Saussure - Filosofia Linguistica

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ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 1 BASÍLIO, Raquel. Saussure: uma filosofia da linguística?. ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010. [www.revel.inf.br]. SAUSSURE: UMA FILOSOFIA DA LINGUÍSTICA? Raquel Basílio 1 [email protected] RESUMO: A Linguística, tal como a conhecemos atualmente, funda-se com o gesto saussuriano de escolher a língua como objeto de estudo dos linguistas. Quais as consequências desse ato? Podemos dizer que esse gesto apresenta o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem? Este artigo visa refletir sobre o assunto a partir das notas escritas pelo professor publicadas em 1957 por Godel que apresentam o pensamento de Saussure sob um novo ângulo. Segundo Bouquet e Engler, esta reflexão apresenta uma filosofia da linguagem, termo que o próprio Saussure empregou algumas vezes. Consideraremos, especialmente, as notas que carregam o termo filosofia da linguagem e as considerações de Bouquet acerca do tema. PALAVRAS-CHAVE: filosofia da linguagem; linguagem; Saussure. UM PONTO DE PARTIDA O início de um movimento de releitura do pensamento de Saussure foi marcado pela publicação do estudo realizado por Robert Godel, intitulado: Les sources manuscrites du Cours de Linguistique Générale de Ferdinand Saussure (1957). Outros estudiosos seguiram também o caminho de retornar à reflexão saussuriana. Podemos citar a edição crítica de Rudolf Engler (1968 e 1974), além de obras realizadas por Tullio de Mauro, Amacker, Jäger e Wunderli. Mais recentemente, citamos os trabalhos de Johannes Fehr: Linguistik und Semiologie (1997) e Saussure: cours, publications, manuscrits, lettres et documents: les contours de l'oeuvre posthume et ses rapports avec l'oeuvre publiée (1996), entre outros trabalhos importantes acerca do tema como o realizado por Simon Bouquet (2002) que nos guiará em especial neste artigo. Partiremos desses trabalhos de releitura para discutimos, de modo resumido, a nossa questão: Saussure desenhou uma filosofia da linguagem? 1 Universidade Federal da Paraíba.

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    BASLIO, Raquel. Saussure: uma filosofia da lingustica?. ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010. [www.revel.inf.br].

    SAUSSURE: UMA FILOSOFIA DA LINGUSTICA?

    Raquel Baslio1

    [email protected]

    RESUMO: A Lingustica, tal como a conhecemos atualmente, funda-se com o gesto saussuriano de escolher a lngua como objeto de estudo dos linguistas. Quais as consequncias desse ato? Podemos dizer que esse gesto apresenta o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem? Este artigo visa refletir sobre o assunto a partir das notas escritas pelo professor publicadas em 1957 por Godel que apresentam o pensamento de Saussure sob um novo ngulo. Segundo Bouquet e Engler, esta reflexo apresenta uma filosofia da linguagem, termo que o prprio Saussure empregou algumas vezes. Consideraremos, especialmente, as notas que carregam o termo filosofia da linguagem e as consideraes de Bouquet acerca do tema. PALAVRAS-CHAVE: filosofia da linguagem; linguagem; Saussure.

    UM PONTO DE PARTIDA

    O incio de um movimento de releitura do pensamento de Saussure foi marcado pela publicao do estudo realizado por Robert Godel, intitulado: Les sources manuscrites du Cours de Linguistique Gnrale de Ferdinand Saussure (1957). Outros estudiosos seguiram tambm o caminho de retornar reflexo saussuriana. Podemos citar a edio crtica de

    Rudolf Engler (1968 e 1974), alm de obras realizadas por Tullio de Mauro, Amacker, Jger e Wunderli. Mais recentemente, citamos os trabalhos de Johannes Fehr: Linguistik und Semiologie (1997) e Saussure: cours, publications, manuscrits, lettres et documents: les contours de l'oeuvre posthume et ses rapports avec l'oeuvre publie (1996), entre outros trabalhos importantes acerca do tema como o realizado por Simon Bouquet (2002) que nos guiar em especial neste artigo.

    Partiremos desses trabalhos de releitura para discutimos, de modo resumido, a nossa questo: Saussure desenhou uma filosofia da linguagem?

