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RRESENHA

PPARA UMA REVOLUO DEMOCRTICA DA JUSTIA1RESENHA de SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revoluo democrtica da justia. So Paulo: Cortez, 2007.Christian Gomes Bezerra dos Santos2; Haroldo Srgio Lima Ferreira3; Joselito de Arajo Sousa4; Andr Luis Cabral de Meireles5; Jssica Vila Maior Pimenta Gurgel6; Simone Lima Batista de Macedo7; Clayton J. L. R. Teixeira8; Alberto Lima de Almeida9; Antnio Edmilson Fernandes10; Adriana Machado de Oliveira11; Santiago Gabriel Hounie12.

INTRODUO A idia principal do livro est lanada logo na introduo da obra de Boaventura de Sousa Santos, qual seja: apenas com a democratizao do Estado e da sociedade se poder pensar em uma verdadeira revoluo democrtica do direito e da justia, j que o direito, para ser exercido democraticamente, tem que se assentar em uma cultura democrtica. Em uma governana democrtica, como diria Bobbio (2004). Em seguida, chama a ateno para a distncia que separa os direitos formalmente concedidos das prticas sociais que ordinariamente os violam, bem como para o fato de que as vtimas de tais prticas, longe de se limitarem a lamentar, cada vez mais reclamam, individual e coletivamente, ser ouvidas e se organizam para resistir contra a impunidade. Boaventura de Sousa Santos Diretor do Centro de Estudos Sociais e da Revista Crtica de Cincias Sociais da Universidade de Coimbra. autor de artigos cientficos e livros cuja temtica percorrida a Reinveno social,

Resenha elaborada pelos ps-graduandos do Curso de Especializao em Direito Penal e Direito Processual Penal da FARN, em agosto de 2008. Trabalho final da disciplina Metodologia da Pesquisa Jurdica, ministrada pela Profa Vnia Gico ([email protected]). Experincia coletiva, entre os participantes, na elaborao de um hipertexto, no sentido que Pierre Levy lhe empresta: um conjunto de ns por conexes. Os ns podem ser palavras, idias, pginas, imagens, grficos, ou parte de grficos, textos, seqncias sonoras, documentos complexos, e eles mesmos podem ser hipertextos. Navegar em um hipertexto significa, portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode ser to complicada quanto possvel, porque cada n pode por sua vez, conter uma rede inteira(LEVY, 2004, p. 33). 2 [email protected]; 3 [email protected]; 4 [email protected]; 5 andrelcmeireles@yahoo. com.br; 6 [email protected]; 7 [email protected]; 8 [email protected]; 9 alberto.ala@dpf. gov.br; 10 [email protected]; 11 [email protected]; 12 [email protected]

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na busca de uma globalizao contra-hegemnica e na construo de uma cincia menos dura, mais humanizada, para reinventar um Conhecimento Prudente para uma Vida Decente (SANTOS, 2004a). Conhece a sociedade brasileira tanto por j ter vindo ao Brasil e estudado sua realidade, como porque acompanha atentamente a vida do pas e de toda a Amrica Latina. Veio a Natal, pela segunda vez, no perodo de 30 de agosto a 03 de setembro de 2006, para o Colquio Globalizao, Direitos Humanos e Cidadania, momento de suma importncia para os estudos da obra do autor que vm sendo desenvolvidos, a fim de que possamos nos espelhar na sua experincia e desenvolver melhor a nossa vida acadmica e de cidados comprometidos com as transformaes sociais em seus vrios mbitos. Um dos principais intelectuais da rea de Cincia Sociais do mundo atualmente, tem investigaes de campo no Rio de Janeiro, quando veio ao Brasil pela primeira vez em 1970, e em Recife e So Paulo. No Rio viveu mais de seis meses em Jacarezinho, para concluir a pesquisa de campo de seu doutoramento, cuja tese foi sobre o pluralismo legal. Observou e analisou os hbitos da comunidade, que marcaram, segundo ele, o incio do seu interesse de socilogo pelos conflitos e vitrias do povo excludo. Nesta ocasio, em 1979, veio a Natal para conhecer Lus da Cmara Cascudo e compreender melhor a cultura brasileira. Tambm conheceu o CRUTAC, experincia pioneira de extenso universitria que se desenvolvia na UFRN (COMO..., 2007). Assim o autor discute com propriedade a frustrao sistemtica das expectativas democrticas, que pode trazer como conseqncia a desistncia de uma idia central fulcrada na crena do papel do direito na construo da democracia. As desigualdades sociais e injustias do mundo atual, para Boaventura Santos, exigem do sistema judicial e do direito uma postura proativa, que atenda a uma nova e complexa conscincia de direitos das populaes menos favorecidas. Neste contexto, o poder Judicirio ocupa papel relevante como protagonista de mudanas. Assim analisa o crescente protagonismo social e poltico do sistema judicial, fazendo um estudo da atuao do Poder Judicirio no sculo XX, no s na Amrica Latina, como tambm na frica, nos Estados Unidos e na Europa, mostrando a sua evoluo. Segundo ele, esse protagonismo depende da posio do pas no sistema mundial e do seu nvel de desenvolvimento econmico e social. Ademais, est relacionado com o desmantelamento do Estado intervencionista. Tal protagonismo emerge da mudana poltica patrocinada pelo modelo neoliberal de economia, principalmente por dois fatores: a necessidade de um Poder Judicirio eficaz, rpido e independente; e, por outro

