Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

download Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

of 8

description

Texto para a disciplina de Psicologia Comunitária e Práticas Sociais. Referência: BONIN, L.F.R. Indivíduo, Cultura e Sociedade. In: Psicologia social contemporânea: livro-texto. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Transcript of Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    1/8

    IND IV iDUO, CULTURA E SOC IEDADE

    Lutz Fernando Rolim Bonin

    Para compreender 0 ser humano, alern de estudar seu corpo e suaorigem animal, e necessario pesquisar, principalmente, como ele seconstitui em urn contexto sociocultural.o hom em e tambem urn animal, mas urn animal que difere dosoutros por ser cultural . Os outros primatas podem ser consideradoscomo entes protoculturais, pois transmit ern habitos atraves de gera-coes como peneirar alimentos, nadar e lavar batatas. Usam instru-mentos simples e aprendem por mera observacao 0 comportamentode outrem. Para a teoria historico-cultural, 0 primata humano podeser definido como urn ser bioloqico antes de possuir 0 dominio dafala, mas pode-se considera-Io ness a fase como tendo uma protooul-tura (BONIN, 1996). Por exemplo, as criancas de urn a dois anos jaaprendem usar instrumentos simples da cultura por imitacao ou re-fOIQo,mas nao entendem ainda uma intormacao verbal. No entanto,entram num processo plenamente cultural quando ja dominam 0 usada fala, 0 que as permite processar 0 simb6lico contido nas institui-coes culturais. Entretanto, nao e possivel deixar de considerar 0 as-pecto bloloqico do ser humano, apesar deste ser htstorico-cultural.Afinal, 0 homem esta no mundo por ter urn corpo. Os neuropsicolo-gos tern demonstrado que as habilidades envolvidas na atividade hu-mana supoern uma condicao necessaria, mas nao suficiente e ele-mentar, urn sistema nervoso e hormonal. Pode-se dizer que 0homeme urn animal que usa simbolos porque houve urn desenvolvimento doseu cerebro para tal, no decorrer de sua filoqenese. No inicio do de-senvolvimento da crianca, que e urn animal da especie humana, osprocessos da atividade se dao de maneira semelhante a de outrosprimatas, isto e. nao envolvem a tala, ou melhor, processos simboli-cos. A primeira comunicacao da crianca recem-nascida com 0 outroseria atraves do choro. Esta ainda e uma expressao direta do estadoafetivo da cnanca nao sendo, contudo, uma comunicacao que envol-va, neste momento, uma representacao mental .

    58

    Individuo e sociedadeA teoria historico-cultural considera importante a filoqeneae dosprocessos psicoloqicos. 0 ser humano, ao nascer, traz consigo deter-minados comportamentos inatos, ligados a sua estrutura bioloqica.Entretanto, no decorrer de seu desenvolvimento, e moldado pela ativi-dade cultural de outros corn quem ele/ela se relaciona. Cada indivi-duo, ao nascer, encontra urn sistema social criado atraves de gerac;oesja existente e que e assimilado por meio de inter-relacoes sociais . Asociedade com suas instituicoes, crencas e costumes, nao paira acimados individuos, mas sim ela e consti tuida por individuos. Nao se tratade colocar a sociedade acima do individuo ou 0 individuo como urn serisolado acima da sociedade. Ela tambern nao e uma gestalt (forma) fi -sica como os tijolos em uma casa, mas sim uma rede de inter -relacoes

    individuais em constante mobilidade. Uma danca de quadrilha seriauma metafora adequada, ja que os individuos nao so interagem exteri-ormente como bolas de bilhar, mas tambem se inter-relacionam cadaurn procurando entender e se adaptar aos movimentos intencionais efuturos de outrem. 0 individuo historico-social, que e tambem urn serbioloqico, se constitui atraves da rede de inter-relacoes sociais. Cadaindividuo pode ser consider ado como urn no em uma extensa rede deinter-relacoes ern movimento. 0 ser humano desenvolve, atraves des-sas relacoes, urn "eu" ou pessoa (self) ,isto e, urn autocontrole "eqoi-co", que e urn aspecto do "eu" no qual 0 individuo se controla pela au-toinstrucao falada, de acordo com sua autoimagem ou imagem de siproprio. E urn ser que, tendo "instintos" ou comportamentos pre-pro-gramados, passa atraves da vida social a adquirir a tala e planejar econtrolar sua atividade e de outrem, atraves de representacoes menta-is (ELIAS, 1994; 1995).Neste ponto, e import ante mencionar que a no-C;aode "eu" supoe dois aspectos fundamentais: 1. a do sujei to ativoque toma decisoes e se orienta no mundo; 2. uma autoimagem e umaautoestima que, para alguns autores, estao relacionadas ao conceitode identidade e constituem 0 que George Mead denominou de "me"ou "mim" (MEAD, 1953).0 desenvolvimento do controle da tala sobreo comportamento e realizado a partir dos comandos da mae sobre acrianca (relacao interpessoal), que passa a se autoinstruir sobre comodeve se comportar (controle intrapessoal). Isto e , 0 individuopassa deuma relacao interpessoal para urn controle e planejamento intrapessoalda sua propria atividade.

