nature$a  morta  ainda não tinham sido abalados na sua

    convencionalidade original 6m nu de Matisse # um nu segundo a visão de Matisse e*

    uma paisagem ou uma nature$a morta de :#+anne são uma paisagem ou uma nature$a

    morta segundo a visão de :#+anne :ontudo* mant0m a definição de nu, de  paisagem

    ou de nature$a morta. 6m nu não poderia nunca abandonar o estatismo da pose que

    fa+ia de um nu, um nu e* continuando a assumir1se como um nu* ter o arro2o de descer

    uma escada

    fig9 P&u descendent un escalier n9N* )?)9

    «..., como nas comdias musicais, aquelas enormes escadasGR 

    O Nu que* na sua pose est(tica das representaç'es tradicionais* transcendia a sua

    humanidade elevando1se em atitudes simb5licas* 2( tinha visto ameaçada a sua

    integridade convencional pela #l/mpia de Manet* em que era utili+ada uma conhecida

    prostituta como modelo revelando* escandalosamente* a sua identidade e* mais

    escandalosamente ainda* aquela identidade

    &esta pintura de )?)9* mais do que identificar com esc,ndalo o modelo de um nu*

    abalam1se completamente as convenç'es do pr5prio g#nero /or#m* a mem5ria do nu

    tradicional # parte integrante do Nu descendent un escalier  A imagem do nu tradicional

    est( presente como mem5ria de um estatismo relativamente ao qual o seu movimento se

    opera

    &o nu tradicional o indivíduo era representado enquanto imagem* frequentemente

    aleg5rica ou simb5lica %ssa tradição # quebrada pela representação de uma acção*

    estando implícita não uma e-ist0ncia ideali+ada mas a ob2ectividade de um nu que se

    me-e e que tem a ousadia de descer as escadas* dei-ando a sua conveniente

    inacessibilidade

    :om esta representação Duchamp estabelece uma relação entre a noção de indivíduo

    temporalmente an5nimo e intemporalmente simb5lico do nu tradicional e a ob2ectividade

    de um nu que se revela pelo movimento %m simult,neo dissolve os contornos precisos

    o indivíduo enquanto imagem. 16 | 107

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    da imagem tradicional de um nu na plasticidade do movimento* no sentido em que uma

    imagem enformada d( lugar a uma imagem em constante mutabilidade

    &a surpresa de um nu que desce as escadas o estatismo e intemporalidade do nu

    tradicional  dão lugar . sugestão de um acontecimento Mais do que um nu  Duchamp

    retrata1o enquanto agente de uma acção* como um facto

     A recusa dos cubistas em aceitar e-por esta obra no Salão dos Independentes de

    /aris ou* em último caso* de apenas a aceitarem se fosse mudado o título #*possivelmente* sintoma da manutenção de uma relação pinturaGmodelo onde a pintura se

    revela como sendo uma forma de olhar* valori+ando o investimento na forma de

    representar

    O cubismo instaurou uma nova forma de olhar para as coisas* mas a sua relação

    pinturaGmodelo manteve o sentido da pintura como interpretação mais do que

    intervenção &este sentido o cubismo revelou sobretudo uma relação puramente

    perceptiva com a realidade conferindo . pintura um sentido essencialmente formalista

    Ealve+ os cubistas não vissem nesta obra mais do que uma narratividade aned5tica* .

    qual consideravam ser alheio o sentido mais purista do cubismo Ou* possivelmente*

    numa perspectiva de um cubismo ra$o3vel * como Duchamp ironicamente refere*

    consideraram o Nu descendent un escalier como sendo cubista demais %ventualmente

    porque a sua atitude cubista ultrapassava a pura visualidade para intervir no conceito

    O sucesso medi(tico desta obra quando foi e-posta no "rmor/ =hoS  em &ova Iorque*

    ficou a dever muito . leitura popularmente tentadora como imagem crítica e caricatural

    da arte moderna

     Ao mesmo tempo o Nu descendent un escalier não era uma obra claramente inserível

    na tradição cubista e* se vista pelos olhos do cubismo* deveria ser considerada como

    uma obra demasiado impura O cubismo* no seu sentido mais purista* nunca teve nada a

    ver com qualquer narratividade

    Mesmo obras de /icasso como Tuernica ou !emme pleurant deverão ser encaradas

    não como cubistas* mas como e-pressionistas* utili+ando os aspectos formais do

    cubismo* embora* pelo seu pr5prio car(cter e-pressionista* mantivessem essa

    separação pinturaGmodelo ou* mais precisamente* a separação pintorGmodelo* no sentido

    em que a atitude e-pressionista agudi+a essa separação ao acentuar a autonomia

    sub2ectiva do pintor

    &o =alão dos ;ndependentes de /aris* o cubismo assumiu a sua forma mais purista e

    redutora em personagens como Klei+es e Met+inger* principais opositores . integração

    daquele quadro na e-posição

    :om o Nu descendent un escalier Duchamp* mais do que representar apenas um nu*

    representa1o enquanto acontecimento Aquele nu* ao descer uma escada* # aquele

    facto

     Assim* na relação com a tradição* esta obra # e-tremamente inovadora &uma visão

    idealista da pintura os quadros* quanto muito* serão imagens O movimento deste Nu*

    metaforicamente* anima a hist5ria da pintura Se um nu pode descer umas escadas*

    então uma nature$a morta não poder( apodrecer

    :om uma intervenção implícita na tradição esta pintura inaugura o que se tornaria

    uma constante no percurso de Duchamp que # a arte enquanto atitude como acto

    performativo

    o indivíduo enquanto imagem. 17 | 107

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    &ão podemos atribuir a esta obra um sentido de pura ruptura com a tradição* sendo

    tamb#m significativa* e cremos que at# agora ainda não devidamente valori+ada* a

    revelação que Duchamp fa+ a Alfred =arr )T da possível analogia que estava consciente

