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142 Revista de História da Arte Portugal a teoria sistemática da perspectiva acontece posteriormente à prática da pintura. O texto de Inácio Vieira procurava exactamente compensar este percurso. No decorrer do seu manual notam-se constantes preocupações com o esquema de ensino, isto é, uma procura em definir meios explicativos complementares com os desenhos do próprio punho, ou através de referências às gravuras citadas directamente dos textos originais e que estavam disponíveis à consulta. No estudo da pintura de simulação arquitectónica realizada em Portugal entre os séculos XVI e XVIII, para além de todas as questões paralelas ao estudo da pintura, devemos levar em conta um ponto essencial e que não pode ser transcurado: não havia um “exercício regular” da perspectiva linear inserido no ambiente cultural vivido pelos pintores ou decoradores durante este mesmo período. A presença do quadro recolocado ou o uso excessivo do frontalismo passa a ser um recurso de linguagem específica e não uma questão essencialmente técnica ou cientifica. Devem-se compreender estas disposições como uma ferramenta operativa de preenchimento dos espaços e não considerá-los simples questões de habilidade técnica. A perspectiva não é um processo que se deve medir exclusivamente sob o ponto de vista da codifica- ção regular, mas um processo representativo de modo que na sua actuação agem diversas forças e disposições culturais. Com os estudos de Inácio Vieira, a prática da perspectiva em Portugal ganha pela primeira vez um contexto teórico e específico, inaugurado no século XVIII. Não se trata tanto de ver se a pintura apresenta ou não um espaço construído matematicamente, mas, sobretudo, importa compreender como este processo pictórico evoluiu entre o Renascimento e a fase do Barroco. Estudar estas pinturas, descobrir os seus mais remotos segredos, significa aprender como se construía um espaço pictórico e quais as suas consequências. Por fim, o interesse deste tipo de pintura reside especificamente no uso que faz dos procedimentos espaciais, seja numa parede ou num tecto plano, abobadado ou esférico, pois desde o início que esta “forma decorativa” representa o espaço juntamente com o arrombamento do plano do suporte. Assim, a leitura destas pinturas não poderá ser realizada apenas por intuição, exigindo também um estudo sistemático das obras e dos processos de execução que giravam em seu redor e justificavam a sua criação. Recensões

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Portugal a teoria sistemática da perspectiva acontece posteriormente à práticada pintura. O texto de Inácio Vieira procurava exactamente compensar estepercurso. No decorrer do seu manual notam-se constantes preocupações como esquema de ensino, isto é, uma procura em definir meios explicativoscomplementares com os desenhos do próprio punho, ou através de referênciasàs gravuras citadas directamente dos textos originais e que estavam disponíveisà consulta.

No estudo da pintura de simulação arquitectónica realizada em Portugalentre os séculos XVI e XVIII, para além de todas as questões paralelas aoestudo da pintura, devemos levar em conta um ponto essencial e que não podeser transcurado: não havia um “exercício regular” da perspectiva linear inseridono ambiente cultural vivido pelos pintores ou decoradores durante estemesmo período. A presença do quadro recolocado ou o uso excessivo dofrontalismo passa a ser um recurso de linguagem específica e não uma questãoessencialmente técnica ou cientifica. Devem-se compreender estas disposiçõescomo uma ferramenta operativa de preenchimento dos espaços e nãoconsiderá-los simples questões de habilidade técnica. A perspectiva não é umprocesso que se deve medir exclusivamente sob o ponto de vista da codifica-ção regular, mas um processo representativo de modo que na sua actuaçãoagem diversas forças e disposições culturais.

Com os estudos de Inácio Vieira, a prática da perspectiva em Portugalganha pela primeira vez um contexto teórico e específico, inaugurado noséculo XVIII. Não se trata tanto de ver se a pintura apresenta ou não umespaço construído matematicamente, mas, sobretudo, importa compreendercomo este processo pictórico evoluiu entre o Renascimento e a fase doBarroco. Estudar estas pinturas, descobrir os seus mais remotos segredos,significa aprender como se construía um espaço pictórico e quais as suasconsequências. Por fim, o interesse deste tipo de pintura reside especificamenteno uso que faz dos procedimentos espaciais, seja numa parede ou num tectoplano, abobadado ou esférico, pois desde o início que esta “forma decorativa”representa o espaço juntamente com o arrombamento do plano do suporte.Assim, a leitura destas pinturas não poderá ser realizada apenas por intuição,exigindo também um estudo sistemático das obras e dos processos deexecução que giravam em seu redor e justificavam a sua criação.

