RECENSÕES E NOTÍCIAS DE LIVROS - uc.pt · 26Í Os capítulos deste livro Sobre a Vida da Corte,...

22
RECENSÕES E NOTÍCIAS DE LIVROS 17

Transcript of RECENSÕES E NOTÍCIAS DE LIVROS - uc.pt · 26Í Os capítulos deste livro Sobre a Vida da Corte,...

RECENSÕES

E NOTÍCIAS DE LIVROS

17

Sylvie DESWARTE, li Terfetío Coríegiano' D. Miguei da Silva. Roma, Bulzoni Editore, 1989, 275 pp. + 37 gravuras.

D. Miguel da Silva (c. 1480-1556), o «escrivão da puridade» e bispo de Viseu, que fugiu de Portugal em fins de Julho de 1540, quando foi informado da sua prisão iminente por ordem do rei D. João III, é uma figura importante da cultura portu­guesa que não tinha recebido até agora a honra dum ensaio monográfico de bom nível.

Estudante das universidades de Lisboa, Paris e Siena, foi posteriormente embaixador do rei D. Manuel I junto da Santa Sé e viveu em Itália, principalmente em Roma, de 1515-1525. Mais tarde, depois de ter escapado à justiça do rei D. João III, que pretendia condená-lo por traição, acusando-o de ser melhor ser­vidor dos interesses do Papa que da realeza nacional, acabou a sua vida em Itália, onde passou de 1540 até à data da sua morte, em 1556. O rei, enfurecido, perse-guiu-o de todas as maneiras ao seu alcance, confiscou-lhe os bens e privou-o da nacionalidade portuguesa.

Mas em 2 de Dezembro de 1542, D. Miguel da Silva ganhava sobre o monarca uma vitória compensadora, ao ser nomeado cardeal pelo papa Paulo III, o seu amigo cardeal Alessandra Farnese. Assim, um alto posto eclesiástico que D. João III nunca aceitaria fosse atribuído a um português, sem prévia autorização sua, e que, provavelmente, estimava ser reservado a um membro da família real, era conferido a um súbdito de Sua Alteza, dele merecedor por qualidades de inteligência e cultura.

Não terão sido apenas os seus méritos intelectuais a obter-lhe esta honra, para a qual contaram decerto os serviços prestados anteriormente, que a Autora recorda. Mas há que aceitar que D. Miguel da Silva estava muito acima da média dos eclesiásticos portugueses do seu tempo, sobretudo dos pertencentes à família real, embora estes não fossem avessos à cultura. É que, além dos seus dotes de perfeito cortesão, D. Miguel da Silva foi um humanista ao nível dos melhores, na própria pátria do Humanismo Renascentista.

A existência em Itália, deste português, é estudada com minúcia e precisão, só possíveis a quem, como Sylvie Deswarte, conhece a vida cultural e artística italianas do século XVI, com a ciência de um especialista desta época. Assim, desfilam no seu livro grandes personalidades relacionadas com D. Miguel da Silva, nomeada­mente, Benedetto Accolti, Antonio Agustín, Girolamo Capodiferro, Baldassare Castiglione (que lhe dedicou o Libro dei Coríegiano, em 1528), Angelo Colocci (o do Cancioneiro galaico-português), Gian Matteo Giberti, Paolo Giovio, D. Diego Hurtado de Mendoza, Blosio Palladio, Aulo Giano Parrasio, Giovanni Rucelai, Giovanni Salviati, Lattanzio e Claudio Tolomei, Janus Vitalis ; os papas Clemente VII

260

e Paulo III; e os portugueses João Rodrigues de Sá de Meneses, Jerónimo Osório, Diogo Pires e André de Resende:

Neste livro tão completo e tão bem feito, uma questão que me parece conti­nuar em aberto é a do teólogo medieval Gastão de Foix e da sua obra perdida, De Deo et Animorum Immortalitate et Praemiis et Poena, para a qual há apenas o testemunho de Diogo Pires.

Quanto ao Fontelo, a quinta e palácio episcopal que D. Miguel fez construir em Viseu, há uma descrição melhor que a do P. Baltasar Teles (citado na nota 243), com a vantagem de ser de um contemporâneo de D. Miguel da Silva. É o poema Fontellum de António de Cabedo que faleceu em 1555, quando D. Miguel ainda era vivo. Este poema latino foi traduzido e estudado numa dissertação de mes­trado que orientei na Universidade de Coimbra (1).

A notoriedade de Amato Lusitano (ou João Rodrigues de Castelo Branco) não vem apenas do seu comentário a Dioscórides (cf. nota 290, p, 208). Acaba de ser publicado pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra um livro interessantíssimo do Prof. Mario Santoro, Amato Lusitano ed Ancona, que naturalmente S. Deswarte não podia ter conhecido, no qual é dada a medida científica e humana do nosso compatriota.

Nestas observações críticas, incluem-se numerosas, e hoje quase inevitáveis, «gralhas» no latim e a repetição duma linha (p. 218, 1.1). Mas estes pequenos senões em nada deslustram este livro notável de Sylvie Deswarte, um dos investi­gadores estrangeiros que mais altos serviços vem prestando ao estudo da Cultura Portuguesa do século XVI.

A. COSTA RAMALHO

ANDRé DE RESENDE, On Court Life. Edited and translated by John R. C. MARTYN. Bern, Peter Lang, 1990, 228 p. + 1 gravura.

O Professor John Martyn, da Universidade de Melbourn, na Austrália, em sucessivas visitas a Portugal tem procurado manuscritos e descoberto poemas de André de Resende. Alguns não são tão ignorados como ele pensa, mas é inegável que a sua actividade veio dar novo impulso aos estudos resendianos. E o que é mais: escrevendo os seus trabalhos em inglês, tem possibilitado a André de Resende uma projecção internacional que o humanista não conseguiria, se estudado apenas na língua dos seus compatriotas.

(1) Cf. Aires Pereira do Couto, SOVTELO. Subsídios para a sua história. Câmara Municipal de Viseu, 1990. Da tese original, apenas se encontra neste livro a «adaptação de dois capítulos», segundo se lê no «Preâmbulo».

A tradução, desacompanhada do latim, vem nas pp. 43-50.

26Í

Os capítulos deste livro Sobre a Vida da Corte, descrita e comentada por André de Resende, têm os seguintes títulos que traduzo do inglês 1. A vida de Resende; 2. O Genetlíaco; 3. Carta a Sperato Martim Ferreira; 4. Carta a Damião de Góis; 5. Carta a Pedro Sanches; 6. Comentário aos capítulos 2 a 5; 7. A vida da Corte, vista por Resende; Bibliografia; Apêndices; índice.

John Martyn professa uma grande admiração por André de Resende: «Today he is highly respected in Portugal, especially in Évora, and it is long overdue for him to be recognized world-wide as a talented and important Classical scholar, Latin poet, archaelogist, theologian and humanist» (p. 51).

As traduções do latim de Resende, feitas pelo Prof. Martyn, são correctas, embora ocasionalmente se possa discordar de uma ou outra das suas interpretações, Eis por que o felicito por este seu livro. E todas as observações que adiante fizer destinam-se apenas a contribuir para uma melhoria do livro que eu gostaria de ver traduzido para português por alguém competente, isto é, alguém que saiba latim, inglês e português. Das três línguas, por paradoxal que pareça, a mais difícil ainda é a portuguesa.

