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RECENSÕES E NOTÍCIAS DE LIVROS 28

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RECENSÕES

E NOTÍCIAS DE LIVROS

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EURIPIDES, Hipólito. Tradução do grego, introdução e notas de F R E ­

DERICO LOURENçO. Lisboa, colecção Mare nostrum, Edições

Colibri (Faculdade de Letras de Lisboa), 1993, 78 p .

Com a presente versão do Hipólito de Euripides inicia-se em boa hora a colec­ção Mare Nostrum das Edições Colibri, dirigida pelo Prof. Victor Jabouille. O começo não podia ser mais auspicioso. Não apenas pela apresentação de uma das obras maiores da tragédia grega — que ainda hoje, em plena era de ficção científica e de «realidade virtual», nos aterra e nos confunde! — como pela ousada e sedutora pro­posta de linguagem trágica a que F. Lourenço se abalança, nos caminhos da tra­dução.

A complementar o propósito expresso pelo director de Mare Nostrum,. de «divulgar as obras clássicas de autores gregos e latinos, tornando-os acessíveis não só ao público universitáiio como ao não especializado», vem este primeiro texto antecedido de uma Introdução, sintética mas utilíssima, dividida em três partes: a pri­meira, «Considerações preliminares», refere aspectos genéricos do corpus euripi-diano e da sua recepção epocal; a segunda, «As duas versões do Hipólito», esta­belece o confronto (possível...) entre os dois Hipólitos, détendo-se num alargado resumo crítico da versão que até nós chegou e duas suas vertentes interpretativas; a terceira, «O mito», expõe o complexo problema do mito, ou melhor, dos mitos presentes no Hipólito, perfilhando no geral as teses do Prof. Burkert, porventura a autoridade mais conceituada nesta matéria.

O conjunto da Introdução, se nem sempre colhe no pormenor (discutível ver em Fedra «uma figura de considerável dignidade» — p. 12 —, já que a vingança é um dos móbeis do seu suicídio e da subsequente carta de acusação a Hipólito), cons­titui indubitavelmente uma apresentação eficaz e cheia de interesse, quer no âmbito informativo quer no interpretativo. De reter, em especial, como aspectos inovadores na análise proposta, o aliciante confronto entre o dramaturgo de Salamina e o músico Richard Strauss, ou a fina exploração dos fios da peça como «drama de linguagem» (pp. 10-11 e 13-14).

Inovador é também o labor da tradução, a que não faltam subtis contextua-lidades com a literatura moderna (p. ex., «pensar racionalmente dói», para o grego Tò ôQBOVOBO.1 yvéfirp) ôôvvã, v. 246, p. 28 — numa clara alusão à «dor de pensar» pessoana). O aspecto mais visível, para o leitor comum, será talvez o compromisso explícito entre o tom «sublime» e o «coloquial», que se salda numa linguagem poé­tica requintada, musical e rica de potencialidades expressivas. Compromisso «ousado», sobretudo possível pela subtileza expressa no manejo dos níveis de lín­gua e da sua adaptação às personagens: da coloração coloquial das falas da ama e do servo ao tom mais elevado de Fedra ou Hipólito, e à ambivalência rebuscadamente poética (sem exageros ...) dos coros, a presente versão cola-se ao texto grego com uma natural elegância e maleabilidade, que dão um realce, por assim dizer, cinemá­tico aos contrastes de personagens, sentimentos e situações.

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Noutro plano, mais especializado, é evidenciável a correcção de equivalências vocabulares («Referência» para Alôáç no v. 78, p. 21 ; «interferência divina» para ãxr] no v. 241, p. 28) ou de expressões como «não estou interessado em deuses que se limitam a taumaturgias nocturnas» onde o grego tem otôslç fi'âgéanei vvxri Bav/J,aoTÒç Qsœv, a que podemos juntar (entre muitas outras!) a sugestão precisa de «eclipsar a vida» para â/iavooï Çóav no n. 816 («Quem, infeliz, é que te fez eclipsar a vida?», p. 52).

Nem sempre, é certo, as ousadias de adaptação estilística (sobretudo voca­bular) conduzem aos efeitos mais frutuosos: inadequado afigura-se-rtos, por exem­plo, o termo «descalabro» com que, na actual versão, Fedra define a situação criada pela aia, e que o grego rà vvv nsTiTwxóia (v. 718, cf. p. 48) não justifica; igual estra­nheza poderá sentir-se quando, num contexto plenamente trágico, ouvimos dizer a Hipólito que está «siderado» (jtÉTtArjy/mi) ou Teseu perguntar se a vida lhe «pilhou» (avXãrai, v. 799) algum dos filhos. Estes e outros deslizes não empanam, desneces­sário será dizer, o merecimento de uma versão meditada e corajosa, avessa à pro­sódia rígida a que a generalidade dos tradutores clássicos nos habituou e que, além do mais, proporciona belos momentos de convívio estético e literário.

