Revista direito n 23
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publicação da Escola dE dirEito do cEntro univErsitário nEwton paivan.23 | 2o sEMEstrE dE 2014
revista eletrônica de
direito
issn 1678-8729
publicação da Escola dE dirEito do cEntro univErsitário nEwton paivan.23 | 2o sEMEstrE dE 2014
revista eletrônica de
direito
issn 2358-2685
Copyright©2014 by Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton Paiva
2/2014
Centro Universitário newton PAivA
esCoLA De Direito
Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara
Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis
Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
issn 1678-8729
Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2/2014 - N. 23 - ISSN 1678 8729
expediente
ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO
PRESIDENTE DO GRUPO SPLIcE: Antônio Roberto Beldi
REITOR: João Paulo Beldi
VIcE-REITORA: Juliana Salvador Ferreira
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANcEIRO: Marcelo Vinicius Santos chaves
SEcRETáRIA GERAL: Jacqueline Guimarães Ribeiro
cOORDENADOR DO cURSO DE DIREITO: Emerson Luiz de castro
cOORDENAÇÃO ADJUNTA: Douglerson Santos e Valéria Edith carvalho de Oliveira
ORGANIZADORGustavo costa Nassif
cONSELHO EDITORIALProfessor Mestre Bernardo Gomes Barbosa Nogueira (Newton Paiva)
Professor Mestre Emerson Luiz de castro (Newton Paiva)
Professor Doutor Gustavo costa Nassif (Newton Paiva)
Professor Doutor Jorge claudio de Bacelar Gouveia (Universidade Nova de Lisboa)
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães (UFMG)
Professor Doutor Ricardo Rabinovich-Berckman (Universidade de Buenos Aires)
Professor Doutor Rubén Martínez Dalmau (Universidade de Valência – Espanha)
Professora Doutora Tatiana Ribeiro de Souza (UFOP)
APOIO TécNIcO
NúcLEO DE PUBLIcAÇõES AcADêMIcAS DO cENTRO UNIVERSITáRIO NEwTON PAIVA
http://npa.newtonpaiva.br/npa
EDITORA DE ARTE E PROJETO GRáFIcO: Helô costa - Registro Profissional: 127/MG
DIAGRAMAÇÃO: Kênia cristina e Márcio Júnio (estagiários do curso de Jornalismo)
edit
oria
l
Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2/2014 - N. 23 - ISSN 1678 8729
Alter tempos
é tempo de lhes apresentar a próxima edição da Revista da Escola de Direito do centro Universitário
Newton Paiva. Interessante tempo para um nascimento. Não que possa existir tempo determinado para a
vida, mas é que as transformações do tempo presente ressoam de maneira forte dentro da orquestra aca-
dêmica. é tempo de nascer e tempo de ver o novo tempo que está a nascer. Palavras como alternância,
mudança, transformação, invenção e renovação são tons comuns nos discursos que refletem o pensamento
jurídico em nosso país e no mundo. Esse excesso de dizeres parecidos por vezes acaba por minar a possi-
bilidade de uma verdadeira nova academia.
Pensamos aqui na palavra renovação, renovar a ação. Inovar de novo. Re-novar. Inovar mais uma vez.
Do mesmo jeito a palavra alternância. Que nos indica já uma fuga para o outro, pois que o prefixo alter indica
alteridade, o outro. Nesse caminho, alter + nância, que poderíamos ouvir como ânsia. Assim, alternância
seria então uma ansiedade pelo outro. Exatamente essa mudança que requer aquilo que se chama trans-
formação. Transformar a ação. O outro aparece exatamente na medida da invenção. Ora, não basta apenas
renovar. Pois que o novo desde seu aparecimento não pode mais ser visitado. cada vez que gira, o ponteiro
também gira, como nos ensina Humberto Gessinger. Essa a próxima dimensão que afeta essa nova acade-
mia. Ora é tempo de perceber que enquanto pesquisamos, somos pesquisados e esse círculo hermenêutico
forma o tempo em acordo com o pensamento heideggeriano.
Essa fala acerca de um tempo do novo vem sendo requerida pelos pensadores contemporâneos como
marca para uma academia coerente. Jacques Derrida diria que a única maneira de ciência por ele concebida
seria aquela da invenção. é hora de ouvirmos esse pensador, pois se há um tempo novo, necessariamente
o humano que interpela e cria esse tempo também carece ser inventado. Aqui talvez a grade questão que
enreda a pesquisa nos dias atuais.
Em que pese o grande número de páginas escritas sem quaisquer dimensão de ocupação ética e social,
importa ter em conta que a pesquisa, como foi realizada durante um tempo, e de alguma maneira ainda o é
nos dias de hoje, deve ser reconhecida como componente político de transformação. é esse o último indica-
tivo das reflexões acerca da Escola. Deve ela propiciar o espaço da invenção. Aquele que transforma a ação.
Que cria. Novador de si. Tarefas possíveis apenas pelo e através desse outro que a todo tempo nos interpela
com seu rosto frágil e infinito. Permitindo nossa existenciação fora de moldes estabelecidos.
como dissemos, o tempo é de alternância, de ânsia por esse outro. Que é tempo. Rosto. Responsabi-
lidade. Política e que é direito. Logo, se não erramos, a Revista que agora apresentamos quer prestar esse
papel, de alternar o pensamento, e assim, encontrar esse outro novo que Derrida diz ser necessário para a
ciência. Os textos que seguem aqui são a potência do ato que se quer realizar quando os olhares dos lei-
tores encontrarem a dimensão, sem dimensão que o anseio do escritor requer quando se lança à pesquisa.
Alternância. Que seja disso nosso horizonte. De ansiedade por uma outra pesquisa que esteja próxima
da realidade que vem. Do direito que vem e da diferença, que é marca de todo o primeiro ato humano. Al-
ternadamente.
Desejamos boas leituras e agradecemos aos escritores que nos emprestaram seu infinito nesta edição.
BERNARDO G.B. NOGUEIRA
GUSTAVO NASSIF
sum
ário
Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2/2014 - N. 23 - ISSN 1678 8729
A REPERcUSSÃO PROcESSUAL DO REQUISITO Má-Fé PARA A cONDENAÇÃO DE
REPETIÇÃO DE INDéBITO à LUZ DO cóDIGO DE DEFESA DO cONSUMIDOR
Hudson Gilbert de Oliveira eThiago Augusto de Freitas..................................................................................................................................8
cLONAGEM HUMANA REPRODUTIVA E BIOREITO: HISTóRIcO, TécNIcAS, REFLExõES (HARD cASES)
Adélia Procópio camilo.........................................................................................................................................................................................13
DESAFIOS PARA A cONcRETIZAÇÃO DAS POLÍTIcAS PúBLIcAS NO BRASIL:
A INTERNAÇÃO cOMPULSóRIA DE DEPENDENTES QUÍMIcOS SOB A óTIcA DA NOVA ORDEM cONSTITUcIONAL
Stéfani cristina De Souza e cristian Kiefer Da Silva.......................................................................................................................................21
cONTRATAÇÃO DE OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA VIA PREGÃO: ESTUDO SOBRE
A POSSIBILIDADE JURÍDIcA DE LIcITAR OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA POR MEIO DA MODALIDADE PREGÃO
Gustavo Henrique campos dos Santos, Josiane Vidal Vimieiro e Bernardo Alves Moraes de Souza...............................................................30
VIGIAR OS VIGILANTES: A IMPORTâNcIA DO cONTROLE INTERNO PARA A GARANTIA
DA SEGURANÇA cIDADÃ E AS POTENcIALIDADES DO PROJETO DO cIcc
Diego Mendes de Sousa, Diego Valadares Vasconcelos Neto, Luiza Hermeto c. campos e Maíra dos Santos Moreira...........................37
A DEScONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDIcA E O NOVO PROcESSO cIVIL
Thaís Bentes Leonel e Tatiana Prates Motta...................................................................................................................................................43
cONSTITUcIONALISMO E ESTADO MODERNO:
BREVES cONSIDERAÇõES SOBRE O ESTADO PLURINAcIONAL NA BOLÍVIA E EQUADOR
Reinaldo Silva Pimentel Santos e Daniela Recchioni Barroso........................................................................................................................47
AS VIOLAÇõES à LEI 11.788/2008 DURANTE O INTERNATO MéDIcO
Débora caroline Pereira da Silva e Erenífia ágata Saraiva Nunes.................................................................................................................53
DO ERRADO E DO cERTO: NOTAS SOBRE AS INTERSEÇõES ENTRE
A MORALIDADE cONVENcIONAL E O cRIME
carlos Magalhães..........................................................................................................................................................................................63
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a repercussão processual do requisito má-fé para a condenação de repetição de indébito à luz do código de defesa do consumidor Hudson gilbert de oliveira1
tHiago augusto de freitas2
RESUMO: O presente artigo tem como finalidade revisitar a forma como tem sido decida a questão atinente à repetição do indébito. Para tanto se analisam
os conceitos fundamentais de consumidor e fornecedor, bem como as repercussões processuais de litigar na condição de consumidor. Ao final analisa-se a
imposição da necessidade de prova de má fé do fornecedor como requisito da repetição do indébito.
PALAVRA CHAVE: Consumidor. Fornecedor. Repetição. Indébito. Má-Fé.
ABSTRACT: This article aims to revisit the way the question regards the repetition of the overpayment has been decided. For this we analyze the fundamental
concepts of consumer and supplier as well as the procedural implications of litigating as a consumer. At the end analyzes the imposition of the need for evidence
of bad faith from the supplier as a requirement of repeating the magpie.
KEYWORD: Consumer. Supplier. Repetition. Misuse. Bad Faith.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 As Atuais Concepções de Consumidor e do Fornecedor; 3 As Atuais Vantagens Processuais de se Demandar como Consumidor; 4
O Requisito da Má-Fé na Repetição do Indébito e a Re-Inversão do Ônus da Prova em Sede de Sentença; 5 Considerações Finais
ÁREA DE INTERESSE: Direito do Consumidor
1 Introdução
Em uma sociedade cada vez mais marcada pela universa-
lidade dos meios de produção e consumo veem-se incontáveis
relações jurídicas, dentre elas, as relações de consumo.
Tais relações há muito deixaram de ser vistas de forma
simplista e reduzida à formula: entrega de dinheiro gera entre-
ga de produtos e serviços.
Após essa mudança de concepção, o direito do consu-
midor ganha status constitucional, com regulação própria por
meio da lei 8078/90.
Nesse texto normativo os direitos básicos da relação encon-
tram-se presentes com finalidades diversas, dentre elas a proteção
do consumidor contra os abusos cometidos pelo fornecedor, o que
ocorre, por exemplo, no controle e cobrança da inadimplência.
com este foco é que se teve a regulação da cobrança
indevida prevendo cominações quando ocorrida, tais como a
devolução em dobro.
Ocorre que algumas decisões judiciais no âmbito das rela-
ções de consumo têm exigido a prova da má-fé do fornecedor
para a condenação da repetição do indébito de forma duplicada.
Seria, porém, a prova da má-fé, um requisito para a condenação?
A princípio não, já que os dispositivos legais não trazem qual-
quer menção da necessidade de má-fé. Ademais, a interpretação
sistemática da lei consumerista demonstra a clara contradição à
necessidade dessa prova, ainda mais quando se coloca essa ne-
cessidade ao consumidor, parte hipossuficiente da relação.
O estudo dessa exigência da má-fé se revela de grande im-
portância para os consumidores, bem como para os operadores
do direito, os quais poderão rever suas condutas antes e depois
do ajuizamento da ação. O momento se revela propício para a
pesquisa em discussão, já que o cenário vivido na economia na-
cional é propício para as relações consumeristas e as repercus-
sões dela advindas. Para viabilizar a pesquisa se usará de fontes
doutrinárias e jurisprudenciais.
2 As AtuAIs concepções de consumIdor e do fornecedor
A concepção do que se entende por consumidor fora transfor-
mada gradativamente com a evolução dos paradigmas de Estado.
No paradigma do Estado Liberal, pós Revolução Francesa, tem-
se o surgimento dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
com eles vieram às revoluções industriais e a expansão do mercado
de consumo. Nesse contexto, se constatava a liberdade de contratar,
com a concepção de que o contrato fazia força entre as partes. O que
implicava em uma quase que inexistente defesa do consumidor.
com a superação do Estado Liberal e o conseqüente sur-
gimento do Estado Social se verifica a intervenção do Estado na
Economia bem como nos contratos advindos dessa atividade. é
com este espírito que temos o surgimento dos direitos da segunda
geração (igualdade), oportunidade na qual o Estado efetivamente
inicia a Intervenção na Economia e nas relações de consumo.
Por fim, com a substituição do Estado Social pelo Demo-
crático de Direito, que oportuniza a todos serem co-participes
das decisões do Estado, é que os direitos fundamentais ganham
guarida. Na constituição da República Federativa do Brasil, são
exemplos claros os Art. 5º xxxII e 170.
Assim em 11 de setembro de 1980 foi promulgada a Lei Or-
dinária Federal de n. 8.078 intitulada código de Proteção e Defesa
do consumidor – cDc.
No artigo 2º, logo de início, tal dispositivo legal já traz o
que se entende por consumidor, sendo-o “toda pessoa física
ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como des-
tinatário final”. Neste contexto, resta facilmente constatado que
para a correta compreensão do termo destinatário final se torna
crucial para a definição de consumidor.
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Todavia, a ideia de destinatário final não restou esclarecida,
posto que ser destinatário final é retirar o bem do mercado(ato
objetivo). Mas, se o sujeito adquire o bem para utilizá-lo em sua
profissão, adquirindo como profissional (elemento subjetivo) tam-
bém deve ser considerado como consumidor?
Para os finalistas como cláudia Lima Marques (2010, p.84)
destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico, seja
ele pessoa física ou jurídica. Segundo esta interpretação teleológi-
ca não basta ser destinatário fático do produto (retirá-lo) da cadeia
de produção, levá-lo para o escritório ou residência, é necessário
ser destinatário econômico do bem. Ou seja, não adquiri-lo para
revenda ou para uso profissional. Neste caso não haveria desti-
natário final. consumidor seria, então, aquele que utiliza o bem
para seu consumo próprio e da sua família e não o profissional já
que o fim do cDc seria proteger um grupo específico de pessoas.
Porém, essa corrente aceita exceções de pequenas empresas ou
profissional que adquire um bem fora do seu ramo. Essa análise
deve ser feita pelo judiciário.
Em contraponto, têm-se os maximalistas, para os quais, o
consumidor seria o destinatário fático, ou seja, qualquer pessoa
física ou jurídica que consome, não importa que seja para uso
próprio ou da sua família.
Isso, por que:
[...] os maximalistas viam nas normas do CDC o novo regulamento
do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadoras para
proteger somente o consumidor não profissional. O CDC seria um
código geral sobre o consumo, um código para a sociedade de
consumo, que institui normas e princípios para todos os agentes
de mercado, os quais podem assumir os papeis ora de fornecedor,
ora de consumidores (BENJAMIM, 2010, p.85)
Sendo uma terceira via, a teoria mista ou finalismo aprofun-
dado o critério para definição do consumidor é a vulnerabilidade,
reconhecendo como consumidor a pessoa física ou jurídica que
adquire o produto ou utiliza o serviço, mesmo em razão de equipa-
mentos ou serviços que sejam auxiliadores de sua atividade econô-
mica. Surge aqui a interpretação da vulnerabilidade do consumidor.
Por vulnerabilidade, como nos ensina Antônio Herman
Benjamim, podemos entender como “uma situação permanen-
te ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece
o sujeito de direitos, desiquilibrando a relação de consumo”
(BENJAMIN, 2010, p.87).
Esta teoria, aliás, é que tem tomado força junto aos nossos
Tribunais, em especial no STJ:
“1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de
quea determinação da qualidade de consumidor deve, em regra,
ser feitamediante aplicação da teoria finalista, que, numa exege-
se restritivado art. 2º do CDC, considera destinatário final tão so-
mente odestinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja
ele pessoafísica ou jurídica.2. Pela teoria finalista, fica excluído da
proteção do CDC o consumointermediário, assim entendido como
aquele cujo produto retorna paraas cadeias de produção e distri-
buição, compondo o custo (e,portanto, o preço final) de um novo
bem ou serviço. Vale dizer, sópode ser considerado consumidor,
para fins de tutela pela Lei nº8.078/90, aquele que exaure a função
econômica do bem ou serviço,excluindo-o de forma definitiva do
mercado de consumo.3. A jurisprudência do STJ, tomando por base
o conceito deconsumidor por equiparação previsto no art. 29 do
CDC, tem evoluídopara uma aplicação temperada da teoria finalista
frente às pessoasjurídicas, num processo que a doutrina vem deno-
minando finalismoaprofundado, consistente em se admitir que, em
determinadashipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produ-
to ou serviçopode ser equiparada à condição de consumidora, por
apresentar frenteao fornecedor alguma vulnerabilidade, que cons-
titui oprincípio-motor da política nacional das relações de consu-
mo,premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legiti-
matoda a proteção conferida ao consumidor[...] ( BRASIL, Superior
Tribunal de Justiça.CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA
FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO. FINALISMO APROFUNDADO. CON-
SUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO.VULNERABILIDADE.REsp 1195642 /
RJ RECURSO ESPECIAL 2010/0094391-6, Relatora Ministra NANCY
ANDRIGHI, Data do Julgamento 13/11/2012, publicado no DJE em
21/11/2012, RDDP vol. 120 p. 135, RJP vol. 49 p. 156, disponível
em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visu-
alizacao=null&livre=finalista+e+aprofundado&b=ACOR&the-
saurus=JURIDICO, acessado em 13/08/2014)
Destarte, para a melhor compreensão da ideia de consumi-
dor se faz necessária a análise da vulnerabilidade.
Superada a análise do conceito de consumidores, é mister
uma digressão pelo que se entende por fornecedor, o qual, de
acordo como art. 3º do código de Defesa do consumidor é:
“todo pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desen-
volvem atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comer-
cialização de produtos ou prestação de serviços.§ 1° Produto é
qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço
é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, median-
te remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de
crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.” (BRASIL. Lei 8078 de 11 de setembro de 1990, publi-
cada no D.O.U. de 12.9.1990 - (Edição extra) e retificado no DOU
de 10.1.2007, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8078.htm, acessado em 13/08/2013)
Pois bem, do citado artigo acima se vê que para a melhor
compreensão do que seja fornecedor é necessário que se te-
nha por completo a compreensão do termo desenvolvem ativi-
dade, ou seja, conforme Leonardo de Medeiros Garcia (2009,
25) somente será fornecedor aquele que pratica determinada
atividade com habitualidade.
Ainda sobre o tema continua:
“Nesse sentido, quando a escola oferece cursos não gratuitos no
mercado, por praticar(desenvolver) a atividade de ensino, será
considerada fornecedor. Agora, quando essa mesma escola resol-
ve vender o veículo que serve para transportar professores, não
estará atuando com habitualidade, pois não desenvolve a atividade
de compra e venda de veículos. Nesse caso, ainda que se tenha
do outro lado uma pessoa física adquirindo o veículo, a escola não
será considerada fornecedora, não se estabelecendo, portanto,
uma relação de consumo”. ( GARCIA, 2009, 25)
João Batista de Almeida, citado por Garcia (2009, 25) traz
brilhantes ensinamento sobre o tema:
“fornecedor é não apenas que produz ou fabrica, industrial
ou artesanalmente, estabelecimentos industriais centralizados ou
não, como também que vende, ou seja, comercializa produtos
nos milhares e milhões de pontos de venda espalhados por todo o
território nacional. Nesse ponto, portanto, a definição de fornece-
dor se distancia da de consumidor, pois, enquanto este há de ser
o destinatário final, tal exigência já não se verifica quanto ao for-
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necedor, que pode ser o fabricante originário, o intermediário ou o
comerciante, bastando que faça disso sua profissão ou atividade
profissional”ALMEIDA, João Batista de, apud Garcia( 2009, p.26)
Destarte, resta demonstrado que teologicamente o conceito
de fornecedor é o mais abrangente possível, já que busca a efetiva
proteção do consumidor em suas várias relações.
3 As AtuAIs vAntAgens processuAIs de se demAndAr como
consumIdor
O consumidor em juízo está amparado por uma série de
facilitações que a lei nº 8.078/90 lhe confere, sobretudo diante
da verossimilhança do alegado ou da sua hipossuficiência de
recursos e técnica.
Ao se fazer uma leitura mais detida dos dispositivos da refe-
rida lei, sobretudo o artigo 6º3, podemos perceber que o legisla-
dor criou um microssistema processual que deve ser observado
quando se tem no polo da lide um consumidor em detrimento
do fornecedor. As garantias de facilitação na defesa, interpretação
favorável de contratos e inversão do ônus da prova repercutem de
forma profunda não só no direito material em si como no direito
processual, vez que a distribuição e valoração das provas devem
estar atreladas à obediência destes dispositivos.
Diferente do que ocorre na prática processual ordinária, a
distribuição do ônus de prova não segue rigorosamente o dis-
posto no artigo 333 do código de Processo civil. Isto porque o
consumidor, autor em juízo, pode não ser obrigado a produzir
as provas do fato constitutivo do seu direito (333, I do cPc) se
o Magistrado, aplicando o disposto no inciso xIII do artigo 6º do
cDc, inverter o ônus de prova.
Esta facilitação em juízo prestigia o consumidor em detri-
mento do fornecedor, pois este, além de já estar ciente dos riscos
de sua atividade, tem mais facilidade de produzir provas do que o
consumidor que muita das vezes é totalmente leigo.
Mesmo diante das facilidades que o legislador pátrio hou-
ve por bem estabelecer para o consumidor em juízo, não é raro
depararmos com situações um tanto quanto estranhas na prática
processual, sobretudo no que tange ao ônus da prova.
Esta obrigação – para uns faculdade – que a lei trouxe de se
inverter o ônus de prova em favor do consumidor e facilitar a de-
fesa em juízo tem se chocado fortemente com regras processuais
como livre convencimento motivado do juiz e princípio dispositivo.
Talvez por uma prática indiscriminada de inversão do ônus da pro-
va em sentença em detrimento dos fornecedores em juízo, iniciou-
se um processo de criação de requisitos judiciais para amparar
o direito dos consumidores. Um destes requisitos judiciais que a
jurisprudência tem firmado é o da má-fé em pedido de repetição
de indébito, que tem massacrado a pretensão dos consumidores
em litígio afrontando a norma consumeirista.
Revela-nos ainda importante antes de apontar os equívocos
deste requisito, tecer considerações breves acerca desta inversão
indiscriminada do ônus da prova em sentença, que agora também
tem ocorrido em prejuízo do consumidor.
A inversão do ônus da prova, no nosso entendimento, deve
ser manifestada pelo Juízo antes de proferir a sentença, ainda em
despacho saneador, evitando assim cerceamento de defesa. Nes-
te sentido, Fred Didier Jr., posicionou-se em sua obra.
A previsão da inversão do ônus da prova amolda-se perfeitamente
ao princípio constitucional da isonomia, na medida em que trata
desigualmente os desiguais (consumidor e fornecedor) – desigual-
dade essa reconhecida pela própria lei. Assim, a inversão pode
dar-se em qualquer ação ajuizada com fundamento no CDC.A regra
de inversão do ônus da prova é regra de processo, que autoriza o
desvio de rota; não se trata de regra de julgamento, como a que
distribui o ônus da prova. Assim, deve o magistrado anunciar a
inversão antes de sentenciar e em tempo do sujeito onerado se
desincumbir do encargo probatório, não se justificando o posi-
cionamento que defende a possibilidade de a inversão se dar no
momento do julgamento, pois ‘se fosse lícito ao magistrado operar
a inversão do ônus da prova no exato momento da sentença, ocor-
reria a peculiar situação de, simultaneamente, se atribuir um ônus
ao réu, e negar-lhe a possibilidade de desincumbir-se do encargo
que antes inexistia. (r., Fredie Didier; Braga, Paula Sarno; Oliveira,
Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 7ª Ed. Salvador:
juspodivm, 2012, p. 85-88.)
Desta feita, conforme demonstrado, várias são as benesses
de litigar em juízo como consumidor, em especial a responsabi-
lidade objetiva do fornecedor, a inversão do ônus da prova e a
cadeia de responsabilidades solidária.
4 o requIsIto dA má-fé nA repetIção do IndébIto e A re-Inversão
do ônus dA provA em sede de sentençA
Não é raro nos depararmos com decisões judiciais – em pro-
cesso cuja discussão é repetição de indébito apoiada no artigo 42
do código de Defesa do consumidor – que julga improcedente
o pleito do consumidor ao fundamento de ausência de prova da
má-fé do fornecedor.
Em que pese a jurisprudência ter caminhado neste senti-
do, principalmente nos Juizados Especiais, parece-nos um tanto
quanto contrário ao espírito da legislação consumeirista e afron-
ta ao próprio dispositivo legal que se baseia, a determinação ao
consumidor de prova da má-fé do fornecedor para se deferir a
repetição do indébito, ainda mais em sentença.
O STJ, apesar de posições distintas das Turmas, tem enten-
dimento majoritário no sentido de que deve haver prova da má-
fé (dolo) para se aplicar a penalidade da repetição do indébito.
Interessante lembrar que naquela corte houve ampla discussão
inclusive sobre dolo e culpa no caso do artigo 42 do cDc.
E, apesar da ampla discussão judicial sobre a má-fé (dolo)
e erro justificável (culpa), parece-nos que não se deliberou sobre
o espírito da norma que trouxe uma causa de excludente de res-
ponsabilidade, e não um requisito para deferimento da repetição
de indébito.
Em recente julgado, a Segunda Turma do Superior Tribu-
nal de Justiça confirmou o entendimento de que a sanção só se
aplicaria no caso de prova de engano injustificável. Assim restou
ementado:
CONSUMIDOR. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ART. 42, PARÁGRAFO
ÚNICO, DO CDC. ENGANO JUSTIFICÁVEL. NÃO CONFIGURAÇÃO.
ART. 21 DO CPC. SÚMULA 211/STJ. 1. O Tribunal de origem afas-
tou a repetição em dobro dos valores cobrados indevidamente a
título de tarifa de água e esgoto, por considerar que não se ca-
racterizou má-fé ou culpa na conduta da concessionária. 2. “Nos
termos da jurisprudência da Segunda Turma, não se considera erro
justificável a hipótese de ‘dificuldade de interpretação e/ou dissídio
jurisprudencial’. Precedentes: (...). No Código Civil, só a má-fé per-
mite a aplicação da sanção. Na legislação especial, tanto a má-fé
como a culpa (imprudência, negligência e imperícia) dão +ense-
jo à punição do fornecedor do produto em restituição em dobro”
(AgRg no REsp 1.117.014/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, j.
2.2.2010, DJe 19.2.2010). 3. No presente caso, o Tribunal a quo
consigna expressamente que “a sanção explicitada no parágrafo
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único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor somente é
aplicável nos casos em que se verifique a ocorrência de engano in-
justificável do fornecedor ou prestador de serviços na cobrança dos
débitos, hipótese que não se enquadra no vertente caso, em que
se registra a e existência de acentuada divergência no concernente
a interpretação das disposições constantes no Decreto Estadual nº
21.123/83”. 4. Inexistindo culpa da concessionária, inaplicável a
condenação de devolução em dobro. 5. O Tribunal de origem não
emitiu juízo de valor sobre o art. 21, parágrafo único, do Código
de Processo Civil. Incide, na espécie, a Súmula 211/STJ. 6. Em
conformidade com a orientação remansosa do Superior Tribunal
de Justiça, caberia à parte, nas razões do seu Recurso Especial,
alegar violação do art. 535 do CPC, a fim de que o STJ pudesse
averiguar a existência de possível omissão no julgado, o que não foi
feito. 7. Agravo Regimental da Casa de Nossa Senhora da Paz não
provido; Agravo Regimental da Companhia de Saneamento Básico
do Estado de São Paulo - Sabesp parcialmente provido para afastar
a aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do
Consumidor. AgRg no REsp 1308651 SP 2011/0082439-6, Ministro
Herman Benjamim, julgamento 07/05/2013, Segunda Turma, DJe
17/05/2013
Eis ai o problema, pois, a interpretação do dispositivo desta
forma criou um ônus probatório ao consumidor injustificadamen-
te. Há clara alteração no ônus de prova, opejudicis, que contraria
o caráter protetivo do código de Defesa do consumidor, já que
a prova do engano justificável deve ser, por evidencia, ônus do
credor.( Nunes, 2013, 642).
Outro fato que chama a atenção é o momento processual
em que se estabelece este ônus de prova. A prática hodierna tem
nos demonstrado que este ônus tem sido imposto ao consumidor
em sede de sentença, quando se toma conhecimento de que de-
veria ter produzido prova da má-fé do fornecedor.
Revela-se um tanto quanto estranho a imposição de um
ônus (inexistente) ao consumidor em sentença enquanto a pro-
vidência inicial que se deveria tomar em litígio desta natureza
deveria ser a manifestação sobre a inversão do ônus da prova
conforme determina o inciso VIII do artigo 6º do código de Defesa
do consumidor.
Quando o Juízo não manifesta em saneador sobre a inver-
são do ônus da prova em favor do consumidor e profere sentença
improcedente com relação ao pedido de repetição de indébito
por ausência de prova da má-fé, além de trazer em sentença um
requisito que a lei não impõe, inverte o ônus de prova contra o
consumidor.
Quando o Juízo manifesta inicialmente pela inversão do
ônus da prova e em sentença julga improcedente o pedido de
repetição do indébito por ausência de prova da má-fé, re-inverte,
o ônus de prova em sentença, o que é mais nefasto que a situação
anterior.
O artigo 42 do código de Defesa do consumidor é impera-
tivo ao afirmar que a cobrança indevida gera o direito à repetição
de indébito. contudo, o legislador houve por bem trazer hipótese
de escusa ao réu, qual seja: prova de erro justificável.
A regra é condenação à devolução em dobro com prova da
cobrança indevida (cobrar o que não se deve), já a exceçao é a
prova de erro justificável pelo réu.
Entende-se, assim, que o que ocorre na prática é que a regra
passou a ser exceção e vice-versa. E por fim, como excludente
que se pretendeu afirmar a jurisprudência, quer seja de culpa ou
dolo, tal prova só pode recair sobre o réu.
caso contrário, estar-se-ia frente a uma afronta aos princí-
pios norteadores da relação de consumo, com clara e despropor-
cional re-inversão do ônus da prova.
5 consIderAções fInAIs
Viu-se que a relação de consumo é aquela que se estabele-
ce entre consumidor e fornecedor, tendo como foco a prestação
de um serviço ou fornecimento de um produto.
Litigar em juízo sob as proteções dos princípios inerentes
à relação de consumo traz ao consumidor benesses várias, tais
como a inversão do ônus da prova, a responsabilidade objetiva do
fornecedor bem como a cadeia de responsabilidades solidárias.
Todavia, o que se tem visto nos julgados recentes é que
ao decidir acerca da cobrança indevida de dívida do consumi-
dor pelo fornecedor os tribunais têm exigido do consumidor
a realização de prova de que a conduta do fornecedor estava
viciada de má-fé.
Inobstante, pode-se concluir que ao exigir-se do consumi-
dor a prova de conduta de má-fé do fornecedor vai de encontro
com os princípios da relação de consumo, em especial a vulne-
rabilidade do consumidor.
Não bastasse, ao imputar ao consumidor o ônus da pro-
va ocorre clara re-inversão do ônus probatório que fora a ele
concedido por ocasião do artigo 6º VIII do cDc, o que seria
um retrocesso.
Portanto, para que seja garantido o tratamento diferenciado
previsto na constituição da República – diferenciando inclusive a
aplicação da norma especial (consumidor) e da regra geral (có-
digo civil, artigo 940) –, bem como no cDc, a prática de exigir do
consumidor o ônus da má fé do fornecedor deve ser abolida
referÊncIAsAGUIAR JR., Ruy Rosado de. A boa fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, n.14,1995.
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revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 12
notAs de fIm1 Graduado e Pós-Graduando em Direito Processual pela PUc MG. Ad-vogado da Torres, Oliveira & Freitas Advogados. Ex-professor Substituto de Prática Processual da PUc/MG – contagem. Membro da comissão de Direito do consumidor da OAB/MG.
2 Graduado e Pós-Graduado em Direito pela PUc MG. Advogado da Torres, Oliveira & Freitas Advogados. Ex-professor Substituto de Prática Processual da PUc/MG – contagem. Ex-professor Assistente de Direito civil e Proces-sual civil e Direito do consumidor da FAMINAS/BH. Professor de Direito das Sucessões e do consumidor da NEwTON, BH. Membro da comissão de Direito do consumidor da OAB/MG. conselheiro do conselho Municipal de Defesa do consumidor cOMDEcON/BH.
3 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
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clonagem Humana reprodutiva e bioreito: Histórico, técnicas, reflexões (Hard cases)
adélia procópio camilo1
RESUMO: Diante de todo o desenvolvimento cultural, científico e social, observa-se a necessidade de regulamentar as técnicas científicas de interferência na
saúde e no corpo humano. O papel dos juristas é o de adequar essas crescentes descobertas e estudos ao ordenamento jurídico, garantindo o princípio norte-
ador do direito atual, qual seja, a dignidade humana. Neste contexto, insere-se a clonagem humana, seja terapêutica, seja reprodutiva e que a muitos assombra.
É importante reconhecer a inequívoca contribuição da ciência, no campo da clonagem e genética, para a ampliação do conhecimento e melhoramento da vida.
Suas descobertas têm concorrido para o prolongamento e melhora da qualidade de vida dos seres humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Clonagem Humana, Clonagem Reprodutiva, Bioética, Biodireito.
ABSTRACT: In the face of all the cultural and social development, scientific, there is a need to regulate the scientific techniques of interference in health and the
human body. The role of lawyers is to adapt these findings and studies the legal system growing, ensuring the guiding principle of the current law, namely human
dignity. In this context, it inserts if human cloning, whether therapeutic, and reproductive is that many haunts. It is important to recognize the unique contribution
of science in the field of cloning and genetics, to the expansion of knowledge and improvement of life. Their findings have contributed to prolonging and improving
the quality of life of human beings.
KEYWORDS: Human Cloning, Reproductive Cloning, Bioethics, Biolaw.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Histórico; 3 Clonagem: Precisões Conceituais; 4 Funcionamento Técnico da Clonagem Reprodutiva; 5 Breve Exposição sobre Bioética
e Biodireito; 6 Alguns Casos Concretos (hard cases); 7 Considerações Finais.
ÁREA DE INTERESSE: Biodireito.
1 Introdução
A partir da evolução da ciência e da tecnologia, a vida come-
çou a ser analisada sob um novo enfoque. O seu começo, meio
e fim ganharam técnicas de aperfeiçoamento. As crescentes des-
cobertas científicas tornaram o mistério da vida mais decifrável.
A experimentação com o corpo humano, há muito tempo, é
um tema que divide opiniões, seja de cientistas, juristas, leigos, insti-
tuições religiosas ou governantes de toda a sociedade internacional.
Toda essa polêmica originou a bioética e o biodireito, ambos
preocupados com as possíveis repercussões advindas do cresci-
mento e conseqüente aplicação das descobertas científicas.
Garcia (2010, p. 181) expõe:
[...] Os caminhos da Ciência Biológica e do Direito, entrecruzados
tantas vezes, coincidem agora e se encontram, no desenvolvimento
da engenharia genética e, com esta, nas possibilidades e proble-
mática do pré-embrião, do embrião, da clonagem, da manipulação
do genoma humano [...]
O homem sempre está buscando o aprimoramento de sua
espécie, o que o torna capaz de interferir nos processos natu-
rais dos sistemas biológicos, mediante a utilização de técnicas
modernas que possibilitam a transformação e a criação seres
vivos, visando a alteração, o melhoramento e o prolongamento
da qualidade de vida.
Os clones não chegam a ser novidades biológicas,
mesmo que tal termo somente na atualidade esteja sendo utili-
zado em larga escala, já se observava que os gêmeos idênticos
são clones uns dos outros. Porém, os clones da atualidade são
diferentes, e a principal diferença está na sua forma artificial de
obtenção, através da técnica da clonagem reprodutiva, que se
vale de material genético de uma célula diferenciada de um indi-
víduo adulto.
2 HIstÓrIco
Pode-se considerar que a clonagem foi uma das novidades
mais esperadas da história da ciência. Desde o início do sécu-
lo xx, experimentos realizados demonstravam que seria possível
produzir cópias genéticas de organismos.2
Em 1902, o americano Hans Spemann divide em dois um
embrião de salamandra. Tratou-se de uma semiclonagem, uma
vez que o embrião era muito pequeno. Hans Spemann recebeu o
Prêmio Nobel em 1935 por seu trabalho com embriões.
No ano de 1950, é realizada, nos Estados Unidos, a primeira
experiência bem sucedida de fertilização artificial em vacas.
Em 1952, realiza-se a primeira experiência real de clonagem.
Thomas J. King e Robert Briggs, do Instituto de carnegie, nos Es-
tados Unidos, procedem à clonagem de girinos a partir de núcleos
de células somáticas. Obtêm-se embriões bem maiores que os de
Hans Spemann. Porém, todos morreram antes de amadurecerem
e se transformarem em rãs.
No início da década de 60 (1962), nascem nos Estados Uni-
dos os primeiros bezerros de proveta.
Em 1967, o biólogo inglês Jonh B. Gurden consegue obter
clones de um vertebrado adulto. Repetindo o procedimento de
Thomas J. King e Robert Briggs, Gurden cria o clone de uma rã. O
clone se desenvolveu a partir de uma célula comum, extraída do
intestino de sua “mãe”. Porém, novamente, o girino morreu antes
de alcançar a vida adulta. criou-se, também, outra polêmica, rela-
tiva ao amadurecimento da célula do intestino da rã utilizada para
clonagem. Surgiu a dúvida se tal célula seria realmente “adulta”,
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uma vez que, apesar de se encontrar em um organismo totalmen-
te formado, ela poderia ser imatura, semelhante à de um embrião
(cRUZ; TEIcH, 2001)
Na Inglaterra, em 1969, começam a ser realizadas experiên-
cias de fecundação de óvulos humanos em laboratório.
Em 1970 começam a ser realizadas pesquisas com embri-
ões de ratos.
No mesmo ano, o Journal of the American Medical Associa-tion expôs em um editorial: “certamente um dia seremos capazes
de reproduzir um indivíduo em todos os seus detalhes, mas será
que isso constitui uma meta desejável?”.
Em 1978, os ingleses Patrick Steptoe e Robert Edwards
anunciam o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de pro-
veta. (cRUZ; TEIcH, 2001.)
No ano de 1984, os embriologistas americanos Davor Sol-
ter e James McGrath realizam uma série de tentativas para clonar
embriões de ratos transferindo os seus genes para dentro de um
óvulo, técnica semelhante à que seria mais tarde usada por Ian
wilmut. Erroneamente, concluem que a clonagem de mamíferos
por essa técnica é “biologicamente impossível”.
Após nove anos, em 1993, na reunião da Sociedade Ameri-
cana para Pesquisa da Fertilidade, realizada em Montreal (cana-
dá), os pesquisadores norte-americanos Jerry Hall e Robert Still-
man anunciaram que, durante um trabalho de fertilização assistida,
haviam separado os blastômeros (células resultantes do processo
de segmentação da célula - ovo) de um zigoto segmentado.
Zigoto este que, fatalmente, degenerar-se-ia, pois era tripói-
de, isto é, possuía três conjuntos cromossômicos em vez de dois,
encontrados em uma célula comum. A partir de cada um dos blas-
tômeros, mostraram que era possível obter um embrião. Portanto,
se o zigoto segmentado tivesse sido normal, os vários embriões
resultantes teriam a possibilidade de serem implantados no útero
de uma mulher, podendo gerar gêmeos univitelinos.
Foram divididos 17 embriões, nos estágios de duas a oito
células, resultando em 48 novos embriões. Todos os embriões ge-
rados foram destruídos ao final do experimento, com um estágio
máximo de desenvolvimento de 32 células.
Foi no final de 1993, portanto, que a expressão ‘clonagem
humana’ começou a ser divulgada com maior intensidade. Na re-
alidade, Hall e Stillman tentaram aplicar à espécie humana o que
já vinha sendo feito há muito tempo em animais.
No ano de 1994, o veterinário americano Neal First clona os
primeiros embriões de vaca.
Em 1996, nasce na Escócia, a ovelha Dolly, clonada a partir
das glândulas da mama de uma ovelha adulta.
Pela primeira vez, em todo o mundo, criou-se o clone de
um animal adulto. O nascimento da ovelha Dolly foi produto de
muitos anos de pesquisa do embriologista inglês Ian wilmut. O
nome Dolly foi dado à ovelha em homenagem à atriz Dolly Parton,
famosa por suas glândulas mamárias.
O embriologista Ian wilmut possuía como base de sua pes-
quisa a criação de animais capazes de produzir drogas para uso
humano, já que era patrocinado por um laboratório.
Posteriormente, foi descoberto o envelhecimento precoce
da ovelha, clonada a partir de outra adulta, lançando ainda mais
dúvidas sobre a questão.
Em 1997, foi clonada a ovelha Polly recebendo genes huma-
nos e unindo, dessa forma, em uma única pesquisa as técnicas de
clonagem e transgenia.
Nesse mesmo ano, o pesquisador inglês Jonathan Slack, da
Universidade de Bath, cria um sapo transgênico sem cabeça. A
Universidade do Havaí, por sua vez, produz os primeiros camun-
dongos clonados.
No início do ano de 1998, cientistas da Universidade de wis-
consin usam óvulos de vacas para abrigar embriões clonados de
ovelhas, porcos, ratos, bezerros e macacos. Entretanto, proble-
mas congênitos impediram as gestações de chegar ao fim (FREI-
TAS JúNIOR; PROPATO, 2001).
Por sua vez, o cientista americano Richard Seed afirma que
fará clonagens humanas clandestinas. Já se torna possível, tam-
bém, a separação de espermatozóides que têm o cromossomo
Y dos que têm o cromossomo x, de modo a poder usar um ou
outro, conforme se queira, levando à possibilidade de escolha do
sexo do bebê. Assim, se a fecundação for feita com os esper-
matozóides que têm o cromossomo Y, nascerá um menino, caso
contrário, uma menina irá nascer.
Ainda em 1998, os americanos James Thomson e Jonh
Gerhart isolam as primeiras células tronco de um embrião huma-
no em um estágio muito inicial de desenvolvimento.
Ao final de referido ano, no Japão, oito vacas são clonadas a
partir de uma célula adulta.
Em meados de 1999, nascem as ovelhas Diana e cupido,
com gene que as faz produzir grandes concentrações de albu-
mina humana, essencial ao tratamento de queimados e feridos,
inclusive leite com referida proteína.
Em setembro de 1999, nasce a macaca terra, primeira pri-
mata clonada pela técnica de fissão de embriões, ou produção
artificial de gêmeos, em que um embrião é dividido em quatro
clones. Terra foi a única a sobreviver.
No ano de 2000, foi revelada a existência de xena, porca clo-
nada no Japão a partir de uma experiência que utilizou 110 (cento
e dez) óvulos fertilizados. Nasce também Andi, primeiro macaco
transgênico. Andi recebeu o gene de determinada espécie de
água-viva que brilha quando exposta à luz. Foram necessários
225 (duzentos e vinte e cinco) óvulos, 40 (quarenta) embriões e
5 (cinco) gestações para a geração de 1 (um) só macaco com as
alterações desejadas.
Em 2001, no Distrito Federal, nasce a bezerra Vitória, primei-
ro animal clonado no Brasil. Dos 15 (quinze) embriões utilizados
na experiência, apenas 1 (um) sobreviveu.
Em fevereiro de 2002, a PPL Therapeutics, empresa funda-
da nos EUA pelos criadores de Dolly, apresenta novos clones de
porcos. Esses animais foram clonados sem um gene responsável
pela rejeição de órgãos suínos, quando transplantados para pes-
soas. Um dia depois, a Universidade do Missouri, diz ter obtido o
mesmo avanço.
O ano de 2002 também foi marcado por anúncios de cien-
tistas como o italiano Severino Antinori e o americano Panayiotis
Zavos, que declararam a intenção de clonar um ser humano, des-
pertando curiosidade e polêmica entre os cientistas, assim como
entre a opinião pública. Alguns meses depois de referida decla-
ração, Antinori chegou a dizer que uma mulher estava grávida de
oito semanas de um clone humano, de acordo com a edição on
-line da revista médica New Scientist3. Em reação ao anúncio de
Antinori, a empresa clonaid anuncia já ter implantado no útero de
diversas mulheres, embriões produzidos a partir de clonagem. Da
mesma forma, uma pesquisadora chinesa respeitada - Lu Guan-
gxiu - declara ao jornal americano “wall Street Journal”, que pro-
duzia dezenas de embriões humanos por clonagem desde 1999.
Em julho de 2002, nasce a bezerra Penta, o primeiro clone
de um animal adulto produzido no Brasil. A bezerra morreu de
infecção generalizada, cinco semanas depois.
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Também em 2002, a Universidade A and M, Texas, realizou a
primeira clonagem de um animal de estimação, no caso, um gato,
que recebeu o nome de copycat, demonstrando que pesquisas
continuavam sendo realizadas em todo o mundo, com as mais
diversas espécies de animais.
Ainda em 2002, uma empresa afirma ter clonado um ser
humano. Dizem que o bebê, uma menina chamada Eva, nasceu
sadia e pesa 3,2 Kg. A empresa é da seita dos realianos - que
acreditam que o ser humano é obra de extraterrestres. Nada foi
confirmado desde então.
O ano de 2003, por sua vez, inicia-se com a notícia da mor-
te da ovelha Dolly na Escócia, no dia 14 de fevereiro, sexta-feira,
aos 6 (seis) anos. Observa-se que uma ovelha pode viver até 12
(doze) anos. Veterinários deram à ovelha mais famosa do mundo
uma injeção letal, depois de descobrirem sinais de uma doença
pulmonar progressiva. A necropsia revelou que Dolly teve câncer.