    de e-istir com a obra 9he golden stairs de %dUard =urne1ones

    fig; PEhe golden stairsP* %dUard =urne1ones )T?T

    %m 9he golden stairs* =urne1ones representa mulheres que descem uma escadaria

    6m con2unto de figuras com a serenidade típica da pintura /r#1rafaelita que preenchem a

    totalidade dos degraus

     Ao contr(rio de Duchamp* =urne1ones não representa o movimento de um corpo ao

    longo das escadas 3eforça a ideia de escadas* que e-istem para subir ou descer* pela

    sucessão repetitiva das mulheres ao longo dos seus degraus

    Sendo a sugestão de movimento alheia . imutabilidade simb5lica do espírito da

    pintura /r#1rafaelita* =urne1ones nunca representaria um corpo em movimento* fi-ando

    e eterni+ando com a imagem de cada mulher ao longo da escada o que no movimento

    de um corpo não passaria de um instante &a pintura /r#1rafaelita* no seu afastamento

    intencional da temporalidade* o instante não tem lugar

    %m 9he golden stairs* na aus0ncia de tempo* a representação das mulheres suavi+a

    quaisquer diferenças fision5micas como se fosse uma s5 sem que e-ista antes e depois

     Assim* a simultaneidade dos tempos tradu+ a ideia de escada para al#m de qualquer

    temporalidade ef#mera

    Se tamb#m encararmos* como a declaração de Duchamp indicia* o Nu descendent un

    escalier como uma eventual versão de 9he golden stairs* podem fa+er1se outras leituras

    da obra

    /ara al#m de ser imagem que representa e se apresenta como um acontecimento

    temporal* o  Nu descendent un escalier   como  versão de 9he golden stairs  adquire

    simultaneamente a capacidade de criar uma nova iconografia para a imagem simbolista

    !facto que a racionalidade pode considerar contradit5rio$ O corpo em movimento* ou

    melhor* a imagem do pr5prio movimento do corpo* adquire uma unidade simb5lica O

    que* temporalmente* seria uma sucessão de imagens encontra1se representado como

    sendo uma s5 coisa e uma s5 ideia

    %sta relação entre o ser simb5lico e o serGacção torna1se evidente na sua obra

  • 8/18/2019 Ser Um Individuo

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    &esta obra* Duchamp confronta a perenidade simb5lica da ideia de um rei e uma

    rainha com a representação do movimento dos 'nus r3pidos' 

    «Estou prestes a tornar-me um maníaco do 2adre$. 9udo 7 minha volta toma a forma

    do :ei e da :ainha, e o mundo e2terior não tem qualquer outro interesse para mim

    que não se&a a sua transforma)ão em posi)Bes ganhadoras ou perdedoras.GM

    :onfrontadas com a velocidade e a e-ist0ncia não meramente conceptual dos nus

    r3pidos* que mais do que ideia são a ob2ectividade dos acontecimentos e da acção* as

    imagens de um rei e de uma rainha ficam fragili+adas na sua perenidade simb5lica* face

    ao que ser( concreto* porque activo

    /or contraste* o informalismo dos nus clarifica a nitide+ iconogr(fica da ideia de um rei

    e de uma rainha que* embora dissolvidos pela acção dos nus* estão presentes como

    conceito

    :omo salienta 3obert Rebel* quem # sensível . sua simb5lica dificilmente considerar(

    meramente acidental o facto de Duchamp ter pintado

  • 8/18/2019 Ser Um Individuo

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     A intuição que a nature+a e-iste para al#m de todo o mundo artificial como origem

    primeira de todo o artifício* confere credibilidade a saber1se qualquer coisa O sentimento

    que o artifício tem a sua origem na nature+a* garante1lhe uma e-ist0ncia real* não como

    prova de verdade mas como fundamentado numa verdade natural

    fig 1 Marcel Duchamp e =ron2a /erlmutter como Adão e %va* :in#sVetch* 3en# :lair*)?9B

    De alguma forma podemos relacionar esta ideia com o sentimento rom,ntico que o

    universo obra das nossas almas9; % a noção de alma remete ao ser pr#1artifício* ao

    ser imanente* imut(vel* intemporal % # tão verdade que tudo # produto do artifício

    quanto* na intuição de uma origem ancestral* no limite tudo # produto do natural

    :ontudo* . sua mem5ria s5 # possível aludir atrav#s de representaç'es como Adão e

    %va

     Ao mesmo tempo Duchamp denuncia o artifício desta imagem de Adão e %va*

    caracteri+ando este Adão com as feiç'es do Dr Dumouchel* amigo da sua família Ao

    denunciar a falsidade desta imagem* parado-almente* permite que o símbolo permaneça

    inc5lume &esta tela* assim como quando Duchamp aparece como Adão no filme

    :in#sVetch de 3en# :lair* # como se nos dissesse7 estes não são Adão e %va* são uma

    representação possível

    %m @eune homme triste dans un train* de )?)), . informalidade abstracti+ante do

    movimento e dos movimentos* associa o ad2ectivo triste como sentimento que persiste

    at# na dissolução física que a imagem sugere &a dissolução das imagens persiste a

    sensação

    fig@ Peune homme triste dans un trainP* )?))

    «*..., &3 não olhamos o quadro, vemo-loD vemo-lo como se o olh3ssemosD o olhar fe$-

    se visão ao dissipar-se.