Dirigem-se, portanto, a uma futura edição melhorada as observações que vou fazer:

— p. 9: «First, 6 new poems, totalling 241 lines, were printed and translated into Portuguese by José da Silva Terra, in Arquivos do Centro Cultural Português, vii, 1973, 431-469 (the third poem, to Julião de Alva and Rodrigo Sanches had already been printed by Cândido Aparício Pereira in Humanitas, vii-viii, 1955-56, pp. 215-219)».

Aqui, o Prof. Martyn esquece que publiquei e traduzi um desses poemas, a ode Idus mense Numae, Lucia quo die, em Humanitas XXI-XXII, 1969-1970, pp. 355-357.

Quando se trata de prioridades — e o Prof. Martyn não perde ocasião de proclamar as suas — é bom não esquecer as dos outros.

— P. 22: a propósito da oração de sapiência na Universidade de Lisboa, pro­nunciada em i de Outubro de 1534 por André de Resende, o Prof. Martyn acentua a honra conferida ao humanista, recém-chegado do estrangeiro, quando lhe foi confiada a oratio do ano lectivo de 1534/1535. A honra não é excepcional.

Ao contrário do que hoje acontece, era então costume encarregar um jovem com reputação de bom latino. Assim aconteceu com o conde de Alcoutim, D. Pedro de Meneses, em 18 de Outubro de 1504, cuja oração teve a ajuda de Cataldo Sículo. E mais tarde, na Universidade de Coimbra, a escolha de jovens volta a repetir-se. O conde de Alcoutim tinha dezassete anos de idade...

— Na p. 28, tratando de D. Duarte, duque de Guimarães, escreve o Autor: «Both his father, the Duke of Aveiro, and his mother, Juliana, had been tutored by Resende».

É confusão: o pai do jovem duque de Guimarães era o infante D. Duarte, e a mãe era D. Isabel, filha de D. Jaime, duque de Bragança.

— Na p. 31, n. 45: «Resende's friend, Diogo de Teive, wrote a prose work in Latin on the same Diu campaign {Commentarius de rebus a Lusitanis in India apud Dium gestis, Coimbra, 1548)...»

262

Trata-se de mais uma confusão : a Epitome rerum gestarum in India a Lusitanis, de Resende, ocupa-se de acontecimentos de 1530, ao passo que o livro de Teive trata do 2.° cerco Diu, em 1546.

— Nas pp. 33-34, o Autor aventura-se a discutir vocabulário do testamento de André Resende. Se o livro for traduzido para português, convém rever as con­siderações filológicas aí desenvolvidas sobre algumas palavras da nossa língua.

— Na p. 40, Cardinalis et Principis D. Henrici a concionibus parece-me pouco exactamente traduzido por «in charge of meetings for Cardinal Prince Henry». Com efeito, a concionibus (melhor, a contionibus) é simplesmente «pregador» do cardeal infante D. Henrique, funções que Resende desempenhou.

— Na p. 47, o poema de André de Resende em honra de D. Luís de Ataíde trata das suas vitórias na India e não em Angola.

— Na p. 48, aparece o humanista como autor do livro De Verborum Coniu-gatione que o Prof. Martin considera um «important paedagogic work on Portu­guese grammar». Ora a verdade é que, pelo facto de dar a tradução portuguesa de algumas formas verbais latmas, nem é uma gramática portuguesa nem uma «Portuguese-Latin grammar» (p. 192), mas simplesmente uma gramática latina.

— Na p. 48 n. 88, diz-se que em 1540 «his pupils included the Count of Alcou­tim and the Marquis of Vila Real, with his sister Juliana...» O conde de Alcoutim só depois da morte de seu pai se tornou marquês de Vila Real. Ele e sua irmã são filhos do 3.° marquês, D. Pedro de Meneses, a quem me referi a respeito da p. 22.

— Na p. 102 no verso 833, a tradução inglesa de et regum quattuor illuc] missi oratores omite o numeral.

— Na p. 125, ao apresentar o De Vita Âulica. Poetas ibi iacere que Resende dedicou a Damião de Góis, o Prof. Martyn escreve que a sua tradução «is the first translation into any modern language».

Infelizmente, não é verdade. Com efeito, o poema de 159 hexâmetros dactí-licos foi traduzido para francês por Odette Sauvage no seu livro L'Itinéraire Éras-mien de André de Resende, Paris, Centre Culturel Portugais, 1971. E eu próprio traduzi para português 40 versos na nota de investigação com o título de «Causíficos e Humanistas», Humanitas XXXIII-XXXIV, 1981-1982, pp. 232-234, reproduzindo mais tarde esse trecho e a sua tradução em Latim Renascentista em Portugal, Coim­bra, C.E.C.H., 1985.

— Na p. 149, D. João III chamou, para ensinar no Colégio das Artes, huma­nistas «from France and Scotland». De facto, George Buchanan era escocês, mas veio com os outros de França.

— Na p. 174 n. 263, há uma confusão. Aquilo que o poeta romano Statius vendeu ao actor Paris foi a pantomima Agave, hoje desaparecida, e não o poema Tebaida.

— Na p. 182, seguindo Barbosa Machado, o Prof. Martyn faz Pedro Sanches natural de Lisboa. Mas Francisco d'Holanda, que o conhecia pessoalmente, escre­veu na Fabrica que falece ha Cidade de Lisboa que Pedro era castelhano como, aliás, seu irmão Rodrigo.

O Prof. Martyn atribui-lhe «establishing a school in his home, which attracted the leading poets and orators of his day». Ora o que Barbosa Machado diz é que

263

ele abriu em sua casa uma «academia», isto é, uma tertúlia de amigos que é coisa muito diferente. Aliás, Pedro Sanches teve um alto posto na Corte: foi Secretário do Desembargo do Paço.

—• Na p. 183, n. 79, a melhor explicação de duum post funera regum está no próprio latim e não na história de Portugal. Com efeito, não se trata de chamar «reis» aos irmãos de D. João III («two Kings or future Kings»), mas de observar que rex em latim significa também, na linguagem poética, «chefe, príncipe, pro­tector». Aliás, a tradução dada por Martyn, «following the deaths of two Princes» é correcta. A nota é que deixa a desejar.

— Na p. 193, teria valido a pena acrescentar que o poema que Resende não chegou a escrever sobre o casamento de D. Isabel de Bragança com o infante D. Duarte, foi composto por Manuel da Costa, não apenas um grande mestre de Direito nas universidades de Coimbra e Salamanca, mas também um bom poeta latino.

As observações que ficam para trás, algumas entre mais que podiam ser feitas (há muitas «gralhas» em latim e inglês), não afectam o meu juízo de conjunto sobre este trabalho, digno de apreço, do Prof. John Martyn. E creio que os portugueses ihe devem estar gratos pelo seu interesse esclarecido pela vida e a obra de André de Resende.

A. COSTA RAMALHO

LOGOS. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa, Edito­rial Verbo, Vol. I (A-D) 1989. 1512 colunas.

De uma enciclopédia de Filosofia, ainda que seja a primeira em língua por­tuguesa, não caberia, aparentemente, dar notícia nesta revista. Mas a verdade é que estamos perante uma obra onde, como não podia deixar de ser, a matriz greco--latina aparece a todo o momento — é raro o artigo sobre conceitos filosóficos que não principia pela sua análise nesse período — e onde, além disso, figuram em grande número os pensadores e escolas helénicas, desde os pré-socráticos aos últi­mos neoplatónicos, bem como os seus transmissores romanos.