    Isto se torna possivel pela existencia da fala 0 que, no fundo, en-volve urn controle "egoico" (LURIA, 1987; VYGOTSKY, 1984).

    59

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    2/8

    NaoM,basicamente, uma contradicao entre individuo e socieda-de. 0 individuo e urn ser historico-cultural que e constituido pelas in-terpelacoes socials. Mesmo quando esta sozinho, como RobinsonCrusoe, e urn ser humano que tern 0 habitus de sua sociedade. Isto 8,tern 0 jeito de andar, habitos de higiene, de expressar ernocoes, deusar instrumentos que adquiriu das relacoes pessoais com individuosda sociedade que a constituiu. Na sociedade ocidental atual, extrema-mente individualista e conflituosa, os individuos podem se represen-tar como seres isolados em oposicao a sociedade. Isto, entre tanto , euma criacao da propria sociedade neste momenta historico. Necessa-riamente, naoMpor que ter urn alto grau de cornpeticao e tens ao qru-pal, tornando dificil urn equilibrio entre as inclinacoes pessoais e as ta-refas socials. 0 "verdadeiro" eu nao esta enclausurado e isolado dessasociedade. E somente uma ilusao. i O individuo nao e estranho a sooie-dade. A vida social supoe entrelacamento entre necessidades e dese-jos em uma alternancia entre dar e receber. A razao e a mente nao saosubstancias, mas produtos de relacoes em constantes transforrna-goes. Os "instintos" e as emocoes sofrem transformacoes no decorrerda vida sociaL

    Os papeis sociais e as instituicoes humanas se originam de in-ter -relacoes pessoais que sao cristalizadas atraves de regras e que ini-cialmente sao habitos adquiridos e as instituicoes, alem das relacoessocials, envolvem tambem determinados materiais e artefatos e codi-gos.jAssim, uma universidade e uma instituicao que basicamente su-poe determinadas inter-relacoes humanas e locais como laboratories,onde existem determinados materials, aparelhos e instrumentos.Como ja se sabe, e possivel estudar a socioqenese das instituicoesatraves da hist6ria e, pOIexemplo, uma instituicao como 0 ParlamentoBritanico surgiu para resolver conflitos entre os nobres, atraves do en-tendimento entre as partes litigantes, pelo constante dialoqo em dire-cao ao consenso.

    goes em urn dado grupo. Emprimeiro lugar, a)a cultura como uma va-navel independente, em que cultura e mente eram consideradas sepa-radas. Em seguida, b) a perspeetiva de que a mente esta inserida naspraticas e atividades culturais. Em tereeiro lugar, c) a cultura na men-te, ouseja, a cultura como uma descricao ounarracao das atividades epraticas de urn grupo. Por ult imo, d)a cultura e a pessoa, isto e, a pes-soa como agente inteneional em urn mundo que e constituido de inter-pretacoes e objetos culturais.

    a)Nas decadas de 1960/1970, as relacoes entre cultura e coonicaoeram pesquisadas ern formas tradicionais como estudos-relacoes en-tre vanaveis. A cultura era considerada como variavel independente ea atividade mental e pratica como variavel dependents. Nesta epocacertas pesquisas de alfabetizacao em determinadas culturas eram re-lacionadas a testes de memoria e outras atividades cognitivas. S6pos-teriormente e que surgiu uma outra perspectiva que proeurava des-vendar como se processam a coqnicao e a aprendizagem num contex-to culturaL Mas, inicialmente, a cultura era vista como separada damente, ou seja, supunha-se urn dualismo ou dicotomia entre mente ecultura. 0 mental era concebido como urn processador interno de al-guma coisa que poderia ser pensamento abstrato, raciocinio, etc., queera afetado de forapela cultura, mas nao por ela constituido, ainda queparcialmente. Por exemplo, escolhia-se uma atividade cognitiva comoa memoria, classificacao ou percepcao tomadas como unidades demedida e chegava-se a conclusao que, ern determinada cultura comoados Wolops, naoMordenacao de cor e forma desenvolvida. Nessaepoca, tambem passou-se a estudar 0 efeito da escolaridade e tipos deescrita ern urn grupo de uma dada sociedade. Aqui ja se procurava ainteracao entre mente e cultura. Esse e urn periodo de transicao ernque cultura e coqnicao ja nao sao vistas como meras variaveis exter-nas. Propoe-se que a cultura seja definida face ao usa de mediacoes,isto e, artefatos fisicos e simbolicos, ou seja, alem de considerar urnconjunto de condicoes bioloqicas, e necessano levar ern conta as me-diacoes como 0 usa de artefatos para entender 0 desenvolvimento hu-mana ( LUR IA , 1 99 0 & VYGOTSKY, 1984 ; 1 9 90 ).

