RCMA 18 pr nov/dez - ecodebate.com.br · Por Gilberto Dupas. 4 AQUECIMENTO GLOBAL por Mason Inman D...

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A revista Cidadania & Meio Ambienteé uma publicação da Câmara de CulturaRua São José, 90, 11o andar, grupo1106Centro – 20.010-020 – Rio de Janeiro/RJTelefax (55-21) 2432-8961 • 2487-4128

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Editado e impresso no Brasil.

A Revista Cidadania & Meio Ambiente não seresponsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos

em matérias e artigos assinados. É proibida areprodução dos artigos publicados nesta edição sem

a devida solicitação por carta ou via e-mail aosrespectivos autores.

E D I T O R I A L

Caros Amigos,

A despeito dos esforços de milhões de indivíduos engajados na de-

fesa do meio ambiente, por que razão a situação ecológica do plane-

ta, ao invés de melhorar, continua piorando?

O ambientalista e ensaísta Hervé Kempf identifica com muita propri-

edade o “nó” da questão: o divórcio litigioso entre a ecologia global e a

economia global. Enquanto cientistas e ambientalistas apresentam evi-

dências irrefutáveis da destruição sistemática da “vida”, as elites eco-

nômicas mundiais, que se beneficiam da pilhagem planetária, permane-

cem insensíveis a tudo que não justifique seus lucros abusivos. E para

impedir o relacionamento sustentável homem-meio ambiente, os do-

nos do mundo disseminam “verdades” falaciosas que, ao semear pâni-

co, impedem o desabrochar da nova – e possível – era de liberdade,

ecologia e fraternidade preconizada por Kempf no artigo Como os ri-

cos estão destruindo a Terra, publicado nesta edição.

O modelo econômico predatório baseado no “lucro pelo lucro” –

pouco importa que um bilhão de indivíduos esteja em crítica situação

de desnutrição crônica – também é devassado no relatório Global

Corruption Report 2008, recém-lançado pela Transparency Internati-

onal (TI). Após a leitura do artigo de Charles Kenny, que desnuda a

imoralidade da corrupção no setor da rede de distribuição de água,

recomendamos que você acesse a totalidade do relatório disponível

on-line, conforme link indicado no artigo.

O perverso “modelo de crescimento” ora praticado acelera a atual

crise econômico-financeira, a insustentabilidade e o débito de futuro

que legaremos às próximas gerações. No entanto, o desenvolvimento

sustentável é possível, como prova um sem número de corporações,

que ao investir em ações para minimizar os impactos negativos de

suas atividades produtivas geram novas fontes de trabalho, além de

riqueza e de inclusão social.

O desastre ambiental e humano não é inevitável. Como profetiza

Hervé Kempf, “apesar da escala de desafios a enfrentar, começam a

surgir soluções, e a necessidade de reconstruir o mundo está em fran-

co renascimento.” O exercício pleno da cidadania, a implementação

de políticas públicas inclusivas e a reabilitação dos preceitos huma-

nistas tornarão a destruição ecológica um negócio não mais rentável.

Hélio Carneiro

Editor

Diretora

Editor

Subeditor

Projeto Gráfico

Revisão

Regina [email protected]

Hélio [email protected]

Henrique [email protected]

Lucia H. [email protected]

Vanise Macedo

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conhecimento e à reflexão através denotícias, informações, artigos de opinião

e artigos técnicos, sempre discutindocidadania e meio ambiente,

de forma transversal e analítica.