No tocante à bibliografia e às notas, discretas mas esclarecedoras, que se repar­tem pela Introdução e pelo texto, há a notar ainda uma faceta deveras simpática: não apenas o seu carácter selectivo, que poupa o leitor a grandes excursos e cita­ções, como a preocupação óbvia de incluir, numa dose significativa, referências a estudos portugueses onde eles se revelam pertinentes. Só assim, na conjugação de esforços para combater a proverbial atrofia do nosso sistema investigativo, real­çando e aprofundando sendas já de algum modo desbravadas entre nós, se logrará impor os estudos clássicos em Portugal como uma tradição e um valor próprio. Ainda nesse aspecto de «militância cívica» o trabalho de F. Lourenço é modelar — e um exemplo a seguir para os futuros colaboradores da colecção Mare Nostrum que, após a extinção do INIC (responsável pelo conjunto mais válido de divulgação de autores clássicos) a Faculdade de Letras de Lisboa decidiu oportunamente inau­gurar.

MARIA TERESA SCHIAPPA DE AZEVEDO

AMPARO GAOS SCHMIDT, Cicerón y la elocuencia. México, Uníversidad

Nacional "Autónoma de México, 1993, 273 pp.

A Retórica, disciplina onde Cícero assume importância inegável, tem vindo a a merecer particular atenção nos últimos anos. Não surpreende, por isso, que a elo­quência ciceroniana suscite o interesse dos estudiosos.

Este livro de Amparo Gaos Schmidt surge dentro desse contexto; apesar disso, melhor lhe caberia, talvez, o título de «Cícero e a razão» ou «Cícero e a racionalidade» ou, para ser mais preciso, «A racionalidade da eloquência ciceroniana». Compro-vam-no, desde logo, os títulos dos diversos capítulos : «El racional mundo ciceroniano» (cap. II); «La naturaleza y el poderio de la razón» (cap. Ill); «La razón, fuente de

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la política ciceroniana» (III.l); «La razón, fuente de la elocuencia ciceroniana» (in.2); «La razón, fuente de la obra literária ciceroniana» (III.3).

Verdade seja que uma tal atitude em nada desmerece o valor do trabalho de A. G. Schmidt, mais determinado em marcar a relação entre os textos que exprimem o pensamento filosófico do Arpinate e a sua formação retórica, do que em analisar os resultados da sua produção retórica, nomeadamente os discursos.

Não são estes, com efeito, que estão na base da lúcida análise que ao longo do livro se vai fazendo, mas sim os vários produtos da reflexão filosófica, transversal­mente percorridos pelo estudo de A. G. S. As simples citações o demonstram: as obras mencionadas em rodapé são, quase exclusivamente, os tratados filosóficos.

A ambas as vertentes da acção de Cícero — a retórica e a filosofia — subjaz o modo «magistral» como maneja «la más noble y poderosa de las armas, la única digna de alta condición con que fue generado: la palabra» (p. 64). É através da pala­vra que se manifesta a imprescindível supremacia da razão sobre o instinto (p. 65).

O objectivo do trabalho parece ser, portanto, a afirmação do modo como a eloquência de Cícero, exercida com especial mestria, permite ordenar o seu pensa­mento alravés de toda a obra que produziu.

Foi o primado da eloquência que lhe orientou a actividade política, erguida ao papel de «máxima conciliadora de la sociedad humana» (p. 162); ela subjaz ao exer­cício das mais variadas disciplinas de pensamento (pp. 170-171); ela determinou o ecletismo de Cícero, na medida em que a sua preponderância era incompatível, seja com as teses epicuristas (p. 173), seja com os ideais estóicos (p. 174).

Mesmo na fase final da existência, quando se entregou, quase por inteiro, à reflexão e à escrita, só o comprovado domínio da eloquência — e da razão que lhe está subjacente — permitiram uma tão vasta e tão célere produção no domínio da filosofia (p. 222). Impossibilitado de servir a pátria no foro, Cícero superava as adver­sidades do presente através da palavra escrita e conferia a esta um alcance de todo em todo semelhante ao que, antes, lograva obter através da palavra falada (p. 226).

Em suma, a eloquência ao serviço da razão acaba por se converter em mais uma prova do ecletismo ciceroniano.

Poderá o livro de A. G. Schmidt pecar por não acolher com a devida atenção os mais recentes contributos para o estudo da retórica; poderá pecar ainda por não conceder à epistolografia um lugar de justificado relevo nesta sua análise que, assim, acaba por resultar um tanto lacunar; mas é inquestionavelmente unia lúcida teflexão sobie o peso da formação retórica do Arpinate na configuração de toda a sua acti­vidade de pensador. E, nesse sentido, merece ser saudado.

CARLOS ASCENSO ANDRé

VENANCI FORTUNAT, Poesies, vol. I, Llibres I i II. Text révisât i traducció

de JOSEP PLA I â G U L L ó , Barcelona, Fundació Bernât Metge, 1992,

207 p .