     "gora, a visão &3 não tem que tomar por emprstimo o olhar *e muitas ve$es o olhar

    de um personagem representado o seu poder de reenvioD mas por toda a parte do

    quadro o movimento das formas 'reenvia' para alguma coisa ausente, alguma coisa

    de não-representado. *... # visualmente irrepresent3vel age directamente sobre o

    mundo interior.HP

    @eune homme triste dans un train # a representação da mobilidade dentro de um

    espaço m5vel relativa a um espectador que* possivelmente* tamb#m # m5vel O

    movimento dissolve as formas dos indivíduos e dos pr5prios espaços* revelando a

    relatividade da sua percepção e destruindo em absoluto as suas coordenadas

    Metaforicamente* pelo movimento* dissolvem1se não s5 os indivíduos como os seus

    lugares* tornando evidente a convencionalidade dos referentes %sta impossibilidade da

    percepção na relatividade dos movimentos dissolve a crença de uma e-ist0ncia absoluta

     A e-ist0ncia do &ovem triste !# significativa esta identificação como 2ovem triste e não

    s5 indivíduo triste ou pessoa triste* particulari+ação subtil do que se apresenta

    inidentific(vel$ # sobretudo provada por ele estar triste :omo tudo o que e-iste* prova1se

    em diferido

    o indivíduo enquanto imagem. 20 | 107

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     < semelhança do  penso, logo e2isto  de Descartes onde* no limite e

    irremediavelmente* s5 se encontra uma apro-imação a uma prova de e-ist0ncia não na

    ess0ncia da e-ist0ncia mas num dos seus efeitos* poderemos tamb#m di+er em relação

    a este &ovem triste que7 est( triste* logo e-iste

    O que sobrar( do sentimento* pertença da sub2ectividade e e-ist0ncia desta

    personagem imagin(ria* ser( a sensação* sua face perceptível % triste* sendo ad2ectivo*

    ser( sobretudo do domínio de um suposto espectador que* ao qualificar o  &ovem,qualifica a imagem desse sentimento logo* a sua pr5pria sensação

     Assim* tal como o Nu descendent un escalier, @eune homme triste dans un train # o

    oposto da atitude vitalista dos futuristas* do dinamismo a que =occioni chamou

    transcendentalismo físico onde todos os ob2ectos tendem para o infinito de acordo com

    as suas linhas de força

    &os futuristas* este transcendentalismo físico era sobretudo fruto de uma relação de

    empatia com a realidade Einha origem como imagem de um encontro psicol5gico com a

    realidade perceptiva* conferindo1se vitalidade .s coisas como pro2ecção do pr5prio

    indivíduo enquanto ser animado* como pro2ecção da anima do artista

    &a relação perceptiva com a realidade a sugestão do movimento* nas representaç'es

    futuristas* era fruto da e-pressão dessa relação O futurismo era sobretudo uma forma

    de e-pressão Ligurativista no sentido em que figura o movimento* ainda que atrav#s das

    linhas de força do transcendentalismo físico

    %stas duas obras de Duchamp* mais do que representarem o movimento pelo

    dinamismo* utili+am1no enquanto imagem de uma relação desconstrutiva com as coisas

    %vocam o movimento para agir como processos de desconstrução dos contornos das

    imagens das coisas e* inclusive* das pr5prias coisas

     Assim sugere a dissolução da noção de formaGfundo* figuraGconte-to e* agindo sobre

    as imagens* fa+ intuir a pr5pria dissolução dos conceitos

    /ossivelmente foi este processo que o levou a fa+er uma segunda versão do Nu

    descendent un escalier,  onde desapareceram as formas que nitidamente

    corresponderiam ao nu ou* nitidamente* corresponderiam .s escadas

     Ao permanecer a sensação de um nu descendo as escadas* mesmo na aus0ncia das

    imagens identificadoras do nu e das escadas* transmite o sentimento que* e-istindo a

    ideia de nu e a ideia de escadas* e-iste tamb#m uma outra ideia que # o Nu descendo

    as escadas.

     Assim* enquanto imagem para o espectador* ou melhor* enquanto imagem no

    espectador* pela nitide+ e tactilidade das suas formas coisifica a imaterialidade de um

    movimento A percepção da imagem desta obra situa1se entre o visual e o t(ctil* ou

    melhor* no limite onde a visão se torna t(ctil

    «!alaremos de 'haptico' sempre que não ha&a mais subordina)ão estreita num

    sentido ou noutro !subordinação do tacto . visão* ou da visão ao tacto$, ou rela)ão

    imprecisa ou cone2ão virtual, mas quando a visão, ela mesma, descobrir em si uma

    fun)ão de tocar que lhe pr6pria, e que s6 a ela pertence, distinta da sua fun)ão

    6ptica.H 

    Sendo haptica a relação perceptiva do espectador com a imagem do Nu descendent

    un escalier  # reforçado o sentimento da sua e-ist0ncia física real &ão de qualquer

    o indivíduo enquanto imagem. 21 | 107

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    referente do qual a obra se2a representação* mas de uma real e-ist0ncia física da

    imagem da obra enquanto coisa

     A sua tactilidade  imag#tica* onde a imagem do movimento # representação material*

    pr5-ima da imagem escult5rica* reforça a sensação da e-ist0ncia ob2ectiva deste todo

    que # o Nu descendent un escalier. Isto permite* inclusivamente* a possibilidade empírica

    da percepção deste acontecimento como uma coisa una* o que reforça o sentimento de

    a ideia nu descendo as escadas poder ser tão indivisível quanto a ideia de nu ou a ideiade escadas

    &ão podemos di+er que* ao contr(rio do nu e das escadas* nu descendo as escadas

    se2a apenas uma ideia composta* pois tanto nu quanto escadas* quanto nu descendo as

    escadas poderão ser igualmente ideias compostas e unas

    Killes Deleu+e em

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    o visível nem pretende inventar novas formas de o representar A pintura* aqui* # forma

    de intervenção no pr5prio domínio do conceptual* Xvonne e Madeleine passam a e-istir

    para al#m do instante do olhar* passam a ser na totalidade dos momentos

    %sta desconstrução tem um sentido construtivo* ou melhor* # pela desconstrução que

    Duchamp se apro-ima de uma unidade conceptual

    Se nas coisas e-istem ideias que persistem independentemente das suas situaç'es

    espaciais ou temporais* não ser( qualquer imagem moment,nea que as coisasassumam a imagem da sua identidade

