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Recensões Aguiar, J. 2006. Lapedo: uma criança no vale. Porto, ASA. 200 pp. ISBN 972‑41‑4871‑8. € 14 Quando os arqueólogos Pedro Souto e João Maurício descobriram os restos ósseos matizados de ocre de uma criança no Vale do Lapedo (Leiria), no Outono do ano de 1998, poucos teriam a ousadia de esperar que o achado ia transformar tão profundamente a perene e visceral discussão em redor das origens do homem anatomicamente moderno. O esqueleto da criança, razoavelmente completo, foi encontrado num abrigo rochoso do Vale do Lapedo, denominado Abrigo do Lagar Velho. A criança, de sexo indeterminado, pereceu com cerca de quatro anos de idade. O corpo, possivelmente envolvido numa mortalha pigmentada de ocre, foi deposto na sepultura com a cabeça voltada para leste e os pés para oeste. Adstritos aos restos ósseos foram encontrados alguns elementos animais e adornos, com inequívoco valor simbólico. Estes factores, associados à antiguidade dos remanescentes esqueléticos (cerca de 25.000 anos), bastavam para creditar uma importância extraordinária a esta sepultura do Paleolítico Superior. Contudo, o interesse científico e mediático abandonou‑se quase em exclusivo à surpreendente hipótese colocada pela equipa que escavou e estudou a criança do Lagar Velho (que incluía, entre outros, João Zilhão, Erik Trinkaus e Cidália Duarte). Concisamente, a hipótese sugerida por este grupo de cientistas admite que esta criança exibe um mosaico de características morfológicas que resultou, aparentemente, de uma miscigenação regular entre Neandertais e Cro‑Magnons, durante a fase crepuscular da existência Neandertal na Europa. Como seria de esperar, esta revelação atordoou a comunidade científica, que prontamente lhe reagiu (com um tropel de criticismo ou afinando panegíricos, conforme o paradigma seguido). De facto, o menino do Lapedo cedo se tornou em mais um manancial de discórdia na questão da origem do homem moderno, a mais velha controvérsia no seio da paleoantropologia. Dos escombros de uma contenda que se mantinha mais ou menos confinada nos limites estreitos da comunidade científica surge Lapedo: uma criança no vale, uma obra do romancista e jornalista João Aguiar (autor de uma vasta produção ficcionada, na qual se incluem obras como O comedor de pérolas, A hora de Sertório e Inês de Portugal), que pretende divulgar a importante descoberta do Abrigo do Lagar Velho – sem a secura da nomenclatura científica ou a superficialidade do aparelho mediático jornalístico. Antropologia Portuguesa 22/23, 2005/2006: 331‑36

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RecensõesAguiar, J. 2006. Lapedo: uma criança no vale. Porto, ASA. 200 pp. ISBN 972‑41‑4871‑8. € 14

Quando os arqueólogos Pedro Souto e João Maurício descobriram os restos ósseos matizados de ocre de uma criança no Vale do Lapedo (Leiria), no Outono do ano de 1998, poucos teriam a ousadia de esperar que o achado ia transformar tão profundamente a perene e visceral discussão em redor das origens do homem anatomicamente moderno. O esqueleto da criança, razoavelmente completo, foi encontrado num abrigo rochoso do Vale do Lapedo, denominado Abrigo do Lagar Velho. A criança, de sexo indeterminado, pereceu com cerca de quatro anos de idade. O corpo, possivelmente envolvido numa mortalha pigmentada de ocre, foi deposto na sepultura com a cabeça voltada para leste e os pés para oeste. Adstritos aos restos ósseos foram encontrados alguns elementos animais e adornos, com inequívoco valor simbólico.

Estes factores, associados à antiguidade dos remanescentes esqueléticos (cerca de 25.000 anos), bastavam para creditar uma importância extraordinária a esta sepultura do Paleolítico Superior. Contudo, o interesse científico e mediático abandonou‑se quase em exclusivo à surpreendente hipótese colocada pela equipa que escavou e estudou a criança do Lagar Velho (que incluía, entre outros, João Zilhão, Erik Trinkaus e Cidália Duarte). Concisamente, a hipótese sugerida por este grupo de cientistas admite que esta criança exibe um mosaico de características morfológicas que resultou, aparentemente, de uma miscigenação regular entre Neandertais e Cro‑Magnons, durante a fase crepuscular da existência Neandertal na Europa. Como seria de esperar, esta revelação atordoou a comunidade científica, que prontamente lhe reagiu (com um tropel de criticismo ou afinando panegíricos, conforme o paradigma seguido). De facto, o menino do Lapedo cedo se tornou em mais um manancial de discórdia na questão da origem do homem moderno, a mais velha controvérsia no seio da paleoantropologia.

Dos escombros de uma contenda que se mantinha mais ou menos confinada nos limites estreitos da comunidade científica surge Lapedo: uma criança no vale, uma obra do romancista e jornalista João Aguiar (autor de uma vasta produção ficcionada, na qual se incluem obras como O comedor de pérolas, A hora de Sertório e Inês de Portugal), que pretende divulgar a importante descoberta do Abrigo do Lagar Velho – sem a secura da nomenclatura científica ou a superficialidade do aparelho mediático jornalístico.

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O prólogo do livro de João Aguiar é, conscientemente, ficcionado a partir de circunstâncias factuais, designadamente a morte e enterramento ritual de uma criança. Partindo desta conjuntura, o autor entretece uma “história possível e triste” (p. 21) em redor dos dramáticos eventos que culminaram na morte do menino do Lapedo. Aos qualificativos possível e triste eu acrescentaria ingénua e inverosímil: o relato da perseguição de um tentilhão pelo menino e do seu funesto zénite é infantil – mas sem o brilho dos contos para crianças dos irmãos Grimm ou de Edith Nesbit – e desprovido de qualquer base científica. Mas Aguiar é honesto nas suas intenções. Se o livro, como um todo, não pretende ser um romance (pretende revivescer a memória do que foi a história da descoberta da criança); neste preâmbulo a ficção funciona apenas como estratégia de introdução na narrativa de um facto indisputável: a morte de uma criança de quatro anos, inumada no vale do Lapedo há cerca de vinte e cinco mil anos. O propósito explícito de resgatar a história do menino do Lapedo do círculo restrito da arqueologia e da paleoantropologia, divulgando‑a entre não iniciados, reclama um inevitável aligeiramento dos dados académicos, opacos e indestrinçáveis para o leitor insciente e furtivamente interessado nestas áreas do saber. Desse modo, a insistência de João Aguiar em confessar, de forma clara, a amenização e tempero dos dados científicos com “alguma especulação” (se quisermos ser eufemistas) – relembrando‑nos, talvez inconscientemente, que “a realidade não tem a mínima obrigação de ser interessante” (Borges, 1998:123) – valida a intenção do autor em tornar inteligível esta descoberta científica e também de a tornar mais atraente e sedutora ao olhar inexperiente do leigo.

Não obstante o prelúdio ficcionado, neste opúsculo o romancista cede um amplo espaço ao vero episódio histórico que constituiu a descoberta. O autor reconhece que esta não é uma obra de ficção, não é um conto, é uma descrição dos factos colorida com algumas reflexões do próprio Aguiar, por vezes pseudo‑científicas e heterodoxas. Como escreveu Aquilino Ribeiro n’A casa grande de Romarigães, se “no romance, o escritor escolhe os episódios; na história, são os episódios que se lhe vêm oferecer” (Ribeiro, 1957:9) e o autor de Lapedo: uma criança no vale, embora sucumbindo por vezes à tentação de especular sobre os factos e mesmo de os subverter através da ficção, enredou uma narrativa que constitui uma apresentação válida e prestimosa às circunstâncias científicas que envolveram a descoberta, o estudo e a divulgação da sepultura do Abrigo do Lagar Velho.

Os episódios da história começam, pois, a ser revelados: no primeiro capítulo (“25 Mil Anos Depois”) João Aguiar dá uma ênfase compreensível às circunstâncias especiais – quase míticas – que rodearam a descoberta da sepultura do Vale do Lapedo e que envolveram retroescavadoras, bofetadas em alunos desobedientes,

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protestos de grupos ambientalistas e uma tese de licenciatura. A escavação de emergência, minuciosa e detalhada, imediatamente preparada por João Zilhão e levada a cabo por Cidália Duarte e Ana Cristina Araújo, contrasta com a sucessão de acasos que motivaram o precioso achamento. O autor refere também o inevitável e crescente interesse do público e dos media sobre os acontecimentos que se iam desenrolando no Abrigo do Lagar Velho. Incidentalmente, Aguiar pontua o texto com a narração sucinta de factos jocosos envolvendo os membros da equipa de escavação, por exemplo:

“(…) numa das paragens (…) para reabastecer o carro de combustível, João Zilhão, ao regressar ao automóvel, depois de ter efectuado o pagamento, tão absorto estava na questão que entrou na viatura errada, um automóvel que se encontrava estacionado a certa distância do seu.” (p. 39).

A intercalação episódica destas pequenas histórias, para além de aliviar a densidade dos factos arqueológicos e paleoantropológicos, alimenta no leitor um sentimento de empatia para com os investigadores e, concomitantemente, para com as hipóteses científicas que defendem. O que, parecendo inócuo, não o é totalmente.

No capítulo seguinte (“Casus Belli”), o escritor introduz definitivamente na narrativa a teoria de que a peculiar morfologia esquelética da criança do Lapedo resultou de trocas génicas intensivas entre Neandertais e homens anatomicamente modernos (o primeiro capítulo termina com uma breve alusão a esta hipótese, formulada inicialmente por Erik Trinkaus). Nesta fracção do texto, Aguiar pormenoriza a teoria da hibridização, define e expõe os factos que a fundamentam e estabelece, também, uma área narrativa para o contraditório. Todavia, a posição do autor não é a do observador neutral. João Aguiar escolhe campo: do lado dos que defendem a origem mestiça do menino (p. 59). Mas, diga‑se justamente, a sua inclinação não se dissimula na clandestinidade e o escritor assume de forma inequívoca o seu proselitismo. Como exemplo, no capítulo 6 (“Pensando Sobre o Assunto”), Aguiar escreve:

“Embora parte da comunidade científica ainda não aceite esta hipótese (da miscigenação), penso que, tendo em consideração todos os argumentos contra e a favor, é legítimo tomá‑la como um dado adquirido (…).” (p. 174) .

Nos capítulos “Ritual, Et Caetera” e “O Discurso dos Sedimentos” as temáticas abordadas são bem mais consensuais. Aguiar foca a sua escrita no ritual de enterramento da criança do Lapedo, considerando‑o no conjunto de enterramentos rituais no Paleolítico Superior; e nas condições climáticas, geológicas e ecológicas

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do Vale do Lapedo há vinte e cinco mil anos. Nos capítulos subsequentes (“A Leitura Simbólica” e “Pensando sobre o Assunto”), o escritor conduz novamente a narrativa para o campo da especulação consciente. O capítulo 6 (“Pensando sobre o Assunto”), sobretudo, inclui uma série de imprecisões científicas e algumas reflexões algo perturbantes. Refira‑se, nomeadamente, o encadeamento da presumível mestiçagem da criança do Lapedo com a inclinação nacional de ir “para a cama com toda a gente” (p. 175) e de criar comunidades mestiças em diversos pontos do antigo império colonial português. Este modelo anacrónico de luso‑tropicalismo, adoptado pela propaganda do Estado Novo, é inaceitável do ponto de vista da antropologia coetânea.