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A Revista Antiquité Tardive épublicada anualmente, desde 1993, pelaAssociation pour l’Antiquité Tardive,com sede em Paris, tendo sido edita-do o último número em 2003 que,juntamente com o número imediata-mente anterior, foi dedicado à ÁfricaVandálica e Bizantina. O número XII,de 2004, terá como tema Tecidos eVestes na Antiguidade e o número XIII,de 2005, versará sobre a Baixela deBronze na Antiguidade Tardia. Ressaltacom evidência a importância de umapublicação anual deste tipo, abarcandouma longa época cronológica que tempermanecido numa certa obscuridadepor falta de direccionamento da in-vestigação. O impulso inicial dado pelaequipa dirigida por Noël Duval, da

Universidade de Paris-Sorbonne, temvindo a ganhar ritmo e a alargar ostemas estudados, com reflexos pro-fundos na motivação para o estudoda Antiguidade Tardia, disponibilizandodados, indicando fontes, proporcio-nando novas e inesperadas leituras.

Para a História da Arte, o contri-buto é importantíssimo. O vol. I (1993),trata dos sarcófagos da Aquitânia, daProvença e da Gália Merovíngia, suadecoração figurativa e vegetalista, as-sim como do seu contexto histórico earqueológico. Os volumes II e III (1994e 1995), estudando a Tetrarquia, dão--nos conta, designadamente, dos estu-dos sobre o Palácio de Dioclecianoem Split (Croácia) e dos edifícios deGalério em Romuliana (Sérvia), assimcomo da escultura imperial de tetrar-cas neste mesmo local.Apresenta-nosainda estudos sobre o retrato e sobrea pintura desta época. Aborda tam-bém as fortificações militares do tem-po de Diocleciano.

As questões das igrejas duplas edas “famílias” de igrejas é desenvolvidano vol. IV (1996). Procuram-se aí even-tuais explicações para essas variaçõesarquitecturais através da liturgia, comcaracterísticas regionais próprias,designadamente, da Gália, Itália, Ístria eBalcans, Oriente e África.

ANTIQUITÉ TARDIVE, Revue Internationale d’Histoire et d’Archéologie (IVe-VIIIe s.),11, Turnhout (Belgique), Brepols Publishers, 2003.

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relacionadas com os espaços detumulação medievais,1 bem comouma primeira leitura de conjunto dostúmulos de Pedro e Inês,2 Vieira daSilva procura analisar a complexa rela-ção entre o simbolismo religioso epolítico dos espaços funerários domosteiro de Alcobaça e a transforma-ção morfológica e tipológica dos mo-numentos funerários medievais aíexistentes, aspectos que constituem,aliás, o tema do segundo e do terceirocapítulos deste livro.

No capítulo um Vieira da Silvadedica uma breve introdução ao pro-blema dos sepultamentos régios du-rante a primeira dinastia, sendonotórios alguns aspectos: a progressãopara sul acompanhando a «Recon-quista»,3 a preponderância de Alco-baça como local de sepultamento real(três monarcas), a relativa dispersão

por diferentes instituições religiosas(embora com claro ascendente cister-ciense, com quatro monarcas) e, pelomenos no século XIV, uma certa in-submissão dos filhos, que não pare-cem respeitar o local de sepulta-mento programado pelos progeni-tores. Assim, se em Santa Cruz deCoimbra foram sepultados Afonso I eSancho I e se em Alcobaça foramsepultados Afonso II, Afonso III ePedro I, já nos restantes casos cadamonarca escolhe um local distintopara última morada: Dinis I faz-sesepultar em Odivelas no mosteiro demonjas cistercienses, Afonso IVrenova a cabeceira da catedral deLisboa fazendo dela seu panteão eFernando I, último desta dinastia,escolhe o convento dos franciscanosde Santarém.4