Em dezembro de 2003, a câmara Baixa do Parlamento fran-
cês aprova um projeto de lei que torna a clonagem reprodutiva
humana um crime contra a humanidade, suscetível de punição
de 30 (trinta) anos de prisão e multa de até 7,5 milhões de euros.
No mês de fevereiro de 2004, cientistas sul-coreanos, lidera-
dos por Hwang, anunciam que produziram uma linhagem de cé-
lulas-tronco pluripotentes (capazes de se diferenciarem em vários
tecidos), a partir de dezenas de embriões produzidos por meio
da clonagem. Anunciaram, assim, o que seria a maior descoberta
do novo século: a primeira clonagem de um embrião humano.
Porém, no mês de dezembro, uma equipe de pesquisadores sul-
coreanos mostrou que as pesquisas de Hwang foram forjadas. O
cientista desculpou-se publicamente e pediu demissão da univer-
sidade onde trabalhava.
No Brasil, também em fevereiro, nasce a bezerra Vitoriosa,
cópia da vaca Vitória, primeiro clone brasileiro. O nascimento foi
anunciado duas semanas depois de realizado o procedimento.
Após três meses, Vitoriosa morre. A causa mortis mais provável foi
um ataque do coração.
Em fevereiro de 2005, a ONU aprova uma resolução que pede
às nações que proíbam todas as formas de clonagem humana que
não protejam a vida - incluindo aquelas com fins terapêuticos.4
Ainda no final de fevereiro, cientistas franceses do labora-
tório cryozootech e o centro de pesquisa genética italiano cIZ
clonam o cavalo campeão Pieraz-cryozootech-Stallion, que fora
castrado ainda novo. O laboratório informou que seus bancos de
genes já continham células de trinta cavalos, todos excepcionais
em suas categorias de competição, além de outros de raças em
perigo de extinção.
Também em 2005, os sul coreanos mostram ao mundo o
primeiro clone de um cão adulto, que foi chamado de Snuppy. A
novidade está na maior dificuldade que a clonagem de um cão
exige por causa da fisiologia reprodutiva única desse animal, que
reduz a qualidade e a quantidade dos óvulos utilizados no pro-
cesso. Os genes de Snuppy foram retirados de uma única célula
da orelha de um cachorro adulto. A descoberta foi considerada
a invenção mais espetacular de 2005, de acordo com a revista
norte-americana Time, que seleciona anualmente os projetos que
podem ter grande impacto na sociedade (PARK, 2005).
No Brasil, em maio de 2005, a Embrapa anuncia a produção
de dois clones da raça bovina Junqueira, sendo ambas, Porã e
Potira, clones da mesma fêmea.
Em 2013, uma equipe de cientistas de Oregon, nos EUA,
anunciou que conseguiu reprogramar células da pele humana
para que atuem como células-tronco, o que pode abrir caminho
para a clonagem com fins terapêuticos de órgãos humanos. Os
cientistas acreditam que as células-tronco poderiam ser usadas
para substituir as células danificadas por doenças ou lesões, e
para tratar males como o Parkinson, a esclerose múltipla, as do-
enças cardíacas e as lesões na medula espinhal.
O histórico em questão demonstra que as pesquisas não
cessam e evoluem a cada dia, demonstrando a rapidez das re-
voluções operadas pelas ciências biomédicas e o surgimento de
difíceis questões ético - jurídicas, não podendo o direito deixar de
se manifestar diante de tal realidade.
3 cLonAgem: precIsões conceItuAIs
Antes de adentrar no funcionamento técnico da clonagem, é
necessário fazer uma breve conceituação: o termo clone foi criado
em 1903 pelo botânico Herbert J. webber enquanto pesquisava
plantas no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Se-
gundo webber (1903), o termo vem da palavra grega Klón, que
significa broto vegetal. é basicamente um conjunto de células,
moléculas ou organismos descendentes de uma célula e que são
geneticamente idênticas a célula original (DINIZ, 2009).
Desta forma, a clonagem é um processo de reprodução as-
sexuada, onde são obtidos indivíduos geneticamente iguais (micro-
organismo, vegetal ou animal) a partir de uma célula-mãe. é um
mecanismo comum de propagação de espécies de plantas, bacté-
rias e protozoários. Em humanos, os clones naturais são gêmeos
univitelinos, seres que compartilham do mesmo DNA, ou seja, do
mesmo material genético originado pela divisão do óvulo fertilizado.
cabe aqui, fazer-se a distinção entre as clonagens repro-
dutiva e terapêutica, relembrando que apenas a primeira será
objeto do presente estudo.
Pode-se observar que o destino dado ao ente clonado é
uma das principais diferenças entre as clonagens terapêutica e
reprodutiva: no primeiro caso, o embrião seria a fonte de co-
lônia de células-tronco e teria sua existência restrita ao âmbito
laboratorial. Na clonagem reprodutiva, o destino do embrião é
ser implantado no útero de uma mulher, para que seu desenvol-
vimento seja levado a termo, surgindo daí uma pessoa humana,
dotada de vida social.
A clonagem reprodutiva objetiva criar uma cópia idêntica
de um ser humano. Seria como um gêmeo idêntico, porém, nas-
cido anos ou décadas depois. Foi através de um processo de
clonagem reprodutiva que foi criada a ovelha Dolly, como será a
seguir explicitado.
Em relação à clonagem terapêutica, observa-se que os se-
res vivos são concebidos a partir da multiplicação de uma única
célula ovo, contendo em seu DNA toda a informação hereditária.
Antes de começarem a se dividir e se diversificar para formar os
tecidos do corpo, as células do embrião são indiferenciadas.
A clonagem terapêutica tem como objetivo principal reo-
rientar essa única célula a produzir um determinado conjunto de
células ou um tecido: é a chamada célula tronco. Assim, elas po-
dem funcionar como um “curinga” de órgãos doentes, ajudando
a substituir seus órgãos degenerados. No caso de alguém que
fosse portador de uma doença como a leucemia, por exemplo, e
necessitasse de um transplante de medula, ele poderia ser o do-
ador para ele mesmo, não correndo o risco de rejeição, graças à
clonagem terapêutica.
Dieguez (2011), trouxe uma reportagem interessante sobre
estudos feitos com células-tronco. Referidas células - unidades
com potencial para se transformarem em tecidos musculares,
cardíacos, nervosos, dentre outros - são as responsáveis pela
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discussão acerca da legalização da clonagem terapêutica, haja
vista que, como será mostrado ao longo desse estudo, a clona-
gem reprodutiva é majoritariamente refutada. Nessa reportagem,
expõe-se que como a lista de males possivelmente curáveis cres-
ce a cada dia, é difícil dizer onde vão parar os benefícios médicos
dessas incríveis “peças de reposição naturais”. Resultado: com
essa descoberta, gerou-se uma pressão política enorme para a to-
mada de decisões rápidas sobre a clonagem. O motivo é que para
obter, estudar e utilizar células-tronco, é preciso tirá-las de embri-
ões muito jovens, de preferência logo após quatro dias de idade,
quando o futuro bebê ainda é apenas uma esfera invisível a olho
nu formado por algo entre 50 e 300 células. E a melhor maneira
de fazer isso, dizem os especialistas, seria produzir embriões em
laboratório, com a clonagem.
4 funcIonAmento técnIco dA cLonAgem reprodutIvA
Sendo a clonagem reprodutiva um tema relativamente novo,
torna-se necessário demonstrar o funcionamento técnico do pro-
cesso de clonagem, desmistificando várias polêmicas causadas,
muitas vezes, pelo desconhecimento do tema e pela veiculação
de informações inverídicas por parte da mídia.
A reprodução é o processo biológico em que os seres vivos
originam novos indivíduos, sendo a etapa do ciclo vital que permi-
te a perpetuação das espécies.
Para muitos seres a clonagem é um método de reprodução
normal, natural, o que não ocorre com a maioria dos organismos
existentes. As bactérias, por exemplo, seres unicelulares, reprodu-
zem-se através da clonagem, ou seja, as filhas são cópias genéti-
cas idênticas às suas mães. A reprodução das bactérias é assexu-
ada. Há apenas uma duplicação e posterior divisão de tais seres
(SILVA JúNIOR e SASSON,2001).
Porém, na maioria dos organismos, nenhuma célula do cor-
po seria capaz de gerar um novo ser. A reprodução é sexuada,
ocorrendo a fecundação entre os gametas feminino e masculino e
a transmissão das características hereditárias.
Haveria duas formas de reprodução que poderiam ser utili-
zadas na clonagem: a separação das células de um embrião em
seu estágio inicial de multiplicação celular ou a substituição do
núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um
indivíduo já existente.
Na primeira classificação, que seria a separação provocada
das novas células de um embrião, serão produzidos novos indi-
víduos exatamente iguais quanto ao patrimônio genético, porém
diferentes de qualquer outro existente, por exemplo, como ocorre
na natureza quando da geração de gêmeos univitelinos.
O Professor Jerry Hall, da Universidade George Washington/EUA, realizou esse tipo de experimento. Foram divididos 17 (de-
zessete) embriões, nos estágios de 2 (duas) a 8 (oito) células, re-
sultando em 48 (quarenta e oito) novos embriões. Todos os em-
briões gerados foram destruídos ao final do experimento, com um
estado máximo de desenvolvimento de 32 (trinta e duas) células.
A segunda técnica seria a que reproduz assexuadamente um
indivíduo criando outro igual ao previamente existente.
A reprodução assexuada é classificada por Stela Marcos de
Almeida Neves Barbas (1998, p. 39-40), da seguinte forma:
I - Reprodução Assexuada.
Cloning.
1.1 com componente genético de um dos cônjuges:
a) Gene do pai, clonado em óvulo de mãe legal e gerado por
ela - cloning homólogo.
b)Gene do pai, clonado em óvulo doado e gerado por mãe
legal. .
c) Gene da mãe, clonado em óvulo de mãe legal e gerado
por ela - cloning antólogo.
d) Gene clonado em óvulo de mãe doadora e gerado por ela.
1.2 com componente genético de doador, clonado em óvulo de mãe
portadora e gestado por ela - cloning heterólogo.
Foi utilizada a reprodução assexuada, no caso a técnica do
transplante nuclear, na criação da ovelha Dolly, e é anunciada pe-
los cientistas como a que deverá ser utilizada para a clonagem de
seres humanos.
Essa técnica consiste em retirar-se do ser (do animal) ao
qual se deseja copiar, uma célula comum cujo núcleo é, em se-
guida, extraído, sugado com uma agulha. O núcleo de referida
célula é enxertado em um óvulo - do qual também foi retirado o
núcleo - de outro ser.
Para unir o óvulo ao núcleo inserido, utiliza-se uma descarga
elétrica. O patrimônio genético do ovo formado é completo, uma
vez que vem de uma célula comum de um animal adulto. A partir
de tal fusão, o óvulo é colocado em um meio que estimula a for-
mação do embrião que, por sua vez, será implantado no útero de
outro organismo, da mesma espécie que os anteriores. Após o
período de gestação, nascerá um ser geneticamente igual àquele
do qual foi extraído o núcleo da célula comum, apesar de o óvulo
e útero pertencerem a outros organismos.
O médico italiano Severino Antinori citado por Dieguez
(2001) afirma ser possível a clonagem humana através da se-
guinte experiência: serão retirados óvulos de 180 (cento e oiten-
ta) mulheres. Estimuladas por drogas, cada mulher doará, apro-
ximadamente, 10 (dez) óvulos, cujos núcleos serão removidos,
ou seja, totalizando 1800 (mil e oitocentos) óvulos. como descri-
to anteriormente, será introduzido em tais óvulos, o núcleo das
células de pessoas candidatas à clonagem. Após o processo de
reconstrução e fecundação, apenas 600 (seiscentos) óvulos che-
garão ao estágio de embrião.
Foram selecionadas outras 200 (duzentas) voluntárias que
possuirão, em média, 3 (três) embriões implantados em seus
úteros. Apenas 30 (trinta) voluntárias passarão da metade do pe-
ríodo de gravidez. Ao final, terão nascido, aproximadamente, 8
(oito) bebês e, entre esses, somente 3 (três) deverão sair sadios
do berçário (cRUZ, 2001).
Vários obstáculos e polêmicas são gerados a partir de tal
experimento, quais sejam: inicialmente, 1/5 (um quinto) dos 1800
(mil e oitocentos) óvulos, é jogado fora após a primeira fase citada.
A retirada do núcleo das células comuns e sua fusão com
o óvulo possuem, atualmente, índice de falha de 60% (sessenta
por cento) em média.
Proporcionalmente, poucas células clonadas tornam-se em-
briões. No caso da ovelha Dolly, por exemplo, das 227 (duzentas e
vinte e sete) células utilizadas, somente 27 (vinte e sete) tornaram-
se embriões. Suspeita-se que a cultura dos embriões, além de
provocar perdas, cause futuros problemas genéticos nos clones.
Em alguns casos ainda, os defeitos do embrião poderão colocar
em risco a fêmea cujo útero está sendo utilizado, gerando a pos-
sibilidade de uma pequena parte delas morrer durante o parto.
O processo de nidação (fixação dos embriões nos úteros)
é, por sua vez, incerto: quase metade dos embriões não se fixa.
Dos que passam por essa etapa, 50% (cinqüenta por cento)
morre nos primeiros meses. é o que está sendo chamado de
“síndrome das crias”. A causa mais comum dessas mortes é o
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crescimento exagerado dos órgãos a ponto de inviabilizar a so-
brevivência das crias.
Acrescenta-se que alguns dos clones morrerão de proble-
mas respiratórios e cardíacos ao nascer, ou nas primeiras horas
de vida. Outros viverão com falhas genéticas e/ou imunológicas
graves. Mesmo depois de crescidos, porém, alguns desses clo-
nes poderão desenvolver anormalidades que até então, não ti-
nham se manifestado.
calcula-se que, de todos os embriões clonados, apenas
1% (um por cento) a 5% (cinco por cento) tornam-se adultos sau-
dáveis (DIEGUEZ, 2001).
Também não se pode prever como tais clones se compor-
tarão logo após o nascimento e durante seu desenvolvimento
até a fase adulta. Vários experimentos com clones de camun-
dongos demonstram que sua longevidade é muito reduzida
em relação ao indivíduo original (clonado). A ovelha Dolly já
sofria de artrite com apenas cinco anos (BONFIM, 2005), uma
doença comum na velhice ovina, e que não foi documentada
no indivíduo do qual Dolly se originou. Em várias espécies, os
clones gerados a partir de indivíduos adultos, incluindo Dolly,
apresentam vários outros sinais de envelhecimento precoce. O
experimento mais significativo evidenciando a eficiência da clo-
nagem, executado pela empresa Advanced cell Technology, foi
feito com 30 vacas clonadas e indicou que “apenas” 20% dos
clones apresentaram problemas até a idade de quatro anos,
fase adulta dos bovinos. Talvez outras vacas possam ainda
apresentar problemas até seus 20 anos, se chegarem à velhice
bovina, mas estas informações, presume-se, só poderão ser
obtidas daqui a algumas décadas.
Outro fator a ser considerado são os custos, os quais não
devem ser esquecidos, pois a técnica de clonagem, que permite
a criação de cópias de um único ser clonado, implica em vultu-
osos gastos. cumpre apenas lembrar que uma outra técnica foi
desenvolvida pelos cientistas criadores de Dolly, qual seja, fusão
das técnicas de transplante nuclear com a transgênese, onde o
gene de interesse é adicionado ao genoma da célula que será
utilizada como doadora (DINIZ, 2003). conjugando-se essas duas
técnicas, permite-se a produção de indivíduos transgênicos, ou
seja, com alterações genéticas.
Mas o que poderia acontecer à espécie humana? Qualquer
cientista sério responderia que problemas similares nos vários
estágios da clonagem e desenvolvimento do clone humano po-
dem aparecer com significativa probabilidade. Mas é necessário
pensar em situações que não podem ser respondidas agora. Por
exemplo: grande parte do processo de envelhecimento humano
está associada à nossa função cerebral, bem diferenciada dos ou-
tros animais. Será que teremos de esperar clones humanos se
desenvolverem para anotarmos, tal como um resultado de expe-
rimento que levou vários anos para ser respondido, que clones
ficam “caducos” antes do tempo?
Verificando-se os detalhes científicos dos processos de clo-
nagem, é fácil perceber as barreiras legais, éticas e morais que
deverão ser enfrentadas por aqueles que se “aventurarem” na
produção de um clone humano.
5 breve eXposIção sobre bIoétIcA e bIodIreIto
O termo Bioética refere-se, frequentemente, aos problemas
éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências
biológicas e, como exposto, estas tiveram um grande desenvolvi-
mento nos últimos tempos.
Segundo Sá (2004, p. 1):
Nessa esteira de raciocínio, a Bioética surge como corolário do co-
nhecimento biológico, buscando o também conhecimento do sistema
de valores. Embora se refira, freqüentemente, aos problemas éticos
derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas
que tiveram grande desenvolvimento na segunda metade do século XX,
muito importante se faz ressaltar, na busca de maior aprofundamento
sobre o tema, que referida ciência tem como uma de suas preocupa-
ções principais a questão da autonomia do paciente.
Tal termo foi utilizado pelo oncologista e biólogo norte ame-
ricano Van Resselder Potter, da Universidade de wisconsin, em
Madison, inicialmente num sentido ecológico, onde se considerou
a bioética como a ciência da sobrevivência. Posteriormente decla-
rou que “bio” significaria o conhecimento biológico e “ethike” o
conhecimento do sistema de valores (PESSINI, BARcHIFONTAI-
NE; DE PAUL, 1996).
Historicamente origina-se da preocupação da comunidade
científica, das autoridades e da população em geral, sobre as ex-
perimentações com o corpo humano, desde as práticas nazistas.
Sobre a origem da bioética, Séguin (1999, p. 18-19):
A fusão da ética com a ciência da vida deu origem à Bioética, inte-
grando a cultura humanística à técnico - ciência das ciências natu-
rais. Surgiu na década de 60 como estudo multidisciplinar, preocu-
pada com os reflexos do comportamento humano ante o progresso
das ciências da saúde. Passou além da ética - ciência e da Filosofia
do Direito, interfaceando o Direito Penal e o Direito Civil.
Para Diniz (2001, p. 10-11):
A bioética seria, no sentido amplo, uma resposta da ética às novas situ-
ações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos
problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas e alusi-
vos ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às
formas de eutanásia, à distanásia, às técnicas de engenharia genética,
às terapias gênicas, aos métodos de reprodução humana assistida, à
eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à
clonagem de seres humanos, à maternidade substitutiva, à escolha do
tempo para nascer ou morrer, à mudança de sexo em caso de transexu-
alidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à
utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais
de manipulação de agentes patogênicos, etc., como também dos de-
correntes da degradação do meio ambiente, da destruição do equilíbrio
ecológico e do uso de armas químicas. Constituiria, portanto, uma vigo-
rosa resposta aos riscos inerentes à prática tecnocientífica e biotecno-
científica, como os risco biológicos associados à biologia molecular e à
engenharia genética, às práticas laboratoriais de manipulação genética e
aos organismos geneticamente modificados [...].
A discussão em torno da Bioética chamou a atenção para
as implicações decorrentes das pesquisas biomédicas e biotéc-
nicas, que podem trazer prejuízos à saúde física e mental do ho-
mem, afetar o ecossistema, interferir na etnia, agravando posturas
racistas, preconceituosas, discriminatórias de indivíduos e grupos
étnicos, sociais, econômicos, entre outras polêmicas. Essa dis-
cussão evidencia a necessidade de inserir ações no mundo jurídi-
co, para o estabelecimento de normas regulamentadoras dessas
pesquisas, sua destinação e implementação de seus resultados,
garantindo à sociedade e à pessoa humana a segurança neces-
sária à manutenção de seu bem estar.
O biodireito, então, surge da união da bioética com o direito.
O biodireito teria a vida como objeto principal, salientando-se que
a verdade científica não poderá se sobrepor à ética e ao direito,
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assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes
contra a dignidade humana, nem traçar, sem os devido limites ju-
rídicos, os destinos da humanidade.
Biodireito, para Bobbio (1992, p. 13):
Direito de Quarta geração, cujo objeto é justamente, regular os
efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, acompa-
nhado as transformações sociais em curso e buscando prevenir e
solucionar todos os conflitos dela decorrentes.
Segundo Séguin (1999, p. 18-19):
O Biodireito como ciência disciplina as relações médico-paciente,
médico-família do paciente, médico-sociedade e médico-institui-
ções, e os diversos aspectos jurídicos que surgem dentro, fora e
por causa destes relacionamentos, introduzindo a noção de saúde
moral à saúde física. [...] Kant ensinou que a violação do Direito
ocorrida num ponto da terra é sentida por todos [...].
consideram-se interessantes, ainda, as seguintes observa-
ções sobre a bioética e o biodireito:
Andrade Júnior (2002, p. 233-235)
Como a Moral e a Ética, a Bioética e o Biodireito também lidam com
normas sociais. Estas, por sua vez, são comando de dever-ser, não
estando, assim, na ordem do ser. Isso porque as normas sociais
estão sujeitas ao fenômeno da imputação e não da causalidade.
São causais os fenômenos da natureza, na qual uma causa produz
inexoravelmente uma conseqüência [...] É a Bioética um ramo da
Ética, quando se estuda o fato relacionado à Biomedicina e será o
bem o valor nuclear a dar conteúdo às normas pertinentes a este
fato. Todavia, se as normas éticas forem eleitas pelo legislador,
como de suma relevância para os fins desejados pelo mesmo, se-
rão estas normas validadas, no que diz respeito ao Direito, surgin-
do, então o Biodireito. Nesse sentido, o Biodireito será um ramo do
Direito, mas abrangerá a Bioética.
Sá (2004, p. 1)
Assim, apesar de termos apontado suas diferenças, Bioética e Bio-
direito seguem juntos. O Direito não se limita ao discurso legal. A
força da norma é uma força da realidade. E esta verdade também
se encontra na Bioética, pelo efeito juridicizante que já expomos.
E a função maior de ambos é a proteção dos direito humanos, ainda
que utilizando técnicas distintas de abordagem, que ao final, sem
sombra de dúvidas, se completam.
Pelo já exposto, percebe-se a necessidade do Direito, seja
interno, seja internacional, através do Biodireito e da Bioética, de
tutelar e proteger a sociedade, assegurando aos homens direitos
essenciais como sua dignidade, assim como a necessidade de
manter-se um diálogo aberto e permanente entre os países do
globo, sobre as consequências da clonagem para o ser humano.
6 ALguns cAsos concretos (HArd cAses)
Após ter estabelecido a distinção entre os tipos de clonagem
e demonstrado como se dá o funcionamento técnico da clonagem
reprodutiva, cabe aqui relatar, com o objetivo de instigar a reflexão
e de mostrar como poderão ser concretas algumas das situações
expostas por Silver (2001), com as quais, possivelmente, a hu-
manidade irá se deparar, cotidianamente, em um futuro próximo:
- Primeira situação: Anissa era estudante e recebeu o diag-
nóstico de uma leucemia mielóide, um câncer de progresso lento
mas fatal, das chamadas ”células-mãe” do sangue. A única ma-
neira de curar esse câncer é por um processo de duas etapas: a)
um tratamento com substâncias químicas extremamente tóxicas
que destroem todas as “células-mãe” do sangue - o que inclui as
cancerosas - em todo o corpo da pessoa. b) a substituição das
“células-mãe” eliminadas por outras fornecidas por um doador,
mediante transplante de medula óssea. O doador deve mostrar
compatibilidade suficiente de tecidos com a pessoa carente e a
chance de haver compatibilidade suficiente entre dois indivíduos,
que não sejam parentes, é de 1(um) para 20(vinte) mil.
Os pais de Anissa, que estavam desesperados para salvar
a vida da filha, procuraram um doador. Nenhum dos membros da
família era compatível e também se mostraram frustradas outras
buscas. A essa altura, os pais tomaram um decisão: iriam ter outra
criança que pudesse doar a medula óssea necessária a Anissa.
Por milagre, conseguiram ter uma filha compatível e realizaram o
transplante. Desde então, a menina repete, bem feliz, que salvara
a vida de sua irmã.
considerando, porém, o que os pais poderiam ter feito se a
clonagem estivesse disponível quando souberam da doença da filha;
com uma célula da pele do corpo de Anissa, por exemplo, eles teriam
sido capazes de construir um novo embrião com o mesmo material
genético. E, em vez de lutarem contra as probabilidades, saberiam
desde o início que seu novo filho seria não apenas um doador ade-
quado, mas também perfeitamente compatível com sua filha mais
velha (o que é possível apenas com gêmeos idênticos). Exceto por
um detalhe, o resultado final não seria diferente do que realmente
aconteceu. Uma criança chamada Marissa ainda teria nascido e ela
ainda teria curado sua irmã mais velha. é claro que com a diferença
de que ao invés de ter material genético 99,95% igual ao de sua irmã
mais velha, como os outros pares de gêmeos, o material genético de
Marissa seria 100% igual ao de Anissa. Isso faria diferença na quan-
tidade de amor que os pais de Marissa sentiriam por ela? Estaria
ela menos orgulhosa de ter salvado a vida de sua irmã? claro que
não. Mas tendo em vista as implicações impostas acima, tem-se que
o procedimento ainda é muito incerto, devendo ser acrescentada a
seguinte pergunta: seria Marissa realmente saudável?
- Segunda situação: um casal possui um par de gêmeos e
depois de algum tempo a mãe fica estéril. Um dia, um rapaz dro-
gado invade a calçada com seu carro desgovernado e mata os
bebês que estavam em um carrinho no passeio. Os pais sabem
que não podem ter mais filhos biológicos. Sem que eles soubes-
sem um médico que estava na sala de emergência no momento
em que os bebês foram levados para lá, retirou, cuidadosamente,
amostras dos tecidos de ambos os corpos logo depois de mortos
e os congelou. Ele explica aos pais como poderiam utilizar essas
amostras, em uma tentativa de ter de novo seus próprios filhos
biológicos, por meio do processo de clonagem. é claro, ele ad-
verte, que os gêmeos originais não serão trazidos de volta. Mas as
crianças daí nascidas se parecerão e muito provavelmente agirão
de modo similar aos bebês que eles perderam.
O casal fica confuso com a escolha que está sendo ofereci-
da a eles. No entanto, decidem ir em frente. Agora a família está
completa. Um estranho nunca saberia que essa família foi cons-
truída pela clonagem dos dois gêmeos fraternos nascidos antes.
Ambas as crianças agora vão crescer num ambiente de amor e,
quando estiverem com idade para compreender, seus pais vão
explicar como eles foram concebidos.
Torna-se difícil imaginar o que poderia estar errado com esse
uso da tecnologia da clonagem de humanos. Na verdade, com
base num direito constitucionalmente protegido de reproduzir, é
difícil imaginar como seria eticamente possível negar o uso da
tecnologia - desde que seja considerada segura - ao casal nessa
circunstância extremamente incomum.
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A questão torna-se ainda mais complicada quando se
trata de clonagem de adultos, como é possível perceber pela
situação que se segue.
- Terceira situação: Elisa é uma mulher solteira que vive de
seu trabalho e mora em um apartamento elegante. concentrou
quase todas as suas energias na carreira desde que se formou
e tem crescido constantemente no mundo dos negócios. Em ter-
mos financeiros está tudo muito bem. Elisa teve relações afetivas
com vários homens ao longo desses anos, mas nenhuma foi séria
o bastante para que ela desistisse da sua vida de solteira.
No dia de seu aniversário de 35 anos, ela decide ter um filho.
Elisa está bem ciente da lei federal que torna a clonagem ilegal.
Mas ela decide fazer o que inúmeras outras mulheres em sua situ-
ação têm feito recentemente - tirar férias nas Ilhas cayman, onde
há uma grande clínica reprogenética especializada em clonagem.
como Elisa é uma mulher solteira saudável, não tem necessi-
dade de outros participantes biológicos no processo de clonagem
e consegue, desta forma, engravidar. Seu ginecologista e obstetra
sabe que ela é solteira e não pergunta (assim como Elisa não con-
ta) como começou a gravidez. Ela dá a luz a uma menina saudável.
Raquel vai crescer da mesma maneira que as outras crianças da sua
idade. De vez em quando, as pessoas irão comentar sobre a notável
semelhança entre a criança e sua mãe. Elisa vai sorrir para elas e
dizer: “Sim, ela tem minhas feições”. E a conversa irá parar por aí.
com essa situação poder-se-ia perguntar: quem é Raquel e
quem seriam realmente seus pais? Não há dúvida de que Elisa é sua
mãe de nascimento, já que Raquel nasceu de seu corpo. Mas Elisa
não será a mãe genética de Raquel se for baseado nos significados
tradicionais de pai e mãe. Em termos genéticos, Elisa e Raquel são
irmãs gêmeas! Seus únicos dois avós também são seus pais genéti-
cos. E, quando Raquel crescer e tiver seus próprios filhos, seus filhos
também serão filhos de sua mãe. Assim, com um único ato de clo-
nagem, seremos forçados a reconsiderar o significado de pais, filhos
e irmãos, assim como o relacionamento desses indivíduos entre si.
7 consIderrAções fInAIs
Vive-se em um momento de alta produção científica e tec-
nológica onde são realizadas descobertas inusitadas. A socieda-
de encontra-se em um momento de transição, de adaptações às
novas exigências, forçando, como consequência, o Direito interno
e internacional a se adequarem a tal realidade, sob pena de des-
configurar-se o real sentido de justiça.
A clonagem humana tem causado inflamadas discussões em
todo o mundo, principalmente quando essa técnica, já empregada
em bactérias, plantas e animais, passou a vislumbrar o ser humano.
O desenvolvimento da clonagem humana fará com que se
atinja o limiar do pensamento humano, o que gerará uma modifi-
cação profunda nos paradigmas desenvolvidos até os dias atuais.
A verificação da clonagem no plano jurídico e ético deve ter
em vista a principiologia que informa o biodireito e a bioética, as-
sim como o ordenamento jurídico nacional e o internacional.
considera-se que não pode o desenvolvimento da ciência
ser prejudicado devido a preconceitos ou princípios anacrônicos
sob os quais se revestem valores morais anacrônicos ou valores
religiosos da sociedade. Deve-se observar que, ainda nos dias de
hoje, há pessoas tão contrários ao desenvolvimento da ciência e
à evolução social que proíbem o uso de preservativos para evitar
doenças como a AIDS, assim como o uso de outros contracepti-
vos para se evitar uma gravidez indesejada, ao mesmo tempo em
que são contrárias ao direito de o indivíduo recorrer a técnicas de
fertilização in vitro para alcançar uma gravidez.
A clonagem humana reprodutiva deve ser analisada com
cautela de modo a não gerar decisões precipitadas ou preju-
diciais à sociedade e a princípios fundamentais. Além disso,
a possibilidade da real clonagem de seres humanos é nova e
tudo o que é novo sempre gera o medo. Medo de que sejam
tomadas medidas radicais que proíbam o estudo da clonagem,
impossibilitando a aquisição de conhecimentos que permitam
um futuro mais digno. Medo de que cientistas e médicos ines-
crupulosos realizem experiências com seres humanos sem ob-
servarem o princípio do consentimento informado ou mesmo
sem consciência de suas consequências. Medo de que a socie-
dade não possua discernimento para enxergar possibilidades
benéficas e proíba absolutamente sua realização, como vem
sendo feito. Medo de que determinados setores da sociedade
restrinjam-se a seus interesses limitados e preconceituosos.
Medo de que o interesse econômico da minoria prevaleça so-
bre o da maioria. Porém, só se está começando e resta um
longo caminho a ser trilhado.
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2 Sobre histórico ver: A ERA dos clones. Descobrir, São Paulo, n. 5, p. 23-25, 1990.; cRUZ, Ana Santa; TEIcH, Daniel Hessel. O Próximo!. Veja, São Paulo, n. 1713, p.126-132, 15 ago. 2001.;
3 NEwScIENTIST. Special Report: cloning and Stem cells. Disponível em: <http://www.newscientist.com/hottopics/cloning>. Acesso em: 02 nov. 2001.
4 ONU aprova resolução contra a clonagem humana.
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 21
desafios para a concretização das polÍticas pÚblicas no brasil: a internação compulsória de dependentes quÍmicos sob a ótica da nova ordem constitucional
stéfani cristina de souza 1
cristian Kiefer da silva2
RESUMO: O presente trabalho consiste em uma análise sistemática dos caracteres jurídicos, políticos e sociais que, na contemporaneidade, conformam um dos
mecanismos centrais de atuação da Administração Pública brasileira voltada à efetivação dos Direitos Fundamentais, sobretudo, dos direitos sociais, econôm-
icos e culturais: as políticas públicas. Nesse contexto, a internação compulsória de dependentes químicos tem sido promovida pelos estados brasileiros como
uma aposta dos governos locais para a diminuição do índice de dependência química e, automaticamente, da criminalidade. A proposta visa acabar com os
grandes centros de tráfico, consumo de drogas e meretrício, popularmente conhecidos como “cracolândias”, utilizando o método que consiste em internar os
toxicômanos em centros de recuperação de dependência química sem sua anuência, sequer de seus familiares. A Administração Pública vem adotando o pro-
cedimento de internação compulsória, previsto na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001, por analogia, já que na referida lei não há previsão expressa
de aplicação para dependentes de tóxicos, mas, tão somente, para portadores de transtorno mental grave. Neste contexto, o presente trabalho irá abordar os
aspectos controversos e as possíveis consequências jurídicas acerca do procedimento de internação compulsória, que utiliza a Lei nº 10.216/2001 por analogia
in malam partem aos dependentes químicos, sob a ótica constitucional de proteção às liberdades dos indivíduos (Neoconstitucionalismo).
PALAVRAS-CHAVE: Internação Compulsória; Lei da Reforma Psiquiátrica; Nova Ordem Constitucional.
ABSTRACT: This study consists of a systematic analysis of the legal, political and social characters that contemporarily, conform one of the central mechanisms
of action of the Brazilian Public Administration focused on enforcement of Fundamental Rights, especially the social, economic and cultural rights: political pub-
lic. In this context, compulsory hospitalization of drug addicts has been promoted by the Brazilian states as a bet of local governments to decrease the rate of
chemical dependency and automatically crime. The proposal aimed at ending the great centers of trafficking, drug use and prostitution, popularly known as “cra-
colândias” using the method consisting in hospitalized drug addicts in rehabilitation centers, addiction without their consent, even their families. The government
has adopted the procedure of compulsory hospitalization, under Law of Psychiatric Reform Law number 10.216/2001, by analogy, since in that law no express
provision for applying for dependent toxic, but merely to carriers with severe mental illness. In this context, this paper will address the controversial aspects and
about the possible legal consequences of the compulsory hospitalization procedure, which uses the Law number 10.216/2001 by analogy in malam partem for
drug addicts under the perspective of constitutional protection to the liberties of individuals (Neoconstitutionalism).
KEYWORDS: Mandatory Detention; Law Reform Psychiatric; New Constitutional Order.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Breve Análise Histórica da Internação Compulsória no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 3 A Internação Compulsória e a Lei Nº
10.216/2001; 3.1 Os Destinatários da Lei; 3.2 Os Tipos de Internação Previstos e Seus Requisitos Legais; 3.3 A Finalidade Da Intervenção; 4 A Internação
Compulsória sob a Ótica da Nova Ordem Constitucional; 4.1 A Dignidade da Pessoa Humana; 4.2 O Princípio da Legalidade; 4.3 O Direito Deambulatorial; 5
Aspectos Relacionados à Criminalização das Condutas; 5.1 Vedação da Analogia In Malam Partem; 6 A Eficácia da Internação Compulsória de Toxicômanos;
7 Considerações Finais
ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional.
1 Introdução
A partir do século xx, o consumo de drogas aumentou ex-
ponencialmente no Brasil, gerando para as entidades estatais
um dever de intervenção efetivo. Em decorrência de tal primor-
dialidade, em março de 2012 começou a ser implantada nos
estados membros brasileiros a proposta de política pública de
internação compulsória temporária de viciados em drogas ilíci-
tas e cujo estado de dependência estivesse demasiado grave.
A internação compulsória iniciou-se como uma aposta dos
governos locais para a diminuição do índice de dependência
química e, automaticamente, da criminalidade em determina-
das regiões. contudo, tal procedimento, como a própria deno-
minação aponta, prescinde de consentimento do dependente
químico e de seus familiares, sendo previsto no ordenamento
pátrio somente na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/01,
que não prevê, expressamente, sua aplicação para casos que
não sejam de pessoas portadoras de transtorno mental grave.
Importante registrar que a administração pública, como
fundamento legal para a prática da internação dos toxicôma-
nos, vem aplicando a referida lei por analogia, o que é vedado
tratando-se de leis restritivas de direitos, o que, pressuposta-
mente, já aponta para a ilegalidade do procedimento.
A prática é passível, também, de ser declarada inconsti-
tucional quando analisada sob a ótica do Estado Democrático
de Direito em que vivemos. A Nova Ordem constitucional, ou
Neoconstitucionalismo, prega a limitação até da aplicação de
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leis quando estas afrontam direitos fundamentais e axiomas de
justiça (especialmente principiológicos).
Destarte, considerando que sob a égide da Nova Ordem
constitucional já é possível relativizar até a aplicação de lei, o que
se dirá de uma aplicação analógica em prejuízo à pessoa humana
e que, ainda por cima, viola os direitos de primeira dimensão/ge-
ração (civis e políticos, como os direitos de liberdade)?
O estudo do tema proposto é, portanto, relevante, já que arbi-
trariedades podem estar sendo cometidas pelo Estado ao utilizar a
Lei nº 10.216/01 como instrumento de promover política de saúde
pública em detrimento dos preceitos e dispositivos constitucionais.
2 breve AnáLIse HIstÓrIcA dA InternAção compuLsÓrIA no
ordenAmento JurÍdIco brAsILeIro
O surgimento da ideia de pacto social e estado civil foi, pri-
ma facie, obra do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, em seu
livro Du contrat social ou Principes du droit politique (1762). Nesta
obra, o filósofo aponta que a necessidade de constituição de uma
agregação social é inerente ao homem natural, que perde a ca-
pacidade de subsistência individual. Quando os homens passam
a viver em forma coletiva torna-se imprescindível a figura de um
“soberano”, responsável por defender e proteger os bens, direitos
e interesses de todos os indivíduos na agregação.
Diversas filosofias e doutrinas, no decorrer dos anos, apri-
moraram a ideia inicial de Rousseau, mas não a alteraram em
sua essência. A figura do “soberano” se concretizou na ficção do
Estado, que se organiza a fim de exercer o seu poder sobre os
“súditos”, a sociedade. com a evolução política e jurídica verifi-
cou-se a necessidade de restrição do poder do Estado, sendo-lhe
impostos limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de
responsabilização.
O Brasil, como República Federativa, é regido pela constitui-
ção Federal, pilar do ordenamento jurídico brasileiro e que dispõe
a cerca da estrutura do Estado, dos Poderes e dos direitos fun-
damentais. A não observância, por qualquer dos entes federados
(União, estados, Distrito Federal e municípios), dos dispositivos
constantes no texto constitucional torna possível a insurgência do
prejudicado contra o ato, questionando sua constitucionalidade.
A contextualização histórica supra foi tecida a fim de de-
monstrar que a ideia de que cabe ao Estado zelar pelo que con-
vém ser o melhor aos seus súditos foi plantada no século xVI, pelo
filósofo Rousseau, e enraizou-se desde então. Em decorrência
disto, o Estado, muitas vezes, esquece-se de respeitar os limites
impostos a sua atuação. São vários os princípios limitadores da
atuação estatal, especialmente os denominados direitos de pri-
meira dimensão, ou geração, que consiste no dever do Estado de
respeitar os direitos individuais e políticos dos cidadãos.
Por serem repressores do poder estatal, os direitos funda-
mentais de primeira geração são reconhecidos como direitos ne-
gativos, liberdades negativas ou direitos de defesa do indivíduo
frente ao Estado (ALExANDRINO, 2012, p. 102). Em outras pala-
vras, o Estado assume uma obrigação de “não fazer”, ou seja, não
intervir na esfera individual de seu súdito.
O direito da liberdade de ir e vir está abrangido nesta cate-
goria de direitos fundamentais de primeira geração, cabendo ao
Estado não restringi-lo, ressalvado os casos expressamente pre-
vistos (penas restritivas de liberdade, por exemplo).
Verifica-se a correlação direta entre o breve histórico tecido
com o objeto do presente trabalho, a saber, a discussão acerca
dos estados brasileiros promoverem a chamada internação com-
pulsória dos dependentes químicos.
O estado de São Paulo, pioneiro da prática, desde a pu-
blicação da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que trouxe
as figuras de internação voluntária, involuntária e compulsória,
passou a discutir sobre a possibilidade de aplicação de tais
internações também para toxicômanos. Os defensores da pro-
posta argumentavam, segundo Luiz Loccoman, que um em
cada dois dependentes químicos apresentava algum tipo de
transtorno mental, como a depressão.
Tais argumentos são inquestionavelmente de cunho políti-
co. A finalidade colimada dos defensores da utilização da Lei nº
10.216/01 por analogia era revestir de uma aparente legalidade
o que algumas autoridades já queriam há muito tempo, mas
que lhes é vedado pela constituição: restringir, de uma vez, a
liberdade das pessoas que se encontram em estado de extre-
ma dependência química de drogas ilícitas, tirando-as das ruas
e privando-as do convívio social.
A medida, policialesca e simplista, é “vendida” pelas au-
toridades como uma forma de acabar com a dependência quí-
mica. Pura ilusão. A mácula insanável é verificada no fato de
que os governantes, agindo de tal forma, estão optando por
um “caminho mais fácil”, mas sem efetividade a longo prazo.
Ora, “varrer a poeira para debaixo do tapete”, passando para
a sociedade uma imagem de “limpeza” do problema com as
drogas, só manterá aparências, mas não trará solução.
Em 2011 a internação compulsória teve vários adeptos. Em
São Paulo, a prática surgiu com a parceria do Tribunal de Justiça
de São Paulo, o Ministério Público estadual e a Ordem dos Advo-
gados do Brasil (OAB), por meio de uma comissão Antidrogas.
Há alguns estados que estão até apresentando projetos
de lei estaduais para regular o procedimento. Em março de
2014, seguiu para sanção do governador de Goiás o projeto
de lei estadual nº 549/12, que institui o Sistema Estadual de Internação Compulsória de Dependentes Químicos. No Rio
de Janeiro, em 2013, foi aprovado projeto de lei mais tímido,
prevendo a internação de dependentes químicos, desde que
haja autorização da família. A Assembleia Legislativa excluiu do
projeto o trecho que permitia os agentes de segurança pública
também determinarem a internação de forma compulsória.
No estado de Minas Gerais também já foi implantada a
referida política de internação compulsória para usuários de
drogas desde 2012. conforme o conselho Regional de Psico-
logia de Minas Gerais, as informações da Secretaria de Saúde
do estado apontam uma média mensal de quinze internações
compulsórias.
Verifica-se que, inobstante a Lei nº 10.216 não ter sido
publicada há mais que uma década, os estados brasileiros
passaram a, efetivamente, implantar a prática da internação
compulsória de 2011 em diante. Não é difícil imaginar o porquê
da repentina aplicação da lei, por analogia, aos toxicômanos,
afinal tais “cracolândias” mancham a imagem dos estados e,
em vésperas de grandes eventos mundiais os “holofotes” estão
direcionados para o Brasil.
Até o presente momento o assunto não tomou alarman-
tes repercussões nos Tribunais. Possivelmente, por pressões
políticas, aguarda-se a “poeira baixar” para que seja dado o
primeiro alarde sobre o assunto, que é tão delicado.
No mais, a reassunção do poder ilimitado do “Estado-so-
berano” em restringir a liberdade de ir e vir por meio da interna-
ção compulsória não atingiu a classe média e classe alta, mas,
tão somente, a parte marginalizada da população. é possível
que a arbitrariedade da prática perdure por vários anos.
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3 A InternAção compuLsÓrIA e A LeI nº 10.216/2001
3.1 os destinatários da Lei
Em 06 de abril de 2001, após longo processo de discussão
e tramitação no congresso Nacional (que se estendeu por cerca
de um ano), foi promulgada a Lei 10.216/01, a lei da Reforma Psi-
quiátrica. Pelo texto da lei, é possível verificar que os legisladores
objetivavam garantir a cidadania, o respeito e individualidade dos
acometidos por transtorno mental, dispondo sobre as peculiari-
dades de cada caso de acordo com a gravidade do transtorno.
O doutrinador e magistrado Antônio carlos Santoro Filho, ao
promover uma síntese da evolução histórica do Direito brasileiro
em relação aos transtornos mentais e seus portadores, afirma que:
O novo diploma legal inverteu o sistema até então vigente, pois
estabeleceu a excepcionalidade da internação, somente quando os
recursos extra-hospitalares não se mostrassem suficientes; a pro-
teção dos direitos do portador de transtorno mental contra abusos
no tratamento; o reconhecimento do paciente como sujeito e titular
de direitos; a preocupação com o melhor tratamento , e não apenas
com a “segurança” social; a reinserção gradual do usuário do sis-
tema de saúde mental. (FILHO, 2012, p. 13).
O artigo 1º da Lei da Reforma Psiquiátrica não deixa dúvidas
sobre quem são os destinatários da lei:
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de trans-
torno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer
forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexu-
al, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos
econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu
transtorno, ou qualquer outra. (BRASIL, 2001).
Pela leitura do dispositivo legal conclui-se que a lei se aplica
a pessoas acometidas por doença mental, não tendo o legislador
aberto margem para interpretação extensiva capaz de abranger
dependentes químicos.
3.2 os tipos de Internação previstos e seus requisitos Legais
A Lei nº 10.216/01 prevê três espécies de internação:
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante
laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de interna-
ção psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento
do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento
do usuário e a pedido de terceiro;
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
(BRASIL, 2001).
A internação voluntária, também chamada de consentida, se
dá com o consentimento do usuário que, para tanto, deverá assi-
nar uma declaração de que optou por esse regime de tratamento
(artigo 7º, caput), sob pena se ser considerada involuntária. “O
término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita
do próprio paciente ou por determinação do médico assisten-
te, quando constatada a desnecessidade de sua continuidade”
(SANTORO FILHO, 2012, p. 41).