Lapedo: uma criança no vale insere‑se numa longa tradição de obras de vulgarização científica. Escrito por um romancista, fecunda‑se das qualidades e lacunas que decorrem dessa condição de surgir da pena de alguém que não provém dos domínios da arqueologia ou da paleoantropologia. A divulgação científica é parte elementar do processo de conhecimento do mundo e, desse modo, o livro de João Aguiar constitui um importante e prático roteiro (apesar de, por vezes, pecar pela propensão especulativa do autor) de introdução a uma das mais importantes descobertas arqueológicas alguma vez feitas em Portugal.

Outras referências:Borges, J.L. 1998. Ficções. Lisboa, Teorema.Ribeiro, A. 1957. A casa grande de Romarigães. Lisboa, Círculo de Leitores.

Francisco CurateDepartamento de Antropologia

Universidade de Coimbra

3000‑056 Coimbra, Portugal

[email protected]

Appadurai, A. 2004. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa, Teorema. 304 pp. ISBN 972‑695‑612‑9. € 18,90

Consciente da necessidade de renovar ferramentas conceptuais por parte da Antropologia contemporânea, sob pena desta se tornar obsoleta face ao ritmo frenético das transformações sociais em grande escala que se operam nos dias de hoje, Arjun Appadurai reflecte, nesta obra, sobre a dimensão actual de alguns conceitos fulcrais para a ciência antropológica, nomeadamente o conceito “cultura”.

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Entendida como uma espécie de substância humana partilhada, a cultura deslocou‑se, ao longo do século XX, das ideias de E. B. Tylor sobre costume para as ideias de Clifford Geertz sobre significado. A grande variabilidade deste conceito faz com que alguns antropólogos o desprezem enquanto termo técnico, ao passo que outros encontram virtude nessa diversidade.

A grande dificuldade em definir cultura no mundo de hoje prende‑se com a continuada desterritorialização das identidades culturais. O mundo actual caracteriza‑se pelo enorme fluxo de coisas e pessoas, o que impede que as culturas continuem a ser confinadas a um espaço físico e geográfico delimitado. As velhas concepções de cultura relacionadas com parentesco, sentido comunitário, modo de vida e modo de produção e hábito social perdem fulgor, mostrando‑se inadequadas para entender os fenómenos de localidade num mundo globalizado e desterritorializado. Appadurai, seguindo uma linha de pensamento actual, assume que os Estados‑nação estão em crise, e que as identidades culturais, mesmo as de carácter nacional, estão cada vez menos ligadas a um território, devido sobretudo às massas de migrantes e à mediação electrónica.

É de louvar a abertura de Appadurai ao conceito de globalização, numa altura em que a Antropologia ainda olha relutantemente e com desdém para o assumido fenómeno. O autor deixa claro que globalização da cultura não é sinónimo de homogeneização, embora requeira o uso de uma série de instrumentos de homogeneização, como armamentos, técnicas publicitárias, hegemonias linguísticas ou maneiras de vestir. Toda a obra é marcada por uma oposição entre globalidade e localidade, ou pela negação da mesma, já que, na perspectiva do autor, estas cada vez menos se opõem, inserindo‑se, ao contrário, na mesma rede de fluxos globais, interagindo reciprocamente. A sua volição é estruturar o entendimento das relações que se estabelecem entre o global, o nacional e o local. Estas relações são complexas, e para que a Antropologia consiga obter melhores resultados no entendimento das mesmas, é fundamental que reconheça a sua natureza transnacional e desterritorializada e que entenda a imaginação como uma das principais forças sociais do mundo de hoje.

A construção de identidades locais num mundo global e desterritorializado passa pela criação de imagens ou paisagens culturais, que são assumidas por determinados grupos, imagens essas que são veiculadas pelos meios tecnológicos de comunicação de massas. Partindo do exemplo dos migrantes, Appadurai – ele próprio migrado nos Estados Unidos, tendo nascido em Bombaim – defende que as imagens difundidas globalmente, focando aspectos locais, fornecem, àqueles que vivem longe da sua terra de origem, uma oportunidade de identificação com a “sua”

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cultura, mesmo rodeados por um mundo estranho e distinto, onde a vivência local da sua cultura se torna impraticável. Não há grande novidade neste processo. Qualquer sociedade organizada culturalmente é dotada de construções imaginárias, expressas em canções, fantasias, mitos ou contos, que servem para criar uma identidade cultural. A característica distintiva da sociedade globalizada contemporânea é a amplitude transnacional e transcultural das imagens sociais disponíveis.

“Até há pouco tempo, fosse qual fosse o poder da mudança social, podia‑se afirmar que a vida social sofria em geral de inércia, que as tradições ofereciam um conjunto relativamente finito de vidas possíveis e que a fantasia e a imaginação eram práticas residuais(…). Nas duas últimas décadas, à medida que a desterritorialização das pessoas, imagens e ideias foi ganhando nova força, o fiel da balança foi‑se deslocando imperceptivelmente. Mais pessoas em todo o mundo vêem as suas vidas pelo prisma das vidas possíveis oferecidas pelos meios de comunicação de massas sob todas as suas formas. Ou seja, a fantasia é agora uma prática social; entra, de infinitos modos, no fabrico de vidas sociais para muitas pessoas em muitas sociedades.” (p. 78).

Todo este mundo imaginário é hoje mediado electronicamente, através das tecnologias do cinema, da televisão, do vídeo e também, mais recentemente, da Internet. No entanto, estes mundos imaginários e virtuais (porque existem “apenas” electronicamente), não são irreais. Eles actuam efectivamente na construção de identidades culturais, por processos semelhantes aos que, segundo Benedict Anderson, levaram do capitalismo de imprensa às identidades nacionais. Sublinho o alerta de Appadurai para que os etnógrafos e os antropólogos não se contentem com a densidade do local, que fornece uma imagem elementar e contingente de uma cultura, e, como tal, mais real que a vida tomada numa perspectiva ampla. O que é real nas vidas individuais é real de muitas maneiras, e esta realidade abrange as relações complexas que se estabelecem entre o global, o nacional e o local, nas quais os meios de comunicação de massas assumem um papel substancial.

Para conseguir uma aproximação antropológica a esta complexidade de relações, o autor propõe cinco novas ferramentas conceptuais, que correspondem a cinco dimensões de fluxos culturais globais: etnopaisagens; mediapaisagens; tecnopaisagens; financiopaisagens e ideopaisagens. O sufixo “paisagem” associado a cada um destes conceitos transmite a ideia de fluidez das relações sociais do mundo de hoje. Eles não obedecem a realidades fixas e independentes. Pelo contrário, fazem todos parte de um sistema interactivo onde todas estas paisagens e imagens se encontram em contacto e em permanente mutação. É, por isso, mais útil à

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Antropologia actual utilizar o conceito etnopaisagem no lugar de identidade étnica. A principal dificuldade para os estudos culturais, num mundo movido por estes fluxos, prende‑se com a crescente disjuntura que existe entre eles. As relações que se estabelecem entre as diversas paisagens são complexas e obrigam os investigadores sociais a debruçarem‑se profundamente sobre as relações históricas e globais que actuam na construção da localidade.

Por um lado, verifica‑se um esforço por parte dos Estados‑nação para produzir localidade, tendo em vista a promoção de uma identidade nacional. Embora pareça contraditória esta combinação de localidade e nacionalidade, isto insere‑se numa vasta rede de técnicas formais e informais que servem para nacionalizar o espaço físico considerado sob a sua autoridade soberana.

“O Estado‑nação assenta a sua legitimidade na intensidade da sua presença significativa num corpo contínuo de território delimitado. Opera policiando as fronteiras, produzindo povo (…), construindo cidadãos, definindo capitais, monumentos, cidades, águas e solos e construindo os seus locais de memória e comemoração, como cemitérios e cenotáfios, mausoléus e museus. O Estado‑nação leva a todo o seu território o projecto bizarramente contraditório de criar um espaço liso, contíguo e homogéneo de nacionalidade e simultaneamente um conjunto de lugares e espaços (prisões, quartéis, aeroportos, estações de rádio, repartições públicas, parques, paradas, vias processionais) calculados para criar distinções e divisões internas necessárias à cerimónia, vigilância, disciplina e mobilização do Estado.” (p. 251).

Através da definição e delimitação dos lugares e dos bairros, os Estados‑nação procuram exercer um domínio sobre o seu território total, conjugando as pequenas diferenças internas com uma identidade una e contínua, que é circunscrita pelas fronteiras nacionais.

Paralelamente, desenvolvem‑se tendências transnacionais, que desafiam a soberania dos Estados‑nação na promulgação das suas identidades nacionais. Estas tendências resultam de um mundo em diáspora, e são mediadas pela tecnologia da comunicação social. Os locais turísticos fornecem exemplos de como a produção e reprodução da localidade, em bairros inseridos num território pertencente a um Estado‑nação, resultam no que podemos chamar de translocalidades. Por outro lado, florescem os bairros virtuais, através da criação e difusão de localidades, quer pelo cinema e vídeo, quer pelas gravações áudio ou Internet, onde grupos de indivíduos recriam as suas culturas locais, muitas vezes construídas à distância e em contextos sociais distintos. Estes bairros virtuais assumem uma importância

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crescente no mundo desterritorializado de hoje e a sua abrangência identitária é semelhante ou até superior à dos bairros espaciais.

Não é fácil dizer de que forma actuam e vão actuar no futuro estas construções imaginárias e virtuais sobre a produção de localidade. As disjunturas e antagonismos do mundo de hoje criam uma teia complexa de relações sociais que os etnógrafos e os antropólogos têm de conseguir destrinçar. A solução passará sempre por um aprofundado estudo histórico e contextual sobre a formação das localidades. Ao debruçar‑se sobre o fenómeno do críquete na Índia, Appadurai demonstra como fluxos disjuntivos se cruzam historicamente, na afirmação deste como o desporto nacional da Índia. Interesses antagónicos relacionados com a necessidade de afirmação dos valores morais da Inglaterra vitoriana, os proveitos políticos do Império, a separação entre castas para os indianos, movimentos nacionalistas e independentistas, êxito individual dos jogadores e lucros financeiros de grandes empresas comerciais, tudo isto actua e actuou de forma disjuntiva para que o críquete tenha hoje o impacto notável que tem.