No capítulo dois é estudado opanteão régio de Alcobaça, procuran-do-se analisar, sobretudo, os distintosespaços funerários existentes no mos-teiro (cemitério, galilé, claustro, Sala doCapítulo, igreja) destinados a dife-rentes grupos sociais (monges, leigosnobres, leigos não nobres, abades,família real, etc.). Do mesmo modo, oautor procura explicar o sentido damigração interna do panteão régiocomo micro-espaço funerário: primei-ro da galilé gótica até ao transepto,depois do transepto até ao panteãoneogótico (também conhecido como

Integrada na belíssima colecção«Monumentos/Monografias» publicadapelo IPPAR e enriquecida com deze-nas de fotografias de autor, realizadaspor Henrique Ruas, a obra em apreçoconstitui a primeira análise sistemática

do processo de formação e desenvol-vimento daquele que pode ser identi-ficado como o mais sério esforço deestabelecimento de um panteão régiodurante a primeira dinastia portuguesa.Retomando preocupações anteriores

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Tema que raramente tem sidoabordado numa dimensão ampla ealargada é o da baixela de prata, pra-taria e numismática romanas da Anti-guidade Tardia, questão de que seocupa o vol.V (1997), procurando sis-tematizar a produção das oficinas es-tatais ou privadas, sua localização geo-gráfica e tipologias decorativas. Osvols.VI e VII (1998 e 1999) abordam atemática dos governadores de provín-cia e dos bispos, sobretudo no domí-nio histórico mas que estuda tambéma arquitectura dos seus palácios eresidências.

Importantíssimo é o vol. VIII(2000), sobre o De Aedificiis, deProcópio, em que se contrapõem aspremissas e informações do textodeste autor da época de Justiniano(séc. VI) com os dados que actual-mente a arqueologia e a história daarte nos fornecem. Tendo em contaque hoje se reconhece a ocupação doSul do território português por tropas

bizantinas nos finais do séc.VI e prin-cípios do séc. VII, as reflexões aquidocumentadas são do maior interessepara a investigação no nosso territó-rio.

Finalmente, o vol. IX (2001), aotratar da Democratização da Culturana Antiguidade Tardia, levanta questõesepistemológicas fundamentais quetêm de servir de base à análise doscomportamentos ar tísticos nestaépoca: historiografia e conceptualiza-ção; novos vectores sociais – novosdestinatários; cristianização e demo-cratização da cultura; linguagens, re-presentações e produções artísticas.

Todos os números apresentamuma Varia de artigos extra-tema, umacrónica e um boletim crítico derecensões e de notas de leitura. Pelosconteúdos expostos, revela-se extre-mamente útil e fecundo o conheci-mento desta Revista.

M. Justino Maciel

SILVA, José Custódio Vieira – O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça.Lisboa: IPPAR, 2003.

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Lopo Pacheco (c.1349) existente nacabeceira da catedral lisboeta.

Conforme nos habituou em ou-tras obras quase sempre dedicadas àarquitectura gótica, seja ela religiosa5

ou civil,6 também aqui neste estudosobre o panteão alcobacense encon-tramos a marca de água das inves-tigações de Vieira da Silva: a primaziadada às formas; a abordagem de longaduração; a clareza da visão de con-junto; a capacidade de atender aosdetalhes mais ínfimos e relevantes dasobras de arte; a síntese incisiva ecristalina. Deste modo, o leitor tem aoseu dispor uma obra que analisa agénese e o desenvolvimento do pan-teão de Alcobaça com bastante luci-dez, explicando as razões associadas àmigração interna desse espaço sepul-cral, ao mesmo tempo que interpretae valoriza a linguagem plástica e ico-nográfica com que os vários monu-mentos funerários desse panteãoforam lavrados. Em suma, esta é uma

obra que interessa tanto ao leitorcomum como ao especialista emtemas medievais.

Luís U. Afonso

1 Vieira da Silva, J. C. «Da galilé à capela-mor:o percurso do espaço funerário naarquitectura gótica portuguesa», in O Fascíniodo Fim, Lisboa, Livros Horizonte, 1997, pp. 45-59.