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lado, a precarizao dos direitos econmicos e sociais, da procura, cada vez maior, da mquina judiciria. Santos observa ainda que a questo da litigao em um determinado pas apresenta estreita ligao com a sua cultura jurdica e poltica, mas tem a ver, tambm, com um nvel de efetividade da aplicao dos direitos e com a existncia de estruturas administrativas que dem sustentculo a essa aplicao. Desse modo, a partir do momento em que as pessoas procuram o Poder Judicirio para resolver demandas relativas a direitos violados, o sistema judicial passa a substituir o sistema da administrao pblica, que deveria ter realizado espontaneamente as mais diversas prestaes sociais. Anota o estudioso que na passagem de regimes autoritrios para os regimes democrticos, as sociedades perifricas e semiperifricas, como as denomina, consagraram, em um mesmo ato institucional, direitos que nos pases centrais foram conquistados durante um longo processo histrico. E certo que a constitucionalizao de um conjunto to extenso de direitos, sem o respaldo de polticas pblicas e sociais consolidadas, torna difcil a sua efetivao. Nesse diapaso, tem-se assistido a uma crescente demanda do Poder Judicirio, o qual, na maioria das vezes, no consegue atender aos anseios dos jurisdicionados, gerando grande frustrao, passando, assim, de soluo a problema. Para o autor a evidncia da corrupo uma outra razo para o protagonismo dos tribunais, analisando-a sob dois prismas: o primeiro diz respeito luta do Poder Judicirio contra esse mal, ao passo que o segundo se refere ao combate do Poder Judicirio corrupo na sua prpria estrutura, fato que ocorre com maior intensidade nos pases perifricos. Ainda com relao a esse tema, chama a ateno para o fato de que sempre que o Poder Judicirio encampou a idia de combate corrupo, aumentou consideravelmente a controvrsia ao seu redor, posto que no foram os tribunais idealizados para julgar os poderosos. Assim, a partir do momento em que isso comea a acontecer, d-se a judicializao da poltica, que conduz, por outro lado, politizao da justia, tornando-a mais controversa, visvel e vulnervel politicamente. Em seguida, analisa uma nova fase pela qual estaramos passando, na qual se podem identificar dois grandes campos: o hegemnico e o contrahegemnico, como j havia feito em vrios lugares da sua obra, especialmente no livro A globalizao e as Cincias Sociais, (SANTOS, 2002b). No que pertine ao Poder Judicirio, o campo hegemnico seria aquele dos interesses econmicos, que requer um sistema judicial eficiente, rpido, que permita a previsibilidade dos negcios, garanta a segurana jurdica e a salvaguarda dos direitos de propriedade. Prima pela idia de rapidez, idiaRevista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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essa que, do ponto de vista de uma revoluo democrtica da justia, no suficiente, fazendo-se necessria, acima de tudo, uma justia cidad. J o campo contra-hegemnico diz respeito s pessoas que se conscientizaram de que as mudanas constitucionais lhes deram direitos significativos, e que por tal motivo vem no sistema jurdico e judicial um importante instrumento para reivindicar os seus direitos e as suas aspiraes de serem includos no contexto geral da sociedade, saindo, portanto, da marginalidade em que vivem. Tal prerrogativa seria uma ao contra o desperdcio da experincia, tema amplamente discutido na obra A crtica da razo indolente (SANTOS, 2001), na qual o autor considera as sociedades e as culturas contemporneas intervalares, situando-as no trnsito entre o paradigma da modernidade hegemnico cuja falncia cada vez mais visvel, e um paradigma emergente contra-hegemnico ainda difcil de identificar, que se evidenciar a partir do inconformismo contra a injustia e a opresso. Faz, ainda, uma reflexo sobre os movimentos sociais nos ltimos trinta anos, cuja expresso mais consistente e global da resistncia contra o liberalismo nos remete ao Frum Social Mundial (SANTOS, 2005), criado em 2001. Nele se congregam movimentos e associaes dos mais diversos pases, atuando nas mais diversas reas de interveno, contra a excluso, as desigualdades e as discriminaes sociais e a destruio da natureza produzidas ou intensificadas pela globalizao hegemnica. Tais movimentos sociais, entretanto, inicialmente, no acreditavam na luta jurdica, mas, atualmente, vm obtendo algum xito nos tribunais, fazendo crer que o direito contraditrio e pode ser utilizado pelas classes menos abastadas. O aprofundamento dos caminhos da democracia participativa, por sua vez, so evidenciados ao apresentar vrias experincias em contextos urbanos e rurais em luta contra a trivialidade da cidadania em prol de uma vida democrtica de alta intensidade, discutidos tambm em outra obra sua Democratizar a democracia (SANTOS, 2002a). Conquanto, para alm da procura de direitos patrocinada pelos movimentos sociais, h uma demanda muito maior, designada pela procura suprimida dos direitos de cidadania. Do ponto de vista epistemolgico, a demanda suprimida uma rea da sociologia das ausncias, como Boaventura Santos discute em vrias passagens da sua obra, especialmente na Gramtica do tempo (2006), uma ausncia socialmente produzida, algo activamente produzido como no existente (p. 32). No que pertine aos direitos de cidadania, pode ser definida como a procura de todas aquelas pessoas que, a despeito de terem conscincia de seus direitos, sentem-se totalmente impotentes para reivindic-los quando so violados. esta a procura da maioria considervel das pessoas das classes