A multiplicidade de fluxos disjuntivos e a complexidade das relações entre o local, o nacional e o global constituem hoje uma dificuldade nova para os etnógrafos. No entanto, estamos ainda no princípio. A Antropologia terá de se adaptar à nova ordem social desterritorializada e globalizada. É de louvar o esforço de Appadurai em fornecer novas ferramentas conceptuais e propor um novo tipo de abordagem etnográfica, menos focada na história e na substância da localidade e mais voltada para os processos de formação da localidade. Se a Antropologia quiser colocar‑se na vanguarda das ciências sociais, terá de pôr de lado alguns preconceitos metodológicos e mostrar uma maior abertura a alguns fenómenos do mundo moderno, tal como a dependência das estruturas sociais em relação aos fluxos globais, que por sua vez dependem de meios tecnológicos e políticas sociais de grande escala. A localidade, cada vez mais, tem de ser percebida nas suas relações com a globalidade, que deve, tal como o Appadurai sugere, no subtítulo do seu livro, ser entendida sem peias.

José ArrudaDepartamento de Antropologia

Universidade de Coimbra

3000‑056 Coimbra, Portugal

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Ribeiro, J. S. 2004. Antropologia visual: da minúcia do olhar ao olhar distanciado. Porto, Edições Afrontamento. 202pp. (Biblioteca das Ciências Sociais/ Antropo‑logia 10). ISBN 972‑36‑0719‑0. € 10

“As imagens constituem excelentes instrumentos de trabalho e de investigação em ciências sociais, na compreensão das actividades humanas e dos processos de interacção social e com a natureza, na educação e na formação” (p. 183). É a partir da defesa desta ideia que José da Silva Ribeiro desenvolve o texto que aqui analisamos.

De acordo com o autor, o título deste trabalho – Antropologia visual – remete para questões distintas: o aspecto visual não pretende delimitar o campo da pesquisa, uma vez que não se restringe à fotografia, ao cinema e ao audiovisual. Pelo contrário, o visual relaciona‑se “com as diferentes formas possíveis do «ver». Por fazer parte da cultura analisada antropologicamente, o visual refere‑se às muitas linguagens que ele veicula…” e “aos diferentes géneros que podem utilizar as mesmas linguagens ou inventar outras novas…” (p. 12).

O subtítulo do trabalho – Da minúcia do olhar ao olhar distanciado – dirige‑se, por sua vez, não só para uma descrição etnográfica profunda como, também, para um olhar distanciado e criativo e para todos os olhares que se cruzam e entrecruzam no processo de pesquisa.

A versão original do texto que José da Silva Ribeiro nos apresenta foi escrita no âmbito de um programa de mestrado na Universidade Aberta. Segundo o autor, a revisão desse texto impôs‑se devido a dois factores principais:

1. O debate que o texto original provocou e, também, a evolução que a antropologia visual entretanto conheceu, tanto no contexto nacional como internacional;

2. A (re)contextualização do texto original a partir de dois pontos de vista: (1) situar historicamente três momentos cruciais no desenvolvimento da antropologia e das tecnologias da imagem e do som e (2) apresentar o contexto de realização deste trabalho.

Esta obra enfatiza três momentos essenciais na história do cinema e da antropologia: o primeiro que incide na segunda metade do século XIX e os segundo e terceiro, respectivamente, nas décadas de 1920 e de 1960.

O primeiro momento refere‑se ao período em que a fotografia e o cinema surgem não só como invenções tecnológicas importantes, mas também contribuem para as ciências, para as artes e para a criação de novas relações entre elas. Este

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período é marcado pela necessidade de documentar, ou seja, “de criar algo portador de informação, que traz em si a inscrição, o registo de um acontecimento, de uma realidade (ou realidades) observável e verificável” (p. 8).

No segundo momento, referente à década de 1920, emergem Robert Flaherty, Bronislaw Malinowski e Dziga Vertov ensaiando metodologias semelhantes de abordagem da realidade social. Robert Flaherty, com o filme Nanook of the North, através da observação, da imersão profunda na sociedade que está a ser observada, da permanência longa no terreno e do contributo dos observados na constituição do filme, rompe com o cinema de Hollywood e opõe‑se‑lhe.

Bronislaw Malinowski, por sua vez, desviou‑se das práticas até então utilizadas convencionalmente pela antropologia ao empreender a deslocalização do antropólogo. O facto de ter contrariado a ideia vigente do antropólogo de gabinete tornou‑o indubitavelmente um ícone da história e da construção da antropologia. A elaboração do texto etnográfico far‑se‑ia para além dos artefactos ou das entrevistas, com o trabalho de campo a assumir‑se como elemento fundador de todo o processo.

Por fim, Dziga Vertov notabilizou‑se pela defesa do cinema olhar, captando um mundo na sua essência, sem máscara, em oposição ao cinema de ficção. É o grande leque de possibilidades técnicas que motiva Vertov a iniciar esta viagem pelo cinema verdade, registando as várias facetas do real, adicionando e subtraindo elementos, tendo sempre em mente a superioridade do olhar mecânico em relação ao olhar humano. Esta defesa do olhar mecânico baseia‑se nas possibilidades de organização das percepções que ele oferece, “esquematizando […] os processos inacessíveis ao olhar humano” (Vertov cit. Granja, 1981: 45).

Dir‑se‑á, assim, que este período, marcado indelevelmente por estas figuras incontornáveis, tem também uma forte componente associada à crescente relevância adquirida pela linguagem cinematográfica e pelo discurso da antropologia.

Por último, no terceiro período, que ocorre desde o início da década de 1960, surge Jean Rouch, personalidade fundamental na história do cinema e da antropologia, cuja influência se sente até aos dias de hoje. Não se confinando às práticas cinematográficas correntes, usou‑as como um registo científico fundamental não descurando a sua vertente poética.

É a sua ideia de relação dinâmica entre observador e observado que vai alterar radicalmente o tipo de documentário feito até ao momento. A noção de câmara participante, dotada de mobilidade na mão do operador, possibilita um contacto mais autêntico com o real observado, permitindo “penetrar na realidade mais do que deixá‑la desenrolar‑se diante do observador” (p. 90).

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José da Silva Ribeiro interroga‑se, agora, sobre a existência de um quarto momento nesta história de paralelismos entre a antropologia e o cinema. Um momento provocado pela emergência dos novos media digitais que, numa sociedade do conhecimento, diluindo as fronteiras e incorporando todos os media anteriores, poderão trazer novos desafios a esta história.

O uso das imagens na antropologia acompanha as inovações tecnológicas, que vão permitindo ou limitando o seu avanço. Daí que a história, por um lado, do uso das imagens na antropologia e, por outro, do desenvolvimento tecnológico, se confundam.

A utilização do filme etnográfico e das práticas audiovisuais é cada vez mais aceite nos meios científico e universitário mas não adquiriu ainda, segundo o autor, o estatuto que a escrita detém. O reconhecimento destes métodos tem sido progressivo mas lento.

Em jeito de conclusão, José da Silva Ribeiro refere algumas das mudanças que têm vindo a ocorrer neste contexto: (1) criação de associações de antropologia visual que visam, além de produzir, adquirir e divulgar o filme etnográfico, apoiar a formação e a comunicação entre antropólogos; (2) realização de seminários e fomentação de redes de contacto entre investigadores; (3) organização de mostras, festivais e ciclos de cinema; (4) criação de laboratórios de pesquisa e produção; (5) generalização dos ateliers pessoais e das microempresas de produção e (6) apresentação de alguns resultados em forma de trabalhos académicos.

Toda a parte conclusiva nesta obra é pautada por pareceres do autor a vários níveis, principalmente, no que respeita à necessidade de organizar programas de formação, de nível inicial e avançado, sobre a utilização da imagem na Antropologia Visual. As suas sugestões vão, ainda, no sentido da necessidade de formar professores neste domínio do conhecimento para que as práticas educacionais se diversifiquem e tornem mais criativas.

A nosso ver, o livro merece alguns reparos tendo em conta o que julgamos ser os seus limites. O primeiro que apontamos prende‑se com uma exacerbada atenção nos aspectos técnico‑práticos que rodeiam a utilização dos meios humanos e tecnológicos utilizados na produção de narrativas visuais. Cremos, assim, que apesar de algumas referências incontornáveis ao longo do livro, existem descrições demasiado longas e esquematizadas, que tendem a minimizar um pouco daquilo que é o trabalho de campo do antropólogo, nas dimensões associadas à sua experiência no terreno e consequentes respostas, por vezes irreflectidas, a estímulos exteriores.

No entanto, a grande valência desta obra situa‑se fundamentalmente no aspecto de que é simultaneamente um grande e fiel repositório não só da história

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que sustenta e compõe a antropologia visual tal como nos é apresentada hoje, bem como de um olhar, essoutro direccionado em frente, para as novas formas, conceitos e apropriações disponíveis numa panóplia de transformações tecnológicas que permitem, em última instância, a captação de novos públicos para a antropologia. A sua vertente inovadora, olhando para o passado em busca de referências, torna este livro um óptimo e claro manifesto reivindicativo dirigido ao redireccionamento e valorização das práticas antropológicas utilizando recursos audiovisuais.

Outras referências:Granja, V. 1981. Dziga Vertov. Lisboa, Livros Horizonte.

Carlos Barradas Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087

3001‑�01 Coimbra

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Carina Sousa GomesCentro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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Silva, M. O. 2005. Sete teses sobre o aborto. Lisboa, Caminho. 134 pp. ISBN 972‑21‑1746‑7. € 7,35

Este livro foi publicado pouco antes do segundo referendo sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em Portugal, cujo resultado foi uma vitória do Sim à despenalização com 59,25 por cento dos votos enquanto que o Não à despenalização perdeu com 40,75 por cento dos votos. A abstenção cifrou‑se num total de 56,40 por cento do total dos/as votantes inscritos/as. Num contexto no qual não se conseguia descortinar a intenção de voto mais generalista dos cidadãos portugueses, Miguel Oliveira da Silva, um obstetra‑ginecologista pertencente ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa nas disciplinas de Ética Médica e Filosofia do Conhecimento, propôs‑nos este livro como algo que poderia contribuir para um esclarecimento pessoal sobre uma matéria de moldes tão complexos.

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É a ideia central e inequivocamente implícita ao longo de toda esta obra de Miguel Oliveira da Silva (MOS): demonstrar como se articulam as várias dimensões subjacentes ao debate do aborto, desde a vertente legal à moral passando pela filosófica e biológica, rentabilizando o mesmo discurso para o aplicar no caso português, hoje mais actual que nunca (manifestando abertamente uma atitude pró‑escolha baseada nos vários tipos de argumentos, desde médicos a legais). Cedo se percebe a intenção de evidenciar que não faz qualquer sentido a actual lei do aborto em Portugal, desconstruindo essa mesma lei bem como a forma pela qual cada uma das partes (pró‑escolha e pró‑vida) defende a sua posição. Há claramente um distanciamento e crítica daquilo que o autor considera um argumentário falacioso que muitas vezes se constitui como o maior ponto de debate sobre o aborto. Diz‑nos isto que, em última instância, o desígnio principal deste livro é a sua função informativa. Sete teses sobre o aborto assume‑se como um livro actual, direccionado, sim, mas também clarificador e reflexivo sobre muitas questões que por norma (e por vontades várias) passam ao lado daquilo que é o debate real.