2 Vieira da Silva, J. C. «Os túmulos de D. PedroI e de D. Inês de Castro em Alcobaça», inCister. Espaços, Territórios, Paisagens. Actas docolóquio internacional, 16-20 Junho de 1998,vol. II, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 367-374.

3 A progressão para sul ficaria mais explícita secontabilizássemos ainda a Sé de Braga, localde sepultamento dos progenitores deAfonso I.

4 Sancho II, como se sabe, foi obrigado arefugiar-se em Castela na sequência doconflito que o opôs a Afonso III, seu irmão.Morrendo no exílio, foi sepultado em Toledo.

5 Vieira da Silva, J. C. OTardo-Gótico em Portugal.A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, LivrosHorizonte, 1989.

6 Vieira da Silva, J. C. Paços Medievais Portu-gueses, Lisboa, IPPAR, 1995.

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Capela dos Túmulos). De acordo comVieira da Silva, a galilé existente naigreja de Alcobaça possuía umasimbologia soteriológica e litúrgicaparticularmente adaptada ao contex-to funerário determinado por Afon-so II, na medida em que todos osdomingos a procissão monástica para-va nesse local para comemorar a últi-ma aparição de Cristo aos apóstolosnum monte da Galileia. Desta forma, agalilé alcobacense estabelecia umarelação analógica com «a certeza daressurreição dos corpos dos justos nodia do Juízo Final e, a exemplo deCristo, da sua subida, por fim, aoscéus» (p. 17). Esta simbologia foireforçada, naturalmente, pelo facto deem Alcobaça não se sepultarem leigosno interior da igreja, mesmo quefossem reis. Aliás, foi apenas comDinis I, nos inícios do século XIV, queos monarcas passaram a ser sepulta-dos no interior das igrejas, pelo que agalilé perde o seu sentido simbólico,preferindo-se a certeza da proximi-dade às relíquias depositadas nosaltares e a protecção do interior dostemplos para deposição do corpo dosreais defuntos.

No capítulo terceiro, últimodesta obra, são estudados os váriosmonumentos funerários que forma-vam o panteão régio existente emAlcobaça. O destaque é dado, essen-cialmente, ao polémico túmulo de D.

Beatriz e aos fascinantes túmulos dePedro I e D. Inês de Castro, embora oautor também analise as várias arcasde feição românica que se encontramna chamada Capela dos Túmulos.Vieira da Silva estuda essas arcas deInfantes atribuindo-lhes uma cronolo-gia relativa e acrescentando novasleituras da decoração e iconografiaque apresentam. Em relação ao tú-mulo de D. Beatriz, Vieira da Silvadistancia-se da opinião de outrosautores, como Manuel Luís Real ouMário Barroca, que identificaram estetúmulo como sendo o de D. Urraca.Vieira da Silva apoia a sua propostatanto nas descrições realizadas naépoca moderna por Frei JerónimoRomán e por Frei Manuel de Figuei-redo, onde os dois túmulos são dife-renciados com clareza – o de D. Urra-ca é uma arca lisa sem qualquer deco-ração, enquanto que o de D. Beatriz éinteiramente esculpido –, como naintegração formal e serial dessetúmulo na escultura fúnebre portu-guesa dos século XIII e XIV, con-cluindo da impossibilidade dessa obrater sido realizada em torno de 1220.Finalmente, a análise dos túmulos dePedro e Inês é realizada, sobretudo, aonível da iconografia que apresentam eao nível das suas possíveis autorias,adiantando-se, por exemplo, as seme-lhanças existentes entre o jacente dePedro I e o jacente do túmulo de

PEREIRA, Paulo – Paisagens Arcaicas. Arquitecturas Sagradas. Idades do Ouro. InEnigmas: Lugares Mágicos de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004. Vols 1, 2, 3.