Merece especial relevo o longo e bem estruturado artigo de Carlos Silva sobre Aristóteles, seguido de outro, do mesmo autor, sobre Aristotelismo, o qual é comple­tado pelo Aristotelismo em Portugal, por F. Gama Caeiro (período medieval), A. Coxito (sécs. xvi-xvm) e Braz Texeira (sécs. xrx-xx). Esta relação dos grandes sistemas filosóficos com a sua repercussão no nosso País é, de resto, uma constante ao longo da obra, que permite que, nalguns casos, vá ganhando novos contornos a história da cultura portuguesa. Novamente por Carlos Silva, destaca-se também o trata­mento dado a Caverna, Alegoria da.

De interesse imediato para os classiscistas (de interesse mediato serão todos) são também definições como a de Catarse (por V. M. Aguiar e Silva) e de Civilização e Cultura (por Manuel Antunes). Este último é uma síntese modelar de uma questão extremamente complexa, feita por alguém que marcou gerações como pensador e como historiador da cultura.

Conhecidos professores de Filosofia (três da Universidade Católica, Roque Cabral, Manuel da Costa Freitas e J. Bacelar e Oliveira; um da de Coimbra, Ale­xandre Fradique Morujão; outro da de Lisboa, Francisco da Gama Caeiro; e um do Instituto Brasileiro de Filosofia, António Paim) formam a direcção desta Enciclo­pédia, cujo primeiro volume contém artigos de mais de cem colaboradores. Estão previstos mais três tomos, que virão a constituir certamente um instrumento de consulta indispensável aos estudiosos.

M. H. R. P.

R. A. TOMLINSON, Greek Architecture. Classical World Series. Bristol Classical Press, 1989. VIII + 104 pp. e 44 figuras.

O A. é bem conhecido dos historiadores da arte grega, quer pelo facto de ter procedido à revisão actualizada do célebre tratado de A. W. Lawrence, Greek Architecture (Penguin Books), na sua quarta edição, em 1983 (reimpressa em 1987), quer pelo de ser o director do Anuário da Escola Britânica de Arqueologia em Atenas,

Entendeu, e bem, este professor de História Antiga da Universidade de Bir­mingham que havia lugar, ao lado dos já clássicos grandes manuais de Arquitectura Grega, como o acima referido, ou os de Dinsmoor e de D. S. Robertson, para um estudo mais breve, que dissesse o essencial e incluísse as últimas novidades.

São estas precisamente algumas das qualidades que recomendam a obra em apreço.

Depois de uma introdução, trata sucessivamente dos primórdios do templo (sem omitir os dados provenientes dos novos achados de Lefkandi, reconhecendo embora «que nada mais se conhece da Idade das Trevas que possa definir-se como tendo qualidade arquitectónica» — p. 13), distinguindo as duas grandes ordens, referindo os materiais e as técnicas de construção; dos templos do período clássico, especialmente o de Afaia, o de Zeus em Olímpia, o Pártenon, o Hefestéion e outros semelhantes a este, o de Atena em Priene e o Artemísion de Magnesia; da tipologia dos monumentos gregos. Os dois últimos capítulos, «Edifícios no seu contexto», ocupam-se, um, de santuários, nomeadamente, os da Acrópole de Atenas, o de Olím­pia e o de Delfos; outro, das cidades. Daqui resulta alguma repetição (fala-se, por exemplo, duas vezes do Hefestéion e do Templo de Zeus em Olímpia) que, aliás, não é inútil, porque vem enquadrar noutra perspectiva os conhecimentos anterior­mente adquiridos e traçar, nas linhas gerais, a história do edifício.

265

A obra termina com sugestões para prosseguir o estudo, bibliografia e um glos­sário de termos técnicos.

Escrito com clareza, rigor e actualização (também não falta a referência às recém-descobertas janelas na parede do pórtico oriental do Pártenon), o livro preen­che com agrado a finalidade a que se destina. Será esta preocupação de brevidade que explica a quase omissão da variante coríntia (referida em três linhas na p. 49 e explicada no glossário). Também será difícil ficar satisfeito com o tratamento das origens do templo clássico (pp. 14-15). O A. supõe que tanto a construção tumular, com uma colunata, de Lefkandi, como o mégaron micénico derivaram, bem como o templo, da cabana regional, mas por vias independentes, e que teriam sido as práticas observadas no Próximo Oriente e no Egipto que teriam levado à adopção da pedra, em vez do tijolo. Rejeita, portanto, como altamente impro­vável, a derivação do mégaron micénico, com o fundamento de que os palácios estavam todos destruídos no séc. xn a. C , o que pressupõe um intervalo de quatro séculos até à construção dos primeiros templos. Tal não é inteiramente seguro (cf. D. S. Robertson, A Handbook of Greek and Roman Architecture, p. 36). É uma questão que, afinal, se põe nos mesmos termos de cronologia e de descontinuidade que a das relações entre os heróis micénicos e os Poemas Homéricos. Outro ponto em que é difícil concordar é a interpretação da magnificência do Templo de Zeus em Olímpia como «uma oferta de agradecimento a Zeus por Esparta e os seus aliados, por os ter libertado da Pérsia» (p. 34), pondo de lado as informações de Pausânias sobre vitórias mais recentes a comemorar, uma das quais sobre Atenas. De resto, compreende-se que começasse a sentir-se a necessidade de um templo dedicado ao deus patrono dos jogos, que o não tivera até então. Na p. 56, poder-se-ia objectar à certeza com que é afirmado que o drama se desenvolveu a partir da dança coral e que o espaço circular para a dança era característico (quando as ruínas do Teatro de Thorikos indicam que seria outra a configuração primitiva). Em contra­partida, registamos com aprazimento a aceitação da tese segundo a qual a planta e invulgar elevação do Erectéion se deve tanto à necessidade de incorporar no novo edifício os santuários pré-existentes, como à de os embelezar arquitectonicamente (p. 69). Sugestiva também a ligação estabelecida entre a divisão em métopas e triglifos do friso dórico e a decoração de vasos em estilo geométrico, (p. 18).

Em resumo, e não obstante pequenas discordâncias que facilmente podem surgir em matérias tão controversas, cremos que o livrinho de R. A. Tomlinson é de alta qualidade e prestará grandes serviços aos estudiosos.

M. H. ROCHA PEREIRA

266

AMéRICO DA COSTA RAMALHO, Para a história do Humanismo em Portugal, Coimbra, INIC, 1987, 213 pp.

O período áureo da história nacional portuguesa, em que o latim foi instru­mento de divulgação da gesta dos Descobrimentos e expressão da mentalidade e dos valores culturais, não poderá ser conhecido em profundidade e na sua verda­deira amplitude sem um estudo aturado de textos históricos ou literários, tradu­zidos e comentados com o rigor científico do saber filológico.

A análise criteriosa dos conceitos passa pela captação do sentido exacto dos textos latinos de quase todos ignorados, perdidos no acervo bibliográfico de biblio­tecas e arquivos do país ou do estrangeiro, em manuscrito, ou em edições raríssimas. A leitura paleográfica ou a decifração de abreviaturas, nos textos impressos, são outras das dificuldades do estudioso do século xvi.

Ninguém melhor do que o Prof. Doutor A. da Costa Ramalho reúne as con­dições ideais de estudioso desta época. Ao saber filológico das línguas clássicas, na sua realização quinhentista, alia o conhecimento estético-literário e a intuição histórica, que o leva amiúde a penetrar por genealogias complexas, a desfazer erros provocados pelas frequentes homonímias, a repor a verdade, por vezes fal­seada, já há muitas décadas, e um sem número de vezes repetida.

