revista lusiada 23

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Revista Convergência Lusíada, 23

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  • Revista Convergncia Lusada, 23

  • Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro

    DIRETORIA (Binio 2006/2008)

    Antonio Gomes da Costa (Presidente)Alcides Martins (Vice-Presidente Administrativo)

    DEPARTAMENTOSCentro de Estudos:

    Gilda da Conceio Santos (Vice-Presidente)Madalena Simes de Almeida Vaz Pinto (Diretora)

    Biblioteca:Antnio Baslio Gomes Rodrigues (Vice-Presidente)

    Esther Caldas Guimares Bertoletti (Diretora)Secretaria:

    Albino Ferreira Macedo (Vice-Presidente)Armnio Santiago Cardoso (Diretor)

    Finanas:Jorge Manuel Mendes Reis Costa (Vice-Presidente)

    Francisco Gomes da Costa (Diretor)Patrimnio:

    Agostinho da Rocha Ferreira dos Santos (Vice-Presidente)ngelo Leite Horto (Diretor)

    Procuradoria:Bernardino Alves dos Reis (Vice-Presidente)

    Antnio da Silva Correia (Diretor)Centro Cultural:

    Antnio da Silva Pea Loul (Vice-Presidente)Jos Manuel Matos Nicolau (Diretor)

    Diretores:Joo Manuel Marcos Rodrigues Reino

    Joaquim Manuel Esparteiro Lopes da CostaLus Patrcio Miranda de Avillez

    Carlos Alberto Soares dos Reis Martins

    Sede Prpria:Rua Lus de Cames, 30 Centro

    20051-020 Rio de Janeiro RJ BrasilTelefone: 55 (21) 2221-3138 Fax: 55 (21) 2221-2960

    [email protected]

    Torne-se scio do Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro.

  • Revista Convergncia Lusada, 23

    Nmero especialCentenrio de Agostinho da Silva

    (19062006)

    Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de JaneiroCentro de Estudos

    1 Semestre - 2007

  • Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje. On demande lchange.Man bittet um Austausch. Chiedesi scambio.

    Os artigos assinados so de inteira responsabilidade dos seus autores.

    Revista Convergncia LusadaISSN 1414-0381

    CONSELHO EDITORIALA. Gomes da CostaAntnio Baslio RodriguesAntnio da Silva Pea LoulBeatriz BerriniCarlos ReisCleonice BerardinelliElza MineEsther BertolettiEvanildo BecharaGilberto VelhoGilda SantosIzabel MargatoJorge Fernandes da SilveiraLaura Cavalcante PadilhaLlia Parreira DuarteMarisa Lajolo

    ORGANIZAO DESTE NMEROAntnio Gomes da Costa - Editor Amon Pinho DaviCarlos Francisco MouraGilda Santos

    Reviso de textos em ingls:Berty Biron e Natlia GuerreiroPreparao de originais: Sebastio Edson MacedoReviso: Jos Bernardino CottaCapa: Rossana HenriquesEditorao: Rossana Henriques e Ruy Barbosa

    Ilustrao da capa: Agostinho da Silva, poeta solta Ilustrao de Victor Hugo Marrei-ros segundo idia de Lus S Cunha (edio do Elos Clube de Macau, Junho de 2006)

  • Prtico

    A. Gomes da Costa Homenagem a Agostinho ............................................................................11

    Depoimento

    Lus S Cunha Com Agostinho: Macau no Quinto Imprio ...............................................15

    Ensaios

    Adriano de Freixo A Lngua Portuguesa como Utopia: Agostinho da Silva e o Ideal da Comunidade Lusfona ............................................................21

    Amon Pinho A dispora da inteligncia lusa na hermenutica histrica de Agostinho da Silva: uma teoria antielitista da histria de Portugal? ..............................................................................28

    Antnio Braz Teixeira Agostinho da Silva e a Escola de So Paulo .............................................45

    Antnio Cndido Franco Ntula sobre o Quinto Imprio em Agostinho da Silva ..............................55

    Antnio Telmo Agostinho da Silva e os Tits .......................................................................63

    Carlos Francisco Moura O Professor Agostinho da Silva e o Ncleo de Documentao e Informao de Histria Regional da Universidade Federal de Mato Grosso .........................................................................68

    SUMRIO

  • Celeste Natrio A arte de viver em Agostinho da Silva ........................................................75

    Constana Marcondes Csar Agostinho da Silva e a construo do mundo do esprito ............................79

    Dalila Pereira da Costa Agostinho da Silva: Um Filsofo Pedagogo e uma Teocracia ......................88

    Germn Labrador Mndez Potica da Nao em Agostinho da Silva. Comunidades de discurso globalizadas e hermenutica da literatura nacional.................93 Helena Maria Briosa e Mota Agostinho e a Literatura Portuguesa .........................................................112 Henryk Siewierski Brasil, pas do futuro: segundo Stefan Zweig e Agostinho da Silva ..................................................................................148

    Isaque Pereira de Carvalho Teologia e mitopoitica da histria em Agostinho da Silva ......................159

    Joo Ferreira O pensamento filosfico de Agostinho da Silva .........................................170

    Joo Maria de Freitas Branco Subsdios para um perfil filosfico .............................................................180

    Joaquim Domingues Ser ou no ser filsofo ................................................................................205

    Jos Eduardo Reis A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva ...................212

    Jos Santiago Naud Deus e liberdade em Agostinho da Silva ...................................................228

  • Magda Costa Carvalho Como cada momento do mundo mais rico e complexo do que o anterior: Agostinho da Silva e Henri Bergson ........................232

    Manuel Cndido Pimentel O Fingimento Permanncia de um tema pessoano em Agostinho da Silva ...............................................................................244

    Maria Leonor L. O. Xavier Agostinho da Silva e as interrogaes do tempo que urge .........................259

    Miguel Real Agostinho da Silva, personificao do intelectual portugus .....................272

    Olga Pombo A Escola como Memria do Futuro ..........................................................281

    Paulo Borges Do nada que tudo. A poesia pensante e mstica de Agostinho da Silva ................................................................................292

    Pinharanda Gomes Tito Lucrcio Caro segundo Agostinho da Silva ........................................326

    Renato Epifnio A Viso de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibria e da Europa ................................................................................331

    Romana Valente Pinho O racionalismo-mstico: a herana de Antnio Srgio no pensamento de Agostinho da Silva .......................................................342

    Documentos

    Amon Pinho Antologia Comemorativa: nota prvia......................................................356

  • Agostinho da Silva Filosofia Nova ..........................................................................................358 O Problema das Pennsulas Mediterrneas .............................................362 Duas Idades de Ouro ...............................................................................372 Reflexo sobre Dinheiro ...........................................................................375 Comunidade e Poltica .............................................................................379 Filosofia Nacional ....................................................................................382 Perspectiva Brasileira de uma Poltica Africana ......................................386 Fontes e Pontes do Futuro. Tema: Educadores Portugueses Antnio Srgio ...........................................394 Alguma Nota sobre Casais ........................................................................400 Ombrear com Herculano ..........................................................................405

    Resenhas

    Miguel Real Sobre o pensamento de Agostinho da Silva Viso analtica e plural .............................................................................409 Viso culturalista .....................................................................................418 Viso espiritualista ....................................................................................422 Viso racionalista ......................................................................................438

    Quem somos: o PPRLB .......................................................................444

    Normas editoriais da revista Convergncia Lusada ........445

  • PRTICO

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    Homenagem a Agostinho

    No 1 centenrio de nascimento de Agostinho da Silva, o Real Gabinete Portugus de Leitura dedica memria do Mestre este nmero especial da Convergncia Lusada.

    Reuniram-se, alm de textos dele prprio, vrios estudos e trabalhos de autoria de alguns de seus amigos, que tiveram o privilgio de conviver com ele, no Brasil ou em Portugal, e de outros, que sendo tambm admira-dores de sua Obra e de seu Magistrio repartiram a distncia com Agostinho da Silva o Reino do Esprito Santo e a viso do Quinto Imprio.

    Com feitio e sem licena, todos foram condminos de sonhos, de uto-pias e esperanas.

    Em nome do Real Gabinete Portugus de Leitura, agradecemos penho-radamente a valiosa colaborao que recebemos para editar este nmero de louvor e de homenagem a um Homem que, nas palavras de Antnio Srgio, foi, acima de tudo, um Apstolo. Que nos perdoem os demais autores dos escritos ora publicados, mas permitimo-nos destacar, desde logo, o trabalho admirvel que teve para a edio deste nmero o Professor Amon Pinho, tanto na seleo e organizao da antologia agostiniana, como no empenho junto a vrios colaboradores e na excelncia dos textos de sua autoria.

    Conhecemos pessoalmente Agostinho da Silva depois de seu retorno definitivo a Lisboa. Por vrias vezes estivemos em sua casa ou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade a ouvir as anlises que fazia, com rara clarividncia e sem compromissos, sobre o Brasil e o mundo que os portugueses criaram. Nem todas as suas projees feitas, na maioria das vezes, em perodos de mu-taes polticas e sociais foram confirmadas pelos acontecimentos posteriores, o que foi uma pena, como ele, talvez j desconfiasse, olhando os mapas dos continentes, a insensibilidade dos polticos e os nevoeiros da costa...

    Por seu conselho e com sua ajuda, elaboramos o esboo de estatutos de uma Fundao que teria por escopo principal construir pontes de diversos tamanhos e espcies entre os pases e as comunidades de Lngua Portuguesa. E foi com base nesse projeto e nas conversas de Agostinho da Silva que pouco tempo depois, juntamente com o Embaixador Jos Manuel Fragoso, fomos ter

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    com empresrios portugueses e brasileiros (cerca de 20) para convenc-los a criar a Fundao Cultural Brasil-Portugal. Tinha ela o objetivo de promover, nos campos da Educao, da Cultura, das Artes, das Cincias e da Cooperao o desenvolvimento entre os povos de Lngua Portuguesa, independentemente das diversidades tnicas, polticas ou religiosas. A misso foi cumprida com xito e, ento, pensamos que poderia estar ali o embrio do sonho maior de Agostinho da Silva. Sentimos que o fruto que tnhamos nas mos poderia ama-durecer. Nas cartas vrias que mandava periodicamente a seus amigos, no s de Portugal, mas tambm do estrangeiro, ele, que era homem de ao, mas tinha o jeito de missionrio e o olhar de monge contemplativo, nunca tocava em meios materiais. Nem sequer nas despesas de fotocpias e de correio que pagava do prprio bolso para enviar suas reflexes. A propsito desse trao de seu carter, vale a pena lembrar o encontro que teve com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva e do pedido que lhe fez ao final da conversa: Um dia, se eu preci-sar de alguma coisa para a qual no me chegue o dinheiro, ento, nessa altura, tomarei a liberdade de lhe dizer quanto preciso... (Vide A ltima Conversa de Luiz Machado.) No entanto, numa das tardes em que falvamos sobre a Fun-dao, deixou-nos entrever que a idia j de anos no avanara, no porque esperasse verbas do Governo ou o apoio de grandes mecenas, pois, no fundo, o que queria era que se formasse uma corrente gigantesca de homens de boa vontade, dispersos por todo o espao da lusofonia, unidos pela Lngua e pela Cultura, parceiros de sonhos e de valores espirituais, que estivessem dispostos a apontar caminhos de futuro e a lutar pela construo de um mundo novo e um mundo melhor.