Com quatro volumes publicadosde um projecto de oito, poderá consi-derar-se prematuro reflectir sobreuma obra marcada por extrema par-ticularidade. Arrisco, no entanto, dei-xando claro que o que se segue nãoé uma recensão crítica mas uma no-

tícia, predominantemente sintética.O autor, Paulo Pereira (Lisboa,

1957), é um dos mais activos e poli-facetados historiador de arte portu-gueses, especialista da arte manuelina(a sua dissertação de mestrado,defendida na Faculdade de Ciências

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próximas e longínquas deste projecto.As primeiras relacionam-se com aleitura de Landscape and Memory deSimon Schama, 1995, que considerauma inovadora reflexão sobre “o lugardas paisagens (…) na tradição euro-peia e, até, na construção das naçõese das ideologias que as foram ser-vindo”, consubstanciando um tipo de“história nova” ou “história-ensaio”. Ofacto de, nesta obra, não haver qual-quer referência a Portugal lançou onosso autor numa inquietação-dese-jante porque os interesses ali manifes-tados sempre foram os seus. Atrevo--me a sintetizá-los: compreender/in-dagar de que modo os sítios deter-minam as arquitecturas e de quemodo uns e outros determinam e sãodeterminados, tanto na dimensão daHistória, como, mais profundamente,na da antropologia. Dito de outromodo, mais directo: é a alma dos sítiosque agudiza a aura das suas arqui-tecturas, são estas que a vão miste-riosamente construindo ou algunslugares da Terra possuem uma carga –cósmica? – de tal modo potente queas culturas humanas os elegemporque são sítios mágicos?

Estas questões, que alimentarame continuam a alimentar, uma vastaliteratura “especializada” – que o au-tor saborosamente evoca na Introdu-ção que venho seguindo – são, emgeral, desprezadas e perseguidas pelas

universidades, especialmente as por-tuguesas. No entanto, elas podempossuir capacidade propositiva quandose trata de indagar fenónemos cul-turais de grande complexidade, porexemplo os que se relacionam com aselaborações e reelaborações de umacultura nacional. Paulo Pereira coloca--se neste campo – evocando o magis-tério de Eduardo Lourenço e JoséMattoso na reflexão sobre a iden-tidade portuguesa ou, pelo menos, ostraços distintivos do seu imaginário –mas mantém portas abertas para a“Tradição Primordial que, quer quei-ramos quer não, fazem parte doconstructo ideológico do Ocidente”.Situa-se assim, como já foi dito, numlugar metodológico muito particularque lhe permite “entender os cruza-mentos entre a Tradição, o Folclore ea Arte”, sondar os símbolos e osmitos constitutivos da cultura portu-guesa e defender a espessura signi-ficante do imaginário que se afirmacomo “uma «outra realidade», imbri-cada na realidade tangível, mas nãomenos real do que esta”. Finalmente,o autor tem ainda outro objectivo:valorizar, e, desse modo contribuirpara salvaguardar, lugares e arquite-cturas de grande relevância patrimo-nial que “iluminam a paisagem” comose delas tivessem sempre feito parte.

Nos volumes até agora publi-cados, verifica-se, na minha opinião, a

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Sociais e Humanas da UniversidadeNova de Lisboa, intitulada A ObraSilvestre e a Esfera do Rei foi galar-doada, em 1991, com o prémio D.João de Castro) mas com rara capa-cidade de desenvolver trabalho emáreas muito diversificadas. Sem pre-tender traçar o seu curriculum, nãoposso deixar de referir que ele foi odirector da História da Arte Portuguesa(Círculo de Leitores, 1995, 3 volu-mes), coordenando uma vasta equipade especialistas e escrevendo os capí-tulos referentes ao manuelino e aoneo-manuelino, e que, em 1989, orga-nizou, com José Fernandes Pereira, oDicionário da Arte Barroca em Portugal,editado pela Presença, onde assinatambém diversos artigos. Paralela-mente, foi comissário de exposiçõesmemoráveis, sobretudo As tentaçõesde Bosch e o Eterno Retorno (Museu

Nacional de Arte Antiga, 1994), inda-gando uma genealogia para o surrea-lismo do século XX, no campo dasartes plásticas. Finalmente, refira-se oseu excepcional desempenho enquan-to Vice-Presidente do Instituto Por-tuguês do Património Arquitectónico(1995-2002), que fez dele um dosmais qualificados patrimonialistas por-tugueses, quer nos domínios daHistória e da Teoria, quer nos jurídicose administrativos, uns e outros ali-mentados por muitas obras lançadase não menos projectos propostos.