A dificuldade inerente à escrita de um livro que versa sobre as questões relativas ao aborto é desde logo um ponto acrescido de impacto em todo e qualquer leitor, dado que esta é uma problemática à qual ninguém reage indiferentemente. Cria‑se, através do embate psicológico, uma diversidade de opiniões e posturas que são transversais a todos os géneros, classes sociais, políticas ou culturais. Pessoas que inclusivamente perfilhem das mesmas opiniões em todos os outros assuntos poderão estar profundamente divididas nesta celeuma que perpassa todas as sociedades e, em particular, devido ao próprio momento no qual este livro é escrito, a sociedade portuguesa. Proceder‑se‑á, nesta recensão, a um sumário de cada uma das teses referidas pelo autor dado que, na minha opinião, todas elas possuem alguma carga que lhes confere um grau de intervenção igualmente repartido neste debate. A ordem seguida não será necessariamente aquela do livro uma vez que não creio que essa seja obrigatoriamente hierárquica. Enquanto que nalguns casos permanecerá, noutros ela será desrespeitada em virtude do próprio texto.

Os extremos do debate sobre o aborto situam‑se entre a opinião de que este deverá ser uma opção de exclusiva responsabilidade da mulher, respeitando‑a e dando espaço à sua liberdade e autonomia totais, até à total irredutibilidade daqueles que crêem que o embrião é já uma vida em germinação cujo curso não se pode interromper e portanto, desde logo, não se põe em questão que se possa interromper uma gravidez por livre‑arbítrio sem uma penalização por parte do Estado. Estas questões estão representadas com mais pormenor na quarta tese, de título “A autonomia da grávida e o valor absoluto da vida humana”. Desse seccionamento

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decorrem as opiniões e muitas vezes as crenças profundamente divididas. O autor é, aliás, bastante crítico em relação a ambas as posições, posicionando‑se, sim, num meio‑termo ideológico. Aponta a existência de fragilidades, contradições, dificuldades, incoerências, e zonas de incerteza que povoam a panóplia de discursos existentes, sendo particularmente crítico tanto com o discurso feminista do “esta barriga é minha” ou “aqui mando eu”, como com o discurso daqueles que acreditam que se devem condenar e punir as mulheres que fazem abortos ilegalmente. A sua própria postura, no entanto, é a de que se deve despenalizar o aborto até às dez semanas tanto por razões filosóficas como por respeito pela liberdade da mulher. Nesta diversidade de discursos o autor contextualizou convenientemente, através de pequenas notas introdutórias, alguns factores que devem ser tidos em conta quando tratamos deste assunto, tais como a laicidade do Estado, algo controverso dada a nítida influência da Igreja Católica no nosso país.

Na primeira tese “Despenalizar, legalizar, liberalizar”, o autor estabelece as diferenças entre despenalizar, legalizar e liberalizar, que quase nunca são entendidas na sua totalidade pelo grande público. Aponta também os vários estados embrionários e utiliza‑os para reflectir sobre o conceito de início de vida, algo que na sua opinião é desprovido de sentido já que não há um instante t que possa indicar é ali onde se dá o início de vida humana. Temos então que a tese do autor no que a estes aspectos concerne é a de que não compete à ciência decidir quando começa uma nova pessoa humana, sendo essa uma decisão filosófica e/ou religiosa que deverá integrar em cada tempo e época específicos os contributos das ciências básicas e clínicas. Apesar dessa abordagem abrangente, a Igreja é também alvo de uma observação dada a sua rigidez na rejeição da contracepção e absoluta irredutibilidade na defesa da santidade da vida humana desde o início, nunca pactuando com qualquer tipo de destruição deliberada da mesma.

No entanto, e logo no começo, MOS deixa bem claro que não deseja a banalização do aborto nem concorda com este como método contraceptivo. Nem é essa, ao contrário do que alegam alguns defensores do movimento pró‑vida, a realidade a que se assistirá no cenário da aprovação de uma alteração à lei. Assim, despenalização do aborto não significa a sua legalização ou liberalização absoluta sem qualquer tipo de controlo ou regulação, nem o médico será por esta via um simples receptáculo e agente do desígnio da mulher. O aborto é efectivamente encarado como um mal que se deverá evitar ao máximo, através das práticas de planeamento familiar e de uma educação sexual eficaz para que não se chegue a esta situação que é, muitas vezes, traumática para a mulher que o pratica e a ele se submete, frequentemente em condições de saúde profundamente precárias. Esta

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questão é tratada na sétima tese, “Evitar o aborto, educar para a sexualidade”, em que o autor defende a educação sexual como uma componente fundamental no sentido de evitar ao máximo o aborto. A necessidade de uma educação para a sexualidade deve ser transversal a todo este debate, uma vez que no caso de esta não existir prevalecerá o aborto clandestino, as gravidezes na adolescência (um fenómeno dramático em Portugal) e os problemas de saúde adjacentes. Contudo, há que não reduzir a sexualidade a um fenómeno puramente mecânico, um mero mecanismo fisiológico. Há que ser acompanhada de uma educação para o afecto, ultrapassando a vertente exclusivamente preventiva, explicando que o sexo é também uma troca de conhecimento e partilha com o outro. A reflexão sobre a despenalização do aborto não pode assim ignorar a questão da construção e vivência da sexualidade.

Evidencia‑se na mesma linha de reflexão crítica o tipo de linguagem utilizado (propositadamente e já com impacto previsto) pelos defensores do grupo anti‑escolha (com palavras como interromper, abortar, destruir, sacrificar, matar, assassinar, infanticídio, homicídio e, depois, bebé ou criança). Sumariamente, palavras que apelam ao sentimento, sensacionalismo, autopunição e até arrependimento e que tornam, por si só, impossível a construção de pontes de diálogo ou entendimento entre ambas as partes. Crê, então, que a lei não deve ser referência de valores morais, mas sim deixar uma certa margem de manobra (embora não demasiada) que permita diferentes pontos de vista sobre a ética relativa à vida humana, ao valor de um feto, mas que nunca sejam enviadas mulheres para a cadeia por terem feito um aborto. Na conformidade do argumento, MOS disserta sobre a actual lei em Portugal, e como esta não cumpre a sua função enquanto lei, apresentando uma “punição virtual”, já que não existe uma condenação efectiva.

Na segunda tese, “A utilidade de uma nova legislação. Os médicos portugueses perante a interrupção de gravidez”, toma‑se em conta qual será a postura dos médicos portugueses perante a interrupção de gravidez e a utilidade de uma nova legislação. Entre outros factores, é apontado pelo autor um profundo desconhecimento sobre a legislação em vigor em Portugal não só em relação ao nível social bem como à própria classe médica, ela também, em muitos casos, desconhecedora da realidade legislativa nacional. O autor deixa‑nos com a dúvida de saber em que medida é que a interpretação e práticas médicas em Portugal poderiam mudar com uma eventual despenalização da IVG. A ideia que prevalece é a de que numa eventual mudança de lei, continuaremos a ter uma classe médica fortemente objectora de consciência. Esta é uma questão que não é (mais uma vez) consensual. Aqui joga‑se mais que a mera consciência ou ética de um médico. É também uma questão que está intimamente relacionada com o Código Deontológico dos médicos, sendo este

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ainda mais restritivo que a actual lei em Portugal. No entanto, há quem defenda que uma nova lei pouco ou nada alterará as coisas na prática.

É precisamente a este propósito que nos deparamos com a terceira tese deste livro, “Objecção de consciência: natureza e limites”. Os problemas que poderão ser colocados no caso de um futuro quadro com uma lei mais abrangente, antecipando o panorama da existência de blocos em peso de certos hospitais alegando objecção de consciência e impedindo assim a realização de IVG’s, são uma preocupação séria do autor. O receio da falta de um controlo rigoroso do Estado nesta matéria leva‑o a estipular um conjunto de iniciativas no sentido de impossibilitar o surgimento desses mesmos problemas. Assim, o Estado tem o dever de adoptar as medidas e procedimentos necessários ao exercício sem ressalvas de uma hipotética nova lei, ao mesmo tempo que, claro, assegura o direito de objecção de consciência dos médicos e restantes profissionais de saúde sem interferência indirecta no cumprimento dos prazos legais estabelecidos. Inclusivamente, os profissionais de saúde que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) poderão alegar objecção de consciência nestas intervenções, mas não poderão (ao contrário do que acontece actualmente) dificultar o acesso e /ou informação às mulheres que a elas se pretendam sujeitar.

De qualquer modo, no cerne de todo o debate, está, por um lado, a autonomia da mulher grávida e, por outro, o valor absoluto da vida humana. E a questão é esta, uma grávida não tem o exercício pleno e total da sua autonomia, já que de si depende uma vida nascente, um ser em potência mas também não podem ser, por outro lado, atribuídos todos os direitos e valorativos ao próprio feto que não é para todos os efeitos ainda uma pessoa. Daí que defenda:

“a reflexão sobre o aborto não se pode reduzir a uma fácil e absoluta dicotomia entre a cega defesa da vida intra‑uterina e a total liberdade da grávida. No fundo, existe aquilo que se chama constitucionalmente duplicidade na unidade: são dois seres distintos, mas um deles suporta o outro, aquele que é mais frágil e vulnerável. Ou seja, a ideia é de que até às dez semanas, prevaleça a “unidade”, em termos de bem jurídico, e a partir deste prazo, a “dualidade” predomina e só em casos graves e determinados deverá o interesse do nascituro ser sacrificado. Existe então uma escala de respeito e protecção perante o novo ser humano (pp. 86‑87).”

Aliás, uma das questões que tem sido fulcral na discussão sobre a despenalização do aborto é precisamente onde se situa o início da vida. Claramente que uma discussão ou temática destas não poderia nunca ser consensual, o que se traduz em mais um dos elementos a contribuir para a ineficácia de um encontro de ideias. Aqui

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MOS fala sobre as excepções previstas na lei portuguesa, com várias abordagens interessantes e bem fundamentadas, tanto no caso, por exemplo, de trissomia 21 bem como nos casos de violação. É também, uma análise profunda a esses mesmos aspectos contemplados na actual legislação que poderá ser muito útil na avaliação de uma nova lei.

O próprio aborto e o modo como é efectuado tem alterado significativamente a perspectiva de como este é encarado. Constitui a quinta tese, “Aborto cirúrgico, aborto químico”. Um dos factores apontados pelos elementos do Não é precisamente o caso de este dar origem a, devido ao facto de eventualmente se vir a realizar no SNS, imensas listas de espera, ocupação de camas nos hospitais, sobrelotação dos recursos logísticos e humanos, com todos os procedimentos associados, como anestesias, transfusões e afins. Estes argumentos são prontamente rebatidos pelo próprio autor, que aponta o aborto químico como um método que não só é mais seguro (já que não implica nenhuma intervenção cirúrgica), mas também gera aquilo a que chamou uma economia de saúde (economia de gestão e recursos) (pp. 103‑104), com menor tempo de internamento, menos complicações, menor risco de transfusões sanguíneas e recurso a fármacos mais baratos. Competirá assim ao Estado assegurar que estas condições são cumpridas, principalmente em relação aos fármacos necessários. Em Portugal, o número de abortos por via química tem sido cada vez maior em contraposição ao cirúrgico, o que tem causado uma diminuição efectiva e visível de complicações, como idas às urgências, infecções e hemorragias. Ou seja, o aborto por vias físicas, como as agulhas de tricô ou os pés de salsa e congéneres está progressivamente a diminuir, embora na opinião do autor ainda exista, principalmente em meios mais desfavorecidos. Nestes casos, as mulheres são geralmente desrespeitadas nos seus direitos mais fundamentais, como a privacidade e intimidade que um acto destes implica.