    Nesse periodo, seguidores de Piaget estavam interessados emprovar que os estaqios de desenvolvimento infanti l eram universalse, portanto, foi dada pouca atencao a como os processos culturaisconsti tuiam a coqnicao e tambem qual 0papel da fala nessas ativida-des: Atualmente essas concepcoes estao sendo revisadas pelos pia-getianos.

    Cultura, individuo e atividade

    Neste topico serao examinadas quatro perspectivas sobre a nocaode psicologia culturaL 0 termo cultura pode ser definido inicialmentede maneira simples, como urn conjunto de habitos, instrumentos, ob-jetos de arte, tipos de relaQoes interpessoais, regras sociais e institui-

    60 61

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    3/8

    Nos estudos interculturais desse periodo, tambem nao se levavaern conta a formacao historico-cultural do "eu" ou pessoa, que tam-bern supoe a identidade do sujeito na cultura. 0 sujeito nao era conce-bido como ativo intencional. Isto nao quer dizer que ja nao existissemteoricos como G. Mead que ja tratassem da questao.

    b)Passou-se entao da concepcao da cultura e mente, como varia-veis independentes, para a ideia que a mente esta inserida nas pratt-cas e atividades de urn grupo cultural. A cultura tambem se revela nosobjetos utilizados e/ou fabricados pelo homem. Assim, a execucao deuma tarefa a ser pesquisada passa a ser considerada como pertencen-do a urn contexto de atividade pratica. Foi entao considerado impor-tante prestar atencao as praticas locais para estudar a coqmcao. Porexemplo, verificou-se que pessoas em determinada cultura t inhammais facil idade para usar pratos util izados para corner arroz, assimcomo para medida de quantidade, do que outros artefatos. As pessoasdesse grupo estao familiarizadas com 0 uso desse objeto tanto paramedida quanto como figura geometrica (LUCAR1ELLO,1995).

    A escola historico-cultural ja enfatizava a cultura como praticascoletivas e normativas, envolvendo expectativas e formas de agir emconjunto. Essas atividades passam a ser apropriadas pela cnanca como apoio dos adultos. A coqnicao passa a ser estudada como uma habi-lidade pratica na vida cotidiana.

    Nosentido acima, estudou-se a coqnicao nas diferentes formas deescrita na cultura. Outros autores estudaram a coqmcao numerica naacao de vender, preparar e comprar alimentos.jl'ropoe-se que a teoriahistonco-cultural nao defina cultura como a soma de artefatos e seususos, mas sim que estes sao aprendidos no contexto das atividades dogrupo atraves de gera90es. 0 comando verbal de urn adulto sobre acrianca passa a ser utilizado e internalizado como autoinstruoao paracomandar 0 proprio comportamento. Este e urn exemplo do principiode Vygotsky que afirma que 0 que ocorre no plano interpessoal passapara 0 plano intrapessoal. Isto quer dizer que a crianca intemaliza 0que aprende nas relacoes interpessoais, 0 que supoe a ideia que 0 quese consegue fazer hoje com a ajuda de outrem, amanha podera ser fei-to sozinho.