A internação involuntária se dá sem o consentimento do usu-
ário e a pedido de familiar ou responsável legal. Suas peculiarida-
des estão dispostas no artigo 8º da Lei:
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será auto-
rizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional
de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta
e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo res-
ponsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo
esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação
escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido
pelo especialista responsável pelo tratamento. (BRASIL, 2001).
Por fim, a internação compulsória, objeto do presente artigo,
é aquela determinada pela Justiça, o que pressupõe a existência
de um processo, de natureza civil ou criminal já em andamento,
considerando que “ninguém será privado de sua liberdade ou de
seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV, da
constituição Federal de 1988).
A internação compulsória está prevista no artigo 9º da Lei,
cujo teor é bem mais sucinto do que o da internação involuntária:
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a
legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as
condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda
do paciente, dos demais internados e funcionários. (BRASIL, 2001).
Nota-se que o artigo é omisso quanto aos legitimados para a
propositura, apontando, somente, que cabe ao juiz determiná-la.
Segundo Santoro Filho (2012, p. 42) “pode ser postulada dos po-
deres públicos - Estado e Município - em demanda judicial, deten-
do legitimidade, para tanto, independentemente de decretação de
interdição do internado [...] ou mesmo Ministério Público”.
Inobstante a imprescindibilidade de laudo médico para a
promoção de internação, no caso de internação compulsória de
dependentes químicos o Tribunal de Justiça de São Paulo tem
sido tão extremo que sequer anula o ato pela falta do requisito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA Insurgência
contra o indeferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tute-
la requerida a fim de determinar a internação compulsória de pessoa
portadora de perturbação mental decorrente de dependência química -
Decisão fundamentada - Ausência dos requisitos autorizadores da me-
dida -Ato de livre convicção do Magistrado - Não constatado caso de
ilegalidade ou de abuso de poder - Internação compulsória é medida
extrema, devendo a necessidade de seu deferimento estar amparado
por provas concretas de risco à saúde do dependente químico e da se-
gurança da família - Decisão mantida - Negado provimento ao recurso.
(BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo nº 2021291-
37.2014.8.26.0000. Agravante: José Carlos Oliveira. Agravados: Sheila
Cristina Marcelino, Município De Limeira E Fazenda Pública Do Estado
De São Paulo. Relator: Rubens Rihl. São Paulo, 03 de abril de 2014).
O entendimento do citado doutrinador vem sendo aplica-
do não só nos casos de internação compulsória de deficien-
tes mentais mas também tratando-se dos viciados. como su-
pramencionado, São Paulo, pioneiro da aplicação da lei para
dependentes químicos, já tem jurisprudência sedimentada no
sentido de que o Ministério Público tem legitimidade ativa para
solicitar a internação compulsória de toxicômanos:
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Internação de paciente dependente de subs-
tâncias químicas - Afastadas preliminares de ilegitimidade ativa do
Ministério Público e ilegitimidade passiva ad causam do Município
de Morro - Agudo Direito à saúde; dever do Estado, direito do povo
- Art. 196 da Constituição da República, norma programática que
não constitui promessa constitucional inconsequente (STF, 2ª T.,
AgRE 273834-4-RS, Rel. Min. Celso de Mello) - Ação julgada pro-
cedente - Sentença mantida - Recurso voluntário desprovido.
A necessidade de internação compulsória em clínica especializada para
tratamento de drogadição é imprescindível para a recuperação do au-
tor, conforme documento médico e estudo social. A pretensão encon-
tra fundamento em dispositivos constitucionais, já que a internação do
dependente de substâncias químicas é medida protetiva, que busca o
adequado tratamento médico, para salvaguardar à saúde e à integridade
física e mental, tendo como alicerce a dignidade da pessoa humana.
(BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação cível nº
0002324-59.2010.8.26.0374. Apelante: Prefeitura Municipal De
Morro Agudo. Apelado: Ministério Público Do Estado De São Paulo.
Relator: Ribeiro de Paula. São Paulo, 31 de agosto de 2011).
Importante salientar que o caput do artigo 6º da Lei 10.216/01
prevê a indispensabilidade de laudo médico circunstanciado, que
caracteriza seus motivos. Santoro Filho aponta, também, como re-
quisito “[...] de qualquer internação a sua absoluta necessidade, ou
seja, apenas será admissível quando os recursos extra-hospitalares
se mostrarem insuficientes” (SANTORO FILHO, 2012, p. 36).
3.3 A finalidade da intervenção
A internação deve ser enxergada como medida excepcional,
sendo indicada somente em hipóteses de perigo concreto, isto é,
quando houver risco à integridade física, à vida, à saúde do pró-
prio paciente ou terceiros (artigo 4º, Lei 10.216/01). Explica Santo-
ro Filho que “[...] verificada a necessidade de internação, contudo,
esta terá como finalidade permanente a cessação daquele estado
de perigo e, em consequência, a reinserção social do paciente em
seu meio”. (SANTORO FILHO, 2012, p. 35).
Em suma, a internação prevista na Lei de Reforma da Psiquia-
tria, como medida excepcional, é necessária somente até cessar as
causas de perigo concreto, onde prevaleça a absoluta necessidade e
quando as hipóteses dos demais recursos sejam insuficientes.
Nota-se que, no caso de internação compulsória de toxicôma-
nos, a internação é feita inclusive em casos de pessoas que não re-
presentam perigo algum a sociedade. O Poder Público, nestes ca-
sos, utiliza o argumento de que há “iminente risco à vida ou a saúde
do próprio dependente”. Observa-se, portanto, uma deturpação do
instituto da internação, prevista na lei utilizada analogicamente.
4 A InternAção compuLsÓrIA sob A ÓtIcA dA novA ordem
constItucIonAL
A nova dogmática constitucional, inaugurada no Brasil com
a promulgação da constituição cidadã, em 1988, pós-ditadura
militar, passou a centralizar a dignidade da pessoa humana como
valor jurídico supremo. Em outras palavras, foi inaugurado um
novo período de hermenêutica constitucional.
A principal característica do novo modelo de Estado de Direito,
o Democrático, foi a exacerbada tutela de direitos fundamentais, ideia
advinda do constitucionalismo francês. Além disso, a nova consti-
tuição trouxe mais efetividade aos instrumentos limitadores da atua-
ção do Estado (habeas corpus, mandado de segurança etc.), dando
mais efetividade à proteção dos novos axiomas da justiça.
Uadi Lammêgo Bulos define as principais características
do neoconstitucionalismo como modelo axiológico de consti-
tuição normativa:
[...] a constituição é marcada pela presença de princípios e de nor-
mas definidoras de direitos fundamentais; as normas e princípios
constitucionais têm caráter material, positivando valores arraigados
na comunidade, a exemplo da moral, dos costumes e dos hábitos
(conteúdo axiológico); e as constituições também possuem denso
conteúdo normativo, influenciando toda ordem jurídica e vinculando
a atividade dos Poderes Públicos e dos particulares (eficácia hori-
zontal dos direitos humanos). (BULOS, 2010, p. 81).
Esta rematerialização da constituição passou a consagrar
um extenso rol de direitos fundamentais. Dentre os tópicos consti-
tucionais pertinentes ao tema destacam-se o princípio fundamen-
tal da dignidade da pessoa humana, o princípio da legalidade e o
da liberdade de ir e vir.
4.1 A dignidade da pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da
constituição Federal de 1988) não é definida no texto constitucio-
nal e, por ser um conceito amplo, a doutrina diverge em defini-la.
A exigência enunciada por Immanuel Kant (1724-1804), em sua
obra sobre o imperativo categórico, é utilizada pelos doutrinado-
res como ponto de partida em conceituá-la. “Age de tal forma que
trates a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamen-
te como um meio.” (SANTORO FILHO, 2012, p. 23).
Extrai-se, portanto, o conceito de dignidade humana da
própria constituição, observada como um todo. O respeito aos
direitos e garantias fundamentas, por si só, sintetizam a condição
de ser humano, exigindo do Poder Público e de terceiros uma
respeitabilidade mínima.
Quando a análise do princípio fundamental em questão se
mescla com a discussão acerca da internação compulsória dos
dependentes químicos, os favoráveis à prática afirmam que os to-
xicômanos precisam ser internados justamente porque carecem
de qualquer dignidade vivendo como vivem.
Dentre os simpatizantes da internação compulsória, encontra-
se o criminalista e deputado estadual de São Paulo, Fernando ca-
pez, que manifestou sua opinião em artigo na Folha de São Paulo:
[...] Triunfantes em sua batalha na mente do jovem, os entorpe-
centes têm dragado vidas ainda incipientes ao abismo da depen-
dência sem volta. Antecedidas, em regra, por um histórico de
desprezo, maus-tratos, abandono, abuso sexual, comportamento
omisso ou inadequado dos pais ou responsáveis, ou mesmo pela
falta de perspectiva de projetos positivos, crianças e adolescen-
tes perambulam pelas cracolândias da vida em busca de drogas
baratas e mortais. Há uma dupla vitimização: do viciado, impelido
pelo incontrolável desejo de consumo, que acaba por se tornar um
delinquente, e dos inocentes, que por uma infelicidade cruzam seu
caminho durante a ação criminosa. Nessa perspectiva, o uso inde-
vido de drogas deve ser reconhecido como fator de interferência na
qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade
(lei nº 11.343/2006, art. 19, inciso I). A internação involuntária do
dependente que perdeu sua capacidade de autodeterminação está
autorizada pelo art. 6º, inciso II, da lei nº 10.216/2001 como meio
de afastá-lo do ambiente nocivo e deletério em que convive. Tal
internação é importante instrumento para sua reabilitação. Na rua,
jamais se libertará da escravidão do vício. As alterações nos ele-
mentos cognitivo e volitivo retiram o livre-arbítrio. O dependente
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necessita de socorro, não de uma consulta à sua opinião. A inter-
nação compulsória por ordem judicial pressupõe uma ação efetiva
e decidida do Estado no sentido de aumentar as vagas em clínicas
públicas criadas para esse fim, sob pena de o comando legal inser-
to na lei nº 10.216/2001 tornar-se letra morta. Espera-se que o po-
der público não se porte como um mero espectador, sob o cômodo
argumento do respeito ao direito de ir e vir dos dependentes quími-
cos, mas, antes, faça prevalecer seu direito à vida. (CAPEZ, 2011).
Já os doutrinadores e instituições que se posicionam contra
a internação compulsória de dependentes químicos alegam que
utilizar-se de uma lei inespecífica para toxicômanos, por analogia,
para interná-los é que constituiria violação à dignidade da pessoa
humana, posto que restaria configurado desrespeito aos direitos
individuais e a liberdade daqueles cidadãos.
Dentre as instituições contrárias à prática, está o conselho
Regional de Psicologia de São Paulo:
A internação compulsória é uma política governamental que não
se configura como cuidado, mas como uma violência do Estado
á população;
A internação compulsória apenas contribui para a exclusão e o
isolamento social sem trazer benefícios para o (a) usuário (a) de
crack, álcool e outras drogas;
A internação compulsória como medida única e sensacionalista, é
uma clara violação dos direitos e princípios da Reforma Psiquiátrica
Antimanicomial.
Posicionamo-nos CONTRÁRIOS à Política de Internação Compulsória
de usuários (as) de crack, álcool e outras drogas e reiteramos as
razões para defender um tratamento COM LIBERDADE e DIGNIDADE:
[...] Todos tem direitos a informações claras sobre as diferentes
possibilidades terapêuticas, a escolher outras formas de tratamen-
to e liberdade de aceitar ou recusar a proposta oferecida;
[...] As chamadas “crackolândias” são efeitos da negligência pú-
blica e hipocrisia social. A população moradora destes locais não
tem casa, não tem família, está numa situação dramática nas ruas.
Precisamos contribuir para buscar uma solução, que não é a de
recolhimento e isolamento por meio das corporações policiais;
A Internação Compulsória representa uma falsa ideia de solução
mágica, que leva a sociedade a aceitas medidas sem a reflexão
necessária [...]. (CONSELHO, 2014).
Com propriedade, os internados em tais circunstâncias ainda são
“cidadãos”, afinal, mesmo sendo dependentes e vivendo de forma
precária, por conta de seu vício, não sofreram qualquer processo
prévio apto a restringir-lhes a capacidade civil plena (uma interdi-
ção, por exemplo).
4.2 o princípio da Legalidade
A constituição Federal de 1988 prevê o princípio da legalida-
de no artigo 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Outrossim, é pre-
visto no inciso xxxIx, do mesmo artigo, o princípio da legalidade
no âmbito penal, mais relevante para a discussão sob comento.
Prevê o dispositivo que “não há crime sem lei anterior que o defi-
na, nem pena sem prévia cominação legal”.
Referido dispositivo é responsável pela segurança jurídica
em matéria criminal e consagra a regra do nullum crimen nulla
poena sine praevia lege.
De uma só vez, assegura tanto o princípio da legalidade (ou reser-
va legal), na medida em que não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal, como o princípio da
anterioridade, visto que não há crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal. (LENZA, 2010, p. 784).
como reiteradamente apontado, a Lei 10.216/01, em seu
artigo 1º, aponta como destinatário do estatuto os portadores de
transtorno mental. O vício em drogas não é transtorno mental. O
viciado em crack, cocaína, maconha difere-se de um fumante por
serem estas drogas ilícitas e o cigarro não mais. Poder-se-ia res-
tringir a liberdade de um fumante sob o argumento de que põe em
risco sua própria saúde e, por isso, deve ser considerado maluco?
A Lei específica sobre drogas ilícitas, usuários, traficantes
etc., cujo bem jurídico tutelado também é a saúde pública, é a Lei
nº 11.343/06. Nesta lei deixou de ser prevista a possibilidade de
aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário e portador
para consumo próprio (artigo 28 da Lei nº 11.343/06).
Vigora, na doutrina, o posicionamento de que o artigo 28 da
Lei de Drogas despenalizou a conduta de porte para consumo,
mas manteve seu status de crime. Passou a ser previsto, como
pena para o porte de drogas para consumo pessoal, a advertên-
cia, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento
em programa ou curso educativo.
Preleciona Renato Brasileiro de Lima:
Sem dúvida alguma, uma das principais novidades introduzidas
pela Lei, nº 11.343/06 diz respeito à mudança da política criminal
em relação ao usuário de drogas. Se, à época da vigência do art. 16
da Lei nº 6.368/76, o usuário de drogas estava sujeito a uma pena
de detenção, de 6 meses a 2 anos, e pagamento de 20 a 50 dias
-multa, com o advento da Lei nº 11.343/06, o preceito secundário
do art. 28 passo a cominas as seguintes penas: advertência sobre
os efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade e medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Em substituição à linha repressiva adotada anteriormente, a nova
Lei de Drogas afasta a possibilidade de aplicação de pena privativa
de liberdade ao crime de porte de drogas para consumo pessoal.
Trabalha-se, em síntese, com a premissa de que o melhor caminho
é o da educação, e não o da prisão, que, nesse caso, traz poucos
senão nenhum benefício à saúde do indivíduo. De mais a mais, é
fato que a prisão de usuários não traz nenhum benefício à socie-
dade. A uma porque impede que a eles seja dispensada a atenção
necessária, inclusive com tratamento eficaz para eventual depen-
dência química. A duas porque a imposição de pena de prisão ao
usuário faz com que este passe a conviver com agentes de crimes
muito mais graves, o que pode funcionar como fator de profissio-
nalização de criminosos. (BRASILEIRO, 2014, p. 686).
Se a Lei nº 11.343/06, lei específica de drogas, não previu
pena de restrição de liberdade aos dependentes químicos que
consomem/portam para consumo, cabe interpretar a Lei da Refor-
ma Psiquiátrica extensivamente para abrangê-los?
Nesses termos, convém transcrever as lições de Mirabete
obre o princípio nullum crimen, nulla sine praevia lege:
[...] [o princípio da legalidade] assegura que não pode ser considerado
crime o fato que não estiver previsto na lei e que não pode ser aplicada
sanção penal que não aquela cominada abstratamente nessa regra ju-
rídica. Ainda que o fato seja imoral, antissocial ou danoso, não há pos-
sibilidade de se imputar ao autor a prática de um crime ou aplicar-lhe
uma sanção penal pela conduta praticada. (MIRABETE, 2008, p. 103).
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Inegavelmente tal prática afronta o princípio da legalidade,
pois a internação compulsória de toxicômanos representaria uma
“nova pena”, atípica e mais severa do que as previstas na própria
Lei de Drogas, já que restringe a liberdade de usuários que fre-
quentam as “crackolândias”.
4.3 o dIreIto deAmbuLAtorIAL
A liberdade é prevista constitucionalmente e não pode ser
restringida, salvo pelas causas e nas condições previamente fixa-
das em lei, além de ser imprescindível a prévia instauração de um
devido processo legal (art. 5º, LIV, cF/88), garantindo à pessoa o
contraditório e a ampla defesa.
O artigo 5º, inciso LIV, da constituição Federal de 1988, as-
severa que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal.
Também há previsão do direito à liberdade no artigo 7º da
convenção Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil
é signatário. “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física,
salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas
constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo
com elas promulgadas.”
A aplicação do procedimento estipulado na Lei 10.216/01,
sob o fundamento de promover uma política de saúde pública,
progride como afronta ao dispositivo constitucional citado, já que
a lei só menciona, como destinatários da internação contra a von-
tade, os doentes mentais.
Igualmente, como há restrição de liberdade do cidadão,
conclui-se ser passível de impetração de habeas corpus como
instrumento assecuratório da tutela da liberdade ora restringida
(Hc repressivo) ou em iminência de acontecer (Hc preventivo).
Prevê o texto constitucional, no seu artigo 5º, inciso LxVIII,
que “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer
ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liber-
dade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Pelas razões que apontam para a inconstitucionalidade do
procedimento de internação compulsória utilizando-se da nº Lei
10.216/01 por analogia in malam partem, inegavelmente o man-
damus poderá ser impetrado.
O Superior Tribunal de Justiça já julgou habeas corpus sobre
internações compulsórias de portadores de transtornos mentais,
questionando o procedimento de internação da Lei 10.216/01.
Na maioria dos resultados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
ou não conhecia o writ, por verificar supressão de instância, ou
denegava a ordem, relativizando a imprescindibilidade de prévios
recursos extra-hospitalares:
HABEAS CORPUS - AÇÃO CIVIL DE INTERDIÇÃO CUMULADA COM
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA
SEGUNDA SEÇÃO – VERIFICAÇÃO - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
- POSSIBILIDADE - NECESSIDADE DE PARECER MÉDICO E FUNDA-
MENTAÇÃO NA LEI 10.216/2001 - EXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE -
EXIGÊNCIA DE SUBMETER O PACIENTE A RECURSOS EXTRA-HOS-
PITALARES ANTES DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO - DISPENSA EM
HIPÓTESES EXCEPCIONAIS – EXAME DE PERICULOSIDADE E INE-
XISTÊNCIA DE CRIME IMPLICAM DILAÇÃO PROBATÓRIA - VEDAÇÃO
PELA VIA DO PRESENTE REMÉDIO HEROICO - HABEAS CORPUS
SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO PARA DENE-
GAR A ORDEM.
I - A questão jurídica relativa à possibilidade de internação compulsó-
ria, no âmbito da Ação Civil de Interdição, submete-se a julgamento
perante os órgãos fracionários da Segunda Seção desta a Corte;
II - A internação compulsória, qualquer que seja o estabelecimento
escolhido ou indicado, deve ser, sempre que possível, evitada e
somente empregada como último recurso, na defesa do internado
e, secundariamente, da própria sociedade.
III - São modalidades de internação psiquiátrica: a voluntária, que
é aquela que se dá a pedido ou com o consentimento do paciente
(mediante declaração assinada no momento da internação); a in-
voluntária, que é a que se dá sem o consentimento do usuário e a
pedido de terceiro; e, por fim, a internação compulsória, determi-
nada por ordem judicial.
IV - Não há constrangimento ilegal na imposição de internação
compulsória, no âmbito da Ação de Interdição, desde que baseada
em parecer médico e fundamentada na Lei 10.216/2001. Obser-
vância, na espécie.
V - O art. 4º da Lei nº 10.216/2001, fruto de uma concepção hu-
manística, traduz modificação na forma de tratamento daqueles
que são acometidos de transtornos mentais, evitando-se que se
entregue, de plano, aquele, já doente, ao sistema de saúde mental.
VI - Todavia, a ressalva da parte final do art. 4º da Lei nº 10.216/2001,
dispensa a aplicação dos recursos extra-hospitalares se houver de-
monstração efetiva da insuficiência de tais medidas. Hipótese dos
autos, ocorrência de agressividade excessiva do paciente.
VII - A via estreita do habeas corpus não comporta dilação proba-
tória, exame aprofundado de matéria fática ou nova valoração dos
elementos de prova.
VIII - Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário conhecido
para denegar a ordem.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 130155
/ SP. Impetrante: Maria Fernanda Dos Santos Elias Maglio - Defen-
sora Pública E Outro. Impetrado: Tribunal De Justiça Do Estado De
São Paulo. Relator: Ministro Massami Uyeda. Brasília: 14 de maio
de 2010).
Sobre o cabimento do writ, Eugênio Pacelli (2012, p. 935)
é categórico ao afirmar que “dirige-se contra ato atentatório de
liberdade. Para que se configure um ato atentatório ao direito de
locomoção não é necessário que haja já uma ordem de prisão
determinada [...]”.
5 Aspectos reLAcIonAdos À crImInALIZAção dAs condutAs
5.1 vedação da Analogia In malam partem
No Direito Penal vigora a inadmissibilidade de interpretações
ampliativas, já que o princípio da reserva legal exige que os textos
legais sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por
analogia, salvo quando in bonam parte, ou seja, quando trazem
benefícios ao réu. Ainda, vige o aforismo poenalia sunt restringen-
da, ou seja, interpretam-se estritamente as disposições comina-
doras de pena.
É vedada, também, em decorrência do princípio da reserva legal,
a aplicação da analogia in malam partem no direito penal incri-
minador, bem como a interpretação integrativa ou ampliativa. Ao
contrário, devem ser interpretadas estritamente as disposições
incriminadoras e cominadoras de pena. Exige o princípio da legali-
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dade que a lei defina abstratamente um fato, ou seja, uma conduta
determinada, de modo que se possa reconhecer qual o comporta-
mento considerado ilícito [...]
É vedado o uso dos costumes e analogia para punir alguém por um
fato não previsto em lei, embora seja ele semelhante a outro por
ela definido. Diga-se, também, que a lei penal somente é revogada
por outra lei, não sendo idôneos para tal medida os costumes, as
medidas provisórias, ou decretos etc. (MIRABETE, 2008, p. 104).
A restrição da liberdade de um cidadão é assunto sério e
não se justifica para a promoção de políticas de saúde pública,
por mais que o vício em drogas ilícitas estejam fazendo-os viver
de forma imoral, antissocial e danosa a sua saúde. é princípio bá-
sico do direito penal a vedação da analogia para prejudicar o réu
e utilizando a Lei da Reforma Psiquiátrica desta forma estar-se-ia
criando um novo tipo penal, não previsto na Lei de Drogas, cuja
sanção seria a restrição da liberdade do sujeito.
A própria Lei nº 10.216/01 é clara em afirmar que a inter-
nação dos transtornados mentais é medida excepcional, que
deve cessar quando o internado deixar de representar perigo a
si e a terceiros. No caso de comparar da dependência química a
transtornos mentais, em que momento o internado seria liberado?
No momento em que seu anseio por tóxicos ilícitos acabassem?
Quem determinaria o momento daquele ser solto?
A interpretação analógica é processo integrativo, que con-
siste em fazer aplicável a norma a um caso semelhante, mas não
compreendido na letra nem no pensamento da lei (NAVARRETE,
1996, p. 416). Pela literalidade da Lei nº 10.216/01 percebe-se que
o legislador não intentava destiná-la, também, aos usuários de
drogas. caso o fosse, seria expresso e as respostas às indaga-
ções acima estariam abarcadas.
Em suma, a analogia afronta o princípio da reserva legal (BI-
TENcOURT, 2011, p. 176). Partindo da máxima de que a obediên-
cia às normas deve ser ampla, não há justificativa para o Estado so-
pesar as disposições constitucionais quando o achar conveniente.
Por mais deplorável que seja o estado de alguns toxicôma-
nos que vagam pelas ruas e por mais que representem perigo,
não cabe ao poder público dizer que a internação compulsória,
procedimento sério de restrição de liberdade, cabe à pessoas
não abarcadas na lei. Todos tem o direito a um procedimento
prévio, seja de interdição ou outro específico, contando que
previsto em lei e dotado das garantias constitucionais do con-
traditório, ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, constituição Fede-
ral de 1988), ampla instrução, etc.
6 A efIcácIA dA InternAção compuLsÓrIA de toXIcômAnos
Alguns doutrinadores são veementes em duvidar da efi-
cácia da internação compulsória de dependentes químicos.
“O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer inter-
venção positiva sobre o viciado” (NILO apud LIMA, 2014); “O
modelo coercitivo não dá certo. O dependente necessariamen-
te tem que estar disposto a se tratar” (SILVEIRA FILHO apud
LIMA, 2014); “A tudo, cabe acrescentar a mais que equivocada
visão unidimensional, segundo a qual todo usuário de drogas é
um doente, escravo da droga ou desviado. [...] para o usuário
eventual, que se utiliza do entorpecente de forma módica, nada
há de ‘curar’” (TORON apud LIMA, 2014).
A mesma linha de pensamento, como supracitado, foi ado-
tada pelo conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que é
contra a prática, sob o argumento de que:
[...] Sem um tratamento que inclua o apoio da família e a atenção
psicossocial, o isolamento promovido pela internação compulsória é
violento com a pessoa que já está debilitada pelo uso abusivo. Além
disso, é uma medida que não tem efeito: dados de pesquisas com-
provam que 98% dos (as) que são internados contra a sua vontade
voltam ao uso e, consequentemente, são reinternados (as); [...]
A pesquisa mencionada pelo conselho de Psicologia foi re-
alizada pelo professor e psiquiatra Dartiu xavier da Silveira, coor-
denador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes
da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Dartiu Silvei-
ra, convocado para parlar em audiência pública da comissão de
constituição de Justiça do Senado sobre o tema de drogas, apon-
tou uma série de evidências médicas contrárias ao Projeto de Lei
(37/2013), que intenta promover alterações na Lei de Drogas.
contra as estatísticas, o Dr. Dráuzio Varella posiciona-se a
favor da prática embasado em sua experiência empírica no trata-
mento de jovens dependentes em penitenciárias brasileiras:
Tenho alguma experiência com internações compulsórias de usu-
ários de crack. Infelizmente, não são internações preventivas em
clínicas especializadas, mas em presídios, onde trancamos os que
roubam para conseguir acesso à droga que os escravizou.
Na Penitenciária Feminina, atendo meninas presas na cracolândia.
Por interferência da facção que impõe suas leis na maior parte das
cadeias paulistas, é proibido fumar crack. Emagrecidas e exaustas,
ao chegar, elas passam dois ou três dias dormindo, as companhei-
ras precisam acordá-las para as refeições. Depois desse período,
ficam agitadas por alguns dias, e voltam à normalidade.
Desde que o usuário não entre em contato com a droga, com al-
guém sob o efeito dela ou com os ambientes em que a consumia,
é muito mais fácil ficar livre do crack do que do cigarro. A crise de
abstinência insuportável que a cocaína provocaria é um mito.
Perdi a conta de quantas vezes as vi dar graças a Deus por ter
vindo para a cadeia, porque se continuassem na vida que levavam
estariam mortas. Jamais ouvi delas os argumentos usados pelos
defensores do direito de fumar pedra até morrer, em nome do livre
arbítrio.
Todas as experiências mundiais com a liberação de espaços pú-
blicos para o uso de drogas foram abandonadas, porque houve
aumento da mortalidade.
A verdade é que ninguém conhece o melhor método para tratar a
dependência de crack. Muito menos eu, apesar da convivência com
dependentes dessa praga há mais de 20 anos.
A internação compulsória acabará com o problema? É evidente que
não. Especialmente, se vier sem a criação de serviços ambulato-
riais que ofereçam suporte psicológico e social para reintegrar o
ex-usuário.
Se esperarmos avaliar a eficácia das internações pelo número dos
que ficaram livres da droga para sempre, ficaremos frustrados: é
preciso entender que as recaídas fazem parte intrínseca da enfer-
midade.
Segundo as estatísticas colhidas da pesquisa realizada
pela UNIFESP, onde 170 usuários de crack foram entrevistados,
62,3% gostariam de parar de usar a droga. cerca de 47% re-
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velaram que se submeteriam a um tratamento de dependência
química, sendo que 18,8% destes gostariam de se submeter a
um tratamento que permitisse apenas diminuir o consumo. O
dado mais importante é que 34% manifestaram que aceitariam
que o tratamento da dependência da droga envolvesse, ocasio-
nalmente, uma internação involuntária.
7 consIderAções fInAIs
A utilização da Lei nº 10.216/01, de forma analógica, para
promover a internação compulsória de dependentes químicos,
afronta o princípio da legalidade (art. 5º, xxxIx, Fc/88) e a liber-
dade do indivíduo.
Trata-se, pois, de uma pena restritiva de liberdade não pre-
vista na Lei de Drogas, nº 11.343/06, afinal, o fato de utilizarem
substâncias entorpecentes de forma mais assídua e nas regiões
chamadas “crackolândias” não os enquadram na hipótese do arti-
go 28 da citada lei? Seria uma punição aos que consomem mais.
O que o Poder Público visa, utilizando a Lei da Reforma Psi-
quiátrica analogicamente, é ter uma forma de restringir a liberdade
daqueles toxicômanos, com uma falsa “roupagem de licitude”.
A regra para se internar uma pessoa com transtorno mental
é a prévia instauração de um procedimento de interdição, onde
restará demonstrado a perda de sua capacidade civil. Mas a Lei
nº 10.216/01 prevê, excepcionalmente, a modalidade de interna-
ção compulsória quando houver risco concreto à vida do doente
mental ou de terceiros.
como visto, os Tribunais de Justiça, especialmente o TJSP,
tem promovido a internação compulsória dos toxicômanos sob
o argumento de que pessoas em nível extremo de dependência
química, por corolário de seu vício, tem alguma doença mental,
como depressão. Abre-se, portanto, o precedente de internação
de qualquer pessoa acometida com depressão (que, no século
xxI são várias).
A simples dedução de que “por serem drogados são doen-
tes mentais” é inaceitável e não é argumento hábil para restringir
a liberdade de alguém no atual Estado Democrático de Direito.
Inegavelmente as autoridades públicas e os governantes
precisam unir esforços para combater o problema do consumo de
drogas, que tem crescido exponencialmente no Brasil, especial-
mente nas grandes metrópoles. Inobstante tal necessidade, o ato
deve ter respaldo legal. Não são admissíveis arbitrariedades do
“Estado-soberano”. Afinal, hoje o Estado relativiza direitos funda-
mentais da sociedade marginalizada, amanhã poderá fazê-lo com
os direitos de qualquer um.
De fato, há uma multiplicidade de causas que dão ensejo à
alteração dos modelos estatais vigentes. No entanto, a principal
razão que leva o Estado de Direito a se transformar no Estado
constitucional é a necessidade de uma atuação substancial do
Estado na sociedade, com vistas a assegurar um mínimo de direi-
tos para que cada indivíduo possa se tornar sujeito e, a partir da
garantia de sua dignidade, exercer a sua cidadania.
Todavia, a própria carta constitucional brasileira estabelece
uma série de limites jurídicos, que funcionam como balizas para a
atuação da Administração Pública, no sentido de evitar a omissão
do administrador público para o atendimento dos escopos deline-
ados pela constituição. Pois bem, sem embargo disso, a partir da
principiologia constitucional, é possível o estabelecimento de ou-
tros mecanismos, tais como a vedação do retrocesso, que pode ser
aplicada às ações políticas destinadas à concretização de Direitos
Fundamentais, no sentido de que não pode o Estado reduzir os
seus investimentos para o alcance dos seus fins constitucionais,
assim como a proibição da insuficiência, a qual determina que, em-
bora os direitos sociais sejam objeto de uma eficácia progressiva
no tempo, o Estado não pode deixar de realizar políticas públicas
necessárias a assegurar a promoção mínima desses direitos, con-
soante os parâmetros estabelecidos constitucionalmente.
cabe aqui salientar que se as autoridades enxergam a abs-
tinência compulsória como umas das formas possíveis de política
de saúde pública (inobstante as pesquisas universitárias mos-
trarem que não é meio eficaz de “livrar” o indivíduo do vício), é
imprescindível a criação de um procedimento específico, por lei
que ExPRESSAMENTE preveja serem seus destinatários aqueles
usuários em nível avançado de dependência química.
A forma que, atualmente, vem sendo promovidas as interna-
ções compulsórias é inconstitucional e arbitrária. Não há legitimi-
dade na atuação do ente estatal em restringir o direito ambulato-
rial dos dependentes utilizando a Lei nº 10.216/01.
Por fim, para a eficácia da internação compulsória, o Poder
Público deve garantir que os toxicômanos sejam internados em
casas de reabilitação específicas, que ofereçam todo o suporte
psicológico e social para reintegrar o indivíduo, sem fazê-los se
sentirem em uma prisão.
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notAs de fIm1 Graduanda em Direito do centro Universitário Newton Paiva.
2 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade católica de Minas Ge-rais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade católica de Minas Ge-rais. Especialista em Processo civil Aplicado pelo cEAJUFE/IEJA. Bacharel em Administração pela Pontifícia Universidade católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor Assistente e Pesquisador em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade católica de Minas Gerais. Professor Auxiliar e Pes-quisador em Direito da Escola de Direito do centro Universitário Newton Paiva. Professor Assistente e Pesquisador em Direito do centro Universitá-rio UNA. Professor Adjunto e Pesquisador em Direito da Faculdade de Mi-nas (FAMINAS-BH). Membro associado do conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (cONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Gru-pos de Pesquisas: Direito, constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de cássia Fazzi”.
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contratação de obras e serviços de engenHaria via pregão: estudo sobre a possibilidade jurÍdica de licitar obras e serviços de engenHaria por meio da modalidade pregãogustavo Henrique campos dos santos1
josiane vidal vimieiro2
bernardo alves moraes de souza3
RESUMO: Na busca por maior agilidade e celeridade nas contratações públicas, o legislador institui, em 2000, uma sexta modalidade licitatória, o pregão. O
procedimento tornava-se responsável por resultados satisfatórios em relação aos valores contratados, acarretando economia para os cofres públicos. Atraídos
pelos benefícios do pregão, muitos gestores, por meio de interpretações que elastecem sua aplicabilidade, vem utilizando a modalidade para contratações de
obras e serviços de engenharia, responsáveis por boa parte dos gastos públicos anualmente. À luz das normas que disciplinam o instituto, o estudo faz uma
análise jurídica sobre a possibilidade de contratar obras e serviços de engenharia por meio do pregão. Como resultado, baseado na doutrina e jurisprudências
apresentadas, defende-se a possibilidade de contratação de serviços de engenharia via pregão, sendo excluídas de sua aplicabilidade as obras.
PALAVRAS-CHAVE: Pregão; licitação; obras; serviços de engenharia.
ABSTRACT: In the search for greater agility and speed in public contracts, the legislature establishing, in 2000, a sixth bidding modality, the trading session.
The procedure became responsible for satisfactory results in relation to contracted amounts, resulting in savings for the public purse. Attracted by the benefits
of trading, many managers through interpretations that increase its applicability, has been using the method for contracting works and engineering services,
responsible for much of public spending annually. In the light of the rules governing the institute, the study makes a legal analysis of the possibility of contracting
works and engineering services through trading. As a result, based on the doctrine and jurisprudence presented, we argue the possibility of hiring engineering
services via trading, being excluded from the applicability of his works.
KEYWORDS: Trading; bidding; works; engineering services.
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Pregão como Modalidade nas Compras do Setor Público; 3 – Bens e Serviços Comuns; 4 – Obras e Serviço de Engenharia; 5
Contratação de Obras e Serviços de Engenharia Via Pregão; 6 – Considerações Finais.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Administrativo.
1 Introdução
Qualquer atividade pública requer materiais e suprimentos
com os quais possa ser desempenhada. As compras do setor
público devem ser consideradas função diretiva, de tão vital im-
portância para o bom êxito do governo, quanto, por exemplo, à
prestação de políticas públicas ao cidadão ou arrecadação fiscal.
A importância do setor de compras governamentais pode
ser aferida pelo volume de recursos despendidos na contra-
tação de bens, serviços e obras. Em Minas Gerais, de acordo
com dados do armazém – SIAD (Sistema Integrado de Adminis-
tração de Materiais), os valores relativos às compras giraram
em torno de R$ 7,2 bilhões em 20134.
Para que tais gastos ocorressem de modo mais transparente e
responsável para o cidadão, a Lei de Licitações5 foi editada. Tal nor-
ma disciplina o procedimento licitatório, cuja observância é indispen-
sável às aquisições do setor público em âmbito nacional, surgindo
como meio para margear o âmbito de discricionariedade do servidor.
Alguns anos mais tarde, buscando fornecer maior agilida-
de e celeridade às contratações públicas, o legislador institui
uma sexta modalidade licitatória 6, o pregão7. O procedimento
do pregão tornava-se responsável por melhores desempenhos
em termos de resultados satisfatórios, otimização de preços e
economia para os cofres públicos.
Administradores públicos, na defesa de uma gestão públi-
ca mais eficiente e imbuídos pelo espírito da boa-fé, viram-se
atraídos a utilizar a prática do pregão, por meio de interpreta-
ções da Lei que elastecessem a aplicabilidade da modalidade,
para contratações de obras e serviços de engenharia, respon-
sáveis pela utilização de grande parte dos recursos públicos.
Assim, passados mais de 10 anos da instituição da modali-
dade, iremos dedicar o presente artigo a analisar o atual entendi-
mento relacionado à questão proposta: Obras e Serviços de Enge-nharia podem ser objeto de Pregão?
2 pregão como modALIdAde nAs comprAs do setor pÚbLIco
Pela Medida Provisória N°. 2.026/00 foi criado o pregão,
como nova modalidade de licitação, apenas no âmbito da União.
Os demais entes foram contemplados somente com a edição
da Lei N°. 10.5208, de 17 de junho de 2002, que dispõe que esta
modalidade seja empregada na aquisição de bens e serviços
comuns, qualquer que seja o valor estimado da contratação, em
que a disputa pelo fornecimento ocorra por meio de propostas e
lances em sessão pública. Por fim, o Decreto nº. 5.450, de 31 de
maio de 2005, regulamentou o pregão eletrônico para a União.
O Estado de Minas Gerais, como forma de ambientar a legis-
lação geral às peculiaridades locais, respeitados os princípios e re-
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gras do instituto, adotou a modalidade por meio da Lei nº 14.1679,
em 10 de janeiro de 2002. Atualmente, o diploma legal está regula-
mentado pelo Decreto nº 44.786, de 18 de abril de 2008.
A modalidade do pregão é marcada pela simplificação e
celeridade dos procedimentos, resultando em ganhos financei-
ros para a Administração Pública, contribuindo com o alcance
das metas de ajuste fiscal, que têm sido perseguidas pelos atu-
ais gestores, face ao quadro sócio-econômico atual do país.
Ao contrário das demais modalidades, o pregão é restritivo,
somente pode ser utilizado para aquisição de bens e serviços co-
muns, e não há escala de valores para sua adoção. Desta forma,
o critério de utilização é a qualitativo e não quantitativo.Quanto ao seu procedimento, podemos apontar três caracte-
rísticas peculiares. A primeira é a inversão das fases de habilitação e julgamento. Somente é examinada a documentação de habilitação
do licitante que tiver apresentado o melhor lance. com isso, elimina-
se o trabalho desnecessário dos pregoeiros e equipes de apoio na
análise de documentação de todos os participantes, o que gera enor-
me gasto de tempo. Outra característica é a presença de uma sessão
de lances, o que permite aos participantes que tiveram suas propos-
tas inicialmente aceitas reduzam os preços cotados, o que acarreta
economia em relação ao preço orçado para a contratação. Por fim,
a fase recursal é única, ao final da sessão do pregão, diferente das
demais modalidades, que preveem a manifestação da intenção de
recorrer após as fases de habilitação e julgamento da proposta.
A forma de disputa, conforme citado, se dá na redução cons-
tante dos preços pelos licitantes, por meio de envio de lances,
como forma de alcance da proposta mais vantajosa para Admi-
nistração. O pregão é frequentemente confundido com o leilão,
sendo considerado como “leilão às avessas” pelo fato de vencer
aquele que ofertar o menor valor à Administração.
Por fim, quanto ao universo de participantes, na forma pre-
sencial podem participar qualquer pessoa independente de ins-
crição em cadastro, uma vez que o credenciamento dos licitantes
ocorre na sessão pública, junto ao pregoeiro. Na forma eletrônica,
é necessário credenciamento prévio dos licitantes nos portais de
compras públicas, a fim de fornecimento de senha de acesso às
salas virtuais onde ocorrem os certames.
3 bens e servIços comuns
Diferente das modalidades estabelecidas pela Lei nº
8.666/93, cujo critério de aplicação é o valor estimado para a con-
tratação, o pregão é restrito às aquisições de bens e serviços co-muns independente do preço orçado para a contratação. convém
verificar o que a norma dispõe sobre o âmbito de aplicação da
modalidade.
A Lei nº. 10.520/02 traz no parágrafo único do art. 1º a se-
guinte definição:
Art. 1º Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada
a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.
Parágrafo único. Consideram-se bens e serviços comuns, para os
fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e
qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de
especificações usuais no mercado (BRASIL, 2002).
Do mesmo modo, a norma mineira estabeleceu igual defini-
ção nos arts. 1º e 2º da Lei Estadual nº 14.167/02.
O legislador tentou estabelecer sentido para a expressão “bens
e serviços comuns”, a fim de compatibilizá-la com o instituto do pre-
gão. A insuficiência da definição fez com que a doutrina do Direito
Administrativo buscasse uma melhor conceituação da expressão.
Ao comentar sobre a definição da Lei nº 10.520/02, Marçal
Justen Filho traz a seguinte lição:
Essa definição é pouco útil porque todos os bens e serviços licita-
dos podem e devem ser objetivamente definidos no edital e sem-
pre mediante especificações usuais no mercado. (...) Em suma, o
objeto comum é aquele disponível no mercado a qualquer tempo,
cuja configuração e características são padronizadas pela própria
atividade empresarial. (...) Em síntese, o pregão foi concebido
como um procedimento licitatório em que exista essencialmente
competição sobre preços e em que não existam (por serem des-
necessárias) disputas sobre capacitação do sujeito para executar o
objeto nem sobre a qualidade do produto ofertado (JUSTEN FILHO,
2009, p. 391).
Neste mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles comenta a cita-
da definição da seguinte forma:
O conceito legal é insuficiente, visto que, a rigor, todos os bens
licitados devem ser objetivamente definidos, em descrição sucin-
ta e clara (Lei 8.666/93, art. 40, I). O que caracteriza os bens e
serviços comuns é a sua padronização, ou seja, a possibilidade
de substituição de uns por outros com o mesmo padrão de qua-
lidade e eficiência. (...) O essencial é que o objeto licitado possa
ser definido por meio de especificações usuais no mercado, o que
não impede a exigência de requisitos mínimos de qualidade, como
acontece, por exemplo, com o denominado material de escritório
(MEIRELLES, 2007, p. 325).
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, numa perspectiva mais
abrangente da norma, afirma que o conceito de bens e serviços
comuns deve ser:
a) genérico, abrangendo qualquer tipo de objeto seja manufaturado,
industrializado, com funcionamento mecânico, elétrico, eletrônico,
nacional, importado, de elevado preço, pronto ou sob encomenda.
Também abrange qualquer tipo de serviço profissional, técnico ou
especializado;
b) dinâmico, pois depende de o mercado ser capaz de identificar
especificações usuais;
c) relativo, pois depende do conhecimento do mercado e do grau
de capacidade técnica dos seus agentes para identificar o objeto
(FERNANDES, 2006, p. 461).
Marcelo Palavéri, além de definir a expressão “comum”, de-
monstra não se tratar de sinônimo de “simples”:
“Comum”, a nosso ver, está na lei para caracterizar bens e serviços
conhecidos de forma inquestionável e obtidos com facilidade pelo
mercado, que sigam padrões usuais de especificação ou execução.
São bens e serviços, também, que já estão enraizados no hábito da ad-
ministração, fazendo parte do dia-a-dia dos órgãos públicos, podendo
se dizer que assim se caracteriza a maioria dos objetos classificados
como material de consumo. (...) Anote-se, ainda, que “comum” não
é sinônimo necessário de “simples”, como pode à primeira vista pa-
recer. “Simples” é antagônico de “complexo”, e não se pode dizer
que um bem ou serviço complexo não possa ser comum. Isso será
possível quando a referida complexidade for facilmente encontrável no
mercado, for usual e difundida de tal forma que tecnicamente seja de
domínio amplo (PALAVÉRI, 2007, p. 55-56).
com efeito, a definição do que seja comum deve ser inter-
pretado caso a caso, a bem do interesse público, por que se tra-
ta de termo indeterminado. Um bem ou serviço será classificado
como comum após ser verificado o caso concreto.
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é importante destacar que tal classificação não é uma situ-
ação que envolve competência discricionária do agente público.
Desta forma, não está a Administração autorizada aplicar ou não
a modalidade pregão na ocorrência de bem e serviço comum. O
art. 2º do Decreto nº. 44.786/08 é taxativo e não deixa espaço para
a discricionariedade:
Art. 2º Ressalvadas as hipóteses previstas em lei, a aquisição de
bens e de serviços comuns será precedida, obrigatoriamente, de
licitação pública na modalidade de pregão, preferencialmente ele-
trônico, nos termos do art. 4º da Lei nº 14.167, de 10 de janeiro de
2002 (MINAS GERAIS, 2008).