A sexta tese, “E depois do referendo? A Assembleia da República, o SNS, as clínicas privadas”, será aquela que nos deixa as questões fundamentais, entre as quais como será a realidade após o referendo em Portugal e também a articulação entre o Governo, a Assembleia da República e as clínicas privadas. Critica, particularmente nesta tese, assim como ao longo de todo o livro, o que não tem sido feito em termos de planeamento familiar e educação sexual, embora as leis estejam criadas. No entanto, a falta de aplicação das mesmas tem sido gritante. Surge como uma inevitabilidade o tratamento do tema da confidencialidade da mulher no SNS, matéria na qual existirá sempre alguma reserva, dado que é mais difícil a manutenção de

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um secretismo que será talvez mais viável numa clínica privada. O autor deixa, no final desta tese, duas questões bem prementes:

Haverá não objectores suficientes para trabalhar nas clínicas privadas, ou seja, para conseguir escoar todos os pedidos de mulheres que queiram fazer IVG’s, dado que poderão ser 20.000 por ano, conforme se costuma referir?

Como reagirá o Governo nos casos em que um profissional de saúde alegue objecção de consciência no SNS e posteriormente irá trabalhar para as clínicas privadas por motivos puramente económicos?

O livro de MOS constitui‑se então, na minha opinião, como um óptimo manual para reflectir sobre as várias dimensões, passadas, presentes e futuras da temática do aborto, particularmente do aceso debate e celeuma que tem gerado no contexto português. Situando‑se numa perspectiva de pró‑escolha, rejeita argumentos vãos e desprovidos de racionalidade. A diversidade de fontes a que recorre, bem como as análises não só a conteúdos médicos, mas também legais, sociais, económicos, éticos e religiosos, constituem indubitavelmente uma mais‑valia nesta discussão. O tipo de linguagem também é muito acessível, o que torna o livro de fácil leitura, reflexão e dissecação. Dada a natureza controversa do tema, será natural que esta perspectiva poderá não ser de total agrado para uma franja da população. No entanto, dado o seu carácter informativo, essa valência capitaliza a apreciação final desta obra como muito positiva.

Carlos Barradas Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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3001‑�01 Coimbra

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Serra, J. A. 2001. Neo‑humanismo: bases na natureza humana da economia, edu‑cação, saúde e sociologia. Coimbra, Departamento de Antropologia, Universi‑dade de Coimbra. 381 p. ISBN 972‑9006‑40‑7. €15,00.

Mais que “o culminar de toda uma vida de profunda reflexão, com base na análise das particulares condições do País em que nasceu, caldeada com a sua própria vivência noutros países que teve oportunidade de visitar” (p. 5) o “Neo‑humanismo” de J. A. Serra é, sobretudo, uma interrogação sobre o nosso futuro, nosso enquanto país e nosso enquanto espécie.

O traço mais enriquecedor deste texto é o esforço de análise do cientista, apoiando‑se nos seus vastos conhecimentos, a tentar abrir as portas do futuro, não

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no campo da pura ficção científica, mas tendo em conta os avanços da ciência em particular os progressos das ciências biológicas de que José Antunes Serra foi um ilustre representante a nível nacional e internacional. A essa legítima aspiração do cientista acresce a experiência do cidadão que, após décadas de liberdade vigiada, vê o seu país explodir numa revolução em que o bem incomparável da livre expressão se vai enlameando com os mais que muitos atropelos a direitos fundamentais, numa “viragem política em que foram irresponsavelmente descolonizados territórios com grandes perdas em vidas e bens” (p. 27).

Esta passagem da análise do patamar nacional (vivências pós‑25 de Abril), para as considerações mais profundas da evolução das ciências da vida e as perspectivas de aproveitamento para transformar a vida humana, evidenciam‑se melhor se destacarmos alguns aspectos particulares dos muitos temas abordados nestas páginas. Limitar‑nos‑emos a aflorar as seguintes questões:

1. “A trágica descolonização”2. O estado e a nação face a “fósseis ideológicos”3. Os desafios do futuro face à “balbúrdia nas escolas” 4. O “mandamento cultural”5. A explosão demográfica

1. “A trágica descolonização”Reconhecendo que o chamado “Ultramar” português constituía um império

“sui generis” e de todo inviável, A. Serra mostra‑se chocado com “uma infantilmente conduzida, trágica descolonização em bloco, [que] veio pôr a nu o fundo da ocupação durante vários séculos de outros territórios, com que colectivamente os Portugueses nada lucraram, embora alguns individualmente tenham arranjado fortunas” (p. 38).

Reconhecendo frontalmente que fomos “mais mercadores do que conquistadores” (p. 41) A. Serra enterra literalmente, e sem cerimónias, as teorias do “espírito de missão” ou de “povo eleito do Senhor”, classificando a primeira de “anacrónica barbaridade” e a última de “simplesmente ridícula aos olhos de pessoas cultas” (p. 41) para reivindicar que “a grandeza actualmente está na cultura, em um povo se tornar excelente no que é autêntica produção humana…” (p. 49), para concluir simplesmente que faltou a perspectiva histórica para dar dignidade à governação da época e não haver perdão para as imensas “perdas em vidas e bens”.

Voltada a página da descolonização A. Serra não deixa de afirmar que no futuro (e lembrando o Brasil), numa apreciação serena do dever e do haver, ainda se há‑de “reconhecer que os Portugueses não foram apenas buscar, mas sempre

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levaram muito do seu, até talvez mais do que trouxeram” (p. 39). E insiste que não afirma isto como “contribuição para lavagem colectiva da alma, daquilo que agora tem sido inculcado serem pecados da colonização, mas simplesmente porque…. crê ser verdade” (p. 39).

2. O estado e a nação face a “fósseis ideológicos”Apoiando‑se no facto de que uma nação só existe quando, para além de

objectivos comuns, há simultaneamente uma cultura, uma língua e um território, A. Serra aponta linhas construtivas e denuncia ideias e organizações ultrapassadas, “fósseis ideológicos” que ainda pesam nos passos da evolução actual.

Ao afirmar que a nação terá que concentrar as suas forças naquilo que são as tarefas nacionais, verdadeiramente a valorização humana, insiste que esta só existirá se chegar à excelência de valores humanos verdadeiramente progressivos.

Nesta observação A. Serra aponta o papel fundamental da Antropologia “com as suas duas componentes, antropologia cultural e antropologia biológica, a primeira respeitante aos usos e costumes, história e cultura, a segunda respeitante ao fundo genético das populações presentes no país” (p. 79).

Na formação de um povo é determinante o grau de solidariedade, já que toda a sociedade dotada desta prática é “mais evoluída do que outra sem este sentimento” e, por outro lado, para qualquer povo “uma fase mais civilizada é aquela em que a cultura se tornou mais humana relativamente a fases anteriores” (p. 97). Neste progresso civilizacional é fundamental ter em conta a componente demográfica.

Aplicando as suas observações ao caso português o diagnóstico de A. Serra não disfarça a situação: “Se quisermos olhar para o estado actual em Portugal dos assuntos tratados neste capítulo, a mais notória disparidade é a do completo desconhecimento das consequências da demografia ao nível do planeamento social” (p. 111). Constatando que este mal vem de longe, e não sendo exclusivamente português, A. Serra verifica que “tal acontece não por falta de capacidades para planear (que seguramente as há no país), mas pelo grave defeito, que vinha de antes e se perpetua, de não serem para tal chamados os mais aptos” (p. 111). Aqui A. Serra denuncia a lógica de “chegar ao poder pelo poder”.

Criticando o “basismo” ideológico ligado a sociedades do passado que remontam aos tempos das sociedades camponesas e do proletariado das cidades, A. Serra não poupa instituições como os sindicatos que classifica de “fósseis ideológicos”… “associações que não se actualizaram na sua filosofia de ser e, por isso têm, muitas vezes comportamentos irresponsáveis” (p. 156). Além de que

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deixam de fora grupos mais fragilizados como “inválidos e idosos” a que certamente haveria que juntar hoje o número crescente de desempregados.

3. Os desafios do futuro face à “balbúrdia nas escolas”Os reflexos de uma liberdade mal entendida (porque liberdade sem

responsabilidade) em boa parte das escolas no pós‑25 de Abril impressionou sobremaneira o professor universitário que deixa nestas suas notas algumas das críticas mais duras à situação escolar que classifica de “balbúrdia”.

A. Serra começa por denunciar a ideia fantasiosa “de que todos, absolutamente todos, têm capacidade para meter no bolso todos os diplomas do ensino secundário e superior, desde que forcem os poderes políticos a deixá‑los matricular e os professores à submissão às suas exigências” (p. 84).

Nesta linha de pensamento A. Serra leva mais longe a sua crítica propondo ligação entre aprendizagem e trabalho que, sendo para a vida, deveria começar muito mais cedo nas nossas sociedades: “os jovens deveriam em regra trabalhar produtivamente logo que possível” (p. 102), mais exactamente… “os jovens dos 14 anos em diante deveriam ter normalmente parte do tempo ocupado com a escola e a outra parte com trabalho produtivo para proverem parcialmente ao seu sustento e assim se evitar o parasitismo relativamente aos adultos” (p. 103). Mas A. Serra leva mais a fundo a sua análise e numa questão fundamental das nossas escolas quando diz que “assim (com o trabalho parcial) poderia desaparecer muita da frustração juvenil actual: por um lado muitos jovens ressentem‑se da dependência em relação à família, por outro há numerosos jovens que acham abomináveis as actividades escolares porque as suas aptidões são para uma vida activa noutro sentido” (p. 103). Esta última reflexão parece‑me ser particularmente importante já que o problema existe e o que se tem exigido aos professores é a quadratura do círculo: ensinar a quem não quer aprender, mas com os resultados que se conhecem e daí “a frustrante ineficiência escolar do presente e a, muitas vezes terrível, vivência nas escolas”. A. Serra limita‑se a constatar o que na sua óptica, é óbvio: “a situação escolar é actualmente uma incrível balbúrdia no nosso país, demonstrando como é fácil, quando as condições se prestam, passarem os jovens a ter comportamentos destrutivos da instrução que deveriam obter e das pessoas que os tentam ensinar” (p. 104). Não deixa contudo de referir o peso excessivo das ideologias e o efeito de inércia mental vinda da ditadura: “essas doutrinas têm tido um papel dominante no descalabro a que chegaram neste país a economia, o ensino, a investigação e até a maneira de ser social, incluindo a deterioração da pouca solidariedade que a longa ditadura ainda deixara entre os Portugueses” (p. 135).