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populares e ela que atualmente est em discusso, pois, se for considerada, levar a uma grande transformao do sistema jurdico e judicirio em geral, fazendo, assim, sentido falar em uma revoluo democrtica da justia. Entretanto, para satisfazer tal procura suprimida so necessrias profundas transformaes no sistema judicirio, devendo haver verdadeira mudana na cultura jurdica e forte vontade poltica. Questiona-se, pois, se essa democratizao da democracia interessa aos poderes executivo e legislativo, aos atores do Poder Judicirio, Ministrio Pblico e aos integrantes das demais profisses jurdicas. Na seqncia, aponta os principais vetores dessa transformao e ressalta que o sistema judicial no pode resolver todos os problemas causados pelas mltiplas injustias, mas tem que assumir a sua cota de responsabilidade na resoluo. Deve, portanto, perder o isolamento e se articular com outras organizaes e instituies da sociedade que possam ajud-lo nessa rdua misso. Neste ponto, destaque a descrio desses obstculos feita por Boaventura, que reala a linguagem esotrica, presena arrogante, maneira cerimonial de vestir e outros smbolos de imponncia, que distanciariam o Judicirio do cidado. Neste conjunto podemos deslumbrar os contornos de uma mtica de um Judicirio ainda cercado por colunas de mrmore e em seu interior representantes terrenos da deusa romana Iustitia13 ou de sua correspondente grega Dik. A essncia de sua existncia funcional, contudo, contrasta fortemente com o arqutipo de semi-deuses e requisita do rgo de soberania estatal uma existncia terrena e mais prxima daqueles, muitas vezes, desamparados pelo prprio estado. AS REFORMAS PROCESSUAIS E A MOROSIDADE O breve sculo XX, como o denomina Eric Hobsbawm (2007), foi a era mais extraordinria da histria da humanidade, marcado por grandes progressos na rea da cincia e da tecnologia, certo, mas combinando catstrofes humanas de dimenses inditas; conquistas materiais consubstanciais, seguidas, entretanto, por um aumento sem precedentes da nossa capacidade de transformar e talvez destruir o planeta. Alm do mais, o progresso que dinamizou as relaes comerciais, criou sociedades de massas consumistas,

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Iustitia (Justia ou Justitia) era a deusa romana que personificava a justia. Correspondia, na Grcia, a Deusa Dice ou Dik. Difere dela por aparecer de olhos vendados (simbolizando a imparcialidade da justia e a igualdade dos direitos).

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e conseqente acentuao nos nveis de desigualdade social, especialmente nos pases perifricos e semiperifricos. Nesse mesmo perodo, o reconhecimento internacional da Declarao Universal dos Direitos Humanos e o surgimento de tratados e convenes que findaram por incluir novos direitos, chamados direitos sociais, nas constituies de vrios pases ocidentais, fizeram surgir uma revoluo tambm no direito. No Brasil, as transformaes jurdicas trazidas pela revoluo em comento foram sentidas mais fortemente aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, marco na democratizao do pas e conscientizao da nossa sociedade em relao aos direitos dos cidados, dentre eles o direito ao livre acesso justia (BRASIL, 1988). O nosso sistema jurdico, hegemnico, caracterstico do neoliberalismo, busca precipuamente a satisfao dos interesses de mercado em detrimento dos interesses das classes populares: h sobreposio do individual sobre o coletivo. E esta poltica gera efeitos negativos para parcela acentuada da sociedade brasileira, evidenciando-se as necessidades bsicas da populao como as questes relacionadas a moradia, alimentao, emprego, ateno sade e educao. Assim cada vez mais so destacados os enormes ndices de desigualdade social existentes no Brasil. Sobre este tocante, h notria e manifesta insatisfao por parte da sociedade, que freqentemente atribui suas frustraes ao Poder Judicirio, chamado a garantir a efetivao dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos. A morosidade do judicirio passou ento a ser abertamente discutida e questionada pelo povo. Ocorre que o Poder Judicirio sentiu-se em crise, e despertou para a necessidade de uma reforma nas suas estruturas. Iniciaram-se, pois, reformas que buscaram principalmente dar mais celeridade prestao jurisdicional, sem, contudo, preocuparem-se em oferecer prestao realmente satisfatria aos interesses do coletivo. Decerto, importante que haja rapidez na prestao jurisdicional, mas este no deve ser o fim ltimo buscado pelo direito; pois a relao jurdico-processual como instrumento de pacificao social deve promover a cidadania e o respeito dignidade da pessoa humana, expresses de acesso efetivo justia. A Revoluo Democrtica do Direito na concepo de Boaventura de Sousa Santos uma via de ao para superar a realidade em que nos encontramos, e isso s ser possvel se formos capazes de compreender uma nova relao de poder judicial, mais prxima dos movimentos e organizaes sociais; uma nova formao dos operadores do direito; novas concepes de independncia judicial; profundas reformas processuais; novos mecanismos de protagonismo no acesso