    A tradicao cultural se faz atraves de acoos e interpretacoes naspraticas cotidianas que sao transmitidas atraves da historia de urnqrupo.Ptopoe-se que, nas atividades culturais, membros de uma cole-tividade ensinam os mais inexperientes atraves da manutencao de in-

    62

    teresse, apresentando urn modelo de tarefa e modelos de inter-rela-coes, oferecendo suporte ou apoio, conforme 0 nivel de progresso desua aquisicao. A acao dos novatos nao e passiva, mas participativanas tarefas do grupo. Osnovatos procuram se inserir e ter urn papel narede de atividades. Por exemplo, 0 aprendiz de alfaiate comeca com ta-refas simples e paulatinamente e simultaneamente adquire sua identi-dade profissional. Neste sentido, a pratica da cultura nao se reduz a umadimensao abstrata ou ao estudo de variaveis independentes. E neces-sario entender os processos no contexto da atividade grupal .c) Urn terceiro enfoque envolvendo a relacao individuo-cultura edenominado a cultura na mente ou na narrat iva dos atores culturais .Aqui as tarefas cognitivas nao sao mais unidades de analise. Essa pro-posta supoe urn conjunto de mterpretacoes ou. mais especificamente,as narrativas das atividades do sujeito no cotidiano, isto e, desoncoessobre modos de pensar e agir que incluem acoes, situacoes e inten-coes. Pode-se imaginar esse processo como se fosse uma descncaoautobiografica de vanes atores. Nao se limita a categorias cognitivascomo memoria, pensamento, percepcao e motivacao, mas implica urnpensar sobre a vida, incluindo a psicologia do cotidiano. Essa n09aOleva ao extremo a ideia da cultura como sistema simbolico. Toda a ati-vidade humana implicaria uma classiflcacao e interpretacao: qualquerpercepcao ou a98.0seria mediada pelo simb6lico. Por exemplo, se in-gerimos alguma coisa, e porque esse objeto ja foi classif icado comoalimento. Da mesma forma, urn local debaixo de uma pedra que podeservir como abrigo envolve uma interpretacao previa. Nem sempretudo supoe uma mterpretacao previa. Por exemplo, uma pedra poderevelar -se como abrigo no decorrer de uma a98.0sem necessariamenteter passado poruma classificacao previa. Assim, os bebes podem des-cobrir tambem informacoes sobre objetos, sem que outrem os ensine.Considera-se tambern que nao e possivel descartar a possibilidade dea orianca que ainda nao domina a fala aprender a lidar com objetosguiada por um membro experiente da cultura. A questao de fundo e adiscussao entre uma aprendizagem mediada e nao mediada pela fala.d) 0 quarto e ultimo tipo de teor ia de psicologia cultural e a quepropos a cultura na pessoa, consider ada como agente intencional ematividadepratica no seu grupo. 0 sujeito cria e seleciona percursos dea98.0,podendo aceitar ou nao a interferencia de outrem. Os objetossao criados colet iva ou individualmente e revelam uma intencao doprodutor.jf'ode-se fazer com que objetos em um meio lernbrem denossas intencoes para nos autocontrolarmos. Por exemplo, pode-se

    63

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    4/8

    acionar urn despertador para despertar ou urn bilhete na geladeirapara nao comer ou, ainda, C010CcI objetos longe do alcance de crian-gas. Esta posicao supoe que a pessoa seja urn agente intencional emurn mundo de objetos culturais e que 0mundo e constituido de inter-pretacoes. As relacoes interpessoais nao revelam so comport amen-tos sem significado, mas intencoes e ironias sobre a propria inten-gao, atraves de gestos significativos. Por exemplo, pode-se fazer urngesto para uma segunda pessoa e piscar de maneira sorrateira parauma terceira pessoa, mostrando que 0 gesto nao e serio. 0 homempode enganar simbolicamente, ja que tern facilidade para se colocarno lugar de outrem e mesmo tomar atitudes hipoteticas sobre suasmteracoes. George Mead ja havia demonstrado que as relacoes in-terpessoais sao uma conversacao de gestos e, 0 que e importantenesta atividade, e saber se colocar no lugar do outro. Tem-se tam-bern urna nocao do outro generalizado e internalizado. Os chimpan-zes tern dificuldade de conceber 0 outro como agente intencional e,portanto, de colocar-se no lugar do outro. Essas caracteristicas pare-cern ser proprias do ser humano.

    Outros enfoques sobre a relacao individuo-culturaAs pessoas se consti tuem em urn sistema cultural dado previa-mente, formando umarede de inter-relacoes, mas sao sujeitos ativos e

    nao constituidos passivamente pelo meio. Isto quer dizer que nao saoconstituidos automaticamente pelo processo narrativo cultural esta-belecido. As pessoas tomam posicoesfazendo novas interpretacoes,ou seja, recebendo e construindo criativamente e coletivamente urnprocesso cultural em determinada epoca historica.