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Referindo‑se ainda ao “basismo” A. Serra denuncia a sua força perniciosa nas escolas:

“Nas escolas resulta em pleno domínio dos alunos ou, quando estes são ainda muito novos, dos respectivos pais. Daqui provém, e principalmente no caso das escolas secundárias e universidades, quando os alunos são as bases, que os professores são completamente dominados, e até mesmo escravizados, por adolescentes ou jovens ignorantes, inexperientes, e quase sempre com animalescas demonstrações da força primitiva da ancestralidade” (p. 129).

Para A. Serra a saudável cooperação é a base do êxito mas ela não é compatível com a ideologia anti‑mérito (há alunos hostilizados por serem distintos…) pois “é da recta consciência humana que os lugares devem ser ocupados pelo mérito” [embora] “as diferenças de lugar não devam corresponder a abissais diferenças de retribuição e outros direitos e regalias” (p. 249).

Denunciando um psicologismo de facilidades que esqueceu que os saberes se organizam por disciplinas e que sem disciplina não há resultados nem sequer no futebol (uma evidência que muitos alunos e uns quantos professores tardam em compreender), A. Serra assume claramente a opção de elite do desporto, como no resto, onde não é possível todos chegarem ao topo:

“Tratando‑se de nadadores ou de futebolistas, etc., não é suposto que, sem a posse de qualidades naturais para o desenvolvimento das características necessárias para exercer os esforços que estas práticas desportivas requerem, as pessoas consigam chegar nelas a plano destacado” (p. 260). Por isso, e aplicando às escolas, A. Serra denuncia a actual “tendência para a incompreensão, a confusão e a deturpação doutrinária, a respeito das bases da instrução em valores, entre os quais se conta o do mérito diferencial em instruendos e instruidores” (p. 259).

Articulando aprendizagem, saber e competência A. Serra alerta: “não há sistema filosófico que substitua o modo são de pensar livre de um cérebro culto e afinado pelo trabalho anterior de muitas horas de pensamento sobre domínios específicos do saber”. Um aviso particularmente importante num país onde abundam os “miméticos” que Miguel Torga tão bem denunciou.

4. O “mandamento cultural”Para avançar no neo‑humanismo educativo A. Serra parte do princípio básico

que enuncia como mandamento cultural:

“… prosseguirás a tua instrução para adquirires o máximo de cultura que te seja possível, dentro das tuas faculdades mentais, mas não desperdiçando ou

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esbanjando os meios postos à tua disposição para tal, para o que não deverás ir além do grau de instrução que eficientemente podes aprender, não tirando a vez a outros mais capazes e não sobrecarregando a sociedade com gastos inúteis” (pp. 256‑257).

Partindo da igualdade cívica, o autor simplesmente aplica o princípio abstracto às questões concretas: igualdade entre quem, sobre o quê e com que critérios. Com este mandamento cultural A. Serra elimina de uma penada uns quantos privilégios de “veteranos” que até estabelecem normas e reivindicam privilégios que a sociedade paga sem qualquer retorno.

A dimensão parasitária nas universidades tem sido um alegre esbanjar e um caldo de cultura de valores anacrónicos que alguns sociólogos começam a denunciar (Ver: “A praxe, a latada e o machismo anacrónico”, E. Estanque, Diário de Coimbra, 30.10.2006).

Mas a condição que impõe que todos possam desenvolver os seus talentos não ilude o autor sobre o facto de se verificar “que o talento e o dinheiro muitas vezes não coincidem” (p. 257) e daí a óbvia conclusão que a instrução deveria ser, quanto possível, gratuita “a fim de não ser necessário estar a distinguir entre os que podem e os que não podem, com inquéritos aos rendimentos”… (p. 258)… Mesmo assim o fantasma da “‘engrenagem administrativa’ não deve impedir uma justa ponderação das vantagens e desvantagens da gratuitidade do ensino e do pagamento deste, pelo menos parcial” (p. 259).

Apoiando fortemente a igualdade de oportunidades, à partida para todos, A. Serra ataca pela raiz as diferentes teorias igualitárias que pretenderiam um hipotético igualitarismo que seria uma “igualdade de todos em tudo” que sempre foi o princípio gerador da mediocridade.

Interrogando‑se ainda sobre “os fins para que vivemos” e respondendo com a “realização pessoal”, por mais vaga que seja a expressão, A. Serra insiste que a percepção de felicidade é realizada através da liberdade responsável e daí definir as liberdades neo‑humanísticas como uma progresso (“evolução”) de liberdade com responsabilidade (p. 145 e seg.).

É nesse contexto que se afirma o mérito diferencial já que “as diferenças de qualidades mentais, quando devidamente empregues na aquisição e depois, se o talento chegar para tanto, na criação da cultura, dão origem a méritos diferentes” (p. 261). Isto é tão natural como as diferenças nas aptidões musculares ou nas habilidades corpóreas, mas insiste o autor, o mérito cultural é mais diferenciador, e explica: “aqui cultura tomada no sentido geral, abrangendo realizações respeitantes não só

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ao conhecimento, como à virtude (bondade, altruísmo, caridade, dedicação ao bem fazer) e às qualidades de carácter (honra pessoal, honra profissional, persistência no bom caminho, dedicação ao trabalho, prosseguimento da melhoria económica e social, etc.)” (p. 261). É evidente que são referenciais de diferenças tão óbvias quanto esquecidas.

5. A explosão demográficaPassando dos problemas concretos do seu país para a dimensão global

da questão demográfica da população humana em crescimento geométrico, A. Serra não pode deixar de se interrogar sobre o futuro de uma espécie que cresce aceleradamente num espaço limitado. Com efeito “todas as espécies sofrem, em condições de excesso de população, o que se chama o condicionamento negativo, acções tendentes a diminuir essa densidade e que, não raro, terminam na completa extinção da população ou da espécie” (p. 110).

Muitos aspectos conflituosos das nossas grandes cidades são explicados da mesma maneira: “muito do que se passa nas nossas cidades urbanizadas, quanto a comportamentos disruptivos, especialmente nos jovens, é proveniente da excessiva concentração urbana” (p. 110). Condenando o “completo desconhecimento das consequências da demografia ao nível do planeamento social” A. Serra reivindica um menor desperdício do “talento nacional” para podermos dar passos significativos no indispensável “avanço cultural”.

Aprofundando mais a questão A. Serra entende que “a nível actualizadamente do nosso tempo a política não será apropriada a inserir‑se nos sistemas de realização humana se não tiver uma das suas bases mais importantes na demografia” (p. 317).

Insistindo no imperativo da espécie voltar a uma “vida mais ecológica e civilizadamente humana”, A. Serra denuncia as consequências do que chama um “urbanismo anti‑agrícola” com importantes consequências a nível pessoal e social já que cada vez mais “o citadino que não faz ideia concreta de como são obtidos os alimentos vegetais, ou o leite, que adquiriu no mercado, perde uma boa parte da percepção do mundo real em que se insere” (p. 319).

Escravo da “caixa ambulante” (automóvel) e vivendo nas “gavetas em prédios‑formigueiro” o homem actual perde valores estruturantes da sua estratégia de sobrevivência:

“A falta de posse, ou de usufruto, de uma porção mesmo pequena, como um jardim circundante da casa, de solo do país em que se enquadra, conduz à falha psíquica de noção exacta da pátria como geografia com gente e história” (p. 319).

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Embora o autor reconheça que é “arriscado aplicar conclusões obtidas em experiências com animais ao caso da espécie humana, o condicionalismo comportamental provocado pela sobrepopulação parece ter algum fundamento análogo nos dois casos” (p. 321). De facto, o que nos mostra a etologia em geral é que a agressividade aumenta com a redução do território decorrente do aumento das populações. Por isso, alguns autores consideram que o perigo da nossa espécie está, mais que em qualquer outra arma de destruição maciça, no simples crescimento demográfico que constituiria por si a “bomba humana”. É certo, também há quem acredite no que chamam a sabedoria da espécie que encontraria uma saída para o excesso de população.

Manuel L. Rodrigues LaranjeiraDepartamento de Antropologia

Universidade de Coimbra

3000‑056 Coimbra

[email protected]

Stanovich, K. E. 2004. The Robot’s rebellion: finding meaning in the age of Darwin. Chicago & Londres, The University of Chicago Press, 358 pp. ISBN 0‑226‑77125‑3. £11,50.

Keith Stanovich em The Robot’s Rebellion exorta‑nos a aceitar o darwinismo universal e, em particular, a mudança de perspectiva inaugurada por Richard Dawkins. Os humanos são os hospedeiros de dois tipos de replicadores (genes e memes) que não parecem particularmente interessados (a linguagem é aqui deliberadamente antropomórfica, porque segundo Stanovich é difícil encontrar melhor) nos humanos para lá do desempenho que estes têm no processo de replicação: seremos assim “máquinas de sobrevivência para os nossos genes” (Stanovich, 2004: xii) ou, de outro modo, “sofisticados robôs ao serviço de colónias de genes”. Do mesmo modo, seremos “hospedeiros para memes” (definidas como “unidades de informação cultural”). Quaisquer destas entidades, genes e memes, são “unidades subpessoais” que podem comprometer (e comprometem) a “autonomia” dos humanos. Se os genes contêm as instruções para construir os corpos que os contêm, as memes constroem as culturas que as transmitem. Uma crença poderá ser assim, para a memética, disseminada sem que seja verdadeira ou útil aos humanos que a disseminam. A memética lembra‑nos outros modelos epidemiológicos de cultura, como seja a sobejamente conhecida “epidemiologia das representações” de Dan Sperber,

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pesem embora as diferenças de ênfase e as objecções deste último em relação à proposta de Dawkins (ver Sperber, 2001). Segundo Stanovich, Dawkins ter‑nos‑á alertado para a urgência em se implementar “uma rebelião contra os replicadores egoístas”. Seguindo a sua linha de pensamento, esta rebelião será necessária porque os humanos, enquanto organismos coerentes, podem ter “interesses antitéticos” àqueles que se fazem inscrever na mera lógica replicativa patenteada por genes e memes. Stanovich usa assim a expressão “rebelião do robô” para se reportar ao conjunto de perspectivas evolutivas e “reformas cognitivas” que serão necessárias se quisermos ultrapassar a mera lógica replicativa, os interesses de genes e memes. Uma reforma cognitiva que assentará numa teoria acerca da racionalidade sem a qual não podemos definir os nossos propósitos enquanto agentes autónomos. Somos robôs, mas robôs muito especiais, isto é, somos os únicos que sabem que são robôs: “We indeed are the runaway robot of science fiction stories – the robot that subordinates its creator’s interests to its own interests” (Stanovich, 2004: xii). Será o conhecimento do nosso cérebro e dos “tipos de mente” (a expressão é de Daniel Dennett) que ele evidencia que nos permitirá, num primeiro momento, cumprir a tão necessária reforma cognitiva. Que tipos de mente? Que teoria da racionalidade nos é então proposta?