    /or e-emplo* um dos aspectos mais sedutores da fotografia reside em transformar o

    instante em coisa* em transformar o instante numa e-ist0ncia aut5noma Mas* se

    considerarmos a imagem de um indivíduo numa fotografia* essa imagem instant,nea

    pouco tem a ver com o indivíduo em toda a sua identidade A imagem de cada instante

    assume um sentido único* de tal modo que seria concebível* tendo como refer0ncia a

    fotografia no reconhecimento de uma identidade* que poderíamos encontrar tantas

    identidades do indivíduo quantos instant,neos fotogr(ficos fossem feitos

     A captação da imagem de um instante cria* a partir do indivíduo fotografado* uma

    nova e-ist0ncia Mas # uma e-ist0ncia que se liberta do indivíduo* referente inicial da

    imagem fotogr(fica* para o sentido de uma universalidade iconogr(fica

    %m Uvonne et 8adeleine dechiquetes* na simultaneidade dos v(rios rostos

    figurados* a identidade de Xvonne ou a identidade de Madeleine não são figuradas pela

    imagem de cada rosto Seremos condu+idos . e-ist0ncia das suas identidades

    sobretudo pelo sentimento da sua aus0ncia* como e-istindo para al#m de qualquer

    representação

    &a constatação que a imagem de cada rosto não representa uma identidade* fica

    clarificado o sentimento que uma identidade não tem imagem e que* ao ser tradu+ida

    pelas imagens* ser( atrav#s do espaço significante que as imagens produ+em

    Duchamp disse ter colocado uma moldura na obra @eune homme triste dans un train

    para enquadrar o quadro* para o pYr na sua escala /ode parecer parado-al esta

    vontade de ob2ectuali+ar uma obra que tende para a dissolução das formas pela

    desconstrução* mas mais não # do que a coe-ist0ncia do informalismo do devir com o

    sentido uno e simb5lico do destino Assim o informal # agente de uma nova unidade

    conceptual e* mesmo* de um novo ícone

    &as suas obras e* de uma forma mais evidente* nos seus 2ogos de linguagem* parece

    apro-imar1se do delírio de 3a4mond 3oussel cu2as narrativas e-plodem em

    desenfreadas associaç'es de ideias

    Mas o aparente delírio de Duchamp* vai ganhando outros contornos numa leitura mais

    atenta* sobretudo quando considerado o todo da sua obra* parado-almente plural e una

    Juando manifesta a intenção de chercher les mots primes9@ como se fosse possível

    procurar no dicion(rio as palavras s5 divisíveis por elas mesmas ou pela unidade* prop'e

    artificiosamente uma esp#cie de processo inverso . intermin(vel associação de ideias

    que as suas obras e os seus 2ogos de linguagem parecem propor A pr5pria possibilidade

    de dividir as palavras pela unidade* para al#m de ser manifestação do seu particular

    sentido de humor onde a hiper1racionalidade # estrat#gia de ironia* sugere a

    possibilidade de e-istir de facto uma unidade primordial* origem de todas as palavras

    o indivíduo enquanto imagem. 23 | 107

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    %sta unidade como e-ist0ncia antes de qualquer palavra* que ainda não ser( palavra

    mas a mat#ria original da qual as palavras serão feitas

     A pr5pria presença de refer0ncias ao /ecado Original # desconcertante para quem

    procurar redu+ir a sua obra ao conte-to das estrat#gias dadaístas De certa forma a

    aparente procura do novo na dissolução dos constrangimentos da pura racionalidade

    talve+ se2a aqui sobretudo a intuição do velho* tão velho que dele 2( não haver(

    mem5ria A dissolução dos significados* e a consequente dissolução dos tempos e dos espaços

    talve+ se2a a única forma de aceder a uma essencialidade ancestral

    % o seu @eune homme triste dans un train* v0 dissolvidas as suas coordenadas ao

    mover1se num comboio em movimento >olatili+a1se* a solide+ do seu corpo d( lugar .

    informalidade pura* imagem fantasma de um corpo dissolvido* ou antes um corpo

    tornado espírito* que se dissolve para manifestar a sua condição de alma Mas esta

    informalidade # emoldurada* ob2ectivada* na afirmação unit(ria de uma identidade &a

    afirmação da arte que ultrapasse a mera condição retiniana vemos aqui materiali+ada a

    imaterialidade da ideia* e* na intencionalidade de uma moldura como parte do 2ogo

    conceptual* mais do que representada pela imagem* a ideia # mostrada como facto*

    como coisa

     Aqui a arte não se limita a tornar visíveis as ideias* apresenta1as com a actualidade* a

    presença* dos factos* apresenta1as com a materialidade das coisas A obra de arte não

    se limita a representar a realidade* a interpret(1la em imagens7 acrescenta1se a ela

     A busca de unidade iconogr(fica em @eune homme triste dans un train não deve ser

    alheia . coincid0ncia intencional do som Tr  em tr iste e tr ain* deslocando a e-clusividade

    da palavra triste como ad2ectivadora do 2ovem* para a descoberta de uma sonoridade

    comum

     Assim atenua1se o sub2ectivismo de triste pelo distanciamento criado no go+o da sua

    sonoridade Subtilmente* sub2ectiva1se train e o som 9r  surge como sonoridade maquinal

    que unifica a obra como se o figurado fosse o 9r  que # comum a 9riste e a 9rain.

    Desta forma* no sentimento que uma composição # a criação de uma nova unidade*

    são minimi+adas quaisquer possibilidades de presença demasiado hegem5nica de

    qualquer elemento compositivo

    O simples facto de as duas palavras terem em comum o som tr catalisa

    contaminaç'es conceptuais entre triste  e train  que assinalam a efic(cia da utili+ação

    superficial do humor O humor # um factor de valori+ação do todo que lhe confere uma

    globalidade arom3tica* sensitiva* que dissolve quaisquer distinç'es conceptuais

    «# '@eune homme triste dans un train' &3 mostra a minha inten)ão de introdu$ir o

    humor na pintura ou, em todo o caso, o humor nos &ogos de palavras 'triste', 'train'.