Colaboraram nesta edição

Mason InmanOded GrajewCharles Kenny

Michael DonoghueDaphne Wysham

Reinhold StephanesMoises Velasquez-Manoff

Gilberto DupasHerve Kempf

Rogério G. Teixeira da CunhaM. Nathaniel Mead

Roberto SmeraldiUNEP/GRID-Arendal

Henrique Cortez

Nº 18 – 2008

Capa: Foto Jeff Kubina

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CO2 é para sempre

As emissões de CO2 liberadas pelos combustíveis fósseis podem permanecer ativas na

atmosfera por milênios, segundo novo modelo de simulação climatológico. Por Mason Inman

Enxofre no diesel: sentença de morte!Acordo judicial para o não cumprimento da resolução 315, do CONAMA, que reduz aquantidade de enxofre no diesel, é um estímulo à impunidade. Por Oded Grajew

Água e corrupção: uma questão de ética públicaA corrupção na administração da política pública da água afeta diretamente a sobrevivênciae a sustentabilidade de milhões de indivíduos em todo o mundo. Por Charles Kenny

Mudar é mais fácil do que evoluirA união dos estudos sobre a biodiversidade e a evolução nos corredores ecológicos permitea compreensão dessa dinâmica na distribuição das espécies. Entrevista com Michael Donoghue

Lixo: os “garimpeiros” de Nova DéliA instalação de um incinerador “gerador de crédito de carbono” pode acabar com o ganha-pãodos catadores de lixo doméstico e de resíduos eletro-eletrônicos. Por Daphne Wysham

Cerrado: o futuro em cinzasA tragédia das queimadas sem controle é um imenso desastre sócio-ambiental. Umaagrosselvageria que legará às próximas gerações apenas cinzas. Por Henrique Cortez

A carne e a saúde do planetaO crescente consumo de carne em escala global pode ter sérias conseqüências para a saúde doplaneta e da humanidade. Especialistas apresentam soluções. Por Moises Velasquez-Manoff

O desafio da AmazôniaA sustentabilidade da Amazônia exige a adoção de alternativas sustentáveis – e viáveiseconomicamente – para o equilíbrio entre o homem e a natureza. Por Reinhold Stephanes

Como os ricos estão destruindo a TerraA crise planetária se alimenta do modelo de gestão insustentável dos recursos naturais.Descubra como é possível reinaugurar uma nova era de sustentabilidade. Por Herve Kempf

“Débito de futuro”: a crise definitivaOu freamos o consumismo desregrado, reduzimos o que achamos ser fundamental,aumentamos a reciclagem, repensamos nosso estilo de vida e mudamos a nossa relação como meio ambiente ou só temos uma opção: a extinção! Por Rogério G. Teixeira da Cunha

Telefone celular e câncer: alerta vermelho!Em estudo publicado na edição de maio de 2008 do International Journal of Oncology,pesquisadores suecos evidenciaram significativas associações entre o uso a longo prazode celulares e o risco de desenvolvimento de tumores cerebrais. Por M. Nathaniel Mead

As lições de Santa CatarinaIndependentemente de nossa capacidade em adotar medidas efetivas para mitigar a criseclimática, os eventos naturais extremos intensificar-se-ão. Santa Catarina é a prova dodesastre ambiental – e político – há muito anunciado. Por Roberto Smeraldi

Técnicas alimentares: saúde ou doença?Consumimos alimentos contaminados por agrotóxicos e alterados pelo processamento. Serápossível uma agricultura orgânica que gere mais saúde do que doenças? Por Gilberto Dupas

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por Mason Inman

Depois de o combustível fóssil aca-bar, por quanto tempo teremos o

aquecimento global? Embora essa ques-tão pareça simples, as respostas são com-plexas – e não completamente compreen-didas fora de um pequeno grupo de clima-tologistas. Quando os livros sobre mudan-ça de clima feitos para leigos – até mesmoos escritos por cientistas – mencionam otempo de “vida” do CO

2, a referência típica

é um século ou mais, ou mais de cem anos.