Esta obra, uma recolha de estudos de temáticas diversificadas, é mais um contributo significativo para a história da cultura portuguesa do séc. xvr, a juntar a vários outros do mesmo autor: Estudos sobre a época do Renascimento (1969); Estudos Camonianos (21980) ; Estudos sobre o Século XVI (21983) ; Latim Renascentista em Portugal (1985).

Verdadeiros marcos culturais que se impõem aos olhos dos críticos e de um público culto e especializado, estas obras são o resultado da investigação aturada do seu autor, que a ela consagrou longos anos da sua vida.

O prémio Laranjo Coelho, atribuído à presente obra, Para a história do Huma­nismo em Portugal, I, pela Academia Portuguesa de História, de que o Prof. Dou­tor A. da Costa Ramalho é sócio efectivo, serve de verdadeiro testimonium à sua obra e é um preito de homenagem à actividade científica e ao papel pedagógico do grande mestre de Humanidades da Alma Mater Conimbrigensis.

A competência linguística invulgar para 1er e analisar obras da nossa literatura quinhentista, aliada ao prazer e entusiasmo que põe em divulgar, com alto nível científico, o conhecimento desta época e em transmitir aos seus discípulos os critérios essenciais a esse conhecimento, estão na origem da já designada «Escola de Latim Renascentista», que criou, e que conta com um número significativo de elementos, com trabalhos publicados neste domínio.

Nos vários artigos, que compõem este livro, coexistem a expressão da latinitas dos nossos humanistas, suas capacidades poéticas ou oratórias, a dimensão literária ou retórica das suas obras, posta ao serviço do ideário nacional ou dos valores uni­versais, informações de carácter histórico, biográfico, cultural e ideológico, a reve­lação de curiosidades etnográficas, antorpológicas e científicas dos Descobrimentos.

Todos estes aspectos dão oportunidade de apreciar as preocupações maiores que preenchiam a vida e o coração dos homens do Renascimento. Neste particular,

im

é o Prof. Costa Ramalho mestre exímio. Através de um pormenor, de uma nota irónica, exprime uma visão tão nítida, uma focagem tão real da vida quotidiana, dos ideais de comportamento e dos valores essenciais desta época, que nos leva a pensar que a conhece tão bem como se fora a sua própria. Não raro se nos afigura o traço quase folhetinesco da descrição, que, sem deixar de ser científico, nos arreda por momentos da especificidade da leitura para nos enquadrar na viveza do cenário.

A abrir o presente trabalho, um estudo que se reporta às origens do huma­nismo português e envolve dois nomes significativos deste movimento, Cataldo Parisio Sículo e Estêvão Cavaleiro, defensores, nos finais do séc. xv, princípios do xvi, em campos diferentes, na corte e na Universidade, do latim humanístico contra a barbaries. O pormenor biográfico-histórico, que faz o enquadramento da querela entre gramáticos e lhe confere cor local, bem como o afloramento de questões reli­giosas e dos costumes do tempo, tornam este estudo, do ponto de vista da his­tória das ideias, um documento ilustrativo da época.

A curiosidade a nível das espécies botânicas, alimentada pelas viagens atlân­ticas ou, nos meios humanistas, pelos passeios dados pelos espaços verdes das cidades universitárias, como Coimbra — testemunho não só do interesse pela natureza, como do verdadeiro culto da amizade — reflecte-se no artigo «Santarém é uma sorva». O emprego metafórico do nome deste fruto, sorbum, desde Cataldo, Erasmo aos Ditos portugueses dignos de memória, revela uma coincidência de motivos na expressão temático-linguística do Humanismo europeu.

Estes dois artigos iniciais bastariam para ajuizar da variedade temática e da vastidão de conhecimentos do seu autor, revelada nos mais ínfimos pormenores.

E no entanto em artigos, como por exemplo «O Cancioneiro Geral e Cataldo»; «A Infanta D. Maria e o seu tempo»; «Portugal em dois epigramas de George Bucha­nan»; «Lúcio, poeta-fantasma e Luís de Camões»; «A elegia do exilado de Miranda», que a erudição e a vasta cultura literária, histórica e ideológica do autor permitem leituras novas, quer através da revelação de aspectos até então passados desperce­bidos, quer ainda através da clarificação de conceitos erróneos, que levaram reputados estudiosos a conclusões menos justas.

A abordagem filosófico-conceptual e estética do legado ciceroniano, em «Cícero nas orações universitárias do Renascimento», ou o colorido descritivo do retrato da Coimbra Quinhentista, em «Alguns aspectos da vida universitária em Coimbra nos meados do século xvi (1548-1554)», são bem significativos da profun­didade com que aborda temas de natureza abstracta ou da realidade concreta, em que Antiguidade e Renascimento se complementam em simbiose perfeita de ideais.

Diogo Pires, um dos mais inspirados poetas latinos da segunda metade do séc. xvi, com reputação europeia, ainda hoje recordado na malograda Jugoslávia, que lhe ergueu uma estátua em Ragusa, actual Dubrovnik — para o qual o Prof. Costa Ramalho foi o primeiro a chamar a atenção, com os seus estudos — merece ser lem­brado em «Didacus Pyrrhus Lusitanus, poeta e humanista». Do valor temático e formal do poema De gestis Mendi de Saa fala-nos em «O Inferno no De gestis Mendi de Saa de Anchieta».

Estes dois estudos, de autores tão diversos, um, judeu exilado, outro, após­tolo do Brasil, são bem reveladores da dimensão literária do nosso Humanismo, projectado além fronteiras, desde os centros da Europa culta ao mundo novo.

268

A terminar a obra, uma última parte, «Notas Breves» que, apesar da humil­dade do título, integra estudos de grande profundidade de investigação e conheci­mento, pelo que são, na sua maioria correcções e comentários a estudos alheios, ou considerações complementares aos próprios trabalhos, ou ainda notas culturais e literárias, cheias de finura e novidade. Por fim, um índice onomástico que facilita o manuseio e utilização de especialistas e leitores curiosos da nossa cultura.

Este livro do Prof. Doutor Américo da Costa Ramalho, em edição bem cui­dada, veio mostrar mais uma vez a importância e o interesse que tem esta época. Em suma, o muito saber, aliado à visão interpretativa e capacidade de avalia­ção do seu autor, que nunca deixam de ser extremamente sugestivas, tornam possível um melhor e mais rigoroso conhecimento da nossa literatura novilatina de Qui­nhentos e da história cultural, que nela se encerra.

NAIR DE NAZARé CASTRO SOARES

JERRY H. BENTLEY, Politics aad cu i toe io Renaissance Naples, Princeton,

U. Press, 1987, 327 pp.

O fenómeno cultural e político na Itália do Renascimento tem sido privile­giado com trabalhos de reputados autores italianos e estrangeiros como E. Garín, Felix Gilbert, P. O. Kisteller, H. Baron, P. Burke, Ch. Trinkaus, que se tornaram já clássicos e ponto de referência obrigatório.

Apesar disso, o património literário desta época, por ser inesgotável, incentiva novas reflexões, em trabalhos de âmbito geral ou monográfico, que se impõem pelo seu mérito. Está neste caso a obra de J. H. Bentley, que se ocupa do humanismo napolitano e tem por limites temporais o período que vai da conquista do reino por Afonso V de Aragão, ou Afonso I de Nápoles (1435-1442), à anexação da Espanha, com a imposição de um poder directo, através do governo dos vice-reis (1504).