Enigmas. Lugares Mágicos de Por-tugal inscreve-se, com coerência, nopercurso que acabei de evocar, confir-mando o gosto do seu autor pelasgrandes sínteses e pela interdiscipli-naridade criativa, ambas alicerçadasnuma cultura vasta e actualizada, emtermos nacionais e internacionais, quetem indiscutível ordem académicamas, simultaneamente, se abre aterritórios de ruptura. Na verdade,estes “territórios de ruptura” consti-tuem agora o cerne e a particulari-dade da obra como o título logoassume, com o risco de a confundirno mar mediático da literatura (quasetoda sub-) sobre magia e fantástico.Confesso que foi este risco, provoca-toriamente enunciado, que me fez leros três volumes já publicados.

Paulo Pereira explica, na Intro-dução do primeiro volume, as raízes

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A propósito do recente cinquen-tenário da primeira e mais famosaUnité d’Habitation, construída por LeCorbusier em Marselha, a FondationLe Corbusier e a editora Birkhauseracabam de publicar mais um volumededicado à obra construída do arqui-tecto, neste caso, completando umasérie dedicada especialmente àsquestões da habitação. Os anteriores,todos publicados entre 1996 e 2000,debruçavam-se sobre as villas La RocheJeanneret (1923-25), o loteamento dePessac (1925-27), a villa Savoye(1928-31) e o imóvel do nº24 da ruaNungesser et Coli (1931-34). Querpelos muitos temas caros ao Movi-

mento Moderno e particularmente aLe Corbusier, quer pelas motivaçõescríticas presentes na Unité d’Habitationde Marselha, esta monografia ganhaum interesse maior dentro do con-junto, uma vez que, embora objectomaior da polémica dos últimos cin-quenta anos, o imóvel “appartientdésormais au panthéon des grandesarchitectures mondiales et atteste, sicela était encore nécessaire, de lavolonté de Le Corbusier de placer laquestion du logement au centre desquestions de l’architecture et inver-sement”. (p.6) Neste âmbito, talvez omais empenhado e original de todosos seus colegas envolvidos na “revolu-ção” da arquitectura moderna, o pró-prio arquitecto afirmava esta vontadeao escrever, pouco antes da sua mor-te, estas palavras: “Depuis cinquanteannées j’étudie le bonhomme ‘Homme’et sa femme et ses gosses. Unepréocupation m’a agité impérative-ment: introduire dans le foyer le sensdu sacré, faire du foyer le temple de lafamille.” (cit. p.7)

Jacques Sbriglio organiza o volumede forma aliciante. Depois de umabreve introdução justificativa, seguem--se os dois capítulos principais, dedica-

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larga predominância da visão e dotrabalho do historiador da arte. Talacontece, em primeiro lugar, pela or-ganização dos conteúdos em funçãode uma cronologia – o I vol. abran-gendo a chamada “Pré-História”, o II aIdade Média e o III a Época Moderna– mas também pelo respeito metodo-lógico pelos sucessivos períodos ar-tísticos, nomeadamente o Românico,o Gótico, o Manuelino, o Renascimentoe o Barroco, referenciados pelas suasobras maiores, há muito consagradaspor gerações de historiadores. Porisso, “Os enigmas” que envolverãoestes monumentos nem sempre sãoclaros. O que pode conduzir a estaobservação: afinal, Paulo Pereira fezuma História da Arquitectura por-tuguesa, com particular ênfase nassuas articulações produtivas (físicas esimbólicas) com a paisagem, introdu-zindo, em alguns casos, referências auma “literatura esotérica” que, porrazões relativamente alheias à Históriada Arte, também se ocupou desseslugares. Acresce que, em várias situa-ções, por exemplo, na Baixa pomba-lina (III vol.), o autor se limita mesmoa citar os estudos que afirmam o seu“traçado hermético”, sem tomar parti-do, nem sequer em termos de reflexão.