“Isso é tolice completa”, diz Ken Caldeira,do Carnegie Institution for Science, de Stan-ford, na Califórnia. O relatório do Painel In-

CO2

é para sempre!

tergovernamental sobre Mudança de Cli-ma (IPCC, em inglês) deu margem a muitaconfusão sobre o assunto e até o confun-diu, alega Caldeira e seus colaboradores,num estudo a ser publicado no Annual Re-views of Earth and Planetary Sciences2.Mas, agora, tanto Caldeira quanto outrosclimatologistas começam a divulgar que oCO

2 gerado pelo ser humano bem como o

conseqüente aquecimento atmosférico, te-rão longa vida – a menos que tomemosmedidas heróicas para arrancar o gás do ar.

O oceanógrafo David Archer, da Univer-sidade de Chicago, que realizou o estu-

do com Caldeira e outros, tem mais do quequalquer outro crédito para afirmar quantotempo o CO

2 dos combustíveis fósseis

durará na atmosfera. Ele diz, em seu novolivro, The Long Thaw:

“A vida útil do combustível fóssil CO2

na atmosfera é de alguns séculos, mais25 por cento que permanecerá para todoo sempre. Da próxima vez que você en-cher o tanque, reflita sobre isso”3.“Os impactos climáticos da liberação decombustível fóssil CO

2 na atmosfera serão

mais duradouros que as cápsulas de tempo,os dejetos nucleares e todo o tempo de vidada civilização humana”, sentencia Archer.

Climatologistas, liderados por David Archer alertam:

as emissões de dióxido de carbono – coadjuvante do

aquecimento global – podem permanecer ativas na atmosfera

por milênios. O modelo de simulação climatológico aplicado

por Archer expande a discussão e quantifica os efeitos a longo

prazo do CO2 l iberado pelos combustíveis fósseis.

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Os efeitos do dióxido de carbono na at-mosfera diminuem tão lentamente que, amenos que abandonemos nosso vício porcombustível fóssil – parafraseando GeorgeW. Bush –, alteraremos os padrões regula-res de geada e de degelo da Terra, commais de um milhão de anos. “Se a totalida-de das reservas de carvão forem usadas –diz Archer –, a glaciação poderá ser retar-dada por meio milhão de anos.”

RELATÓRIOS NEBULOSOS

“A longevidade do CO2 na atmosfera é a

parte menos conhecida da questão efeitoestufa”, sentencia o paleoclimatologistaPeter Fawcett, da Universidade do NovoMéxico. “E não porque não esteja bemdocumentado no relatório do IPCC. O pro-blema é que isso está enterrado sob mui-tas outras informações.”

Pouco importa se os especialistas que re-digiram os antigos relatórios do Painel deClima das Nações Unidas tenham feitodeclarações enganosas sobre a duraçãodo CO

2, afirma Caldeira e seus colabora-

dores. O primeiro relatório de avaliação,de 1990, informava que a vida do CO

2 era

de 50 a 200 anos. Os dos anos 1995 e 2001revisaram o período para menos: de cin-co a 200 . Em virtude de os oceanos ab-sorverem enormes quantidades de gáspor ano, a molécula de CO

2 passa, aproxi-

madamente, cinco anos na atmosfera. Masos oceanos também devolvem boa partedaquele CO

2 à atmosfera, de modo que as

emissões provocadas pelo homem man-têm elevados os níveis do gás na atmos-fera durante milênios. E mesmo se os ní-veis de CO

2 caírem, estudos recentes

evi9denciam que as temperaturas levarãomuito tempo para também decrescer.

Os primeiros relatórios do painel incluí-ram salvaguardas, como “Não se pode es-tabelecer a vida útil do CO

2 devido às di-

ferentes taxas de captação dos vários pro-cessos de remoção.” Porém, a mais recen-te avaliação do IPCC evita os problemasdos primeiros relatórios ao incluir salva-guardas que evitam oferecer estimativasnuméricas de sobrevida para o dióxido decarbono. Richard Betts, do UK Met Offi-ce Hadley Centre e colaborador do estu-do, diz que o painel fez essa mudança aoreconhecer que “as estimativas de longaduração citadas nos relatórios prévioshaviam sido potencialmente enganosasou sujeitas a interpretações errôneas.”