Dois tipos de mente ou duas “teorias” sobre a mente ou dois “sistemas cognitivos” são caracterizados por Stanovich.

Em primeiro lugar, temos de considerar aquilo a que o autor designa por TASS, isto é, “The Autonomous Set of Systems”. Este sistema ou conjunto de sistemas é descrito como constituído por processos que respondem automaticamente a estímulos relevantes (“domain‑relevant stimuli”), cuja execução não está dependente de estí‑mulos que provêm do segundo dos sistemas (ou por ele são controlados), ou seja, o “sistema analítico”, e como podendo ainda executar e providenciar resultados (outputs) que “estão em conflito com os resultados de uma computação simultânea realizada pelo processamento analítico” (p. 37). Muitos dos “processos TASS” são de natureza “modular”, a usar a expressão de Jerry Fodor que Stanovich cita (ibid.). A concepção modular do sistema TASS em Stanovich faz supor afinal que este sistema ou conjunto de sistemas é “rápido”, “obrigatório”, “específico” (“domain‑specific”), “encapsulado informacionalmente”, “cognitivamente impenetrável”, “sustentado em arquitectura neural específica”, “sujeito a falência patológica idiossincrática”, e “ontogenicamente determinístico”, isto é, dotado de “uma sequência de desenvolvimento fixa” (p. 38). Os aspectos mais salientes deste tipo de mente serão assim, a rapidez, e o seu carácter obrigatório e automático. Uma diferença em relação à modularidade de Fodor reclamada por Stanovich: tal como os psicólogos evolutivos, Stanovich

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assume que alguns dos processos em que se abastece TASS são “higher‑level”, ou seja, de natureza conceptual e não somente perceptual. Stanovich diz‑nos que elementos conceptuais podem fazer parte de TASS através da “prática” (p. 40). Porém, nós, humanos, temos mais que uma mente. Haverá a considerar aqui, segundo Stanovich, o “sistema analítico”. Se os “processos TASS” se afiguram “paralelos”, “automáticos”, e operando num plano não‑consciente (a usar a expressão do autor, “largely beyond awareness” [p. 44]), os processos referenciados como analíticos funcionam “em série”, fazem supor “controlo executivo central” e consciência (“conscious awareness”), sendo de destacar o dado de se tratar de processos que exigem certo tipo de capacidade (“capacity‑demanding operations”), revelando‑se ainda dotados de um carácter generalizante nos usos que fazem da informação (“domain‑generality in the information recruited to aid computation”) (p. 45). Stanovich foge aqui à eventual acusação de estar a hipostasiar, através da ideia de controlo executivo central, um designado “Teatro Cartesiano”. Tal como para Steven Pinker, Stanovich defende que o controlo cognitivo se encontra distribuído no cérebro mas de um modo que continua a justificar uma linguagem de controlo central, possivelmente através daquilo a que Pinker designa por “um conjunto de regras se‑então ou uma rede neural” capaz de distribuir hierarquicamente tal controlo (cit.: 47). O sistema analítico, ou aquilo que assim é designado, será, segundo Stanovich, uma espécie de software (ou mindware, a usar a expressão de Andy Clark que Stanovich cita também [p. 48]). TASS, por seu turno, é assimilável a uma arquitectura hardware. A analogia com o computador termina aqui, já que o autor diz‑nos que os computadores não desenvolveram os sofisticados sistemas TASS (que, nos humanos, são o produto de centenas de milhares de anos de evolução), cuja eficácia (que lhes advém do facto de funcionarem massivamente em paralelo) não se encontra presente em quaisquer computadores inventados. Porém, é importante acrescentar que, por contraste, o sistema analítico dos humanos (que funciona em série) é uma aquisição recente no contexto evolutivo, sendo que os computadores, que foram originalmente desenhados para funcionarem como processadores em série de acordo com regras lógicas, se encontram melhor apetrechados no que diz respeito às potencialidades analíticas. Escreve Stanovich: “It is no wonder that logic is easy for them and difficult for us.” (p. 48).

De que forma é que a teoria sobre a racionalidade de Stanovich se abastece neste modelo e quais os seus limites? O que pretende ele com a sua “reforma cognitiva”?

Para Stanovich, a reforma cognitiva depende em larga medida de uma teoria acerca da racionalidade. E aqui é importante considerar que o comportamento

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evolutivo adaptativo não é o mesmo que o comportamento racional (p. 82). Enquanto que o comportamento racional faz realizar os objectivos do veículo (tendo em conta o seu conjunto de crenças sobre o mundo), o comportamento evolutivo adaptativo é aquele que incrementa as probabilidades de replicação genética. E é aqui que Stanovich se diferencia de muitos psicólogos evolutivos. Para ele, estes últimos tendem a assumir que todo o comportamento adaptativo é racional. Ou seja, não têm em conta que há que estabelecer uma distinção entre objectivos do veículo e objectivos dos replicadores. Ou seja, e parafraseando‑o, as definições de racionalidade devem ser consistentes com a entidade cuja optimização se encontra em observação (p. 82). Os interesses dos replicadores e do veículo têm de ser apreciados diferenciadamente. Neste sentido, a racionalidade em sentido estrito depende dos interesses dos veículos, enquanto que a adaptação evolutiva diz respeito aos interesses dos genes (sucesso reprodutivo). Situações há em que os interesses do veículo e os interesses dos replicadores não coincidem. Não irei aqui fazer uma anatomia dessas situações (para tal, o eventual leitor poderá debruçar‑se sobre os inúmeros exemplos que se encontram plasmados no livro). Importa, porém, chamar a atenção para vários aspectos que se encontram implicados aqui.

Stanovich empreende uma análise da situação moderna. Ele explicita‑nos que a modernidade faz supor afinal que muitas das nossas motivações se destacaram irremediável e radicalmente de um contexto em que a disjunção entre interesses veículo/replicador seria menos enfática e menos inegociável. Ironicamente, aquilo que sob um ponto de vista evolutivo (do desenho evolutivo, a usar uma expressão próxima do original) pode ser considerado um defeito, torna possível a rebelião dos robôs (dos humanos), ou seja, torna possível a valorização dos humanos dada a proeminência dos seus objectivos por oposição ou contraste com os objectivos dos replicadores. A radicalização do projecto moderno é o contexto por excelência em que a disjunção se tornou mais evidente e mais urgente, como sugeri. Numa nota particularmente axiomática disso mesmo, Stanovich diz‑nos que a engenharia genética e a terapia genética representam talvez o último triunfo das máquinas de sobrevivência de Dawkins: “With the technology of genetic engineering, we, who were built by the replicators to serve as their survival machines, use them for our own goals – goals that are not the genes’ goals (e.g., survival past our reproductive years)” (p. 280n21). Ou seja, as biotecnologias vêm transformar de modo inequívoco este quadro. Elas criam um meio em que a disjunção ou a fractura entre veículos/replicadores se torna inapagável, em que compreendemos o horizonte para o qual se encaminha a sujeição a uma certa concepção de racionalidade instrumental. E isto é decisivo já que exige que se matizem quaisquer teorias da racionalidade

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de sentido estritamente instrumental (um dos elementos decisivos à modernidade tecnocientífica), tendo em conta elementos contextuais e simbólicos. A meu ver, e de outro modo, a racionalidade instrumental exige um princípio de regulação que só pode ser de natureza contextual. Ou ainda, a racionalidade instrumental, no limite, poderá virar‑se contra si mesma e potenciar o irracional. Os sonhos da razão poderão certamente conduzir‑nos ao pesadelo. O trabalho de Stanovich esboça, ainda que de forma muito mais implícita que explícita, uma teoria cognitiva da racionalidade moderna e dos seus perigos. Estamos perante a paisagem cognitiva moderna em que as utopias poderão, sem mecanismos de regulação/auto‑regulação, desembocar em distopias.

A articulação entre o sentido instrumental e o sentido contextual de uma teoria da racionalidade é, em meu entender, um dos tópicos menos claros do programa de Stanovich. Dir‑se‑ia que ele tem consciência disso mesmo ao procurar mostrar‑nos como, ao contrário dos chimpanzés, p.ex., os humanos fazem associar às suas opções de decisão informação contextual de extrema complexidade (pp. 213‑7). Ou seja, se a modernidade nos legou um conjunto de procedimentos que nos permitiram fazer alicerçar as nossas decisões numa eficácia formal até então desconhecida, ela não neutralizou as exigências de avaliação contextual. Tais exigências são determinantes nas nossas escolhas enquanto humanos. Como escreve Stanovich: “Rational choices not backed by values, by reflective evaluation in light of larger goals, would be like animal rationality” (p. 216). E daí a exigência em formas de meta‑racionalidade que a reflexividade moderna parece exigir.

Num ambiente em que muitas das nossas ideias – as “memeplexes”, isto é, agregados de memes ou replicadores culturais ou, de modo mais específico, estados de controlo (ou de informação) cerebral que poderão potenciar novos comportamentos ou pensamentos em outros cérebros (ver pp. 173‑205, e, em particular, p. 175) – se tornaram perigosas, importa questionarmo‑nos acerca dos mecanismos de meta‑racionalidade a desenvolver. De algum modo, Stanovich assume a hubris moderna e reconhece que, ironicamente, sem uma racionalidade alargada e contextual não podemos dominar as forças que a racionalidade moderna tout court desenvolveu. Apesar dos argumentos muito significativos a favor destas formas de meta‑racionalidade e reflexividade, Stanovich sabe que todos os projectos que possamos desenvolver em nome disto (a reforma cognitiva que ele advoga) são conjunturais e fazem supor uma impossibilidade posicional ou normativa: não haverá ponto nenhum de simetria cognitiva e de racionalidade epistémica que nos permita avaliar a operatividade absoluta de certos valores por oposição a outros. Daí a importância das aferições contextuais. Daí também a importância daquilo a

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que ele apelida de programa neurathiano de integração racional – um programa de meta‑racionalidade em que a racionalidade é usada para se avaliar a si mesma e para avaliar instituições que contêm e circunscrevem os produtos culturais da evolução racional (p. 219).

Stanovich vem afinal reclamar uma reavaliação dos modos de racionalidade, fazendo‑a ancorar nas ciências cognitivas (melhor seria dizer, em certos sectores destas). Dir‑se‑ia que Stanovich é um dos autores a considerar quando pensamos na reinvenção contemporânea da tradição Iluminista (um autor a ler a par de Dawkins, Dennett ou Sperber), afirmando‑se The Robot’s Rebellion como um elogio à declinação secular e analítica subjacente à modernidade enquanto projecto inexorável. A inexorabilidade deste projecto e a reflexividade que ele exige são certamente traços maiores na sua proposta de reforma cognitiva do presente. A Nemésis da Razão passa seguramente por aqui, num tempo em que uma pulsão niilista percorre o mundo académico, e não só.