    E importante lembrar que a psicologia cultural tern uma longa his-toria, uma vez que Vico, no seculo XVII,ja tratava do tema. Na Ameri-ca Latina existem poucos trabalhos sobre 0 tema. E urn topico de pes-quisa bastante recente nessa reqiao.A teoria historico-cultural nao enfatiza somente as mediacoes,mas leva em conta tambem 0papel da pessoa como sujeito e nao seli-mita a process os loqico-coqnitivos. Nao deixa de lado a emocao e 0contexto onde surgem essas atividades. Em defesa dessa posicao teo-rica, pode-se dizer que a mente nao e so urn componente, mas e pro-duto emergente da inter-relacao entre pessoas face a objetos, supon-do tambem 0 usa de instrumentos. A mente nao esta no corpo e nem

    64

    nos instrumentos, mas se revela atraves das atividades humanas nacultura. Os sujeitos tambem criam regras e instituicoes atraves deati-vidades coletivas (COLE & ENGESTROM, 1995)A teoria historico-cultural, como ja foi dito, colocou tambem aquestao da pessoa e da intencionalidade. Uma outra vertente enfatizaa questao semiotica e enfoca a mente como formada atraves de urn

    dialoqo de vozes, envolvendo a producao de representacoes e de ideo-logias 0 ser humano assimila a narrativa de sua cultura, que supoeuma diversidade de dialoqos que incluem conformidade, contradicaoe discordancia.

    Neste ponto tarnbem e importante mencionar a concepcao de cul-tura de Geertz (1978), que e extremamente complexa A cultura, paraele, nao e redutivel ao fenomeno mental nem a meros padroes de com-portamento e de desejos exclusivamente individuais. 0 que importa eestudar esses process osem estruturas de significados formadas publi-camente. Publico aqui significa que algo e compartilhado tarnbem vi-sualmente, como em rituais e na fabncacao e usa de artefatos/Porexemplo, a apresentacao de urn quarteto tocando Beethoven supoe ahabilidade dos musicos para tocar, assim como a sensibilidade e 0 co-nhecimento dos ouvintes. Produzir musica envolve acoes humanas nodecorrer de urn tempo, mas nao se trata aqui de mencionar especifica-mente crencas, conhecimentos e outros process os mentais mdividua-is .j :I .enfase esta nas atividades, nos objetos, nos artefatos enos sim-bolos compartilhados.

    Viver em grupo js.e dificil, mas 0mais problernatico e tentar con-viver com grupos que tern diferentes regras de relacoss e de poderes.o trabalho principal do antropoloqo e narrar interpretando 0 que ob-serva e 0 que the foi narrado, supondo sempre atividades concretasdos individuos em inter-relagaes (GEERTZ, 1978).Outro enfoque que enfatiza tambem a questao semiotioa (cienciaque trata de sinais e simbolos) concentrando-se no simbolico-mter-

    pretativo e de carater histonco-cultural coloca que a concepcao deGeertz nao da suficiente atencao aos problemas de poder e de conflitonos contextos culturais, onde mensagens sao transmitidas e recebi-das/Nessa visao, e importante tambern considerar que 0 sujeito hu-mana e criado dentro de instituicoos e que pode, coletivamente, alte-ra-las, assim como e por elas afetado. Resumidamente, as instituicoesenvolvem recursos, tipos de inter-relaooos pessoais, regras e esque-mas, supondo recursos materiais e simbolicos (THOMPSON, 1995).

    65

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    5/8

    Considera-se tambem necessario estudar a producao e reprodu-gao do simbolico, seus agentes, receptores e as condicoes de produ-gao. Os processos de formacao de valores, leqitimacao de status, ex-clusao, estrateqias de resistencias e de aceitacaq As atividades deGandhi na India servem como exemplos encarnados do processo devalorizacao e de resist encia cultural.

    A cultura, 0 "eu" e as atividades, a emocao e a motivacaoComo ja foi dito, 0 "eu" e construido atraves da conversacao degestos em determinados grupos sociais. Esse "eu" supoe urn eu que

    decide sobre 0 curso das acoes e urn "me" ou "tuuu" que envolve auto-estima e imagem de siproprio. Ja foidemonstrado que a concepcao desi como individuo na Idade Media e na Renascence eram diferentes.Na epoca atual 0 "eu" e mais enfatizado do que 0 "nos" na cultura oci-dental (BONIN, 1997). Uma questao interessante e verificar como aconstrucao do "eu" em diferentes grupos ou culturas afeta as ativida-des dos individuos.