Venâncio Fortunato, de seu nome latino Venantius Honorius Clementianus Fortunatus, poeta cristão, nascido em Duplavilis, Treviso, no Véneto italiano, na primeira metade do século vi, fez os seus estudos em Ravena, a capital que con-

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centrava toda a tradição cultural do Ocidente. Paulo Diácono, na sua Historia Longobardorum (11.13) a ele se refere como educado e formado em Ravena, nos estudos de gramática, de retórica e de métrica, donde saiu bem instruído nestas matérias. No entanto, com grande humildade, é ele próprio que nos dá testemunho da modéstia do seu saber, na Vita Martini, a biografia de S. Martinho de Tours (1.26-35), de sua autoria. A peregrinação que empreendeu ao túmulo de S. Martinho de Tours tornou-o íntimo de S. Gregório, bispo desta cidade do Loire, que foi o responsável pela recolha e fixação escrita da produção literária de Venâncio Fortu­nato. Este, de trovador errante, como já foi considerado, ascende a bispo de Poitiers.

Ao desempenho do seu ministério episcopal se iigam as composições poéticas destinadas aos ofícios divinos. O culto da Santa Cruz e a devoção e culto à Virgem Maria são divulgados, na tradição cristã, através dos seus hinos. Entre eles, o hino Vexilla regis prodeunt (II. 6) e o Pange, lingua, gloriosi proelium certaminis (II.2) ambos em louvor da Santa Cruz (p. 181-182 e 175-176) e o Quem terra, pontus, aethera (VIII. 4), em louvor de Nossa Senhora, muito provavelmente também da sua autoria. Estes hinos figuraram na liturgia e nos ofícios religiosos durante séculos, pelo que deixaram marcas nas literaturas europeias, desde a poesia anglo-saxónica, à Divina comédia de Dante e à obra dramática de Gil Vicente. Refiro-me, no que toca ao nosso dramaturgo, ao Auto de Mofina Mendes, ao Auto pastoril português e ao Auto da Alma.

Venâncio Fortunato, pela temática descritiva, simbolismo e espiritualidade da sua obra pode ser considerado um expoente da latinidade entre os bárbaros e, a par de Ausónio e de Prudêncio, nos séculos iv e v respectivamente, um dos poetas medievais mais significativos. Assim se justifica a atenção que tem merecido dos estudiosos modernos: além desta edição comentada de Joseph Pia i Agulló, sai a lume no mesmo ano, sobre este autor a obra de J. W. George, Venantius Fortunatus: A Latin poet in Merovingian Gaul (Oxford, 1992).

A introduzir a edição crítica dos dois primeiros livros dos Carminum libri undecim de Venâncio Fortunato, Joseph Pia i Agulló apresenta, em catalão, uma grande riqueza de dados sobre aquele que costuma ser apontado como o último representante da poesia latina na Gáiia rnerovíngea. Compõe-se esta introdução de diversos capítulos (p. 9-54): 1. Infância e família de V. Fortunato; 2. Estudos em Ravena; 3. Precedentes da viagem à Gáíia; 4. A viagem à Gália; 5. Os lugares visi­tados por Fortunato; 6. O túmulo de S. Martinho; 7. Actividades e visitas; 8. Ami­zades; 9. Humildade de Venâncio Fortunato; 10. Bispo de Poitiers; 11. Juízos da posteridade sobre Fortunato; 12. A língua de Fortunato; 13. A métrica de Fortu­nato; 14. A obra de Venâncio Fortunato: poética, em prosa e espúria; 15. Lugar de Fortunato na História da Literatura; 16. Venâncio Fortunato, poeta de circuns­tância; 17. Carácter epigráfico de grande parte da obra de Venâncio Fortunato; 18. Os clássicos na obra de Venâncio Fortunato. Imitadores posteriores; 19. Fortuna da obra de Fortunato; 20. Cronologia das obras de Fortunato; 21. Problemas de autenticidade; 22. Os manuscritos; 23. Edições, antologias e traduções; 24. Agra­decimentos.

Segue-se uma vasta e especializada bibliografia, que nos dá só por si a dimen­são e profundidade dos domínios abordados. Desde o pormenor biográfico ao estudo da obra de Venâncio Fortunato, do ponto de vista textual, filológico e cul­tural, sem esquecer o domínio da métrica, a presente edição de Josep Pia impõe-se pelo rigor da investigação sobre esta figura aliciante das letras medievais. Venâncio Fortunato, além de ter escrito biografias de santos, cantou os reis merovíngios, em

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panegíricos e epitalâmios, cultivou a poesia descritiva e elegíaca, a poesia epigráfica, destinada a ser gravada, sobretudo em igrejas, e ainda hinos e cânticos, que conhe­ceram grande divulgação. Os seus modelos privilegiados foram Virgílio e Ovídio, apesar de conhecer e citar Catulo, Horácio, Propércio, Claudiano, Marcial, Juvenal, Lucano, Petrónio, Estácio.

Surge, por fim, a edição crítica dos dois primeiros livros dos Carmina, com um rigoroso aparato crítico, acompanhada da tradução catalã e de desenvolvidos comentários ao testo (p. 73-204). E ainda um índice geral.

O testemunho do prazer no trabalho gratificante (p. 54) foi com esta obra, no valor científico e cultural que representa, o último legado que o nosso Bom Amigo Doutor Pia nos deixou, antes de partir para o Pai.

Tudo passa, só os valores permanecem...