O anexo do Decreto nº. 44.786/08 exemplifica alguns bens e
serviços comuns. A Lei nº. 10.520/02 não exige que a discrimina-
ção de bens e serviços comuns conste em regulamento, deixando
a decisão sobre a classificação ao julgamento do Administrador.
Apesar disso, o Anexo II do Decreto Federal nº. 3.555/00 também
trazia exemplos até ser revogado pelo Decreto nº. 7.174/2010.
Tais listas devem ser vistas como referência para os adminis-
tradores, sendo, portanto, meramente exemplificativas. Ou seja,
não estão impedidos de serem adquiridos, via pregão, outros ti-
pos de bens e serviços comuns não lembrados pelo legislador na
confecção dos referidos anexos.
4 obrAs e servIços de engenHArIA
Boa parte dos orçamentos públicos são utilizados com con-
tratações de obras e serviços de engenharia. Tal fato foi funda-
mental para o surgimento da Lei de Licitações, acrescido de um
contexto marcado por desvio de recursos dos cofres públicos.
Vide as acusações ao Governo collor e o escândalo dos anões
do orçamento. Desta maneira, tamanha foi preocupação do legis-
lador em editar a Lei nº. 8.666/93.
A definição legal de “obras e serviços” é encontrada no art.
6º, incisos I e II, da Lei de Licitações, senão vejamos:
Art. 6º. Para os fins desta Lei, considera-se:
I - Obra - toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou
ampliação, realizada por execução direta ou indireta;
II - Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade
de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto,
instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adapta-
ção, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro
ou trabalhos técnico-profissionais (BRASIL, 1993).
Apesar da Lei de Licitações ser exaustiva na proteção
das contratações em relação aos abusos de licitantes e agen-
tes públicos tendenciosos, a norma deixou superficial e ge-
nérico a definição legal de serviços, justamente contratação
que consome grande parte os recursos públicos. Resta-nos
buscar na doutrina melhor definição para o que seriam os ser-
viços de engenharia.
Jorge Ulisses Jacoby Fernades (2006, p. 477-478), define
serviços de engenharia como aqueles que:
a) nos termos da lei que regulamentou a profissão, estiverem elencados
entre os que, para sua execução, dependam de profissional registrado
no CREA;
b) a atividade de engenheiro for predominante em complexidade e custo.
Desse modo pode ocorrer que, em determinada atividade, para um ser-
viço se exija profissional de engenharia, mas sua participação no con-
texto global da atividade venha a ser mínima. Logo, o serviço não deve
ser classificado como de engenharia (FERNADES, 2006, p. 477-478).
Fernanda Alves Andrade (2007, p. 65) define os serviços de
engenharia como “aqueles que, para sua execução necessitam
de acompanhamento e direcionamento dados por profissional es-
pecializado no assunto, ou seja, engenheiro”.
O conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agro-
nomia (cONFEA) editou a Resolução nº. 218, de 29 de junho
de 1973, regulamentando as atribuições exclusivas de pro-
fissional de engenharia. conforme art. 1º, podemos destacar
exemplos de atividades que dão ideia de atividades atribuídas
a engenheiros:
Art. 1º - Para efeito de fiscalização do exercício profissional correspon-
dente às diferentes modalidades da Engenharia, Arquitetura e Agrono-
mia em nível superior e em nível médio, ficam designadas as seguintes
atividades:
(...)
Atividade 05 - Direção de obra e serviço técnico;
(...)
Atividade 11 - Execução de obra e serviço técnico;
Atividade 12 - Fiscalização de obra e serviço técnico;
(...)
Atividade 15 - Condução de equipe de instalação, montagem, opera-
ção, reparo ou manutenção (BRASIL, 1973).
Samuel Mota de Souza Reis também exemplifica o que se-
riam serviços de engenharia:
(...) em sentido estrito, serviços de engenharia são as atividades
de planejamento ou projeto, em geral, de regiões, zonas, cidades,
obras, estruturas, transportes, explorações de recursos naturais e
desenvolvimento da produção industrial e agropecuária; estudos,
projetos, análises, avaliações, vistorias, perícias, pareceres e divul-
gação técnica; ensino, pesquisa, experimentação, e ensaios; fisca-
lização de obras e serviços técnicos; direção de obras e serviços
técnicos; execução de obras e serviços técnicos; produção técnica
especializada, industrial ou agropecuária, conforme disciplina o art.
7° da Lei n° 5.194/66 (REIS, 2004, p. 9).
Tendo como base as definições, bem como exemplos apre-
sentados, e sabendo que a aplicabilidade do pregão refere-se a
bens e serviços comuns, a grande dificuldade do aplicador da
norma reflete possibilidade jurídica de utilizar a modalidade para
contratação de obras e serviços de engenharia. Ou seja, estarí-
amos aproveitando os benefícios comprovados na utilização do
pregão, sejam econômicos ou procedimentais, em contratações
que representam grande parte dos orçamentos públicos.
5 contrAtAção de obrAs e servIços de engenHArIA vIA pregão
A Lei nº. 10.520/00 não exclui da sua abrangência qual-
quer espécie de contratação, dispondo apenas que a aplica-
bilidade do pregão refere-se somente a bens e serviços co-
muns. Os anexos dos Decretos nº. 3.555/00 e nº. 44.786/08
são exemplificativos aos agentes públicos e não podem ser
considerados numerus clausus. Dessa forma, como todo termo
indeterminado, a classificação de bem ou serviço comum deve
ser feita caso a caso.
Por outro lado, a norma regulamentadora é que exclui a utili-
zação do pregão para obras e serviços de engenharia. O Decreto
nº. 3.555/00, em seu art. 5º do Anexo I, traz a seguinte disposição:
Art. 5º A licitação na modalidade de pregão não se aplica às con-
tratações de obras e serviços de engenharia, bem como às loca-
ções imobiliárias e alienações em geral, que serão regidas pela
legislação geral da Administração (BRASIL, 2000).
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No âmbito do Estado de Minas Gerais, o Decreto nº.
44.786/08, no art. 3º, regulamenta o tema permitindo a contra-
tação de serviços de engenharia, via pregão, desde que enqua-
drados na classificação de serviços comuns. No entanto, veda a
contratação de obras pela modalidade, senão vejamos:
Art. 3º Pregão é a modalidade de licitação em que a disputa pelo
fornecimento de bens ou pela prestação de serviços comuns é feita
por meio de proposta escrita, permitindo-se aos licitantes a alte-
ração dos preços por meio de lances verbais ou eletrônicos, em
sessão pública.
§ 1º Consideram-se bens e serviços comuns aqueles cujos padrões
de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos no
objeto do edital, por meio de especificações usuais praticadas no
mercado, tais como os exemplificados no Anexo.
§ 2º Atendido o disposto no § 1º, o pregão poderá ser utilizado:
I - nas contratações de serviço de engenharia comum, mesmo que
se exija profissional registrado no Conselho Regional de Engenha-
ria, Arquitetura e Agronomia - CREA para execução;
(...)
§ 3º A licitação na modalidade de pregão não se aplica às contra-
tações de obras regidas pela legislação específica, e igualmente às
locações imobiliárias e alienações em geral (MINAS GERAIS, 2008).
Diante das considerações traçadas, questionam-se os se-
guintes temas: primeiramente, as contratações de obras e servi-
ços de engenharia podem ser realizadas por meio do pregão?
Sabendo que a compete privativamente à União legislar sobre
normas gerais de licitação e não havendo restrição na Lei nº.
10.520/02, podem as normas regulamentares impedir a contrata-
ção de obras e serviços de engenharia pela modalidade pregão?
Qual é o entendimento jurisprudencial sobre o tema?
conforme ensina os ditames fundamentais do Direito, em
decorrência do princípio da legalidade, somente à lei compete
inovar o ordenamento jurídico, criando direitos e obrigações às
pessoas. Alexandre de Moraes, neste sentido, esclarece:
(...) a Constituição Federal, apesar de exigir edição de lei formal,
permite que esta fixe tão-somente parâmetros de atuação para o
órgão administrativo, que poderá complementá-la por ato infrale-
gal, sempre, porém, respeitados os limites ou requisitos estabele-
cidos pela legislação (MORAES, 2005, p. 37).
Neste aspecto, qualquer decreto não teria força para criar proi-
bição contraria ao disposto em lei, mas sim possuem a função de
regulamentar a execução e concretização do ordenamento legal.
Há de que se concordar com Jorge Ulisses Jacoby Fernan-
des que não defende a utilização da modalidade pregão para a
contratação de obras, uma vez que o pregão é utilizado apenas
para aquisições de bens ou serviços comuns (e não obras co-
muns). O professor faz a seguinte conclusão quanto ao tema:
Com efeito, a Lei nº. 10.520/2002, que substitui a MP, não veda a
contratação de serviços de engenharia pela modalidade pregão, mas
sim estabelece um critério distinto: o de que sejam serviços comuns.
O que permite concluir que se admite a contratação de serviços de
engenharia por pregão, desde que sejam serviços comuns.
Desse modo, a solução da questão principal – licitar obras
e serviços de engenharia por pregão – é antecedida por outra: o
serviço é comum (FERNANDES, 2008, p. 30).
Fernanda Alves Andrade, na mesma linha de raciocínio,
esclarece sobre a possibilidade de licitar serviços de engenha-
ria via pregão:
É comum – como visto – é trivial, vulgar. Como se vê, o concei-
to está ligado à margem de conhecimento (kwon how) acerca do
produto ou do serviço. Se a técnica é de domínio trivial, pode-se
considera-la como comum. Ora, engenheiro há bastante e serviços
os há que têm vasta camada de ofertantes no mercado, ainda que
demandem acompanhamento de profissionais especializados. Des-
ta forma, não há como deixar de conceber a existência de ‘serviços
comuns de engenharia’.
(...)
O Decreto nº. 3.555/00, em princípio, regulamenta a Medida Pro-
visória nº. 2.026/00 e suas sucessivas reedições. Posteriormente,
com a publicação da Lei nº. 10.520/02, este decreto foi por ela re-
cepcionado. Mas o decreto somente pode ser recepcionado naqui-
lo em que for compatível com as disposições da lei ordinária. Tudo
aquilo que for contrário ou que exceder as disposições da Lei nº.
10.520/02 no texto do regulamento deve ser tido por não escrito.
(...)
Assim, os serviços de engenharia que se enquadrem na classifica-
ção de comuns podem ser licitados por aquela forma (ANDRADE,
2007, p. 65-66).
Luiz Felipe Bezerra Almeida Simões e Adriano de Souza
Maltarollo, ao defenderem o uso da modalidade pregão para con-
tratação de obras comuns (que nada mais são do que um tipo
de serviço de engenharia), afirmam que o agente público deve-
se pautar pelo senso técnico-juridico arrazoado de quem tem o
dever de olhar para a Lei como quem olha para um instrumento
de atendimento ao interesse público, decidindo pela interpretação
mais cabível. Ensinam-nos, ainda, sobre a contratação de obras e
serviços de engenharia via pregão:
O sentido expresso que consta na Lei do Pregão aponta para per-
missão de uso da modalidade – de onde Decreto do Executivo até
extrapola para sua obrigatoriedade – para bens e serviços comuns.
Mais uma vez, não há qualquer vedação à utilização do pregão para
a contratação de obras. A despeito de se manter uma interpreta-
ção subsidiária e paralela entre a Lei do Pregão e a Lei de Licita-
ções, poder-se-ia falar na contratação de obras tidas como Obras
Comuns, termo até então não utilizado na literatura. Estariam aí
compreendidos todos empreendimentos da construção civil cujos
padrões de desempenho e qualidade pudessem ser objetivamen-
te definidos por meio de especificações usuais no mercado. (...)
apenas quando envolverem inauguração de edificações em terreno
vazio ou terra nua e, portanto, caracterizarem-se como construção,
obras não poderão ser enquadradas como serviço de engenharia.
(...) serviço de engenharia é serviço comum quando o Adminis-
trador, diante do caso concreto, justificar que seja possível tal en-
quadramento, à luz da previsão legal do art. 1º da Lei do Pregão
(SIMÕES & MALTAROLLO, 2007, p. 13-22).
Silvio Freire de Moraes, Secretário-Geral do Tribunal de con-
tas do Município do Rio de Janeiro, na mesma linha de pensa-
mento, comenta:
iv) Compreendidos no gênero serviços de engenharia tanto os ser-
viços comuns, quanto os não-comuns, poderíamos extrair do texto,
com amparo na técnica de interpretação conforme a constituição,
a única significação normativa harmônica com a Carta Magna, vale
dizer, um sentido exegético que permita a realização da modalidade
pregão para os serviços de engenharia comuns.
v) Os serviços de engenharia comuns terão como único balizamen-
to o enquadramento na hipótese prevista no parágrafo único do art.
1º da Lei do pregão, ou seja, a possibilidade da definição objetiva
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no edital dos padrões de desempenho e qualidade dos serviços –
de engenharia comum – a ser contratado, por meio de especifica-
ções usuais no mercado.
vi) Serviço comum não é sinônimo de serviço simples e tampouco
tem significado oposto a serviço complexo. Em outros termos, os
serviços de engenharia poderão ser complexos e comuns, ou sim-
ples e comuns, mas não poderão evidentemente ser complexos e
simples ao mesmo tempo. Sendo comum poderá ser licitado por
pregão (MOARES, 2008, p. 15-16).
O tema foi enfrentado pelo Tribunal de contas da União
(TcU) em algumas ocasiões, que foram fundamentais para cons-
trução de jurisprudência sobre o assunto.
Em Decisão nº. 195/2002 – Plenário, o Ministro Relator Ben-
jamin Zymler orientou que a autoridade se abstivesse de licitar
serviços de engenharia por meio do pregão. A questão tratava
da possibilidade de os serviços de impermeabilização e recupe-
ração do bloco “c” da esplanada dos Ministérios serem ou não
de engenharia e, por conseqüência, poderem ou não serem lici-
tados naquela modalidade. O analista Gérson cardoso de Lima
manifestou o entendimento de que a impermeabilização constituía
serviço de conservação, mais simples que o de manutenção, por
tanto, licitável por pregão. O relator, divergindo parcialmente da
instrução, aduziu que:
9. Ora, notório é o fato de que serviços de engenharia, ainda que
aparentemente simples, demandam supervisão e conhecimento
técnico, razão pela qual o art. 5° do Ato 12/86 do CREA/DF exige
ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) para os serviços e
obras listados no art. 2° desse mesmo Ato. Dentre eles, inclui-se a
impermeabilização.
10. Não bastassem essas considerações, deve-se esclarecer que
impermeabilização não pode ser considerada um serviço simples,
pois requer conhecimentos técnicos específicos. Diversos são os
métodos empregados e a escolha da melhor solução depende de
avaliação profissional competente. Serviços mal executados po-
dem eventualmente comprometer a estrutura da edificação que se
pretende proteger (BRASIL, 2002).
Posteriormente, em Decisão nº. 557/2002 – Plenário, o Tri-
bunal de contas da União examinou representação de empresa
de engenharia contra edital de pregão que tinha por objeto a con-
tratação de empresa especializada em serviços de manutenção
de sistemas de ar condicionado central individual, tratamento quí-
mico das torres de refrigeração e exaustão/ventilação mecânica,
com fornecimento de mão-de-obra, materiais, peças, ferramentas
e componentes.
O Ministro Relator Benjamin Zymler expôs que, no instrumen-
to de convocação da licitação, foi exigido que o vencedor tivesse
profissional registrado no cREA, tanto em engenharia mecânica,
com experiência de cinco anos, como de engenharia química; que
a Resolução nº. 218/73, do cONFEA, estabelece que esse tipo
de serviço deve ser realizado por profissional inscrito no cREA e
que compete ao conselho fiscalizar e disciplinar os serviços licita-
dos; que havia duas interpretações possíveis: ou os serviços de
manutenção, mesmo exigindo profissional de engenharia, podem
ser licitados via pregão, tendo em vista o item 19 da relação ane-
xa ao Decreto nº. 3.555/00; ou os serviços de manutenção, que
se enquadrem como de engenharia, não podem ser licitados por
pregão, tendo em vista o art. 5º do referido decreto.
O relator, reconhecendo a complexidade do caso, admitiu
ter havido erro escusável, propondo ao Plenário que, ao órgão,
fosse determinado não utilizar a modalidade de licitação para a
contratação de serviços de engenharia, mesmo quando se tratar
de serviços de manutenção.
é importante notar que essas decisões foram adotadas an-
tes da Lei nº. 10.520/02, quando vigorava a Medida Provisória nº.
2.026/00 e o seu Decreto Regulamentar nº. 3.555/00. O Tribunal
de contas da União entendia que, por necessitarem de conheci-
mento de profissional especializado, as contratações de obras e
engenharia não poderiam ser feitas pela modalidade pregão.
com a edição da Lei de Pregão, o Tribunal de contas da
União consolidou entendimento de que o ordenamento jurídico
em vigor ampara a realização do pregão com vistas à contrata-
ção de serviços de engenharia. Neste sentido, vale registrar os
Acórdãos nº. 817/2005 – 1ª câmara, nº. 268/2007 – Plenário, nº.
841/2010 – Plenário.
O Acordão nº. 817/2005 trata-se de resposta à representa-
ção formulada por licitante sobre possíveis irregularidades prati-
cadas pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro)
na realização de pregão, alegando que os serviços contatados
– Fornecimento e Instalação de 26 (vinte e seis) Aparelhos de Ar
condicionado, modelo Multi Split – são considerados como de en-
genharia pelo cONFEA/cREA e que o Decreto nº. 3.555/00 veda a
utilização da modalidade pregão para tais contratações. O Minis-
tro Relator Valmir campelo constata a natureza de bens e serviços
comuns daqueles constantes do objeto do certame.
Na mesma linha de raciocínio, o Acórdão nº. 268/2007 tra-
ta-se de resposta à representação do Sinduscon-DF (Sindica-
to da Indústria da construção civil no Distrito Federal) contra
pregão eletrônico realizado pelo conselho Nacional de Desen-
volvimento científico e Tecnológico (cNPQ). Os serviços esta-
vam orçados em R$ 85.000,00 e abrangiam remoção do jardim,
mão-de-obra especializada para remoção e colocação de vidros,
rejunte, placas de mármore, demolição da proteção mecânica,
impermeabilização de lajes, além de outros. O TcU considerou
improcedente a representação do Sinduscon-DF e adequada a
modalidade escolhida, caracterizando o serviço de engenharia
licitado como comum.
Mais recentemente, o Acórdão nº. 841/2010 converteu na
Súmula nº. 257 o entendimento pacificado no âmbito do TcU no
sentido de que o uso do pregão nas contratações de serviços co-
muns de engenharia encontra amparo na Lei nº. 10.520/2002.
Note que a postura atual da corte atrela-se à conceituação
de comuns, desconsiderando se os serviços são ou não são de
engenharia, sendo mais relevante analisar se o bem ou serviço
apresenta características padronizadas e se encontra disponível,
a qualquer tempo, em um mercado próprio.
Mesmo contrariando o entendimento pacificado pelo TcU, o
cONFEA, por meio da Decisão Plenária nº. 2.467/2012, decidiu que:
serviços que exigem habilitação legal para a sua elaboração ou exe-
cução, com a obrigatoriedade de emissão da devida ART perante o
CREA, tais como projetos, consultoria, fiscalização, supervisão e
perícias, jamais poderão ser classificados como comuns, dada a
sua natureza intelectual, científica e técnica, fatores que resultam
em ampla complexidade executiva, exigindo, portanto, profissio-
nais legalmente habilitados e com as devidas atribuições, conforme
também detalha o artigo 13 da Lei 8.666, de 1993, não se admi-
tindo a sua contratação pela modalidade pregão (BRASIL, 2012).
conforme exposto quando analisadas as disposições re-
gulamentares que proíbem a contratação de serviços de enge-
nharia na modalidade pregão e contrariam a norma geral – Lei
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nº. 10.520/2002, e sem esquecer a legitimidade do cONFEA
para regulamentar o exercício e atividade de engenheiro, tal
entendimento não pode prevalecer, sob pena de desrespeito
ao princípio da legalidade.
Por outro lado, diante da falta de previsão legal permitin-
do a utilização do pregão para contratação de obras, defende-
se a impossibilidade do seu cabimento. Neste sentido decidiu o
TcU em dois momentos, conforme observado nos Acórdãos nº.
1.538/2012 – Plenário e nº. 2.312/2012 – Plenário.
Embora não seja expressa a declaração de inviabilidade em
utilizar a modalidade pregão para contratação de obras, o Acor-
dão nº. 1.538/2012 informa que obras com término de parcela
posterior à copa do Mundo de 2014 ou às Olimpíadas de 2016,
conforme o caso, só podem ser licitadas pelo procedimento do
Regime Diferenciado de contratações Públicas (RDc) quando ao
menos fração do empreendimento tenha efetivo proveito para a
realização desses eventos esportivos e desde que reste eviden-
ciada a inviabilidade técnica e econômica do parcelamento das
frações da empreitada a serem concluídas a posteriori. caso con-
trário, devem ser utilizados os procedimentos da Lei nº. 8.666/93
e não da Lei do Pregão.
O Acórdão nº. 2.312/2012, por sua vez, é expresso em de-
clarar a impossibilidade de utilização de pregão para a contrata-
ção de obras de engenharia. No caso, auditoria no Fundo Nacio-
nal de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e no Município de
Santo Antônio do Descoberto-GO apontou indícios de irregulari-
dades em licitação para construção de quadra esportiva cober-
ta com palco em escola da localidade, entre eles a utilização da
modalidade pregão para a realização da obra. Anotou a equipe de
auditoria que, por se tratar de obra de engenharia, a modalidade
pregão não poderia ter sido utilizada, tendo em vista o disposto no
art. 1º e em seu parágrafo único da Lei nº. 10.520/2002.
Diante do exposto, não revestam dúvidas sobre o enten-
dimento doutrinário e jurisprudencial quanto à possibilidade de
serviços de engenharia (e não obras), desde que tipificados como
comuns, serem licitados na modalidade pregão.
6 consIderAçoes fInAIs
Muito se discute a respeito da possibilidade de adoção da
modalidade pregão para contratação de obras e serviços de en-
genharia, sendo certo afirmar que tanto o entendimento doutri-
nário quanto o jurisprudencial vem evoluindo desde a criação da
modalidade licitatória.
Tal fato se deve à importância que representam os volumes
de recursos públicos gastos em obras e serviços de engenharia,
em si tratando de um país com enorme carência por infraestrutu-
ra e melhores prestações de serviços pela esfera governamental,
como é o caso do Brasil.
ciente deste fato, o legislador, revestindo-se de cuidados
com os interesses daqueles que representa, editou normas para
resguardar os gastos públicos de fraudes, presentes no cenário
brasileiro até então. é o caso da edição da Lei de Licitações e da
Lei Geral do Pregão. conforme observa a doutrina, o pregão é
caracterizado por um processo mais célere de contratações de
bens e serviços comuns, representando também ganhos proce-
dimentais e, em decorrência, econômicos, por se tratar de uma
modalidade que aumenta a disputa e a transparência nas contra-
tações públicas em relação a outras modalidades.
com o objetivo de alcançar melhores resultados na ativida-
de pública, desde a promulgação da legislação do pregão, vem
sendo ampliada a interpretação dos dispositivos que disciplinam
a modalidade, a fim de contratar obras e serviços de engenharia
por meio do pregão.
como primeira conclusão do presente artigo, ressalta-se
que normas regulamentares que impeçam contratações de ser-
viços de engenharia via pregão, e que, fazendo isto, inovam em
relação às disposições contidas na Lei Federal n°. 10.520/02, por
ser uma ofensa ao Princípio da Legalidade, não devem prospe-
rar no ordenamento jurídico brasileiro, sendo de outra forma uma
afronta à constituição Federal. Diferente é o caso de contratação
de obras, por não se encaixarem nem no gênero bens e nem no
gênero serviços.
Fato é que a Lei do Pregão tem uma aplicabilidade restrita.
Desta forma, conclui-se que para a contratação de serviços de
engenharia bastaria que o objeto a ser licitado se enquadrasse
dentro da classificação de serviços comuns. A tarefa não é sim-
ples. Para tal, seria necessário profundo conhecimento do objeto
a ser contratado. O instrumento convocatório deve ser tão bem
redigido, que possa ser entendido pelos profissionais que com-
põem o nicho de mercado da licitação, não deixando margens
para dúvidas.
Num mercado mundial globalizado, como o que estamos in-
seridos, seria difícil não encontrar empresas capazes de entender
o pretendido pelo agente público. Dificilmente existirão especifica-
ções não usuais no mercado. A lógica se inverte e a exceção vira
regra: difícil será encontrar serviços de engenharia que tenham um
objeto ininteligível pelas empresas. Portanto, a tarefa daqueles que
elaboram os editais seria descrever o objeto de forma clara e preci-
sa, com base no conhecimento das práticas de mercado do ramo.
caso o Administrador Público se sinta capacitado a apresen-
tar todas as características técnicas envolvidas e tecer os detalhes
que lhe permitam escolher a proposta mais vantajosa, construindo
um Termo de Referência bem elaborado, não há que se falar em
Lei em seu desfavor, pois seria aplicá-la contra o próprio Estado
que a criou. Impedi-lo de utilizar o pregão para tais contratações é
retirar-lhe a capacidade de ser mais eficiente na atividade pública,
retirar-lhe instrumento mais célere e econômico que os demais.
como foi possível verificar, se em uma primeira etapa, com a
criação do pregão, até por força de vedação expressa em regula-
mento de sua adoção para a contratação de obras e serviços de
engenharia, os tribunais eram receosos em admitir a modalidade
para tal objeto, hoje o entendimento é que se pode contratar por
pregão serviços de engenharia, desde que caracterizadas como
serviço comum. é a consolidação de uma nova realidade: a gran-
de aceitação do pregão e a ênfase na agilidade, transparência e
publicidade, que são marcas desta modalidade licitatória.
referÊncIAsANDRADE, Fernanda Alves. Serviços de engenharia podem ser licitados por pregão? O entendimento recente do TcU. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6, n.67, p. 64-69 – jul.2007.
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notAs de fIm 1 Mestrando em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro, Pós-Graduado em Gestão Estratégica pela Fundação João Pinheiro, Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Prego-eiro Titular da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
2 Mestranda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro, Pós-Graduada em Gestão Estratégica pela Fundação João Pinheiro, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Po-líticas Públicas e Gestão Governamental.
3 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Prego-eiro da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
4 Valor referente ao valor total homologado pelo Poder Executivo do Esta-do de Minas Gerais, no ano de 2013, referentes aos gastos com materiais, serviços e obras.
5 Lei N°. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso xxI, da constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Ad-ministração Pública e dá outras providências.
6 As demais modalidades licitatórias previstas na legislação brasileira são: concorrência; tomada de preços; convite; concurso; leilão. cabe ressaltar que o §8º do art.22 da Lei nº. 8.666/93 veda a criação de outras modalida-des ou a combinação entre elas.
7 Lei n°. 10.520, de 17 de julho de 2002. Institui, no âmbito da União, Es-tados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso xxI, da constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns, e dá outras providências.
8 cabe ressaltar que a lei responsável pela instituição do pregão é norma geral que modifica o art. 22 da Lei nº. 8.666/93, no que se refere à restrição de criação de modalidades além das previstas.
9 Lei N°. 14.167, de 10 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a adoção, no âm-bito do Estado, do pregão como modalidade de licitação para a aquisição de bens e serviços comuns e dá outras providências.
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vigiar os vigilantes: a importância do controle interno para a garantia da segurança cidadã e as potencialidades do projeto do ciccdiego mendes de sousa1
diego valadares vasconcelos neto2
luiza Hermeto c. campos3
maÍra dos santos moreira4
RESUMO: Este artigo busca apresentar as potencialidades do projeto Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) da Secretaria de Estado de Defesa Social
de Minas Gerais no sentido de garantir uma segurança pública cidadã, em particular no contexto de grandes manifestações. O conceito de segurança cidadã
visa adequar o dever de garantir o direito de viver livre de medo ao paradigma do estado democrático de direito. Os limites da atuação de forças policiais neste
contexto deve se pautar por normas de Direitos Humanos codificadas em tratados e declarações internacionais, e na legislação brasileira, como na Constituição
Federal, leis e decretos. Ao reunir diferentes órgãos e viabilizar o acesso a imagens de câmeras e outras informações, o CICC tem o potencial de permitir o con-
trole entre instituições e o monitoramento das atividades policiais, facilitando o monitoramento pelo Estado do respeito aos Direitos Humanos por seus agentes.
PALAVRAS-CHAVE: Controle Interno; Segurança Cidadã; Centro Integrado de Comando e Controle; Direitos Humanos.
ABSTRACT: This article aims to show the potential of the State Department of Social Defense of Minas Gerais Integrated Command and Control Center (CICC)
project in order to ensure public safety citizen, particularly in the context of major events. The concept of citizen security aims at adjusting the duty to guarantee
the right to live free of fear to the paradigm of democratic rule of law. The limits of performance of police forces in this context should be guided by human rights
norms codified in international treaties and declarations, and laws and regulations such as the Federal Constitution, laws and decrees. By bringing together dif-
ferent agencies and facilitate access to camera images and other information, the CICC has the potential to allow control of institutions and monitoring of police
activities, facilitating the monitoring by the State of respect for human rights by its agents.
KEYWORDS: Internal Control; Citizen Security; Center Integrated Command and Control; Human Rights.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Segurança Cidadã: Conceito e Origens; 3 Responsabilidade do Estado; 4 Controle Interno como Forma de Garantia da Segurança
Cidadã; 5 O Centro Integrado de Comando e Controle Interno e suas Potencialidades; 6 Considerações Finais: os Limites do Controle e a Importância do Controle
Externo.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Administrativo.
1 Introdução
O objetivo do presente trabalho é apresentar as potenciali-
dades de contribuição para a segurança cidadã identificadas no
projeto de implantação do centro Integrado de comando e con-
trole da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais,
que surgiu no contexto de grandes eventos, coincidentes com
grandes manifestações populares.
O artigo se divide em cinco seções além desta introdução.
A primeira seção discute a noção de segurança cidadã e suas
origens, destacando sua associação com os regimes democráti-
cos, em contraposição às ideias de “segurança interior” e “ordem
pública” muito presentes nas ditaduras latino-americanas.
A segunda seção aborda a responsabilidade do Estado so-
bre as questões de segurança cidadã sob a perspectiva do Direito
Internacional dos Direitos Humanos e como órgãos internacionais
aplicam tal conceito para o contexto de protestos e manifestações.
A terceira seção trata do controle da Administração Pública,
explicitando a diferença entre controles interno e externo e desta-
cando sua aplicabilidade na área da segurança cidadã.
A quarta seção apresenta o centro Integrado de comando
e controle (cIcc), seu surgimento e sua concepção, ressaltando
seus instrumentos que podem potencializar o controle da atuação
policial e garantia de uma segurança pública efetivamente cidadã.
A quinta seção recupera as principais conclusões do traba-
lho, destacando os alcances e limites do controle interno e a im-
portância do controle social para a segurança cidadã.
2 A segurAnçA cIdAdã: conceIto e orIgens
com o surgimento e valorização do Estado Democrático, o
conceito de segurança, inicialmente preocupado apenas com a
garantia da ordem pública como expressão da força do Estado,
foi revisto. A segurança não é mais vista exclusivamente como
combate à criminalidade, mas inclui também a criação de condi-
ções para a convivência pacífica entre as pessoas. Este conceito
de segurança enfatiza estratégias de prevenção e controle das
causas da violência, no lugar de se restringir à estratégia reativa,
de repressão a violências já ocorridas.
O direito à segurança frente à criminalidade e à violência não
consta na ordem jurídica internacional dos Direitos Humanos de
forma expressa nestes termos. Isto por que as normas de Direitos
Humanos são formuladas, em geral, como normas que têm como
obrigados os Estados, e não indivíduos ou grupos. Entretanto, tais
normas obrigam aos Estados não apenas a respeitá-las, mas tam-
bém a garantir o respeito por parte de terceiros.
Assim, o Direito à segurança frente à criminalidade e à vio-
lência deriva da obrigação do Estado de garantir a segurança
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pessoal. O artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos afirma que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade
e à segurança pessoal”; o artigo 1 da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem afirma: “Todo ser humano
tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”;
o artigo 9 do Pacto Internacional de Direitos civis e Políticos:
“Todo indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua
pessoa”; e o artigo 7 da convenção Americana sobre Direitos
Humanos (cADH) afirma que “Toda pessoa tem direito à liber-
dade e à segurança pessoais”.
é com base nesta visão do direto à segurança frente à
criminalidade e à violência interpessoal ou social que a co-
missão Interamericana de Direitos Humanos em seu Relatório
sobre Segurança cidadã e Direitos Humanos entende que a
garantia de direitos afetados por condutas violentas e/ou de-
litivas é um pressuposto do conjunto normativo que alicerça
as obrigações do Estado. Integram este conjunto normativo
base das obrigações exigíveis do Estado dos quais deriva o
direito à segurança: os direitos à vida, à integridade física;
à liberdade; às garantias processuais e ao uso pacífico dos
bens (cIDH, 2009, p. 6-7).
O conceito de segurança cidadã surgiu na América La-
tina no contexto das transições de regimes ditatoriais para
regimes democráticos justamente para diferenciar a natureza
da segurança na democracia em relação àquela praticada no
autoritarismo. A segurança utilizada nos regimes autoritários
associa-se a ideia de segurança do Estado, presente nas no-
ções de “segurança nacional” e “segurança interior”. Nos regi-
mes democráticos, a segurança associa-se primordialmente às
pessoas e aos grupos sociais. A ideia de segurança cidadã é
mais adequada para tratar das questões da criminalidade e da
violência de uma perspectiva dos Direitos Humanos porque ela
surge de uma ênfase na cidadania democrática e na proteção
da pessoa humana como objetivo central das políticas.
A segurança cidadã é uma dimensão central da “seguran-
ça humana” como elaborada pelo Programa das Nações para
o Desenvolvimento (PNUD). A segurança humana é “um dos
meios ou condições para o desenvolvimento humano”, definida
em termos de “ausência de temor e ausência de carências”. A
segurança humana é entendida
como a situação social na qual todas as pessoas podem gozar li-
vremente de seus direitos fundamentais, uma vez que as institui-
ções públicas possuem a suficiente capacidade, no marco de um
Estado de Direito, para garantir seu exercício e para responder com
eficácia quando estes são violados(...) Deste modo, é a cidadania
o principal objeto da proteção estatal. Em suma, a segurança cida-
dã torna‐se uma condição necessária –ainda que insuficiente‐ da
segurança humana que, finalmente é a última garantia do desenvol-
vimento humano. Por conseguinte, as intervenções institucionais
destinadas a prevenir e controlar o fenômeno do delito e da violên-
cia (políticas de segurança cidadã) podem se considerar uma opor-
tunidade indireta mas significativa para, por um lado, fundamentar
o desenvolvimento econômico sustentável e, por outro, fortalecer
a governabilidade democrática e a vigência dos direitos humanos
(PNUD, 1995 apud CIDH, 2009, p. 9).
Aliás, a ideia de uma sociedade onde se possa viver sem
medo está na raiz e sempre compôs a agenda de debates sobre
Direitos Humanos (ROOSEVELT, 1941; ONU, 2005, págs.27-28)
sendo completamente artificial a oposição “Direitos Humanos x
Segurança da População”.
Falhas na segurança cidadã dizem respeito a situações nas
quais o Estado não cumpre, total ou parcialmente, sua função de
oferecer proteção contra o crime e a violência social. A atuação
da força pública orientada para a proteção da segurança cidadã
é essencial para o bem comum de uma sociedade democrática5.
Por outro lado, os abusos de autoridades policiais têm se
constituído como um importante fator de risco para a segurança
pessoal. Os direitos humanos limitam o exercício da autoridade,
buscando evitar arbitrariedades, e constituem um amparo funda-
mental para a segurança cidadã na medida em que buscam impe-
dir que as ferramentas legais de que dispõem os agentes públicos
sejam usadas para gerar violência e violar direitos.
A seguir, abordaremos as obrigações do Estado no que diz
respeito aos direitos humanos e às medidas para prevenir condu-
tas que comprometem a segurança cidadã, em particular durante
grandes manifestações.
3 responsAbILIdAdes do estAdo
Todo ato internacionalmente ilícito atribuível a um Estado
gera sua responsabilidade internacional (cDI, 2001, Arts.1 e 2).
Um ato é internacionalmente ilícito quando constitui uma ação ou
omissão que viola normas de direito internacional vinculantes para
um Estado (idem, Art.3). Atos de órgãos de um Estado, como suas
forças policiais, são atribuíveis a este (idem, Art.4), mesmo quan-
do tais atos excedem ou violam sua competência (idem, Art.7).
Sobre as obrigações do Estado no campo da segurança
cidadã, tem-se, por um lado, as obrigações negativas, de absten-
ção e respeito, e, de outro, as positivas, associadas às medidas de
prevenção. Por exemplo, a convenção Americana sobre Direitos
Humanos estabelece que:
Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitosOs Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar
os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e
pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem
nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social.[…]
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito internoSe o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda
não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza,
os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas
normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as
medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para
tornar efetivos tais direitos e liberdades. [grifos nossos]
Assim, o dever de respeitar normas de Direitos Humanos de-
manda que o Estado se abstenha de tomar medidas que violem
normas codificadas, como aquelas da cADH. O dever de garan-
tir o livre e pleno exercício de Direitos Humanos demanda que
o Estado adote medidas positivas contra terceiros que possam
ameaçar tal exercício. E, finalmente, o Estado possui a obrigação
positiva de adotar disposições de direito interno, adequando a le-
gislação e a administração de seus órgãos às normas internacio-
nais de Direitos Humanos.
Portanto, ao realizar-se o controle da atuação policial, que
será apresentado na próxima seção, a autoridade responsável
deve conhecer a fundo normas e padrões de Direitos Humanos
relevantes. A título de ilustração, apresentaremos como devem ser
compreendidas algumas normas no controle da atuação policial
durante grandes manifestações.
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Tratados de Direitos Humanos estabelecem o direito à vida
como o direito a não ser privado da vida arbitrariamente (PIDcP,
Art.6.1; cADH, Art.4.1). Os Princípios Básicos sobre o Uso da For-
ça e de Armas de Fogo por Agentes Responsáveis pela Aplicação
da Lei preveem os limites para o uso da força (Princípios Básicos).
Segundo o princípio 9:
Os governos e entidades responsáveis pela aplicação da lei deverão
preparar uma série tão ampla quanto possível de meios e equipar os
responsáveis pela aplicação da lei com uma variedade de tipos de
armas e munições que permitam o uso diferenciado da força e de
armas de fogo. Tais providências deverão incluir o aperfeiçoamento
de armas incapacitantes não-letais, para uso nas situações adequa-
das, com o propósito de limitar cada vez mais a aplicação de meios
capazes de causar morte ou ferimentos às pessoas. Com idêntica
finalidade, deverão equipar os encarregados da aplicação da lei com
equipamento de legítima defesa, como escudos, capacetes, coletes
à prova de bala e veículos à prova de bala, a fim de se reduzir a ne-
cessidade do emprego de armas de qualquer espécie.
Tais padrões são incorporados no direito à vida na constitui-
ção Federal, e no que tange a forças federais, na Portaria Intermi-
nisterial MJ/SDH/PR 4.226 de 31 de dezembro de 2010.
Norma equivalente foi interpretada pela corte Europeia de
Direitos Humanos em casos de manifestações sociais ou outros
contextos relevantes. No caso Güleç v. Turquia (cEDH, 1998), por
exemplo, a ausência de armas menos letais e de materiais de pro-
teções aos policiais adequadas em um contexto de manifestações
que poderiam tornar-se violentas contribuíram para a conclusão
de que o direito à vida teria sido violado.
Em outro caso, Mccann v. Reino Unido (cEDH, 1995), a corte
Europeia enfatiza a importância do dever de se planejar uma ope-
ração policial de maneira a evitar a utilização do uso letal da força.
Segundo a decisão, verificou-se uma violação do direito a vida,
mesmo no caso de tiros letais contra indivíduos que se acreditava
estavam prestes a explodir um carro bomba em uma praça reple-
ta de pessoas. Isto porque a operação falhou ao deixar de tomar
medidas necessárias para deter suspeitos antes que a situação se
tornasse de extremo risco às vidas não apenas dos suspeitos, mas
dos transeuntes que poderiam ser afetados pela suposta bomba. A
menção a este caso visa enfatizar a importância do planejamento
da operação. Assim, por exemplo, sendo previsível que haja risco
à vida de manifestantes que estejam sobre um viaduto onde possa
haver tumultos, a operação de policiamento da manifestação deve
isolar tal espaço ou apontar outras soluções.6
Entretanto, mesmo quando operações policiais são de-
sencadeadas com vistas a evitar mortes, equipando policiais
com armas menos letais7 e planejando a operação, ainda as-
sim é possível que haja a violação do direito à integridade física
de manifestantes (PIDcP, Art.7; cADH, Art.5). como balas de
borracha podem causar lesões sérias, os Princípios Básicos se
aplicam (Princípio 14 com referência ao Princípio 9). A corte
Europeia decidiu em diferentes casos pela violação à integri-
dade física devido ao mal uso de armas menos letais. No caso
Abdullah Yaşa v. Turquia (cEDH, 2013), por exemplo, decidiu-se
pela violação do direito à integridade física quando bombas de
gás foram arremessadas diretamente contra manifestante, cau-
sando ferimentos nestes e em terceiros. A corte também afir-
mou que bombas de gás não podem ser utilizadas em ambien-
tes fechados. A utilização abusiva do spray de pimenta também
foi condenada como violação do direito à integridade física no
caso Ali Günes v. Turquia (cEDH, 2012).
Durante o policiamento de manifestações, também é possí-
vel que haja violações de Direitos Humanos através da omissão
por parte de forças policiais. Por exemplo, a obstrução de trata-
mento médico pode enquadrar-se como tortura ou outras formas
de maus tratos. Assim decidiu a corte Europeia no caso Keenan v.
Reino Unido (cEDH, 2001); e a comissão Africana de Direitos Hu-
manos nos casos Organização de Liberdades civis v. Nigeria (co-
mADH, 1999) Anistia Internacional v. Malawi (comADH, 1994)8.
Outra forma de omissão que pode gerar a responsabilidade
internacional do Estado é a omissão em adotar medidas de Direito
Interno. Um exemplo deste tipo de omissão é a não abolição no
Brasil do crime de desacato. A Declaração de Princípios sobre a
Liberdade de Expressão, aprovada pela cIDH em 2000, afirma,
em seu princípio 11 que:
Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da socie-
dade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários
públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, aten-
tam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.
A declaração codifica entendimento já expressado pela
cIDH em diversas ocasiões (cIDH, 1999; cIDH, 2001), que alega
que o desacato é “um crime cuja mera existência dissuade pesso-
as a emitir opiniões críticas a respeito de autoridades” (corteIDH,
2009, para.1.51). A posição também é corroborada pela corte In-
teramericana de Direitos Humanos em decisões que afirmam ser
a condenação por crimes de desacato uma violação da cADH
(corteIDH, 2005; corteIDH, 2009).
O Brasil segue em responsabilidade internacional por não
revogar o crime de desacato de seu código Penal9. Ainda assim,
as autoridades devem se abster de deter manifestantes e apresen-
tar denúncias por desacato, dando aplicabilidade imediata às nor-
mas de Direitos Humanos e garantindo uma segurança cidadã10.
com estes e outros padrões de direitos humanos em mente,
deve-se exercer o controle da atividade policial e de outras ativi-
dades estatais para garantir-se uma segurança cidadã. Passamos
então a uma breve discussão sobre o conceito de controle.
4 controLe Interno como formA de gArAntIA dA
segurAnçA cIdAdã
O controle é um alicerce do modelo democrático, sendo,
inclusive, uma forma de proteger os cidadãos de possíveis arbi-
trariedades de órgãos e agentes do Estado. Ademais, possibilita
a disponibilidade à sociedade de informações claras, conferindo
transparência à gestão pública. Em última análise, o controle ope-
ra na garantia de prestação de contas, accountability, de Estado
para Estado e de Estado para Sociedade.
conforme preceituado por Hely Lopes Meirelles, controle
aplicado à Administração Pública seria “a faculdade de vigilân-
cia, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade
exerce sobre a conduta de outro” (1997, pág.xx). Fernanda
Marinela, por sua vez, o entende como o “conjunto de meca-
nismos jurídicos e administrativos para a fiscalização e revisão
de toda a atividade” (2010).
O controle se subdivide em controle interno e externo, sendo
este o último exercido por outro Poder. conforme Meirelles, é “o
que se realiza por órgão estranho à Administração responsável
pelo ato controlado” (1997), como Tribunais de contas, Judiciá-
rios e Legislativo exercem sobre o Poder Executivo. Já o controle
interno, é aquele exercido por órgãos da própria Administração,
ou seja, por estruturas componentes do próprio órgão, possuindo
expressamente previsão na constituição Federal de 1988:
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Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de
forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual,
a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia
e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos
órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplica-
ção de recursos públicos por entidades de direito privado;
III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias,
bem como dos direitos e haveres da União;
IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucio-
nal. (BRASIL,1998).
Este status constitucional evidencia o grau de importância
conferido ao controle da Administração Pública na engenharia
institucional do Estado brasileiro.
O controle interno, ou também chamado de controle admi-
nistrativo tem como função acompanhar a execução das ações,
seja de forma opinativa, preventiva ou corretiva. A política de se-
gurança cidadã, dentro do arranjo institucional, merece especial
atenção no que diz respeito ao controle e fiscalização de suas
ações, dada sua própria natureza, associada ao uso da força. O
controle interno eficaz é uma forma de garantir que a atuação po-
licial, fortemente marcada pela tradição militarista, adote uma lógi-
ca de maior proximidade com a sociedade, fortalecendo vínculos
comunitários e as ações de prevenção. A própria estrutura do ci-
clo policial no Estado Brasileiro, dividido entre polícia ostensiva e
judiciária, remete a um tipo de controle da atividade policial, dado
que cada instituição é dependente das ações da outra para dar
prosseguimento aos eventos de segurança pública, remetendo
em alguma medida a um sistema de freios e contrapesos.