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ao direito e justia e ainda uma cultura jurdica realmente democrtica, portanto uma mudana paradigmtica no campo jurdico-dogmtico que domina, inclusive, o ensino nas faculdades de direito, que no tem conseguido ver que na sociedade circulam vrias formas de poder, de direito e de conhecimentos que vo muito alm do que cabe nos seus postulados (SANTOS, 2007, p. 71). Enfatiza as experincias das assessorias jurdicas universitrias, das promotorias legais populares, do programa de justia comunitria e da advocacia popular, enquanto exemplos de iniciativas existentes no Brasil, e que tm contribudo para a reinveno de prticas alternativas ao direito vigente. Uma revoluo democrtica ocorreria, pois, por um caminho contrrio hegemonia do direito ora visto; uma contra-hegemonia do direito vigente buscaria criar paradigmas que ampliassem as possibilidades de acesso justia social e cidad. Desse modo as formas sociais de no existncia que so construdas socialmente, conforme advoga na sociologia das ausncias, a partir de um pensamento dominante que sobrepe outras possibilidades de interpretar o mundo e a si prprio, tornar-se-iam uma alternativa ao sujeito silenciado. E a monocultura dos saberes iria substituindo-se pela ecologia dos saberes numa tentativa de articular o diverso e o plural mediante interaes sustentveis entre aspectos particularmente heterogneos. Dessa maneira o paradigma emergente, discutido na sociologia das emergncias, enquanto uma nova racionalidade para o conhecimento (SILVA, 2007), ao ser praticado aos poucos vai identificar e valorizar as experincias desperdiadas pelo conhecimento hegemnico; investigar e ampliar as alternativas concretas de futuro naqueles saberes, prticas ou sujeitos; maximizar a esperana e minimizar a frustrao. Tais idias j haviam sido discutidas amplamente na Gramtica do tempo (SANTOS, 2006) e agora vm reforar a premissa de uma justia social cidad para retomar o que defende como uma nova cultura poltica que permita voltar a pensar e a querer a transformao social e emancipatria, ou seja, o conjunto dos processos econmicos, sociais, polticos e culturais que tenham por objetivo transformar as relaes de poder desigual em relaes de autoridade partilhada. O ACESSO JUSTIA Na busca de uma revoluo democrtica da justia, Boaventura de Sousa Santos discute ainda as transformaes jurdico-polticas necessrias dirigidas a um conjunto vasto de injustias que, como j vimos, ocorrem na sociedade. Mas dentre estas destaca, e como ponto de partida, uma nova concepo de acesso ao direito e justia, bem como os instrumentos que poderiam viabilizar essa via.Revista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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Ressalta que a referida transformao no Brasil tem que ser iniciada pelo enfrentamento da questo das custas judiciais. Evidencia que, no mbito estadual, h uma grande variao entre os diversos Estados da Federao, sem que haja, ao que lhe parece, um critrio racional que justifique a disparidade. Defende a necessidade de criao de outra cultura de consulta e de assistncia e patrocnio judicirio. Destaca o relevante papel das defensorias pblicas, instituies essenciais administrao da justia, previstas na Constituio Federal de 1988, que devem ser estimuladas. Contudo, reala a necessidade de ser conferida ateno a algumas de suas deficincias, das quais destaca os problemas relacionados estrutura das Defensorias Pblicas da Unio e dos Estados, que considera pequena em relao s necessidades da sociedade brasileira. Esse amesquinhamento funcional resulta, consequentemente, na prestao de uma assistncia jurdica e judicial seletiva. Aponta ainda como outro ponto problemtico, o fato de no haver grande experincia no uso das aes coletivas e no recurso ao sistema interamericano de direitos humanos. Quando discute alternativas de acesso justia, ressalta iniciativas surgidas na sociedade brasileira, que devem ser incentivadas, destacando: as promotoras legais populares, cuja metodologia consiste em socializar, articular e capacitar mulheres nas reas do direito, da justia e no combate discriminao de gnero. Esta iniciativa, reala Boaventura Santos, tem possibilitado que mulheres possam lutar contra uma situao de desvantagem inicial, diante de instncias pblicas e privadas, que tendem a oferecer tratamento desigual entre elas e os homens; as assessorias jurdicas universitrias populares, prtica jurdica desenvolvida por estudantes de direito, tendo como ponto de partida a comunho entre ensino, pesquisa e extenso, que assim, contribuem para uma prxis diferenciada, dialgica e multidisciplinar (SANTOS, 2007, p. 51), atuando em prol da construo de uma viso crtica do direito, da justia e da viso hegemnica da educao jurdica e voltada para uma forma de assistncia e de assessoria atenta aos conflitos estruturais e de interveno mais solidria e mais politizada. Neste tipo de iniciativa dada importncia ao de defesa de direitos coletivos em associao com movimentos sociais e organizaes populares; a capacitao jurdica de lderes comunitrios, relacionada a programas governamentais e no-governamentais voltados para a preparao (capacitao jurdica) de integrantes da comunidade, como mediadores na soluo de conflitos locais; e a advocacia popular, ao direcionada, em especial, para a efetivao de direitos coletivos, destacando-se no s pela atuao, como tambm pelos valores e princpios que invoca,