    (reio que "pollinaire chamou 7 pintura '8elancolia num comboio'. # &ovem est3 triste

     porque h3 um comboio que vem depois. # 'tr' muito importante.9T

    O que se figura # o novo significante criado pelo 2ogo entre as ideias que comp'em o

     2ovem rapa+* triste* num comboio

    «- # ' @eune homme triste dans un train' era você?

    o indivíduo enquanto imagem. 24 | 107

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    1 =im, era autobiogr3fico uma viagem que tinha feito de 1aris a :uão, s6, num

    compartimento. # cachimbo servia para indicar a minha identidade.9?

     A e-pressão de uma intenção autobiogr(fica tem um efeito deris5rio sobre a ideia de

    autobiografia Ao atenuar* pelo distanciamento* qualquer sentido sub2ectivista na obra e*

    ao mesmo tempo* ao classific(1la assim* a ideia de autobiografia situa1se no

    distanciamento mais niilistaDuchamp fa+ a sua autobiografia como se fosse um distraído  espectador de si

    mesmo* referindo1se indiferentemente* na terceira pessoa* . sua pr5pria personagem

     Assim* como aquele  &ovem rapa$, triste, num comboio* liberta1se de uma identidade

    sub2ectiva para comungar* pela indiferença* da banalidade das coisas banais A ideia de

    autobiografia passa a poder não ser mais do que uma particulari+ação artificial do

    universo imenso da banalidade

    %sta ideia que uma figura representada em pintura tamb#m # uma personagem !o que

    # perfeitamente coerente com a sua relação não pict5rica com a pintura* ou melhor* com

    a sua abordagem da pintura atrav#s das potencialidades conceptuais para al#m de

    qualquer formalismo estrito$* ganha uma e-trema evid0ncia em

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    uma reprodução de rase inci e a produ+ida por Duchamp

    o indivíduo enquanto imagem. 26 | 107

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    iii

    a noção de plasticidade

     Ao recusar qualquer atitude puramente retiniana na concepção da obra de arte

    Duchamp não recusa a plasticidade na arte* clarifica a pr5pria noção de plasticidade Aplasticidade não # algo de puramente visual Se a definirmos como pr5-ima da noção de

    significante* plasticidade # o que est( por significar* # a perman0ncia da não significação

    Cenri Matisse procurava a plasticidade ao contrariar uma percepção significadora

    puramente obediente . representação As coisas não eram representadas mas

    funcionavam como estímulos para a composição Matisse aparentava pintar como se

    não conhecesse Sobre as suas pinturas Duchamp escreveu7

    «"s personagens e as 3rvores eram indicadas por linhas espessas, compondo o

    arabesco apropriado aos planos coloridos. # con&unto criava uma nova paisagem na

    qual a composi)ão ob&ectiva s6 aparecia como um guia longínquo.; 

    :om uma simplicidade intencional que se apro-ima da pura descrição Duchamp refere

    aspectos essenciais da obra de Matisse Sendo a composição ob2ectiva um guia

    longínquo* o facto de ser guia evidencia a sua condição de estímulo inicial sem presença

    visível na composição pict5rica e* o facto de ser longínquo* acentua a grande dist,ncia

    entre a pintura e a ob2ectividade %ssa dist,ncia em relação . realidade ob2ectiva servia

    sobretudo para afirmar uma outra ob2ectividade7 a da pintura

    Matisse não se afastava da imagem da realidade ob2ectiva para afirmar interpretaç'es

    de acentuação sub2ectivista como o fa+ia >an Kogh que* no pr5prio acentuar da

    sub2ectividade caligr(fica* conferia . pintura uma ob2ectividade aut5noma O car(cter

    arabesco das linhas da pintura de Matisse # a evid0ncia da sua autonomia As linhas

    pretendem ser apenas linhas* autonomia acentuada no seu concretismo pelo facto de

    serem espessas. % a cor* em  planos coloridos* não pretendendo provocar nenhuma

    sugestão volum#trica ou atmosf#rica mostra1se no car(cter concreto da tinta

    &uma carta a /ierre =onnard* em aneiro de )?B* Matisse evidencia as suas

    preocupaç'es com os aspectos concretos da pintura* numa fase em que sente na sua

    obra o eterno conflito entre o desenho e a cor  quando procura a harmonia entre ambos7

    «# meu desenho e a minha pintura separam-se. *... Encontrei um desenho que,

    depois de trabalhos de apro2ima)ão, tem a espontaneidade que me descarrega

    inteiramente do que sinto, mas este meio s6 para mim, artista e espectador. 8as um

    desenho colorista não uma pintura. Iaveria que lhe dar um equivalente na cor.

    isso que não consigo.JG

    Linalmente encontra a harmonia procurada nos pap#is recortados das suas colagens7

    «No meu caso, pintar e desenhar são uma s6 coisa. Escolho a minha quantidade de

    superfície colorida e torno-a conforme o sentimento do meu desenho, como o escultor

    a noção de plasticidade . 27 | 107

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    amassa o barro, modificando a bola que fe$ primeiro, estendendo-a de acordo com o

    seu sentimento.JH 

    &estas preocupaç'es com o car(cter concreto da pintura* encarada como linguagem*

    Matisse procura a autonomia de qualquer referente A linguagem como veiculo ou

    instrumento do conhecimento assume uma condição de puro significante Ao

    autonomi+ar1se dos significados e* ao mesmo tempo* desenvolvendo1se como puralinguagem* a linguagem da pintura # utili+ada como sugestão de uma situação de pr#1

    conhecimento* da linguagem como plasticidade

    3eferindo1se . deforma)ão que os h3bitos adquiridos provocam na relação perceptiva

    com o mundo* escreve7

    «# esfor)o necess3rio para se libertar disso e2ige uma espcie de coragemD e essa

    coragem indispens3vel ao artista que deve ver todas as coisas como se as visse

     pela primeira ve$ h3 que ver toda a vida como quando se era crian)aD e a perda

    dessa possibilidade impede-vos de vos e2primir de maneira original, isto , pessoal.JJ