NAIR DE NAZARé CASTRO SOARES

Consulta de un jurisconsulto antiguo. Version de Aurélia Vargas Valencia.

México, Universidade Autónoma de México, 1991, XXVII + 64 págs.

Numa altura em que a atenção por textos antigos, do século xvi ou medievais, tem como alvo principal textos literários ou de importância particular no domínio da História, a edição de um velho documento de direito romano não pode deixar de suscitar aplauso.

Neste caso, deve ainda sublinhar-se o facto de a Consultatif) ueteris cuiusdam iurisconsulti, de autor desconhecido, presumivelmente do século vi, ter merecido a atenção do jurista francês quinhentista J. Cujas, o que permite estabelecer uma liga­ção, desde logo, entre duas épocas distintas e igualmente significativas — a da redac­ção, tempo do chamado Direito Romano Vulgar, e a da primeira recepção, se assim pode dizer-se, a sugerir que, em matéria de direito, o século xvi propendia para tempos não muito apreciados pelos humanistas.

A edição adoptada é a de Kruger (1878-1891), considerada a de maior rigor, elaborada a partir das quatro edições de J. Cujas.

É uma opção da tradutora, que se respeita. Talvez não fosse despiciendo, no entanto, ter em atenção o texto editado pelo próprio Cujas ou, no mínimo, destacar os passos em que dele se afasta o editor do séc. xix.

Quanto ao conteúdo, por certo de grande interesse para a História do Direito e da Jurisprudência, não cabe nestas páginas analisá-lo em pormenor. São nove títu­los, aliás dez, cada um dos quais com resposta a um problema jurídico concreto.

Uma palavra para a tradução. Verifica-se o objectivo de adequar a expressão à língua castelhana, para que o leitor menos prevenido não seja induzido em erro {grave, sobretudo por se tratar de matéria de direito) por uma expressão latina que -os tempos adulteraram. Esse é um princípio louvável.

Já merece alguma discordância o facto de se não ter optado pela normalização ortográfica, de acordo com a prática mais recente na fixação de textos latinos. Uma

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certa anarquia reinante neste domínio não beneficia, antes pelo contrário, as letras clássicas e quantos a elas ainda se vão dedicando.

Discutível será, enfim, a metodologia: proceder, primeiro, à tradução literal, para, mais tarde, na hora do labor limae, porventura longe do texto original, fazer as adaptações, pode desenraizar do contexto expressões que só dentro dele adquirem sentido. Essa é, porém, matéria que se deixa aos especialistas da jurisprudência.

CARLOS ASCENSO A N D R é

VICTOR JABOUILLE, JOSé PEDRO SERRA, FREDERICO L O U R E N ç O , PAULO

ALBERTO, FERNANDO LEMOS, Mito e literatura. Lisboa, Editorial

Inquérito, 1993, 120 págs.

Pode afirmar-se, desde já, que este trabalho colectivo pretende responder a um desafio a todos os títulos louvável : «insere-se num projecto mais geral de estudo de aspectos característicos e definidores da permanência e da recepção da cultura clássica» (da «Introdução», p. 8). É, portanto, uma visão assumidamente parcelar.

No estudo inicial («Mito e literatura: algumas considerações acerca da perma­nência da mitologia clássica na literatura ocidental»), Victor Jabouille sublinha o centro da questão: a sociedade moderna tende para o embrutecimento, a maquiniza-ção, no sorvedouro vertiginoso de um tempo cujas rédeas somos incapazes de dominar.

O mito poderá, assim, surgir como «suporte artístico natural» a uma sociedade que precisa urgentemente de vislumbrar os caminhos da evasão.

O trabalho de V. Jabouille, a marcar as balizas do percurso que norteará todo o livro, organiza-se em torno de algumas ideias essenciais: a) a mitologia como fundo temático da literatura ocidental (visão diacrónica dos vários monumentos literários da Antiguidade, de Homero a Virgílio) ; b) os mitos que dão retrato à Antiguidade che­gam até nós pela dupla acção articulada da sua materialização artística e da memória colectiva (talvez um dos aspectos mais importantes do estudo); c) nesse processo, a arte da palavra e a arte da «forma plástica» são determinantes.

Chegado à palavra, V. Jabouille detém-se largamente naquele que é o objec­tivo do seu trabalho, uma vez que assume, sem ambiguidades, que «a literatura é, sem dúvida, o grande meio de divulgação do mito» (p. 20) ; é, além disso, õ seu modo de cristalização — com reflexos privilegiados a nível do modo dramático (ou não fora verdade que os grandes mitos alcançaram a sua dimensão na tragédia grega), mas também do lírico.

Sem que a pluralidade de autores determine quebra de ritmo ou de progressão, José Pedro Serra, em «Da fidelidade a Penélope ou do amor à viagem», retoma as sugestões do estudo anterior e lê, a partir de algumas delas, um dos primeiros textos que à humanidade legaram os seus mitos : a Odisseia. Herói oscilante entre a fideli­dade à pátria,;-a fidelidade a Penélope e — porque não? — a fidelidade à viagem,

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Ulisses ê confrontado com as mulheres que lhe desafiaram a memória das raízes. Retido por Circe, por Calipso, até por Nausíca, em suma, por três modelos de uma perfeição inatingida, o herói de ítaca persiste no seu regresso. Porquê?