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Reação com rochas ígneas - 400.000 anos

Ano d.C

Reação com CaCO2 - 5.000 anos

Invasão oceânica - 300 anos

Liberação de CO2

Fig.1 – Modelo de simulação da concentração atmosférica de CO2 para os

próximos 40 mil anos, após emissões do gás, em conseqüência da queimade combustíveis fósseis. Diferentes frações do CO

2 liberado são recuperadas

em diversas escalas de tempo. Reproduzido de The Long Thaw3-

Em vez de fixar um valor absoluto para avida do CO

2 atmosférico, o relatório de 2007

descreve a dissipação gradual, com o pas-sar do tempo, ao afirmar: “Cerca de 50% doaumento de CO

2 serão removidos da atmos-

fera em 30 anos, e um adicional de 30% seráremovido em alguns séculos. Os restantes20% podem permanecer na atmosfera pormilhares de anos.” No entanto, caso as emis-sões cumulativas fossem altas, os modelossugerem que a porção remanescente na at-mosfera poderia ser mais alta. De modo glo-bal, afirma Caldeira, “a questão de nossocompromisso a longo prazo com a mudançade clima nunca foi realmente abordada ade-quadamente pelo IPCC.”

Os efeitos duradouros de CO2 também re-

presentam grandes implicações nas políti-cas energéticas, pondera James Hansen,diretor do Instituto Goddard de EstudosEspaciais da NASA. “Devido à longa vidado CO

2 , o problema climático não se reduz

pela redução de emissões em 20%, 50% ouaté mesmo 80%. Não importa muito o CO

2

emitido este ano, ano que vem ou a váriosanos a partir de agora. Ao invés disso, te-mos que identificar a porção dos combus-tíveis fósseis que permanecerão nos solosou capturados após a emissão e repostosno solo”, sentencia Hansen

ABSORÇÃO LENTA

Ao contrário dos outros gases de efeito es-tufa produzidos pelo homem, o CO

2 é dis-

perso por uma variedade de diferentes pro-cessos; alguns rápidos, outros lentos. Daí

resulta a dificuldade de fixar-se um únicodado numérico ou mesmo uma faixa de vidapara ele. A maior parte do CO

2 que emitimos

será sugada pelo oceano em algumas cente-nas de anos, sendo primeiramente absorvi-da pelas águas de superfície e, eventual-mente, pelas profundas, de acordo com ummodelo climático de longo prazo estabeleci-do por Archer. Embora o oceano seja vasto,as águas de superfície só podem absorvercerta quantidade de CO

2. As correntes têm

de bombear água fresca das profundezas atéa superfície antes que o oceano possa en-golir mais dióxido de carbono. Então, em umaescala de tempo multimilenar, a maior partedo CO

2 remanescente fica aprisionado à me-

dida que o gás dissolve-se no oceano e rea-ge com o calcário dos sedimentos do ocea-no. No entanto, esse processo nunca capta-rá quantidade suficiente de CO

2 para devol-

ver ao planeta os níveis atmosféricos anteri-ores à industrialização, revela, em recentepublicação4, o oceanógrafo Toby Tyrrell, doCentro de Oceanografia Nacional do ReinoUnido, em Southampton.

Finalmente, o processo mais lento de todos éo da fragmentação de rocha, no qual o CO

2

atmosférico reage com água para formar umácido fraco que dissolve as rochas. Acredita-se que tal processo crie minerais, como o car-bonato de magnésio, que seqüestra o gás deefeito estufa. Mas, segundo simulações rea-lizadas por Archer e outros, levaria centenasde milhares de anos para esses processosrestaurarem os níveis de CO

2 aos valores pré-

industriais. (Fig. 1 - topo da pág.)

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Embora diferentes em detalhes, várias mo-delagens de clima a longo prazo concordamcom o fato de que o CO

2 antropogênico leva

um tempo enormemente grande para se dis-sipar. Se todos os combustíveis fósseis fos-sem queimados graças às tecnologias atu-ais, após 1.000 anos, o ar ainda conteria deum terço à metade das emissões de CO

2.