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tais como o compromisso com uma relao horizontal com os assistidos, a valorizao do intercmbio de saberes e o objetivo de orientar aqueles que representa. Percebe-se, ao analisar a questo em debate, o quanto o acesso justia um fenmeno muito mais complexo do que primeira vista pode se mostrar, uma vez que, alm dos aspectos econmicos, envolve condicionantes sociais e culturais. Ento, no basta ser levado em considerao apenas e propriamente s o acesso justia, mas, principalmente suas dificuldades, obstculos e os mecanismos tcnico-jurdicos, sociais, culturais e econmicos pelos quais se d o entrave do sistema judicial. Mister se faz um aprimoramento da acessibilidade, para que todos, sem distino, tenham conhecimento e possibilidade de usufruir e lutar por seus direitos e que possam faz-lo de forma igual, equilibrada. Na atualidade, cada vez mais essa questo vem apontando polmicas, reformas e, principalmente, idias. Embora nem sempre as tentativas de solucionar o problema sejam viveis, de suma importncia que se busquem maneiras de acabar, ou diminuir, as barreiras do acesso. Evitarse-, com isso, que o problema se transforme num crculo vicioso, no qual as dificuldades de acesso justia tragam como conseqncia o descrdito na instituio e, assim, provoquem o afastamento da populao, inibindo ainda mais o referido acesso. Importante enfatizar que, dentro de uma concepo axiolgica de justia, seu acesso no fica reduzido ao sinnimo de acesso ao Judicirio e suas instituies. Ganha relevo, porquanto, a ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano, no restritos, contudo, ao ordenamento jurdico-processual, ou seja, no se limitando a um direito ordem jurdica ou simplesmente possibilidade do ingresso em juzo. Em verdade, por acesso justia, deve-se entender a proteo a qualquer direito, sem qualquer restrio. Com efeito, no basta, portanto, simplesmente a garantia formal da defesa dos direitos e a do acesso aos tribunais, mas sim a garantia de proteo material desses direitos, assegurada a todos os cidados, independentemente de qualquer condio social. Este acesso gesta-se no processo de exerccio da democracia, uma vez que no possvel conceber que o povo possa exercer seus direitos se a justia no lhe conferir meios de faz-lo, contrapondo-os aos abusos e arbitrariedades que tentam impedir. Dessa forma, concordamos com o mestre lusitano que, para se obter justia para todos elementar e primordial a garantia pelo Estado de vias de acesso a essa justia. Vale ressaltar, ainda, o fato de que, em tempos atuais, grandesRevista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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so as discusses acerca da necessidade de se utilizar meios alternativos e institutos de direito, como forma de viabilizar e concretizar o acesso justia. No se restringindo, assim, esfera do Judicirio, mas compreendendo, na verdade, sua concretizao, visando principalmente realizao de uma ordem jurdica justa. INOVAES INSTITUCIONAIS A idia do direito no tempo vem enfatizar que na Amrica Latina, durante boa parte do sculo XX, e especialmente nos pases sul-americanos, no houve preocupao com a questo social da distribuio da justia, restringindo-se aplicao das leis copiadas do modelo europeu. Nesse contexto, o Estado afigura-se preocupado com o crescimento do poder executivo e de toda sua burocracia e somente a partir do fim da dcada de 1980, os pases sul-americanos passaram a priorizar os programas destinados reforma do judicirio e construo de um Estado democrtico e de direito. No Brasil, foi atravs da constituio de 1988 que se ampliaram estratgias e instituies, que possibilitaram a insero de inmeros direitos e garantias. Desse modo, destaca Boaventura Santos, o Brasil conquistou de uma s vez, o que outros pases levaram tempo considervel para faz-lo, atropelando-se vrias geraes de direito. A partir de ento, a constitucionalizao de um conjunto extenso de direitos e garantias fundamentais surgiu, sem que houvesse polticas pblicas e sociais destinadas a dar-lhes sustentao, em especial, o aparelhamento do poder judicirio. Isso tornou difcil, seno impossvel, efetiv-las. A sociedade brasileira descobriu o judicirio que, por sua vez, passou a intervir no sistema, dando-se a transferncia da legitimidade dos poderes executivo e legislativo para o judicirio. Criaram-se expectativas positivas no seio da sociedade, segundo o autor, que, conforme j registrado, no cuidou de aparelh-lo, causando, assim, forte decepo diante da lentido e conseqente impunidade ou falta de efetividade dos direitos. A estagnao do judicirio, por sua vez, deve-se principalmente falta de polticas pblicas e sociais destinadas a garantir aos cidados o que foi assegurado na constituio de 1988. A sada, aponta Santos, est em investir em mudanas que transformem o judicirio num sistema mais clere e comprometido com a sociedade. Tais mudanas j teriam se iniciado com a Emenda Constitucional n. 45, de 31 de dezembro de 2004, (BRASIL, 2004),

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contribuindo para um judicirio mais acessvel. Contudo, tais mudanas somente lograro o xito esperado, com a efetivao das transformaes necessrias e recprocas no judicirio, no executivo e no legislativo. Estas transformaes sero de natureza processual, organizacional e educacional e devero garantir aos cidados maior transparncia, acessibilidade e justia e, acima de tudo, uma cultura jurdica democrtica. Por seu lado a transformao do ordenamento positivista, hegemnico, para um ordenamento jurdico-social, contra-hegemnico, voltado para a moral e a justia, leva a justia brasileira a um novo paradigma, considerando-se que neste momento estamos atravessando uma transio paradigmtica da justia, conforme discutido em sua obra, j citada: A crtica da razo indolente (SANTOS, 2001). A ascenso dos princpios no ordenamento jurdico, especialmente o da dignidade da pessoa humana, rompeu com o positivismo em que estvamos inseridos. Tambm retirou o ente estatal de sua inrcia perante a reduo das desigualdades sociais e econmicas, colocando-o em posio de luta. A Constituio de 1988 estabeleceu em seu art. 5. 1 que os direitos fundamentais tm aplicabilidade imediata. A observncia desta premissa e a impossibilidade do poder executivo de garantir aos cidados a to almejada qualidade de vida, compeliu o judicirio a interferir nas chamadas polticas pblicas. Com efeito, passou o judicirio a analisar os atos administrativos e da vida civil em geral, pautando-se, sobretudo, nos princpios da razoabilidade, proporcionalidade, lealdade, boa-f e igualdade. Esta atitude trouxe consigo o aumento considervel da demanda de processos no judicirio. Encontramos hoje um judicirio com sobrecarga de trabalho tendo, na maior parte, litgios com pouca relevncia jurdica, econmica e intelectual. Este fato provoca grande perda de tempo e dinheiro da mquina administrativa judiciria para a sua resoluo. Tais litgios, na maioria das vezes, poderiam ser solucionados por meio de mediao e conciliao. Contudo, so solvidos com o processo contraditrio tradicional. Cerca de 70% das demandas dos juizados especiais federais cveis versam sobre questes previdencirias. Isso por que, uma vez facilitado o acesso justia, houve diminuio pela procura da autarquia previdenciria, ocorrendo chamada transformao do judicirio em administrador de questes pblicas. Passou, assim, a assumir funes francamente executivas, que no deveriam ser rigorosamente atribuies suas. Nesse diapaso, para se realizar uma revoluo democrtica da justia no judicirio brasileiro, preciso antes que se criem meios institucionaisRevista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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inovadores capazes de tornar o acesso ao judicirio mais fcil. preciso implementar reformas que coloquem a justia a servio do cidado, desburocratizando o judicirio e criando solues viveis e aceitveis para uma verdadeira simplificao dos atos processuais. Para isso, Boaventura Santos indica dois caminhos: o primeiro, mantendo a estrutura do monoplio da atividade judicial pelo Poder Judicirio, com a realizao de reformas que garantam maior democratizao dentro do prprio Poder; segundo, pela criao de um sistema privado paralelo de administrao da justia, que seja simples, eficaz e capaz de resolver os problemas menos complexos e que no demandem relevncia jurdica e intelectual dos magistrados. Foi atravs dessa primeira perspectiva de reformas no judicirio que surgiram os Juizados Especiais e, com isso, foi ampliado, consideravelmente, o acesso justia e tornado mais clere o processamento das aes cveis de menor valor. Estes resultados foram alcanados, apesar da precariedade de sua instalao, uma vez que os juizados foram implementados, mas no foram disponibilizados juzes e servidores capacitados para esse fim. Diante desse quadro foi introduzida, atravs da Emenda Constitucional n. 45/2004, j citada, a justia itinerante, que pode ser entendida como a justia disponibilizada em unidades mveis, geralmente por meio de um micronibus adaptado. Sua finalidade levar a atividade jurisdicional do Estado aos mais longnquos lugares, em benefcio das pessoas mais necessitadas. Composta por um juiz, conciliadores e defensores pblicos, visa soluo dos conflitos atravs da conciliao. No sendo possvel a transao, ou mesmo a deciso do conflito, pelo magistrado, as partes so encaminhadas ao juzo comum. Diante dessa alternativa, que em muitos Estados j se encontra em plena atuao, pode-se desobstruir a justia de causas de pouca relevncia jurdica ou econmica. Outras alternativas podem surgir com a finalidade de se criar um novo conceito de justia. dentro desse perfil inovador que encontramos os tribunais multiportas, que seriam um sistema judicial que acolheria formas hbridas de resoluo dos litgios jurisdicional e no jurisdicional. Este modelo preveria a criao de vrias portas de acesso, as quais poderiam ser escolhidas pelo prprio cidado, sem interferncia do Estado. O cidado optaria, assim, pelo mtodo convencional de justia ou, conforme assim o desejar, pela arbitragem e mediao, que estariam a sua disposio, atravs de Centros Integrados de Cidadania (CIC). Estes CIC seriam criados dentro dos bairros mais afastados, possibilitando s pessoas daquela regio uma imediata prestao jurisdicional e garantindo, assim, a efetiva democratizao da justia.