    1 Universidade Federal da Paraba.

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    1. UMA FILOSOFIA?

    Algumas vezes Saussure definiu sua reflexo como uma filosofia da Lingustica. Em uma conversa com Riedlinguer, seu aluno nos cursos ministrados em Genebra, conforme Bouquet

    (2002:76) retoma tal como observamos: Saussure tratar este ano das lnguas indo-europias e dos problemas que colocam. Isso ser uma preparao para um curso filosfico de

    Lingustica. Aparentemente, o professor denominava seu ensino de filosfico, mas o que ele tinha em mente ao falar de uma dimenso filosfica da Lingustica em 1910?

    Essa denominao comum nessa poca. No sculo XIX os estudos estavam sob o rtulo de filosficos, tnhamos a filosofia da botnica, a filosofia da qumica, a filosofia da

    histria, entre tantas outras. O termo se aplicava a qualquer saber que contivesse princpios universais ou fundamentais acerca de uma arte ou cincia. Apenas no fim do sculo XIX que

    se iniciou um conceito mais delimitado do termo com o nascimento da Epistemologia. Ser que podemos dizer que Saussure tratou de uma epistemologia da Lingustica?

    A Epistemologia pode ser entendida como um estudo da origem, natureza ou limites do conhecimento de uma cincia, um estudo da cincia. O termo remete a Plato, que visava

    questionar o que o conhecimento e como podemos alcan-lo. Duas posies surgem desse questionamento: o empirismo e o racionalismo. Ou seja, o conhecimento baseado na experincia, ou ele tem suas origens na razo humana.

    Podemos reconhecer na reflexo saussuriana uma preocupao com a natureza e os limites do conhecimento da linguagem. Saussure desenhou, desse ponto de vista, uma viso filosfica da linguagem e da lngua. Porm, o estudo de Saussure sobre a lngua e a linguagem apresenta, em seus limites e natureza, um saber negativo, no-positivo. Os construtos tericos em que Saussure edifica sua reflexo da lngua como um sistema de signos repousam numa natureza absolutamente negativa.

    O termo cincia hoje nos remete a um saber positivo e invariavelmente emprico. Isto envolve a manipulao do objeto, e a formulao matematizada de leis que permitem observar este objeto. Desse modo o objeto dado de antemo, graas verificao emprica os conceitos so fixados a posteriore. Mas o saber com que Saussure lidava, o saber no-

    positivo, lida com conceitos primitivos, ou seja, o ponto de vista que cria o objeto nesse caso, no h um objeto estabelecido antes dos conceitos formulados. Desse modo, o objeto no diretamente observvel ou demonstrvel empiricamente, uma abstrao imposta, uma escolha metodolgica ou filosfica mesmo, no sentido de que se escolhe um modo de olhar

    para o objeto que o cria, que faz a coisa surgir.

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    Os dados so construdos a partir de hipteses e no de uma manipulao emprica do objeto em questo. Resultando em uma problematizao sempre atualizada dos conceitos postulados e numa dificuldade de atingir uma verdade que pode ser reproduzida em dados empricos. Os conceitos que o professor desenhou podem ser definidos como negativos em

    sua radicalidade, ou seja, na sua raiz. Assim como o termo cincia se confundia, por vezes, com o termo filosofia no sculo

    XIX, com a tendncia geral de uma positivao do saber esses dois termos foram separados de modo a delimitar de modo mais claro a diferena entre o saber positivo e o saber no-positivo e o termo cincia parece hoje estar ligado a uma produo de saberes positivos.

    Veremos agora como a reflexo saussuriana aponta para o saber no-positivo, que pode

    ser percebido, por alguns, como uma reflexo filosfica. Apesar dessa ordem do no-positivo estar apresentada em todos os conceitos formulados pelo professor, como o signo, o sistema, a

    mutabilidade e a imutabilidade, a arbitrariedade, entre outros, esse carter muito mais evidente na teoria do valor, e por esta razo trataremos apenas do valor no presente artigo.

    2. NEGATIVIDADE E DIFERENA

    [...] na lngua h apenas diferenas sem termos positivos (SAUSSURE, 1996, p. 139, grifo do autor).