    Foi realizado urn mapeamento de problemas, pesquisas e consi-deracoes teoricas relativas a ultima questao. Dedicaram-se especial-mente a comparacoes entre a cultura japonesa e a cultura americanacontemporanea. Colocam que principalmente na cultura americanaem geral as pessoas se veem como independentes e autonomas, ten-do habilidades e valores unicos e agindo segundo atributos intemos.Esta concepcao pode ser denominada de eu indepen dente.Na culturajaponesa em geral tem-se a ideia que 0 "eu" nao existe em si e e urnproduto de relacoes que se definem face aos outros em determinadassituacoes - 0 "eu" faz parte do grupo ou da familia. Esta e uma visaocontextualista relacional em que os outros participam na definicao desi. Afirmam que a pessoa age como e esperado pelos outros, nao secolocando em primeiro lugar, procurando harmonizar seus desejos eatributos pessoais com os de outrem. Por exemplo, no Japao se diz ascriancas: "0prego que esta fora leva batidas". A concepcao de indivl-duo na cultura japonesa pode ser consider ada como eu interdepen-dente. Nos EUA: "aroda que chia leva qraxa", a expressao revela umaconcepcao de eu independente. E importante lembrar que na maioriados paises existe uma pluralidade cultural. Assim, nos EUA, existemdiferentes grupos Por exemplo, em urn grupo como os Amish a ten-den cia e a de ser interdependente e pacifista . Isto nao quer dizer que

    6 6

    r urn pais nao P?ssua caracteristicas gerais, em que certos valores pre-dommam devido a correlagao de torcas intern as (MARKUS & KI-TAYAMA, 1991)., Na cultura japonesa a concopoar, de "eu" envolve uma enfase na

    empatia pelo outro, cujo resultado e urn comportamento polido e auto-== para ~armonizar-se com 0 comportamento do outro. 0 sujeitonao se gabara de sua criatividade, mas dira: sou criativo junto commeus colegas, a nao ser que seja figura notavel. 0 pesadelo japones eo da exclusao do grupo. Nos EUA, e provavelmente ern alguns paisesda Europa e da America Latina, 0 pesadelo e nao se firmar, nao ser no-tado e nao se distinguir. Supoe-se que 0 individuo seja urn agente comautocontrole individual e assertivo na afirrnacao de seus atributos.Para os individuos na cultura americana e mais importante sobressa-it-sa, ser unico elevando sua autoestima, mesmo que isto cause difi-culdades em relacao aos outros; 0 que para urn japones e uma atitudeimatura, nao autentica, pois nao se deve sobressair ao grupo e quererser tratado de maneira especial . S6 aos artistas e pessoas notaveis sepermitem atitudes individualistas nao conformistas. Os sujeitos nacultura japonesa, devido a esta ooncepcao de "eu", sao treinados aprocurar "ler" as necessidades de outrem para servi-le. Considera-seent~o, que 0 t ip9 de sistema de "eu" est a relacionado a formas de cog~mcao: percepcao, afeto e motivagao, afetando a atividade cotidianados individuos.

    Informagoes baseadas em dados antropologicos e, na maioria dasvezes, em pesquisas envolvendo entrevistas, estudos de variaveis de-pendentes e independentes e respostas a histonas propostas pelos ex-penmentadores, propoem inicialmente como hipotsss 0 fato de que ede se esperar que "eus" interdependentes sejam mais atentos e maissensiveis aos outros do que "eus" independentes. lsto produziria umacoqnicao rnais elaborada em relac;:aoaos outros do que em relac;:aoa si.Em segundo lugar, os "eus" interdependentes representariam a si eaos outros em contextos sociais especiflcos, enquanto que os "eus"mdependentes produziriam representagoes mais abstratas e generali-zadas. Pesquisas revelaram que na cultura indiana as pessoas cons i-deram seu "Em " mais semelhante ao de outros doque 0 outro se consi-dera em relacao a ele. Diferente do que em geral e encontrado na cul-tura americana. Outra pesquisa revelou ainda que sujeitos indianosdescrevem mais outros individuos de maneira situacional e relacionale nao qualidades abstratas e fora de contexto. Por exemplo, os amen-

    67

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    6/8

    canos descreveriam genericamente a qualidade de uma pessoa como"mao de vaca" ou "pao dura", enquanto que urn indiano diria que seuamigo nao gosta decontribuir para festas do grupo a que pertence,contextualizando a a98o, isto e, de que maneira foi realizada a acao,onde e com quem. Sujeitos americanos tarnbem procuram descrevermais a disposicao interna dos agentes do que seus papeis sociais .