J. P. Serra analisa, assim, o mito da fidelidade a Penélope no que tem de deter­minante na relação entre Ulisses e as mulheres que lhe marcaram a viagem, sem esquecer as próprias Sereias. O eros, deste modo, assume força inquestionável na condução das personagens. Um eros eivado de memória, desde logo com Circe: «Se parte, se abandona Circe, aliás acordado pelos companheiros, é porque na sombra do desejável corpo da deusa se vai desenhando, por esterilização, a ruína desse amor e se vai erguendo a antiga saudade que Penélope despertara nele» (p. 55). Assim será com as Sereias, que Ulisses leva de vencida (para, dessa forma, lhes ditar a sentença de morte) ; assim será com Calipso, mesmo que, para tanto, o herói despreze a imortali­dade; assim será com Nausícaa, imagem da beleza que eleva a mulher ao estatuto de divindade.

O herói da Odisseia vive, portanto, «fragmentos» de uma viagem onde o apelo ao regresso é a marca indelével da fidelidade, desde o instante da partida. Quem sabe se antes dele?

De feição substancialmente distinta é o estudo de Frederico Lourenço sobre «O mito dos três géneros no «Banquete» de Platão: perspectivas para uma leitura integrada do diálogo». A concepção mítica subjacente aos dois estudos iniciais tende, aqui, a ceder lugar a uma apreciação própria de um texto filosófico que ainda hoje se questiona e nos questiona.

Consciente das dificuldades criadas pelo diálogo platónico, Frederico Lourenço ousa propor pistas de leitura, em busca de uma dimensão de amor, mas não sugerir interpretações pretensamente infalíveis. E esse é um excelente ponto de partida para uma indagação onde a consciência de leitor actual, enraizado no mundo de hoje, é uma constante.

Esta leitura dos sucessivos discursos sobre o amor, centro do Banquete, pode ser apodada de controversa. Mas não visa mais do que aproximar, por etapas, do objec­tivo de todo o estudo : a apresentação do mito dos três géneros, abordado por Aris­tófanes no Banquete. Um tema de larga actualidade (e, por isso, decerto, o merecido lugar neste livro); o género «andrógino», de facto, acaba por interrogar o homem moderno em relação ao significado e lugar do erotismo nos dias de hoje.

Breves palavras para o estudo de Paulo F. Alberto, sobre «Aspectos da utili­zação da mitologia clássica nas Historiae aduersum paganos de Orósio». Ao abordar a obra de Orósio (séc. v), no que ela tem de reflexo da mitologia antiga, o autor, deliberadamente ou não, tem o condão de demonstrar que a Idade Média não foi, ao contrário do que se apregoa, insensível aos valores culturais da Antiguidade. Ainda que tenhamos em conta que o objectivo de Orósio é subtil — provar que também havia modelos condenáveis nos tempos do paganismo, com incestos, parricí-dios, fratricídios, etc. —, ainda assim, o universo cultural em que nascem as Historiae não é imune à cultura clássica.

Uma palavra final para o breve estudo de Fernando Lemos sobre «Inscriptions de Fernando Pessoa: a ordenação do espaço pelo poeta».

Ricardo Reis ó o heterónimo pessoano de mais sólida formação clássica. Assim o quis o criador dos heterónimos. Surpreende, pois, este olhar atento sobre Fernando Pessoa ele-próprio, o poeta em língua inglesa. A despeito da insistência, de aceitação pouco pacífica, em pistas de leitura marcadas pela «aritmosofia», as marcas subtis de união entre alguns poemas clássicos e as Inscriptions, no tocante à organização do

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espaço, são postas em evidência. Simples coincidência? É possível. Mas, em Pessoa, até o impossível acontece.

É, em resumo, uma obra a reter, se outros motivos não houvera (e há), pela forma como estabelece a ponte entre a Antiguidade e os nossos dias. Verdade seja que o homem raro logra sobreviver sem os seus mitos. Vindos de longe, quase sempre.

CARLOS ASCENSO ANDRé

EVELIO MORENO CHUMILLAS, Las ciudades idéales del sigh XVI, intro-

ducción, traduction y notas, Barcelona, Ed. Sendai, 1991, 285 p .

Esta obra é o resultado da investigação levada a cabo pelo autor, por altura da sua dissertação de doutoramento em Filosofia pela Universidade de Barcelona, orientada pelo Prof. José Manuel Bermudo i Ávilla, responsável agora pela colec­ção em que se integra a presente edição e pelo erudito prefácio que a introduz (p. 9-21).