Na perspectiva de Montesquieu, a divisão dos Poderes de
um Estado é uma forma de evitar um governo tirânico na medi-
da em cada poder controla e balanceia as ações dos outros. A
fiscalização entre poderes é vista como uma forma de garantir
que todos eles respeitem os limites legais, reduzindo possibili-
dade de arbitrariedades e abusos de poder.
Embora Montesquieu tenha pensado no controle entre Pode-
res (Executivo, Judiciário e Legislativo), a ideia de freios e contrape-
sos é plenamente aplicável à rotina interna da política de segurança
cidadã. Os papéis definidos e intercalados, de forma que o trabalho
de um dependa da execução do outro, dos principais agentes des-
ta política (Polícia Ostensiva, Judiciária, Secretarias Estaduais de
Segurança, Ministério Público e Judiciário) geram um controle entre
instituições, favorecendo uma atuação que respeite as competên-
cias privativas dos órgãos e o cumprimento da lei.
Dessa forma, a existência de controles internos efetivos se con-
figura como um importante meio para que as instituições exerçam
um controle mútuo e atuem respeitando os limites legais e sociais.
5 o centro IntegrAdo de comAndo e controLe e suAs
potencIALIdAdes
Os centros de comando e controle começaram a ser pen-
sados na II Guerra Mundial com o objetivo de unificar o comando
das diversas frentes de guerra, sejam elas terrestres, aéreas ou na-
vais (BRASIL, 2006). Atualmente, com desenvolvimento de novas
tecnologias de informação e comunicação, os modernos centros
de comando e controle, ou c2 como são chamados, têm o objeti-
vo de integrar em um mesmo ambiente físico pessoas de diversas
instituições - sejam elas de segurança, mobilidade, defesa civil,
inteligência, entre outros - sistemas, imagens, protocolos, dados
e informações. Estes, aliados aos conhecimentos operacionais,
permitem a produção de informação em tempo real para subsidiar
a tomada de decisão das chefias, neutralizando ou impedindo a
ocorrência de riscos, ou mesmo minimizando seus efeitos.
com o advento da copa do Mundo de 2014 no Brasil, uma
das grandes estratégias na área de segurança dos Governos Fe-
deral e Estaduais foi criar centros de comando e controle nas
cidades sede que coordenariam e fariam o monitoramento das
operações de segurança durante a copa:
No âmbito do Ministério da Justiça (MJ), deverão ser estabelecidos
centros de comando e controle denominados Centros Integrados de
Comando e Controle Regionais (CICCR) nas cidades-sede, integra-
dos ao Centro Integrado de Comando e Controle Nacional (CICCN),
que coordenarão o emprego das Forças de Segurança Pública nas
atividades de segurança dos Grandes Eventos. (BRASIL, 2013)
Em Minas Gerais esse conceito foi ampliado e o centro Integra-
do de comando e controle - cIcc, além de fazer o monitoramento
de grandes eventos e situações de crise, com a participação de mais
de vinte instituições, se propõe a ser um núcleo de operações que
concentrará o centro Integrado de Atendimento e Despacho (cIAD), o
Disque Denúncia Unificado (DDU), o monitoramento de imagens por
câmeras e da localização de viaturas via GPS, equipes de produção
de informações e estatísticas, e os órgãos de inteligência. O cIAD é
responsável pelo atendimento dos tridígitos 190,193 e 197 e despacho
de viaturas para atendimento das ocorrências. O DDU recebe anoni-
mamente denúncias de violência de todo o Estado de Minas Gerais.
O objetivo é ter um equipamento público permanente que
concentrará todos esses serviços, trazendo celeridade aos pro-
cessos e ao atendimento ao cidadão.
A disposição das instituições em um mesmo ambiente no cIcc
e a tomada de decisão em tempo real, inclusive com o acompanha-
mento das ações por meio de imagens e alertas de sistemas, permite
um controle mútuo das ações com a correção imediata, caso esta
não seja satisfatória. é importante ressaltar que protocolos são defini-
dos previamente, e que, portanto, o objetivo é não haver interferência
das ações de uma instituição em relação à outra dentro daquilo que
suas competências presumem. Porém, caso a resposta à deman-
da não produza os resultados esperados, é possível que se tenham
correções, apoios em atividades ou qualquer outra ação que leve
a um atendimento melhor aos cidadãos envolvidos na ocorrência,
garantindo seus direitos e evitando arbitrariedades.
Além do controle entre instituições, o cIcc tem uma forte po-
tencialidade de monitoramento das atividades policiais quanto ao
respeito aos Direitos Humanos. O acesso às imagens de câmeras
e o constante monitoramento das diversas instituições traz uma
transformação da natureza do trabalho da polícia, como mostra o
estudo realizado por Benjamin J. Goold (2003). A pesquisa qualita-
tiva realizada com cerca de 95 policiais de seis cidades do sul da
Inglaterra, questiona sobre a mudança no comportamento quando
da inserção de câmeras capazes de monitorar o trabalho realizado.
Mais de 2/3 dos policiais afirmaram que “a introdução de câmeras os
forçou a serem mais cautelosos durante o patrulhamento” (GOOLD,
2003. tradução nossa). Diante disso, o monitoramento por imagens
ou localização de viatura por GPS, além de trazer benefícios quanto
à prevenção à criminalidade e minimização de riscos, traz consigo
também a perspectiva do comando e controle da atuação policial de
rua, fiscalização de suas ações, além da própria mudança compor-
tamental da organização policial, prevenindo também ações violen-
tas ou de violação de direitos, antagônicas a composição do Estado
Democrático de Direito e a uma perspectiva de segurança cidadã.
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 41
6 consIderAções fInAIs: os LImItes do controLe Interno e A
ImportâncIA do controLe eXterno
A ideia de segurança cidadã se refere a uma política pública
voltada primordialmente para a proteção da pessoa humana, que
vai além do combate direto à criminalidade, englobando também
um conjunto de ações e estratégias para viabilizar a convivência
pacífica entre as pessoas.
Embora o direito à segurança frente à criminalidade e à vio-
lência não conste na ordem jurídica internacional dos Direitos Hu-
manos de forma expressa, ele pode ser visto como um derivado
os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e ao uso pacífico
dos bens, estes sim claramente expressos, sendo, portanto, uma
obrigação exigível do estado (cIDH, 2009). O dever de respeitar
normas de Direitos Humanos demanda que o Estado, por um
lado, se abstenha de tomar medidas que violem normas codifi-
cadas e, por outro lado, adote medidas positivas contra terceiros
que possam ameaçar o livre e pleno exercício dos Direitos Huma-
nos. Outra obrigação positiva do Estado é a de adotar disposições
de direito interno, adequando a legislação e a administração de
seus órgãos às normas internacionais de Direitos Humanos.
O controle da administração pública é uma importante forma
de monitorar o atendimento aos parâmetros de Direitos Humanos.
Argumentamos aqui que o projeto centro Integrado de comando
e controle pode potencializar o controle no campo da segurança
cidadã. Em primeiro lugar porque reúne, em um mesmo ambien-
te, diversas instituições e viabiliza a tomada de decisão em tem-
po real, possibilitando um controle mútuo das ações. Além disso,
permite o acesso às imagens de câmeras, o que estimula uma
postura mais cautelosa dos policiais no patrulhamento.
Apesar do controle enfatizado neste artigo ser o do próprio
Estado, destacamos que qualquer sistema de controle montado
no interior do Estado sofrerá limites, seja por razões orçamentá-
rias, de recursos humanos e/ou pelo grau de interdependência
entre quem exerce o controle e quem tem suas ações controla-
das. Portanto, é o controle social, exercido pelo cidadão, que tem
o maior potencial de garantir que os órgãos de segurança prati-
quem uma segurança cidadã, respeitando parâmetros de Direitos
Humanos. O conceito da preservação do interesse público tem
como titular o público, o grupo de pessoas afetadas direta ou in-
diretamente pelo Estado, e não a máquina estatal. Este público
deve, assim, se munir de equipamentos e estratégias para que
cobrem o respeito a este interesse em todas as partes.
Para isto, este público deve se empoderar com conhecimen-
tos sobre o conceito de segurança cidadã e padrões de Direitos
Humanos, apresentadas nas seções 1 e 2 acima, que devem ser
respeitados. Deve também saber identificar o papel do controle
e conhecer ferramentas estatais que possam ser utilizadas para
tanto, como sugerimos ser uma das funções potenciais do cIcc.
com estes conhecimentos, o controle pelos cidadãos tem o po-
tencial de se tornar mais efetivo11.
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notAs de fIm1 Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental atuando como Superintendente de Infraestrutura e Logística da Secretaria de Defesa Social do Governo de Minas. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Professor no curso de Pós Graduação em Direitos Humanos na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais, no Instituto de Direitos Humanos de Belo Horizonte e na Universidade “MITSO” de Minsk, República da Bielorrússia. Foi Diretor de Proteção de Direitos Humanos do Governo de Minas (entre 2011 e 2013). Possui Mestrado em Direito Internacional Humanitário pela Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human Rights. Universidade de Genebra.
3 Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental atuando no Gabinete da Secretária Adjunta de Defesa Social do Governo de Minas, Bacharel em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro.
4 Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental atuando na Assessoria de Gestão Estratégica e Inovação da Secretaria de Defesa So-cial do Governo de Minas. Mestranda em ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais, Bacharel em Administração Pública pela Funda-ção João Pinheiro, e Bacharel em ciências Sociais pela Universidade Fe-deral de Minas Gerais.
5 O conceito de segurança cidadã transcende a mera atuação policial, abrangendo políticas de diversas áreas, como programas de iluminação de vias e espaços públicos – por exemplo, o projeto campos de Luz da cEMIG – programas de prevenção à criminalidade – como o Programa Fica Vivo! do Governo de Minas – e programas de proteção de Direitos Huma-nos, como o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, o Programa de Proteção a crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos e o Núcleo de Atendimento a Vítimas de crime Violentos. Entretanto, o presente artigo se focará apenas na perspectiva da atuação policial e seu dever de respeitar e garantir Direitos Humanos.
6 Durante as manifestações de junho em Belo Horizonte, tumultos eclo-diram próximo ao viaduto entre a Avenida Antônio carlos com a Avenida Abraão caram nos três dias de jogos em Belo Horizonte. Após a utilização de balas de borracha e gás lacrimogênio por parte da Polícia Militar em cada um dos três dias, ao menos sete pessoas caíram do viaduto, duas delas vieram a falecer, (Estado de São Paulo, 2014).
7 Após arma menos letal: O termo arma não letal é hoje considerado inade-quado, pois qualquer arma tem a potencialidade de causar a morte, mesmo que apenas incidentalmente.
8 Durante os protestos de junho de 2013 em Belo Horizonte alegou-se que em alguns casos, em particular no cruzamento entre as avenidas Abraão caram e Antônio carlos, a Polícia Militar teria se omitido na prestação de socorro e na permissão de que médicos voluntários ajudassem feridos, (IANNOTTI, 2013).
9 Até a conclusão do presente texto, estava em tramitação no congresso Projeto de Lei que previa o fim do crime de desacato. Entretanto, tal projeto transformava o atual tipo de desacato em uma injúria qualificada com pena superior à atual disposição penal. Assim, tal projeto não contempla o dever de revogar o crime de desacato.
10 Durante as manifestações ocorridas no Brasil em 2013, centenas de pes-soas foram detidas com base no crime de desacato, em clara violação à convenção Americana sobre Direitos Humanos.
11 As maneiras de realizar este controle é tema para outro artigo que ex-trapola os objetivos deste Não exaurindo como este pode ser realizado, podemos citar como algumas fontes para tal controle leis de transparência (Lei Federal 12.507 de 18 de novembro de 2011, Decreto Estadual de Minas Gerais 45.969 de 24 de maio de 2012), a coleta de imagens durante mani-festações realizada por meios de comunicação alternativos, dentre outros. Para mais informações ver estudo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI, 2009).
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a desconsideração da personalidade jurÍdica e o novo processo civil
tHaÍs bentes leonel tatiana prates motta
RESUMO: A desconsideração da personalidade jurídica, em que pese tem como finalidade a preservação da personalidade jurídica e da responsabilidade civil
da sociedade, constitui-se como mecanismo de insegurança para aqueles que contraem obrigações do negócio jurídico, posto que afastam a autonomia patri-
monial dos bens da sociedade empresária e de seus sócios.
PALAVRAS-CHAVE: Desconsideração; Personalidade Jurídica; Direito Societário; Direito Comercial; Direito Processual Civil.
ABSTRACT: The disregard of the legal persona, has by means, the prevail of the legal persona and civil responsability of the society. Establishes as an insecurity
mechanism for those who contract liabilities of legal business, as they push away the patrimonial autonomy of entrepeneurship society goods and its partners.
KEYWORDS: Disregard; Legal Personality; Corporate Law; Commercial Law; Civil Litigation.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Processual Civil; Direito Empresarial; Direito Tributário
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Efeitos da Personalidade Jurídica; 3 Teoria da Desconsideração; 3.1 Desconsideração Inversa; 4 Considerações Finais
1 Introdução
A personalidade jurídica é uma aptidão genérica para ad-
quirir direito e contrair obrigações. é este atributo que determi-
na a possibilidade de pessoas naturais ou não figurarem nas
relações jurídicas.
A origem desta teoria esta do direito anglo-americano onde
era chamada de “disregard doctrine”. Esta concepção advém de
conceitos jurídicos, econômicos e culturais que não possuem
qualquer traço semelhante ao direito interno.
é visível esse conceito tratando de pessoa natural, no entan-
to quando está relacionado à pessoa jurídica aquele é fictício, já
que, este organismo criado pelo direito, visa apenas determinar
que um grupo de pessoas de mesmo fim seria diferente das pes-
soas naturais que o compõe. Sendo assim as pessoas jurídicas
tem autonomia patrimonial distinta dos seus integrantes.
Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é uma
teoria criada para afastar, momentaneamente, esta autonomia pa-
trimonial que as pessoas jurídicas possuem como forma de viabi-
lizar a satisfação de obrigações contraídas. é um instrumento de
coibição do mau uso da pessoa jurídica.
“Nada mais são do que típicos preceitos de responsabilidade civil
especial por ato ilícito diretamente atribuível aos gestores e con-
troladores da pessoa jurídica, sem que se possa entender a razão
pela qual tais normas são tratadas no contexto da superação da
personalidade jurídica da sociedade, ainda mais diante do singelo
argumento de que o simples obstáculo da separação patrimonial
decorrente da personificação societária é razão insuficiente à sua
equiparação genérica ao regime do ato ilícito decorrente da teoria
da desconsideração” (NUNES, 2010, pg. 30)
No entanto, vale ressaltar que desconsideração não é o mes-
mo que despersonalização. A desconsideração é um afastamento
temporário do óbice que aquela personalidade jurídica representa
para a satisfação das obrigações. O juiz não desfaz o ato cons-
titutivo daquela sociedade. Porém despersonalizar é justamente
extinguir a personalidade jurídica, o que é mais drástico, já que
a teoria da desconsideração não busca o fim da pessoa jurídica.
O sistema judiciário brasileiro tem por finalidade o equilíbrio
quanto aos poderes atribuídos aos institutos de direito privado,
sendo eles relativos ou absolutamente determinados. No entanto,
quando observadas condutas que levam a desconfiança da corre-
ta administração dos bens e capital daquela entidade, o judiciário
tem como uma das soluções a desconsideração daquela na inten-
ção de atingir o sócio (pessoa física). o julgador pode ultrapassar
limites atribuídos pela carta Magna ou até mesmo ignorá-los.
2 efeItos dA personALIdAde JurÍdIcA
Um dos principais efeitos da personalidade jurídica é a auto-
nomia patrimonial, ou seja, a personalidade jurídica faz com que a
empresa passe a ter um patrimônio próprio e autônomo em rela-
ção ao patrimônio dos sócios que constituíram aquela sociedade.
Igualmente, significa que o patrimônio pessoal dos sócios, nos
casos das sociedades limitadas e EIRELI, não mais respondem
pelas dividas contraídas pela pessoa jurídica.
Ao desmascarar a personalidade jurídica não deve ser so-
mente levado em conta o patrimônio dos sócios administradores,
controladores e diretores de uma mesma sociedade, mas sim to-
das as pessoas naturais e jurídicas que detém capital, direta ou
indiretamente, e controle daquela sociedade.
Pode-se falar aqui da responsabilidade subsidiária, onde
não há compartilhamento entre devedores, mas sim apenas um
devedor principal. No entanto, caso este não cumpra com as obri-
gações da sua parte, outro responderá subsidiariamente, como é
o caso do fiador, no Direito civil.
Essa limitação da responsabilidade subsidiária, que no
fundo é uma limitação dos riscos da atividade empresarial, é
um importante incentivo ao empreendedorismo, pois aquele
que cria uma pessoa jurídica para explorar uma atividade em-
presarial sabe que, derivado dessa autonomia, as suas perdas
eventualmente existentes em virtude dessas atividades empre-
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sarias ficarão limitadas ao montante do seu investimento, que
encoraja, eventualmente, a empreender.
No entanto, essa mesma autonomia pode dar lugar à fraude,
a prática de desvios, entre outros comportamentos que podem
ser prejudiciais a outros agentes econômicos. Em virtude disso,
fora criada a teoria da desconsideração.
3 teorIA dA desconsIderAção
O precedente primordial que adotou a teoria da disregard of legal entity ou da desconsideração da personalidade jurídica,
permitindo que se levantasse o véu da corporação ou da socie-
dade para atingir os bens dos sócios, foi o caso Salomon na
Inglaterra em 1897.
Esse caso envolveu um comerciante chamado Arrow Salo-
mon que alienou seu fundo de comercio para uma pessoa jurídica
criada por ele mesmo. Posteriormente essa corporação foi decla-
rada insolvável (insolvente) e sua autonomia patrimonial veio a se
apresentar como empecilho para que os credores pudessem acio-
nar ou atingir o patrimônio pessoal do comerciante Arrow Salomon.
Em decisão de primeira instância na Inglaterra houve o prin-
cipal precedente que aplicou a teoria da desconsideração.
No Brasil essa teoria foi adotada, principalmente, pelo pro-
fessor Rubens Requião (apud VENOSA, 2010, pg. 280) que dizia:
“todos percebem que a personalidade jurídica pode vir a ser usada
como anteparo da fraude, sobretudo para contornar as proibições
estatutárias do exercício do comercio ou outras vedações legais”.
A primeira doutrina que trouxe essa teoria disposta em seus
artigos foi o código do consumidor, e, posteriormente, o códi-
go civil. Essa teoria ainda foi adotada na legislação extravagante,
como a Lei Anti-trust e a legislação ambiental.
Uma vez aplicada, apenas afastam-se os óbices daquela
autonomia patrimonial para atingir os bens dos sócios. A pessoa
jurídica continua existindo e para outros atos não atingidos pela
desconsideração, sua autonomia continua plenamente vigente.
Para a aplicação da teoria da desconsideração exigem-se
alguns pressupostos, dependendo também do tipo da subteoria
que se pretende adotar.
A doutrina divide a desconsideração em duas teorias de
acordo com o grau de exigência para se desconsiderar a perso-
nalidade, a teoria maior e a teoria menor.
A teoria maior traz a desconsideração com mais rigidez
podendo ser realizada por meio de duas outras subteorias. A
teoria maior subjetiva determina que a desconsideração deve
ser aplicada nos casos em que a autonomia patrimonial seja
usada como meio de fraude ou de abuso de direito. No entanto,
a teoria maior objetiva preconiza a adoção da desconsideração
quando houver confusão patrimonial, ou seja, quando se con-
fundam, em eventuais atos, os patrimônios da sociedade da
pessoa jurídica e dos seus sócios.
Por sua vez, a teoria menor é menos exigente quanto aos
requisitos. Essa teoria, que vem sendo objeto de muita crítica na
doutrina, preconiza que a desconsideração pode ser aplicada
pela simples insolvência ou insolvabilidade da pessoa jurídica. Ou
seja, basta que a pessoa jurídica não tenha recursos ou não esteja
solvente ou solvável, para que ela possa ser desconsiderada e
assim atingidos os bens pessoais dos seus sócios.
O código civil, em seu artigo 50, adotando claramente a
teoria maior, permitiu a desconsideração no caso de abuso da
personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade,
ou pela confusão patrimonial.
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz
decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando
lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determi-
nadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particu-
lares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Já a lei 9.605 de 1998, em seu artigo 4º, que cuida de ma-
téria ambiental, fez opção pela teoria menor da desconsideração,
permitindo que esta ocorra sempre que a personalidade for obstá-
culo ao ressarcimento de prejuízos ao meio ambiente
“Artigo 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre
que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados à qualidade do meio ambiente.
Por sua vez, o código de Defesa do consumidor, em seu
artigo 28, e a Lei Anti-trust (Lei 8.884 de 1994) são parecidas, pois
trazem pressupostos tanto da teoria maior quanto da teoria me-
nor. Elas trouxeram hipóteses que nada tem haver com a teoria
da desconsideração, tal qual a prática de infração da Lei ou de
fato o ato ilícito, a violação dos estatutos ou contato social pelos
sócios, o que, por si só, nada tem haver com a desconsideração,
e já permitia, ainda no ordenamento anterior, a responsabilização
pessoal dos sócios.
“Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da so-
ciedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direi-
to, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada
quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inativi-
dade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
A jurisprudência falimentar, tributária e trabalhista, mesmo que
sem uma referencia legal específica nas suas áreas de atuação, tem
aplicado nos casos concretos a teoria da desconsideração.
PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. POSSI-
BILIDADE. PESSOAS FÍSICAS. ADMINISTRADORES NÃO-SÓ-
CIOS. GRUPO ECONÔMICO. DEMONSTRAÇÃO. DESCONSI-
DERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CITAÇÃO PRÉVIA.
DESNECESSIDADE. AÇÃO REVOCATÓRIA. DESNECESSIDADE.
1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidos em
torno de um propósito comum, promovem uma cadeia de ne-
gócios formalmente lícitos, mas com intuito substancial de
desviar patrimônio de empresa em situação pré-falimentar,
é necessário que o Poder Judiciário também inove sua atua-
ção, no intuito de encontrar meios eficazes de reverter as ma-
nobras lesivas, punindo e responsabilizando os envolvidos.
2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender os efei-
tos de sociedade falida a empresas coligadas na hipótese em
que, verificando claro conluio para prejudicar credores, há
transferência de bens para desvio patrimonial. Inexiste nulida-
de no exercício diferido do direito de defesa nessas hipóteses.
3. A extensão da falência a sociedades coligadas pode ser feita
independentemente da instauração de processo autônomo. A veri-
ficação da existência de coligação entre sociedades pode ser feita
com base em elementos fáticos que demonstrem a efetiva influên-
cia de um grupo societário nas decisões do outro, independente-
mente de se constatar a existência de participação no capital social.
4. O contador que presta serviços de administração à sociedade fa-
lida, assumindo a condição pessoal de administrador, pode ser sub-
metido ao decreto de extensão da quebra, independentemente de
ostentar a qualidade de sócio, notadamente nas hipóteses em que, es-
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tabelecido profissionalmente, presta tais serviços a diversas empre-
sas, desenvolvendo atividade intelectual com elemento de empresa.
5. Recurso especial conhecido, mas não provido.
(REsp 1266666/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TUR-
MA, julgado em 09/08/2011, DJe 25/08/2011).
Nela basta à existência do prejuízo ao credor e que a perso-
nalidade jurídica represente um obstáculo à satisfação da obriga-
ção, não havendo qualquer outro requisito objetivo ou subjetivo a
ser cumprido.
Há hipóteses em que o inadequado do uso do principio da
desconsideração constitui violação de garantias constitucionais,
tal como ultrapassar a pessoa do condenado.
A personalidade jurídica funciona como uma aptidão genérica
para que os entes empresariais possam contrair direitos e obrigações.
O empresário individual utiliza da personalidade de pessoa
natural para o exercício da atividade empresarial. Logo, os direitos
e obrigações contraídas por esse empresário podem se confundir
com os direitos pessoais. Sendo assim, seus bens particulares
podem responder por dívidas empresariais.
Na EIRELI e empresas de responsabilidade limitada, pesso-
as de direito privado, respondem aqueles patrimônios que somen-
te fazem parte da pessoa jurídica, ou seja, aqueles que correspon-
dem a elementos da atividade empresarial.
Esta denominação (limitada) visa proteger, blindar os bens
patrimoniais dos sócios para que não sejam atingidos ao que con-
cerne a satisfação de obrigações da empresa.
3.1 desconsIderAção InversA
A desconsideração envolve a superação da autonomia pa-
trimonial para que se possam atingir bens dos sócios. No entan-
to, a doutrina vem admitindo a aplicação de uma modalidade
de desconsideração chamada desconsideração inversa, que
permite o caminho justamente contrário. Ou seja, que os credo-
res sócios possam atingir, por dívidas desses mesmos sócios, o
patrimônio da sociedade.
Nesta hipótese o sócio utiliza da personalidade jurídica para
ocultar seu patrimônio pessoal – invertendo-se a regra tradicional.
Buscam-se na pessoa jurídica os bens pessoais do sócio, blinda-
dos pela existência da figura jurídica.
Pode-se verificar a admissão dessa teoria, tanto pela dou-
trina quanto pela jurisprudência, no direito de família. Ocor-
re quando um dos cônjuges, fraudulentamente, para evitar o
pagamento dessas obrigações, aliena o seu patrimônio para
a pessoa jurídica da qual ele é sócio. Nesses casos, a jurispru-
dência admite, efetivamente, que os credores possam executar
o patrimônio da pessoa jurídica da sociedade que, por fraude
do sócio, foi transferido a ela.
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO. AGRAVO. ESPÉCIE POR INSTRUMENTO.
EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA. BEM DE PROPRIE-
DADE DO CÔNJUGE. REGIME DE CASAMENTO. COMUNHÃO UNIVERSAL
DE BENS. ALIENAÇÃO JUDICIAL DE BENS DO CASAL. POSSIBILIDADE.
FIRMA INDIVIDUAL. COMERCIANTE INDIVIDUAL. RESPONSABILIDADE
ILIMITADA. PATRIMÔNIO. CONFUSÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSO-
NALIDADE JURÍDICA. DESNECESSIDADE. Recurso provido 1. Do regime
da comunhão universal de bens. Prevista no ordenamento jurídico à alie-
nação judicial de bens do casal para pagamento de dívidas de qualquer
dos cônjuges, desde que, após a liquidação, seja garantido, o quinhão
pertencente ao cônjuge prejudicado. 2. Da comunicabilidade do patri-
mônio - Firma Individual. A constituição da firma individual se dá apenas
para que a pessoa física possa exercer a atividade do comércio, sem,
contudo, gerar dúplice personalidade, isto porque, há uma confusão
entre a personalidade da empresa com a da pessoa física. Diante da
ausência de diferenciação entre ambas, o sócio individual responde ili-
mitadamente, não apenas com o patrimônio da empresa, como também
com os bens particulares.(TJ-PR - AI: 4408699 PR 0440869-9, Relator:
Jurandyr Souza Junior, Data de Julgamento: 28/11/2007, 15ª Câmara
Cível, Data de Publicação: DJ: 7507).
JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. RECLAMAÇÃO REGIMENTAL. EXECUÇÃO.
NOTAS PROMISSÓRIAS. DEFERIMENTO DE PEDIDO DE DESCONSI-
DERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA DE
BENS. ACERTO DO DECISUM. EVIDÊNCIA DE UTILIZAÇÃO DE PESSOA
JURÍDICA PARA OCULTAÇÃO OU DESVIO DE PATRIMÔNIO PESSOAL
PARA PREJUDICAR DIREITO DE TERCEIROS. ABUSO DA PERSONALI-
DADE JURÍDICA E DESVIO DE FINALIDADE. RECLAMAÇÃO CONHECI-
DA, MAS IMPROVIDA. 1. COM BASE NA PROVA DOS AUTOS, VERI-
FICA-SE A EXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS ESPECÍFICOS (ART. 50
DO CÓDIGO CIVIL, QUE TRATA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSO-
NALIDADE JURÍDICA PROPRIAMENTE DITA) PARA O DEFERIMENTO
DA MEDIDA, QUAIS SEJAM, ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA,
DESVIO DE FINALIDADE E/OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. 2. A DES-
CONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA PERMITE
ALCANÇAR BENS DO DEVEDOR QUE SE UTILIZA DE PESSOA JURÍ-
DICA PARA OCULTAR OU DESVIAR SEU PATRIMÔNIO PESSOAL, PRE-
JUDICANDO, DESSA FORMA, SEUS CREDORES. 3. OS ARGUMEN-
TOS TRAZIDOS PELO RECLAMANTE NÃO ENCONTRAM AMPARO NA
PROVA DOCUMENTAL. POR OUTRO LADO, A DECISÃO ATACADA ESTÁ
DEVIDAMENTE FUNDADA EM RAZÕES JURÍDICAS E EM PROVA DO-
CUMENTAL REUNIDA AOS AUTOS DO PROCESSO PRINCIPAL, RAZÃO
POR QUE DEVE SER INTEGRALMENTE MANTIDA. 4. RECLAMAÇÃO
CONHECIDA, MAS IMPROVIDA. DECISÃO LIMINAR REVOGADA. MA-
NUTENÇÃO DA PENHORA REALIZADA NA AÇÃO EXECUTIVA. 5. SEM
CUSTAS PROCESSUAIS NEM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. (TJ-DF
- DVJ: 20130020094277 DF 0009427-98.2013.8.07.0000, Relator:
DIVA LUCY DE FARIA PEREIRA, Data de Julgamento: 23/07/2013, 1ª
Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF,
Data de Publicação: Publicado no DJE : 25/07/2013 . Pág.: 239).
A teoria da desconsideração inversa, que tem por base a
autonomia patrimonial de uma pessoa jurídica, deixa de incenti-
var alguns empreendedores, posto que, processualmente, aquela
não equaciona a quem a desconsideração se refere, se seriam
aos controladores ou a todos. Portanto, aos empresários afasta-se
a segurança jurídica no que concerne a seus bens pessoais, vez
que estes poderão responder nas relações jurídicas em que os
bens servem como garantia para pagamento.
4 consIderAções fInAIs
Vale ressaltar a diferença da desconsideração inversa da
desconsideração indireta, já que esta ocorre entre sociedades
controladas e controladoras. Nesta figura levanta-se o obstácu-
lo da sociedade controlada para atingir a sociedade controla-
dora, que usa da primeira para a prática de atos fraudulentos
ou abusivos.
No direito brasileiro o magistrado tem atacado os bens
dos sócios afastando seu direito de defesa, usando como re-
quisito a desconsideração, sem a necessidade de ação autô-
noma, para expropriar bens particulares. O novo código traz
a previsão de que a parte demonstre aos autos que não fora
efetuada tal gestão temerária.
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 46
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GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 1 - parte geral. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstituindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. 1ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica (Disregard Doctrine). Revista dos Tribunais, Volume 410, 1969.
ROSENVALD, Nelson. FARIAS, cristiano chaves de. Direito Civil: Teoria Ge-ral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. 10ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 47
constitucionalismo e estado moderno: breves considerações sobre o estado plurinacional na bolÍvia e equador
reinaldo silva pimentel santos1
daniela reccHioni barroso2
RESUMO: O presente artigo busca analisar a experiência observada no Equador e na Bolívia, sendo apresentada como Estado Plurinacional. Para tanto, parte-se
da análise do conceito de democracia, verificando a necessidade de superação da concepção democrática representativa para a democracia participativa.
Ainda, observa-se o papel desenvolvido pelo constitucionalismo e seu embate essencial com a democracia. Nesse universo, verificar-se-á a concepção de
ideologia, além de sua utilização perante a formação dos estados nacionais ou modernos. Conclui-se que o estado plurinacional – conforme observado no
Equador e na Bolívia – reflete uma nova concepção de participação social, desconstruindo a imposição de identidade e nacionalidade anteriormente observadas.
Essa maior participação remete a um sentimento de pertencimento do indivíduo que, ante o exposto, retoma o espaço público.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia, Constitucionalismo, Plurinacionalidade.
ABSTRACT: This article intents to show the experience lived in Ecuador and Bolivia, like “Multinational State”. Therefore, it starts from the analysis of the concept
of democracy, verifying the need to overcome the design representative democracy to participatory democracy. Still, there is the role played by constitutionalism
and its clash essential to democracy. In this universe, there would be the conception of ideology, beyond its use in formation of national states or modern. We
conclude that the multinational state – as noted in Ecuador and Bolivia – reflects a new conception of social participation, deconstructing the imposition of
identity and nationality previously observed. This increased participation leads to a feeling of belonging of the individual, compared to the above, takes over
public space.
KEYWORDS: Democracy, Constitutionalism, “Multinational State”.
SUMÁRIO: 1Democracia, Constitucionalismo e Formação do Estado Moderno; 1.1 Revisitando o Conceito de Democracia; 1.2 O Papel do Constitucionalismo
e a Formação do Estado Moderno; 2 Ideologia e Formação dos Estados Nacionais; 2.1 Ideologia – Breves Considerações; 2.2. A Ideologia na Formação dos
Estados Nacionais; 3 O Estado Plurinacional; 3.1. Novas Perspectivas e Plurinacionalidade; 4 Considerações Finais.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional
1 democrAcIA, constItucIonALIsmo e formAção
do estAdo moderno
1.1 revisitando o conceito de democracia
O conceito de democracia sofreu significativas modificações
desde o seu surgimento na Grécia Antiga. Etimologicamente, o
termo advém de ‘demos’, povo, e ‘kratos’, poder, ou seja, poder
do povo. Entretanto, a democracia contemporânea não possui o
mesmo significado que aquele presente na Grécia Antiga.
Em Atenas, no século V a.c., quando se consolidou no go-
verno de Péricles a democracia era direta e possuía como prin-
cípio maior a igualdade. Essa era essencialmente política, sem
se estender à igualdade social ou econômica, por não serem
conceitos existentes naquela época. Por ser política, a isonomia -
igualdade perante a lei - e a isegoria - igualdade de fala - eram de
extrema importância para o exercício democrático. Os cidadãos
atenienses (homens livres e com idade superior a 20 anos) se reu-
niam na ágora para decidir sobre as questões da polis, debatendo
diretamente sobre as melhores escolhas para a sua coletividade.
Ressalta Bobbio (1998) que a mudança no conceito do ter-
mo democracia não se dá relativamente à modificação de quem é
considerado titular da soberania política, posto que este sempre
será o povo, mas sim na forma como se constitui tal democracia.
A democracia em sua concepção contemporânea se demonstra
muito mais ampla e subjetiva do que a democracia grega, pois
além de não excluir seu significado anterior, agrega a ele outras
idéias que se tornam relevantes na modernidade.
conforme Maria cristina Seixas Vilani “somos diferentes dos
antigos porque nossa democracia assenta-se em premissas e valo-
res que a política grega desconhecia” (2000, p.20). Tem-se na mo-
dernidade uma democracia representativa, muito mais complexa
que a grega devido às condições atuais dos Estados modernos. A
contemporaneidade traz consigo a idéia de um Estado constitucio-
nal, juntamente com a soberania dos povos e respeito às minorias.
O poder popular, para o moderno, não é concebido como o direito
do governo e sim como direito de autorizar o governo e de impedir
o arbítrio do governante. Nas palavras de Matteucci, a democracia,
como nós a conhecemos, consiste em um ‘complexo processo de
formação da vontade política que partindo dos cidadãos, passa pe-
los partidos e pela assembléia e culminada na ação do Governo,
limitada pela lei constitucional (VILANI, 2000, p.24)
Não obstante, cumpre a democracia representativa passar
por diversas mudanças para que possa transcender a teoria e efe-
tivar de fato seu conceito atual. Na prática percebe-se o que a de-
mocracia esconde, havendo um jogo de poder econômico, em que
não é a vontade do povo que se faz, mas a vontade dos próprios re-
presentantes. Nesse sentido, nos aponta Maressa da Silva Miranda:
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 48
o simples direito de voto, ou a mudança periódica de governantes,
por si só, não representa a democracia. O discurso democrático
pregado pelos Estados ocidentais serve apenas de fachada para
esconder o real poder que prevalece nestas sociedades: o poder
econômico. (MIRANDA, 2010, p. 11)
O problema da representatividade ganha novos traços quando
a concepção de participação é colocada. Trata-se da inserção da so-
ciedade civil organizada, não mais aceitando a idéia de representa-
da, mas buscando efetivamente o diálogo e execução dos interesses
da coletividade. Assim como o modelo democrático observado na
Grécia antiga é inaceitável para a democracia moderna, a concepção
representativa vêm demonstrando sua incapacidade, sendo que a
concepção participativa surge como nova possibilidade. Nesse sen-
tido, conforme apresentado por MAGALHÃES (2002, p.163)
Hoje, com a necessária inserção da idéia de participação (democra-
cia participativa) como elemento essencial para que a democracia
representativa seja efetivamente democrática, não podemos aceitar
a idéia de que os representantes atuem em seu próprio nome, ig-
norando a vontade do povo. (...) Diante de uma sociedade cada vez
mais complexa, podemos dizer que a democracia representativa
irá cumprir um papel importante no processo democrático, que é
o de, principalmente, dar transparência, visibilidade, aos grandes
debates, aos grandes temas nacionais e globais, permitindo que
a sociedade organizada atue de forma democrática nos meios de
comunicação social, nas ruas, nos sindicatos, enfim, podemos di-
zer que o elemento mais democrático desse processo é o povo nas
ruas (MAGALHÃES, 2002, p. 163)
1.2 o papel do constitucionalismo e a formação do estado moderno
Realizada as devidas considerações sobre a democracia e
a necessidade de superação de sua concepção essencialmente
representativa, cumpre observar o papel do constitucionalismo.
Esse nasce com um viés liberal e não democrático, em 1211 com
a elaboração da Magna carta inglesa. Surge para limitar o poder
do Estado e garantir os direitos à propriedade, segurança e priva-
cidade. Apenas no século xVIII, com a Revolução Francesa, que
a constituição passou a representar parte da vontade soberana
do povo. com o passar do tempo as constituições passaram a
proteger direitos sociais e econômicos, além dos direitos civis e
políticos já contemplados. Nesse sentido e utilizando-se do exem-
plo do voto para demonstrar a evolução de textos constitucionais,
aponta MAGALHÃES (2009)
A fusão entre democracia e constituição ocorreu apenas na segun-
da metade do século XIX, quando então, por força dos movimentos
operários e dos partidos de esquerda conquistou-se primeiramente
o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo, gradual-
mente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o
fim da discriminação de gênero. (MAGALHÃES, 2009)
Juntamente com a concepção de evolução do constitucio-
nalismo, cumpre observar as diversas divergências quanto o po-
der constituinte ao definir sua natureza, amplitude e titularidade.
Quanto à sua natureza a questão se refere ao Poder constituinte
ser um poder de Direito ou ser um poder de fato. Em relação à sua
amplitude, alguns autores defendem que o Poder constituinte se
limita a criação originária do Direito e outros o percebem com algo
mais amplo, com uma criação derivada do Direito por meio da re-
forma do texto constitucional. No que tange à titularidade, Sieyès
defende que o Poder constituinte é produto da vontade da nação,
e outros autores consideram-no fruto da soberania do povo.
Apesar dos conceitos ‘democracia’ e constitucionalismo’ se-
rem apresentados hoje com indiscutível proximidade, é possível
observar-se uma tensão entre ambos, uma vez que este pressu-
põe segurança e estabilidade, enquanto aquela enseja a mudança,
evolução e pretensão de transformar a sociedade constantemente.
Ainda assim, o constitucionalismo possui papel essencial para a
democracia, uma vez que limita a arbitrariedade do Estado e garan-
te que o direito das minorias não seja desrespeitado. Dessa forma
Esta fusão entre democracia e constituição ocorreu trouxe a impor-
tante noção de ‘democracia com segurança’ que se transformou
com o tempo na idéia de que a vontade da maioria tem limites de
decisão, estabelecidos na obrigatoriedade de respeitar os direitos
das minorias e no núcleo duro de qualquer constituição: os direitos
fundamentais” (MAGALHÃES, 2009)
Ora, bem é sabido que a democracia enseja mudanças. As
concepções apresentadas pelo titular do poder constituinte em um
determinado momento histórico serão reconstruídas, adotando no-
vas perspectivas e sentidos. Entretanto tais mudanças não podem
ultrapassar limites previamente estabelecidos, limites esses apresen-
tados como os direitos fundamentais. Nesse universo, observa-se a
importância que o constitucionalismo adquire. Dessa forma, perce-
be-se a importância da tensão observada por José Luiz Quadros de
Magalhães (2009) entre a democracia e o constitucionalismo. Pode-
se afirmar que a super-expressão do constitucionalismo significaria a
desconsideração das evoluções do grupamento social, enquanto a
super-expressão da democracia ensejaria uma ditadura da maioria.
Nesse universo, cumpre verificar o advento da formação do
Estado Moderno, sua ligação com a democracia e o constituciona-
lismo. Este surge na forma de Estado Nacional, devido à decadência
do feudalismo e a necessidade de restabelecer a ordem da Europa
no século xV. à época, a burguesia buscava a unificação de moedas
como mecanismo facilitador das transações comerciais que vinham
reaparecendo. Não só, os senhores feudais queriam a proteção dos
reis contra os camponeses que começavam a se revoltar.
Para o sucesso desse empreendimento, o rei não podia ter
nenhum vínculo com as etnias presentes no território que seria
futuramente o Estado Nacional. Deveria ser criado um meio de
uniformização capaz de satisfazer a maioria das etnias pré-exis-
tentes e que pudesse expulsar os que não fossem semelhantes
o bastante. Assim,
a tarefa de construção do Estado Nacional (do Estado Moderno)
dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras,
da imposição de valores comuns que deveriam se compartilhados
pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para
que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano.
(MAGALHÃES, 2009)
Se na Europa a formação do Estado Nacional se deu com a
invenção de uma nacionalidade, na América Latina esse processo
ocorreu de forma diferente. No decorrer do século xIx, com as
lutas de independência surgem os Estados Modernos na América
Latina. Em sua maioria, estes Estados foram constituídos por uma
pequena parte da população, descendentes de europeus.
Devido a esta formação do Estado Moderno na América La-
tina, sem que houvesse nenhum tipo de interação com a cultu-
ra pré-existente no continente ou com a cultura dos imigrantes
forçados; não se permitiu que a identidade destes povos fosse
incluída no conceito de nacionalidade criado. Os povos nativos
foram totalmente excluídos do processo de construção da nação
latino-americana. Em outras palavras,
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em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indíge-
nas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados
africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de na-
cionalidade. O direito não era para as maiorias, a nacionalidade não
era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e
africanos se sentissem nacionais. (MAGALHÃES, 2009)
Em grande parte, o sentimento de pertencimento, de naciona-
lidade será de grande importância para o Estado Moderno. A au-
sência de participação nos espaços públicos pode ser apresentada
como conseqüência da inexistência do sentimento de nacionalidade.
Não só, a ausência do sentimento de pertencimento, de nacionalida-
de e conseqüente inexistência de participação nos espaços públicos
passa a ser importante instrumento na manutenção do status quo.
conforme apresentado, na América Latina nunca interessou as
elites européias que os povos originários e escravos africanos sen-
tissem como parte dos novos estados. caso contrário, esses que
aproximavam de 80% da população iriam questionar as estruturas de
poder, retirando o poder da elite européia. como forma de exclusão
desses povos originários e escravos africanos, cumpre analisar a for-
mação da ideologia e suas conseqüências para o Estado Nacional.
2 IdeoLogIA e formAção dos estAdos nAcIonAIs
2.1 Ideologia – breves considerações
Seguindo a concepção de Karl Marx (1988) ideologia é o
conjunto de idéias, crenças, conceitos e valores que um grupo
impõe a outro a fim de dominá-lo. Segundo Marx, é o masca-
ramento da realidade, da verdade através da universalização de
interesses particulares de um determinado grupo. Dessa forma,
os indivíduos sob a ação da ideologia não percebem que estão
sendo oprimidos, determinados e limitados, por estarem vivendo
uma fantasia, e não a realidade.
Trata-se de um véu espesso que encobre e distorce a reali-
dade, condicionando as pessoas a verem as coisas de uma ma-
neira única e pré-determinada. Ou seja, a ideologia é uma forma
de interpretar o mundo por meio da criação de esteriótipos e pré-
conceitos, que são considerados dogmas, verdades absolutas,
impossíveis de modificação.
A linguagem é um instrumento ideológico, uma vez que as
palavras, segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, são me-
ras invenções, que não dão um significado, mas impõe interpre-
tações. A linguagem
É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade,
mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira; a
linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo
miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, sim-
bolicamente ou conceitualmente. (CHAUÍ, 1998, p. 190)
A alienação, outro conceito de Marx , é consequência da
ideologia. Alienação é o aprisionamento do pensamento de mui-
tos às idéias de outros poucos. Uma vez alienados, os indivíduos
passam a raciocionar e agir conforme a vontade do grupo do-
minante. Os indivíduos não se reconhecem como os criadores
da sociedade, da história, da cultura e da política. creem que as
instituições sociais e políticas são obra da Natureza, da Razão ou
de Deus. Ademais, submetem-se às condições sociais, políticas
e culturais de sua sociedade por não poderem controlá-las ou
alterá-las. Destarte, por estarem condicionadas e moldadas pela
sociedade, as pessoas consideram-se seres livres, possuidores
de livre-arbítrio, e não percebem a opressão.
Em outras palavras,
a alienação se exprime numa ‘teoria’ do conhecimento espontânea,
formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são
imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é
diretamente percebida e vivida. (CHAUÍ, 1998, p. 220)
Assim, a ideologia, por meio da alienação, determina a men-
talidade do ser humano. Devido à esse caráter determinista, a ide-
ologia se contradiz com o Existencialismo. Essa corrente filosófica
sustenta que o homem é um ser existente, sendo a existência uma
auto-determinação consciente e livre. Ou seja, o indivíduo decide ser
e é responsável pelos seus atos, não havendo espaço para escusas.