Não se pense que esta atitudede prudência controlada diminui ointeresse da obra. Está bem paginada,apresenta um número considerável

de imagens cuja qualidade média éelevada, é de fácil consulta porque seorganiza por entradas temáticas carac-terizadoras dos objectos, das conjun-turas e das problemáticas que reme-tem de umas para outras. A escrita éfluente, atractiva e irreverente, asbibliografias especializadas actualizadís-simas. Trata-se assim de uma Históriada Arquitectura generalista, capaz decativar e interessar públicos nãoespecializados, o que não é poucotendo em conta os constrangimentosda cultura portuguesa. Para os espe-cialistas, há, nos melhores capítulos –que são vários – muitos reptos parareflexão, nomeadamente relacionadoscom a elaboração de iconografias ar-quitectónicas, ecoando e apropriandopráticas oriundas de outros camposartísticos – da pintura, da escultura, doazulejo, da ourivesaria ou da talha –que valorizam as ainda mal designadasartes decorativas, facto que o autorconsidera fundamental no inventáriodas particularidades da cultura artís-tica portuguesa.

Resta esperar pelos próximosvolumes que abandonarão a organiza-ção cronológica, em proveito de pro-missoras e heterodoxas organizaçõestemáticas. Será então o momento deavaliar o conjunto da obra que agoraquis apenas noticiar como boa nova.

Raquel Henriques da Silva

SBRIGLIO, Jacques – Le Corbusier: L’Unité d’habitation de Marseille – The Unitéd’Habitation in Marseilles. Paris: Fondation Le Corbusier; Basileia, Boston, Berlin:Birkhauser Publishers, 2004.

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aplicação do princípio de ruas inte-riores, ao nível dos 3º e 4º pisos doedifício e o sistema de articulação dosapartamentos, pensado para ummáximo aproveitamento do espaço(os apartamentos-tipo terão apenas95m2), mas também para cumprircritérios de optimização na captaçãoda luz ou na multiplicidade de pontosde vista (as loggias com os seusquebra-sóis, a utilização do mezanino,etc.). Finalmente, o aproveitamentodo terraço-cobertura que, comple-tando o conjunto de estruturas deuso comum, próprias ao conceito deUnité, traz também soluções arqui-tectónicas diferentes do corpo doedifício, com uma força plásticaevidente, que veremos, logo depois,desenvolvidas magistralmente emRonchamp. Com ele a Unité fazconfrontar dois universos:”l’universdes formes régulières, représenté parla pureté du parallélépipède quiaccueille la répétition des apparte-ments transversants, et l’univers desformes libres, représenté par les agen-cements du rez-de-chaussée et plusparticulièrement du toit terrasse:C’est de la complémentarité contra-dictoire de ces deux univers que naîttoute la poesie de ce bâtiment”(p. 110).

O segundo capítulo dedicado àobra de Marselha contém igualmentemuitos motivos de leitura. Aqui, J.

Sbriglio traça uma história da enco-menda, recenseando um considerávelconjunto de documentos que, normal-mente, é o mais esquecido pelos his-toriadores da arquitectura. Noentanto, parece-nos pertinente queele se faça para qualquer objecto e,com maioria de razões, quando setrata do edifício em questão. Ocontexto concreto, político, social eeconómico em que surge e se leva acabo um projecto com estascaracterísticas afigura-se-nos incon-tornável, por mais que não seja paranos permitir uma correcta pers-pectiva crítica. Agora ficamos aconhecer a conjuntura municipal enacional que levou à encomenda, bemcomo, todas as vicissitudes, projec-tuais, financeiras, etc., que percorre-ram o processo de construção, desdea encomenda no verão de 1945 até àsua inauguração em Agosto de 1952.

O terceiro capítulo, a que oautor chama “L’après ‘Marseille’, lesquatre autres unités d’habitation”,completa o volume fazendo, de formamuito mais sintética, uma visita àsoutras quatro Unités que, em conse-quência do projecto de Marselha,saíram do atelier de Le Corbusier : aUnité d’habitation de Rezé (1953-55),de Berlim (1957), de Briey en Forêt(1956-63) e de Firminy (1959-67).Talcomo nos dois capítulos anteriores, otexto é acompanhado por um con-