    O termo valor designa, na teoria de Saussure, uma pluralidade de fatos. Primeiramente, podemos observar que o professor no estabeleceu, de incio, uma diferena sria entre os termos: valor, sentido, significao. Mas ele disse que o valor passava a existir pela oposio que os signos estabelecem entre si. Podemos ler Saussure (1996: 134-135, grifos do autor):

    No interior de uma mesma lngua, todas as palavras que exprimem ideias vizinhas se limitam reciprocamente: sinnimos como recear, temer, ter medo s tm valor prprio pela oposio [...] Assim, o valor de qualquer termo que seja est determinado por aquilo que o rodeia.

    Normand (2009:27) nos aponta para alguns aspectos dessa formulao de Saussure. Primeiro podemos perceber que o professor no delimita a unidade com que

    trabalha, mas oferece como soluo a pura oposio de valores; que ele nos oferece uma

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    anlise puramente intelectual dos dados da lngua por meio de um procedimento emprico de comparao. Mas esse procedimento de comparar conduz a resultados negativos, o que parece algo contraditrio.

    As diferenas delimitam ideias prximas, ou, dito de outra forma, os valores

    delimitam-se reciprocamente e formam um sistema. Assim, podemos analisar o esquema presente no captulo O valor lingstico do CLG2:

    O texto de 1916 fala da no anterioridade das ideias e dos sons e que, sem os signos, seramos incapazes de distinguir duas ideias de modo claro e constante (SAUSSURE, 1996: 130). O esquema acima apresenta, no plano A, a massa amorfa das ideias confusas (SAUSSURE, 1996: 130), e no plano B, a massa amorfa dos sons. Os traos que unem as duas nebulosas so as delimitaes impostas pela lngua.

    Primeiramente, comeamos por entender que no havia um antes. As ideias e sons sem limites definidos so apenas nebulosas, um caos, ou uma impossibilidade de pensar

    algo ou mesmo falar alguma coisa. Isto significa que no h ideias e nem sons anteriores lngua; no h nada antes, em lugar das ideias dadas de antemo, temos apenas valores que emanam do sistema (SAUSSURE, 1996:136). A outra consequncia que podemos extrair desse esquema que a lngua

    uma forma no uma substncia (SAUSSURE, 1996:131). Antes, onde no havia forma, a lngua confere uma forma por meio das delimitaes. A desubstancializao do seu objeto aponta novamente de modo incisivo para o carter negativo desse saber que a lngua contm. Alm disso, aponta para o fato de que no h como observar diretamente a lngua, j que se trata de um sistema formal, o esprito empirista das comparaes se dissolve nesta frase amide repetida na edio de 1916. O esquema das massas amorfas se assemelha ao esquema de Saussure (1996: 121) das delimitaes das unidades:

    2 Esquema em Saussure (1996, p. 131).

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    Quem conhea uma lngua delimita-lhe as unidades por um mtodo bastante simples, pelo menos em teoria. Consiste ele em colocar-se a pessoa no plano da fala, tomada como documento da lngua, e em represent-la por duas cadeias paralelas: a dos conceitos (a) e a das imagens acsticas (b). Uma delimitao correta exige que as divises estabelecidas na cadeia acstica (, , ...) correspondam cadeia dos conceitos (, , ...):

    Seja em francs silapr: poderei cortar esta seqncia aps l e tomar sil como unidade? No: basta considerar os conceitos para ver que essa diviso falsa. A separao em slabas si-la-pr nada tem tampouco de lingstico, a priori. As nicas divises possveis so: 1 si-z-la-pr (si je la prends), e 2 si-z-l-apr (si je lapprends), e so determinadas pelo sentido que se d a essas palavras. [...] o sentido autoriza a delimitao .

    Novamente o aspecto diferencial dos valores que se delimitam

    reciprocamente que cria o sistema. Tal ideia no entra em conflito com o fato de a lngua elaborar suas unidades (SAUSSURE, 1996, p. 131), assim, entendemos a lngua como sistema de valores puros. A lngua, vista sob esta perspectiva, construda de diferenas, e este o ponto de vista aceito por Saussure:

    Fundamentalmente, a lngua repousa sobre diferenas. Menosprezar esse fato, obstinar-se atrs de quantidades positivas , eu acredito, se condenar a continuar, de uma ponta outra do estudo lingstico, ao largo do fato verdadeiro, e do fato decisivo em todas as diversas ordens em que somos desafiados a considerar a lngua (SAUSSURE, 2002, p. 66).