    A. Gomes da Costa

  • DePOIMenTO

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    Com Agostinho: Macau no Quinto Imprio

    Lus S Cunha*

    Foi h vinte anos. Vsperas da minha partida para a longngua Ma-cau (a que foi que to longe nos trouxeram?, inquiria Camilo Pessanha...).

    Francisco Palma Dias marcou-me um encontro de despedida com Agostinho da Silva.

    Acabado de chegar, depois de 20 anos no Tibete, o Francisco, na sua figura e verbo, transparecia a paz e a luz s hauridas naquelas alturas onde convivem o azul e o oiro puros.

    Agostinho da Silva l estava, com o seu perfil de medalha antiga, na sua simpleza de profeta humilde, de pobre franciscano esmoler de infinitos, ou de marinheiro aparelhado a todas as navegaes e pronto a todas as par-tidas sempre.

    Por todos os lados, os gatos, calmos, imprevisveis, no suave ballet dos gestos elsticos.

    Na parede, fascinava um caixilho com duas dezenas de ns de mari-nheiro: que imaginao, que flexibilidade, que delicadeza de rendado operado pelos grossos dedos dos homens do mar!

    Foram quatro, cinco (?) horas de conversa vadia, ao melhor estilo de Agostinho da Silva, em trina comunho encerrada num inolvidvel ritual de despedida. que tive o pressentimento, ento inconsciente, de ter sido ali no-meado para uma nova misso, como se espada invisvel me aflorasse os om-bros. S tive conscincia mais clara desse momento, e desse desgnio, muitos anos mais tarde em Macau.

    * Lus S Cunha, residente em Macau h 20 anos, foi Director da Revista da Cultura do Instituto Cultural de Macau (1986-2001), editou um nmero especial sobre as relaes histricas Macau/Brasil, prefaciado por Agostinho da Silva). actualmente Secretrio-Geral do Instituto Internacional de Macau, Presidente do Elos Clube de Macau, Membro do Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Macaenses e da Direco da Confraria da Gastronomia Macaense, e Director das revistas Macau/Focus e Oriente/Ocidente do Instituto Internacional de Macau.

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    Durante muitos anos Director da Revista da Cultura do Instituto Cul-tural de Macau (de 1986 a 2001), procurei que fosse entroncado um ramo da sinologia e do orientalismo ao movimento da cultura de expresso lusfona nos finais do sculo XX.

    Em Macau, depois do desfalecimento de Portugal em Alccer-Qui-bir, continuara, sob o dossel do Padroado, o movimento do grande encon-tro de culturas convocado pela vocao universalista da alma lusada.

    Depois de descobrir o Outro, impunha-se a fase seguinte de conhe-cer e compreender o Outro. No meio das cinzas de uma ptria esvada, s o verbo ureo do P.e Antnio Vieira teve assomos enrgicos de vibrar o clarim para continuar. Mas s em Macau, pelos jesutas, encandecidos no sonho de evangelizao do Japo e da China, o movimento espiritual logrou operar o maior fenmeno de mtuo conhecimento e compenetrao culturais alguma vez acontecido em algum tempo na Histria da Humanidade.

    Tambm tudo isso foi entrando em vias de esgoto, pelas eras, mas a sua memria e continuidade foram retomadas nos finais do sculo passado, nos quinze anos em que Portugal preparou o retorno de Macau me China.

    Quando em 1995 aconteceu o tempo de dedicar um nmero integral da Revista da Cultura s ligaes histricas entre Macau e o Brasil, foi como se um grande oceano do passado reflusse aos tempos presentes e logo surgiu a lembrana de convocar a voz mais prpria apresentao da edio Mestre Agostinho da Silva.

    Contactei-o para lhe pedir que me transmitisse por escrito um resumo do que explicara, abrira, iluminara e propusera sobre a misso de Macau na religao ao mundo da Lngua Portuguesa e concretamente ao Brasil, naquela conversa em sua casa em maio de 1986.

    Para ele, o movimento agora teria que ser em sentido contrrio, e Ma-cau, cabo do mundo lusada, teria como misso trazer o Oriente para Ociden-te, passando por frica de permeio em direco ao planalto brasileiro reno-vada cosmografia espiritual de um abrao do universo ao universo.

    S mais tarde percebi que um certo optimismo transparecente nas suas palavras provinha talvez da materializao daquela edio. Longe de Portugal, ignorava eu ento que Agostinho da Silva se desiludira, em textos anteriores, do contributo de Macau para a arquitectao da Ptria Lusfona, porque Ma-cau se abolira em fbricas de jogo. Nada haveria que esperar mais de Macau... As aparncias davam-lhe razo, num momento em que a imagem projectada pelas notcias inculcava aquela degenerescncia da civitas de Macau, irremedi-vel e exclusivamente cristalizada como cidade do jogo.

  • 17

    Era um tempo em que Agostinho balanava entre duas esperanosas expectativas se seria a China de Deng Xiao Ping (a despertar para a comu-nidade das naes e para o cumprimento de uma nova etapa do seu destino) ou o Brasil-sntese-do-todo-universal ao encontro do futuro qual dos dois equivalentes espaos protagonizaria o movimento prossecutor da escatologia do Reino dos Cus na Terra, regida a ecmena dos homens pelo Evangelho Eterno, e pousando a coroa imperial sobre a fronte da Criana.

    Logo se viu que Agostinho mentava a prioridade do Brasil, nau capitnea de todo o espao lusfono na demanda daquele eschaton de perfeio na Terra.

    Se h ditado popular que valha um inteiro sistema de filosofia ser aquele em que a voz popular (que de Deus) confia em que escreve Deus direi-to por linhas tortas. Foi girando o planeta e foram girando as roletas dos casi-nos, as ideias dos homens e os novos cenrios. Em Macau, sempre os relgios rolaram mais depressa. Por orientao de Pequim, Macau passou a ser, desde h dois anos, a plataforma de intercmbios comerciais entre a China e os Pa-ses de Lngua Portuguesa. Logo se enfileiraram algumas iniciativas culturais a acolitar tantas e to gradas operaes econmicas, o que no estava previsto nos planos lucrativos. Em dois anos viu-se a espantosa multiplicao de factos e realizaes que confirmaram Macau como centro propulsor e dinamizador de um arrastado nimo, retracto e titubeante, do movimento lusfono. No h ms, no h semana, que se no realize em Macau qualquer encontro ou seminrio de instituies ou classes profissionais dos pases lusfonos.

    Depois do Frum Para a Cooperao Econmica e Comercial (j re-alizado duas vezes), os 1os. Jogos da Lusofonia convocaram a Macau o mais belo convvio de embaixadas humanas de todos os territrios que em Portu-gus se conversam.

    No Instituto Internacional de Macau, assinmos mais de quarenta protocolos, em seis anos, com grandes instituies de pases lusfonos, sobre-tudo do Brasil, que permanentemente so confirmados em actos, realizaes e contactos mtuos. Organizaram-se seminrios e publicaram-se livros, verbi gratia, um volume em chins do principal especialista em assuntos do Brasil da Academia de Cincias Sociais de Pequim, com a histria econmica, polti-ca e social do Brasil, dos anos de 1920 ao fim do sculo XX.

    Aliado Fundao Jorge lvares, Fundao Calouste Gulbenkian e Comisso Organizadora dos 1os. Jogos da Lusofonia, o Instituto Internacional acabou de realizar em Macau o 1 Encontro de Poetas Lusfonos e Chineses, onde foram convocadas algumas das mais altas vozes das ars poetica da luso-fonia e da China.

    Com Agostinho: Macau no Quinto Imprio Luis S Cunha

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    O Elos Clube de Macau props-se, durante este ano de assinalamento do Centenrio do nascimento do Mestre, associar-se ao grande programa de actos comemorativos, tendo organizado a mostra de duas exposies evoca-tivas de Agostinho da Silva e uma evocao do Mestre durante a Assembleia Geral de AULP em Macau (juntamente com o IIM) e editado um pster come-morativo (Agostinho da Silva, Poeta Solta) e um desdobrvel com um texto de Agostinho alusivo relao de Macau com o Brasil (que titulmos Macau no Quinto Imprio).

    Prosseguiremos nesta orientao durante o ano de 2007, e pelos prxi-mos, em meio de ventos que nos rodeiam ou de absoluta calma ou de rajadas ponteiras.

    Agostinho da Silva, cremos bem, teria ficado contente, ao ver as coisas a mexer assim, e, assim, tocadas de imprevisibilidade, sopradas pelo Esprito.

    Em Agostinho, vemos agora, sobretudo, o Profeta da Ptria lusfona, antecipao na Terra daquela Jerusalm que h-de descender dos Cus pa-ra aqui implantar a sua purssima arquitectura diamantina. Ptria lusfona que, por razes psticas e sficas, vemos destinada a embrionar a sua sntese no Brasil.

    Aqui, de Macau, polarizados no seu pensamento e modelo humano, trabalharemos para o progresso daquele projecto universal, que cultural, e de sntese da Europa e frica e Oriente, onde Macau continuar a ser ponte de influncia, para o Ocidente, da disciplina confucionista depois superada pela libertria e imprevisvel vadiagem taosta, quando comear a ser o tem-po de ser Deus.

    Em Macau neste princpio de Milnio, na auscultao dos arcanos mais fundos da Ptria da Luz e na contemplativa intuio das leis cclicas a que as Eras obedecem, crentes na transcendente emergncia daquela nclita Ptria, ptria de mtrias conversveis na unidade da mesma lngua, modelo da irmandade universal, operadora da religao do separado e de harmonizao dos contrrios, abolidora das distncias e das divergncias, transmutadora do tempo em espao para realizar a eternidade no presente, onde Tudo para to-dos, gratuita a Vida e o Eterno Evangelho ser falado em Portugus.

    Em Macau, tambm aparelhamos j a nau para o desembarque ama-nh nas areias doiradas da Ilha dos Amores.

  • enSAIOS

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    A Lngua Portuguesa como Utopia: Agostinho da Silva e o Ideal da Comunidade Lusfona

    Adriano de Freixo*

    Em julho de 1996 h exatamente onze anos era criada oficialmente a Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa CPLP, em uma Cimeira realizada em Lisboa que reuniu os Chefes de Estado e de Governo dos sete pases Portugal, Brasil, Angola, Moambique, Guin-Bissau, Cabo-Verde e So Tom e Prncipe que ento adotavam o portugus como idioma oficial. A articulao efetiva desta organizao internacional representou a concreti-zao do velho ideal da construo de uma Comunidade Lusfona presente, pelo menos, desde o final do sculo XIX e revivido reiteradas vezes ao longo do sculo XX.