Conhecida é a importância e o significado do movimento humanista italiano, nesta segunda metade do séc. xv, verdadeiro alfobre dos novos ideais e valores, que irradiam o seu fulgor por toda a Europa, bem como a importância a nível cul­tural, social e político dos seus principais representantes.

Neste contexto, avulta a política cultural de Afonso de Nápoles, considerado como modelo de governante e de Mecenas por autores como Enea Silvio Piccolo­mini, o futuro Papa Pio II. Em carta dirigida a Segismundo da Áustria, duque de Tirol, Piccolomini, o primeiro educador humanista da Germânia, propõe ao Duque como modelo a imitar, entre os diversos príncipes antigos e modernos, o rei Afonso de Nápoles, perito no exercício das armas e no conhecimento das humanae tttterae, das artes noblliores, de que se torna grande protector.

Pela corte aragonesa passaram ou nela permaneceram grandes figuras das letras europeias, que viveram à sua sombra no desempenho de cargos administra­tivos, ou como preceptores de .príncipes e aristocratas; Diomede Carafa, Francesco

269

Patrizi Senense, Antonio Beccadelli (Panormita), Lorenzo Valla, Bartolomeo Facio, Giovanni Pontano, entre outros.

Contrapartida de mérito para o enaltecimento do poder real em Nápoles foram as obras destes autores. Como tratadistas, avultam Patrizi, o primeiro huma­nista do Quattrocento a escrever um verdadeiro tratado político-pedagógico para a formação de um príncipe, De regno et regis institutione, que dedica a Afonso de Ara­gão, duque da Calábria. Famosos pelos seus tratados, neste domínio, são ainda Pontano e Majo, que afirmam, ao delinearem o retrato ideal do príncipe, a impor­tância das virtudes humanas, tais como a majestade real.

Na historiografia, destacam-se Panormita, Facio, ou mesmo Valia que, ao descreverem os feitos gloriosos dos seus senhores, reflectem nas suas obras o ideário humanista, ao mesmo tempo que impõem um verdadeiro conceito de história, res et uerba, apanágio dos novos tempos.

É através da análise da produção dos humanistas «napolitanos» e na defi­nição das suas implicações com o pensamento político do Renascimento que J. H. Bentley se revela original.

Apesar de não constituir novidade o estabelecimento das relações entre huma­nismo e sociedade, desde os alvores do Renascimento, e serem conhecidas as diversas posições, assumidas por reputados autores como E. Garin e H. Baron, que se ques­tionaram sobre os interesses essenciais e dominantes deste movimento, para lhe atribuírem um cariz eminentemente pedagógico, cívico ou político, a obra de J. H. Bentley afigura-se-nos modelar na complementaridade de tratamento de todos estes motivos.

No que diz respeito ao reino aragonês em Itália, humanistas houve que já lá nasceram e muitos outros que, por tanto aí se demorarem, se fizeram seus cidadãos. A adopção da cidadania napolitana de humanistas como Pontano levou já Mário Santoro — que acaba de publicar na nossa colecção de «Textos Humanísticos» um importante estudo sobre Amato Lusitano — a falar em «Napolitanização» do Huma­nismo. Os condicionalismos particulares deste reino, ligado à monarquia espanhola por laços de sangue, sem deixar de ter a sua identidade própria, até à altura da ane­xação— contestada de forma veemente por autores como Antonio de Ferraris, «Il Galateo» —-, terá propiciado a natureza do discurso dos humanistas, que, mesmo que inconscientemente, servia de suporte ao poder real e enaltecia a paz e estabilidade governativas, numa península dilacerada de guerras.

É desta especificidade do humanismo aragonês que nos fala J. H. Bentley, atra­vés de uma análise profunda de textos, que torna esta obra um documento precioso para a história das ideias e das mentalidades, num período de três quartos de século.

A vasta informação do autor, transmitida de forma bem estruturada e atraente, a que não falta uma rica bibliografia e um índice onomástico-temático, a facilitar a leitura da obra, asseguram o valor e interesse desta publicação.

N. N. C. S.

270

MARIO BRETONE, História do direito romano, Lisboa, Ed. Estampa, Imprensa Universitária n.° 73, 1990 |tr. port, por Isabel Teresa Santos: Storia dei diritto romano, 1988], 381 pp.

Os grandes ciclos do processo histórico-jurídico romano desde a Lei das XII Tábuas à codificação de Justiniano são apresentados na obra de Mario Bre­tone, Storia dei diritto romano, agora em tradução portuguesa.

Como adverte o autor, «este livro não é uma exposição sistemática de direito romano, público ou privado, e não se entrega a nenhuma tentação enciclopédica» (p. 11).

É antes o resultado de uma meditação nova sobre o património conceptual, recolhido por tantas obras que se tornaram já clássicas, neste domínio, e tem por objectivo um justo equilíbrio entre sistema e história.

A matéria, arrumada em treze capítulos, com orientação cronológica, arti-cula-se em torno de alguns temas fundamentais, que o autor pretende esclarecer no seu sentido global e profundo: 1 —Direito e história; 2 — As leis antigas e o sentido da tradição; 3 — O costume e a lei na experiência arcaica; 4 — sacerdotes intérpretes; 5 — Para além do formalismo; 6 — Uma profissão aristocrática; 7 — O veredicto; 8 — O jurista e o príncipe; 9 — A administração pública, o ensino, as escolas; 10 — As formas literárias; 11—Os modos de uma técnica; 12 — As ideias jusnaturalistas; 13 — O Direito codificado tardo-antigo.

Os índices, analítico e das fontes, e uma cronologia dão por si só uma ima­gem da riqueza temática e da perspectiva globalizante em que o direito é encarado. Ainda uma «Nota bibliográfica» que, no dizer do autor, «pretende sugerir itinerários» e fornece uma análise crítica de significativo acervo bibliográfico.

Autor de vários estudos que dizem respeito sobretudo à jurisprudência romana, nesta obra pôde apresentar resultados e fazer generalizações, a nível conceptual, que só caberiam a um especialista autorizado. A cada passo são aduzidas opiniões dos vários autores com uma reflexão crítica que as autoriza ou ultrapassa.

Com a intenção de clarificar e aprofundar ideias ou formular juízos sobre a histórica jurídica, Mario Bretone colhe dados nas várias fontes que, de alguma maneira, dizem respeito à civilização romana e obriga-se a um manuseio constante de fontes documentais e literárias. A mestria com que utiliza estas fontes é reve­ladora de uma sólida formação clássica e um vasto conhecimento do direito romano, nas suas relações com a história, a filosofia, a socilogia e a literatura.

Como fenómeno cultural e organizativo, o direito romano não é separável das estruturas económico-sociais e políticas, pelo que o autor procura dar a per­ceber em que medida um sistema jurídico é um instrumento e um reflexo da sociedade. Serve de exemplo o Código Teodosiano «que fornece dados preciosos para o estudo das técnicas legislativas tardo-imperiais e da cultura que exprime, mas não é avaro de notícias para a compreensão da economia contemporânea» (p. 320).

No entanto, apesar da delicada relação entre sociedade e direito, o autor não confunde os planos de investigação, pelo que o estudo do direito se move num hori­zonte próprio.

27 í

Também os pontos de vista de que a jurisprudência romana é observada são múltiplos, através das épocas distintas que o autor atravessa.