     Ao procurar apro-imar1se do olhar das crianças Matisse reforça o sentido da

    virgindade que procura* atrav#s da pintura* na relação perceptiva com as coisas As

    crianças apro-imam1se mais facilmente do mundo atrav#s da plasticidade antes da

    e-peri0ncia e da aprendi+agem que* ao longo do tempo* diluem essa capacidade

    favorecendo o desenvolvimento do conhecimento /lasticidade que os homens* na sua

    clare+a sensorial* possivelmente s5 e-perimentam* nos primeiros momentos de vida e .

    qual* depois* s5 podem ambicionar atrav#s do artifício

    Matisse* como =onnard* dissolvendo as formas e os fundos como se tudo fosse feito

    da mesma mat#ria e ignorando voluntariamente a profundidade* simulava essa

    percepção pr#1conhecimento e procurava fa+er t(bua rasa da mem5ria conceptual para

    instaurar um campo de pura plasticidade das formas

    %m Duchamp a plasticidade # potenciada pelo conhecimento* 2ogando1o como

    potenciador do seu pr5prio esva+iamento A plasticidade surge . posteriori na relação

    parado-al entre diferentes conceitos cu2o produto não est( significado e que tende a

    esva+iar a significação !enriquecendo os sentidos$ Aqui poderíamos encontrar uma

    atitude semelhante . que condu+ a pintura de De :hirico* no sentido em que a procura

    da plasticidade se afasta dos processos plasticistas da abstracção* 2ogando em ins5litas

    relaç'es de significados

    Sobre a obra de De :hirico* Duchamp escreveu7

    «Ele evitou tanto o fauvismo como o cubismo e inaugura o que poderíamos chamar a

    'pintura metafísica'. Em ve$ de e2plorar o filão nascente da abstrac)ão, ele organi$a o

    encontro sobre as suas telas de elementos que s6 se poderiam &untar num 'mundo

    metafísico'.JP

    %m De :hirico* a estranhe+a da relação entre os elementos que figura decorre dos

    conte-tos ins5litos* pela irrealidade dos confrontos de escalas* pela simultaneidade de

    diferentes perspectivas* gerando um espaço que ele pr5prio designou como metafísico

    a noção de plasticidade . 28 | 107

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    %sta designação decorria da impossibilidade de estabelecer relaç'es confort(veis e

    reconhecíveis entre os v(rios elementos de um quadro* que criavam um clima

    absolutamente vago e misterioso

    Duchamp* tendo em comum com De :hirico a procura do va+io de significação no

     2ogo ins5lito de significados* aliou a esse va+io de significação a sugestão de uma

    unidade que* embora no domínio do invisível* era subliminarmente perturbadora Isto

    num percurso de grande disparidade material e compositiva se as obras foremencaradas no seu concretismo ou na sua imagem puramente visual As suas obras eram

    catalisadoras de um sentido que s5 se encontraria no domínio do invisível De facto* o

    sentido de qualquer coisa* sendo perceptível* # sempre invisível e* podendo ser

    veiculado pela visibilidade* # na sua dimensão invisível que # perceptível Assim

    partilhava a atitude dos simbolistas em que o imagin(rio não era a criatividade

    desbragada mas a procura de algo preciso* parado-almente porque reali+ado a partir da

    crença na e-ist0ncia de um domínio do irracional %* assim* e-perimentando a

    estranhe+a desse domínio para a sugestão das ideias

    %m Duchamp* a plasticidade como va+io de significação não # a destruição do

    conhecimento ou a simulação da sua aus0ncia* # o emprego do conhecimento como

    algo que ultrapassa o mero 2ogo dos significados utilit(rios* o conhecimento como

    sensação %nquanto a plasticidade em Matisse residia no aqu#m conhecimento* nas

    suas obras # uma forma de transformação do conhecimento :om a consci0ncia do

    sentido utilitarista dos significados a criação da plasticidade nasce de processos em que

    # posta em causa qualquer validação absoluta da ra+ão Assim* pela intuição* afirma1se

    um cepticismo implac(vel

    O apreço de Duchamp por Matisse talve+ residisse na comunhão da noção matissiana

    da pintura como uma bela poltrona.

    «=onho com uma arte de equilíbrio, de pure$a, de tranquilidade, sem um tema

    inquietante ou preocupante, que se&a, para todo o trabalhador intelectual, tanto para o

    homem de neg6cios como para o escritor, por e2emplo, um lenitivo, um calmante

    cerebral, qualquer coisa como uma bela poltrona, que o repouse das fadigas

    físicas.;F

     A pintura de Matisse era a pintura da felicidade O decorativismo assumia a sua

    e-pressão mais elevada* numa plasticidade a que não podemos chamar meramente

    decorativa mas plenamente decorativa

    Se o ad2ectivo decorativo pode ter o sentido de mera e-ist0ncia in5cua* como a de um

    rei que dos poderes s5 mant#m a imagem* por outro lado decorativo pode revelar a

    plenitude da inter1relacionalidade que a sua pr5pria definição implica Algo que #

    decorativo* para al#m de qualquer 2ustificação tautol5gica* # decorativo porque e-iste

    sempre como transformador

    Ser decorativo # ser pleno enquanto transformador porque* mais do que transformar

    as coisas transforma1se o seu campo

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    %m Matisse a pintura era como uma bela poltrona oferecendo o conforto atrav#s da

    libertação do conhecimento utilitarista %m Duchamp* o sentimento de apra+ível conforto

    advinha da elevação do conhecimento . pura sensação

    /or estes laços subtis revelados mais na sensação do que na visualidade* Duchamp e

    Matisse comungam do sentido arom(tico e sensorial da arte

    fig)) 1 Duchamp* como :rose =lav/ * fotografado por Man 3a4 em &ova Iorque*)?91)?9)