    No entanto, foi a partir da segunda metade do sculo passado quan-do diversos intelectuais brasileiros e, principalmente, portugueses comearam a pensar na constituio dessa comunidade, sob diferentes perspectivas que esta idia comeou efetivamente a ganhar fora:

    A CPLP uma viso de carter mais ou menos utpico, a partir da dcada de 50, teorizada por intelectuais da craveira de Agostinho da Silva, Gilber-to Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho, Adriano Moreira, Darcy Ribeiro, entre outros. Era o sonho que ento se designava por Comunidade Luso-Afro-Brasileira.1

    Porm, embora a concretizao da criao da CPLP se deva muito atuao de um brasileiro Jos Aparecido de Oliveira, Embaixador em Lisboa durante o governo de Itamar Franco (1992-1994) , foi o Estado portugus o

    * Doutorando em Histria Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Coordenador do Curso de Relaes Internacionais do Centro Universitrio Metodista Bennett. Mestre em Histria Poltica pela UERJ. Organizou, juntamente com Oswaldo Munteal Filho, os livros A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos Anos do Autoritarismo (Rio de Janeiro: Contraponto, 2005) e O Brasil de Joo Goulart: Um Projeto de Nao (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora da PUC-Rio, 2006).

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    grande incentivador de sua criao. importante ressaltar que, na dcada de 1980, setores da elite poltica portuguesa notadamente do Partido Socialista e da intelectualidade progressista encamparam o ideal da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa e que, nesse momento, se procurou construir um consenso nacional em torno da sua construo, atravs da idia da lusofonia, uma releitura, em novos parmetros, do discurso secular da originalidade da cultura portuguesa e das marcas que ela deixou no mundo, a partir das gran-des navegaes dos sculos XV e XVI.

    Deste modo, era necessrio referendar esse discurso buscando em ex-perincias passadas ou em escritos de intelectuais e pensadores bastante dis-tintos entre si os elementos necessrios para o processo de legitimao dessa Comunidade, ento em processo de gestao. Isso ocorre na perspectiva da inveno de tradies explicitada por E. Hobsbawm e T. Ranger, no mo-mento em que Portugal ensaia o seu retorno frica depois de quase uma dcada de esquecimento. Esses autores, ao analisarem as tradies inventa-das, afirmam que elas parecem classificar-se em trs categorias superpostas:

    a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coeso social ou as condies de admisso de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituies, status ou relaes de autoridade; e c) aquelas cujo propsito principal a socializao de idias, sistemas de valores e padres de comportamento.2

    No entanto, como os mesmos autores deixam claro, mesmo as tradi-es inventadas devem possuir respaldo social, seno no conseguiriam so-breviver.3 Assim, a idia da Comunidade Lusfona busca apoio em elementos bastante presentes no imaginrio social portugus, desde a percepo de que aquela pequena nao teria desempenhado um papel singular na Histria do Mundo Ocidental at o velho, e sempre presente, sonho imperial.

    O resgate dessas questes foi essencial para a construo do discurso que procura legitimar a constituio de uma Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa, visto que, como argumenta Enilde Fausltich, um dos pontos de vista possveis para se apreender o conceito de lusofonia aquele que:

    (...) localiza em todos os portos tocados pelos portugueses, nos quais a lngua foi disseminada, como espao de lusofonia. Nestes, os sujeitos so identitrios de uma cultura ibrica que, em maior ou menor grau, formou a cidadania do Estado-nao. 4

  • 23

    Assim, a obra de diversos dentre esses intelectuais comeou a ser res-gatada e relida, dentro da perspectiva de legitimao do discurso da lusofonia e da CPLP que ento estava sendo articulada. Nesse contexto, alguns deles so lembrados nos discursos oficiais e na produo intelectual do perodo como pais-fundadores da nascente Comunidade, os visionrios que teriam antevisto a integrao do mundo lusfono e formulado as suas bases tericas e por que no dizer ideolgicas.5 Dentre eles, destaca-se a figura de Agostinho da Silva (1906-1994), um dos mais originais pensadores portugueses do sculo XX.

    Freqentemente citado em discursos e mesmo em documentos ofi-ciais como um dos inspiradores da CPLP, Agostinho da Silva misto de edu-cador, filsofo e pensador, considerado como uma espcie de guia espiritual de parte da intelectualidade brasileira e portuguesa deste sculo6 formulou a concepo de uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira bastante original e pessoal refletindo uma viso de carter universalista, mstico, visionrio, espi-ritualista, mtico e messinico que remonta aos escritos de Joaquim de Fiore na Idade Mdia sobre o Reino do Esprito e os do P.e Antnio Viei-ra sobre o Quinto Imprio. Para ele, Portugal, responsvel pelo incio do processo de mundializao, carregaria uma misso histrico-messinica: a de ser o responsvel pela paz mundial devido aos laos constitudos por ele, no passado, com os diversos povos do mundo, pois se, no passado, Portugal uni-ficou o mar, sua tarefa futura ser a unificao do mundo pelo esprito, pela lngua, constituindo-se a nao portuguesa como a ptria virtual de quan-tos a falam,7 entendendo, assim, esse Portugal como, acima de tudo, a lngua portuguesa e seus valores e no mais o Portugal-Territrio preso aos limites de suas fronteiras geogrficas.8 Dessa maneira, essa misso concretizar-se-ia atravs de uma Comunidade de Lngua Portuguesa em que Portugal se sacrificaria, enquanto nao, para ser s mais um dos elementos componentes dessa Comunidade que marcaria o incio de uma nova era:

    A Comunidade Luso-Brasileira tem de ser, quando existir, no outra qualquer espcie de Imprio, uma fora concorrendo com outras foras, uma outra centralizao que siga a montona corrente das centraliza-es, mas realmente o comeo de uma vida nova para a Humanidade, o primeiro passo seguro para a reconquista de um Paraso que s tem estado em esprito de telogos ou de filsofos ou de poetas, mas que jamais entrou nas cogitaes de polticos; a linha mstica e religiosa tem de ser aqui mais importante do que as argcias dos realistas que manejam homens como se eles no fossem imagem e semelhana de Deus: e nenhuma economia, nenhuma sociologia, nenhum ato huma-

    A Lngua Portuguesa como Utopia... Adriano de Freixo

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    no verdadeiramente criador tem de ser considerado seno como o sinal, a manifestao e a indicao de que est na vontade divina, na prpria estrutura do evoluir no mundo, que ele siga pelos caminhos a que a Comunidade o pode dirigir.9

    Crtico dos sistemas polticos contemporneos, Agostinho da Silva definia o capitalismo como uma fatalidade histrica da qual os homens de-veriam libertar-se e considerava o socialismo apesar de melhor do que o seu sistema antagnico imperfeito. Para ele, um dia tanto o capitalismo como o socialismo desaparecero da face do mundo, j que a revoluo que se aproxima, de base tecnolgica, determinar a supresso quase completa do trabalho obrigatrio. Essa ocupao passar a ser desempenhada pelas m-quinas, voltando o homem sua verdadeira vocao.10 O mundo novo com o qual ele sonhava consistia na expresso crescente de homens seguros de que possvel, pela tcnica, garantir vida e acesso aos bens da cultura a todos; homens abertos ao amor e a ao.11

    Nesta nova era, a lngua portuguesa desempenharia um papel funda-mental por ser falada em todas as partes do globo e representar o smbolo da expanso portuguesa que lanou as bases da construo do novo mundo, do Reino do Esprito. Nesta nova ordem, o Brasil teria um papel fundamental, pois traria em si os elementos do verdadeiro Portugal, aquele Portugal arcaico que se perdeu com o fracasso histrico da nao. Para ele, em sua utopia, o Brasil a concretizao do sonho do Quinto Imprio, a Ilha dos Amores de Cames, o No-Lugar capaz de ser o centro de uma nova civilizao por ser o ponto de encontro de diversas culturas, onde a miscigenao favoreceu a tolerncia e a moderao. O significado do Brasil para Agostinho da Silva bastante perceptvel quando ele descreve os seus sentimentos e impresses ao chegar ao pas, fugindo do obscurantismo salazarista:

    Ento ao chegar ao Brasil, logo vrias coisas foram sucedendo. A pri-meira, talvez, foi a que me encontrei a mim prprio; de repente, des-cobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntrio: (...) eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fo-ra, efetivamente, me batia porta para que eu abrisse. (...) me deixei abrir, me deixei ser o que eu prprio na realidade era (...). Afinal, o que era? Eu como que dei um pulo atrs de mim prprio e fui inserir-me no sculo XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direo frica para fugirem do regime econmico, social e religioso de Portugal ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer, o que o

  • 25

    Brasil fez comigo, logo que l desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no cho, para ir cair a pelo sculo XV ou XVI. (...) Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim prprio, eu fui outro. (...) O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu pre-cisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu do esprito, e que hoje permanece ntido.12

    Dessa forma, o verdadeiro Portugal, o Portugal real, concretizar-se-ia nesta comunidade em que a verdadeira ptria de todos os povos lusfonos brasileiros, portugueses, moambicanos, guineenses, cabo-verdianos, timo-renses e demais seria a lngua portuguesa, o idioma universal, por excelncia.

    Sem exercer uma militncia poltica direta no Brasil, alm de articu-lar-se com o grupo de intelectuais portugueses aqui exilados, Agostinho da Silva ocupou o cargo de Assessor de Poltica Cultural Externa da Presidncia da Repblica, no incio dos anos de 1960. Neste perodo, estabeleceu uma slida relao de amizade com polticos e intelectuais brasileiros como Darcy Ribeiro sobre quem exerceu grande influncia e Jos Aparecido de Oliveira, que chega a afirmar que a Poltica Externa Independente de Jnio Quadros, com sua inclinao para a frica e para a sia, teve em Agostinho da Silva um de seus inspiradores.13 Essa afirmao feita, sem sombra de dvidas, porque na nova ordem mundial, pensada por Agostinho da Silva, pases como o Brasil, o Mxico e a China deveriam desempenhar um papel fundamental, visto que, em sua concepo, a crise do nosso tempo a crise da civilizao europia e, por extenso, da civilizao ocidental racional e materialista. Assim, o Brasil, lugar por excelncia da fuso de etnias e culturas, seria o plo do Reino do Esprito e deveria buscar o dilogo com o Oriente em especial com a China para abrir caminho para uma nova idade do ouro para a humanidade.

    Retornando a Portugal, continuou com uma intensa produo inte-lectual, alm de desenvolver outras atividades, como, por exemplo, a apresen-tao de um programa de televiso intitulado Conversas Vadias, uma ilha de inteligncia em meio mesmice televisiva. Alm disso, na dcada de 1980, tor-nou-se Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Rela-es Internacionais da Universidade Tcnica de Lisboa e do Gabinete de Apoio do Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa do Ministrio da Educao, alm de continuar a proferir palestras e conferncias em diversas partes do mundo, sempre difundindo a cultura portuguesa e os ideais pelos quais lutou ao longo de sua vida. Em 1994, morreu em Lisboa aos 88 anos de idade deixando cen-tenas de discpulos seduzidos por suas idias, onde a cultura e a civilizao

    A Lngua Portuguesa como Utopia... Adriano de Freixo

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    Revista Convergncia Lusada, 23 2007 ISSN 1414-0381

    portuguesas aparecem com um papel da maior importncia na realizao do homem em sua totalidade que se articulam em torno de instituies como a Associao Agostinho da Silva e o Crculo dos Amigos de Agostinho.