Além disso, não há verdades a priori, uma vez que o homem não
é pré-definido. Isso significa que os existencialistas são contrários à
ideologia, pois não acreditam que a essência precede a existência.
A idéia de ideologia também é combatida pela Escola de
Frankfurt. A filosofia dessa escola acredita que a razão filosófica,
de caráter crítico, foi convertida, ou melhor, pervertida pelo Ilumi-
nismo em razão instrumental. O movimento iluminista, de concep-
ções capitalistas, criou o mito do progresso linear ilimitado, que só
poderia ser conquistado com a dominação da natureza.
Destarte, a razão se tornou doente e viciada, por se colo-
car a serviço da destruição do meio ambiente, além de tornar os
homens instrumentos dos próprios homens. Graças à ideologia
econômica e política da época, a razão mascarou a realidade des-
trutiva do progresso iluminista e deixou de refletir sobre ela mes-
ma – fato este que é uma exigência clássica da filosofia. Por causa
disso é afirmado que “o Iluminismo incinerou os últimos restos de sua própria consciência de si.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985)
Outra crítica da Escola de Frankfurt refere-se à indústria cul-
tural. cúmplice da ideologia capitalista, essa “indústria” massifica
a cultura, distribuindo imagens e necessidades artificiais que tor-
nam os indivíduos em simples consumidores. com isso, há uma
falsificação das relações sociais, além de que os homens não de-
senvolvem suas consciências devido à alienação.
A sociedade impõe necessidades e sonhos aos indivídu-
os, apesar de não precisarem deles. Herbert Marcuse considera
como falsas essas necessidades.
A maior parte das necessidades que hoje prevalecem, a necessi-
dade de relaxar, de se divertir, de se comportar e de se consumir
de acordo com os anúncios publicitários, de amar e de odiar aquilo
que outros amam e odeiam, pertencem a esta categoria de falsas
necessidades. (MARCUSE, 1967, p.75)
Marcuse acredita, assim, que o homem é voltado somente
para consumir e seguir a ideologia capitalista.
Nesse sentido observa-se como a ideologia desenvolve im-
portante papel para a sociedade, tornando os indivíduos fanto-
ches e seguidores das concepções de um pequeno grupo. cum-
pre verificar a utilização da ideologia – conforme anteriormente
analisado – para a formação dos Estados Nacionais ou Modernos.
2.2. A ideologia na formação dos estados nacionais
conforme anteriormente apresentado, o Estado nacional surgiu
na Europa do século xV. O rei unificou o poder interno, antes detido
pelos senhores feudais, e, assim, afirmou sua supremacia perante a
Igreja católica e os impérios. Entretanto, não bastou apenas concen-
trar o poder para formar o Estado; o rei também teve de se ligar a
todos os diferentes grupos étnicos e impor valores culturais comuns
a eles. Ou seja, o rei criou uma identidade nacional para unir os povos
e fazer com que eles o reconhecessem e legitimassem seu poder.
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Para a criação dessa identidade nacional fez-se necessá-
ria a escolha de um inimigo em comum a todos as etnias. como
exemplo, pode-se citar o caso da Espanha, que, durante a sua
formação, elegeu os mouros como rivais de toda a nação. Porém,
havia também outro componente dessa nacionalidade: a religião.
A escolha de uma única religião para todo o Estado, além do ini-
migo, serviu para unir todas as etnias e foi usada como pretexto
para expulsar os indesejáveis, isto é, os que não se encaixavam
nos valores culturais nacionais.
Nota-se que a identidade nacional não passa de uma ideo-
logia que foi utilizada como uma das bases para a formação do
Estado nacional. Este impôs valores e conceitos aos indivíduos,
sem respeitar as diferenças culturais de cada etnia. Em outras pa-
lavras, houve a massificação da cultura e a alienação dos indiví-
duos para uni-los a partir de um sentimento de nacionalidade em
favor somente do rei. conforme apresenta MAGALHÃES
A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente rela-
cionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diver-
sidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno
nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de
intolerância para sua afirmação. (MAGALHÃES, 2009)
Na América Latina, o discurso ideológico também foi empre-
gado na criação dos Estados, mas de maneira diferente da ocorri-
da na Europa. Neste continente, o Estado era voltado para todos
aqueles que seguissem o padrão cultural e religioso imposto pelo
rei. contudo, os Estados latino-americanos foram feitos para a mi-
noria elitista, não reconhecendo os milhões de negros e indígenas
como membros do povo nacional. E isso foi realizado através da
própria constituição, que positivava os valores da minoria e os
colocavam como os únicos existentes na sociedade, excluindo a
tradição e a moral dos grupos étnicos oprimidos.
A constituição, portanto, foi usada como um instrumento de
implementação da ideologia elitista, que via os indígenas como infe-
riores. Encobria-se, dessa forma, uma realidade marcada pelas desi-
gualdades sociais e pela exclusão dos povos originários da tutela do
Direito interno. conforme Slavoj Zizek (1992), a lei só funcionaria na
medida que os subordinados fossem enganados, entendendo sua
autoridade como autêntica e eterna e, desconhecendo a usurpação.
Além disso, as constituições contemporâneas – essencialmen-
te liberais - prevêm direitos humanos e fundamentais, mas que na
maioria das vezes são meramente simbólicos. A ideologia dos direi-
tos fundamentais refere-se à falsa visão que tais direitos são univer-
sais e estão sendo cumpridos e respeitados por todas as nações.
A ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos
todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e cultu-
rais. No entanto, sabemos que isso não acontece de fato: as crian-
ças de rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os direitos
culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das
crianças que estão em escolas particulares, pois o ensino não é de
mesma qualidade em ambas; os negros e índios são discriminados
como inferiores; os homossexuais são perseguidos como perverti-
dos, etc. (CHAUÍ, 1998, p. 221)
A ideologia liberal e capitalista coloca os interesses parti-
culares e o poder financeiro acima do bem coletivo e de qual-
quer direito. Ademais, esse simbolismo dos direitos humanos
abre espaço para a manipulação política, além do fato de que
“a sociedade, pode perder a confiança no sistema jurídico e
cair em uma inércia que impedirá a obstruirá, em parte, a evo-
lução dos direitos.” (MAGALHÃES, REIS, 2009)
cumpre salientar que a ideologia se fez presente não ape-
nas na criação do Estado nacional, mas também contribuiu no
surgimento e desenvolvimento dos Estados totalitários, como
ocorreu na Alemanha nazista, na Itália fascista e na União Soviéti-
ca stalinista. O Totalitarismo pode ser apresentado como governo
de uma só idéia. Isso significa que o Estado cria uma ideologia
oficial que busca a uniformidade e a unanimidade. Os cidadãos,
portanto, passam a ser considerados massa, onde todos são
iguais física e mentalmente. Para manter essa unidade, cria-se um
ambiente generalizado de fiscalização e delação, onde não há es-
paço para diferenças e particularidades.
A ideologia totalitária deve ter a adesão da maioria, para que
ela possa efetivamente destruir a autonomia, a identidade e a cons-
ciência dos indivíduos, impedindo que estes descubram as contra-
dições do regime e se rebelem contra ele. Utilizando a propaganda
como instrumento ideológico, o Totalitarismo exalta o regime, cul-
tua o Líder e prega a destruição do inimigo do Estado (no caso da
Alemanha nazista, o inimigo a ser combatido eram os judeus):
Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos
atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movi-
mentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e
inalterável de cada membro individual. Essa lealdade total é a base
psicológica do domínio total. (ARENDT, 1989, p. 414)
Essa atomização do indivíduo e a lealdade dele para com o
regime é fruto da ideologia. A imposição de valores, conceitos e
crenças pelo movimento totalitário é necessária, pois, assim, o To-
talitarismo pode reprimir qualquer tipo de manifestação intelectual
contrária às concepções do regime e conseguir a dominação total.
De acordo com Hannah Arendt (1989) as chamadas mentiras ide-
ológicas são modificadas e converidades em mentiras concretas e
de natureza universal. Essas irão exigir crença absoluta, criando um
sistema formado por provas científicas que convencerá os leigos.
conclui-se que a ideologia foi indispensável para a formação
dos Estados. Provavelmente, sem a sua produção não haveria
uma união dos grupos étnicos nem o sentimento de nacionalida-
de e de pátria. Todavia, a ideologia é um instrumento poderoso,
de grande influência, que conseguiu causar relevantes transfor-
mações sociais e históricas.
Será no Estado Plurinacional que observar-se-á a reconstru-
ção da verdadeira identidade nacional, onde o elemento unifica-
dor não reside no idioma utilizado ou na religião praticada pela
maioria. Para tanto, verificar-se-á a experiência em dois países da
América Latina que vêm reconstruíndo a concepção de nacionali-
dade e identidade de seus cidadãos.
3 o estAdo pLurInAcIonAL
3.1. novas perspectivas e plurinacionalidade
São observados na América Latina durante o século xx,
significativas mudanças relativas a condição social dos indiví-
duos. como supramencionado no item 1.3, o Estado Moderno
impediu os povos originários e escravos de terem acesso a di-
reitos básicos e fundamentais, fazendo-se necessário a criação
de um novo Estado ou a reconstrução do antigo, que pudesse
reduzir a desigualdade social e suprir as necessidades destes.
Essa nova possibilidade vem sendo tratada como Estado Pluri-nacional e observado na Bolívia e Equador.
O Estado Plurinacional superou a uniformidade e intolerân-
cia impostas pelo Estado Nacional, afastou a idéia de “museifica-
ção” (como exemplo, a idéia de que os índios são ‘intocáveis’ e
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devem ser considerados como peças de museus, por serem mais
frágeis, e assim, isolados), fazendo com que houvesse liberdade
de credo e não mais alienação e aculturação dos povos, decor-
rentes da uniformização dos sistemas econômico e civil.
Além disso, trouxe novas perspectivas, dentre elas uma
nova forma de se constituir a família e o sistema econômico e
o reconhecimento da democracia participativa. Além de haver a
aceitação dessas culturas, principalmente indígenas, tido antes
como inferiores. conforme apresentado por MAGALHÃES (2009):
Este Estado rompe com o paradigma de 500 anos de Estado Nacio-
nal permitindo que cada grupo étnico preserve seu próprio direito
de família e de propriedade e tribunais próprios para resolver os
conflitos nestes âmbitos, criando um espaço de diálogo democrá-
tico onde as partes comparecem em condição de igualdade para
construir uma agenda comum de Direitos Humanos.
O significado principal do Estado Plurinacional encontra-se
no multiculturalismo. Em um mesmo espaço podem ser consi-
deradas diferentes concepções de direito, moral ou ética. Nessa
realidade, perante o direito, o Estado Plurinacional propõe-se a
reconstruir o direito de família e o direito de propriedade. Ante a
possibilidade de convivência - conforme apresentando por José
Luiz Quadros de Magalhães – o direito de família e o direito de pro-
priedade não mais pode ser utilizado como forma de imposição a
uma determinada coletividade. Em diferentes esferas de poder,
os grupamentos sociais partirão a identificar seus elementos de
contato, sendo plenamente legítimas suas decisões.
como exemplo, cumpre observar a realidade na Bolívia e
no Equador. Na constituição da Bolívia, após a sua aprovação,
os povos originários passaram a ter uma maior participação na
política e na economia. com isso, houve a criação de uma cota
para parlamentares indígenas, que passaram a ter direitos que
antes estavam longe de serem alcançados, como citado ante-
riormente. Foi estabelecido um nível de equidade entre as duas
justiças do país: a tradicional indígena e a ordinária. Não só, me-
rece destaque o fato de que “cada comunidade indígena poderá ter seu próprio ‘tribunal’, com juízes eleitos entre os moradores”.
(MAGALHÃES, 2009), além de ser prevista a criação de um Tribu-
nal constitucional Plurinacional. Não só, reconhece as diversas
formas da constituição familiar. Nesse universo, conforme apre-
sentado por ALMEIDA (sem data, p. 19-20)
Em contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la es-
pecificidad étnica no fracciona la unidad de las fuerzas democrá-
ticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario,
mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferen-
tes grupos, más firme será la resistência al imperialismo bajo cal-
quiera de sus formas (genocídio, imposición política, religiosa o
cultural) y, sobre todo, la explotación econômica.
é interessante ressaltar a realidade na Bolívia anterior ao
movimento de plurinacionalidade aqui discutido. As crises fiscais
motivadas pelas privatizações deixavam o país dependente e com
uma considerável dívida externa. Não só observava-se a crise de
representação, na qual os partidos eleitorais tinham poucas dife-
renças em suas propostas e defendiam basicamente a mesma
classe social (prioritariamente a elite). Há, também, crise de legi-
timidade, fato que assola não só a Bolívia, mas também a Amé-
rica Latina como um todo, que significa que os partidos, por não
representarem igualmente todas as classes, vêm sofrendo uma
série de críticas acerca da corrupção. Isso fez com que houves-
se diversos conflitos em defesa da Assembléia constituinte e da
nacionalização. No último elemento de crise, pode-se explicitar a
crise de correspondência, que trata da não correspondência entre
o Estado boliviano, seus poderes e políticas e os povos que foram
marginalizados nos tempos de Estado Liberal. Esse é o ponto de
crise que mais vem tendo repercussão e mais merece a atenção.
A solução para esses pontos de crise encontra-se na re-
composição, ou seja, uma reforma severa entre os aspectos que
não correspondem ao modelo Boliviano, entre eles a diversidade
cultural. é aí que encontra, então, a idéia de Estado Plurinacional
na Bolívia. Porque, por um lado, a Bolívia apresenta as chamadas
nações comunitárias, ou seja, os assuntos de caráter político e
econômico são resolvidos de forma comunitária.
Lo que está en juego en Bolivia es si se reconoce y organiza una
plurinacionalidad que consista exclusivamente en autonomías, es
decir, la diversidad separada, o si se organiza una pluriculturalidad
que comparta las mismas instituciones de autogobierno en todos los
territórios y sobre todo en lo que hace a la articulación y dirección
conjunta del país, y que a su vez respete la autodeterminación de los
pueblos y culturas. Las tendencias recientes que tienen representa-
ción en la asamblea parecen dirigirse a una plurinacionalidad por la
vía de las autonomías departamentales e indígenas. (TAPIA, 2007)
A nova constituição boliviana foi aprovada e apresenta como
seu artigo 1° como um estado unitário, social, de direito, plurina-
cional, comunitário, livre, autonômico e descentralizado, indepen-
dente, soberano, democrático e intercultural.
Não só, a realidade equatoriana também deve ser observa-
da. Sua constituição desenvolve a idéia de aceitação da diver-
sidade cultural, construindo a concepção de constitucionalismo
plurinacional – baseada na diversidade cultural. Essencialmente,
na realidade equatoriana observa-se a realidade de um estado in-
tercultural e plurinacional. Será na ampliação dos direitos dos po-
vos originários que será verificado o caráter inovador equatoriano.
Nesse sentido, apresenta ALMEIDA
Al funcionar el Estado como representación de una nación única
cumple también su papel em el plano ideológico.La privación de de-
rechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al des-
conocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte
al indígena en vitima del racismo. La ideología de la discriminación,
aunque no es oficial, de hecho esta generalizada en los diferentes
estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su
identidad y pasar a formar filas de la nación ecuatoriana aunque,
por lo general, en su sectores más explotados. (ALMEIDA, sem
data, p. 19-20)
A nova constituição do Equador estabelece em seu artigo:
1°.- O Equador é um Estado constitucional das leis e da justiça,
que é social, democrático, soberano, independente, singular, inter-
cultural, plurinacional e secular. Soberania pertence ao povo, cuja
vontade é a base da autoridade que é exercida através dos órgãos
do poder público e através das formas de participação direta pre-
vistos na Constituição.
4 consIderAções fInAIs
Buscou o presente artigo analisar as recentes experiências
observadas na Bolívia e no Equador – sendo chamados de Es-
tados Plurinacionais. Partiu-se, inicialmente de um conceito de
democracia, verificando suas alterações históricas. Se na Grécia
antiga observava-se uma democracia essencialmente direta, o
advento da modernidade demonstrou a impossibilidade de uti-
lização desse mesmo modelo. Para tanto, foi adotado a noção
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de democracia representativa, onde um determinado grupamen-
to social escolhia um indivíduo que representaria o interesses da
coletividade. Ora, restou devidamente demonstrado a falência da
democracia representativa na contemporaneidade. Nesse univer-
so, faz-se necessário a adoção de novas perspectivas, como por
exemplo, a democracia participativa.
Tal conceito, deve ser observado juntamente com a concep-
ção de constitucionalismo e com a formação dos estados moder-
nos. Percebe-se o embate existente entre a democracia e o cons-
titucionalismo. Se, em um pólo, a democracia remete a mudanças
e evoluções, o constitucionalismo aponta para a segurança e ma-
nutenção jurídica. cumpre ressaltar que o embate existente entre
os dois institutos não significa a impossibilidade de co-existência,
e sim a necessidade de mediação entre ambos.
A formação do estado moderno deve ser claramente anali-
sada perante a concepção de democracia, constitucionalismo e
ideologia. Seguindo a concepção adotada por Marx e reformulada
por Zizek, a ideologia aponta como instrumento da dominação de
uma coletividade, como forma de encobrimento do real. Ora, a
ideologia terá importante papel na formação do estado moderno.
Será através desse encobrimento que será construído a concep-
ção de nacionalidade e identidade. Face o interesse de um deter-
minado grupo, serão criadas novas concepções de identidade co-
letiva – identidades essas essencialmente falsas – onde o sujeito
não participa de sua construção.
Na América Latina a criação dessa identidade e nacionalis-
mo seguiu diferente ótica da Europa. Nunca houve o interesse que
os povos originários e descendentes de escravos participassem
do ideário coletivo. Se, na Europa, foi criado uma concepção de
identidade onde apenas o mais diferente seria expulso; na Améri-
ca a identidade faria referência apenas a classe dominante e euro-
péia. E, o afastamento desses povos originários e descendentes
de africanos resultou em um esvaziamento e abandono da coisa e
espaço público por grande parte da população.
Ante tal realidade, novas perspectivas vem sendo observa-
das na América Latina. Bolívia e Equador em suas recentes refor-
mas constitucionais verificaram a necessidade de recomporem o
espaço público com toda a população – seja ela européia, origi-
nária ou descendente de africanos. A crise da representatividade
– comumente observada na América Latina – foi desconstruída
nos citados países. O chamado Estado Plurinacional vem apre-
sentando interessantes resultados, sob uma nova concepção de
participação e soberania. Nessa realidade, o ente Estado admite
a co-existência de diferentes formas do direito de família e de pro-
priedade. cada grupamento social é plenamente capaz de cons-
truir acordos e consensos, sendo que, cabe ao estado reafirmar a
validade desses acordos, decisões e consensos.
Por fim, a experiência do Estado Plurinacional vem demons-
trando uma retomada dos espaços públicos por grupamentos
sociais que jamais foram considerados verdadeiros sujeitos de
direito. A construção de verdadeiras identidades nacionais, não
impostas e sim discutidas, enseja a reconstrução do ente estado
sob novas perspectivas, essencialmente democráticas.
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notAs de fIm1 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade católica de Minas Gerais. Email: [email protected]
2 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade católica de Minas Gerais. Email:[email protected]
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as violações à lei 11.788/2008 durante o internato médico
débora caroline pereira da silva1
erenÍfia ágata saraiva nunes2
RESUMO: Embora as disposições acerca da celebração de contratos de estágio não sejam regidas, a princípio, pelo Direito do Trabalho, a desobediência aos
comandos legais sobre a matéria podem espraiar efeitos na esfera justrabalhista, cível e criminal. Por esta razão, o presente artigo tem por escopo primevo
abordar as violações à Lei do Estágio (11.788/2008) tão recorrentes durante o período de internato dos cursos de medicina, e analisar as consequências
jurídicas que tais violações podem acarretar, seja para o acadêmico, seja para o médico que tem o dever legal de supervisionar diretamente o estagiário. Para
tais fins, serão utilizadas doutrinas, jurisprudência e a legislação em vigor pertinente às circunstâncias de estágio obrigatório, em especial relativas e aplicáveis
aos acadêmicos do curso médico.
PALAVRAS-CHAVE: Lei do Estágio. Estágio Obrigatório. Internato Médico. Violações e Abusos à Lei do Estágio.
ABSTRACT: Although the provisions on the conclusion of the internship contract is not governed at first by the Labour Law, disobedience to legal commands
on the subject can generate effects in labor, civil and criminal. For this reason, this paper’s main objective is to address the violations of the Law Internship
(11.788/2008) as applicants during the boarding of medical courses, and analyze the legal consequences of such violations may lead either to the academic
either for the doctor who has a legal duty to directly supervise the intern. For such purposes, doctrines, jurisprudence and legislation in force relevant to the
circumstances of compulsory internship, especially regarding academic and applicable to the medical course will be used.
KEYWORDS: Law Internship. Required stage. Medical internship. Abuses and Violations of the Law Internship.
ÁREA DE INTERESSE: Direito Privado com ênfase em Direito do Trabalho.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve Distinção entre Contrato de Trabalho e Contrato de Estágio. 3. Abordagem Geral da Lei N. 11.788/2008 e das Normas do
Estágio Obrigatório. 4. Aspectos Gerais do Internato Médico. 5. As Violações à Lei 11.788/2008 Durante o Internato Médico: Análises e Consequências. 6.
Conclusão. Referências.
1 Introdução
com o avanço do capitalismo e a expansão do neoliberalis-
mo, tornou-se ainda maior a competitividade por espaço no mer-
cado de trabalho, diante das novas exigências mercadológicas
(relativas ao domínio de diversas habilidades) e de tecnologias
diversas desenvolvidas ao longo dos anos.
E nesse novo contexto, a exploração irregular e ilegal do tra-
balho do estagiário para redução de custos finais de empresas
“tomadoras dos serviços prestados” por estudantes, tomou gran-
des proporções, passando a ter destaque recorrente na mídia e
nos Tribunais brasileiros, levando o ordenamento jurídico a adap-
tar-se às realidades emergentes para evitar a violação de direitos
e garantias fundamentais tanto do paciente quanto do educando.
Em razão disto, o presente artigo volta-se ao estudo do es-
tágio obrigatório de acadêmicos de medicina, pois muito embora
as disposições acerca da celebração de contratos de estágio não
sejam regidas, a princípio, pelo Direito do Trabalho, a desobediên-
cia aos comandos legais sobre a matéria podem espraiar efeitos
na esfera justrabalhista, cível e criminal.
Por este motivo, o escopo primevo deste estudo volta-se à
abordagem das violações à Lei do Estágio (11.788/2008) tão re-
correntes durante o período de internato dos cursos de medicina,
e analisar as consequências jurídicas que tais violações podem
acarretar, seja para o acadêmico, seja para o médico que tem o
dever legal de supervisionar diretamente o estagiário.
Para tais fins, serão utilizadas doutrinas, jurisprudência e
a legislação em vigor pertinente às circunstâncias de estágio
obrigatório, em especial relativas e aplicáveis aos acadêmicos
do curso médico.
2 breve dIstInção entre contrAto de trAbALHo e contrAto de
estágIo
A consolidação das Leis do Trabalho (cLT), em seu art. 442,
define o contrato de trabalho como “o acordo tácito ou expresso,
correspondente à relação de emprego”. contudo, a referida con-
ceituação exige interpretação cuidadosa, pois conforme preconi-
za Sérgio Pinto Martins (2009, p. 78)
O contrato de trabalho é gênero, e compreende o contrato de em-
prego. Contrato de trabalho poderia compreender qualquer trabalho
como o do autônomo, do eventual, etc. Contrato de emprego diz
respeito à relação entre empregado e empregador e não a outro
tipo de trabalhador. Daí por que se falar em contrato de emprego,
que fornece a noção exata do tipo de contrato que estaria sendo
estudado, porque o contrato de trabalho seria gênero e o contrato
de emprego, espécie.
Diante disto, compreende-se a relação de trabalho como
gênero, do qual a relação de emprego é espécie, uma vez ser a
relação de emprego estabelecida após a formação contratual. Por
vez, a relação de trabalho nem sempre exige a celebração formal
do contrato de trabalho.
Em sendo assim, tem-se como principais elementos da re-
lação empregatícia a pessoa física, a pessoalidade, a não eventu-
alidade, a onerosidade e a subordinação ao empregador. Noutro
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giro, a relação de trabalho determina como requisito configurador
apenas a habitualidade em prestar o serviço, independentemente
da figura do empregador (são os casos do autônomo, eventual e o
avulso), embora nada impeça que ela exista. (NAScIMENTO, 2009).
Ademais, o contrato de trabalho possui natureza contratual
(sem redundância do termo), sendo necessária a vontade das
partes para sua formação. Tem-se como regra, de acordo com
o art. 443 da cLT, que o contrato de trabalho seja consensual,
não dependendo sua validade de qualquer outra formalidade.
Pode, então, ser realizado de forma tácita ou expressa, verbal
ou por escrito.
Saliente-se que o contrato de trabalho estabelece reciproci-
dade de obrigações e que os riscos do contrato são assumidos
pelo empregador, ou seja, o empregado executa os serviços de
acordo com as ordens do empregador, não assumindo qualquer
risco pela atividade, por força do princípio da alteridade.
Lado outro, urge destacar que tratando-se de contrato de
estágio, nota-se geralmente a presença da onerosidade e da su-
bordinação, além de estabelecer uma relação tripartite, celebrado
mediante ato solene.
Acerca disto, o art. 1º da Lei n. 11.788/2008 traz as disposi-
ções iniciais sobre o que se deve entender por atividade de está-
gio. Veja-se:
Estágio corresponde ao ato educativo escolar supervisionado, de-
senvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o
trabalho produtivo de educandos que estejam freqüentando o ensi-
no regular em instituição de educação superior, de educação pro-
fissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais
do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de
jovens e adultos. (BRASIL, Lei nº 11.788, 2008).
Portanto, o estágio pode ser considerado um negócio jurí-
dico celebrado entre o estagiário e o concedente de estágio, sob
a supervisão da instituição de ensino, mediante subordinação ao
concedente, com o intuito de oferecer meios para a educação
profissional do estudante. Logo, o estágio é considerado um ato
educativo escolar, uma maneira de conexão entre o aprendizado
do aluno na instituição de ensino e a aplicação prática no local
onde se encontra vinculado: “o estágio visa ao aprendizado de
competências próprias da atividade profissional e à contextualiza-
ção curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para
a vida cidadã e para o trabalho.” (art. 1º, §2º da Lei do Estágio).
Pode-se dizer, então, que de certa forma que o estagiário
é um “trabalhador subordinado”, pois não pode ser considerado
empregado, a não ser que os requisitos da legislação não sejam
cumpridos. Assim sendo, o estágio abrange uma relação jurídica
triangular, composta pelo estudante, pelo concedente do estágio
e pela instituição de ensino.
3 AbordAgem gerAL dA LeI n. 11.788/2008 e dAs normAs do
estágIo obrIgAtÓrIo
com o passar dos anos e devido às mutações políticas, so-
ciais, culturais e o surgimento das novas tecnologias, o mercado
de trabalho tornou-se mais exigente, e a consequência real destes
avanços é a maior dificuldade e a grande concorrência para que o
trabalhador ingresse nesse meio. Em razão desse novo contexto,
houve um aperfeiçoamento da legislação concernente à formação
do estudante, sendo criada, então, a Lei 11.788/2008.
A partir de sua elaboração, a nova legislação disciplinadora
da relação de estágio no Brasil passou a aplicar-se de forma ime-
diata a todas as modalidades de estágio, com exceção do estágio
dos médicos residentes, pois além de haver legislação específica,
a residência médica na verdade é considerada um curso de es-
pecialização profissional, cuja responsabilidade da instituição de
saúde não é necessariamente universitária.
Ainda há que se destacar a presença de princípios importan-
tes na Lei n. 11.788/2008, conforme salienta Zéu Palmeira Sobri-
nho (2008, p. 1175), sendo eles: princípio da vinculação pedagó-
gica; da adequação e do rendimento.
O primeiro princípio, o da vinculação pedagógica,
Perpassa e inspira todo o sistema disciplinar do estágio, prenden-
do os objetivos deste ao escopo educativo e, em conseqüência,
repugnando as concepções que o desvirtuam como instrumento
para a distribuição de renda, artifício para se reduzir os custos de
reprodução da força de trabalho ou mecanismo para a substituição
de mão-de-obra permanente. O estágio vincula-se predominante-
mente a uma finalidade pedagógica, e não econômica. Por isso, a
instituição de ensino não deve criar obstáculos ou discriminações
sócio-econômicas que contribuam para dificultar o ingresso ou a
manutenção do educando no programa de estágio (SOBRINHO,
2008, p. 1.175).
Em que pese o princípio da adequação, destaca-se a impor-
tância do estágio se realizar em condições dignas e apropriadas
ao estagiário, moral, física e psicologicamente. Isto explica o fato
de a lei exigir que a instituição de ensino indique as “condições de
adequação do estágio” (art. 7º, I), avalie a “sua adequação à for-
mação cultural e profissional do educando” (art. 7º, II), de modo
que a concedente cumpra a obrigação de “ofertar instalações
que tenham condições de proporcionar ao educando atividades
de aprendizagem social, profissional e cultural” (art. 9º, inciso II)
(SOBRINHO, 2008, p.1.176).
Já o princípio do rendimento, presente no art. 3°, §1º da lei em
destaque, ao tratar da “aprovação final”, liga-se a uma cadeia de atos
a serem cumpridos e realizados, tais como o de planejamento; de
acompanhamento da instituição acadêmica (como ato fiscalizatório
do correto cumprimento das regras do estágio); do acompanha-
mento e fiscalização do estagiário pelo responsável pelo estágio; da
execução, supervisão e avaliação do estágio, bem como observar e
avaliar o comportamento e influências do educando. Desta forma,
O rendimento a ser apurado com a avaliação do estágio não se li-
mita a performance da escola (projeto, acompanhamento e orienta-
ção) ou do estagiário (disciplina, envolvimento e aproveitamento),
mas a de todos os responsáveis pela formação do educando, tais
como a instituição concedente, a família e a sociedade. (SOBRI-
NHO, 2008 p.1.176).
Nessa circunstância, importante salientar que a finalidade do
estágio e da lei que o conduz é simplesmente de formação educativa,
pois visa preparar o educando para a vida profissional futura, dando-
lhe oportunidade, aptidão e condições para ingressar no mercado de
trabalho após o fechamento do ciclo de ensino, e por isso, qualquer
ato de exploração irregular de trabalho do estagiário é ilegal.
Sendo assim, importante pontuar os tipos de estágios re-
gulamentados pela Lei n. 11.788/2008: o estágio obrigatório e o
facultativo, previstos no art. 2º: “o estágio poderá ser obrigatório
ou não obrigatório, conforme determinação das diretrizes cur-
riculares da etapa, modalidade e área de ensino e do projeto
pedagógico do curso”.
O estágio não obrigatório, em síntese, é aquele de cunho
complementar. Apesar de essa modalidade ser uma opção ao
educando, e tendo em vista o estágio ser uma relação trian-
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gular, a instituição de ensino não está isenta de seus deveres
presentes no art. 7° da lei em comento, como o de fiscalização
e correta execução no que tange ao aconselhamento, avaliação
e orientação do estudante.
Por vez, a segunda modalidade merece análise mais cuida-
dosa, pois é estabelecida como condição para que o educando
conclua sua formação profissional na instituição de ensino a que
se vincula. Encontra-se definido no art. 2º, §1º, da lei 11.788/2008
como “aquele definido como tal no projeto do curso, cuja carga
horária é requisito para aprovação e obtenção de diploma”.
Por fim, ressalta-se que os estágios obrigatórios exigem
da instituição de ensino que, em observância aos ditames le-
gais pertinentes, se estabeleça uma carga horária mínima a ser
cumprida pelo educando. Ademais, exige que o estagiário preste
contas ao estabelecimento de ensino, apresentando periodica-
mente relatórios que descrevam as atividades desenvolvidas no
estágio, assinados pelo profissional responsável da parte conce-
dente que o supervisiona.
A partir de agora, após estas notas preliminares, iniciar-se-á
o estudo do internato médico, considerado como estágio obriga-
tório e necessário para que o acadêmico em medicina obtenha o
diploma de bacharel.
4 Aspectos gerAIs do InternAto médIco
Nos últimos anos, tem-se notado relevante e considerável
aumento do número de acadêmicos ingressantes nos cursos de
medicina pelo Brasil, diante das vastas oportunidades oferecidas
pelo Governo Federal relativas à concessão de bolsas de estudos
e financiamento estudantil, que permitem à grande maioria dos
estudantes concluir o curso superior.
Diante deste cenário cada dia mais crescente, faz-se neces-
sário a adoção de métodos de fiscalização eficientes para que se
operem os objetivos do curso médico durante a graduação, e para
que se evite prática ilegal da medicina e da exploração do trabalho
dos acadêmicos no transcorrer do estágio obrigatório sem que haja
a supervisão de médico habilitado perante o conselho profissional
da categoria, conforme recorrentemente se noticia.
Para tais fins, mister compreender inicialmente a estrutura
dos cursos médicos brasileiros para que, posteriormente, sejam
analisadas em tópico autônomo as violações à lei n. 11.788/2008
no transcorrer do internato, acompanhadas das respectivas con-
sequências jurídicas.
Precipuamente, a formação curricular do médico nas facul-
dades de medicina, assim como em outros cursos da área da
saúde, passa por fases sucessivas e de complexidade gradual de
aprendizado teórico-prático, iniciando-se o curso pelo ciclo básico
com prevalência do ensino teórico.
concluída esta fase, inicia-se o ciclo profissionalizante em que,
agregado aos ensinamentos teóricos, parte-se para o ciclo de ativi-
dade prática de treinamento ambulatorial e hospitalar, sob supervisão
direta de professor preceptor, o qual orienta a prática e assina todos
os atos médicos realizados, assumindo total responsabilidade sobre
o atendimento prestado, seja em ambulatório, seja em enfermaria.
Já no último ciclo do curso, denominado internato médico,
com duração aproximada de quatro semestres, acentua-se a ativi-
dade prática na condição de estágio obrigatório, com significativa
diminuição das aulas teóricas. Neste momento, almeja-se que os
acadêmicos coloquem em prática os conhecimentos adquiridos
ao longo dos quatro primeiros anos do curso e, assim, desenvol-
vam habilidades.
Nesta fase prevalecem as discussões de caráter eminente-
mente prático, além das sessões clínicas. Em outras palavras, o
acadêmico aprende fazendo e consolida na prática a teoria ad-
quirida outrora, interagindo com os pacientes e seus familiares,
bem como aprendendo a lidar com as intercorrências habituais
do ambiente hospitalar.
contudo, cabe ressaltar que embora haja uma certa “au-
tonomia” do acadêmico neste ciclo, permanece como sendo do
professor preceptor, por determinação legal, todas as responsabi-
lidades pelo atendimento, diante da falta de habilitação do estagi-
ário para exercer a medicina.
Saliente-se que o referido período de estágio curricular pas-
sou a ter caráter obrigatório nos cursos de graduação em medi-
cina nos idos de 1969, após a edição de Resolução do conselho
Federal de Educação decorrente do parecer n. 506/1969 do con-
selho Regional de Medicina de Minas Gerais. Atualmente, o emba-
samento jurídico do estágio do estudante de medicina encontra-
se em normas regulamentadas pelo Ministério da Educação, pela
Resolução do conselho Federal de Educação n. 01 de 04/05/1989
que alterou a Resolução n. 09 de 29/05/1986, pela Lei Federal n.
11.788/2008 (Lei do Estágio) e pelo Decreto-Lei n. 2080/1996.
Ademais, observando-se de modo geral, todo o parâmetro
legal, acompanhado de pareceres emitidos pelo conselho Fede-
ral de Medicina (cFM) e pelos conselhos Regionais de Medicina
(cRM), destaca claramente a relevância do papel das instituições
de ensino na fiscalização do internato médico, visto ressaltar ni-
tidamente que todo estágio curricular necessita estar de acordo
com as normas do projeto pedagógico da escola e ser efetiva-
mente por ela supervisionado.
Portanto, compete à faculdade de medicina garantir ao aca-
dêmico o estágio curricular, obedecidos os preceitos e exigências
técnicas e éticas, em total observância às regras legais em vigor.
Para isso, o procedimento a ser adotado é o estabelecimento for-
mal de convênios regulares entre a faculdade e a Instituição de
Saúde, visando estabelecer e delimitar as responsabilidades que
recairão sobre cada polo.
Feitas estas considerações introdutórias, passa-se agora à
análise das recorrentes violações à Lei do Estágio durante o inter-
nato médico e suas respectivas consequências jurídicas.
5 As vIoLAções À LeI 11.788/2008 durAnte o InternAto médIco:
AnáLIses e consequÊncIAs3
Muitas e não raras vezes são noticiados na mídia casos
de desrespeito às regras básicas de estágio obrigatório nos cur-
sos de medicina, bem como são reveladas graves fraudes entre
hospitais, médicos e estagiários relativas a atendimentos reali-
zados fora dos parâmetros exigidos, repercutindo juridicamen-
te, uma vez que na maioria das situações acadêmico e médico
respondem por crime de exercício irregular e ilegal da medicina,
cujo tipo penal se encontra expresso no código Penal Brasileiro
(cPB) em seu art. 282, com sanção de seis meses a dois anos
de detenção, acrescida de multa se a prática for realizada com
finalidade lucrativa.
Nesse ínterim, mister observar as disposições gerais da lei
federal n. 11.788/2008 (Lei do Estágio), já abordadas no item 3
alhures, e que se aplicam ao estágio obrigatório do curso de me-
dicina, conhecido como internato médico4.
Inicialmente, há se ter em mente que o estágio se caracteriza
por ato educativo escolar supervisionado, cujo objetivo principal é
justamente desenvolver o aprendizado de competências próprias
da atividade profissional para a qual o estagiário se prepara, bem
como para permitir a contextualização e integração curricular das
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disciplinas do curso, classificando-se em obrigatório ou não obri-
gatório. Ao caso específico do internato médico aplica-se a clas-
sificação de estágio obrigatório, em que as regras são bastante
claras e delimitadas.
Desse modo, inicia-se agora a análise da primeira e mais co-
mum violação à Lei do Estágio durante o internato médico: a falta
de supervisão por professor preceptor e a autonomia exacerbada
atribuída ao acadêmico.
Embora a legislação aplicável aos internos de medicina preveja
que o estágio deve ser supervisionado efetivamente por profissional
devidamente habilitado a exercer a profissão, o que ocorre na prática
viola frontalmente as disposições legais, gerando graves riscos à so-
ciedade que busca os serviços de saúde, tendo em vista a exposição
da vida do cidadão às recomendações de pessoa não habilitada ao
exercício da medicina, além de configurar crime, conforme a lei penal.
Tal prática refere-se à falta de supervisão de professor pre-
ceptor em relação aos atos praticados pelo acadêmico, permitindo
que sejam prescritos medicamentos e tratamentos sem qualquer
fiscalização, concedendo ao estagiário o receituário assinado e
carimbado, porém em branco. Veja-se:
QUASE PROFISSIONAIS: [...] No caso, médicos pagam a alunos para
cobrirem seus turnos e atuarem em seu nome nos hospitais. [...] A
necessidade de ampliar os conhecimentos também é apontada por
X. M.*, aluna do último semestre de Medicina na UFBA. Ela diz, en-
tretanto, que muitas vezes as circunstâncias do curso forçam os es-
tudantes a fazerem parte de práticas irregulares, como foi o seu caso.
X. M. explica que, por ser um curso difícil de ingressar devido à alta
concorrência (a maior da UFBA, com relação de 27,8 candidatos por
vaga em 2007), muitos entram com mais de 20 anos. Por isso, grande
parte dos estudantes já está em idade de precisar garantir um sustento
financeiro inclusive para pagar as altas despesas do curso. Porém,
as oportunidades encontradas, como o acompanhamento de proce-
dimentos citado por Reis, não são remuneradas. O próprio estágio
obrigatório, quando os alunos se tornam internos de algum hospital,
também não é remunerado. Atualmente X. M. estagia como interna
no Hospital das Clínicas e, mesmo arrependida e afirmando não ter
se sentido à vontade quando clinicou de forma irregular, acha que o
modelo do curso dificulta a vida dos alunos. “Agora, no internato, eu
preciso me dedicar em tempo integral. A gente acaba ficando sem
tempo para fazer mais nada, muito menos para arrumar um trabalho e
ganhar dinheiro”. [...] “Sinto vergonha pelo que fiz, mas eu precisava
ganhar dinheiro. Infelizmente os médicos também eram culpados, pois
geralmente não estavam por perto para auxiliar, principalmente durante
a troca de turno no plantão. Os estudantes ficavam com o carimbo do
médico e tinham permissão para prescrever receitas e liberar pacien-
tes”, conta. (ROSS, s/d, p. 1).
Primeiramente, importante enfatizar que o paciente tem o
direito à informação adequada, esclarecida e prévia acerca de
todo o atendimento que será realizado, desde quem procederá
ao atendimento (médico ou acadêmico) até o prognóstico de
terapia a ser adotada. caso haja omissão já no início, no que
tange à condição de estudante de medicina, o direito à informa-
ção do paciente restará de pronto violado, nos termos do art.
6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos,
aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, ciência e cultura (UNEScO).
Assim, nota-se claramente pelo depoimento trazido à baila
que a prática é comum e recorrente, embora exista na consci-
ência do acadêmico e do médico teoricamente responsável pela
fiscalização e supervisão do trabalho do estagiário, que a prática
macula-se pela ilicitude. Ocorre que sem a fiscalização efetiva da
instituição de ensino e dos órgãos competentes no que tange à
obediência das regras e diretrizes do internato médico, tal prática
torna-se, infelizmente, corriqueira.
Desta atitude ilícita ressai o grave risco aos direitos funda-
mentais do paciente, assim entendidos como “normas jurídicas,
intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de
limitação de poder, positivadas no plano constitucional de deter-
minado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância
axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídi-
co” (MARMELSTEIN, 2008, p. 20), em especial o direito à vida,
à saúde e à integridade física, sem os quais não se alcança a
dignidade, pois direitos desta natureza possuem além de um con-
teúdo normativo – aspecto formal -, também um conteúdo ético –
aspecto material -, que deve ser igualmente respeitado por todos,
inclusive por quem presta um serviço médico, uma vez que os
direitos fundamentais
[...] são os valores básicos para uma vida digna em sociedade [...].
[...] Estão ligados de alguma forma pela noção básica de respeito
ao outro [...]. Vale enfatizar que este respeito ao outro indepen-
de de quem seja o outro. Pode ser qualquer pessoa. A dignidade
não é privilégio de apenas alguns indivíduos escolhidos por razões
étnicas, culturais ou econômicas, mas sim um atributo de todo
e qualquer ser humano, pelo simples fato de ser humano. (MAR-
MELSTEIN, 2008, p. 18-19).
Isto demonstra que ocorrido um atendimento médico irre-
gular e ilícito por acadêmico de medicina, na condição de interno
ou não, haverá a lesão configurada dos direitos fundamentais do
paciente, que já se encontra em situação frágil de saúde ao bus-
car o atendimento especializado, colocando e expondo a vida do
paciente a graves riscos, afetando-lhe diretamente a dignidade,
posto o desrespeito do próximo (leia-se, do estagiário e do médi-
co responsável pela supervisão) à sua condição de ser humano
digno do mesmo atendimento de qualidade que o médico busca-
ria caso necessário.
Ressalte-se nesse ínterim, conforme preceitua Genival Velo-
so de França (2013, p. 101), que “a vida e a saúde das pessoas
tem um relevante significado na manutenção da ordem pública
e na segurança do Estado”. Ademais, “a saúde e as liberdades
individuais representam, num estado democrático de direito, os
bens mais fundamentais”, considerando-se a “saúde como um
bem irrevogável e indispensável que cabe ao Estado sua garantia
e os meios de organização”, o que inclui o oferecimento e fiscali-
zação do atendimento médico por pessoa habilitada legalmente a
exercer a profissão, garantindo-se, portanto, os direitos constitu-
cionais à segurança e aos meios de se alcançar a saúde, para que
assim seja possível viver com dignidade.
Diante disto, cristalino que a ampla autonomia atribuída aos
internos em medicina5, principalmente nas pequenas cidades bra-
sileiras em que a presença constante de um médico muitas vezes
é rara, tendo em vista as dificuldades e falta de infraestrutura bá-
sica de saúde para que possa ali instalar domicílio profissional
fixo, configura crime de exercício ilegal da profissão médica, nos
termos do art. 282 do cPB, e sendo a circunstância de o acadêmi-
co prescrever medicamentos, tratamentos e terapias em nome do
médico responsável pela fiscalização do estágio e que não o fez,
configura-se também o crime de falsidade ideológica (art. 299 do
cPB), além de violar de modo literal a lei federal n. 11.788/2008,
arts. 1º; 3º, §1º; 7º, III e 9º, III, em que se encontra expresso o
dever da instituição de ensino e da instituição de saúde de possuir
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profissional habilitado para supervisionar e fiscalizar efetivamente
as atividades desenvolvidas pelo estagiário.
Desta feita, o que se percebe é que na prática, a depen-
der da disciplina cursada, os atendimentos são realizados sem
fiscalização do professor preceptor, que apenas libera em bran-
co o receituário assinado e carimbado, confiando o tratamento,
prescrições e liberação de pacientes a um simples estudante, cujo
conhecimento ainda está em formação, mesmo que já nos semes-
tres finais do curso.
A despeito disto, ainda há que se enfatizar a possibilidade
de causação de danos ao paciente em razão do atendimento ile-
gal, e a possível reparação dos prejuízos, em que a responsabili-
dade civil liga-se ao fato de que ninguém pode lesar o direito e o
interesse de outra pessoa, pois “aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”,
subsistindo a obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa nos casos especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem.” (art. 927, caput e
parágrafo único do cc/02).