Numa palavra, a vasta recolha de fontes para uma descrição da organização jurídica romana e sua funcionalidade, ou ainda os diversos conceitos apresentados, avaliados na sua atitude orientadora ou explicativa, no campo heurístico, tornam esta obra um repositório de erudição e um manual de especialistas. Pela amplitude da informação literária que fornece e pelo interesse dos temas e das abordagens que faz, pode considerar-se, todavia, um livro de história das ideias, de agradável e proveitosa leitura.

A título de curiosidade, pode referir-se que a orientação metodológica dos estudos deste autor, em que a componente das fontes literárias amplamente se ins­creve, levou já o conhecido classicista Paolo Fedeli a reexaminar, a partir das suas análises, a delicada relação entre estudo do direito romano e conhecimento histórico--literário, em artigo intitulado 'Giurisprudenza romana e letteratura romana' RFIC 11 (1983) 495-502.

Estamos, sem dúvida, perante uma obra de um reputado investigador, profes­sor de História do Direito Romano na Universidade de Bari, que mereceu uma boa tradução em português — passe por vezes um ou outro termo que não esconde a marca da língua original •—, pelo que é de felicitar a sua autora, bem como a editora que levou a cabo a sua publicação.

N. N. C. S.

DONATO GIANNOTTI, Republica florentina. A critical edition and intro­duction by GIOVANNI SILVANO, Genève, Librairie Droz, 1990, 265 pp.

A instabilidade política das repúblicas italianas, nos alvores da Idade Modernas é condicionante privilegiada para as múltiplas reflexões teóricas sobre as várias for­mas de governo e sua idealização, feitas ao longo do Quattrocento e primeira metade do Cinquecento. É neste contexto que surge a defesa dos ideais republicanos e espe­cificamente da República de Florença por autores como Niccolò Machiavelli, Fran­cesco Guicciardini, Alessandra de' Pazzi, Francesco Vettori, Donato Giannotti, que teorizam sobre a excelência da constituição mista, de raízes clássicas, e as van­tagens de um governo nela apoiado.

As circunstâncias factuais da história contemporânea e a experiência política justificam, contudo, a evolução do pensamento de um Maquiavel e o seu futuro posicionamento como defensor da teoria do Principado, capaz de dar resposta, em seu entender, à instabilidade governativa e violência que devastam a Itália.

O mesmo não sucederá com Gioannotti, apesar de escrever a sua Republica florentina no decurso das guerras entre Francisco I e Carlos V, que culminam com o saque de Roma. As suas simpatias políticas pelo republicanismo continuaram mesmo depois de frustradas as esperanças do estabelecimento de uma constituição republicana em Florença, com o regresso dos Médices, pelo que esta obra foi já

272

considerada uma utopia republicana (G. CADONI, Vutopia reppublicana di Donato Giannotti, Milano, 1978).

O seu modelo era a Sereníssima Republica de Veneza, tal como a Roma impe­rial o era para Maquiavel. Apesar disso, toda a atenção de Giannotti se concentra na análise da melhor constituição possível para Florença, e dado que a situação política e económica da cidade era particularmente tensa, pouco interesse revela pela política internacional.

Pela sua visão política, dimensionada dentro destes limites, Donato Gian­notti ocupa um lugar importante entre os teorizadores italianos de começos do século xvi. Prova-o, na peugada de outros prestigiados investigadores, Giovanni Silvara, autor da presente edição crítica da Republica fiiorentina, precedida de um rico estudo introdutório.

Este estudo, elaborado segundo uma perspectiva orientadora da leitura da obra, é revelador de fina acuidade nas abordagens de Giovanni Silvani, que manifesta um global e profundo conhecimento da época que estuda e dispõe de copiosa biblio­grafia crítica actualizada.

Compõe-se de quatro capítulos. Trata o primeiro da génese da obra e seus condicionalismos político-sociais, a que não faltam também os dados biográficos necessários à integração do autor, no xadrez político da sua cidade.

Um segundo capítulo é revelador da posição que ocupou Donato Giannotti entre os pensadores políticos seus contemporâneos, tais como Machiavelli e Guiccir-dini, autores francamente mais estudados. É que, apesar de nas últimas décadas terem surgido vários trabalhos sobre a biografia e as ideias de Giannotti, que o autor refere e analisa criticamente, o corpus dos seus escritos não mereceu ainda uma análise global e compreensiva da sua verdadeira dimensão como um dos últimos representantes do republicanismo florentino. Da vulgarização da sua tomada de posição como defensor da ideologia política e cultural republicana florentina dá-nos notícia a obra bem conhecida de Antonio Brucioli, Dialoghi delia moral filosofia, em que Giannotti figura como personagem interveniente.

De grande valor a nível conceptual é a análise, feita no capítulo terceiro, do vocabulário político da época, capaz de clarificar passo a passo a ideologia do autor e seu posicionamento na história das doutrinas políticas contemporâneas.

Um último capítulo revela Giannotti um homem do seu tempo, herdeiro do peso de uma tradição clássica, que, pelas suas aspirações políticas, centralizadas sobre o conceito de liberdade, preconiza o constitucionalismo moderno europeu dos séculos xvn e xvm.

A transmissão do texto, com a história dos manuscritos e relações genéticas entre eles e a edição princeps, precede uma cuidada edição crítica da obra Republica Florentina, que recolhe em rodapé as várias lições.

Dedicada ao cardeal Niccolò Ridolfi, compõe-se de quatro livros, com f. 172 r, e possui no cólofon a indicação da data: «Fu imposto fine alia presente opera a di XIII di Gennaio ad ore VII et mezzo MDXXXI in villa».

Um índice onomástico e temático termina esta edição, que é um documento do saber filológico do seu comentador e um contributo valioso, não só do ponto de vista da história das ideias, mas também do pensamento político, na primeira metade do Cinquecento italiano.

N. N. C. S.

273

TOMMASO FiOREs Dal Virgílio Minore alla poesia d'Ovidio. Premessa di Paolo Fedeli, Manduria— Bari —Roma, Piero Lacaita Editore, 1987, 188 pp.

T. Fiore não era, no sentido próprio do termo, um classicista. Mas La poesia di Virgílio (Bari, 1930) veio a criar-lhe algum nome como intérprete de grande sensi­bilidade e inconformismo da obra virgiliana.

- A presente publicação, com o objectivo de comemorar o centenário do nas­cimento, visa confirmar esta imagem; daí a inclusão de trabalhos, alguns dos quais inéditos, consagrados ao «Virgílio Menor» e a Ovídio.

Diga-se, desde já, que estes textos devem ser olhados como um produto da época em que foram concebidos; desinseri-los desse contexto e ligá-los ao momento da publicação, coincidente com o bimilenário virgiliano, de cujos discursos oficiais se afastam substancialmente, é um erro que os desvirtua.

O «Virgílio Menor», título da obra de A. Rostagni que mereceu uma recensão de T. F., também aqui reproduzida (pp. 45-51), contém uma breve apreciação de Círis, Culex e Catalepton. No mesmo espírito deve incluir-se o comentário ao episódio de Niso e Euríalo, da Eneidea, exemplo daquilo que o autor aplida de «heroísmo ético» (pp. 33-43).

Curioso é o discurso pronunciado em Perugia, em 1930, nas comemorações virgilianas; revela um Virgílio que se debate entre dois pólos: a paz e tranquilidade da Arcádia e, do outro lado, a dor, a tragédia, o fatalismo, as mortes. Neste sentido, pois, a Eneida possui as marcas da restante obra do poeta.