    Portanto, se realmente podemos falar em pais-fundadores da CPLP, Agostinho da Silva um dos mais importantes ao lado de Gilberto Freyre dentre eles. Arauto do Quinto Imprio, que se concretizaria atravs da Lngua Portuguesa um imprio sem imperadores, no sentido estrito do termo , ele imagina o reinado da fraternidade universal, onde a humanidade atingiria a sua plenitude, mesclando a liberdade com o bem-estar econmico e social. At que ponto a CPLP a Comunidade Lusfona efetivamente existente pode con-tribuir para a concretizao dessa utopia algo passvel de inmeros questiona-mentos; porm, sem sombra de dvida, um belo sonho a ser sonhado. E como diz uma conhecida cano portuguesa (...) sempre que um homem sonha/o mundo pula e avana/como bola colorida/ entre as mos de uma criana.14

    Notas1 BRAGA, Jos Alberto (Coord.). Jos Aparecido: o homem que cravou uma lana na lua. Lisboa: Trinova Edito-ra, 1999, p. 37.

    2 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A Inveno das Tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, 2a ed, p. 17.

    3 Idem. p. 272.

    4 FAULSTICH, Enilde. CPLP: um lugar de falas mltiplas. In: SARAIVA, Jos Flvio (Org.). CPLP Comuni-dade dos Pases de Lngua Portuguesa. Braslia: IBRI, 2001, p. 118.

    5 Utilizamos aqui a concepo de Ideologia formulada por Antonio Gramsci. Nesse sentido, a ideologia deve ser entendida como um discurso que justifica/explica, simbolicamente, as prticas dos diversos grupos sociais; sendo assim, no podemos consider-la como falseamento do real, mas como (...) uma concepo de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas (...). In: GRAMSCI, Antonio. Concepo Dialtica de Histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989, 8 ed., p.16.

    6 RIBEIRO, Maria de Ftima Maia. Volta da Comunidade: formaes luso-brasileiras em colquio. In: SANTOS, Gilda (Org). Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces revista Convergncia Lusada, no 17 (Nmero Especial). Rio de Janeiro: Real Gabinete Portugus de Leitura, 2000, pp. 246-7.

    7 VARELA, Maria Helena. O Visionrio Agostinho da Silva: Sofia e Paradoxia. In: Convergncia Lusada, no 16. Rio de Janeiro: Real Gabinete Portugus de Leitura, 1999, pp. 88-89.

    8 CESAR, Constana Marcondes. Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva. In: Convergncia Lusada, no 14. Rio de Janeiro: Real Gabinete Portugus de Leitura, 1997, p. 90.

    9 Trecho da comunicao Condies e misso da comunidade luso-brasileira, proferida por Agostinho da Sil-va no IV Colquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros promovido, em 1959, pela Universidade da Bahia e pela UNESCO, citado pela: RIBEIRO, Maria de Ftima Maia,. op. cit., p. 247.

    10 BRAGA, Jos Alberto. Op. cit., pp. 31-32.

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    11 CESAR, Constana Marcondes. Op. cit., p. 91.

    12 SILVA, Agostinho da. Vida conversvel. Braslia: Ncleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organi-zao e prefcio de Henryk Siewierski, pp. 86-88 e 101.

    13 BRAGA, Jos Alberto. Op. cit. p. 33.

    14 Pedra Filosofal. Antnio Gedeo e Manuel Freire.

    ResumoA partir da dcada de 1980, a constituio de uma Comunidade de Pases de Lngua Por-

    tuguesa tornou-se uma das questes centrais da poltica externa do Estado portugus,

    ao mesmo tempo em que amplos setores da sociedade daquele pas eram mobilizados

    em torno do discurso da lusofonia. Nesse processo, as idias de alguns intelectuais que

    desenvolveram diferentes vises de uma Comunidade Lusfona ao longo do sculo XX

    foram resgatadas dentro da perspectiva de legitimao da atual CPLP que ento estava

    sendo criada. Dentre eles destaca-se a figura de Agostinho da Silva, um dos mais origi-

    nais pensadores portugueses do ltimo sculo, que comumente lembrado como um dos

    pais-fundadores dessa Comunidade e que desenvolveu em diversas de suas obras uma

    concepo bastante original do que ela deveria ser e de qual papel poderia desempenhar

    na ordem mundial contempornea.

    Palavras-chaves: Lusofonia; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.

    AbstractSince the 1980s decade, the creation of a Community of Portuguese Language Countries

    (CPLP) became one of the main concerns of Portugals foreign policy. Concurrently, vast

    sectors of the Portuguese society became involved in the debate about Lusophony. In this

    process, in order to legitimate the CPLP that was then being created, the ideas of some

    intellectuals who developed various concepts of a Portuguese-Speaking Community

    throughout the twentieth century were recovered. Among those intellectuals stands Agos-

    tinho da Silva, one of the most original Portuguese thinkers of the last century. Usually

    remembered as one of the founding fathers of the Community, he developed in several

    of his works a rather original concept of what the Community should be and what role it

    could perform in the contemporary world order.

    Keywords: Lusophony; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.

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    A dispora da inteligncia lusa na hermenutica histrica de Agostinho da Silva: uma teoria antielitista da histria de Portugal?1

    Amon Pinho*

    (...) a minha ida para o Brasil, em 1940, realizou-se sob o imperati-vo de circunstncias alheias minha vontade. A expatriao sempre dolorosa. Mas nenhum pas pode para um portugus substituir a sua ptria, a no ser o Brasil. Depois, viver no Brasil conhecer, sob certos aspectos, um Portugal mais portugus que o da metrpole (...). No pequena lio e proveito para um portugus haver compreendido este fato e transform-lo em programa de ao. O Brasil hoje [segunda metade dos anos 1950] uma nao essencialmente americana, com tendncias, interesses e ideais americanistas. (...) tendem a esquecer, quando no a depreciar, as origens portuguesas do Brasil. A todo e qualquer portugus cabe, pois, ali, uma ao catalisadora: marcar, pela simples presena e uma conduta exemplar, a substncia, a excelncia e o prestgio daquelas origens. (...) afirmar o que, apesar dos erros inevi-tveis, houve de benfico na ao colonizadora dos portugueses. Esse foi constantemente o meu programa.

    Jaime Zuzarte Corteso

    * Doutor em Histria Social pela FFLCH-USP. Membro dos Projetos Agostinho da Silva: Estudo do Esplio e A Questo de Deus. Histria e Crtica, ambos vinculados ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; vem desenvolvendo, no mbito do segundo projeto, um estudo sobre a teologia negativa do filsofo e crtico literrio judeu-alemo Walter Benjamin. Entre outros escritos, autor de Hermenutica e Materialismo Histrico na Encruzilhada da Histria: Leituras especulares de Gadamer e Benjamin; Notas sobre europesmo e iberismo no pensamento de Agostinho da Silva; e de O Pensamento Poltico do Jovem Agostinho da Silva: da primeira Faculdade de Letras do Porto e da Renascena Portuguesa ao ingresso no grupo Seara Nova; co-organizador do In Memo-riam de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zfiro, 2006; e do Caderno de Lembranas, autobiografia de Agostinho da Silva, igualmente publicado pelas Edies Zfiro.

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    Acho que conhecer o Brasil , talvez, a coisa fundamental da minha vi-da. Se nunca tivesse sado de Portugal, nunca teria percebido o que h de essencial na cultura portuguesa e que me parece estar muito mais vivo, muito mais claro no Brasil.

    Agostinho da Silva

    Objetivo neste escrito definir a teoria da histria portuguesa elabo-rada por Agostinho da Silva, em meados do sculo passado, enquanto uma teoria antielitista da histria. O que, a meu ver, necessariamente requer o desenvolvimento e a explicitao dum par de pressupostos. Em primeiro lugar, um pressuposto de carter histrico-poltico-cultural. E, em segundo, o que poderamos denominar uma pressuposio biogrfica.

    O pressuposto de carter histrico-poltico-cultural diz respeito sig-nificativa emigrao de intelectuais portugueses para o Brasil, entre os anos de 1940 e 1974, cuja expressiva extenso e intensidade acabou por constituir o que um renomado crtico literrio brasileiro, Antnio Cndido, com a propriedade que lhe peculiar, denominou de uma no planejada misso portuguesa.2

    No planejada porque diferente daquelas misses de professores estrangeiros que, na dcada de 1930, foram contratadas, compostas e plane-jadas oficialmente, junto aos governos dos seus respectivos pases, para ento colaborar no processo de implantao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, fundada em 1934. No houve, nesse processo de implantao, a participao de uma misso portuguesa. Houve uma misso francesa e uma misso italiana, podendo-se tambm falar de uma misso alem, mas por extenso, posto que constituda, de forma vir-tual, por professores judeu-alemes recrutados individualmente e margem do governo hitlerista que os proscrevia.

    Os portugueses, todavia, no estiveram totalmente ausentes nos tem-pos inaugurais da Universidade de So Paulo. O fillogo Francisco da Luz Re-belo Gonalves, primeiramente, e, depois, Fidelino de Figueiredo e Urbano Canuto Soares l deram a sua contribuio. Mas, como foram apenas trs, a sua presena no chegou a configurar nem mesmo uma misso de carter t-cito e virtual, contratada individualmente, como foi o caso da alem.3

    No entanto, como observa Antnio Cndido, quando pensamos [a partir da dcada de 1940] na atuao de tantos intelectuais portugueses no Brasil (...), vem logo a idia de que eles constituram ao longo dos anos um agrupamento virtual de grande importncia, que pesou mais do que se pensa em muitos setores: Jornalismo; Artes Plsticas; Poltica; Ensino Universitrio

    A dispora da inteligncia lusa... Amon Pinho

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    Revista Convergncia Lusada, 23 2007 ISSN 1414-0381

    de Letras, Histria, Filosofia, Matemtica. Se concebermos essa ampla ativi-dade como emanada de um conjunto no sistemtico nem cronologicamente concentrado de pessoas, veremos que ela abrangeu boa parte do pas e contri-buiu para o adensamento de nossa cultura. Da o rtulo que propus de misso portuguesa para designar essa atuao.4

    Como se sabe, na origem da emigrao de quase todos esses intelectuais lusos, estava a situao poltica determinada pelo Estado Novo de Antnio de Oliveira Salazar, cuja Polcia de Vigilncia e de Defesa do Estado (PVDE) pu-nha e dispunha dos destinos alheios. Polcia poltica fascista no apenas no nome (depois modificado para Polcia Internacional e de Defesa do Estado PIDE), mas sobretudo no exerccio dos seus poderes quase ilimitados e que, por exemplo e para permanecermos no mbito do que aqui nos interessa, pu-nha e dispunha do corpo cientfico e docente das universidades portuguesas, demitindo ou admitindo quem melhor lhe conviesse.