“Para fins práticos, 500 a 1000 anos são parasempre”, concluem Hansen e seus colabo-radores de pesquisa. Nesse lapso de tempo,o planeta poderá assistir a ascensões e que-das de civilizações, e as coberturas de geloda Groenlândia e da Antártica Ocidental po-derão derreter substancialmente, elevandoo nível do mar o suficiente para transformara face do planeta.

NOVO ESTADO DE ESTABILIDADE

O aquecimento gerado por nossas emissõesde CO

2 duraria efetivamente para sempre.

Um recente estudo, conduzido por Caldeirae Damon Matthews, da Universidade deConcórdia, em Montreal, revelou que nãoobstante o volume de combustível fóssilqueimado, uma vez sustada a queima, empoucas décadas o planeta apresentará umatemperatura5 mais alta. Como explica Caldei-ra, “a temperatura aumenta durante algumasdécadas e permanece naquele patamar porpelo menos 500 anos” – prazo estipuladono modelo utilizado. “Não era o resultadoque estava esperando”, diz ele.

O resultado encontrado por Caldeira nãose deve a alguma peculiaridade do modelo,já que o mesmo comportamento é compro-vado em um extremamente simplificado

AlterAlterAlterAlterAlterações prações prações prações prações projetadas no COojetadas no COojetadas no COojetadas no COojetadas no CO22222 e no Clima: r e no Clima: r e no Clima: r e no Clima: r e no Clima: resumo dos cenários seesumo dos cenários seesumo dos cenários seesumo dos cenários seesumo dos cenários segundo o IPCC (1992)gundo o IPCC (1992)gundo o IPCC (1992)gundo o IPCC (1992)gundo o IPCC (1992)

A queima contínua

de combustíveis fósseis

poderá deixar uma

herança de CO2 que

durará milênios.

modelo de clima6 – a única discrepânciaentre os dois refere-se à temperatura finaldo planeta. Archer e Victor Brovkin, do Ins-tituto Potsdam para Pesquisa de ImpactoClimático, na Alemanha, chegaram ao mes-mo resultado valendo-se de simulações6

de longo prazo. Os modelos mostram quequeiramos ou não emitir muito ou poucoCO

2, as temperaturas

subirão depressa e

estabilizar-se-ão, baixando em apenas 1oCnum período de 12.000 anos.

Em função de mudanças na órbita da Ter-ra, os mantos de gelo devem começar aaumentar nos pólos em poucos milharesde anos – não obstante a forte possibili-dade de que nossas emissões de gás es-tufa consigam prevenir tal eventualidade,reflete Archer. Mesmo com o montante atéhoje emitido, uma nova idade do gelo de-

verá iniciar-se por volta dos anos 50.000.Mas, se queimarmos todos os combustí-veis fósseis remanescentes, a Terra nãoconhecerá outra Idade do Gelo senão emmeio milhão de anos, vaticina Archer.

Os efeitos, a longo prazo, de nossas emis-sões de CO

2 podem parecer remotos. Mas,

como lembra Tyrrell, “Não deixam de serassustadoras nossas preocupações comos resíduos radioativos produzidos pelaatividade nuclear. Pois os impactos poten-ciais das emissões de CO

2 na atmosfera são

ainda mais duradouros.”

Contudo, os efeitos indesejáveis de longoprazo ainda podem ser evitados se as novastecnologias, em fase de projeto, encontraremaplicação condizente. “Se a civilização foicapaz de desenvolver meios de seqüestrarCO

2 da atmosfera – diz Tyrrell –, é possível

revertermos o efeito ressaca de CO2.” ■

As projeções das emissões de CO2, geradas pela sociedade huma-

na a partir do uso de combustíveis fósseis, do desmatamento e daprodução de cimento, foram consideradas em alguns cenários doIPCC. O de maior emissão - IS92a - assume crescimento demo-gráfico moderado, alto crescimento econômico, farta disponibili-dade de combustível fóssil e uma fase sem energia nuclear. E o demenor emissão - IS92b - assume baixos crescimentos demográ-fico e econômico, além de graves entraves no fornecimento decombustíveis fósseis.