    :rose =lav/  # o correspondente* em Duchamp* . pintura como uma bela poltrona de

    Matisse Matisse representa ou sugere a alegria de viver* a personagem de Duchamp

    sugere que a vida # cor1de1rosa A personagem :rose =lav/  assinou grande parte das

    obras de Duchamp* não como um alter1ego* mas sugerindo artificiosamente que a

    verdadeira autoria das obras era o sentido cor1de1rosa da vida* o que decorreria

    sobretudo da arte de viver O rosa não se identifica como uma cor visível* mas como a

    sensação unificadora que fa+ a arte arte* ou que a arte produ+

    Se em Matisse o rosa # a plasticidade da cor rosa* que representa ou sugere a alegria

    de viver* em Duchamp # simultaneamente a fundação e a finalidade da arte A sua

    personagem sugere que a vida # cor1de1rosa :rose* por um lado* # a possibilidade ver

    a vida pelo prisma da est#tica e* por outro* corresponde a uma clarificação da diferença

    entre a vida real e a e-ist0ncia virtual* sugerindo uma imagem da arte atrav#s desta

    personagem artificial

     Ao criar 3rose S#lav4 atenua quaisquer leituras autobiogr(ficas da sua obra Disse*

    inclusivamente* ter pensado criar uma personagem absolutamente distinta dele pr5prio*

    tendo primeiro pensado inventar um personagem 2udeu* sendo ele cat5lico*

    !estatisticamente cat5lico* 2ulgamos porque di+ia não acreditar em Deus$ Depois

    considerou ser mais interessante mudar de se2o e escolheu 3ose por ser um nome que

    detestava* contrariando o gosto na escolha e* no distanciamento* atenuando qualquer

    relação sub2ectivista; &o duplo 3 de 3rose a pro-imidade fon#tica* na língua inglesa* .

    palavra Eros  # a evid0ncia de uma plasticidade* mais do que visível* sensorial ou*

    sobretudo* sensual &a relação entre o conceptual* os sentidos e a sensação* abre1se

    uma percepção global como sentimento que revela uma sub2ectividade física

     A sub2ectividade em Duchamp não reside na forma e* muito menos* na forma

    enquanto contorno ou configuração de limites &uma questão tradicional da pintura* a

    relação forma e fundo* a sua obra apro-ima1se sobretudo da informalidade do fundo

    Segundo a e-pressão o resto paisagem, as suas obras são mais o resto do que a coisa

    em si* na medida em que a paisagem # o 8ais;@ que a arte produ+

     A obra que Duchamp ofereceu a Maria Martins # eloquente da busca da plasticidade

    pura* da transgressão do conceptual para atingir essa plasticidade 6ma pequena pintura

    e-ecutada com a dispersão do seu esperma e chamada 1a/sage fautif,  mostra o

    orgasmo como contacto fuga+ com a paisagem e com o informal* na total aus0ncia de

    contornos físicos* visíveis ou conceptuais Eendo o orgasmo como paisagem ef#mera*

    instant,nea* esta obra # simb5lica da condição humana* como se a racionalidade s5

    permitisse estes contactos fuga+es com a plasticidade pura

    a noção de plasticidade . 30 | 107

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     Aqui* o ad2ectivo fautif * associando puritanamente a ideia de pecado* ou de pecadilho*

    ao orgasmo* leva a crer que neste contacto ef#mero com a paisagem o indivíduo

    ultrapassa os limites de uma condição que lhe foi imposta Duchamp* numa constante

    produção onanística de paisagens* fa+ corresponder . viv0ncia est#tica o erotismo e

    apresenta o artista como m3quina celibat3ria que m6i o seu pr6prio chocolate.  Ao

    mesmo tempo* associando o orgasmo a uma paisagem* mostra1o como não sendo mais

    do que uma apro-imação possível . ideia de paisagem Isto porque a  paisagem,  aplasticidade pura* e-iste independentemente das conotaç'es que a sugerem :omo

    todos os sentidos conotativos* não # mais do que um indício artificial para uma ideia

    indi+ível  %* daí* talve+ o delito desta  pa/sage fautif se2a a sugestão da pro2ecção

    panteísta do sentimento não de uma mentira mas do pecadilho de uma não verdade.

    fig )9 1 P/a4sage fautifP* )?B

    Duchamp via no erotismo a autonomi+ação de um aspecto do romantismo que lhe

    acentuava a dimensão física !ao associar ao romantismo o erotismo este adquire um

    sentido ampliado$;T :om a eterni+ação do erotismo a arte ou a viv0ncia est#tica são um

    caminho delicioso para a plasticidade pura % este sentido da arte transparece na sua

    obra

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    6ma pintura ou uma escultura podem possuir na sua forma* enquanto 2ogo relacional

    de imagensGideias* grande rique+a significante* mas são tamb#m significadas enquanto

    ob2ecto pintura ou ob2ecto escultura.

    /ara o read4made !ountain, enquanto ob2ecto apenas* não estava instituída qualquer

    significação enquadr(vel nas e-pectativas da hist5ria e da teoria da arte Duchamp ao

    mostrar como obra de arte um urinol invertido e com a inscrição nomeadora fonte

    provocou uma situação muito pr5-ima da plasticidade pura

    fig); PLountainP* )?)@

    &em sequer o claro reconhecimento de uma autoria artística permitia classificar o

    ob2ecto como obra de arte porque ele era assinado por um autor absolutamente

    desconhecido* porque ine-istente7 3 Mutt &em sequer podia ser considerado arte por

    ser o que um artista fa+ O senhor 3 Mutt podia ser fabricante de urin5is* um oper(rio

    numa f(brica de urin5is ou* simplesmente* um comprador de urin5is !3 como 3 de

    3ichard ricalha)o  em franc0s seria um nome ao qual se podia associar um

    significado que se afastava da imagem rom,ntica do artista$

     W semelhança do Nu descendent un escalier recusado no Salão dos Independentes

    de /aris* o read4made !ountain  foi novamente recusado* agora no Salão dos

    Independentes de &ova Iorque %sta recusa foi claramente provocada e* mais do que

    provocada* prevista Dela dependia a estrat#gia da obra e a sua completa composição*