    Testemunha eloqente desse estado de coisas foi o historiador e pro-fessor Joaquim Barradas de Carvalho, ento exilado no Brasil e, coincidente-mente, ensinando na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, s que cerca de trinta anos depois de Rebelo Gonalves. Pois bem, Barradas de Carvalho escreveu, a partir de 1964, uma srie de artigos para o jornal Portugal Democrtico, editado por anti-salazaristas portugueses radicados na cidade de So Paulo, artigos que tratavam precisamente da situ-ao vexatria das universidades na sua terra natal.

    No que abre a srie, afirma-se que uma das principais vtimas do obs-curantismo salazarista tem sido a Universidade, e um dos principais meios de ao desse obscurantismo tm sido as limpezas sucessivas a que ela tem sido submetida. s demisses isoladas sucederam-se as demisses coletivas e a essas sucedeu um apertado policiamento na admisso de professores.5 E pros-segue Barradas de Carvalho: Em mais de trinta anos de regime salazarista a Universidade portuguesa tem sofrido golpes s comparveis aos sofridos pela Universidade alem nos tempos de Hitler, pela Universidade italiana nos tem-pos de Mussolini ou pela Universidade espanhola no perodo de instaurao do regime de Franco. 6

    Constrangidos dessa e doutras formas em seus direitos sociais e polticos e restringidos, quando no impedidos, no exerccio das funes dos seus ofcios (os no-acadmicos, inclusive), a muitos intelectuais portugueses no restou se-no o caminho da expatriao. E da poder dizer-se, com uma ironia repassada de melancolia, que Portugal exporta quadros cientficos,7 pois a verdade cient-fica no compatvel com a quietude do cemitrio que o Portugal de Salazar.8

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    Originada, portanto, num regime que semeava e disseminava o em-pobrecimento de esprito, a dispora da inteligncia lusa desdobrou-se, no outro lado do Atlntico, num importante e enriquecedor contributo ao uni-verso da cultura brasileira. Se no Portugal da malfamada PIDE os intelectuais que no coadunavam com o Poder encontravam-se margem das institui-es universitrias, no Brasil eles terminaram por coletivamente constituir uma no planejada, tcita, virtual e livre misso portuguesa cuja atuao deu-se no seio mesmo das instituies oficiais de ensino, nas quais muitas vezes desempenharam o papel de fundadores.

    Circularam ento pelo Brasil daqueles idos lusos homens de letras da envergadura de um Jaime Corteso, de um Hernni Cidade, de um Adolfo Ca-sais Monteiro, de um Jorge de Sena, de um Eduardo Loureno, de um Eudoro de Sousa, para no falar num Manuel Rodrigues Lapa, num Vtor Ramos, num Barradas de Carvalho ou em tantos outros cujas sementes germinaram no no meio acadmico, mas no jornalismo, nas artes, na literatura e na poesia.

    Essas dcadas que separam os anos de 1940 dos de 1970 testemunha-ram a manifestao, no Brasil, do que de melhor havia na cultura de expresso portuguesa, e que pelas mecnicas contraditrias, complexas e surpreendentes da histria c veio frutificar. Atente-se, por exemplo, que no era em Lisboa, no Porto ou em Coimbra que a mais qualificada escola de matemticos portu-gueses se exercia, era no Recife, na Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco), onde lecionavam Ruy Lus Gomes, Jos Morgado, Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes, todos professores universit-rios perseguidos pela ditadura de Salazar.9

    Agostinho da Silva, que, a propsito, tambm ensinou na Univer-sidade do Recife, vivenciou e protagonizou intensamente esse marco fun-damental do dilogo cultural luso-brasileiro, marco que, tanto quanto sua obra, at pouco tempo atrs no era suficientemente lembrado, estudado ou discutido no Brasil, mas que parece agora estar revivescendo, ainda que timidamente, mas revivescendo, sombra de algumas universidades e inicia-tivas. Os livros Intelectuais Portugueses e a Cultura Brasileira, publicados em 2002, e A Misso Portuguesa, editado em 2003, parecem, ao menos, sinalizar nesse sentido.

    Mas, como dizia, Agostinho participou ativamente dos movimentos e realizaes plasmados na corrente dessa interlocuo atlntica ancorada em terra, influenciando e deixando-se influenciar. Mais precisamente, ele mergu-lhou fundo na sua experincia de Brasil e terminou por encontrar o que se lhe apresentou como o fundamento e o firmamento de Portugal e de si mesmo.

    A dispora da inteligncia lusa... Amon Pinho

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    A citao longa, mas vale a pena: Ento ao chegar ao Brasil, logo v-rias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi a que me encontrei a mim prprio; de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntrio: (...) eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fora, efetivamente, me batia porta para que eu abrisse. (...) [Eu] me deixei abrir, me deixei ser o que eu prprio na realidade era (...). Quer dizer, a minha abertura no Brasil, no meio em que mergulhei (...), a tal viagem s nascentes: abandonei-me corrente e parece que o rio dava uma volta ao mundo sobre si prprio, voltava nascente e depois eu no tinha mais traba-lho nenhum seno o de deixar levar-me pelas guas, abandonar-me completa-mente ao que ia acontecendo pelo mundo. (...) uma atitude de (...) ir ao sabor da corrente e depois a prpria corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de fato poderia ser interessante e que no fundo me formou. [] Afinal, o que era? Eu como que dei um pulo atrs de mim prprio e fui inserir-me no sculo XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direo frica para fugirem do regime econmico, social e religioso de Portugal, ou que de-pois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer: o que o Brasil fez comigo, logo que l desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no cho, para ir cair a pelo sculo XV ou XVI.10 Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim prprio, eu fui outro.11 O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu precisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu do esprito, [e] que hoje permanece ntido.12

    Entre a chegada de Agostinho Amrica Ibrica, em 1944, e o mo-mento em que se perfazem as vivncias pessoais h pouco referidas, haviam se passado cerca de dez anos. Estamos em 1952, e Agostinho dirige-se a um dos estados da Regio Nordeste do Brasil, a Paraba, ento governada por Jos Amrico de Almeida. Poltico e escritor, autor de um romance que renovou a literatura regionalista nordestina, Jos Amrico pretendia implantar o en-sino de nvel superior naquela unidade da Federao. E para l se deslocou Agostinho da Silva, de modo a se integrar ao grupo dos professores que iriam estabelecer os primeiros pilares acadmicos da Universidade.

    O interessante, porm, a se notar que a experincia de Agostinho, tanto na capital quanto no serto da Paraba, onde tambm desenvolveu ati-vidades, no consistiu apenas nos termos exteriores da fundao de uma uni-versidade e da atuao como professor de ensino superior, consistiu sobretudo nos termos interiores da refundio de si prprio, isto , numa metania ou revoluo pessoal de carter singular. Ento l, afirma Agostinho, ao fim de

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    dois anos, que entendi o meu fenmeno e o de Portugal no seu conjunto.13

    Mas com o que, afinal, o autor de Consideraes se deparou na Pa-raba, a ponto de se dizer outro, mais aberto, livre e verdadeiro; a ponto de assumir que ali ele apreendeu algo de essencial, encontrando-se a si e desco-brindo efetivamente Portugal, algo que no fundo o formou e que era relativo s suas nascentes, quer dizer, ao que lhe era originrio?

    Agostinho da Silva se deparou com sobrevivncias de um Portugal que ele pensava morto e apagado; um Portugal que no lhe era vivamente familiar ou que lhe era, apenas, livrescamente familiar. Um Portugal cuja li-nha essencial de vida havia sido brutalmente interrompida pelas infiltraes estrangeiras do capitalismo comercial, do absolutismo real e da Contra-Re-forma, e que, portanto, foi se tornando residual desde fins do sculo XV a comeos do XVI, para no mais soerguer-se. E, nesse sentido, esclarecedor considerar, para um mais largo entendimento de aspectos decisivos da vida e da obra de Agostinho da Silva, o Salazarismo como uma espcie de citao do obscurantismo de longa durao que, desde o Quinhentos, toldara o belo e austero perfil do rosto helnico, romano e cristo, tambm mouro e tam-bm judeu, da Pennsula. E note que eu disse da Pennsula e no da Euro-pa, posto que, para Agostinho, tributrio que era do pensamento da gerao (espanhola) de 1898 de Miguel de Unamuno e de ngel Ganivet, principal-mente , Ibria no Europa.14

    Se geologicamente a frica s comea umas tantas lguas depois do estreito de Gibraltar,15 cultural e etnicamente h uma extenso signi-ficativa dela nas gentes e terras de Portugal e Espanha, herana dos scu-los de ocupao rabe, e durante a qual, por certo perodo, a Pennsula foi mestra incontestada de europeus:16 quando judeus, cristos e muulma-nos conviviam do Mediterrneo ao Atlntico; quando em Toledo se cele-bram num mesmo recinto os trs grandes cultos de Cristo, Moiss e Mao m; quando se teve com o Califado um dos poucos perodos da Histria que pode ombrear com o de Pricles ou o dos Tang; quando ensinamos Europa os algarismos, a lgebra, a filosofia grega e a geografia rabe.17

    A Ibria, portanto, corporifica um fenmeno tnico-cultural interm-dio entre frica e Europa ou para utilizarmos as palavras de um autor caro a Agostinho, e tambm ele leitor marcado pelos escritos da gerao de 98 uma espcie de bicontinentalidade, na qual a Europa reina sem governar: gover-nando antes a frica.18

    Da que, na viso de Agostinho da Silva, a Europa ela-mesma, tout court, est para alm da cadeia montanhosa dos Pireneus; uma Europa vin-

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    cada pelo Direito Romano redivivo e pelas idias polticas de Maquiavel, por uma economia guiada pelo lucro, uma reforma religiosa que aprova o princ-pio do juro e uma cincia que vai mais pela sujeio da natureza do que pela sua contemplao. Numa palavra, a Europa que se alicera no exerccio da dominao.

    essa a Europa cujas tropas invadem a Pennsula, segundo o autor de Reflexo, manifestando-se, por exemplo, no regime opressor e centralista de Castela sobre as demais regies da Ibria. E que a invadem pelas formas de pensar, agir e sentir das elites locais (da nobreza, do clero e da realeza), pois se trata no de tropas militares, mas de tropas culturais. Em Portugal, com Dom Joo II, o Prncipe Perfeito, vem junto Maquiavel;19 com Dom Manuel I, o capitalismo comercial do imprio venturoso da pimenta; com Dom Joo III, a Inquisio; e com Dom Pedro II, o triunfo da Monarquia absoluta.