    Apesar da ernocao ser vista como uma expressao de atividade for-mada na filoqenese e ligada a automanutencao do organismo, e tam-bern, em parte, constituida pela cultura, como por exemplo no caso daemocao-sentimento de piedade e patriotismo (BONIN, 1996).As emocoes complexas (tipoemocao-sentimento) dependem do

    tipo de sistemas de "eu", ja que sao organizadas atraves de significa-dos culturais envolvendo acoes interpessoais que supoem justiflcacaoe persuasao. As emocoes podem reforcar uma construcao dependenteou interdependente do "eu". Assim, emocoes como frustracao eaqressao ou de orgulho (gabar-se) podem ser denominadas de "focali-zadas no 'eu'". Urnindividuo que diz que correu mais do que seu com-panheiro sendo, portanto, melhor do que ele, demonstra urn senti-mento egoista. Para urn sujei to de ego interdependente, isto e vistocomo uma dificuldade para uma harmonia grupal . Para que haja har-monia e mais importante demonstrar solidariedade e ate mesmo timi-dez. Pessoas de culturas europeias, com as quais a americana esta re-lacionada, provavelmente tambem seriam fonte de um self indepen-dente. Nas culturas ocidentais ainda se discute se e necessario ex-pressar ou controlar a emocao. Ja para os japoneses em geral , e 6bvioque certas emocoes tern que ser controladas.

    A motivacao se revela atraves de sequencias de acoes para atinqirurn objetivo rnaior, na teoria historico-cultural (LEONTIEV, 1978;1984). Nas culturas que enfatizam 0 "eu" independente, as motiva-coes estao ligadas a necessidades de expressar realizacao individual:Assim, 0 individuo procura ser bem-sucedido, realcar sua autoestimae aumentar a autorealizacao. Por outro lado, os "eus" interdependen-tes consideram mais importante dernonstrar e desenvolver motiva- ".coes socials, como e 0 caso de socorrer e proteger os outros, anliar-se,procurar ser modesto e agir segundo expectat ivas de seus pares. Po-de-se propor que motivos como autoconsistencia, autorrealizacao eautoanalise, terao suas formas e intensidades dependendo do tipo de"eu", Estudos revelarn que mottvacao para autoconsistencia emenor

    e:n culturas que enfatizam 0 self interdependente; neste caso, osmdi-Vlduo~valorizam mais os papeis e obrigaQ6es socials que seus moti-vos pnvados de coerencia Por exemplo, urn individuo do tipo acimapode dizer para si: "para ser coerente eu penso desta maneira masdevo agir segundo as regras de meu grupo". '

    Err_:geral, os motivos ligados a realizacao em sujeitos do tipo aci-rna estao,pnncipalments rnais ligados a realizar,;:aoe sucesso do grupoe da familia do que re1acionados a padroes de excelencia e coerenciapessoal. Neste caso, por exemplo, espera -se que urn Iider seja protetore onentador como um pai, e que os membros do grupo realizem har-momcamente suas tarefas, em vez de cornpetir.

    Considera~oes finais. De micio, concluiu-ss a necessidade das ciencias sociais se posi-cionarern aos achados das ciencias bioloqicas, principaimente no quediz respeito ao comportamento animal. 0 mdividuo como ser corp6-reo, mclumdo seu SIstema nervoso e hormonal, nao pode ser ignorado.Ao se estudar a vida social de populacoss de diferentes faixas etanasnao e possivel ignorar os aspectos biologicos especiticos das diferen-tes fases da vida, como e 0 caso da infancia, da adolescencra, da vidaadult a e da velhice.

    As relacoss entre individuo e sociedade/ cultura sao complexas eenvolvem pesquisas com conceitos de dificil definicao Assim comoos,antropoloqos ainda debatem 0 conceito de cultura, tarnbern os so-cioloqos divergem quanto ao conceito de instituir;:ao social._ Procurou-se util izar em grande parte as ideias de que a sociedadenao paira sobr: os individuos e sim e 0 conjunto das relaQoes interpes-soars. Estas sao crucrais para conceituar instituiQoes, atividades cul-tural~ e 0 "eu". Considerou-se importante enfatizar 0 papel da pessoasem mconer em urn solipcismo ou individualismo exacerbado mos-tr~ndo que 0 "eu" e construido na vida social e que esta constrtui asatividades e habilidades dos sujeitos na sua vida emocional, motivacio-nal e cognitiva.