Como tive oportunidade de acentuar na minha intervenção como arguente da sua dissertação de doutoramento, Evelio Moreno distingue-se pelo estilo ima-gético e sugestivo, no que toca à interpretação do fenómeno político-ideológico quinhentista. Sem se deixar induzir no erro de ver e apreciar a realidade de há mais de quatrocentos anos com os olhos do historiador moderno, oferece-nos, através do seu saber filosófico e da sua criteriosa intuição estética e análise crítica, um qua­dro perfeito dos sentimentos e aspirações vividos pelos autores das Cidades Ideais italianas, agora em tradução espanhola: Francesco Patrizi da Cherso, en La ciudad feliz (1551) j.Anton Francesco Doni, El mundo cuerdo y loco (1552); Francesco Pucci, Forma de una república católica (1581); Ludovico Agostini, La república Imaginária (1588); Ludovico Zùccolo, La república de Evandria (1625).

Recolhe a presente obra a primeira tradução, do italiano em espanhol, de cinco cidades ideais do século xvi — a inclusão da cidade ideal de Zùccolo nesta colectânea obedece, segundo Evelio Moreno, ao teor do seu pensamento político, que se desenvolve todo à sombra doutrinal do Concílio de Trento. Aliás, adverte, não faz mais do que seguir autoridades na matéria, como L. Firpo, R. De Mattei, Meinecke (p. 253).

Decorridos três anos após a sessão inaugural do concílio tridentino, em 1548, surge em Veneza a tradução da Utopia de Tomás Moro. feita por Ortensio Landi — conhecido autor de. uma obra Paradossi (a que acrescenta uma Confutatione dei libro de Paradossi), com grande voga,, sobretudo a.partir da versão francesa de Charles Estienne —y em colaboração com o então editor arruinado Anton Fran­cesco. Doni. . . . . . .

O. impacto desta tradução da obra de Moro viria ocasionar uma tomada de posição de diversos autores italianos face à sua mensagem, quer para a copiar ou desenvolver, quer para a. refutar no todo ou em parte. De qualquer modo,

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com estas obras assistimos a todo um processo de evolução, a partir da Utopia, significativo para a definição da história do pensamento político moderno.

À colaboração de Doni nesta versão italiana se deve talvez o seu interesse pela literatura do género, onde incluirá o seu nome, com a obra / mondi celesti, terrestri et infemali, de gli accademici pellegrini, que descreve a organização de um estado ideal. Nesta sátira extravagante em forma de diálogo se insere El mundo cuerdo y loco, que abre esta colectânea de Evelio Moreno (p. 23-50). Anton Fran­cesco Doni, florentino «vivaz, rebelde, hereje, imoralista» (p. 27), autor de obras heterodoxas, exprime na sua cidade ideal, vislumbrada em sonhos pelos Académi­cos, pelo Sábio e pelo Louco, as angústias do seu tempo, num discurso paradoxal e ilógico, alimentado de uma convicção platónica profunda. A partir da República de Platão, da conversa entre Adimanto e Sócrates (573b-575a), Doni plasma a tese de que a cidade ideal tem que expulsar o amor, fonte de injustiça e desigualdade. Em nome da harmonia social, é necessário e indispensável votar ao ostracismo eros, que tiraniza de igual modo o coração e a república, já que explica a tendência para o individualismo e a difícil relação indivíduo/comunidade. Esta expulsão torna-se mesmo condição da possibilidade de sobrevivência da república.

Em segundo lugar, La ciudad feliz de Francesco Patrizi da Cherso (p. 51-83), que inserida, embora, na linha filosófico-literária da sua época, pode talvez ser con­siderada, na opinião de Evelio Moreno, como a obra mais representativa do género e mesmo paradigma das cidades ideais do Cinquecento. Patrizi encarna a sensibi­lidade do seu tempo, no sentido de fundar a nova ciência política sobre a base sólida da tradição antiga, que os autores da República e da Política, Platão e Aristóteles, representavam. O terceiro ponto de referência teórica era a sua Sereníssima Repú­blica de Veneza, harmónica e racionalmente organizada, capaz de proporcionar a felicidade. Mas felicidade a poucos destinadas poder-se-á ajuizar, pois a sua men­sagem apregoa que só o ócio, o otium cum dignitate dos clássicos, é o fermento da virtude e que a felicidade é incompatível com o trabalho mecânico.

Acrescente-se ainda que, a propósito da república de Veneza, uma obra como o De magistratibus et republica Venetorum (Parisiis, 1543) da autoria do cardeal Gasparo Contarini, defensor do regime desta sua cidade, teve eco no tratado De regis institutione et disciplina (1572) de D. Jerónimo Osório —no que toca'-aos argumentos utilizados em favor do regime republicano — e ainda no pensamento ético-polífico inglês, pois foi traduzida nesta língua por Lewis Lewkenor, com o título The commonwealth and government of Venice (1599).