    O aspecto diferencial do valor regido pelo principio da arbitrariedade, vemos

    Saussure (1996: 137) dizer:

    Arbitrrio e diferencial so duas qualidades correlativas. A alterao dos signos lingsticos mostra bem esta correlao; precisamente porque os termos a e b so radicalmente incapazes de chegar, como tais, at as regies da conscincia a qual no percebe perpetuamente mais que a diferena a/b que cada um dos termos fica livre de se modificar conforme leis estranhas sua funo significativa.

    A arbitrariedade permite que uma mesma significao possa est revestida de diferentes valores. Sendo assim, Saussure afirma que os valores so relativos uns aos outros no sistema lingustico. Ele diz: o valor de um [signo] resulta to-somente da presena simultnea de outros (SAUSSURE, 1996:133). Saussure (1996:134) conferiu dois princpios ao valor: a diferena e a semelhana. Esses dois fatores so necessrios para se obter um valor.

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    Seu valor no estar ento fixado, enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser trocada por este ou aquele conceito, isto , que tem esta ou aquela significao; falta ainda compar-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor. Seu contedo s verdadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, est revestida no s de uma significao como tambm, e sobretudo, de um valor, e isso coisa muito diferente.

    Dessa forma, o valor depende da presena e/ou da ausncia de outros valores

    que s existem um em funo do outro no sistema. Ainda falando sobre a essncia da lngua, vemos porque Saussure (1996:30) considera o valor como sendo o ponto cardeal da Lingustica esttica:

    Entretanto, preciso reconhecer que valor exprime, melhor do que qualquer outra palavra, a essncia do fato, que tambm a essncia da lngua, a saber, que uma forma no significa, mas vale: esse o ponto cardeal. Ela vale, por conseguinte ela implica a existncia de outros valores.

    Assim, o ponto de vista no est mais nas delimitaes das unidades lingusticas, mas na simultaneidade dos valores no sistema, que ilustrada pelo grfico presente no CLG3:

    No existe um valor previamente dado, mas ele brota da presena simultnea de outros valores (SAUSSURE, 1996:133). Desse modo, os termos valem por causa da diferena recproca entre eles, e em virtude do sentido que ns atribumos a essas diferenas (SAUSSURE, 2002: 30).

    Alm do aspecto diferencial e arbitrrio dos valores, este esquema introduz a negatividade presente no sistema saussuriano. Vejamos as palavras no texto de 1916 de Saussure (1996:136):

    Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que so puramente diferenciais, definidos no positivamente por seu contedo,mas negativamente por suas relaes com os outros termos do sistema. Sua caracterstica exata ser o que os outros no so.

    3 Grfico em Saussure (1996, p. 133).

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    O valor de um signo determinado no em sua positividade, mas em sua negatividade: um valor aquilo que o outro no , qualquer termo que seja est determinado por aquilo que o rodeia (SASSURE, 1996:135). Lemos, mais claramente, nas notas escritas por Saussure (2002:71) antes de 1900, o fato negativo dos valores:

    Considerada de qualquer ponto de vista, a lngua no consiste de um conjunto de valores positivos e absolutos, mas de um conjunto de valores negativos ou de valores relativos que s tm existncia pelo fato de sua oposio.

    A teoria de valor ressalta o fato negativo da lngua e a sua caracterstica sistmica. Desse modo, entendemos que o valor origina-se da oposio dos termos no sistema

    da lngua, a relatividade. Para Saussure, no resta dvidas de que no h fatos positivos na lngua, termos que possam ser considerados e definidos em si mesmo e por si mesmo.

    No texto de 1916, durante o captulo O valor lingstico, Saussure nos diz duas vezes: a lngua uma forma e no uma substncia (SAUSSURE, 1996:131 e 141). A importncia desta frase se revela quando nos perguntamos o que uma forma. O prprio Saussure (2002:36) nos responde:

    FORMA: No uma certa entidade positiva de uma ordem qualquer, e de uma ordem simples; mas a entidade ao mesmo tempo negativa e complexa: que resulta (sem nenhuma espcie de base material) da diferena com outras formas, COMBINADA diferena de significao de outras formas.