    . E importante salientar que alguns autores, como Goodnow, Bour-dieu, Foucaul: e Habern:as, sugerem que grupos e individuos apre-sentam resistenciasa praticas e valores culturais "globais" contranas

    68 69

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    7/8

    II i

    as suas identidades grupais e pessoais.E entao necessano estudar arelacao dialetica entre valores globais, nacionais e reqionais. Os valo-res eul turais afetam a aquls icao de eonheeimentos e habilidades. Aspreferencias e julgamentos esteticos, morais e academicos sao afeta-dos por esses processes . Tambem aspraticas de poder e exclusao, re-gras de expressao e eonsenso e tipos de comunicacao depend em dasociedade/cultura em que os individuos foram criados. Por exemplo,individuos de determinados grupos sociais tern seus gostos musicaisl igados a sua identidade cultural e resistem a mudancas.

    E importante considerar que, apesar de 0 individuo ser concebidocomo urn produto da his tona e da cul tura, e tambem urn ser intencio-nal e cria tivo , em constante transformacao, e que, coletivamente ,pode mudar 0 proprio processo cultural que 0 constitui.

    Esta perspectiva supoe a utilizacao de diferentes metodos de pes-quisa ainda sobre os quais ainda nao existe consenso. POIexemplo,ate que ponte urn relato verbal se relaciona com as praticas reais dosindividuos? Como e possivel traduzir conceitos sobre emocao em dife-rentes culturas? Sera que as atividades eulturais afetam somente a ex-pressao ou 0 estilo emocional/motivacional, ou constituem urn pro-cesso basico?

    Urn dos maiores problemas ao pesquisar os temas acirna apresenta-dos esta relaeionado ao fato de que nas culturas nao existem grupos to-talmente homoqeneos, ou seja, existem variacoes tanto individuais comosubgrupos. Fica dificil,por exemplo, falarem cultura japonesa, ja que estanao e homoqenea e sofreu mformacoes no deeorrer da sua historia.o fato de 0 individuo per tencer a urn grupo interdependente naosignifica, necessariamente, que se sinta interdependente ou solidanoem relacao a outros grupos e a humanidade em geral . Urntema impor-tante para a psicologia social e como desenvolver a solidariedade emrelacao a outros grupos, superando urn cer to etnocentr ismo e desen-volvendo urn sentimento que nao se res tr inja ao propr io grupo, masque englobe tambem a humanidade.

    Em paises como 0Brasil existem inumeras variacoes culturais.Apesar disso, pode-se dizer que existem valores, preferencias emaneiras de comunicacao que sao comuns e perpassam as diferen-cas cul turais internes. Exis tem questoes teoricas dificeis em rela-

  • 5/10/2018 Individuo Cultura e Sociedade_lf Bonin

    8/8

    GEERTZ, C. A interpretaC;8o das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.LEONTIEV, A Activtte, conscience, personnalite. Moscou: Edi tions duProqres, 1984___ . 0 desen volvim ento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.LUCARIELLO, J. Mind, culture, person: elements in a cultural psychology.Human Development. 1995,38: 2-18.LURIA,AR Desenvolvimento cognitivo. Sao Paulo: leone. 1990.___ . P ensamento e linguagem. Porto Alegre: Artes Medicas, 1987.MARKUS,HR &KITAYAMA,S.Culture and the self: implications forcognition,emotion and motivation. Psychological Review, 1991, 98, 2: 224-253MEAD, GR Espiritu, persona Y sociedad. Buenos Aires: Paidos, 1953.THOMPSON, J.B. Jdeologia e c;:ulturamoderna. Pstropolis: Vozes, 1995.VYGOTSKY,L.S. Storia dello svilluppo delle funzione psichiche superiore.Roma: Giunti, 1990.___ . A formaC;8o social da mente Sao Paulo: Martins Fontes, 1984.

    72

    PESQUISA

    Jaqueline TittotuMaria da Giece Correa Jacques

    A atividade de pesquisar esta, geralmente, associada ao trabalhodo cientista. Inscreve-se nonosso imaqinano como uma atividade quese desenvolve em urn laboratorio, em meio a instrumentos da Fisica eda Ouimica. 0 cientista , via de regra, nos parece urn "qenio": alquemcujas descobertas sao obras do acaso, ou, melhor dizendo, das possi-bilidades que sua genialidade tem de "explicar" 0 acaso. Estes "qenios"povoam nossas lembrancas desde a escola basica, construindo umaforma de compreender 0 que e cienoia, producao de conhecimento epesquisa: A imagem do laborat6rio expressa uma concepcao de cien-cia conhecida como "tradicional" cujos pressupostos basicos sao aneutralidade, a objetividade, a experimentacao e a generaliza