    E para trs, soterrado e esquecido, quedou-se aquele Portugal medie-val que Agostinho, inspirando-se em Alexandre Herculano e Jaime Corteso, entre outros, pensava enquanto uma Monarquia popular e democrtica, com suas Cortes e concelhos, seu comunitarismo agro-pastoril e sua educao pela experincia da liberdade criativa. Um Portugal marcado pela presena do es-piritualismo franciscano, pela religiosidade do Esprito Santo, e no qual con-viviam, como j referido, mouros, judeus e cristos.20

    o encontro com as sobrevivncias seculares de certos aspectos deste Portugal medieval, na Paraba, aquilo que desperta Agostinho, em sua meta-nia ou revoluo pessoal, para uma nova concepo de si e de sua terra natal. E o rganon desse despertar, isto , o meio pelo qual esse despertar se realiza, o fenmeno da semelhana ou das correspondncias histricas. No caso, o fenmeno da profunda semelhana entre duas situaes separadas no tempo por sculos e cujas afinidades no causalmente se elegeram.

    Na esteira do notvel historiador-filsofo judeu-alemo Walter Benja-min, a semelhana histrica concebida, aqui, como a expresso da trama do passado no tecido do presente, como a forma de apario dos acontecimentos do ontem citados nos acontecimentos do hoje, ou seja, como o modo de ma-nifestao dos mais atuais aspectos do passado: daqueles aspectos do passado que nos so lembrados pelo devir dos acontecimentos presentes, em razo das correspondncias ou afinidades que apresentam entre si.

    Em seu vir a ser, os acontecimentos presentes, com maior ou menor grau de explicitao, como que citam os acontecimentos passados que lhes so semelhantes. Mas perceber essas citaes, nem sempre evidentes, do se-melhante algo que depende da qualidade da ateno e do grau de conheci-

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    mento do intrprete. Pois, verdade seja dita, o presente a todo o momento cita o passado. Do passado, o presente se encontra repleno, e no seu desdobrar-se precipitam-se sculos.

    A verdadeira imagem do passado [considera Benjamin] perpassa, veloz. O passado s se deixa fixar, como imagem que relampeja irre-versivelmente, no momento em que reconhecido (...). Pois irrecupe-rvel cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.21 Cada presente determinado pelas imagens [do passado] que lhe so sincrnicas; cada Agora o Agora de uma conhecibilidade determinada.22

    Ao perceber, especialmente no tecido da cultura popular tradicional do serto do Nordeste brasileiro, a trama de determinados aspectos da Idade Mdia portuguesa, Agostinho compreendeu o quanto aquele passado, em positivo, lhe visava, concernia-lhe, tornava-se-lhe sincrnico, e o quanto esse mesmo passado, em negativo, concernia prpria experincia histrica do Portugal de sua poca, ento dominado por Salazar.

    Se Agostinho da Silva, tal como diz, se sentiu como os portugueses de fins do sculo XV a comeos do XVI, que por incompatibilidade abandona-ram o Portugal do capitalismo comercial, do absolutismo real e do catolicismo ortodoxo de Trento, quer dizer, um pas que se lhes havia tornado econmica, poltica e religiosamente insuportvel, se assim ele se sentiu, porque no devir dos acontecimentos da sua experincia de vida produziu-se algo de efetiva-mente correspondente ou semelhante.

    essa, ao menos, a interpretao que ele mesmo perspicazmente deu, quer na j mencionada Vida Conversvel, quer em interlocuo decorrida anos antes, na qual com toda a clareza declarou: vim para o Brasil na esteira de milha-res de portugueses que, a partir do sculo XVI, a ele vieram na busca de espao ideolgico que o absolutismo real, o capitalismo comercial e a Contra-Reforma lhes haviam estreitado na Ptria, j que no h verdadeiramente Portugal, nem nao alguma se poder reclamar de seu cerne, se no for simultaneamente de democracia popular, de coletivismo econmico e de liberdade religiosa. Vim em 1944, depois de demitido do lugar de professor por me ter recusado a hipotecar a minha liberdade futura, num protesto que s tive por companheiro Fernando Pessoa, o que faz pensar em quanto a obedincia dos povos alimenta a tirania dos governos; (...) e de me ter sido proibida a campanha de educao do povo que empreendera com publicaes, exposies e palestras.23

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    Agostinho da Silva expatria-se de Portugal motivado sobretudo pe-la situao poltica adversa representada pelo Salazarismo. E que para ele se projetou no apenas enquanto proibio da extraordinria campanha de edu-cao do povo, que empreendeu com um conjunto notvel de atividades de divulgao cultural, mas tambm como perseguio e ameaas, espionagem e interceptao indiscriminada de correspondncia, confiscao de bens pes-soais, priso e tortura.

    A atmosfera do Pas tornou-se-lhe irrespirvel, tanto quanto sculos antes se havia tornado para o que ele chama os verdadeiros, os tradiciona-listas ou reais portugueses,24 isto , os portugueses que no compactuaram com os rumos polticos, econmicos e espirituais do Portugal quinhentista, to adversos carreira medieval portuguesa, e que emigraram para o Brasil, levando, segundo sua concepo, o melhor esprito de Portugal.

    O esprito de um Portugal essencialmente popular que, no Portugal invadido pelas tropas culturais europias, se ia abastardando sob os interesses econmicos e polticos dos seus dirigentes e das suas elites. Esprito presente, por exemplo, no fenmeno paradigmtico do culto popular do Divino Esp-rito Santo, perseguido e proibido pela Inquisio e, por extenso, banido para as ilhas atlnticas e para o Brasil, onde veio a se tornar, no caso das extensas e no facilmente fiscalizveis terras brasileiras, o cerne de um catolicismo po-pular exuberante, colorido, festivo e profundamente mestio, profundamente entrecruzado pelos legados culturais africano e amerndio.

    Meu Divino Esprito SantoDa Glria celestialMe ajude a vencerEsta batalha real

    Esta batalha realNs havemos de vencA mesma croa [coroa] divinaEla de nos val,25

    So versos que, ainda hoje, com fora, beleza e verdade resso-am no cantar das negro-mestias caixeiras do Divino Esprito Santo da Casa Fanti Ashanti, de So Lus, no Maranho, para citarmos uma dentre tantas outras celebraes populares Terceira Pessoa da Trindade, vivamente espraiadas por todo o Brasil, como para citarmos uma dentre tantas outras

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    expresses da cultura popular tradicional brasileira que, se perspectivadas em conjunto e para alm da vulgar acepo corrente de folclore no obstan-te folklore signifique, etimologicamente, conhecimento, saber, educao, do povo , nos permitem entrever que, observadas a fundo, h camadas subter-rneas da cultura [tradicional popular] brasileira que convergem para vises inspiradas de concrdia, solidariedade e justia, as quais destoam dramatica-mente do destino de desigualdade, violncia e obscurantismo que marcam a histria do pas.26 Sintomtico e conseqente destoar, alis, diga-se. Pois no o sofrimento o fundamento da busca da felicidade? E no o desespero o hmus da f e da esperana? Ou, para lanarmos mo de um exemplo de base, no a extenuante faina diria do trabalhador braal o que est na raiz do que de mais belo h nos cantos de trabalho?

    Historicamente submetido, explorado, marginalizado, sofrido pro-fundamente sofrido , no culto ao Divino Esprito Santo, ao coroar uma criana como imperador do mundo; ao libertar os presos das prises; e ao servir um banquete gratuito para todos que nele se queiram banquetear, perfazendo assim os trs precpuos momentos deste auto do Pentecostes, em que, ainda hoje, o que se comemora no o passado, mas uma idia-imagem do futuro declara

    o povo em primeiro lugar, e quantos j o viram ou de tal souberam jamais o podero esquecer, que a figura mais importante no mundo a de Criana, que do mundo se coroa Imperador (...); a Criana quem deve mandar em ns todos, primeiro para que nos d alguma coisa de sua imaginao, de sua inocncia, de seu contnuo sonho, de seu esquecer-se de tempo e de espao, de sua levitante vida, e depois para que dela se desenvolva, sem que nenhuma qualidade se perca e muitas outras se acrescentem, um adulto bem diferente de ns, que to brutos somos, em parte por desistncias ou covardias nossas, em parte porque a vida ainda uma violenta luta e algum deleite ainda ns (...) tiramos de nosso triste papel nas referidas lutas.[] Posta a Criana em primeiro lugar, num penhor de que toda a nossa ativida-de a ela vai, como devia, ter por centro, para que para sempre desapa-ream as crianas famintas, as crianas nuas, as crianas escravas, as crianas mrtires (...), volta-se esse povo das ilhas, e de muito ponto do Brasil, como outrora se voltava o de todo o territrio portugus, para o que sofrem os adultos no mundo em que vivemos. A grande festa do culto, logo depois de coroado o novo redentor monarca, era e o banquete geral, todo de comidas oferecidas, gratuitas (...); nin-gum haveria com fome naquela idade nova [a do Esprito Santo]

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    que comeava, todos teriam, por existir, o direito de continuar vivos. (...) ningum deve haver no mundo passando fome, quer se trate da fome que significa no comer mesmo, quer da fome de carncias em protena, vitamina ou gordura, quer da fome de abrigo, quer da fome de amor; que h para que tal se consiga sistemas econmicos que no se baseiam na concorrncia, na explorao dos outros e no lucro individual, duramente, cruelmente conseguido.27

    Na simblica do culto popular do Divino Esprito Santo, Agostinho pois, com razo, discernia aspiraes, valores e ideais de renovao, de ima-ginao criadora e de justia social, de prosperidade, de fraternidade e de li-berdade. No eram os presos, por sua vez, libertos de suas cadeias fsicas e espirituais? Da que o que sobretudo importa dizer que nesta apreciao agostiniana de aspectos simblicos da cultura popular tradicional luso-afro-brasileira que ele preferencialmente perspectivava pelo prisma da Festa do Divino que est fundada a noo agostiniana de povo, povo com o qual George Agostinho dizia ter aprendido o sentido profundo das tradies por-tuguesas transplantadas para o Brasil e no Brasil florescendo.28

    Pensar a teoria agostiniana da histria portuguesa enquanto uma teo-ria antielitista da histria significa ter em conta os tais pressupostos de cunho histrico-poltico-cultural e biogrfico, tanto como o conjunto de questes de que me ocupei at agora, e que podem ser resumidos no interessante e peda-ggico paralelo que a categoria da semelhana histrica nos permite explorar. Paralelo no apenas explicativo, quero dizer, terico, mas efetivo. E to efetivo que Agostinho da Silva o experienciou de forma substantiva e determinante.

    este paralelo histrico, estabelecido no por relaes causais e me-cnicas, mas por relaes dialticas de semelhana, a pedra angular da teoria agostiniana da histria portuguesa, teoria na qual o presente compreende-se e define-se pelo passado e o passado pelo presente, em que o Portugal do sculo XX compreende-se e define-se pelo do sculo XVI e vice-versa. Um transitar entre duas pocas, diria o historiador francs Marc Bloch.

    A teoria da histria elaborada por Agostinho da Silva no se resume a uma perspectiva compreensiva (hermenutica) do passado portugus; ela tam-bm constitui-se numa reflexo poltica sobre o seu tempo presente, numa cr-tica aguda das instituies antidemocrticas do Estado Novo portugus, que o perseguiu a ele, que o oprimiu a ele e a tantos outros que se exilaram no Brasil, para l tambm levando, analogamente aos tradicionalistas ou verdadeiros portugueses do Quinhentos tendncias do melhor esprito de Portugal.