    Assim como nas palavras acima citadas, nas notas sobre a essncia dupla da linguagem, Saussure escreve dois textos, relativamente longos, sobre a negatividade e sobre a diferena, onde discute a relatividade dos valores. Neles, ressaltada a natureza totalmente particular da lngua: a negatividade. Lemos as palavras de Saussure (2002:60 - 62):

    [Negatividade e diferena, 1] [...] em vez de serem diferentes termos, como as espcies qumicas etc., no passam de diferenas determinadas entre os termos, que seriam vazios e indeterminados sem essas diferenas

    [Negatividade e diferena, 2] Parece-me que se pode afirmar, propondo para a considerao, o seguinte: jamais se compreender o suficiente da essncia puramente negativa, puramente diferencial, de cada um dos elementos da linguagem, aos quais atribumos, precipitadamente, uma existncia: no h nenhum deles, em nenhuma ordem, que possua essa suposta existncia embora talvez, eu admito, somos desafiados a reconhecer que sem essa fico o esprito seria literalmente incapaz de dominar uma tal quantidade de diferenas, em que no h, em parte alguma, em momento algum, um ponto de

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    referncia positivo e firme. [...] ora, parece que a cincia da linguagem colocada parte na medida em que os objetos que esto diante dela jamais tm realidade em si ou parte de outros objetos a considerar; que, absolutamente, no tm qualquer substrato para a sua existncia fora de sua diferena ou NAS diferenas de todo tipo que o esprito encontra meio de vincular diferena fundamental (mas que sua diferena recproca d a cada um toda a sua existncia) Por sua vez, as diferenas em que consiste toda a lngua nada representariam, nem mesmo teriam sentido em tal questo, se no se quisesse dizer com isso: ou a diferena das formas (mas essa diferena nada ), ou a diferena das formas percebida pelo esprito (o que alguma coisa, mas pouca ciosa na lngua) ou as diferenas que resultam do jogo complicado e do equilbrio final. Assim, no apenas no haver termos positivos, mas diferenas; mas, em segundo lugar, essas diferenas resultam de uma combinao da forma e do sentido percebido

    A ideia da negatividade dos valores ilustrada na metfora do jogo de xadrez. Nele, Saussure compara a lngua ao jogo, em que os objetos no valem por sua materialidade, mas obtm seu valor pela relao que estabelecem com os outros elementos do jogo. Aqui fica evidente que Saussure se recusa a relacionar a lngua realidade das coisas, como se fosse uma nomenclatura. Isso fica claro no texto de 1916 de Saussure (1996:128):

    Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa pea venha a ser destruda ou extraviada: pode-se substitu-la por outra equivalente? Decerto: no somente um cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecena com ele ser declarada idntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor. V-se, pois, que nos sistemas semiolgicos, como a lngua, nos quais os elementos se mantm reciprocamente em equilbrio de acordo com regras determinadas, a noo de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente.

    Um valor determinado pela presena ou pela ausncia de outros valores do sistema lingustico, a relatividade se impe nos dois eixos: um da ausncia de valores as relaes associativas e um da presena simultnea de valores as relaes sintagmticas. Na ltima nota que estava no envelope sobre a essncia dupla da linguagem, o professor fala sobre o fenmeno do valor lingustico em um longo pargrafo em que enfatiza, escrevendo com letras maisculas, as diferenas e o fato puramente negativo. Ele conclui sua reflexo

    com o pequeno pargrafo em que podemos ler a necessidade dos signos presentes e ausentes para gerar o valor. Ao mesmo tempo em que o signo s existe pelos valores, os valores s

    existem pela presena ou ausncia percebida dos signos. Saussure (2002:80) escreve:

    A cada signo existente vem, ento, SE INTEGRAR, se ps-elaborar, um valor determinado [...], que s determinado pelo conjunto de signos presentes ou ausentes no mesmo momento; e, como o nmero e o aspecto recproco e relativo desses signos mudam a cada momento, de uma maneira infinita, o resultado dessa atividade, para cada signo, e para o conjunto, muda tambm a cada momento, numa medida no calculvel.

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    A complexidade da teoria do valor est no fato de que este ordena o fato sistmico e ele de natureza negativa e diferencial.