Outras referências:Sperber, D. 2001. An objection to the memetic approach to culture. In: Aunger,

R. (ed.) Darwinizing culture: the status of memetics as a science. Oxford, Oxford University Press: 163‑173.

Luís QuintaisDepartamento de Antropologia

Universidade de Coimbra

3000‑056 Coimbra, Portugal

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White, M.; Gribbin, J. 2004. Darwin: uma vida de ciência. Mem Martins, Publica‑ções Europa‑América. 381 p. ISBN 972‑1‑05350‑3. € 23,51

A publicação, em 1859, de On the origin of the species by means of natural selection de Charles Darwin, abalou severamente o edifício filosófico de matriz judaico‑cristã que estribava desde há quase dois milénios a civilização Ocidental. Darwin e, concomitantemente, Alfred Russell Wallace, ao admitirem conceitos como especiação e evolução e mostrando como a selecção natural podia explicar o aparecimento de todas as espécies vivas, desassossegaram tumultuosamente a ethos vigente na sociedade vitoriana, repudiando o fixismo das espécies postulado pelos sectários das teorias criacionistas.

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On the origin of the species condensa duas grandes teses. A primeira refere que todas as espécies, extintas ou vivas, descendem sem interrupção de uma ou de algumas formas originais de vida. A segunda define a maior e mais original contribuição do naturalista inglês: a teoria da selecção natural. Sucintamente, esta refere que os membros de uma mesma espécie diferem nas suas características (variação), os progenitores transmitem algumas das suas propriedades distintivas à progénie (hereditariedade); e, finalmente, devido aos seus caracteres peculiares alguns indivíduos têm mais descendentes que outros, numa mesma população (reprodução diferencial). O génio de Darwin apercebeu‑se que este processo, selecção natural, age sobre a variação numa lógica de supressão das características deletérias relativamente à sobrevivência e reprodução e de disseminação dos caracteres que promovem a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dos indivíduos.

Charles Darwin é, para além de Albert Einstein, o cientista mais reconhecido pelo público interessado, mas não especializado, nos meandros da ciência. Ilustrado numa nota de £10, Darwin é convocado de forma banal à intimidade dos Britânicos. No âmago rural dos Estados Unidos da América – no famigerado Bible Belt – reservam‑lhe, não poucas vezes, o estatuto de apóstata e herege, de “capelão do demónio”, como o próprio referiu uma vez de forma trocista. Em Portugal, ou é ignorado ou é considerado de forma fragmentária, parcial e preconceituosa. Não obstante, a vida e o trabalho de Charles Darwin, quando são conhecidos, são usualmente limitados ao seu opus magnum, a Origem das Espécies. A verdade é que existe um Darwin para além da Origem: no início um menino rico, esbanjador. Às vezes cientista. Uma odisseia fulcral e transformadora no pequeno Beagle. Uma carreira científica ímpar e subversiva como geólogo, primeiro, e como biólogo, depois. Uma família amada em crescendo geométrico (a invectivar o inspirador Malthus?). Amizades sinceras, outras nem tanto. Doenças e amargura.

Quem foi então este Charles Darwin, desconhecido? Em Darwin: uma vida de ciência os prolíficos Michael White e John Griffin (escreveram, por exemplo, biografias de Albert Einstein e Stephen Hawking) justapõem sobre a vida pessoal e científica de Charles Darwin um olhar amplo e complexo mas acessível ao leitor inexperto. A solidez da narrativa biográfica, nunca atingindo os patamares mínimos exigidos a uma versão integral e definitiva da vida do naturalista inglês, recorre, impúdica mas certeiramente, à mestiçagem de informações respigadas de fontes primárias e secundárias. No género literário a que se convencionou chamar biografia presume‑se que existe uma correspondência entre um texto, ou uma estrutura de palavras, e um conjunto de acções humanas. No entanto, o texto nunca molda mais que um conjunto pré‑seleccionado e limitado de dados que formam um

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todo significante. Desse modo, qualquer descrição biográfica envolve escolhas e falhas. Este livro de White e Griffin não pretende ser como os desmesurados mapas fabulados por Jorge Luís Borges, que tinham o tamanho e coincidiam pontualmente com o Império; não almeja, pois, a utopia de sobrepor uma tessitura de palavras, um corpo de texto, sobre toda a vida de Darwin. O propósito implícito é dar a conhecer o outro Darwin, que não aquele que escreveu simplesmente a Origem das Espécies, evitando concomitantemente aborrecer o leitor com um interminável e maciço compêndio abrangendo os mais insignificantes pormenores da vida do cientista inglês.

A fórmula expositiva usada pelo jornalista Michael White e pelo cientista John Griffin nesta biografia alterna os capítulos que invocam a vida pessoal de Darwin, o seu trabalho como cientista e a história das teorias evolucionistas. Os biógrafos seguem, de resto, a norma no que concerne às biografias do cientista inglês, acomodando os seus feitos científicos no contexto da Inglaterra do período vitoriano: em plena revolução industrial, dickensiana. Desse modo, se é verdade que o estatuto social e económico da família Darwin permitiu que o jovem Charles tivesse uma educação privilegiada, com dedicação total aos estudos e todas as benesses inerentes a uma situação económica desafogada, tal não supõe de forma directa que num único homem, apenas, se combinaram todos os factores necessários para desenvolver a ideia de evolução. Como afirmam os autores, em Darwin sucedeu “uma combinação de experiência a bordo do Beagle, imaginação, liberdade para trabalhar e, talvez o mais importante, a influência de uma forte tradição familiar de interesse e capacidade científicas.”(p. 17). Não discordando totalmente desta asserção, refiro que um Alfred Russel Wallace sem educação formal e provindo de um estrato socioeconómico carenciado, concatenou ideias a partir dos seus próprios dados e forjou uma teoria similar à de Charles Darwin. Por outro lado, John MacGillivray, o ébrio e dotado naturalista do HMS Rattlesnake, com um background social e percurso científico semelhantes ao de Darwin, não destinou quaisquer implicações evolutivas aos dados que foi recolhendo nas suas viagens. Portanto, o social não influencia definitivamente e em exclusivo a produção científica de excepção. Penetrando em terrenos movediços, arrisco falar em criatividade singular, em uma centelha de genialidade de Darwin.

Em Darwin: uma vida de ciência escalpelizam‑se duas dimensões da figura de Charles Darwin: a sua vida pessoal e o seu trabalho científico. White e Gribbin acrescentam ainda um importante acervo de informações relativas à própria teoria da evolução, às teorias que a precederam e influenciaram e ao destino da teoria depois da morte de Darwin.

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Um aspecto extremamente interessante desta biografia prende‑se com a revelação da rede de relações familiares e de amizade que Darwin foi constituindo ao longo da sua vida. Na relação com a família, com o pai e com o seu irmão e depois com a esposa e os filhos, a preocupação maior de Charles parece ter sido a de assegurar a estabilidade – emocional mas também financeira – aos seus e a si mesmo. Estabilidade e segurança perdidas em momentos como a morte da sua mãe ou da sua filha Annie. O amor que devotou a Emma Wedgwood, a cristianíssima esposa, terá mesmo influenciado de forma decisiva o protelamento da divulgação das suas ideias evolucionistas (Cap. 1: “Juventude irrequieta”). Darwin foi resguardando as suas concepções heterodoxas, pelo menos 20 anos se passaram entre as primeiras letras demoníacas e a carta de Alfred Russel Wallace, que espoletou a célebre conferência da Geological Society. Em que os dois cientistas, em jargão críptico, disseram que não havia mão de Deus sobre as criaturas, que era tudo obra do acaso, do tempo e da selecção natural. Esmagado pelo fardo do seu trabalho herético, Charles demorou a confiar as suas ideias a outros colegas. Escolheu Charles Lyell que, para enorme tristeza de Darwin, nunca aceitou completamente a teoria da evolução (Cap. 7: “Reclusão”). No entanto, as suas relações com John Hooker e T.H. Huxley, por exemplo, valeram‑lhe, não só duas amizades perenes, como o prestimoso auxílio de dois convictos e influentes prosélitos das suas ideias no dealbar das continuadas pelejas entre criacionistas e evolucionistas (Cap. 11: “Batalhas com o fanatismo”).

Charles Darwin não foi a primeira pessoa a pensar na evolução, nem sequer no seio da sua própria família. Assim, nesta biografia existe uma preocupação em olhar a “pré‑história” da biologia de forma a posicionar o feito do naturalista no seu contexto adequado (Cap. 2: “Evolução antes de Darwin”). De Empédocles de Agrigentum até Jean Baptiste Monet, cavaleiro de Lamarck, os autores compõem uma ilustre genealogia de pensadores que tentaram descrever as origens da vida em termos evolutivos. Compreensivelmente, é dada especial relevância ao contributo de Erasmus Darwin, avô paterno de Charles, para o pensamento evolucionário. Outros precursores de Darwin, como Buffon, John Ray, Saint‑Hilaire e Lineu, não são esquecidos. Os autores relevam também o paradoxal tributo de inúmeros membros do clero para a formulação de ideias evolucionistas, dissimuladas em pensamentos criacionistas: Gregório de Nissa, Santo Agostinho, Guilherme de Occam ou São Tomás de Aquino. Num outro capítulo (Cap. 14: “A evolução depois de Darwin”) é dado um vislumbre particular aos avanços da biologia evolutiva após a morte de Darwin.

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Os autores realçam – de forma sensata, diga‑se – a importância da imortal jornada de Charles Darwin a bordo do Beagle (Cap. 3: “Beagle”). O próprio Darwin reconheceu o carácter revolucionário e transformador que a viagem operou no seu pensamento acerca da natureza e origem das espécies:

“When on board HMS ‘Beagle’ as naturalist, I was much struck with certain facts in the distribution of the organic beings inhabiting South America, and in the geological relations of the present to the past inhabitants of that continent. These facts, (…) seemed to throw some light on the origin of the species – that mystery of mysteries.” (Darwin, 1994 [1859]:1)

Para além da colecta de dados essenciais à formulação de uma teoria válida da evolução, a viagem do Beagle ajudou Darwin a cimentar uma reputação científica junto da intelligentsia inglesa. Dos milhares de páginas de apontamentos e da colecção sistemática de especímenes geológicos, botânicos e animais resultou um trabalho de consolidação académica – em áreas científicas “ortodoxas” – que seria fundamental para a construção da imagem de Darwin enquanto sábio e, portanto, para a legitimação das suas ideias revolucionárias (Cap. 6: “Primeiros trabalhos” e Cap. 8: “Cracas e Biologia”).

“Darwin: uma vida de ciência” toca a essência do trabalho e da vida de Charles Darwin, testemunhando a sua persistência e originalidade sem criar no leitor a sensação de esmagamento. Uma introdução conveniente e proveitosa à intimidade e à obra do mais famoso dos naturalistas.

Outras referências:Darwin, C. 1994 (1859). The origin of species. New Jersey, Castle Books.

Francisco CurateDepartamento de Antropologia

Universidade de Coimbra

3000‑056 Coimbra, Portugal

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