A compreensão de como as concentrações de CO2 na atmosfera

sofrerão futuras alterações exige modelos de ciclo de carbono quesimulem a relação entre as emissões e as concentrações atmos-féricas. A concentração estimada de CO

2 na atmosfera para cada

cenário de emissão (calculada pelo modelo Bern) é apresentadano segundo gráfico. Ambos os cenários apontam, em 2100, umaumento das concentrações muito acima dos níveis pré-industri-ais (75 a 220% maiores).

As alterações climáticas induzidas não podem ser revertidasrapidamente. Mesmo se as emissões de CO

2 por ação humana

forem estabilizadas ou reduzidas, o conteúdo de dióxido decarbono na atmosfera ainda aumentará por algum tempo.

REFERÊNCIAS

Flannery, T. The Weather Makers: The History and FutureImpact of Climate Change 162 (Atlantic Monthly Press,New York, 2005).Archer, D. et al. Ann. Rev. Earth Pl. Sc. (in the press).Archer, D. The Long Thaw: How Humans Are Changingthe Next 100,000 Years of Earth’s Climate (Princeton Univ.Press, 2008).Tyrrell, T., Shepherd, J. G. & Castle, S. Tellus 59, 664–672 (2007).Matthews, H. D. & Caldeira, K. Geophys. Res. Lett. 35, L04705,doi:10.1029/2007GL032388 (2008).Archer, D. & Brovkin, V. Climatic Change 90, 283–297(2008).

Nova Iorque sob as águas Foto: Jikamajoja

Taxa de emissão (bilhão de toneladas de CO2 por ano)

Concentração de níveis de CO2 resultantesCenários de emissão de CO

2

Concentração de CO2 em ppmv (partes por milhão por volume)

O dobro do nível pré-industrial

Fonte: Climate changes 1955, The Science of climate change, contribution of working group 1 to the second assessment report of theintergovernmental panel on climate change, UNEP and WMO, Cambridge press university, 199; Hadley center for climate predictionand research, United Kingdom, in Climate change information kit, Information unit for convenition (IUC), UNEP, Geneva, 1997.

IS92a - Cenário assume uma popula-ção mundial de 11.3 bilhões em 2100;crescimento econômico de 2,3-2,9%ao ano; e nenhuma ação para redu-zir as emissões de CO

2

IS92b - Cenário com população e cres-cimento econômico igual ao do IS92a,mas com o compromisso de muitospaíses da OCDE (Organização para aCooperação e Desenvolvimento Eco-nômico) em estabilizarem ou reduzi-rem as emissões de CO

2

S550 - Cenário ilustrativo de padrãode emissões visando estabilizar o CO

2

em aproximadamente o dobro de seunível pré-industrial logo após 2100.

6

Mason Inman – Escritor especializado emciência. Artigo publicado online em NatureReports Climate Change (20//1/2008) –www.nature.com/climate/2008/0812/full/climate.2008.122.html

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Enxofre no diesel:

por Oded Grajew

O acordo judicial que adiou a resolução

do Conama é um estímulo à impunidade.

A sociedade brasileira deve cobrar explicações.

Em outubro de 2002, o Conama (Con-selho Nacional do Meio Ambiente)emitiu a resolução 315, determinan-

do que, a partir de janeiro de 2009, a quanti-dade de enxofre no diesel baixe de 2.000 ppm– quando vendido nas áreas não-urbanas(70% do total) – e de 500 ppm – vendido nasáreas metropolitanas – para 50 ppm. NosEUA, por exemplo, essa proporção é de 15ppm; na Europa, de 10 ppm; e, em algunspaíses da América Latina, já é de 50 ppm.