Além do mais, segundo o previsto no art. 951 do cc/02, o
“disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de in-
denização devida por aquele que, no exercício de atividade profis-
sional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte
do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo
para o trabalho”. Portanto, para que seja imputada a responsa-
bilidade ao profissional da medicina responsável pela supervisão
de estagiário em fase de internato, é crucial a presença de dois
elementos: o primeiro, que o paciente tenha sido simplesmente
exposto ou, em piores casos, tenha sofrido um dano decorrente
da atuação médica e que tenha sido caracterizada a atuação do
interno como se médico fosse. Pode-se mencionar, assim, que
configurado o dano ao paciente em razão de atendimento médico
realizado por interno em medicina, a negligência resta clara quan-
do o preceptor autoriza o atendimento sem sua presença para
fiscalização dos atos praticados pelo estagiário.
Nesses casos, a responsabilidade civil pelos danos cau-
sados pelo interno será do médico preceptor que tinha o dever
legal de fiscalizá-lo, conforme defende o próprio conselho Fede-
ral de Medicina.
EMENTA: A responsabilidade pelo ato médico praticado pelo interno
do curso de medicina cabe exclusivamente ao médico preceptor.
(...) O atendimento médico realizado por pessoa não habilitada e
não registrada no Conselho Regional de Medicina caracteriza exer-
cício ilegal da medicina; A faculdade é responsável pelas ações
que atribuir aos seus alunos, devendo oferecer aos mesmos as
condições necessárias para o aprendizado, como, por exemplo, no
caso da prática médica realizada por internos do curso médico, a
ser feita com supervisão direta de profissionais médicos. (CFM.
Brasília, 04.12.1996. Conselheiro Relator SILO TADEU S. HOLANDA
CAVALCANTI Aprovado em sessão plenária em 09/04/97. PROCES-
SO-CONSULTA CFM Nº 4.650/96. PC/CFM/Nº 13/97).
Isto porque o fundamento pilar da responsabilidade civil
“está na alteração do equilíbrio social, produzida por um prejuízo
causado a um dos seus membros. O dano sofrido por um indiví-
duo preocupa todo o grupo porque todos se sentem ameaçados
pela possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, sofrerem os mes-
mos danos” (ALcâNTARA, 1971 apud FRANÇA, 2013, p. 268).
com isso, defende-se a responsabilização médica do preceptor
por danos causados ao paciente atendido por interno (com ou
sem supervisão efetiva) na modalidade de responsabilidade ob-
jetiva, em razão do risco próprio da atividade exercida, conforme
expresso no art. 927, parágrafo único c/c art. 951 c/c arts. 186 e
187 todos do cc/02.
Ressalte-se, além do mais, que a liberdade de profissão
estatuída no art. 5º, xIII e art. 170, parágrafo único, ambos da
cRFB/88, não se beneficia da amplitude e ausência de restrições,
permitindo-se ao profissional relegar a pessoas inabilitadas a prá-
tica de atos de sua responsabilidade, pois, conforme preceitua
George Marmelstein (2008, p. 101)
Esses dispositivos estabelecem que qualquer pessoa tem, em prin-
cípio, o direito de escolher a atividade profissional e econômica
que deseja desempenhar, de acordo com seu próprio entendimen-
to, conveniência, vocação e habilidade. Isso não significa, contudo,
uma liberdade ampla e irrestrita, pois a própria Constituição esta-
beleceu que a lei pode exigir a observância de certos requisitos
para o exercício de determinadas profissões. Assim, por exemplo,
para exercerem seu ofício, os médicos precisam ser formados em
medicina [...].6
No mesmo sentido, os dizeres de Guilherme de Souza Nucci
(2003, p. 794) sobre a transposição de limites no exercício profis-
sional, em que “toda profissão regulamentada pelo Estado confe-
re ao sujeito que a exerce direitos e deveres. Não há, pois, como
deixar de atender à lei para o correto desempenho da atividade”.
A par disto, Bento de Faria (1961, p. 261) ainda sustenta que
A liberdade de escolha da profissão-assegurada pela Constituição vigente e pelos Estatutos Políticos anteriores, não podia ficar excluída do – poder de polícia - do Estado máxime quando o próprio texto constitucional subordina-se à condição implícita de não ser ou de não se tornar prejudicial aos interesses do País e aos da sociedade. Não se confundem, portanto, o livre exercício com o direito de exercer. Completam-se, mas não se confundem. A garantia que a Constituição oferece e assegura ao livre exercício de qualquer profissão moral, industrial ou intelectual é ampla, sem dúvida. Desde que, porém, o cidadão tenha adquirido o direito de exercê-la, pela observância do que for estatuído nas leis e regulamentos. A liberdade, como qualquer outro direito, não pode ser absoluta e assim não deve merecer o qualitativo de jurídica, única suscetível de proteção, a que se pretenda se superpor às determina-ções editadas no interesse superior da ordem pública e suas instituições. Se todos têm o direito de adotar o modo de vida que lhes aprouver, não têm o de não respeitar as condições estabelecidas para o seu exercício legal.
Sendo assim, quaisquer atos médicos praticados por pes-
soa sem formação superior completa em medicina e não inscrita
no cRM competente para efetuar o registro profissional, são con-
siderados atos criminosos, puníveis na esfera criminal (art. 282 e
299 do cPB), administrativa (perante o cRM, cFM e instituição
de saúde/prefeitura empregadora) e cível (art. 5º, x da cRFB/88
c/c art 186 e 187 e 927 do cc/02), caso em decorrência dos atos
realizados sejam gerados danos - materiais, morais ou estéticos
- ao paciente.
Genival Veloso de França (2013, p. 48) salienta que “o que
se procura impedir, pela sanção penal, no exercício ilegal da me-
dicina, é que a saúde pública venha a ser ameaçada por pesso-
as não qualificadas e incompetentes”, posto a grande relevân-
cia dos bens jurídicos tutelados em relações médico-paciente,
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e, continua ressaltando que, “para configurar-se o crime, basta
apenas o perigo, não exigindo a lei que venham a consumar-se
quaisquer lesões ou malefícios, sendo necessária unicamente a
possibilidade de dano”.
Nesse sentido, inclusive, Resolução Plenária RP n. 331/2011
do cRM/MG, apresentando as punições ao exercício ilegal da me-
dicina por estagiários em internato e as regras para que se realize
o estágio obrigatório:
O Plenário do Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas
Gerais, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº. 3.268, de 30
de Setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº. 44.045, de
19 de julho de 1958; e considerando que o exercício da Medicina
antes da graduação e registro no CRM é crime; Considerando o
artigo 17 da Lei nº 3268/1957 que estabelece: A Medicina deve
ser exercida por profissional habilitado e legalmente inscrito no
Conselho Regional de Medicina do seu Estado; Considerando a
Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº663/75 que esta-
belece: Os estudantes de Medicina não estão aptos, ainda que
nos últimos períodos de faculdade, a exercer a Medicina sem a
supervisão de um profissional médico; Considerando o Parecer
Consulta CRMMG nº 003414/2008 que estabelece que os está-
gios no Curso de Medicina, sejam eles curriculares ou voluntários,
devem seguir as normas vigentes, ocorrer sob supervisão médica
direta, buscando preservar o aluno, o médico preceptor, as insti-
tuições de saúde e principalmente os pacientes; Considerando que
a substituição de médicos por estudantes de medicina constitui
exercício ilegal de Medicina, crime, conforme o artigo 282 do Có-
digo Penal Brasileiro e pode caracterizar ainda crime de Falsidade
Ideológica, previsto no artigo 299 do mesmo Código Penal Brasi-
leiro; [...] Considerando que o trabalho realizado por acadêmico de
Medicina só contribui para a aprendizagem e aquisição de novos
conhecimentos se adequadamente supervisionado por preceptor;
Considerando que a prática do exercício profissional por acadêmi-
cos de Medicina sem supervisão pode aumentar as possibilidades
de morte e complicações em pacientes e prejudica o olhar clínico
do estudante com práticas que podem gerar dúvidas na postura
ética e técnica; Considerando que o estudante que exerce a me-
dicina ilegalmente pode ser preso e processado e traz ameaças
ao seu futuro e ao presente e futuro daqueles responsáveis pela
ilegalidade; [...] RESOLVE: Art. 1º- §1º A atuação do estudante
de Medicina na Instituição de Saúde será obrigatoriamente acom-
panhada presencialmente pelo médico preceptor responsável que
deverá manter junto da Instituição sua documentação profissional
(diploma, títulos, função no Hospital, horário, médico responsável,
etc.). Art. 3º- A supervisão e controle da presença e atuação do
estudante de medicina nas instituições interessadas é responsa-
bilidade do médico preceptor e do Diretor Técnico da Instituição
de Saúde. Art. 4º- A condição de acadêmico estagiário deverá ser
informada ao paciente ou ao seu responsável legal pelo médico
preceptor e identificada através de crachá, conforme disposto no
art. 110 do Código de Ética Médica. (CRM/MG, 2011, p. 1-3).
corroborando com estes argumentos, a fundamentação do
seguinte parecer:
Ementa: Os estágios no Curso de Medicina, sejam eles curricula-
res ou voluntários, devem seguir as normas vigentes, ocorrer sob
supervisão médica direta, buscando preservar o aluno, o médico
preceptor, as instituições de saúde e principalmente os pacientes.
PARTE EXPOSITIVA: [...] A execução de atos médicos por estudan-
tes sem supervisão médica, configura-se como exercício ilegal da
medicina, assumindo o estudante a responsabilidade criminal de
seus atos, pois, sobre ele não existe qualquer poder dos CRMs,
sendo a instituição responsabilizada ética e criminalmente, na figu-
ra de seus diretores médicos, Clínico e Técnico. O médico precep-
tor não pode, em qualquer hipótese, entregar ao estagiário o seu
receituário ou da instituição, previamente assinado com as folhas
em branco, pois, estará incorrendo em infração ética aos artigos
33 e 39 do Código de Ética Médica. (CRMMG. PARECER CONSULTA
003414/2008: CONSULENTE: SRA. P.SL. RELATOR: DR. JOSÉ NA-
LON DE QUEIROZ - CRMMG 6961. 09.03.2008).
Em muitos casos, também, os estagiários atendem sozinhos
os pacientes, sem supervisão do médico, pois este não se en-
contra dentro do hospital. Há, igualmente, os internos que fazem
atendimentos sob “supervisão à distância”, em que o médico que
seria o responsável pela atividade de preceptoria, o que lhe exige
presença física no local onde o estágio é oferecido, dita as condu-
tas a serem tomadas, sem sequer ter tido contato pessoal com o
paciente, o que igualmente constitui crime e infração ética, punível
em âmbito administrativo e judicial. Veja-se exemplo:
EMENTA: “Acadêmicos de Medicina não podem atender pacientes
sem supervisão médica presencial e suas atividades deverão obe-
decer às determinações da lei 11.788/2008. Médicos não podem
definir diagnósticos ou prescrever para pacientes por ele não exa-
minados”.
I - PARTE EXPOSITIVA A presente Consulta procede do Conselho
Municipal de Saúde da cidade de C., representado pela sua pre-
sidente, ora consulente. Extrai-se do texto encaminhado o que
segue: “... solicitamos a V Sa. Parecer referente ao atendimento
de acadêmico de medicina no serviço de Urgência e Emergência,
diante da seguinte denúncia: O acadêmico pode atender o paciente,
prescrever a receita e levar para o médico carimbar e assinar, o
médico assina a receita ou exame, mas o médico não vê o paciente.
Normalmente estes atendimentos são colocados como casos que
podem ser de atenção primária/básica”.
II - PARTE CONCLUSIVA: Os fatos apresentados apontam duas
circunstâncias irregulares: 1ª. Acadêmicos de Medicina que reali-
zam atendimento de pacientes sem a adequada supervisão médi-
ca. Esta condição contraria frontalmente as determinações da Lei
11788/2008 que regulamenta as atividades de estágios acadêmi-
cos, e também, ao atenderem pacientes sem supervisão médica
estes acadêmicos exercem ilegalmente a Medicina, o que não pode
ser admitido em qualquer hipótese. Sobre este tema versam os
pareceres de nº. 3414/2008 e 3817/2009, exarados por este Con-
selho Regional de Medicina, anexados a este parecer. 2ª. Médico
plantonista que define diagnósticos ou prescreve sem examinar o
paciente. O médico plantonista ao assinar documentos médicos e
receitas, sem o devido exame dos pacientes infringe o Código de
Ética Médica, em seus artigos 2º, 5º e 10º. Os fatos constatados
deverão ser comunicados a este Conselho para as devidas apura-
ções. (PARECER-CONSULTA N.º 4000/2010. CONSULENTE: DR. M.
M. G. CONSELHEIRO: MÁRIO BENEDITO COSTA MAGALHÃES - CR-
MMG 11879. 07.05.2010).
Em especial quando se trata de plantões, Genival Veloso de
França (2013, p. 230-231) assevera que
[...] não se pode conceber a existência de um serviço de tal magni-
tude, desfalcado do seu elemento mais importante, ou representado,
de forma escamoteada, pelos denominados plantonistas “à distân-
cia” ou de “sobreaviso”. Todo serviço de urgência deve ter obrigato-
riamente seus plantonistas ou suas equipes de plantão, não só pelas
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sucessivas ocorrências que chegam ao hospital, senão também pela
observação, assistência e cuidados aos pacientes internados, sujei-
tos às mudanças de seus quadros clínicos. Fora dessa concepção,
compromete-se o mais fundamental e o mais dogmático de todos
os dispositivos do código de ética médica: “o alvo de toda aten-
ção do médico é a saúde do ser humano”. [...] Assim, a omissão
do plantonista constitui infração ético-disciplinar, pois são vedados
ao médico: “praticar atos profissionais danosos ao paciente, que
possam ser caracterizados como imperícia, imprudência e negligen-
cia”, “delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivas
da profissão médica” (quando se deixa o plantão com estudantes
de medicina) [...]. [...] Enfim, se o paciente necessita de assistência
urgente e não a tem, pelo fato de o médico encontrar-se de plantão
“de sobreaviso”, constitui omissão de socorro.
Resta límpido, desta forma, que tal prática de fato ocorre,
colocando em risco o direito à segurança de um atendimento mé-
dico profissional de qualidade, dentro do que exige a lei, violando
a dignidade da pessoa humana do paciente, segundo o art. 1º, III
e 5º, caput, ambos da constituição de 1988 (cRFB/88), e o direito
a ter meios que proporcionem a saúde plena, o que inclui, dentre
outros igualmente relevantes, o oferecimento de um corpo clínico
capacitado, habilitado e experiente.
contudo, esta não é a única violação à Lei do Estágio e às
demais normas em vigor. Outro comum abuso durante o internato
médico é o relativo à exploração do trabalho do acadêmico, em
que a jornada extrapola em muitos casos os limites legais.
De acordo com o disposto no art. 10, caput, da Lei Fe-
deral 11.788/2008, a jornada de trabalho do estagiário há de
ser definida segundo determinações da instituição de ensino,
da parte concedente e do aluno estagiário, devendo constar
do termo de compromisso ser compatível com as atividades
escolares e não ultrapassar, nos casos de estágio obrigatório,
06 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais, permitindo-
se, porém, o aumento desta jornada aos cursos que alternam
teoria e prática, nos períodos em que não estão programadas
aulas presenciais, para até 40 (quarenta) horas semanais, des-
de que isto esteja previsto no projeto pedagógico do curso e
da instituição de ensino, situação esta em que se enquadra o
curso de medicina.
Entretanto, o que acontece na prática é, mais uma vez, dife-
rente do que se almeja na lei.
Saliente-se, aqui, que os fatos ilustrados não são aborda-
dos genericamente, uma vez que muitas instituições de ensino
cumprem a legislação, mas existem dados e informações que
demonstram que algumas vezes, e em determinados casos, os
acadêmicos em fase de internato chegam a permanecer nos hos-
pitais de 09 (nove) até 12 (doze) horas por dia, perfazendo de 54
(cinquenta e quatro) até 70 (setenta) horas semanais em casos
extremos, extrapolando sobremaneira o limite da jornada para es-
tágio obrigatório (oito horas diárias/quarenta semanais – conside-
rando os cursos que alternam teoria e prática)7.
Isto exige, em contrapartida, que se faça uma reflexão
acerca dos motivos que levam à exploração do trabalho dos
internos em medicina. citam-se diversos possíveis motivos, tais
como a dificuldade de contratação de médicos habilitados em
muitas cidades brasileiras; os baixos custos para o hospital ou
para as prefeituras municipais, já que na maioria dos casos os
acadêmicos em fase de estágio obrigatório em medicina não
recebem bolsa ou qualquer outra contraprestação, preferindo-
se o uso e abuso da mão de obra estudantil em detrimento da
contratação de médicos habilitados em número suficiente para
atender a demanda; a ausência de fiscalização, dentre outros.
Desse modo, exemplo claro das vantagens econômicas do
trabalho exercido por acadêmicos em internato para as prefeitu-
ras e hospitais conveniados a instituições de ensino superior que
oferecem o curso de medicina, é o que se encontra no parecer-
consulta ao cRM/MG n. 3817/2009. Veja-se:
[...] Venho, perante esse egrégio Conselho, consultar sobre assun-
to relacionado ao funcionamento do nosso hospital, de pequeno
porte, com 26 leitos. Temos dificuldades em contratar médicos
plantonistas por termos uma estrada de acesso ainda de terra. Para
diminuirmos despesas, pois nossa única fonte de renda é o SUS,
resolvemos fazer um convênio com a Faculdade de Medicina de
Barbacena para oferecermos estágios para acadêmicos de décimo
período, com supervisão médica. 1 - Gostaríamos de saber se a
prática de plantão acadêmico, ficando, às vezes, com supervisão
do médico fora do hospital, porém dentro da cidade, podendo ser
acionado por telefone celular, principalmente no plantão noturno,
que é de menor demanda, é irregular?”. Resposta: É. É exercício
ilegal da medicina. (PARECER-CONSULTA Nº 3817 / 2009. CON-
SULENTE: Dr. A.M.P. RELATOR: CÍCERO DE LIMA RENA - CRMMG
– 6090. Belo Horizonte, 05 de outubro de 2009).
Percebe-se que na prática o que acontece é, de fato, uma
verdadeira exploração do trabalho humano, com jornadas exausti-
vas e sem remuneração ou contraprestação pelos serviços presta-
dos. Além do mais, nos termos do art. 15 das disposições finais da
Lei do Estágio, a manutenção de estagiários em desconformidade
com a legislação caracteriza vínculo de emprego do educando
com a parte concedente do estágio para todos os fins da legisla-
ção trabalhista e previdenciária.
Isto porque a justificativa para a realização do estágio funda-
se na valorização do ensino e preparação do estagiário para o mer-
cado de trabalho, em observância à lei específica, para que não se
configure exploração irregular e ilícita de trabalho. Ainda sobre o
tema, explana Maurício Godinho Delgado (2002, p. 317) que
Esse vínculo sociojurídico foi pensado e regulado para favorecer o
aperfeiçoamento e complementação da formação acadêmico-pro-
fissional do estudante. São seus relevantes objetivos sociais e
educacionais, em prol do estudante, que justificaram o favoreci-
mento econômico embutido na Lei do Estágio, isentando o tomador
de serviços, partícipe da realização de tais objetivos, dos custos de
uma relação formal de emprego. Em face, pois, da nobre causa de
existência do estágio e de sua nobre destinação — e como meio
de incentivar esse mecanismo de trabalho tido como educativo —,
a ordem jurídica suprimiu a configuração e efeitos justrabalhistas a
essa relação de trabalho lato sensu.
Portanto, caso o estágio não favoreça o aperfeiçoamento
e complementação da formação profissional do educando, mas
configure fraudulenta utilização de força de trabalho menos one-
rosa para a empresa concedente, a relação jurídica não será
mais a de estágio, mas sim de emprego, pois “o estudante está
operando em atividade não compatível com o seu desenvolvi-
mento educacional.” (MARTINEZ 2009, p. 179).
Diante do descumprimento da legislação no curso da rela-
ção de estágio, os Tribunais brasileiros tem sido recorrentemen-
te buscados para que seja reconhecido o vínculo de emprego
nas circunstâncias de exploração ilegal de trabalho de estagiá-
rio. Senão vejamos:
CONTRATO DE ESTÁGIO. TERMO DE COMPROMISSO. DESCUM-
revista Eletrônica de direito do centro universitário newton paiva 2/2014 - n. 23 - issn 1678 8729 | página 60
PRIMENTO. ART. 3º, III, § 2º, DA LEI Nº 11.788/2008. VÍNCULO DE
EMPREGO. A reclamada não observou várias das obrigações a que
se comprometeu por meio do termo de compromisso para está-
gio, circunstância que atrai a incidência do art. 3º, III, § 2º, da Lei
11.788/2008, segundo o qual o “descumprimento de (...) qualquer
obrigação contida no termo de compromisso caracteriza vínculo de
emprego do educando com a parte concedente do estágio para to-
dos os fins da legislação trabalhista e previdenciária (TRT-10 - RO:
00939201300410008 DF 00939-2013-004-10-00-8 RO, Relator:
Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, Data de Julgamen-
to: 25/06/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: 11/07/2014 no DEJT).
TERMO DE COMPROMISSO DE ESTÁGIO - DESCUMPRIMENTO DOS
REQUISITOS FORMAIS - VÍNCULO DE EMPREGO RECONHECIDO -
INVALIDADE DO CONTRATO DE ESTÁGIO - O contrato de estágio
é uma das figuras jurídicas que mais se aproxima do contrato de
emprego, uma vez que nele também há subordinação, habitualida-
de e onerosidade. Assim, a presença destes elementos, por si só,
não revela a existência do vínculo de emprego. Comprovado que
não restaram atendidos os requisitos formais do estágio pela apre-
sentação do Termo de Compromisso de Estágio celebrado junto à
instituição de ensino, necessário declarar a nulidade do contrato
de estágio e reconhecer o vínculo de emprego diretamente com a
reclamada. (TRT-9, 4ª Turma, Processo n. 1586-2006-658-9-0-0,
Relator: Sérgio Murilo Rodrigues Lemos).
Lado outro, embora não seja considerada uma violação à
Lei do Estágio diante da faculdade atribuída pela lei à instituição
de ensino e à parte concedente do estágio, a concessão de uma
bolsa ou outra contraprestação ao interno em medicina, durante
os semestres em que passará pelo estágio obrigatório, poderia
ser o caminho capaz de evitar a ocorrência de práticas ilegais e
irregulares ao longo deste período curricular.
Isto porque, como já mencionado anteriormente, muitos aca-
dêmicos compilam com atos notoriamente ilegais por falta de con-
dições financeiras mínimas para arcar com as despesas do curso,
aceitando submeter-se a tais atos diante de remuneração do médi-
co responsável pelo plantão ou pela fiscalização do estágio.
Segundo o que preceitua o art. 12 da Lei n. 11.788/2008,
o estagiário poderá receber bolsa ou outra forma de contrapres-
tação que venha a ser acordada, sendo, porém, compulsória a
sua concessão, bem como a do auxílio-transporte, apenas na hi-
pótese de estágio não obrigatório. Assim, caso fosse concedida
a bolsa a alunos em internato médico, muitos destes problemas
poderiam ser evitados8.
Urge salientar, outrossim, mais uma clara violação à legisla-
ção aplicável ao internato médico, em especial às disposições da
Lei do Estágio relativas à obrigatoriedade de se ter a supervisão
e fiscalização das atividades realizadas por professor preceptor.
Durante congresso realizado na Universidade de São Paulo
(USP), aconteceu o V Fórum do Internato, em que foram discutidas as
mazelas que atingem esta modalidade de estágio obrigatório. Neste
evento, um dos principais pontos que suscitou maiores controvérsias
foi o referente ao que se deve entender por professor preceptor, pois
para alguns, basta que o profissional seja médico inscrito no cRM e
que labore na unidade de saúde que recebe o interno.
Todavia, isto não é o suficiente. A falta de capacitação pro-
fissional de médicos para exercer a docência possui altos índices,
atingindo diretamente a qualidade do ensino, diante do não domí-
nio das técnicas de docência para o ensino superior.
De acordo com relatos de Suelen Nunes (2012), durante
o Fórum a definição de quem seriam os preceptores foi um dos
maiores desafios. Afinal, os preceptores deveriam ser profissio-nais que já estavam presentes nos serviços, mas que, entretan-
to, era preciso convencê-los a realizar a supervisão acadêmica e,
principalmente, a realizar a capacitação para a docência.
A referida falta de capacitação profissional dos médicos pre-
ceptores é ponto discutido e criticado inclusive por acadêmicos
em estágio obrigatório, conforme aduzido a seguir:
[...] Foram criticadas ainda a falta de continuidade do acompanha-
mento do paciente e a falta de orientação docente nas atividades
ambulatoriais: “(...) A crítica, no caso dos ambulatórios no hospital,
é com relação à descontinuidade dos mesmos e à falta de orien-
tação também (...)”(E2). [...] Alguns ponderaram que os profissio-
nais, que estão em contato com os estudantes durante o Internato,
nos diversos níveis de atenção, não são treinados para a docência e
que isso acarreta dificuldades, algumas vezes relacionadas ao des-
preparo e à “má vontade” para a orientação. (...) a grande maioria
dos professores que estão no Internato e ministram as disciplinas
são formados médicos, habilitados a trabalhar a assistência ao pa-
ciente e não a ser docente (...). (P7) (...) o Programa de Saúde da
Família não está bem estruturado ainda para colocar um aluno que
está em formação terminal dentro de uma equipe em que o médico
não é formado como Médico de Família, ele também está se for-
mando (...). (P1). (CHAVES, GROSSEMAN, 2006, p. 1).
Neste diapasão, o cRM/MG, através do parecer-consulta
n. 003414/2008, se manifestou no sentido de que “considera-se
como preceptor na unidade hospitalar ou ambulatorial o médico
que esteja habilitado para o exercício profissional e que tenha
capacitação para a atividade”, entenda-se, capacitação técnica
para a docência.
Por fim, ante a todo o exposto, conclui-se que muitas são
as violações à Lei do Estágio, à lei penal e à cRFB/88 vigen-
tes, bem como aos demais instrumentos normativos aplicáveis
ao estágio obrigatório no curso de medicina. Desta feita, as
consequências jurídicas de tais violações espraiam efeitos em
diversos âmbitos, desde o administrativo, até o previdenciário,
trabalhista, criminal e cível. E estarmos atentos ao descum-
primento da legislação que rege o estágio, em especial, o do
acadêmico em medicina, denunciando-o às autoridades com-
petentes, constitui meio capaz de evitar danos graves à socie-
dade, que se encontra exposta muitas vezes a riscos tão sérios
e que podem afetar, sobremaneira, a garantia e a efetividade
de direitos fundamentais da pessoa humana.
6 concLusão
Diante do novo contexto social, político, econômico e tec-
nológico que se instaurou a partir do neoliberalismo no mundo
inteiro, a insegurança ao ingressar no mercado de trabalho tor-
nou-se ainda mais comum, em especial para os iniciantes. E,
certamente, muitas das habilidades mais importantes a serem
desenvolvidas no ambiente de trabalho podem ser adquiridas e
vivenciadas fortemente na fase do estágio.
Dessa forma, o que se deve buscar na prática, sempre e
cada dia mais, é que não seja desvirtuado o objetivo final do
estágio: ensinar educando sob supervisão efetiva, para que o
então estagiário se torne um profissional capacitado no futuro,
pronto para lidar com as adversidades do dia a dia da profissão
que escolheu, sem que para isso seja usurpada a sua condição
e explorado, na ilegalidade, o seu trabalho.
Isto porque a partir do momento em que se explora o traba-
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lho do estagiário além do que permite a legislação (ainda mais no
curso médico, cujas situações postas à apreciação do profissional
são altamente complexas e exigem amplo conhecimento daquele
que prestará o atendimento solicitado), são violados bens jurídicos
extremamente relevantes, a saber, a vida, a saúde e a segurança
do paciente, e, em contrapartida, a segurança e o direito a uma
educação plena e de qualidade do acadêmico, sendo as conse-
quências jurídicas de tais violações tratadas com rigor pelo orde-
namento jurídico brasileiro e puníveis em diversas esferas, desde
a administrativa até a judicial, com sanções de caráter cível, penal,
trabalhista e previdenciário, tanto para o médico preceptor (vincula-
do à parte concedente) quanto para o estagiário e a instituição de
ensino que se eximiu do dever legal de fiscalizar as condições em
que o estágio era exercido.
referÊncIAsBRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 10 de julho de 2014.
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notAs de fIm1 Advogada. Graduada em Direito pelo centro Universitário Newton Paiva. Autora de artigos científicos sobre Direito do Trabalho, Direito civil, Biodi-reito e Bioética publicados em obras coletivas e em eventos nacionais e internacionais de pesquisa. Na graduação atuou como monitora do Depar-tamento de Direito civil – Obrigações e Responsabilidade civil, e também como pesquisadora bolsista do xI Programa de Iniciação científica. Láurea acadêmica de Melhor Aluno do curso de Direito.
2 Advogada. Graduada em Direito pelo centro Universitário Newton Paiva. Autora de artigos científicos publicados em revistas especializadas e em eventos nacionais de pesquisa.
3 Salutar esclarecer ao leitor que para a elaboração deste tópico foi realiza-da pesquisa jurisprudencial, doutrinária e legal, acompanhada de entrevista com um grupo de acadêmicos internos pertencentes a diversas instituições de ensino superior localizadas em diferentes estados brasileiros, para fins de verificar com maior abrangência a ocorrência ou não de violações à lei do estágio. Por fim, cumpre frisar que as informações obtidas foram coletadas no exercício profissional e para fins científicos e, em decorrência do princípio do sigilo das fontes e do sigilo profissional, não serão divulgados os nomes dos entrevistados, nem das instituições de ensino a que se vinculam, nos termos do art. 5º, Ix e xIV da cRFB/88.
4 EMENTA: Os estágios dos estudantes de medicina são regulamentados pelo Decreto Lei 2080/96, pela Lei 11788/2008, pela Resolução do conselho Federal de Educação o1 de 04-05-89, que têm por princípio preservar os pacientes, os estudantes, os professores e a instituição (anexos). (PAREcER-cONSULTA Nº 3817 / 2009 . cONSULENTE: Dr. A.M.P. RELATOR: cÍcERO DE LIMA RENA - cRMMG – 6090. Belo Horizonte, 05 de outubro de 2009).5 Ressalte-se que a referida autonomia não decorre de atribuição legal, mas pura e simplesmente de práticas ilegais comuns no dia a dia do estágio médico obrigatório.
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6 Embora não mencionado pelo respeitável autor citado, outro requisito exigido para o exercício da medicina, além da formação completa em curso superior de medicina, é a inscrição regular perante o conselho profissional da categoria.
7 [...] é um verdadeiro absurdo a forma como são estruturados vários dos nossos rodízios (estágios) do internato. Se às vezes até o projeto pedagó-gico já prevê um rodízio denso, na grande parte delas temos períodos bas-tante extenuantes, com cargas horárias que chegam fácil a 50/55/60 horas semanais. Não bastasse a quantidade de horas dentro do Serviço, somos submetidos em 80% desta carga horária a trabalhos braçais (evolução dos pacientes, correr atrás de exame, correr atrás de interconsulta, carregar ma-cas, etc). Não digo que não temos de nos dedicar a isto também, mas a ló-gica que tem permeado os períodos de Internato em todo o Brasil é de que o Interno resolve tudo, o residente carimba, e o chefe dita a conduta. Isto demonstra o quanto o funcionamento de milhares de enfermarias, ambula-tórios, centros obstétricos, etc espalhados pelo país depende do trabalho dos internos. (Ex-interno do curso de medicina da UFPE – não identificado na reportagem, 2008, p. 1).
8 Para ilustrar práticas ilegais justificadas por acadêmicos de medicina (não apenas os matriculados no internato médico) segue trecho da reportagem “Quase Profissionais”, de Eduardo Ross, veiculada no Jornal da Facom da Universidade Federal da Bahia: “Esquema político - Além do exercício ir-regular, alunos*, dentre eles x. M., denunciam práticas ilegais promovidas por políticos nas quais se envolveram. Esse é o caso de um ex-vereador de Salvador e atual deputado federal**. Tal político costumava, durante a campanha, recrutar estudantes de medicina, independente do semestre do curso, muitos ainda inexperientes, para irem a bairros periféricos de Salva-dor distribuir prescrições de exames e receitas de remédios, dentre outros serviços. “Essa prática existe, pelo que eu sei, há pelo menos 12 anos. O estudante fica lá em um carro do político, sozinho, acompanhado de dois funcionários, sem nenhuma habilitação, que ficam distribuindo ‘santinhos’, enquanto o aluno passa prescrições de exames conforme o pedido das pessoas. Em um dia, a gente chegava a atender mais de duzentas. Era tudo feito visivelmente para ganhar votos”, conta um estudante de Medi-cina. Para fazer o serviço, ele diz que os alunos recebiam R$ 100 por uma jornada que ia de 7 da manhã às 17 h.”.
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do errado e do certo: notas sobre as interseções entre a moralidade convencional e o crime1
carlos magalHães2
RESUMO: No presente trabalho, analisamos as formas pelas quais homens que se encontravam presos no período da pesquisa relatam a sua própria trajetória
de vida e o seu envolvimento com o crime. Partimos do pressuposto de que esses relatos podem ser compreendidos com base no conceito de rotulação, ou
seja, o processo de construção social do agente de práticas criminais como indivíduo criminoso. Para a teoria dos rótulos as consequências mais importantes
de alguém ser rotulado como desviante são: a mudança drástica na identidade pública do indivíduo e, na sequencia, a constituição de uma autoimagem corre-
spondente à rotulação. O levantamento de dados foi feito por meio de entrevistas em profundidade, orientadas por um roteiro semiestruturado. Foram realizadas
cinquenta e cinco entrevistas em três estabelecimentos penais da Região Metropolitana de Belo Horizonte – MG. Procuramos verificar como os entrevistados
abordam a dimensão moral da atividade criminosa e como avaliam a pena que lhes foi imposta. A principal conclusão é que os entrevistados, de um modo geral,
constroem seus relatos partindo da premissa de que são indivíduos criminosos, no entanto, assumem diferentes posicionamentos em relação a essa atribuição
pública de identidade e incorporam o rótulo de diferentes maneiras.
PALAVRAS-CHAVE: Crime; moralidade; rotulação; prisão; justiça.
ABSTRACT: In this work, we analyze the accounts of men who were prisoners during the period of our research about their life and how they became involved
with crime. The starting point was the presupposition that it’s possible to understand these accounts based on the concept of labeling, that is, the process of
social construction of the agent of criminal deeds as a criminal individual. For the labeling theory the most important consequences of someone being labeled as
deviant are: a drastic change in the public identity of the individual and, in sequence, the formation of a self-image corresponding to the labeling. Data-collecting
was achieved by depth interviews, guided by a partially structured script. Fifty-five interviews were done at three prisons located in the metropolitan area of Belo
Horizonte – MG. We interviewed these individuals about the moral dimension of the criminal activity and how they evaluate the penalty that was imposed on them.
As a main conclusion, we may assert that the agents, in general, construct their accounts under the belief of themselves as criminal individuals. However, they
assume different positions in relation to that public attribution of identity and incorporate the label in different ways.
KEYWORDS: Crime; morality; labeling; prison; justice.
ÁREA DE INTERESSE: Criminologia; Sociologia Jurídica.
SUMÁRIO: 1- Introdução; 2 - A Realidade Moral; 3 - A Família, a Simplicidade da Vida no Interior e a Religião; 4 - Prisão Injusta, Elaborações sobre a Pena; 5 -
Código de Conduta dos Bandidos; 6 - Deterioração do Mundo do Crime, Desconfiança; 7 – Homicídios; 8 - Considerações Finais;
1 Introdução
Nosso propósito neste artigo é analisar algumas entrevistas
realizadas com homens que cumpriam pena privativa de liberdade
pela prática de algum crime buscando destacar os aspectos mo-
rais presentes em suas falas. Acreditamos que esta análise nos
ajuda a enxergar a complexidade das motivações e das ações,
particularmente nos casos em que os estereótipos e rótulos levam
a uma visão muito limitada. Não raramente, por exemplo, as ideias
de leigos e especialistas sobre o poder dissuasório da pena se
sustentam em concepções muito precárias sobre as motivações
da ação. Procuramos ouvir as pessoas presas de modo a compre-
ender de forma mais aprofundada suas motivações e os significa-
dos que atribuem à sua conduta. Em especial, estaremos atentos
aos juízos apresentados pelos próprios entrevistados sobre o que
é certo e o que é errado em seu comportamento.
Acompanhando as ideias de David Matza (1969: p. 17), re-
jeitamos, no estudo do desvio e do crime, a perspectiva corretiva.
De acordo com o autor, quando o fenômeno do desvio (e do crime
por extensão) é estudado a partir da perspectiva corretiva a pos-
sibilidade de deixá-lo escapar – reduzindo-o a algo que não é, re-
tirando seus detalhes e singularidades – é maior. A preocupação
com as causas e com a etiologia do fenômeno, que faz parte da
atitude corretiva, faz com que a atenção se desvie do fenômeno
em si mesmo e se fixe no objetivo de eliminá-lo. Perdem-se assim
os detalhes do objeto. Toda a diversidade do mundo real deve ser
afastada para que se possam estabelecer as devidas relações de
causa e efeito entre variáveis homogêneas e reduzidas a aspectos
supostamente essenciais.
A opção pela perspectiva corretiva pode provocar também
a incapacidade de separar os padrões convencionais de morali-
dade da descrição da realidade. O fenômeno é visto de fora e é
descrito como algo moralmente reprovável ou inconveniente, que
precisa ser eliminado. Questões importantes e complexas, como
os motivos e significados que orientam a conduta desviante, são
abordadas de uma forma superficial que se volta não para as pos-
sibilidades de descrição e compreensão aprofundada da conduta,
mas para as possibilidades de predição, controle e eliminação.
Os desviantes são vistos do ponto de vista dos membros da so-
ciedade que não querem a continuação daquele tipo de compor-
tamento.
à perspectiva corretiva se opõe aquela que Matza chama de
apreciação. A apreciação requer que o pesquisador se aproxime
do fenômeno e procure compreendê-lo em seus detalhes e com-
plexidades. De fato, os seres humanos participam de atividades
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significativas. Eles criam ativamente sua própria realidade e a do
mundo ao redor. Os homens transcendem a dimensão existencial
em que concepções como causalidade, força e reatividade são
facilmente aplicáveis. conceber os seres humanos como objetos,
aplicar métodos de investigação que desconsideram a dimensão
significativa do comportamento seria equivocado. Os seres huma-
nos têm de ser vistos como sujeitos, pois só assim será possível
realizar uma descrição acurada das suas experiências.
Do nosso ponto de vista, mais importante do que estabe-
lecer, classificar e hierarquizar causas é descobrir como os en-
volvidos com práticas criminosas operam, do seu próprio ponto
de vista, com os diversos sentidos e significados relacionados à
ocorrência do comportamento criminoso. Não pretendemos neste
artigo analisar o comportamento dos indivíduos a partir de uma
perspectiva corretiva que faz uso de argumentos de ordem moral
para caracterizar suas condutas como indesejáveis. Nosso obje-
tivo, ao contrário, é verificar como os próprios indivíduos fazem
uso de concepções morais ao construírem relatos sobre o seu
envolvimento com atividades criminosas.
Acompanhando Howard Becker (1977), acreditamos que o
desvio (ou o crime) não é uma qualidade intrínseca de atos ou
atores específicos, mas uma consequência da reação da socieda-
de (ou melhor, dos segmentos detentores do poder de definição)
a esses atos e atores que, no final das contas, os define como
criminosos. Ou seja, para Becker (1977: p. 60)
os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração
constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e
rotulá-las como marginais e desviantes [...] O desviante é alguém
a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento
desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal.
De acordo com Becker, as consequências mais importantes
de ser rotulado como desviante são: a mudança drástica na iden-
tidade pública do indivíduo e, na sequência, a constituição de uma
autoimagem correspondente à rotulação (idem, 78-80).
2 A reALIdAde morAL
Para émile Durkheim, a moral se apresenta como um siste-
ma de regras de conduta, mas as regras morais têm uma impor-
tante peculiaridade na medida em que se constituem a partir de
dois aspectos diferentes, porém inseparáveis: por um lado, são
investidas de uma autoridade especial que resulta em obediência
e, portanto, em obrigação. Por outro lado, além da obrigação, as
regras morais são também desejadas, pois só assim poderão ser
cumpridas por sujeitos reais.
De acordo com Durkheim (1994: p. 58), embora as regras
morais sejam desejadas, não são cumpridas sem esforço. No en-
tanto, o próprio esforço é desejável na medida em que nos projeta
para fora de nós mesmos, ou seja, nos eleva por cima de nossa
própria natureza. Essa realidade que nos supera, que nos projeta
para fora e que desejamos não pode ser outra a não ser o próprio
grupo considerado como algo qualitativamente diferente da sim-
ples somatória dos indivíduos que o compõem. Para Durkheim
(1994: p. 77), “nós não temos deveres, a não ser frente às cons-
ciências; todos os nossos deveres se dirigem às pessoas morais,
aos seres pensantes”. como a qualificação de moral não pode ser
aplicada a um ato que tivesse por alvo apenas o interesse do in-
divíduo, decorre que “não resta outra finalidade à atividade moral
que o sujeito sui generis, formado por uma pluralidade de sujeitos
individuais associados de maneira a formar um grupo; enfim, não
resta mais que o sujeito coletivo” (DURKHEIM, 1994: p. 79).
O grupo não esgota todos os aspectos da realidade moral.
Fora da moral comum e geral do grupo, segundo Durkheim, há
uma multiplicidade de outras, pois “cada indivíduo, cada cons-
ciência moral particular, expressa de sua maneira esta moral co-
mum: cada indivíduo a compreende e a vê a partir de um ângulo
diferente”. cada um tem o seu daltonismo moral particular. Nesse
aspecto, “não existe consciência moral que não seja imoral em
alguns aspectos” (DURKHEIM, 1994, p. 64).
A importância maior da moralidade comum encontra-se no
fato de que ela representa a realidade objetiva que, de acordo
com Durkheim, serve de ponto de referência para julgar as ações.
Ações que seriam morais de um ponto de vista particular podem
ser imorais do ponto de vista da moralidade comum objetiva. Vale
ressaltar que moralidade e imoralidade, na concepção durkhei-
miana, não são contrários. São apenas as duas formas da vida
moral (DURKHEIM, 2002: 166).
Para identificar as regras morais e diferenciá-las das regras
técnicas, Durkheim (1994) observa o que acontece quando são
violadas. No caso das regras técnicas, quando são violadas, ocor-
rem, em função do próprio ato de violação, as consequências que
podem ser chamadas de mecânicas. Segundo o exemplo dado
por Durkheim, se violo as regras da higiene que me ordenam que
não me aproxime de coisas contaminadas, sofro a consequência
da enfermidade. As consequências podem ser previstas quando
se examina o próprio ato a ser praticado.
No caso das regras morais, não posso deduzir da análise de
um possível ato de violação a sua consequência. Quando violo a
regra que me ordena não matar, exemplifica Durkheim, não en-
contro no próprio ato do homicídio a menor noção de condenação
(1994: p. 67-8). Neste caso, entre o ato e a sua consequência – a
sanção – existe uma completa heterogeneidade. Para Durkheim
(1994: p. 69-9),
[...] a sanção é uma consequência do ato, que não resulta do seu
próprio conteúdo, mas da circunstância de que o ato não se acha
de acordo com uma regra pré-estabelecida. Ou, em outras pala-
vras: é por existir uma regra ditada com anterioridade e porque o
ato é um ato de rebelião contra essa regra, que o mesmo implica
uma sanção.
As regras pré-estabelecidas contam com a autoridade moral
derivada do grupo ou sociedade e por esse motivo impõem res-
peito. A sociedade ou grupo, na concepção de Durkheim, é “um
conjunto de ideias, de crenças, de sentimentos de toda espécie,
num amálgama realizado pelos próprios indivíduos” (1994: p. 90).
Vale destacar que esse amálgama ultrapassa e supera a realidade
individual, mas é o resultado das ações e reações que ocorrem
entre os indivíduos e que produzem uma vida mental nova.
Este é um dos principais pontos de aproximação entre
a abordagem durkheimiana e a de Garfinkel (1967) aponta-
dos por Hilbert (1992). Na medida em que é um aspecto da
consciência coletiva, a moralidade constitui-se como algo que
nenhuma pessoa concreta pode incorporar, manifestar ou ser.
Qualquer comportamento individual será, um pouco mais ou
um pouco menos, uma violação da moralidade coletiva, mesmo
porque pode se pautar por regras morais restritas a um grupo
ou a uma situação específica. De acordo com Hilbert (1992: p.
47), a consequência mais importante do caráter transcendente
da moralidade coletiva seria aquela situação em que a consci-
ência coletiva, nas mentes individuais, se reduziria a alguma
coisa fenomenicamente não existente, o que enfraqueceria o
tecido da sociedade, produzindo anomia.
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Para que se afaste a possibilidade da anomia, os membros
da sociedade recuperam a moralidade comum e o sentido de or-
dem estável identificando as ações de transgressão e realizando
o julgamento ritual do status daqueles comportamentos de acor-
do com os termos da consciência coletiva, que de outra forma
seria um ideal inacessível ou mesmo intangível. Essa cerimônia
recorrente é essencial para a manutenção da sociedade, ou da
moralidade percebida como uma realidade objetiva, e é colocada
em prática nas mais diferentes e corriqueiras interações sociais.
Os membros da sociedade ou dos grupos realizam continu-
amente esses procedimentos para a manutenção de um sentido
de ordem estável. Quando julgam e sancionam as ações concre-
tas com base em uma noção de moralidade comum objetiva, es-
tão na verdade construindo em seus relatos não só os sentidos
das ações concretas, como estão também tentando recuperar a
percepção da existência de uma moralidade comum objetiva e
transcendente. Nem sempre os membros e grupos são bem suce-
didos. A anomia é sempre uma possibilidade e sua aparição terá
de ser administrada de alguma forma.