Todas as obras de teorização política ou de idealização racional que se apoiam no regime da cidade de Veneza, contribuíram para a difusão do mito que ela repre­sentou, como ideal republicano, durante o séc. xvi europeu. Se a instabilidade política das repúblicas italianas, desde os alvores da Idade Moderna, foi condicio­nante privilegiada para as múltiplas reflexões teóricas sobre as várias formas de governo e sua idealização, a aura que se formou em volta da cidadade de Veneza condicionou mesmo os defensores da ideologia política e cultural republicana floren­tina, como Donato Giannoti na sua Republica florentina (cf. ed. crítica e introdução de Giovanni Silvano, Genève, Droz, 1990), a tomarem-na como modelo. '-'

Se se tivesse de resumir a Forma de una república católica de Francesco Pucci (p. 85-124) a uma só ideia, em volta da qual se ordena politicamente, reflecte Evelio Moreno, essa seria a da adopção do método das sortes, como critério máximo de justiça e racionalidade, na tomada de decisões políticas. Na impossibilidade de se conseguir a unanimidade desejável, recorra-se ao ditame das sortes, condicio-

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nado previamente por um estrito critério de proporcionalidade. Unida só pela cumplicidade dos cristãos espirituais que a habitam, esta república ergue-se como um testemunho de fé comum e como um acto de vontade. Se o método da tiragem às sortes se mostrou ineficaz desde a democracia ateniense, curioso é verificar que esta e outras cidades ideais do século xvi o instauraram, não só para a eleição de magistrados, como para a tomada de decisões políticas, pensando que, em última instância, a mão de qualquer «innocente fanciulletto» era o veículo através do qual se manifestava a vontade divina, quando a assembleia dos homens se tinha reve­lado incapaz de chegar a acordo.

Se La città felice de Francesco Patrizi da Cherso considerava, como vimos, a felicidade inacessível a muitos dos cidadãos da sua cidade ideal, por se dedicarem às artes mecânicas, Ludovico Agostini, em La República Imaginaria (p. 125-250) — a cidade de Deus da Contra-Reforma — equipara em dignidade as artes mecâ­nicas e as artes liberais, pelo que o ideal de felicidade aristotélico-cristão é a todos acessível. Isto prova que os ideais da Contra-Reforma, por se apoiarem na digni­dade do homem, na sua diversidade e capacidade de interájuda, proclamam o ethos do trabalho humano, presente também nos tratados de teorização política do Renas­cimento, sem que este seja apanágio dos calvinistas.

Agostini põe a dialogar o Finitio e o Infinito, porta-vozes respectivamente da vontade humana e da sapiência divina. O confronto entre estas duas alegorias, que dá tensão e vivacidade ao diálogo, tem como postulado a lei, que é coluna ver­tebral de qualquer ordenação social. Esta apregoa a necessidade de estreitar o vín­culo entre o cidadão, que tende inexoravelmente à privacidade, e a polis, que reclama o cenário do universal. Em suma, a cidade ideal que emerge das páginas de Agostini, é uma república presidida pslo poder omnímodo da lei, ao abrigo da tradição bolo­nhesa da jurisprudência e da legitimação emergente do êxito económico. A Repú­blica imaginaria é uma obra militante que, alimentada pelo fogo da caridade cristã, pretende instaurar uma sociedade nova, algures nas costas do Adriático, região ideal com situação real, governada com um regime teocrático de alcance social.

Pelo contrário, numa Itália atravessada pelos ares tridentinos, que já tinham contemplado a condenação de Giordano Bruno à fogueira, Ludovico Zùccolo, prescinde de Deus, embora apenas por omissão, na sua cidade ideal, República de Evandria (p. 251-281). Se tal acontece é porque ele acredita numa cidade auto--suficiente e feliz, regida por uma interpretação austera do ideal clássico de mediania. E espera todo o sucesso de uma cidade moderada e austera, defendida contra o excesso e o supérfluo, que fecha as suas portas ao «Burro de oiro», símbolo da ambição e da hybris, donde provêm a ruina das republicanas. Sem perder de vista a república de San Marino, que tinha sabido defender a sua liberdade secular sem despertar a ambição de seus vizinhos, ou a velha Ragusa — a malograda Dubrovnik, na actual desmembrada Jugoslávia—, Evandria e Mondaino levaníam-se como bastiões da liberdade, edificados sobre a plataforma da mediania.

Conclui Evelio Moreno que os ideais de «mediocrità» e de «universalità», actuam como se fossem eixos de coordenadas cartesianas na construção destas cria­turas da razão prática que são as Cidades Ideais do Cinquecento e as demarcam nitidamente da tradição utópica. Todos os domínios da organização política, labo­ral, económica, sanitária e até arquitectónica da cidade têm como suporte estes dois princípios.

A este propósito, contudo, uma reflexão se impõe: se a construção das cida­des ideais do Renascimento italiano não se apresenta como uma contribuição modu-

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lada ao pensamento utópico, mas como a busca técnica de soluções racionais, ade­quadas à conservação e prosperidade do estado e à melhor fórmula para a convi­vência humana, as diferenças entre estas e as utopias, na linha de Moro, não podem ser equacionadas em termos de dicotomia, mas antes de complementaridade. Se a obra de Tomás Moro e as que se colocam na sua linha aliam a fantasia à realidade, a sua intenção última não é uma fuga à realidade, mas antes uma crítica implícita à mesma realidade contemporânea. Outros povos, outras mentalidades, outras for­mas de agir, identificadas com a pureza da physis, servem de sensibilização ao reco­nhecimento dos defeitos das sociedades políticas contemporâneas e sua correcção (vide, neste particular o meu artigo 'Um ideal humano: política e pedagogia no Renascimento Português', Hwncmitas, 41-42 (1989-1990)121-155, maxime p. 148-151).