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dos à Unité de Marselha. O primeiro,propõe um percurso de visita, extrema-mente minucioso ao edifício cons-truído, desde o parque envolvente atéao aproveitamento do terraço-cober-tura. Pelo meio, ficam inúmerasreferências, quer históricas, querarquitectónicas, da maior relevância.No primeiro caso está, por exemplo,o facto de que, Marselha, apesar dasua longa história, só na segundametade do século XX ter vistoconstruir duas das suas mais notáveisobras de urbanismo e arquitectura: areconstrução da zona do Vieux-Port,que se deve principalmente aos ar-quitectos Auguste Perret e FernandPouillon e a Unité d’habitation de LeCorbusier. É precisamente no ime-diato pós segunda guerra que seencontram reunidas as condições devontade e necessidade que permiti-ram levar a cabo experiências novasno âmbito do alojamento que supe-rassem dificuldades sentidas ao longode décadas. É neste contexto quesurge a proposta de Le Corbusier,com um edifício protótipo de carácterexperimental, onde o arquitecto en-saia muitas das suas teorias, forjadasao longo de mais de vinte anos. Aquientramos no segundo grupo de refe-rências, de que atrás falámos, que seprendem tanto com os princípioscomuns do Movimento Modernopresentes nesta obra como também,

e sobretudo, com as ideias recorrentesdo próprio arquitecto: o abandono doquarteirão tradicional pela escolha deuma implantação que esquece alógica da rua, permitindo o agencia-mento dum parque envolvente, ondeencontramos a demonstração doprincípio de Le Corbusier que melhornos ajuda a compreender o seuconceito de Cité Jardin Verticale: “lesmatériaux de l’urbanisme sont: lesoleil, le ciel, les arbres, l’acier, leciment, dans cet ordre et cettehierarchie” (cit. p.43). Outra referênciainteressante é a que poderíamoschamar de glorificação do Modulor,insculpido várias vezes no exterior doedifício. Sistema métrico que combinaas medidas da secção de ouro com asmedidas humanas, a pesquisa do Mo-dulor está completamente concluídaprecisamente em 1945, no momentoem que começam os estudos da Unitéde Marselha.

Depois de analisar cuidadosa-mente a lógica do desenho das fa-chadas e do sistema de pilotis, quesuportam o edifício, permitindo aconstrução de um solo artificial a maisde nove metros do terreno, Sbriglioconvida-nos a uma visita ao interiordo imóvel, descrevendo todos os seuselementos e chamando a nossa aten-ção para as inúmeras soluções origi-nais. Destacamos apenas duas quenos parecem mais interessantes: a

Page 8: Recensões · 2014. 7. 10. · Recensões 149 Lopo Pacheco (c.1349) existente na cabeceira da catedral lisboeta. Conforme nos habituou em ou-tras obras quase sempre dedicadas à arquitectura

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junto de documentação gráfica dequalidade e, sobretudo, em grandeparte original, já que o autor se servedo rico acervo da Fondation LeCorbusier. O que acabamos de dizer étambém verdadeiro para a utilizaçãode outro tipo de fontes, bem comopara as numerosas citações dopróprio arquitecto feitas de docu-mentos menos conhecidos.

O volume termina com umaconclusão em forma de balanço a queJ. Sbriglio acrescenta em sub-título “Lafin d’un monde”. Sem que nuncatenha deixado de aproveitar as boasocasiões para tecer reflexões críticas,quer estéticas quer históricas, aolongo do texto, o autor faz aqui umasúmula bem conseguida, tendo emconta a crítica mais importante à obrade Le Corbusier e, especialmente, aoconceito de Unité d’habitation, masnão deixando de defender a sua

opinião. Grande admirador do mestresuíço, prefere lembrar as qualidadesinegáveis do arquitecto, a sua cora-gem de visionário, a sua generosidadeou a sua persistência, e resgatar daprecipitação de alguma crítica umaobra fundamental para a arquitecturado século XX. A sua postura é a deum historiador, capaz de afirmar assuas preferências mas sem perder porisso a perspectiva do tempo, acei-tando a justeza da crítica, compreen-dendo as descontinuidades e chaman-do a nossa atenção para as questõesque, no campo da arquitectura e dourbanismo, foram levantadas por LeCorbusier e que continuam a orientaros melhores projectos actuais. E, defacto, para melhor compreendermosessas questões, as Unités são incon-tornáveis.

Maria da Graça Briz

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