RESENHA

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ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. por Danielle Cristina Braz Perry Anderson, historiador marxista britânico, faz nesse ensaio uma crítica ao que se costumou chamar de “marxismo ocidental”, corrente teórica dentro do marxismo desenvolvida entre os anos de 1924 e 1968. A crítica se baseia essencialmente no distanciamento que os autores dessa geração mantiveram do movimento operário, desvinculando o trabalho teórico da atividade política prática, algo inicialmente inconcebível dentro da lógica marxista em que a relação dialética entre teoria e prática é essencial pra se construir o processo revolucionário. Para chegar ao momento histórico em que se desenvolveu o marxismo ocidental, Anderson faz um apanhado da história do materialismo histórico, começando pelo legado de Marx e Engels. O grande legado de Marx foi de fato a elaboração de uma teoria econômica capaz de explicar com propriedade o modo de produção capitalista. No entanto, a sua teoria política sobre o Estado e estratégia da luta socialista não alcançaram o mesmo grau de desenvolvimento que sua teoria econômica. Tanto Marx quanto Engels mantinham uma relação com o movimento operário de sua época, em especial com militantes e dirigentes de outros países da Europa e da América do Norte, o que revela que estes autores de fato se preocupavam com o caráter internacionalista do socialismo. A geração imediatamente posterior à Marx e Engels, teve atuação pouco conhecida, sendo os principais nomes Labriola, Mehring, Kautsky e Plekhanov. Segundo o autor, é possível encontrar uma unidade na obra destes autores uma vez que todos eles estavam preocupados em sistematizar o

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Resenha - ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

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ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2004.

por Danielle Cristina Braz

Perry Anderson, historiador marxista britânico, faz nesse ensaio uma crítica ao que se costumou chamar de “marxismo ocidental”, corrente teórica dentro do marxismo desenvolvida entre os anos de 1924 e 1968. A crítica se baseia essencialmente no distanciamento que os autores dessa geração mantiveram do movimento operário, desvinculando o trabalho teórico da atividade política prática, algo inicialmente inconcebível dentro da lógica marxista em que a relação dialética entre teoria e prática é essencial pra se construir o processo revolucionário.

Para chegar ao momento histórico em que se desenvolveu o marxismo ocidental, Anderson faz um apanhado da história do materialismo histórico, começando pelo legado de Marx e Engels. O grande legado de Marx foi de fato a elaboração de uma teoria econômica capaz de explicar com propriedade o modo de produção capitalista. No entanto, a sua teoria política sobre o Estado e estratégia da luta socialista não alcançaram o mesmo grau de desenvolvimento que sua teoria econômica. Tanto Marx quanto Engels mantinham uma relação com o movimento operário de sua época, em especial com militantes e dirigentes de outros países da Europa e da América do Norte, o que revela que estes autores de fato se preocupavam com o caráter internacionalista do socialismo.

A geração imediatamente posterior à Marx e Engels, teve atuação pouco conhecida, sendo os principais nomes Labriola, Mehring, Kautsky e Plekhanov. Segundo o autor, é possível encontrar uma unidade na obra destes autores uma vez que todos eles estavam preocupados em sistematizar o materialismo histórico para dotar o movimento operário de uma visão de mundo revolucionária. Essa era também uma preocupação do velho Engels, sendo que muitos dos temas abordados pelos quatro autores foram também abordados por Engels nos seus últimos textos, já depois do falecimento de Marx.

Os marxistas que vieram em seguida viveram um contexto internacional muito mais conturbado, com a iminência da Primeira Guerra Mundial pairando sob eles. Estes autores também tiveram um papel destacado na direção dos partidos comunistas de seus países e todos apresentaram inovações à teoria marxista, indo além do mera interpretação dos textos de Marx. Não por acaso, foi esta, depois de Marx, a geração mais destacada do marxismo, tendo nomes como Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotski e Bauer.

Claro que além da extraordinária capacidade intelectual destes autores – ressalte-se que todos desenvolveram um trabalho teórico fundamental antes de completar trinta

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anos de idade -, também o contexto histórico de transformações no capitalismo e o engajamento político de tais autores são fatores essenciais para compreender a importância deles para a teoria marxista, em especial para a teoria política marxista.

A primeira análise política da estratégia revolucionária foi feita por Trotski, enquanto Lenin foi responsável por elaborar uma teoria política sistemática da organização e tática da luta de classes que depois viriam a servir de base para a ação concreta durante a Revolução Russa. Alguns textos de Lênin foram tão inovadores que chegaram a estabelecer novas normas dentro do materialismo histórico: a análise concreta de uma situação concreta, ou o que Lênin chamou de a “alma viva do marxismo”. Inovações estas que levariam a criação de uma nova vertente marxista, o leninismo.