A obra de Evelio Moreno Chumillas, Las ciudades idéales del siglo XVI, que termina com uma bibliografia (p. 283-285), tem um alcance que vai muito além da divulgação das Cidades Ideais do Renascimento italiano. Revela-se antes um notável contributo para o estudo desta época, quer pelo gosto estético, posto na ttanslacção de uma língua para a outra —• na medida do que me é dado apreciar e seguindo a opinião do autor do prefácio (p. 9) — quer pela fina capacidade de análise e interpretação do fenómeno político-ideológico. Assim, esta obra pode ser lida, com grande agrado e proveito, tanto pelo estudioso da cultura como pelo leitor comum, o que, à partida, facilita e propicia um enriquecimento do saber colectivo.

NAIR DE NAZARé CASTRO SOARES

IGNACIO OSóRIO ROMERO, El sueno criollo: José António de Villerías y

Roelas (1695-1728). México, Universidad Autónoma de México, 1991, 414 pp.

José Antonio de Villerías y Roelas viveu no México, no séc. xvm (1695-1728). Fez os seus estudos, tanto quanto se sabe, com os Jesuítas, frequentou Direito, cujo bacharelato concluiu; e, embora se tivesse abalançado a prosseguir a carreira acadé­mica, com a obtenção do grau de doutor, desistiu. Apesar de ter morrido com apenas trinta e três anos de idade, deixou obra literária de vulto, publicada e inédita, em castelhano, em latim e, mesmo, em grego. É bem o reflexo de uma intensa actividade cultural na Nova Espanha, na primeira metade do século xvm.

Em latim, compôs diversos poemas, entre os quais sobressai Guadalupe (1724), em hexâmetros dactílicos, obra que, como se verá, constitui o principal centro de aten­ção do presente livro de I. O. Romero.

A primeira parte do livro ocupa-se, ao longo de diversos capítulos, de outros textos de Villerías y Roelas, nomeadamente o poema Victor, relacionado com os cortejos universitários de então, e o conjunto de poemas em honra de Luís I, a pro­pósito do seu falecimento, reunidos na colectânea Llanto de las estrellas, alguns dos

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quais em grego. As composições em grego, aliás, são objecto de um capítulo espe­cial, claramente justificado, pois denotam a vitalidade do culto da língua helénica na Nova Espanha, em pleno século xvm.

Para encerrar a breve análise da obra de Villerías, o autor aprecia os poemas breves, onde se destacam alguns hinos, uns quantos epitalâmios e diversos epigramas.

O objectivo da obra é, porém, o poema Guadalupe. Trata-se de um texto que não pode ser considerado isoladamente; antes faz

parte de toda uma literatura dominada por um tema comum, o qual tem sido alvo da atenção de inúmeros estudiosos; não há muito, Francisco de la Maza dedicou-lhe uma obra de imprescindível referência, El guadalupanismo mexicano (1984).

O corpus textual em torno da Virgem de Guadalupe e de quanto de simbólico encerra para mestiços e «criollos» mexicanos merece também de I. O. Romero aten­ção especial, bem justificada, de resto, na medida em que constitui uma manifestação de identidade, quase uma bandeira, de um sector bem demarcado da sociedade da Nova Espanha.

Nesse sentido, o capítulo VI — «El mito y la literatura guadalupana em Nueva Espana» — (PP-107-193) é de particular importância, não só por alargar o âmbito do estudo a todo o tema, como também por inserir o leitor no contexto social e epocal onde se integra, com as marcas que o caracterizam, e ainda por apoiar em abun­dante documentação textual as informações que transmite.

É a essa luz, parece, que deve ser lido o resto do livro, nomeadamente o poema Guadalupe, de Villerías, objecto de edição crítica, acompanhada da tradução caste­lhana e de notas que procedem ao cotejo com Virgílio, cuja influência resulta por demais evidente.

O poema, de algum sabor épico e de inquestionável influência virgiliana, reflecte a lenda de Guadalupe, mas também a história do México, desde os Aztecas até à conquista.

É um latim distanciado de alguma elegância que o humanismo renascentista ainda logrou alcançar; mas é, em todo o caso, um documento importante da vitali­dade do humanismo na América Latina, quando, na Europa, havia já perdido o seu brilho como língua de eleição da literatura.

A bibliografia final revela um trabalho exaustivo de indagação no que diz res­peito a textos inéditos de José Antonio de Villerías y Roelas; já a secção dedicada a «Livros empleados» circunscreve-se em demasia a títulos relativos ao México e, em especial, à lenda de Guadalupe. A teorização literal ia, a retórica própria do século xvm, à qual não seria alheio o autor de Guadalupe, representam um domínio apenas representado na longa lista bibliográfica por Garcia Berrio e pouco mais, o que é francamente escasso.

À parte este senão, trata-se de obra de inegável importância, no contexto da produção a que a Universidad Autónoma do México nos tem vindo a habituar.

CARLOS ASCENSO A N D R é