Quanto a Ovídio, a quem são dedicados estudos que resultaram das lições profe­ridas em Bari, T. F. não partilha do ponto de vista mais generalizado, o dos seus detractores; mas, na busca de uma visão equilibrada, também não opta pelo encómio acrítico.

Podem resumir-se assim os juízos que faz das várias obras ovidianas : Amores — obra imatura; Heroides — contradições latentes entre a arte e a sua total ausência; Fasti e Ibis — obras menores, carecidas de labor limae; Ars amatoria—alguns momentos maus não esbatem a riqueza poética do conjunto ; Metamorfoses — a melhor obra do autor, com marcas de originalidade; Tristia — momentos de bela poesia, ao contrário de Epistulae ex Ponto, que manifestam um colapso nas faculdades poéticas de Ovídio.

Em apêndice são apresentadas traduções de alguns dos passos comentados, a somar-se a outras que haviam já surgido no corpo do volume.

Em suma, não estamos perante um opus magnum, nem essa é, supõe-se, a intenção dos editores, mas trata-se, sem dúvida, de uma lufada de ar fresco, onde a sensibilidade se impõe ao tecnicismo exagerado que, por vezes, tende a imperar nos estudos literários. Apesar de textos avulsos e aparentemente desconexos, com temas distintos e uma génese marcadamente diferente, o motivo global e a visão sensível que a todos é comum conferem unidade ao conjunto.

18

274

A inserção das traduções em apêndice, ao mesmo tempo que outras surgem no decurso da obra, embora se compreenda (a antologia não é da responsabilidade do autor), retira alguma solidez estrutural ao livro; mas não o bastante para deixar ofuscado o seu mérito.

CARLOS ASCENSO ANDRé

GEORGE HUGO TUCKER, The poet's Odyssey: Joachim du Bellay and the Antîquitez de Rome. Oxford, Clarendon Press, 1990, XIV + + 304 pp.

G. H. Tucker ocupara-se já de Du Bellay em um pequeno estudo dedicado ao soneto XXXI de Les Regrets (FS 36, 1982, 385-396). Abalança-se agora a trabalho de maior fôlego mas sobre uma outra obra daquele nome grande do Renascimento francês, as Antiquitez de Rome.

O tom geral do volume é enunciado, desde logo, na introdução : estabelecer a multiplicidade e multidireccionalidade de relações dos poemas das Antiquitez. Objectivo em boa medida alcançado, diga-se desde já.

A visão de síntese feita no cap. I — «A poetic Odyssey: parisian beginnings, departure and homecoming» — representa a adopção de uma metodologia bastante útil, atendendo ao critério cronológico que orientará o resto do trabalho. Aí verifi­camos os aspectos que G. H. T. mais sublinha na obra do poeta francês: uma carreira curta, mas variada e intensa (p. 8); o bilinguismo como forma de expressão de múlti­plas visões, subtilmente diferentes, de temas idênticos (p. 12); a importância dos quatro anos passados em Roma, em que o poeta «found his environment» (p. 46) ; a contradição entre o reconhecimento de que era alvo em Roma e o esquecimento a que era votado na pátria (p. 50) ; a importância do encontro, in loco, com os poetas do passado, e da experiência da atmosfera integral de Roma, em Roma (p. 52).

O percurso em Roma — cap. II, «The quest for Rome, in Rome» — é feito por mão de Fabrício; mas são apontados outros paralelos, designadamente com Hildebert, Bernard de Moriay, Poggio Bracciolini. A verdade é que o poeta «não proclama jamais ter encontrado Roma em Roma»; descobriu apenas fragmentos de uma Roma arquitectónica e literária e combinou os elementos de ambas para formar a imagem ideal que nos lega (pp. 103-104).

O cap. Ill — «Roman texts and contexts: Vitalis' portrait gallery rediscove­red»— leva-nos a múltiplas influências, entre elas Buchanan, Beza, Janus Vitalis, Jean Doublet. Dessa comparação ressalta, segundo G. H. T., que «Du Beilay's jour­ney to Rome was, if anything, an inspiring 'return', after the manner of a Rutilius, to a privileged place, a superior home, under a more brilliant sky. In exchanging Paris for Rome, he may not have 'changed his heart' or 'fled himself but he did find himself as poet through the interaction there of his own culture and sensibility with other writers and their writings» (p. 173).

275

O regresso é estudado no cap. IV — «The end of all», onde continua a desta-car-se uma poesia entretecida da interacção de múltiplos textos. O final sublinha o triplo aparecimento do tema memento mori em três níveis: aplicado à obra do poeta, destinada a morrer depois da sua morte; aplicada ao próprio poeta, condenado ao esquecimento; aplicado aos leitores vindouros. O futuro, no fundo, reserva-lhe a mesma sorte que Roma teve.

A sensação final pode ser de frustração: todos os monumentos do engenho humano estão condenados a desfazerem-se em pó ; o que sucedeu a Roma aguarda o poeta; o encontro de Du Bellay com as ruínas tornou-se no guia (pessimista) do pró­prio poeta, o texto confundiu-se com o quadro, a viagem ganha feições de Nekya (da «Conclusion», pp. 225-231).

Esta apreciação erudita e de grande lucidez é seguida de alguns apêndices enriquecedores, um dos quais (pp. 235-236) sobre o humanista português Diogo Pires, também ele um modelo quinhentista da poesia de exílio, e um outro com a tradução dos passos citados ao longo do livro.

Completa o volume abundante bibliografia, repartida por vários temas: fontes, edições, obras de referência, em cada caso respectivamente para a Antiguidade, o poeta em estudo, o Renascimento e outros autores abordados. A lista é extensa, embora não exaustiva; sente-se, de facto, a ausência de obras essenciais sobre a temática do exílio, sobre Ovídio, modelo de toda a poética do desterro, e também, pelo menos, sobre um dos poetas referidos, o português Diogo Pires. Lacuna que se compreende, atendendo à vastidão do tema em causa, e que passa quase despercebida ante o rigor e a qualidade do trabalho de G. H. T.

CARLOS ASCENSO ANDRé

PLATóN — Crátilo. Introducción, version y notas de U. SHCMIDT

OSMANCZIK. México, Universidad Nacional Autónoma de

México, 1988, CXLVII + 90 pp.

Da Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Mexicana, responsável por uma já extensa e meritória tarefa de divulgação e exegese de obras da Anti­guidade Clássica, surge esta edição bilingue do Crátilo, a cargo da helenista U. S. Osmanczik, que para a mesma editora preparou também as versões do Laques e do Górgias, Edição que é de toda a justiça salientar, já pela qualidade do seu estudo introdutório, já pela cuidada versão que acompanha o texto grego (estabelecido por A. Méridier).

Repartindo-se por cinco capítulos, a Introdução abrange as principais vertentes de análise do diálogo: enquadramento dramático e cronologia relativa (I), termino­logia técnica no âmbito da teoria linguística (II), estrutura interna da obra e evolu­ção do movimento dialéctico (III), problemas ligados à interpretação global do diá-

276

logo, quer em confronto com os pressupostos actuais da teoria da linguagem (IV), quer com os contributos anteriores ao Crátilo — particularmente da época sofís­tica (V).