A rede de discussões e debates internacionais articulada pelos autores dessa geração era ampla, havendo uma comunicação importante entre os escritores integrantes da Segunda Internacional Comunista. No entanto, a deflagração da Primeira Guerra Mundial e seus atos seguintes causaram uma cisão entre os marxistas da época, uma vez que haviam posições diversas dos autores com relação à Guerra, causadas em alguns casos pelo papel que seus países de origem desempenhavam no conflito. Esse foi um dos motivos do fim da Segunda Internacional.

A Terceira Internacional criada no pós guerra se defrontou com a Revolução Russa, e, após a morte de Lenin, com a ascensão ao poder de Stalin. A política centralizadora de Stalin tomou conta da Terceira Internacional e foi responsável por esterilizar o pensamento político leninista subordinando todos os partidos comunistas do mundo à política externa da URSS.

O marxismo ocidental se inicia nesse momento conturbado, de plena ascensão do capitalismo, com franca e próspera expansão do capital, enquanto que na União Soviética, o modelo centralizador dava sinais de desgastes e passava por diversas crises.

Os marxistas ocidentais são assim classificados pelo autor por desenvolverem um conjunto de ideias inteiramente novas para o materialismo histórico. Entre as características que unificam esse grupo está o desligamento entre teoria e prática política, algo que era impensável para as gerações anteriores, mas que ocorreu gradualmente devido às fortes pressões históricas e se consolidou no pós Segunda Guerra Mundial.

Com exceção de três autores: Lukács, Korsch e Gramsci que atuaram ativamente dentro de seus partidos, os demais mantiveram uma relação distante da prática política. No entanto, a trajetória política destes três autores foi marcada por terríveis perseguições e censuras feitas pelos Partidos Comunistas de seus países que à época obedeciam às orientações autoritárias vindas da Terceira Internacional. A morte de Gramsci e o exílio de Korsch e Lukács findou a fase em que o marxismo ocidental ainda estava próximo das massas.

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O primeiro passo no sentido do distanciamento foram as transformações ocorridas no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt com a reorientação dos trabalhos do instituto, levado a cabo por Horkheimer, em que se abandou a preocupação pelo materialismo histórico como ciência em favor do desenvolvimento da “filosofia social” suplementada por pesquisas empíricas.

Além disso, as limitações impostas pelo Comintern aos partidos comunistas, em especial ao Partido Comunista Francês e ao Italiano produziu situações paradoxais e complicadas para os teóricos dessa geração. No caso do PCF, o grande nome é Althusser que desenvolveu uma teoria política original, embora contrária às tendências humanistas que dominavam o partido na década de 60, e favorável ao resgate do rigor ortodoxo que o partido havia perdido. Já na Itália, a herança política de Gramsci deu aos intelectuais do partido certa liberdade com relação às orientações soviéticas, desde que essa liberdade intelectual fosse desvinculada da atividade política. Aqui, nomes como Della Volpe e Colletti se destacaram.

A separação entre prática e teoria nos autores dessa geração foi causada por uma série de fatores, entre eles a expansão do capitalismo e o fracasso do modelo soviético, fazendo com que essa geração fosse, acima de tudo, o fruto de uma série de derrotas do socialismo. Além disso, a stalinização dos partidos levou à criação de partidos fortemente burocratizados em que uma cúpula da direção era a única responsável por decidir todas as posições políticas do partido, sendo que esta cúpula estava ideologicamente ligada à política oficial soviética.

Para os teóricos não restavam muitas opções, ou permaneciam ligados ao partido com o intuito de manterem certa relação com as massas, ou se desligavam totalmente do partido e de qualquer possibilidade de manter uma relação política com a base social operária. No primeiro caso a ligação ao partido esterilizava a produção destes intelectuais, levando-os a serem meros reprodutores do “marxismo-leninismo” ou em alguns casos em que haviam privilégios, como no caso italiano, a produção intelectual tinha certa liberdade mas não influenciava de forma alguma as posições concretas tomadas pelo partido.

A terceira parte do texto, que o autor denomina de “Mudanças formais”, ele insere um elemento a mais para a compreensão do marxismo ocidental: foi nesse período que se deu a descoberta do trabalho mais importante do jovem Marx, os Manuscritos de Paris de 1844, publicados pela primeira vez em 1932. Esse trabalho de caráter filosófico foi importante para tornar ainda mais ampla um deslocamento já em curso, aquele que substituía a economia e a política como temas centrais do marxismo pela discussão filosófica, ao mesmo tempo em que deslocava o centro de discussão das assembleias partidárias para os departamentos acadêmicos.

Nesse sentido, três autores foram os mais influenciados por essa publicação: Lukács, Marcuse e Lefebvre. Estes autores deram o tom do que seria a produção marxista desta geração: uma excessiva preocupação com temas filosóficos, o estudo exaustivo do pensamento do próprio Marx extraindo dele princípios gerais que

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pudessem ser aplicados a qualquer realidade, uma vasta produção sobre questões de método e uma linguagem extremamente especializada e inacessível.