    no sentido performativo que as obras de Duchamp assumiam* cu2a composição não era

    encarada como puramente visual A !onte foi recusada na defesa da concepção da arte

    enquanto ofício* enquanto artefacto Ao mostrar um ob2ecto  pr-fabricado* recusa essa

    concepção e #* afinal* essa recusa que # recusada

     Aceitar o read4made não poderia ser a mera aceitação de uma obra* e-igia a

    comunhão com uma nova e ampliada noção de obra de arte Juem o aceitasse*

    naquelas circunst,ncias* como obra de arte* tornar1se1ia cúmplice ou co1autor dessa

    nova noção % !ountain,  ao ser assinado por algu#m absolutamente desconhecido

    facilitava a recusa Se e-istisse alguma dúvida quanto . aceitação* esta opção go+ava

    de um sentimento de absoluta impunidade /ode1se supor que Duchamp previa este

    facto* por fa+er parte da nature+a conceptual da obra a hip5tese de ser recusada* dentro

    da e-pectativa da habituação no 2ulgamento est#tico

    Ehierr4 de Duve associa esta atitude de Duchamp . obra Ouadrado negro, de

    Malevitch7

    «8as se o salto epistemol6gico o mesmo com uma simetria, se Xuchamp e

    8alevitch se libertam do ofício para di$er que a pintura est3 morta ou que ela est3

    viva porque ela não um ofício, seria não ver as consequências deste avan)o di$er

    que o 'Ouadrado negro' ainda pintura enquanto que o read/made &3 o não mais. "

    estratgia do read/made efectivamente da mesma ordem dos abandonos

    sucessivos que fi$eram a hist6ria do modernismo pictural de 8anet a 8alevitch.JM

    Ehierr4 de Duve salienta tamb#m que para compreender a diferença entre o que

    significa &3 não pintar mais e o que significa pintar # importante saber o que significa ter

     pintado &esta perspectiva o read4made não tem um mero sentido da procura

    a noção de plasticidade . 32 | 107

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    vanguardista do novo Ao implicar a refle-ão sobre o que # ter pintado ganha um sentido

    retrospectivo na hist5ria de arte e provoca a refle-ão sobre o que de facto ter( sido

     pintar.

    :om o Ouadrado negro* onde # completamente irrelevante a autoria oficinal pela sua

    e-trema simplicidade !não # preciso qualquer virtuosismo para o copiar$* Malevitch*

    liberta a pintura do ofício e a pintura torna1se ideia e resultado Assim Malevitch leva a

    visibilidade da autoria oficinal ao mínimoRibertando a pintura do ofício o pr5prio passado da pintura pode assumir novas

    leituras %stando a pintura viva porque ela não um ofício, se a arte persiste na morte do

    ofício # porque sabe que lhe sobrevive no efeito " o efeito potencial da arte que fa+ da

    arte* arte

    O Ouadrado negro est( no limiar da não significação enquanto pintura e apro-ima1se

    do limite de dei-ar de ser pintura* porque leva ao mínimo a manualidade % o read4made

    !onte, não podendo ser ob2ecto de significação dentro das e-pectativas do que* então*

    seria arte* cria uma situação de plasticidade e-trema %ste va+io de significação resulta

    sobretudo na ampliação do campo da signific,ncia* associando a potenciação das

    faculdades pl(sticas a uma riquíssima fonte de sentido

     A comparação da P!ontes5 de  Duchamp e  Ingres !não sendo improv(vel que uma

    tenha dado origem ao título da outra$ pode tra+er1nos analogias e diferenças

    significativas

    fig)B 1 PLontaineP* ean Dominique Ingres )TF

     A !ontaine de Ingres representa um nu7 uma 2ovem segura um c,ntaro inclinado

    vertendo (gua* a sua figura enche a totalidade da composição com a pure+a de uma

    imagem iconogr(fica

    &esta obra* em que # clara a apro-imação a uma linguagem simbolista* Ingres não

    pretende representar uma fonte mas sim a fonte* numa imagem que sinteti+a a ideia de

    fonte % a ideia de fonte* . semelhança da teoria plat5nica onde as coisas são c5pias

    imperfeitas das ideias que as originam* não # id0ntica ao ob2ecto fonte* at# porque não

    e-iste o ob2ecto fonte %ventualmente poderemos falar de um ob2ecto fonte* dentro da

    infinidade de ob2ectos fonte que podem e-istir

    6ma rapariga nua a verter a (gua de um c,ntaro não # uma fonte e* muito menos* a

    fonte At# porque a imagem da fonte desapareceria assim que se esgotasse a (gua do

    c,ntaro Mas uma pintura representando uma rapariga nua a verter a (gua de um

    c,ntaro pode ser e* no caso do quadro de Ingres #* a fonte A fi-ação* na pintura* de um

    instante da queda da (gua torna esse instante eterno e* essa eterni+ação* permite atingir

    o simb5lico

    %nquanto Ingres procura uma imagem simb5lica da ideia de fonte* primordial e não

    confundível com quaisquer ob2ectos* Duchamp encontra nos ob2ectos a potencial

    sugestão das ideias

     

    O read4made !ountain não poderia ser ob2ecto de significação na e-pectativa do que

    seria arte mas* sendo arte* passa a produ+ir uma plasticidade e-trema O facto de ser

    um urinol* e-emplar de uma s#rie de ob2ectos produ+idos mecanicamente* de estar

    a noção de plasticidade . 33 | 107

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    invertido e de se chamar fonte permite conceber v(rias associaç'es W inversão física

    associa1se uma inversão de conceitos* sugerindo o curso inverso dos líquidos associam1

    se os de2ectos* resíduos e desperdícios ao sentido de fonte e apro-ima1se a