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    Se defino como antielitista esta teoria da histria, porque suponho que s assim conquistamos uma compreenso mais completa e acertada dela; s assim conseguimos capturar, pelo entendimento, o ponto central a partir do qual ela se articula. Que h nela mitopoese ou um vezo lrico,29 para utilizar-mos a expresso de Agostinho, disso ningum duvida, nem mesmo ele prprio, que conhecia a histria de Portugal como poucos e que se definia, semelhan-a de Fernando Pessoa, como um artista criador de mitos supremos.30

    Mas no apenas. Agostinho pensou-se igualmente como propugnador de uma poltica livre, no partidria e no dogmtica, sempre atento ao papel dos grupos dirigentes, por um lado, e ao dos populares, por outro, nos desdo-bramentos cruciais da histria poltica, social, econmica e cultural portugue-sa. Tendo sido, por cerca de dez anos, entre 1928 e 1938, um dos mais ativos colaboradores do grupo e da revista Seara Nova, no esquecera a tese seareira de que a vida poltica duma nao , em grande medida, decorrncia da sua vida intelectual e do seu movimento de idias, como das profundas aspiraes dos grupos sociais hegemnicos, e de que, portanto, a origem da secular crise nacional residia na aguda degenerao das estruturas mentais da sociedade lusa, as das classes dirigentes precpua e particularmente.

    Se defino, portanto, como antielitista a sua construo terica da his-tria, porque, nela, so as elites as responsveis pela introduo daquelas idias europias que, na forma de capitalismo, do absolutismo e da Contra-Reforma, fraturaram a coluna vertebral de um Portugal popular tradicional-mente comunitarista, municipalista e heterodoxamente religioso. E se eti-mologicamente elite significa aquilo que h de melhor, historicamente, no pensamento poltico de George Agostinho da Silva, o que h de pior, seja na razo absolutista, seja na razo fascista de Estado.31

    A esse propsito, por sinal, e tambm para finalizar, seria de in-teresse recordar, por um lado, a sua meno concordante a uma obser-vao feita pelo filsofo do sc. XIX mile Boutroux, que veio a Portu-gal e disse: Este um pas curiosamente diferente, o oposto da Frana, onde as elites so estupendas e o povo no presta. Aqui o que pres-ta o povo, as elites no valem nada.32 Por outro, a afirmao de que o que derruiu Portugal, e por culpa dos mesmos governantes, foi uma falta de senso moral, foi o terem posto a razo de Estado como padro de aes.33 Demasiado em sua vida pretrita obedeceu Portugal s chamadas razes de Estado.34 No que o Povo no protestasse sempre que podia, recusando-se a ser cmplice dos pecados dos chefes (...). Os chefes, porm, porque o no so plenos, nunca em Portugal ouviram o Povo.35 E o espantoso, o miraculoso

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    deste Povo, e dos demais Povos que se expressam ou se expressaram em portu-gus que tenham sobrevivido a sculos da contnua tentativa de deformao que tm sido os nossos sistemas polticos, as nossas instituies educacionais e as nossas prticas religiosas, tudo de acordo com um capitalismo que re-pugna s suas tendncias de generosa solidariedade; que tenham ultrapassado, sobretudo, os exemplos que tantos de cima tanto lhe deram.36 Os exemplos, reiteraria, que tantos de cima tanto lhe do:

    (...) at quando, adverso mundo, falharo as revolues do Povo?.37

    Notas1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tec-nolgico CNPq; indito no Brasil, trata-se de uma verso revista e ampliada de Breve interpretao da teoria agostiniana da histria portuguesa, artigo publicado em Portugal, na obra coletiva Agostinho da Silva e o Pen-samento Luso-Brasileiro. Lisboa: ncora, 2006, pp. 17-31. Organizao de Renato Epifnio; introduo de Paulo Alexandre Esteves Borges.

    2 Cndido, Antnio. Intelectuais portugueses e a cultura brasileira. In: GOBBI, Mrcia Valria Zamboni; FER-NANDES, Maria Lcia Outeiro; JUNQUEIRA, Renata Soares (orgs.). Intelectuais portugueses e a cultura brasileira: depoimentos e estudos. So Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 30.

    3 A estada de Rebelo Gonalves, no Brasil, foi breve, estendendo-se de 1935 a 1937; j as do professor de lngua e literatura greco-latina Urbano Canuto Soares de quem Agostinho da Silva foi aluno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e do ensasta, crtico literrio e professor Fidelino de Figueiredo foram bem mais duradouras, tendo a do primeiro decorrido de 1939 a 1954 e a do segundo de 1938 a 1951. Sobre a presena desses trs intelectuais portugueses nos primrdios da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, pode-se tambm consultar: Estudos Avanados, So Paulo, v. 8, no. 22, Set./Dez. 1994. Trata-se de nmero comemorativo dos sessenta anos da Universidade de So Paulo. Encontra-se igualmente disponvel em verso eletrnica, no stio http://www.usp.br/iea/revista. Acesso em: 19 Fev. 2005.

    4 Cndido, Antonio. Prefcio. In: LEMOS, Fernando; LEITE, Rui Moreira (orgs.). A misso portuguesa: rotas entrecruzadas. So Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 15.

    5 CARVALHO, Joaquim Barradas de. O obscurantismo salazarista. Lisboa: Seara Nova, 1974, p. 13.

    6 Id., ibid., p. 13.

    7 Id., ibid., p. 14.

    8 Id., Ibid., p. 41.

    9 Embora sejam polticos os motivos que estiveram na origem da emigrao de parte substantiva dos intelec-tuais portugueses que desembarcaram no Brasil, entre os anos de 1940 e 1974, vale lembrar que tambm pisaram o solo brasileiro pensadores lusos no constrangidos politicamente pelo Salazarismo; ao menos, no diretamente. Frise-se, no obstante, que mesmo estes no encontraram, de uma forma ou de outra, espao para atuao na exi-gidade do Portugal da poca. Abordando a questo no seu aspecto social, e sem referncias explcitas, como era de se esperar, ao poltico, considera Antnio Quadros: A nossa cultura no , com efeito, to prdiga de valores, que possamos dispensar esses que, como Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Casais Monteiro ou Antnio Boto, partiram para o Brasil em busca de novos horizontes. Alguns destes casos revelam flagrantemente a situao social do escritor portugus (...). Depois da emigrao dos trabalhadores rurais ser a emigrao dos intelectuais? To

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    difcil , com efeito, a vida do escritor em Portugal, que no se pode seno lamentar uma deciso tantas vezes sem alternativa. (...) Bem significativo o caso de Eudoro de Sousa, que, como Agostinho da Silva, encontrou o abrigo na Universidade de Sta. Catarina (...). Era sem dvida o primeiro helenista portugus. (...) Possua uma profunda cultura germnica e conhecia bem a filosofia portuguesa. Mas faltava-lhe o papel, o diploma, a licenciatura. Bateu a todas as portas e todas se lhe fecharam. (...) Mais realista, o Brasil procura a qualidade, no os requisitos buro-crticos concebidos pelos juristas. E um outro valor acaba de partir, desta vez para a Bahia: Eduardo Loureno. Estaremos a praticar o suicdio mental, sem ver que est em causa a prpria sobrevivncia? Justifica-se o grito de alarme. A classe dos escritores a menos protegida, a mais mal paga, a mais abandonada de todas as classes. Por outro lado, enquanto as ctedras universitrias se tornam por demais permeveis aos medocres (...), os valores autnticos sofrem ou emigram (...). QUADROS, Antnio. Agostinho da Silva e a emigrao dos intelectuais por-tugueses. 57, Movimento de Cultura Portuguesa, Cascais, Portugal, no. 5, set. 1958, p. 21. Em respeito exatido, observo que este artigo, publicado no (notvel) jornal 57, no vem assinado, mas, pelos termos em que est escrito e pela posio central que nele ocupava Antnio Quadros, deste sem dvida a sua autoria.

    10 SILVA, Agostinho da. Vida conversvel. Braslia: Ncleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organi-zao e prefcio de Henryk Siewierski, pp. 86-87. As gravaes dos dilogos, entre o autor e o organizador, que deram origem a este livro-entrevista datam de 1985.

    11 Id., ibid., p. 88.

    12 Id., ibid., p. 101.

    13 Id., ibid., p. 89.

    14 SILVA, Agostinho da. Bahia: coleo de folhetos [2]. In: ____. Dispersos. 2a ed. Lisboa: ICALP: Ministrio da Educao, 1989. Organizao e apresentao de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 494. Bahia: coleo de folhetos [2]. Texto originalmente publicado em 1971.

    15 SILVA, Agostinho da. Moambique, porto de escala entre o Oriente e o Ocidente [entrevista]. A Voz de Moambique, Loureno Marques, no. 411, 11 abr. 1975, p. 7.

    16 SILVA, Agostinho da. De que h povo. In: ____. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira, v. II, Lisboa: ncora, 2001. Organizao de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 59. Texto originalmente publicado em 1970.

    17 SILVA, Agostinho da. Educao de Portugal. In: ____. Textos pedaggicos, v. II, Lisboa: ncora, 2000. Orga-nizao de Helena Maria Briosa e Mota, p. 106. Livro indispensvel, e que pode ser considerado sntese dos mais relevantes e diversificados aspectos do pensamento de Agostinho da Silva, foi redigido em 1970, mas somente publicado em 1989.

    18 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formao da famlia brasileira sobre o regime da economia patriar-cal. 12 ed. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1963, pp. 70-71.

    19 freqente encontrarmos em escritos de Agostinho da Silva a idia de que o reinado de D. Joo II representou a introduo, em Portugal, do maquiavelismo: Com D. Joo II entrou Maquiavel ..., afirma, por exemplo, na sua Re-flexo margem da literatura portuguesa. Deve-se observar, contudo, que, embora se trate de maquiavelismo, como maquiavelismo avant la lettre que o devemos compreender. Afinal, aquele rei ocupou o trono portugus de 1481 a 1495, ou seja, muitos anos antes de Nicolau Maquiavel expor, em O Prncipe, as suas conhecidas idias amorais sobre conquista e conservao do poder. De todo modo, a ao do novo rei, a quem os inimigos chamaram O Tirano e os amigos O Prncipe Perfeito, j tem sido relacionada com a teoria poltica que Maquiavel expe nO Prncipe (...). (...) D. Joo II foi contemporneo dos Mdicis e soube ser um vigoroso representante do estilo de pragmatismo poltico que ento se afirmou na Europa. SARAIVA, Jos Hermano. Histria concisa de Portugal. 17 ed. Mem Martins, Portugal: Publicaes Europa-Amrica, 1995, pp. 129-130.