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interessante notar que o processo de democratizao do estado brasileiro, que vem configurando-se h mais de 20 anos, embora se processando lentamente, tem incorporado dia aps dia, as possibilidades disponibilizadas pela Constituio de 1988. Este processo marcado pela conscincia de que em um pas democrtico as possibilidades do exerccio e usufruto dos direitos de cidadania devem chegar a todos, indistintamente das suas classes sociais, etnias e posio social. Diante desse quadro, a sociedade brasileira tem descoberto no judicirio um dos caminhos para efetivar seus direitos, embora parea cada vez mais rduo e distante. Necessrio se faz transformar estruturas, criar solues alternativas e viveis, de forma a garantir a todos o acesso uniforme justia, democratizando seu acesso. Quando discute Os tribunais e os movimentos sociais, o que o faz no capitulo cinco, aborda o isolamento do poder judicirio, tendo em vista sua prpria organizao piramidal e hermtica. Por sua vez, no capitulo seguinte, vem tona Os Tribunais e os media, que so enfocados abordando a disponibilizao de informaes ao pblico, a partir da democratizao da informao, com suas disjunes e divergncias entre a mdia e os tribunais, mas ressaltando que tal aproximao tambm resulta em uma maior autonomia para a execuo de sentenas, embora a mdia e o direito promovam a lgica da monocultura do saber, mediante os papis que desempenham enquanto campos sociais, contribuindo para fixar as invisibilidades sociais, dos fatos da realidade (mdia), e ao estabelecer os limites entre o lcito e o ilcito (direito) (SILVA, 2007, p. 21). Destaca ainda iniciativas de ordem prtica, como o canal TV Justia, que embora restrito a assinantes, associadas ao crescente interesse de jornais, revistas e rdios por debates jurdicos, podero auxiliar na tarefa de aproximao dos no especialistas com as causas dos tribunais, tendo como intermedirio os meios de comunicao. J quando aponta A cultura jurdica e a independncia judicial, que est posto no capitulo seis, discute o caminho para a reflexo acerca da independncia do poder jurisdicional, instituto decerto essencial para o Estado democrtico, embora reconhea que houve alteraes legislativas importantes para reparar o erro histrico do privilgio de classe - como o caso da criao do controle externo do Poder Judicirio - mas o autor condiciona o sucesso desta e de quaisquer outras reformas necessidade de que os operadores do direito entronizem as modificaes implementadas, sem a qual no possvel alterar a realidade da justia, tornando-a mais prxima dos cidados. Retomando o que foi abordado no captulo quatro, e at mesmoRevista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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invertendo a ordem dos captulos apresentados no livro, particularizam-se, por sua importncia para influenciar na democratizao da justia, as questes da formao dos magistrados no Brasil A FORMAO DOS MAGISTRADOS E A CULTURA JURDICA Na convergncia da discusso que Boaventura Santos faz na sua obra como um todo, e em particular na obra em pauta da resenha, as questes da democratizao da justia, mantm um relao estreita com a formao dos magistrados no Brasil. Destacando o pensamento hegemnico jurdico, menciona a sua anacrnica obedincia a uma cultura normativista, tcnico-burocrtica, embasada nas idias de que o direito autnomo e indiferente a tudo o que ocorre na sociedade, limitando-se, portanto, aos autos. Aponta como resultantes dessa cultura arcaica: a priorizao aos ramos do direito civil e penal; cultura generalista de que somente a lei pode resolver os litgios e que cabe ao magistrado tal competncia exclusiva; a tendncia de no responsabilidade (sistemtica) ante aos maus resultados do desempenho do sistema judicial, posto que nunca assumem sua parcela de culpa; a continuidade de privilgios para poderosos (agentes pblicos ou privados), os quais so tratados de modo diferenciado nas investigaes e julgamentos; o refgio dos profissionais do direito na burocracia (preferncias por decises processuais) e na fuga s penas alternativas; e, ainda, desenvolve uma atitude de se manter longe das aspiraes da sociedade e que o leva a entender a independncia do judicirio como auto-suficincia, consubstanciado na averso ao trabalho em equipe e interdisciplinar. Diante disso, parece evidente que tais questes alm de estarem presente no ensino jurdico, vo influenciar as falhas da formao de todos os operadores do direito, como funcionrios, Ministrio Pblico, juzes e advogados. Para superar tais lacunas, o autor prope a leitura do ordenamento jurdico em conjunto com os problemas sociais, por meio do dilogo dos conhecimentos jurdicos, popular e cientfico, buscando uma educao jurdica intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuda da idia de responsabilidade cidad. Tal assunto tambm abordado em outra obra sua (SANTOS, 2004b), que tem como cerne da questo uma universidade mais forte e prxima da sociedade, o entendimento de que no h conhecimento independente, de modo que os seus mais variados ramos se relacionam para a formao do homem.