    3. UMA FILOSOFIA DA LNGUA OU DA LINGUAGEM?

    Falar de uma filosofia da linguagem pode causar um estranhamento inicial quando lembramos que Saussure escolheu a lngua como objeto de estudo e no a linguagem. Essa escolha, inclusive, permitiu Lingustica erigir-se como cincia piloto no incio do sculo

    XX. Voltemos ao texto publicado por Bally e Sechehaye ao apresentar a lngua como objeto: necessrio colocar-se primeiramente no terreno da lngua e tom-la como norma de todas as outras manifestaes da linguagem. (SAUSSURE, 1996, p. 16). Ao realizar esse gesto inaugural, o professor o faz em relao complexidade da linguagem, que tomada em seu todo, a linguagem multiforme e heterclita. Todas as razes elencadas por Saussure para justificar a escolha pela lngua repousam numa contraposio complexidade que a linguagem apresenta, desse modo, podemos entender que escolher a lngua como objeto ao invs da linguagem aponta para uma preocupao com a linguagem, pois a lngua serviria de

    norma ou modelo de outras manifestaes da linguagem. Ser que isto nos aponta a uma preocupao com a linguagem?

    O problema, aparentemente resolvido de modo simples com a frase acima citada da edio de 1916 que o ponto de vista que cria o objeto (1996: 15), ou seja, no h para o linguista um objeto pr-defino, como outras cincias podem ter. A obscuridade do objeto algo que leva o professor a falar de uma impossibilidade de obter um ponto de partida evidente, Saussure (2002: 240) diz:

    Unde exoriar? essa a questo pouco pretensiosa e, at mesmo, terrivelmente positiva e modesta que se pode colocar antes de tentar abordar, por algum ponto, a

    substncia deslizante da lngua. Se o que pretendo dizer a respeito disso verdade, no h um nico ponto de partida evidente.

    Desse modo percebemos uma inquietao para chegar a uma definio simples do que seria o objeto de estudo do linguista. Essa inquietao advm da ideia de que no h como apresentar uma viso positiva do saber sobre a lngua ou mesmo sobre a linguagem.

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    Definir o que negativo e diferencial inicialmente perturbador. A impossibilidade de verificao leva a uma inquietao desesperadora para muitos. Concluir que a perspectiva empirista no pode dar conta da reflexo saussuriana, apesar de muitos critrios empiristas serem satisfeitos, como um mtodo e um objeto, trata-se de outro saber, trata-se de pura forma, sem substncia.

    Entendemos que a ao escrever sobre a lngua, o professor tinha como alvo maior a

    linguagem em toda a sua complexidade. Que lngua e linguagem se delimitam reciprocamente. Ainda nos perguntamos: Saussure supe uma reflexo de amplitude filosfica?

    4. FILOSOFIA E LINGUAGEM

    Os filsofos sempre se perguntaram como a linguagem se relaciona com o mundo e de

    que modo a linguagem se relaciona com a mente humana, o que constitui os sentidos ou qual a importncia da linguagem no processo de nossa constituio como seres humanos. A Filosofia da Linguagem uma disciplina que se ocupa hoje de tais questionamentos.

    Podemos afirmar que a linguagem pertence filosofia se concluirmos que este o primeiro conhecimento humano e que esta relao entre linguagem e conhecimento sempre

    esteve posta a nossa frente.

    Sobre as principais correntes da Filosofia da Linguagem Normand (2009: 108) nos apresenta que a linguagem sempre concerniu filosofia. A autora nos lembra do Crculo de Viena e da necessidade de adotar um ponto de vista outro sobre a linguagem se tratando de

    filosofia da linguagem, o da significao e do sentido, tanto ao tratar da epistemologia como da metafsica. Interessante lembrar que Bouquet (2002) aponta para a presena de uma base metafsica na reflexo saussuriana, tanto quanto a presena de questes epistemolgicas.

    Nomes como T. Hobbes, P. Feyerabend, Frege, Hacking, Locke, Descartes, De Popper, Kant, Leibnitz, Foucault, entre muitos outros abraam discusso que remota ao Menon de Plato, onde Scrates dialoga com um jovem escravo sobre o conhecimento da geometria e no possui um ponto final.

    A reflexo saussuriana nos d a resposta para esta constante reformulao e

    problematizao: trata-se de forma e no de substncia. Isto implica numa reformulao constante, j que no h uma substncia diretamente verificvel.