    20 Pelos termos esclarecedores da formulao, de proveito a leitura da seguinte passagem de Agostinho da Sil-va, na qual ressoam ecos no apenas de Herculano e Corteso, mas tambm do Antero de Quental das Causas da decadncia dos povos peninsulares nos ltimos trs sculos: (...) ter mentalidade medieval no significa de modo

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    algum pensar o que tantos julgam que se pensava, ou antes, se no pensava durante a Idade Mdia, aqueles para os quais ainda vigora a concepo de que os dez sculos medievais foram pocas de treva e que foi o Renasci-mento que de novo lanou a Humanidade no seu caminho de progresso; ter mentalidade medieval significa para o povo portugus estar dentro de uma economia coletivista, que vinha j dos tempos pr-romanos e, portanto, contra a economia capitalista que, partindo da Alemanha e da Itlia, invade a nao do sculo XVI; significa igualmente ser fiel s organizaes republicanas, democrticas, populares dos concelhos (...); significava ainda que se desejava liberdade religiosa, e bom lembrarmo-nos de que grande parte dos condenados a degredo para o Brasil o foi por motivos de heresia religiosa, j depois do Conclio de Trento (...). As tradies liberais do pas vm da Idade Mdia portuguesa, no dos sculos em que Portugal foi inteiramente subjugado pelo capitalismo das viagens de longo curso, pelo absolutismo real baseado no direito cesarista e pela intolerncia religiosa que principia, com D. Joo II, pela perseguio dos judeus e firmemente se estabelece com os inquisidores a partir do reinado de D. Joo III. SILVA, Agostinho da. Num estilo quase de adivinha.... In: ____. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira, v. II, p. 206. Texto originalmente publicado em 1971. Em vista do que se tratar adiante, cabe ainda acrescentar que, no artigo Noutro ponto a fonte..., de 1970, inserto neste mesmo volume, D. Joo II e D. Joo III so caracterizados como reis de razo de Estado, frios e calculistas.

    21 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. In: ____. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. 7 ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224 (Obras escolhidas; v. I).

    22 BENJAMIN, Walter. Paris, Capitale du XIXe Sicle: Le Livre des Passages. 3e ed. Paris: Les ditions du Cerf, 2000, p. 479. Embora parea-nos suficientemente claro, no deixa de ser oportuno observar que no preten-demos aqui efetuar quaisquer aproximaes entre os pensamentos de Agostinho da Silva e Walter Benjamin. O recurso aos conceitos benjaminianos de semelhana histrica e Agora da conhecibilidade nos interessa na medida em que lanam luz sobre o ponto a partir do qual a teoria agostiniana da histria de Portugal se arma, articula ou constitui. Trata-se pois de aportes tericos, e no de um meio pelo qual propusssemos estabelecer possveis conexes entre os dois pensadores, como, por exemplo, inferiu Paulo Archer de Carvalho a partir da crtica que fez primeira verso deste texto , no seu Historiosofia e mitologia: A Ibria na obra de Agostinho da Silva, comunicao apresentada no Colquio Agostinho da Silva e a Ibria, promovido pelo Centro de Estudos Ibricos da Guarda, em 3 de Novembro de 2006, Guarda, Portugal.

    23 SILVA, Agostinho da. Entrevista a Tereza S Nogueira (separata para cem amigos). In: ____. Dispersos, p. 23. Originalmente publicada em 1975.

    24 Cf. SILVA, Agostinho da. Reflexo margem da literatura portuguesa. 2 ed. Lisboa: Guimares Editores, 1990, pp. 97-98. Escrito em 1956 e originalmente publicado em 1957.

    25 CAIXEIRAS DA CASA FANTI-ASHANTI. Aparea Santa Croa. In: ____. Caixeiras da Casa Fanti-Ashanti tocam e cantam para o Divino. So Paulo: Ita Cultural: Associao Cultural Cachuera!, 2002. 1 CD. Faixa 6.

    26 SEVCENKO, Nicolau. Pindorama revisitada: Cultura e sociedade em tempos de virada. So Paulo: Peirpolis, 2000, p. 17.

    27 SILVA, Agostinho da. O Esprito Santo das Ilhas Atlnticas. In: ____. Dispersos, p. 569. Texto de 1972.

    28 SILVA, Agostinho da. Compostela: Carta sem prazo a seus amigos Primeira de 71. In: ____. Dispersos, p. 513. Texto de 1971.

    29 SILVA, Agostinho da. Carta chamada Santiago. In: ____. Dispersos, p. 605. A carta citada a de 2 de Julho de 1974.

    30 SILVA, Agostinho da. FPH [Fragmenta Pharmaceutica]. In: ____. Dispersos, p. 419. Texto originalmente publicado em 1968. Numa das ltimas cartas de sua correspondncia pblica, escrita cerca de um ano antes da prpria morte, Agostinho da Silva volta a dissertar sobre este aspecto mitopotico decisivo, mas, a meu ver, no exclusivamente definitivo da sua concepo da Histria de Portugal. Consider-lo, alis, como exclusi-vamente definitivo desta parece-me reducionismo, apreenso incompleta e descomplexificante do seu pene-trante e matizado pensamento, a um tempo, histrico e mtico, poltico e metafsico (cadinho, por exemplo, da fundamental noo agostiniana do Portugal-idia). E equvoco em que, sintomaticamente, incorrem

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    intrpretes e crticos das mais distintas cepas, simpticos ou no s suas reflexes tais como as que cons-tam da carta h pouco referida, que passo a citar: A Histria de Portugal, inteligente, documentada, vlida e duradoura, diz que a Nao nasceu por; se fixou por; se defendeu com pinheirais e castelos sempre por; navegou por; entristeceu e se alegrou por; finalmente acabou por. Aquela Histria de Portugal pela qual eu vou, Histria sentimental e fantasiosa, meio inventada talvez em muito ponto, garante-me logo de comeo que a Nao nasceu para, se definiu para; casou para; navegou para; desanimou para e reagiu para e acabar para. Eu me explico tanto quanto posso. Nasceu para ocupar a melhor das costas, dando naturalmente para o mar, mas sobretudo para o Oceano, que permite ir a todo lado; para aprender a bolinar; para completar o Im-prio Romano que soberanos e legies tinham deixado s como esboo, com uns lambiscos de Europa e uns desembarcadouros de frica e umas vagas idias de sia; para universalizar Direito tirado pelos romanos da Filosofia grega, como engenharia baseada no Euclides; lgica de guerrear da de pensar; para, depois de ouvir a Isabelinha de Arago, projetar para o mundo inteiro o entender e adorar o Divino, de ser a criana o maior dos milagres, de no se ter de ganhar a vida, o que a amesquinha, e de no haver prises, nem as de grades, nem sobretudo, porquanto piores, as que so de dvidas. Tm razo os sbios, que tanto respeito, que Portugal foi por; mas insisto em pensar, sem autoridade alguma, que Portugal sempre foi, sempre e sempre ser para. Obrigando-nos a todos ns, a que sejamos para, servindo-nos para tal do que somos por. Vocs no acham? SILVA, Agostinho da. As ltimas cartas do Agostinho... Alhos Vedros, Portugal: Cooperativa de Animao Cul-tural, 1995, p. 15. Uma expresso condensada possvel do que se acaba de citar, seria o subseqente aforismo de extrao vieirina: O bom historiador escreve do passado, criticando o presente e projetando o futuro. Toda a histria que vale do futuro. SILVA, Agostinho da. Pensamento solta. In: ____. Textos e ensaios filosficos, v. II, Lisboa: ncora, 1999, p. 146. Organizao e introduo de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 146. Pensa-mento solta obra publicada postumamente, e sua redao parece ter-se dado no despontar dos anos 1980. Por fim, como aditamento matizante do contedo epistolar aduzido, incorporo ainda o seguinte excerto: (...) por a irei dizendo o que me parece ter sido a histria desta Nao to lgica em meu esprito, (...) que, respeitando os documentos que j se conhecem, espero que se encontraro um dia aqueles que vierem a fazer prova do que penso: pois que me geral concepo a de que a rede do real s se desvia da rede do pensar se no foi este de coerncia perfeita. SILVA, Agostinho da. Fantasia portuguesa para orquestra de histria e de futuro. In: ____. Dispersos, p. 706. Originalmente publicado em 1982.

    31 Por duas vezes, neste trabalho, utilizei-me do termo fascista para definir o carter poltico do regime dita-torial portugus encabeado pelo ex-seminarista de Santa Comba Do. E o fiz levando em conta as concluses a que o professor Joo Medina chegou em seus estudos, dentre as quais transcrevo: (...) o Salazarismo foi um re-gime autoritrio, antiliberal e anti-socialista, visceralmente conservador e tradicionalista, catlico e ruralista, um paternalismo rspido e retrgrado, ainda que sutilmente apostado em camuflar as suas arestas repressivas mais evidentes (...). Fascismo? Digamos que foi antes uma espcie de pseudofascismo ou semifascismo, de fascismo cauteloso, manhoso e envergonhado, mais tradicionalista do que agressivamente inspirado em modelos que s relutantemente imitou (ou fingiu imitar), um pragmatismo ecltico, uma espcie de integralismo republicano ou de republicanismo conservador monarquizado, um fascismo de ctedra (Unamuno) com componentes es-colsticas e castrenses, habilidoso na sua poltica externa e nas relaes com os aliados tradicionais ou naturais, renitente em alinhar-se com belicismos ou proselitismos, tanto de Roma como de Berlim, egosta e estreito, mas astuto e oportunista. (...) formalmente corts e cristo, mas, afinal, intoleravelmente opressivo, do pior gnero das violncias: aquela que feita por torcionrios disfarados de bons samaritanos. No foi assim que os definiu Neruda, num poema sobre o Portugal salazarista: carceleros de luto / retricos, correctos, / arreando presos a las islas... ?. MEDINA, Joo. Salazar, Hitler e Franco: estudos sobre Salazar e a Ditadura. Lisboa: Livros Horizonte, 2000, pp. 42-43.

    32 SILVA, Agostinho da. Consideraes [entrevista]. A Phala, Lisboa: Assrio & Alvim, no. 10, jul./set. 1988, p. 4.

    33 SILVA, Agostinho da. O Baldio do Povo 2. In: ____. Dispersos, p. 534. Texto originalmente publicado em 1971.

    34 SILVA, Agostinho da. Proposio Aditamento um. In: ____. Dispersos, p. 629. Texto escrito em 1975.

    35 SILVA, Agostinho da. Carta chamada Santiago. In: ____. Dispersos, p. 605.

    A dispora da inteligncia lusa... Amon Pinho

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    Revista Convergncia Lusada, 23 2007 ISSN 1414-0381

    36 SILVA, Agostinho da. Educao de Portugal. In: ____. Textos pedaggicos, v. II, p. 114.

    37 SILVA, Agostinho da. Fantasia portuguesa para orquestra de histria e de futuro. In: ____. Disper-sos, p. 711. Embora tenha optado por no desenvolver neste texto a questo que indico a seguir, devo, re-portando-me a ela, sumariamente considerar que a teoria agostiniana da histria portuguesa deve ser compreendida dentro das esferas maiores de uma teoria da histria universal tal como concebida