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Considera premente a necessidade de revolucionar o modo de pensar utilizado pelas instituies de ensino jurdico14, tanto na graduao, como na ps-graduao, haja vista a cultura exclusivista de extrema indiferena diante das mudanas experimentadas pela sociedade, que tende a formar, por sua vez, profissionais sem maior comprometimento com os problemas por ela enfrentados. Entende que o trip ensino/pesquisa/extenso no implementado adequadamente nos centros de ensino das cincias jurdicas, havendo pequenas experincias neste sentido, como as assessorias jurdicas universitrias populares, j mencionada, nas prticas jurdicas. Explica que o ensino existente voltado ao acmulo de conhecimento, sendo o aluno considerado um receptor passivo das informaes15. Ademais, pauta-se na premissa de que o conhecimento jurdico leis e cdigos considerado suficiente para obteno de ensino-aprendizagem, perdendo o aluno a viso de conjunto. J o ramo da pesquisa volta-se para a descrio de institutos sem a devida contextualizao, ao passo que a extenso se destina a oferecer compensao para a comunidade circundante (palestras e atendimento jurdico) sem levar em conta a realidade social. Aps identificar os problemas, aponta como solues: a necessidade de repensar um ensino do direito, nos dois nveis mencionados, que promova a interao entre o ordenamento jurdico e suas prticas com os problemas sociais; a pesquisa necessita ser uma pesquisaao, no sentido que lhe confere Thiollent (2007) acrescente-se, em que a comunidade participe na definio e execuo dos projetos, trazendo para si maiores benefcios; e, por fim, a extenso deve buscar a emancipao dos envolvidos com o dilogo do saber jurdico popular e cientfico, alm da aplicao edificante da cincia jurdica. Ao persistirem tais modelos de projetos polticos pedaggicos no ensino superior como um todo, e no caso brasileiro, nos cursos de direito, particularmente, enfatiza o autor, como j o fizera na obra A Universidade no sculo XXI (SANTOS, 2004b), o colapso que a universidade vinha sofrendo no mbito institucional como fonte de produo cientfica se aprofundar.

Ver estudos nesta linha (Daniel Torres de CERQUEIRA; e Roberto FRAGALE FILHO, 2006) e que foram discutidos pela OAB Rio Grande do Norte , durante o I Simpsio Potiguar de Educao Jurdica da OAB, Natal/RN, out. 2008. 15 E no um pensador arguto, diramos. Neste sentido consultar outras discusses: Paulo Freire (2004; 2008); Edgar Morin (2001); Jacques Delors (2007).14

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A exemplo de outras instituies, a crise seria provocado pela nova concepo neoliberal que diminui o papel do Estado na educao superior, bem como pela presso comercial para a produo cientfica voltada para as necessidades do mercado (mo-de-obra especializada e tecnologia). Chama a ateno ainda, para um fato nefasto para a sobrevivncia da universidade que a produo cientfica distanciada da sociedade; h, pois necessidade de uma produo de conhecimento pluriuniversitrio, em que os critrios de pesquisa so determinados em partilha de responsabilidade com a sociedade interessada no uso do conhecimento produzido pelas instituies de ensino superior. incisivo no fato de que no h qualquer preparao para o ensino nas faculdades de direito, dando-se a escolha dos professores, em sua maioria, por critrios de prtica profissional. Tais critrios levam, sala de aula, professores desqualificados pedagogicamente e sem reflexo crtica acerca de sua ao como docente, tornando-se meros improvisadores que repetem discursos hegemnicos que sero cobrados em provas e que tm como conseqncia a asfixia do ensino jurdico, pois no h interao com a realidade. O aluno, conseqentemente, ser apenas um reprodutor de conceitos e de meios de aplicao da norma jurdica, sem perceber o real papel da mesma na sociedade. Sugere, ento, que as faculdades pautem seus programas de estudo em uma ecologia de saberes jurdicos, tema em pauta no seu livro j citado A gramtica do tempo (SANTOS, 2006), com a concepo de que o direito muito mais amplo do que a norma jurdica e que deve fazer parte da discusso acadmica para a formao dos professores e alunos. Acredita que somente com uma educao jurdica intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuda da idia de responsabilidade cidad que se poder fazer frente cultura normativista, tcnico-burocrtica, ento existente. Ir busca de novos conhecimentos conhecer melhor a realidade do meio social que envolve todos, inclusive as faculdades e conseqentemente os operadores, pois o resultado esperado das decises judiciais a paz e o equilbrio social para todos e no, somente, para o caso concreto litigado naquele instante. As decises judiciais tm que satisfazer a todos aqueles que se encontram em situaes de igualdade no seio social. A formao do magistrado no pode parar com o trmino da faculdade e a aprovao do certame pblico. A formao permanente tida, segundo o autor, como mais importante, pois ser regida pelos reclames