Outra característica dessa geração foram as várias tentativas de encontrar em filosofias pré Marx seus ancestrais intelectuais. Lukács foi importante nesse sentido, pois trouxe à cena a influência de Hegel sobre o pensamento de Marx, elevando-o a uma posição de destacada importância a ponto de estabelecer um continuidade entre o pensamento dos dois autores. Também nesse sentido, outros marxistas ocidentais procuraram estabelecer essa genealogia, como Adorno e Marcuse que também se utilizaram de Hegel; Della Volpe que negava a influencia de Hegel e sustentava uma linhagem de ascendência sobre Marx que se iniciava em Aristóteles e passava por Galileu e Hume; Colletti que defendia a influencia de Kant e Althusser que se utilizava de Espinosa.

Um caso que se destaca com relação aos já mencionados é Gramsci, que efetivamente não era um filósofo, nem debruçou sua atenção sobre questões de método e manteve uma ligação estreita com o movimento operário, mesmo que limitada pelos anos de cárcere. No entanto, mesmo Gramsci, que se constitui como um ponto fora da curva do marxismo ocidental, procurou uma origem para a tradição marxista, nesse caso foi Maquiavel, que como ele era um político e não um filósofo.

Na quarta parte do texto, o autor observa que estes autores do marxismo ocidental, que num primeiro momento tinham apenas preocupações de cunho filosófico, foram se dedicando também à questões mais substanciais. No entanto, a preocupação deles não recaiu sobre a questão econômica, como em Marx, mais sim sobre a superestrutura, em especial discussões sobre cultura e ideologia.

Gramsci é um dos autores mais originais nessa seara e sua noção de hegemonia é a mais destacada pela novidade que carrega. Apesar do termo já existir, Gramsci o resignificou com o intuito de explicar o poder político que a burguesia detinha naquela momento histórico, ao mesmo tempo em que armava a classe operária de uma noção importante para a construção de bases sólidas que a levasse ao poder. A hegemonia de Gramsci pressupunha uma ampliação do consenso e redução da coerção, com a utilização de mecanismos presentes na sociedade civil para assegurar este consenso.

Althusser desenvolveu também um trabalho original ao estabelecer uma relação do pensamento marxista com Freud, se utilizando do conceito de inconsciente de Freud para construir uma nova teoria da ideologia. Althusser defende a imutabilidade da ideologia, sendo a ideologia um sistema inconsciente de determinações e não uma forma de consciência.

Sartre trouxe à categoria da escassez um novo significado, entendendo-a como uma relação fundamental e uma condição de possibilidade da história humana, ou seja, o ponto de partida de toda história humana uma vez que a partir da escassez se gerou a divisão de trabalho e a luta de classes e com isso o próprio homem tornou-se negação do homem.

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Anderson destaca que todas as inovações teóricas do período carregam entre si um nítido pessimismo com relação ao futuro, mesmo na obra de Gramsci, em que a revolução era algo a ser construído através de um longo e árduo combate na sociedade civil através da guerra de posições.

Na última parte do texto, o autor faz alguns apontamentos sobre o futuro do marxismo e a possibilidade de superação do marxismo ocidental. Uma primeira possibilidade teórica que suplantaria o marxismo ocidental seria aquela iniciada por Trotsky, que, segundo Anderson, possui uma teoria diametralmente oposta ao marxismo ocidental, se dedicando à temas econômicos e políticos ao invés de temas filosóficos. É também uma teoria internacionalista e possui uma linguagem clara e acessível. Além disso, seus autores, a exemplo do próprio Trotsky, Deutscher e Rosdolsky não exerciam cargos em universidades, ao contrário tiveram certa atuação política nos partidos que foi posteriormente cerceada pela perseguição stalinista.

O autor enxerga no período em que escreveu o texto (1979) um momento de transição em que ainda não se abandou por completo a lógica da separação entre prática e teoria cunhada pelo marxismo ocidental, mas a nova geração dá sinais de que é possível reestabelecer a relação com os movimentos sociais de base.

No entanto, para que isso avance é preciso que algumas questões teóricas deixadas em aberto por Marx e Lenin sejam desenvolvidas, principalmente a questão democrática, tanto a chamada democracia burguesa – qual a sua natureza e estrutura – quanto a democracia socialista – quais seriam suas formas institucionais.

Além de avançar na teoria, algumas condições básicas de ordem organizacional precisam ocorrer para que se construa o socialismo. Estas condições que nunca existiram concretamente em nenhum país, mas que quando existirem – e o autor acredita que as perspectivas de que aconteçam cresce em nossos dias – levarão as massas ao poder e deixarão os teóricos marxistas ocidentais em silêncio. A primeira condição é o surgimento de um movimento revolucionário de massas, livre de restrições organizacionais. É preciso também que surjam intelectuais orgânicos, no sentido gramsciano, intelectuais gerados dentro da própria classe operária e que atuem em favor dela. O partido revolucionário, por sua vez, precisa voltar a ter uma ligação com as massas e essas massas precisam ser verdadeiramente revolucionárias e não meras reformistas.