Sem menosprezar o material informativo e reflexivo dos restantes capítulos, são porventura o III e o IV (respectivamente «Paráfrasis dei contenido» e «Alguns problemas de Crátilo») os que mais atraem a atenção do estudioso de Platão ou da teoria da linguagem. Neles se oferece, de forma singularmente acessível, uma análise das várias sequências da argumentação e das mutações que as premissas iniciais — naturalismo ou convenção dos onomata — sofrem, quer à luz da controvérsia sofística physislnomos quer dos pressupostos filosóficos (heraclitianismo versus eleatismo) que opõem Crátilo e Hermógenes. Ao longo das hipóteses «naturalistas», avançadas e retocadas por Sócrates face ao convencionalista Hermógenes, e da sua posterior inflexão «convencionalista» face ao naturalismo radical de Crátilo, extrai também a A. alguns dos contributos mais impressivos do diálogo, no que respeita à teoria da linguagem.

Entre eles, o enfoque sobretudo semântico em que é perspectivada a relação actual onoma / pragma e se estende ao plano dos pro ta onomata, as palavras primi­tivas ou «atómicas» (p. XLII), cuja adequação e capacidade de significar, na base de uma imitação ou imagem (sonora), é passível de definir-se como «relación fonosimbo-lista entre significado y significante» (p. XLvni); a valorização da linguagem como instrumento, reflexo imediato de um modelo de raciocínio colhido nas technai (vide pp. Lxvm-Lxxn, cf. cxvni-cxrx), mas essencial a todas as etapas em que se vai precisando a orthotes onomaton (especificamente: «relación entre cosa y denomina-ción», p. xxi) como resultado de um saber específico, atribuído por Sócrates-Platão, com mais ou menos convencionalismo, à figura mítica no nomothetes; a dimensão epistemológica da linguagem, nas funções do didaskein e do semainein e, de modo mais especulativo, na procurada (e frustrada) relação «natural» entre os onomata e os eide (pp. xc-ci) ; as possibilidades e limitações que se entreabrem a uma «teoria da comunicação», que as funções atrás mencionadas não permitem assegurar (p. cxix, cf. xxx n. 1), mas parece implícita na comparação com a linguagem ges­tual (p. XLIV n. 51); ou ainda a consciência platónica do devir histórico da(s) lin­guagens), bem documentada a propósito das etimologias (p. XLI) e sobretudo da «fonosimbólica», de que Platão terá sido o criador e onde, aliás, se entrevê uma «posible explicación, ai menos parcial, dei linguage» (p. LXXXTV).

Esta breve resenha de tópicos justifica amplamente a afirmação de que «Platón hace uso de la terminologia physei / nomo con respecte al origen y la corrección de los onomata, pêro dicha oposicíón resulta ser un trampolín para examinar pro­blemas que comprenden mucho más que la pergunta de si las denominaciones son correctas por naturaleza o por convención» (p. cxm). De facto, a oposição é pratica­mente anulada no final, onde se sugere «una espécie de balance entre la teoria natu­ralista y la convencionalista» (p. LV), equilíbrio ainda assim périclitante, já que o naturalismo socrático tem muito mais a ver aqui com o significado do que com o significante (p. cm).

Sem rejeitar a importância dos aspectos ontológicos e epistemológicos (p. LXI), a A. acentua assim a pertinência de uma leitura do diálogo centrada na perspec­tiva de uma teoria da linguagem, que capta os elementos dispersos da tradição e dos tratados sofísticos da época, refundindo-os numa pesquisa sistemática onde o

277

papel pioneiro de Platão é por diversas vezes evidenciável: por exemplo, na sugestão de uma «semiótica incipiente» (p. Lxxvra), ou nas tentativas fonossimbólicas de explicar o onoma como imagem.

A este denso ensaio teríamos apenas a opor um esbatimento, talvez voluntário, da dimensão irónica do diálogo. O leitor menos precavido poderá, por exemplo, aceitar pelo seu valor facial a desvalorização das etimologias aqui proposta, quando elas constituem, de facto, um dos recursos mais frequentes na elaboração da lin­guagem filosófica dos diálogos (vide J. Classen, Sprachliche Deutung ais Triebkraft platonischen und sokraíischen Philosophierens, Munchen, 1959). Do mesmo modo que o aparente insucesso socrático, resultante da fractura entre o plano da linguagem (denominação) ideai e o da realidade pragmática não pode ser visto à luz de uma insuficiente exploração da teoria de Hermógenes (p. XCK): na realidade, as duas teses estão quase em permanente confronto, tanto na conversa com Hermógenes como com Crátilo. O «salto» que a A. desejaria ver completado «concebiendo el signo como símbolo y no como ícono» (p. xcvin), está bem sugerido no volte-face com que, quase no finai (435d), se aventa a necessidade da convenção para justificar a orthotes onomaton.

Mas o jogo não se abre todo : ao leitor do diálogo caberá reflectir na porção de verdade ou de erro que os argumentos anteriores veicularam, face ao novo reconhe­cimento. Desse estímulo à pesquisa, à colmatagem de espaços em branco, que é a vocação do diálogo aporético, nos dá conta, de resto, a presente Introdução, bem como as notas ao texto e à tradução, que são apresentadas no final.

A versão castelhana revela o mesmo apurado trabalho sobre o texto grego, assinaiando-se, desde logo, por uma listagem de expressões técnicas mais ocorrentes no diálogo e de que se dão as respectivas equivalências (incorrecta, no entanto, a de «dar una denominación o un nombre próprio» para onoma keisthaí, com óbvio valor passivo, p. xvn). Sobremodo útil pelo estabelecimento de critérios, este con­junto de equivalências aponta no sentido de uma potencial «actualização» da lin­guagem técnica do Crátilo, uma ou outra vez concretizada; é o caso das opções contextuais de «nome», «denominação», «palavra» e mesmo «substantivo» para onoma (p. xvi). Pensamos que, sem perda de rigor, esse critério poderia ter sido alargado a outros termos-chave: assim a logos, traduzido por «discurso» em todo o passo 385b-387c, onde o seu sentido óbvio é o de «enunciado» (como aliás se reco­nhece na p. XDC — cf. cxxix n. 7) ; ou a gramma, claramente «fonema» (ou «som») na generalidade das ocorrências.

Fora deste âmbito, registaríamos apenas duas equivalências discutíveis: a de «essência» para ousia (alargada a aletheia, 439a), cujo anacronismo a própria A. salienta em nota (p. cxxxi, com remissão para Derbolav; mas vide também o historiai da palavra em Ch. Kahn, The Verb 'Be* and its Synonims. Part VI, Dordrecht, 1973); e a de «demónio» para daimon — esta última, particularmente ingrata pelas conotações negativas que o seu uso corrente, derivado da tradição cristã, acarreta («génio» é de longe preferível neste contexto, como propõem Méri-dier para o Crátilo e Robin para o Banquete, nas edições respectivas das Belles--Lettres).

Estas discordâncias pontuais não empenam a legibilidade de um texto razoa­velmente longo e eriçado de dificuldades, como é o do Crátilo. Não se demarcando

278

embora por um excessivo apuro estilístico, a versão de U. Schmidt é no geral lím­pida e fluente. A homogeneidade de critérios e de linguagem, a meditação cuidada de inúmeros passos complexos, quer no domínio da hermenêutica quer no da trans­lação para outra língua (destaque, neste aspecto, para a longa secção das etimologias) asseguram uma estimulante (re)visão do Crátilo, que se lê com agrado e proveito.

MARIA TERESA SCHIAPPA DE AZEVEDO