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    Esta questo no se esgota nessas poucas palavras aqui colocadas, mas nos leva a reler a reflexo de Saussure de um novo ponto de vista, que abarca o sentido, e para alguns, o sujeito falante, como Bouquet (2002:301) nos diz:

    Nem substancialismo aristotlico, nem esquematismo kantiano, a metafsica de Saussure se manifesta como o abre-te ssamo que permite pensar no elo de trs anis que se ligam dois a dois pela intermediao do terceiro sendo esses trs anis Um de todas as coisas, a lgebra da lngua e o esprito do homem. Nisso a semntica de Saussure ilumina, provavelmente, alm dos horizontes epistemolgicos, horizontes metafsicos virgens ainda.

    Observamos que apesar da reflexo saussuriana apresentar uma dimenso filosfica, no podemos deixar de notar que a escolha do objeto permitiu tratar a Lingustica como cincia. Talvez, como diz Dosse (2007: 81), mais que um mtodo e menos que uma filosofia, isto que Saussure inaugura. Dessa perspectiva o discurso Saussuriano fruto de uma discusso positivista do seu tempo. E no podemos fechar os olhos para a postura

    cientfica dos escritos de Saussure do mesmo modo que no podemos fechar os olhos para a dimenso filosfica dos construtos tericos do professor.

    A oscilao entre o saber cientifico e filosfico que h nas palavras escritas por Saussure, produz um saber no-positivo que confere Lingustica a etiqueta de Cincia que

    se inscreve na histria da Lingustica como gesto inaugural de um saber positivo sobre os fenmenos da linguagem humana.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    11. ______. Escritos de Lingustica Geral. Organizado e editado por Simon Bouquet e Rudolfo Engler. Traduo de Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lcia Franco. So Paulo: Cultrix, 2002.

    12. SILVEIRA, Eliane. As marcas do movimento de Saussure na fundao da Lingustica. Campinas: Mercado de Letras, 2007.

    RESUMO: A Lingustica, tal como a conhecemos atualmente, funda-se com o gesto saussuriano de escolher a lngua como objeto de estudo dos linguistas. Quais as consequncias desse ato? Podemos dizer que esse gesto apresenta o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem? Este artigo visa refletir sobre o assunto a partir das notas escritas pelo professor publicadas em 1957 por Godel que apresentam o pensamento de Saussure sob um novo ngulo. Segundo Bouquet e Engler, esta reflexo apresenta uma filosofia da linguagem, termo que o prprio Saussure empregou algumas vezes. Consideraremos, especialmente, as notas que carregam o termo filosofia da linguagem e as consideraes de Bouquet acerca do tema. PALAVRAS-CHAVE: filosofia da linguagem; linguagem; Saussure.

    ABSTRACT: Linguistics, as we know it today, is based on the gesture of Saussurean choice of language as an object of study by the linguists. What are the consequences of this act? Can we say that this gesture represents the development of a philosophy of language? Why, then, the need to leave from the language? This article aims to reflect on the matter from the notes written by the professor published in 1957 by Godel. We will consider, in particular, notes that carry the term philosophy of language, and Bouquets considerations on the subject. KEYWORDS: philosophy of language; language; Saussure.

    RESUMEN: La lingstica, tal como la conocemos actualmente, es fundada con el gesto saussuriano de escoger la lengua como objeto de estudio de los lingistas. Cules son las consecuencias de este acto? Podemos decir que este gesto presenta el desarrollo de una filosofa del lenguaje? Este artculo procura reflexionar sobre el asunto a partir de las notas escritas por el profesor publicadas en 1957 por Godel, las cuales presentan el pensamiento de Saussure bajo un nuevo ngulo. Segn Bouquet y Engler, esta reflexin presenta una filosofa del lenguaje, trmino que el propio Saussure emple algunas veces. Consideraremos, especialmente, las notas que recogen el trmino filosofa del lenguaje y las consideraciones de Bouquet sobre el tema. PALABRAS CLAVE: filosofa del lenguaje; lenguaje; Saussure.

  • ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 13

    Recebido no dia 01 de dezembro de 2009. Artigo aceito para publicao no dia 07 de maro de 2010.