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sados das ruas e que ecoam nos tribunais. Alis, o concurso pblico no satisfaz as exigncias profissionais, principalmente daquelas carreiras que lidam com a dinmica social, pois essas requerem um aprofundamento de conhecimentos no transcurso do tempo da carreira, como o caso das polcias e da magistratura. Est fincado no judicirio e em outros sistemas estatais um individualismo incomum para a atualidade. No se prega uma estrutura de equipe e sim uma deciso atravs do conhecimento individual do magistrado, ao contrrio de decises atravs do conhecimento multidisciplinar. CONSIDERAES FINAIS Para que haja uma Revoluo Democrtica da Justia, como pensa o autor, necessrio, sem dvida, haver vrias outras revolues democrticas para que se possa sentir os efeitos daquela. preciso que todo meio social, alm dos citados, se modifique e acompanhe as transformaes que se buscam. Conforme afirmamos, o poder Judicirio no est apartado dos demais entes sociais, e mais, existem vrios outros institutos ligados umbilicalmente ao mesmo, como se pode destacar a polcia e as universidades, que tambm correm s margens da realidade da sociedade que as contm. Decerto, no podemos ter uma polcia como tnhamos nos idos dos anos 50, e muito menos um judicirio e um sistema de ensino. preciso atualizar a formao de todos, para acompanhar o que se requer de uma educao e uma sociedade com desafios do sculo XXI. A transformao do ensino nos cursos de Direito, ao nosso entender, o grande pontap da falada revoluo descrita pelo autor. a partir da mesma que se desencadear a busca da competncia para enfrentar os demais caminhos para se obter uma justia operante, capaz de julgar e adequar os interesses de todos os cidados e assim equilibr-los de forma mais justa e humana. De fato as faculdades de direito tm se distanciado dos problemas sociais, das pequenas s grandes questes. Percebe-se com total nitidez o atraso dos cursos jurdicos, no porque as outras graduaes sejam melhores, pois em quase todo o mundo o sistema educacional parece passar margem das questes sociais, principalmente nos pases perifricos e semiperifricos. As academias de Direito, por sua vez, pouco inovaram nestas ltimas dcadas. Continua-se a estudar, praticamente, apenas os cdigos e as leis, esquecendo-se de outros fenmenos socioculturais. ComRevista da FARN, Natal, v.7, n. 2, p. 205-224, jul./dez. 2008

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o aumento do nmero de escolas de ensino superior16, principalmente privadas, isso tem se agravado ainda mais, pois muito pouco se investiu na transformao da qualidade do ensino. preciso avanar e refletir a partir da leitura que se recomenda e das lies que Boaventura Santos nos mostra. preciso criar a concepo que os operadores do Direito no so por si s Educadores. preciso criar a figura de educador para as Faculdades de Direito. A educao jurdica tem que trilhar outros campos do conhecimento os quais tragam novas vises sobre a realidade social contempornea na qual est inserida. Isso no serve apenas para a graduao, serve tambm para as escolas de formao profissionais, para os cursos de especializao e para a ps-graduao como um todo. Em suma, sabe-se, de fato, que no s a Justia que precisa de uma revoluo democrtica. o prprio Estado, como se vem mostrando, o instituto estatal brasileiro ainda est com a cabea presa ao seu passado de aparente glria, no qual o poder econmico e poltico ainda dita as regras da vida social. Uns mais, outros menos, mas os aplicadores do Estado Democrtico de Direito tendem a sofrer grandes transformaes para alcanar os objetivos democrticos. Novos direitos precisam ser estudados nas escolas, pois j estamos na 5 gerao dos direitos (BECHARA, 2006), para preencher lacunas e romper paradigmas que impedem o avano democrtico e satisfatrio do Estado Democrtico de Direito, to necessrio e to urgente para os anseios contemporneos de nossa sociedade. Boaventura de Sousa Santos considera-se um otimista trgico, por acreditar na possibilidade da construo de um mundo novo, com menos injustia e desigualdade, e na construo de uma sociedade civil global emancipada, na qual as vtimas da globalizao dominante se transformem em protagonistas de sua prpria libertao. Para o autor, a universidade e a cincia tm um papel a cumprir para tornar possvel a emergncia dessa nova globalizao. Para isso, no entanto, elas tero que se reformar; fazer uma cincia com consideraes ticas e uma universidade pautada em uma ecologia dos saberes. Deixamos o mais para o leitor descobrir a partir da leitura do livro que ora recomendamos PARA UMA REVOLUO DEMOCRTICA DA JUSTIA, alm do que recomendamos a sua extensa obra, e os seus colaboradores, que est orientada para o combate, sem trguas, a todas as formas de excluso, injustia e opresso.

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O Brasil, segundo o autor, o pas que mais oferece vagas nos cursos de Direito no Mundo e foram implantados em 1827 Olinda e So Paulo, pelo mesmo decreto. Em 2008, 281 anos aps, so 1059 cursos: distribudos em 799 instituies: 374 nas capitais e 685 nas cidades do interior. Distribuio por categoria institucional: Universidades: 374 cursos; Faculdades: 561; Centros Universitrios: 124 (I Simpsio Potiguar de Educao Jurdica da OAB, Natal/RN, out. 2008).

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