Nas próximas páginas, vamos fazer, a partir de entrevistas
concedidas por pessoas que cumpriam pena privativa de liberdade,
alguns apontamentos sobre as interseções entre a moralidade con-
vencional e o envolvimento com atividades criminosas. Procuramos
chamar a atenção para os aspectos morais do pensamento das pes-
soas envolvidas com atividades criminosas quando perguntadas e
estimuladas a construir relatos sobre as suas próprias experiências.
3 A fAmÍLIA, A sImpLIcIdAde dA vIdA no InterIor e A reLIgIão
O primeiro aspecto que se destaca nas entrevistas em rela-
ção ao desenvolvimento de argumentos morais é o grande valor
atribuído à família e, em especial, à mãe pelos entrevistados. com
poucas exceções, a família e a mãe são apresentadas como enti-
dades que ocupam o lado oposto de uma opção que é entendida
por alguns como “errada”. Alguns entrevistados referiram-se a si
mesmos como sendo a “ovelha negra” da família. O único entre
os familiares que teria se envolvido com o crime. Ramalho (2002:
p. 112) observou o mesmo tipo de referência à família em sua
etnografia sobre o mundo do crime. De acordo com o autor, a va-
lorização da família corresponde a um sinal de recuperabilidade,
ou seja, à possibilidade de retorno à vida em sociedade.
André, por exemplo, conta que passou a infância com a famí-
lia e viveu na casa dos pais até os 18 anos. A maneira como vê o
seu envolvimento com o crime já se evidencia quando diz: “Eu fui
a primeira ovelha negra”. Muitas vezes, os entrevistados falam da
condição de vida dos irmãos, destacando o fato de que trabalham,
têm bons empregos e famílias estruturadas. Parecem querer dizer
com isso que poderiam também ter seguido o caminho conven-
cional, mas que, por algum motivo, não o fizeram. A referência aos
irmãos significa também que o caminho convencional não está fe-
chado, poderá ser retomado após o cumprimento da pena. Muitos
contam com a ajuda da família para recomeçar. Os entrevistados
parecem dizer que têm uma origem boa, que poderá ser recupera-
da em algum momento da vida. Aqueles que se apresentam como
“ovelhas negras”, preservam as famílias como a referência de uma
conduta adequada em relação às regras sociais, conduta que po-
derão retomar no futuro. colocam-se como desviantes em relação
a um padrão familiar correto e contam com a ajuda dos familiares
para retornarem ao caminho considerado bom.
Não são poucos os casos de entrevistados que relataram
situações em que ofereceram dinheiro em casa, para ajudar nas
despesas, mas que a mãe ou o pai recusaram veementemente a
quantia, pois sabiam da sua origem ilícita. André chegou a ofere-
cer dinheiro à mãe, mas ela dizia que “dinheiro de crime é coisa
que não presta”. O entrevistado passou então a esconder da mãe
o seu envolvimento. Sempre que ela perguntava, ele negava e
dizia que “não estava mexendo” com o crime.
André contou uma história curiosa: a sua mãe passava por
severas dificuldades financeiras, não tendo, muitas vezes, o que
comer em casa. O entrevistado, já envolvido com o crime, queria
ajudar, mas a mãe se recusava a aceitar qualquer ajuda vinda dele
porque desconfiava da origem ilícita do dinheiro. O entrevistado
passou então a pagar a uma pessoa para que se apresentasse
à sua mãe como alguém que estivesse pagando a seu filho por
um serviço realizado. Dessa maneira a mãe aceitava o dinheiro
e podia fazer a despesa de casa. O entrevistado mostra com seu
relato que a família não compartilha de seu envolvimento com ati-
vidades ilícitas e, ao mesmo tempo, mostra que as suas intenções
eram “boas”. Engana a mãe e oferece a ela o dinheiro ilícito, que
de outra forma recusaria, mas por um motivo “nobre”, ou seja,
para o sustento da casa. O relato evidencia o uso de um procedi-
mento engenhoso pelo qual são manipulados os preceitos morais
respeitados pela mãe de modo que se atinja um resultado moral-
mente “desejável”, o sustento da casa.
Sérgio, como também acontece com frequência, dá impor-
tância à sua família e ao fato de conviver com os familiares mesmo
depois do envolvimento com o crime. A família é uma espécie de
ponto de referência do que é certo e do que é bom. Mesmo afas-
tado do modo de vida indicado pela família ou por aquilo que ela
representa, o entrevistado continua valorizando os conselhos dos
pais e as tentativas de retirá-lo do envolvimento com o crime.
Eu tive família, até hoje, graças a Deus, né, quando fala com eles é
muito bom, né. Minha família me deu muito conselho, minha mãe e
meu pai arrumou emprego pra mim de office boy”.
Depois que sair da prisão, Sérgio pretende cuidar da sua fa-
mília. Essa fala é bastante comum, talvez repetida mais vezes do
que aquelas que se referem ao desejo de conseguir um emprego.
Muitos entrevistados se referem à família como o lugar para onde
vão quando saírem da prisão. Alguns dizem que vão voltar para
casa da mãe, outros dizem que vão morar com a esposa e os filhos.
Em relação ao emprego, quase todos afirmam que preten-
dem deixar o crime e trabalhar em uma atividade convencional.
Mas muitos demonstram desconfiança em relação às reais possi-
bilidades de conseguirem emprego. Alguns entrevistados, depois
de falarem que pretendem trabalhar, fazem algum tipo de ressalva
dizendo que existe a possibilidade de não conseguirem emprego
e que, nesse caso, seriam obrigados a voltar ao crime. Nestes
casos, se eximem de responsabilidade pelo retorno ao crime, pois
essa alternativa não seria pretendida, tendo ocorrido apenas por-
que a “sociedade” não facilitaria o retorno de egressos do cárcere
ao mercado de trabalho.
Nesse aspecto, o interior do estado costuma aparecer nas
entrevistas como uma solução tanto para o problema da vida em
família, como do emprego. Vários entrevistados se referiram à
ideia de passar a morar no interior com a família depois de cum-
prida a pena, ou mesmo durante a liberdade condicional, e dessa
forma se afastarem das tentações e perigos da cidade grande. O
interior também é visto como um lugar em que é mais fácil conse-
guir um emprego, mesmo que seja um emprego na lavoura.
Em alguns casos, a referência ao emprego na lavoura
se mostra claramente como uma opção por uma alternativa
de emprego simples e de baixa remuneração que contrasta
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evidentemente com o estilo de vida que contribuiu para que
o entrevistado se envolvesse com a atividade criminosa. Isto
é, um estilo de vida que exige gastos com bebidas, drogas,
mulheres, carros, motos e que está sempre está ligado à aven-
tura. Parece haver um raciocínio que associa a simplicidade
da atividade a uma suposta pureza. Assumir uma atividade
simples e de remuneração pequena seria uma forma de se
afastar das tentações do crime. Há claramente um sentido
moral nesse raciocínio na medida em que a opção pela vida
“simples” do interior é percebida como algo intrinsecamente
“bom” que trará como recompensa – ou sanção positiva – o
afastamento das tentações do crime.
4 prIsão InJustA, eLAborAções sobre A penA
Em relação à prisão e à condenação, muitos entrevista-
dos, mesmo se apresentando como culpados, percebem al-
gum tipo de injustiça durante os procedimentos. Os critérios
que usam para avaliar a sua conduta e as medidas tomadas
pela polícia e pela justiça criminal dizem muito sobre as suas
ideias sobre a atividade criminosa.
Em relação à prisão por tráfico, Alisson acredita que a prisão
foi injusta, pois o flagrante teria sido forjado.
Na justiça, pela lei, eles não poderia ter dado flagrante ne nós. Por-
que é o seguinte, rodou eu e meu parceiro, a gente já tava cague-
tado no 0800. Só que, porém, a caguetagem do 0800 era que eu
era traficante, meu parceiro também era traficante, mas não tinha
droga nenhuma que eles pegasse com nós, ele deram geral ne nós,
não pegou nada com nós, e foi lá no jogo de totó, numa distância
daqui na parede, pegô a droga dentro do totó e falou que era nossa.
O pessoal do bar testemunhou a nosso favor. A polícia pra forjar pra
qualquer um eles não mudam a roupa não.
O entrevistado não contesta o fato de ser traficante, con-
forme teria sido denunciado pelo telefone. Mas contesta a forma
como foi efetuada a prisão, já que o flagrante teria sido forjado
pela polícia. Alisson percebe e relata uma das formas de operação
da rotulação (BEcKER, 1979) na medida em que foi preso “por ser
traficante” e não pela “posse de drogas”. Agia cuidadosamente,
procurando não portar drogas, evitando assim o flagrante. Mas
como “a polícia pra forjar pra qualquer um, eles não mudam a
roupa não”, a sua precaução não foi suficiente para evitar a prisão.
No entanto, é interessante observar que apesar de reco-
nhecer a injustiça do flagrante forjado, a situação toda é perce-
bida com desalento.
Eu tô preso, tô pagando, não adianta não, mas só que pela justiça, pela
lei mesmo, eu não poderia ser condenado não. A denúncia foi anôni-
ma, correto, mas eu não tinha nada na mão, como iam me prender?
Quando afirma que está preso, que está “pagando” e que
não adianta fazer nada para mudar a sua condição, Alisson cons-
tata de forma resignada que é impotente para reverter a situação.
Mesmo que a prisão tenha sido injusta, não há recurso possível, o
entrevistado se conforma a cumprir a pena.
A mesma postura de resignação aparece em outras entre-
vistas. Sobre a prisão, André conta que emprestou uma arma
para rapazes que foram fazer um assalto e acabaram matando
o vigia. “A condenação que eu tomei nesse revólver foi muito.
Foi 8 anos semiaberto. E eu não tinha envolvimento nenhum.
Se eu tivesse envolvimento, aí sim, mas eu não tinha”. O en-
volvimento que ele afirma não ter seria o de estar presente no
momento do crime.
Mesmo percebendo como injusta a decisão judicial, conclui
da seguinte maneira: “Em relação à justiça é isso mesmo, cometeu
erro tem que pagar”. Ou seja, o entrevistado admitiu ter cometido
um erro e reconhece a necessidade de pagar, mas o erro que admi-
te parece ser o de ter praticado uma ação – o empréstimo da arma
– que “para ele” não seria errado, mas que “para a justiça” é motivo
de condenação. O fato de a sentença ser injusta é percebido ape-
nas como um dado da realidade contra o qual não é possível reagir.
Fabrício, ao narrar a história de sua prisão, também adota
uma postura resignada:
Fugi aí mais ou menos uns 5 ou 6 quarteirão a pé porque o carro
que eu tava com eles foi sair e deixou eu sozinho e nisso aí quando
eu fui abordado eu fui abordado como sempre apanhando, claro.
Aí apanhei uns 10/20 minutos porque eles queriam que eu falasse
onde estavam os outros, mas eu não sabia e mesmo se soubesse
não ia falar de jeito nenhum. Depois eles me levaram para o DI,
fiquei lá 10 dias, o advogado foi lá com meu pai. Depois eles man-
daram um bonde com dez pra cá [Dutra Ladeira] e eu vim nesse
bonde e to aqui até hoje.
Nessa última fala é interessante destacar a expressão “aí
apanhei uns 10 ou 20 minutos...” Mais uma vez aparece a percep-
ção resignada sobre o funcionamento do sistema de justiça crimi-
nal. O fato de apanhar da polícia é algo natural para o entrevistado
– “eu fui abordado como sempre apanhando” – e ele se refere ao
acontecido sem nenhuma emoção, sem se referir ao sofrimento,
mas apenas ao tempo de duração. A agressão física é percebida
como um meio tecnicamente adequado para se atingir um fim –
“Aí apanhei uns 10/20 minutos porque eles queriam que eu falasse
onde estavam os outros” –, mas o entrevistado destaca que não
falaria, pois assim estaria traindo a confiança dos companheiros e
correndo o risco de sofrer alguma retaliação.
Igor, como os demais, considera que a prisão não foi justa.
As provas teriam sido forjadas. No entanto, o próprio entrevistado
reconhece ter cometido crimes. Mas pensa que só poderia ser
preso legalmente pelos crimes que realmente praticou. como a
polícia não conseguiu prendê-lo por esses crimes, acabou forjan-
do um flagrante, já que estava “de olho” no que ele fazia.
Não foi [justa] não, porque eles me confundiu, uai. Eu posso tá
pagando por outros crime, né? Porque eles já tava de olho ne mim.
Então é por isso mesmo, eles tava de olho ne mim, então eles não
conseguiu me pegar pelos atos que eu tava fazendo, e pos isso aí
pra mim, foi forjado mesmo.
Ao mesmo tempo o entrevistado acredita que aprendeu al-
gumas coisas boas na cadeia e que, de certa forma, pode ter sido
bom ficar preso. caso não estivesse preso, poderia estar morto,
argumenta.
Então pra mim aqui eu aprendi muita coisa. Pra te falar a verdade,
foi até bom pra mim. Se eu tivesse lá eu podia não tá conversando
com você aqui agora no momento, eu podia tá no caixão, eu podia
tá aleijado, na cama. Tem coisas boa, mas tem coisas ruim também
que corre aqui entre nós.
Fabrício considera a pena recebida injusta para o tipo de
crime que praticava.
Acho que minha pena foi injusta pelo seguinte: 157 primário, não
atirei em ninguém, só roubei lotérica, eu tomei 5 anos e 7 meses,
fechado, primário. O que o 157 levaria é 5 anos e 7 meses semiaber-
to, se eu tivesse ganhado 5 e 7 semiaberto tudo bem, mas eu tomei
um fechado. Tem que pagar no mínimo uns dois anos e seis meses.
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Ou seja, além de primário, não atirou em ninguém e não pra-
ticou o roubo contra transeuntes, mas apenas contra casas loté-
ricas. Por isso a pena deveria ser em regime semiaberto. Vários
entrevistados apresentaram avaliação desse mesmo tipo. O roubo
a transeuntes e o uso de violência desnecessária durante a ação
do roubo são percebidos como ações passíveis de sanção. Um en-
trevistado chegou a mencionar que sempre procurava tratar bem a
vítima. Outro disse que mesmo em caso de reação da vítima procu-
rava manter a frieza e não usava de violência. Alguns entrevistados
deram ênfase ao fato de que avisavam claramente à vítima que se
interessavam apenas por seus pertences, ou seja, não pretendiam
agredi-la. Vários entrevistados se referiram ao fato de que roubaram
sem usar de violência e por esse motivo a pena deveria ser menor.
Mesmo assim, o roubo a transeuntes é mal visto por muitos
dos entrevistados. A maioria negou ter praticado esse tipo de cri-
me. Muitos dos que admitiram o fizeram se desculpando, expon-
do circunstâncias que os obrigaram a tomar esse tipo de iniciativa
que eles próprios consideravam errada. Da mesma forma, o roubo
a passageiros de ônibus é visto como algo errado. Roubar pesso-
as que trabalham e têm pouco dinheiro é visto como algo ruim.
O roubo a estabelecimentos comerciais, por outro lado, é
visto como uma forma de roubar de quem tem. No caso das loté-
ricas parece haver ainda uma percepção de que roubar o dinheiro
do jogo é algo “menos errado” do que valores de outra procedên-
cia. O dinheiro do jogo seria um dinheiro dispensado ao azar, isto
é, não é um dinheiro a ser usado para o sustento da família.
Esses raciocínios, aparentemente contraditórios, em que a
prisão e a condenação são percebidas como injustas, ao mesmo
tempo em que os entrevistados reconhecem a culpa pelo envol-
vimento com o crime, fazem parte, na verdade, da percepção de
que o sistema de justiça criminal é desorganizado.
Os entrevistados mencionam em seus relatos que a atua-
ção da polícia ocorre frequentemente fora dos padrões legais.
Muitos entrevistados foram presos em flagrante. Em muitos ca-
sos, os indícios que levaram os policiais a se decidirem pela
prisão são questionados. Mesmo quando o flagrante não é
deliberadamente forjado, a sua caracterização pode ser feita
com base em elementos imprecisos. como narra um de nossos
entrevistados, a polícia não o encontrou, ou a seu parceiro, na
posse de drogas, embora houvesse uma denúncia de que era
traficante. A polícia encontrou drogas no mesmo recinto ocu-
pado pelos suspeitos. Independente de a droga ter sido colo-
cada no recinto propositalmente pelos policiais, como alega o
entrevistado, ou não, o fato é que o entrevistado, seu parceiro
e outras pessoas estavam presentes no bar em que a droga
estava escondida. A conclusão de que a droga pertencia aos
dois suspeitos se deu muito mais pela denúncia anterior de que
eram traficantes do que por alguma evidência inequívoca.
Os entrevistados mencionam em seus relatos a contradição
entre a incriminação legal pautada pelas regras processuais e a
acusação social/moral que se dirige contra a subjetividade do
transgressor e não contra a transgressão legalmente tipificada.
Não por acaso, os entrevistados contestam as acusações com
base em suas próprias concepções morais como a de que tomar
os pertences da vítima, desde que não se faça uso de violência
excessiva, não é algo tão errado.
Na verdade, a situação em que o suspeito é condenado
por indícios e não por provas demonstra a operação do proces-
so de rotulação criminal. A condenação por indícios significa
que o objeto do processo e da condenação não foi o crime,
mas a própria pessoa do agente que já entrou no processo,
desde o seu início, como culpado pela acusação moral. Os
entrevistados relatam que os policiais, muitas vezes, decidem
efetuar uma prisão porque já têm a suspeita, ou “já sabem”,
que um determinado indivíduo está envolvido com a prática de
crimes. Nesses casos, ao invés de investigar para determinar
a autoria de um crime, os policiais prendem aqueles que “já
sabem” que são autores de crimes, em um procedimento se-
melhante ao do inquérito realizado de trás para frente descrito
por Paixão (1982).
5 cÓdIgo de condutA dos bAndIdos
Mauro se apresentou como alguém que faz parte de uma
antiga “malandragem” que segue um código de conduta segundo
o qual o roubo e a violência que o acompanha não são aceitos.
Eu sou conhecido rua. Eu sou muito conhecido na rua. Porque es-
tou na rua desde os 13 anos de idade. Todos malandro me conhece
e falava comigo ‘vão róba” e eu falava ‘não, róba eu não róbo’”.
“Se eu topá com um desses folgado que gosta de pegar os outro
e ficar batendo eu quebro a cara dele, uai. Eu já vi gente querendo
pegar uma bolsa igual essa sua, se eu tiver passando perto na hora
eu falo ‘dá a bolsa ele rapaz, dá a bolsa senão eu te passo uma bala
na cabeça’. Não deixo não. Não deixo ninguém robá ninguém não.
O envolvimento com as atividades ilícitas começou com o
fascínio pelas armas e o desejo de andar armado.
Eu andava armado porque gostava, né. Quando a gente é mais mo-
leque a gente é meio sangue quente, entendeu. Então, vão supô, a
gente é sangue quente, mas a gente ainda tem um pouco o bom
pensamento, agora tem outros que já tem o mau pensamento.
A partir de certo momento, começou a usar e vender drogas.
Mauro justifica o uso dizendo que droga é algo que se encontra fa-
cilmente, que está presente em todos os lugares. Esse tipo de jus-
tificativa aparece com frequência. Os entrevistados reconhecem
que fazem algo errado, mas que não são os únicos. O erro seria,
na verdade, comum e disseminado e, portanto, “menos errado”:
“Foi a partir do momento em que eu fui ferido. Antes eu andava no
meio da malandragem, fumava um baseadim, isso aí é coisa que
cê já vai crescendo, vai vendo pra todo lado mesmo”.
warley acredita que pode sair do crime porque não tem ne-
nhum “furo”. Não tem dívidas ou desavenças.
Tenho cinco cadeia com essa aqui. Eu fui atuado no DI, do DI fui pra
Tóxico, da Tóxico fui pro CERESP, do CERESP pra Furtos & Roubos
e agora tô aqui. E daqui eu pretendo ir embora se Deus permitir, se
Deus me der a permissão dele, não tenho furo no crime, aonde que
eu entrá eu saio, agora quem tem furo infelizmente... Tem truta, vai
ali caguetá, caguetá é quem vai ali e fala pros polícia. Eu não tenho
guerra com ninguém, entrei sozinho e tô saindo sozinho nessas
unidade. Aonde que eu ir eu sou bem vindo.
O entrevistado afirma que é importante estar sozinho e não
participar de grupos. Participar de grupos implica necessariamen-
te inimizades com pessoas que não fazem parte daquele grupo.
Uma postura mais individualista pode significar a preservação de
uma reputação isenta de questionamentos, ou seja, de “guerras”,
como afirma warley. Os “furos” seriam provenientes das delações
e o entrevistado enfatiza que nunca as praticou.
Rogério estava preso por assalto a ônibus. como vimos na
seção anterior, o assalto contra passageiros de ônibus é mal visto
pela maioria. O entrevistado procura mostrar que não assaltava os
passageiros, mas apenas a empresa.
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Só assaltava o ônibus, pessoa que tá dentro do ônibus é sofredor
também. Então a gente, nesses assalto assim a gente ia mais pegar
o da empresa mesmo. Porque a empresa tem muito, né? O que a
gente tira deles ali é um desfalquinho lero lero.
Levar o dinheiro da empresa não é tão ruim porque eles “têm
muito”. Para o entrevistado, no caso da empresa, o roubo significa
um pequeno desfalque sem maior importância. A ação que pode-
ria ser condenada moralmente – roubar de trabalhadores sofredo-
res – não seria, de acordo com o relato, praticada. Vale destacar
que, ao se referir aos passageiros do ônibus como “sofredores
também”, o entrevistado estabelece um sentido de proximidade
que faria do roubo uma ação condenável. Roubar dos passagei-
ros seria roubar de semelhantes. Roubar da empresa, por outro
lado, seria roubar dos outros, dos que tem muito e para quem o
roubo representaria um pequeno desfalque.
Euclidiano conta que roubava casas lotéricas porque nelas
encontrava dinheiro de jogo. De acordo com o seu relato, não
teria coragem de roubar ônibus e táxis, pois o dinheiro seria “sua-
do”. O entrevistado afirma que não “teria fôlego” para anunciar o
assalto no caso de ônibus e táxis. O fôlego lhe faltaria pelo fato de
saber da importância daquele dinheiro para os seus portadores.
Sempre roubava loteria. Loteria é coisa de jogo, então faz parte.
Eu não tinha medo de roubar loteria. Mas ônibus, táxi eu sempre
pensava que não porque eles tão suando pra conseguir o dinheiro,
eu vou chegar e pegar, não tinha coragem, mesmo que eu quisesse
eu não tinha fôlego pra anunciar o assalto.
Esse entrevistado era jogador e, de acordo com o seu rela-
to, quase todo o dinheiro que ganhava fazendo assaltos, gastava
com o carteado. contou que, dos valores que roubava, deixava
uma pequena parte em casa, com a esposa, e a maior parte era
usada no jogo. No primeiro assalto que realizou sozinho, teria
permanecido nas imediações de uma casa lotérica por um longo
tempo, sem coragem para fazer o assalto. Até que viu alguém
pagando uma conta com uma cédula de 50 reais. Quando viu
o dinheiro grande, ganhou coragem. conta que calhou de a lo-
térica ficar vazia nesse mesmo momento e assim entrou e fez o
assalto. A partir dessa primeira vez, repetiu o roubo a casas loté-
ricas muitas vezes e depois teria roubado outros estabelecimen-
tos comerciais, como lojas de roupas. Mas sempre destacava
que passageiros de ônibus e taxistas ele não tinha coragem de
assaltar. O dinheiro do jogo seria, na sua percepção, um dinhei-
ro dispensado, um dinheiro da ambição, um dinheiro que não
foi usado em casa, para gastos que poderiam ser chamados de
“nobres”. Esse dinheiro poderia ser roubado, já que seu próprio
dono o teria colocado em uma aposta.
Alberto conta que a decisão de assaltar uma mercearia
aconteceu por acaso, depois de um encontro com colegas que
fumavam maconha enquanto se preparavam para fazer um
assalto. A escolha da mercearia se deu no momento em que
se viram diante do estabelecimento. Situação que nos lembra
a relação entre delinquência e deriva, tal como elaborada por
Matza (1964). é interessante observar que, de acordo com o
relato, um dos fatores que levaram o entrevistado a se decidir
pelo assalto foi o fato de ter dado “a sua palavra” em um pri-
meiro momento e não poder voltar atrás. Podemos notar uma
situação interessante que diz respeito a um vínculo que se es-
tabelece entre um compromisso moral constituído no nível da
interação face-a-face que conduz, por sua vez, a uma ação con-
tra os padrões morais constituídos coletivamente.
Porque os meus parceiro, como diz assim, eu não considerei eles
até hoje nunca mais como parceiro porque eles me traíram. Eu
pessoalmente tava vindo do exército, certo? Eu ia entrar pro exér-
cito, aí encontrei com eles, já ia pra minha casa pra podê almoçá,
né? Se tivesse alguma coisa pra mim comer e voltava de novo pra
mim podê pegar minha farda. Aí encontrei com esses rapazes, aí
eles tava fumando um baseado, eu me lembro ainda como hoje, aí
pego e falô: ‘Aí, colé, vamo lá’. Eu falei: ‘Não mexo com isso aí mais
não. Parei. Não quero nunca mais mexê com esses trem’. Aí pagou
pau, né? O pessoal: ‘Fuma aqui que ocê vai ficar belezão. Aí cê vai
animá’. Eu falei ‘é’, Aí então peguei e dei uma bolinha. No baseado,
na maconha, né? Dei uma bolinha com eles né? E aí passei umas
meia hora assim e eu senti mesmo realmente que eu tinha mudado,
né? Mas só que eu mudei ali assim, mas o meu pensamento eu
não tinha mudado, entendeu? Falei com eles: ‘Eu não vou não, não
vou mexer com esses trem não. Aí eles falou: ‘Que isso’. Ele olhou
assim pra mim. Um tava com um 22 e outro com uma garrucha
e tava sobrando uma faca aí ele foi, me deu a faca e falou assim:
‘Colé, falou que ia, agora vai dá mole?’ Aí eu pensei e falei assim:
‘Nossa, esses cara, falei uma coisa, é foda, a gente não pode voltar
a conversa atrás. Aí fui lá com eles.
Essa situação nos remete às diferenças entre regras
morais particulares e a moralidade coletiva transcendente, tal
como observada por Durkheim. O entrevistado elabora em seu
relato um sentido de compromisso em relação aos colegas na
rua e assim não seria adequando voltar atrás após ter dado a
palavra de que participaria do assalto. No entanto, esse com-
promisso dizia respeito a uma ação em que iriam invadir uma
mercearia para roubar dinheiro e mercadorias. Nesse aspecto,
o entrevistado não demonstrou nenhuma consideração moral.
Disse apenas que precisava do dinheiro e dos mantimentos
para ajudar a família (sem usar a ajuda à família como álibi) e,
portanto, decidiu roubar.
6 deterIorAção do mundo do crIme. desconfIAnçA
Uma ideia interessante que surgiu várias vezes ao longo
das entrevistas é a de que estaria em curso um processo de
deterioração da confiança entre as pessoas em geral e entre
os envolvidos com atividades criminosas em particular. Esse
problema não deixa de ser moral e se relaciona evidentemente
com a divergência entre pontos de vista constituídos por re-
alidades morais diferentes e, às vezes, contraditórias. Muitos
entrevistados fizeram referência a situações em que a confiança
foi rompida ou não chegou a se estabelecer adequadamente.
Ramalho (2002: p. 74-75) encontrou em sua pesquisa re-
ferências ao malandro como a figura principal no mundo do
crime. O malandro poderia ser positivo – quando cumpridor das
regras de procedimento da massa – ou negativo – quando des-
respeitador das regras. considerando os relatos apresentados
por nossos entrevistados, o malandro positivo parece ser uma
espécie em extinção.
Alberto, o mesmo que foi assaltar a mercearia com os co-
legas porque não podia voltar atrás com sua palavra, ao rela-
tar a sua participação no assalto e a consequente chegada da
polícia, chama a atenção para o fato de que no momento em
que apontou a arma e ameaçou atirar contra o segurança ele
“não acreditou” na ameaça. Essa menção aparecerá em outras
entrevistas e permite uma interpretação relacionada ao tema da
falta de confiança que está presente no mundo do crime e na
sociedade nos dias de hoje:
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Eu não, os meus amigo, esses cara, suposto amigo é que foi, eu não
[presos na mesma hora]. No bairro lá, eu fiquei perdido no bairro. Que
tem polícia demais. Aí eu me lembro, se eu me lembro mesmo, acho
que eu peguei na época não sei se foi 10, 50 cruzeiros, não lembro
mais quanto foi, porque não tinha esse reais ainda não, era cruzeiro
na época. Aí eu consegui pegar e eles também pegaro algumas coisa
e saíram, mas só que nisso deles saíram deu aquele tumulto danado,
atirei num segurança, é, eu tomei a arma do rapaz e falei: ‘Eu não vou
entrar com faca na mão não’. Peguei o 22 dele e fiquei com a arma. Aí
ele prendeu um dos cara. Prendeu um dos cara aí eu peguei o revólver,
ele também com revólver, eu peguei e apontei o revólver pra ele e ele
não acreditou. Ele pôs o cara na frente e falou: ‘É ocê que vai ter que
soltar’. Falei: ‘Eu não. Você que vai ter que soltar o revólver’. Aí na hora
eu peguei e disparei os tiro por cima dele. Só que pegou lá nele assim
por cima do ombro dele. Aí ele soltou o rapaz e o rapaz saiu correndo
e eu acabei de dar mais uns tiro nele. Aí na hora surgiu muita polícia. A
polícia também me deu um muncado de tiro. Se eu tô vivo hoje em dia,
eu vou ser sincero pra você, é pela glória e honra ao nome do Senhor
Jesus, que eu sou muito grato ao Senhor Jesus, por ter me retornado,
ter me dado a minha vida novamente. Depois lá no morro também, o
próprio camarada juntou com a polícia lá e me deu um muncado de tiro
também. O próprio cara que tava junto comigo.
Alberto fez a ameaça de atirar, mas, como foi dito, o segu-
rança não acreditou. O entrevistado acabou atirando e o segu-
rança revidou. Houve troca de tiros, inclusive depois da chegada
da polícia. A maneira pela qual Alberto menciona o fato de que o
segurança “não acreditou” em sua ameaça mostra que a situação,
para ele, é inesperada e perturbadora. O agente se vê diante de
uma situação em que é obrigado a cumprir a ameaça para alcan-
çar os seus objetivos. O fato de ter que cumprir a ameaça e o caos
representado pelo tiroteio que se segue, reforçam a percepção de
uma ausência de confiança nas relações interpessoais.
Alberto foi denunciado pelos colegas que participaram do
assalto à mercearia. Os mesmos colegas que o convenceram a
participar do assalto, aqueles a quem ele não quis decepcionar
voltando atrás em seu compromisso:
No mesmo dia um foi para casa da mãe deles e outro foi pra casa
da irmã. Aí eles foram e falaram com a mãe deles o decorrido, o
que aconteceu. Aí a mãe parou o carro, deu muita polícia, parou
a polícia, pôs ele com o revólver, entregou, e foi lá na minha casa
com a polícia falá quem que era. Mas quem falou foi ele, uai.
Mauro, o malandro que não gostava de ver ninguém rou-
bando, menciona em sua entrevista a ideia de que houve uma
deterioração da confiança no mundo do crime. Não haveria mais
confiança entre os “malandros”.
Gostava de trocá umas ideia, porque todo mundo respeitava uns
aos outro, não tem falsidade, quer dizer, não tinha, não tinha fal-
sidade. Agora? Agora nego fala ‘vão ali pra nós fuma um cigarrim
ali’, chama ali e já mata ocê. Então não tem mais amizade. Teve
um certo tempo que era um crime conceituado, pessoal falava e cê
respeitava. Agora não tem respeito a ninguém.
é a mesma percepção apresentada por Roberto.
Pretendo voltar pra mesma vida que eu tinha. Não quero continuar
no crime. Não existe mais crime. O crime existiu, existiu o crime,
existiu o crime, antes cê saia aí cê buscava 100 mil, cê chegava,
dividia tudo e cada um ia cuidar da sua vida. Hoje se acontecer
isso numa quadrilha aí um vai matar o outro até conseguir todo o
dinheiro, certo. Então, o crime já era.
é possível dizer, pela frequência desses tipos de afirmação
e pela variedade de situações em que surgem espontaneamente
nas entrevistas, que é um assunto recorrente entre os próprios
presos. A maior parte deles tem alguma história de traição ou de
mal-entendidos para contar. O tempo é um elemento importante
nessas histórias. Todos localizam a desconfiança no presente e
falam de um passado em que havia códigos de conduta vigentes
no mundo do crime. Trata-se, provavelmente, de uma idealização
do passado, mas, por ser repetida inúmeras vezes, torna-se uma
idealização com ares de constatação objetiva.
Fernando conta que foi preso porque sua mulher o denun-
ciou. Afirma que isso aconteceu porque “hoje em dia” as pessoas
não querem ver as outras em uma boa situação. é o mesmo tipo
de entendimento – de que não existe mais confiança entre as pes-
soas – que aparece em várias outras entrevistas.
Eu fui preso por, eu fui preso porque nesse mundo de hoje lá fora a
ambição é muito grande e tem gente que não quer ver você bem, foi
o motivo por qual eu vim preso. Uma companheira minha de muita
confiança minha. Ela se envolveu com o crime porque se envolveu
comigo e envolveu comigo envolveu com o crime. A gente teve uma
briga e nessa briga que a gente teve ela num gostô, ela num gostô e
num tinha um meio de me prejudicá fisicamente, o jeito que ela teve
foi esse. Ela me denunciou. Me prenderam, no momento da abor-
dagem não haviram droga comigo, não haviram nada, reviraram a
minha casa e no lugar onde que eu aguardava a droga ela chegou e
me apresentou a droga, né? Tava com cem papel de pedra.
No caso desse entrevistado houve uma traição praticada por
sua própria mulher, que também havia se envolvido com o cri-
me. é curioso observar que, de acordo com Fernando, a mulher
não tinha envolvimento com o crime até conhecê-lo. Depois de
conhecê-lo se envolveu, como não poderia deixar de acontecer,
segundo a percepção do entrevistado. Não tendo outra forma de
atingi-lo, optou pela denúncia. Assim, a mulher, que era de con-
fiança, deixou de ser a partir do momento em que se envolveu
com o crime. Numa desavença com o marido acabou usando a
arma que tinha: a denúncia.
De acordo com wilson, a “malandragem” era de confiança
no passado, hoje não é mais.
Agora eu falo procê uma verdade, que o crime não tá com nada não
tá não. Crime tá por fora. O crime não compensa não. O cara fala
que é amigo da gente, mas tá querendo é matá a gente”. A malan-
dragem de primeiro não agia assim não, agora tá agindo assim. A
malandragem agora tá agindo é assim. Mexeu ali não achou o cara,
vai lá e mata a família, queima a família.
wilson se refere a uma situação já mencionada por Mauro, o
assassinato sem qualquer motivo aparente. No caso da entrevista de
Mauro, há a referência ao assassinato de membros da família, que
pode ocorrer quando o inimigo não é encontrado. A ideia elaborada
nesses relatos é a de que não é possível identificar as regras que
orientam as ações das pessoas. Até mesmo nas situações de violên-
cia, regras são necessárias para que as pessoas soubessem onde
estão os limites. Os entrevistados parecem sentir falta dessas regras
mínimas, sentem falta de um mínimo de previsibilidade e orientação
no ambiente em que vivem. A incapacidade de encontrar um sentido
moral nas situações vividas indica a presença da anomia.
Acácio considera que
Hoje em dia o crime também acabou. Hoje em dia é pouca coisa
e eles te matam ocê. Se ocê tá ganhando dinheiro, se ocê tá ven-
dendo droga, se ocê é o cara no morro, eles te matam ocê. Anti-
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gamente tinha respeito. Hoje esses menino novo tá matando pra
fazer nome. Eu saio da cadeia... chego no movimento do crime...
eu posso morrer. Por que? Porque o menino novo lá ele qué fazer
nome. Eles qué fazer nome e faz. Cê não conhece eles, não sabe a
intenção deles. Quando ocê conhece, ocê sai fora, mas quando ocê
não conhece? Menino com 12 anos tá matando.
Vale destacar as observações do entrevistado de que “Eles
qué fazer nome e faz” e de que “cê não conhece eles, não sabe
a intenção deles. Quando ocê conhece, ocê sai fora, mas quan-
do ocê não conhece”? A intenção de matar “para fazer nome” é
apresentada como um dado da realidade e restaria então a alter-
nativa de evitar o contato com aqueles que têm essa disposição.
como o entrevistado não tem como identificar antecipadamente
quem são os dispostos a matar para fazer nome, percebe-se em
uma situação de desorientação e risco permanente
é curiosa a observação de Rogério. Para ele, o crime em
Belo Horizonte não é bom, os criminosos são desonestos. O cri-
me seria bom no Rio de Janeiro e em São Paulo:
Aqui em BH aqui o crime é podre. No Rio de Janeiro é melhor.
Porque lá a bandidagem é mais conscientizada, mais inteligente.
Agora aqui não. Aqui o que a gente vê é muitos querendo pegar
irmãozinho que tá sofrendo. São Paulo também é muito bom. Pra
pessoa viver no crime é bom. Porque lá todo mundo sabe que tendo
pilantragem morre. Aqui não, aqui a gente vê muito pilantra aí no
meio da gente aí e a gente não pode fazer nada. Eu não pego uma
faca e vô dá num cara uma facada. Pra mim me atrasar e pegar 30
ano de cadeia? Eu quero sair. Eu quero me adiantar. Saí. Começar
a trabalhar de novo.
Nesse caso, temos uma variação da idealização do passa-
do. Dois lugares diferentes são idealizados. De alguma forma, o
entrevistado criou essa noção de que o crime no Rio de Janeiro e
em São Paulo é melhor do que em Belo Horizonte. Os criminosos
do Rio e de São Paulo são, de acordo com o entrevistado, mais
conscientizados, o que acontece nesses lugares é que as pesso-
as sabem que se fizerem “pilantragem” morrem. Rogério aponta
a existência de regras válidas que se forem descumpridas levam
à morte do transgressor. Mais uma vez, a falta de regras ou sua
desorganização – a anomia, em outras palavras – parece ser um
problema sentido intensamente pela maioria dos entrevistados.
7 HomIcÍdIos
No caso dos homicídios que envolvem questões de honra a
dimensão moral do comportamento criminoso aparece com muita
nitidez. Alguns assassinatos são narrados como se tivessem sido
motivados por alguma atitude da vítima que foi interpretada como
ofensiva ou imoral. Normalmente, os entrevistados não demons-
tram nenhum arrependimento quando falam desses homicídios.
Na única entrevista não gravada, conversamos com uma pessoa
condenada a vários anos de prisão por tráfico de drogas. Afirmou
categoricamente que nunca se arrependeu de ter matado algu-
mas pessoas. Matou, por exemplo, quando era guarda na por-
ta de uma boate, uma pessoa que, apesar de ter sido proibido
de entrar, usou da força física para passar pela porta. Não havia
escolha, disse o entrevistado, pois a vítima teria lhe faltado com
o respeito. Argumentamos que uma falta de respeito, por mais
incômoda que pudesse ser, poderia ser administrada de outra for-
ma. Ele poderia ter simplesmente colocado o indivíduo para fora
da boate. Mas ele não concordou. Um homem não pode aceitar
certas coisas, disse o entrevistado. Tentando justificar o seu ponto
de vista, perguntou aos entrevistadores se não o matariam caso
ele pegasse o “radinho” (o gravador desligado) que estava sobre
a mesa e o quebrasse. Os entrevistadores responderam que, por
mais que não gostassem de ver o “radinho” quebrado no chão,
não o matariam por esse motivo. Mesmo porque um “radinho”
quebrado nunca justificaria alguns anos de cadeia. A pergunta foi
devolvida: não teria sido melhor deixar a pessoa da boate viva e
economizar alguns anos de cárcere? Respondeu enfaticamente
que não. conclui-se, a partir do relato do entrevistado, que é me-
lhor estar preso do que conviver com uma agressão moral que
não foi solucionada adequadamente. Durante toda a argumenta-
ção o entrevistado se mostrou irredutível. O fato é que apresentou
uma forte concepção moral sobre as relações entre as pessoas.
Esse não foi o único caso de não arrependimento pelos ho-
micídios praticados. Aqueles que mataram por questões de honra
ou traição se sentem justificados. Outros mataram pelo que cha-
mam de “guerras do crime”. Nesses casos, encaram o homicídio
como uma decisão inevitável, pois estariam mortos se não tives-
sem matado o inimigo. Mesmo nesses casos, um dito comum en-
tre os entrevistados revela uma perspectiva moral: “Melhor chorar
a mãe dele do que a minha”. com essa frase, os entrevistados
argumentavam que não matavam apenas para garantir a própria
sobrevivência individual. Mas protegiam também a família do so-
frimento que poderia ser causado por sua morte.
8 consIderAções fInAIs
As falas dos presos chamam a nossa atenção para algo nem
sempre notado: a perspectiva profundamente moral por meio da
qual alguns dos envolvidos com atividades criminosas enxergam
a realidade. Muitos consideram que o comportamento criminoso
é errado. Tentam aliviar sua responsabilidade dizendo que teriam
entrado para o crime por influência das más companhias. Outros
afirmam que a injustiça e a corrupção estão presentes em todos
os lugares e que não teriam alternativa de vida fora das atividades
ilícitas. Essas não deixam de ser tentativas de amenizar a culpa
por um comportamento ilícito.
é interessante o fato de que o crime que causa maior repulsa
aos próprios criminosos é o roubo a transeuntes e a ônibus. Mes-
mo aqueles que praticam tais atos costumam afirmar que consi-
deram errado prejudicar trabalhadores e inocentes, que não têm
orgulho do que fizeram. costumam se justificar dizendo que foram
conduzidos por alguma força independente da vontade. As dro-
gas, a bebida, a natureza de ladrão ou as más companhias têm a
preferência nos discursos de neutralização da culpa.
Os roubos a estabelecimentos comerciais e a bancos são
vistos como aceitáveis. Mesmo porque não é raro os próprios
funcionários “darem a fita”, isto é, avisarem quando o caixa da
empresa está cheio. Especialmente no caso dos bancos, existe
a crença de que eles têm muito e roubam de seus clientes. Não
seria errado, portanto, roubá-los (“Tem que roubar de quem? O
banco rouba da gente...”).
O homicídio que envolve questões de honra é justificado mo-
ralmente e não encontramos expressões de arrependimento ou de
autocondenação nesses casos. é comum o argumento de que exis-
tem situações em que a pessoa não tem alternativa a não ser matar.
Tratamos as entrevistas como relatos nos quais se desenvol-
veram, de um ou outro modo, argumentos morais sobre a condu-
ta criminosa. A moralidade foi entendida como uma característica
das regras de conduta que são obrigatórias e desejáveis, no sen-
tido durkheimiano. Isto é, são obrigatórias e desejáveis no plano
coletivo. No plano individual, das ações concretas, desempenha-
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das por sujeitos reais, a moralidade coletiva será sempre mais ou
menos agredida. A moralidade comum transcende a realidade
individual – não é internalizada psicologicamente – e só pode ser
acessada pelos indivíduos por meio dos rituais reparadores. Por
esse motivo, a transgressão a essas regras provoca a aplicação
de uma sanção que não pode ser deduzida da análise do pró-
prio ato transgressor, mas que é decorrente do fato de a ação ser
proibida (nos casos em que a ação é considerada boa e correta,
podemos observar a aplicação de sanções positivas). com a apli-
cação da sanção, os indivíduos (e a sociedade) procuram mostrar
que a transgressão não anula a existência de uma moralidade co-
mum, mas constitui-se apenas como um desvio isolado.
Observamos que os entrevistados, na medida em que
são acusados e condenados pela transgressão da lei, são, ao
mesmo tempo, objetos e participantes de rituais de reconstitui-
ção de um sentido de ordem estável ou de moralidade comum.
Seus relatos nos dizem muito sobre esses procedimentos re-
paradores, pois se encontram em uma situação crítica – a ro-
tulação criminal – que não é experimentada pela maioria das
pessoas. Vimos diversas argumentações morais nas quais os
indivíduos procuravam construir algum resultado específico.
Seja a ideia de que erraram, mas teriam a capacidade de mudar
e não voltar a cometer os mesmos erros, seja o reconhecimen-
to de que erraram, mas que o erro deveria ser relativizado, pois
não agrediram fisicamente a vítima, não roubaram de quem não
tem ou roubaram para ajudar a família.
No final das contas, podemos afirmar que a rotulação cri-
minal, como um processo que atribui ao sujeito os elementos de
diferenciação individual que explicariam a sua propensão para a
prática de atividades criminosas completa-se quando o próprio
sujeito, de uma forma ou de outra, incorpora ou se identifica com
a caracterização que lhe foi imposta. A partir do momento em que
reconhece, se identifica ou põe em prática a caracterização moral
como criminoso, o agente de práticas criminais passa a participar
ativamente da cerimônia pública que, por meio da imposição da
lei, promove a definição e o estabelecimento de seu contrário: o
sujeito correto e cumpridor de seus deveres, que realiza em sua
conduta as expectativas da ordem moral coletiva.
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notAs de fIm1 Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de um capítulo da tese de doutorado “O crime segundo o criminoso: um estudo de relatos sobre a experiência da sujeição criminal“, defendida no ano de 2006 no Instituto de Filosofia e ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio de Janei-ro. As entrevistas foram feitas a partir de um roteiro, mas frequentemente seguiam por caminhos não planejados. Foram gravadas e posteriormente transcritas. Procuramos reproduzir o modo de falar dos entrevistados de modo a possibilitar o reconhecimento de sua condição social. Para informa-ções completas sobre a pesquisa, consultar a tese que está disponível em: <http://teses.ufrj.br/IFcS_D/carlosAugustoTeixeiraMagalhaes.pdf>.
2 Professor do centro Universitário Newton. Doutor em Sociologia pelo IFcS/UFRJ.