O Conama determinou também que a in-dústria automobilística passe a comerci-alizar, a partir da mesma data, motores me-nos poluidores (Euro 4). A resolução deve-se ao terrível impacto que as partículas deenxofre têm sobre a saúde pública, sendoresponsáveis por graves doenças pulmo-nares e pela morte prematura (sobretudode crianças e idosos) de cerca de 3.000pessoas por ano na cidade de São Paulo ede 10 mil nas principais regiões metropoli-tanas do país.

Embora tivessem quase sete anos para seprepararem, a Petrobras e a Anfavea (re-presentando a indústria automobilística)declararam que não irão cumprir a resolu-ção, apesar de a Petrobras possuir imen-sos recursos financeiros e tecnológicos eas indústrias automobilísticas fabricaremos motores da geração Euro 4 nos seuspaíses de origem e mesmo no Brasil (sóque apenas para exportação).

Ao assumir o Ministério do Meio Ambi-ente, Carlos Minc declarou, publicamen-te, ser inadmissível o descumprimento daresolução. Pouco a pouco, atemorizando-se diante de pressões econômicas e polí-ticas, mudou de atitude e, em vez de con-tinuar exigindo o cumprimento, enviou ocaso para o Ministério Público.

Oded Grajew – Empresário, integrante doMovimento Nossa São Paulo e presidente doConselho Deliberativo do Instituto Ethos deEmpresas e Responsabilidade Social. Éidealizador do Fórum Social Mundial eidealizador e ex-presidente da Fundação Abrinq.Foi assessor especial do Presidente da Repúbli-ca (2003). Artigo transcrito de Tendências/De-bates, Folha de S. Paulo, 13/11/2008 e publica-do em www.ecodebate.com.br - em 14/11/2008

sentença de morte!

A promotora Ana Cristina Bandeira Lins,encarregada de conduzir o processo, ado-tou inicialmente, em declarações e entre-vistas, uma atitude firme pelo cumprimen-to integral da resolução. Pouco a poucose recolheu, passou a não atender a mídiae afastou qualquer contato com a socie-dade civil, negociando basicamente coma Petrobras, com a Anfavea e com Minc.

Diante da mobilização e pressão de váriasorganizações sociais que tentavam evitarum péssimo acordo, o Ministro CarlosMinc comprometeu-se a promover uma au-diência pública com a sociedade civil an-tes da assinatura de qualquer acordo ju-dicial. Mas não cumpriu a promessa.

A promotora Ana Cristina aceitou pratica-mente todas as propostas da Petrobras eda Anfavea (por exemplo, só em 2014 odiesel 2.000 ppm será substituído total-mente pelo diesel 500 ppm – o mesmo quehoje já circula nas regiões metropolitanas)e impôs compensações pífias (doação deum laboratório e campanha educativa pararegulagem de motores).

Todos os leitores deste artigo e suas famí-lias, especialmente se estiverem morandoem algum centro urbano, terão a saúde afe-tada por essa decisão. Desse episódio, fi-cam uma pergunta e algumas conclusões:

■ Quem pagará pelas graves doenças pul-monares e pelas mortes resultantes do des-cumprimento da resolução 315 do Cona-ma? A Faculdade de Medicina da USP esti-ma em U$ 400 milhões por ano o custo parao SUS apenas na cidade de São Paulo.■ Descumprir a legislação ainda compen-sa, no Brasil, para quem tem poder polí-tico e econômico.■ A promotora Ana Cristina B. Lins, aoaceitar um acordo tão lesivo à saúde pú-

blica, ao cobrar um preço baixíssimo pelodesrespeito à legislação e ao recusar qual-quer diálogo com a sociedade civil, arra-nhou a imagem do Ministério Público, ins-tituição tão importante à democracia e adefesa dos direitos humanos no Brasil.■ Há ainda empresas que confundem res-ponsabilidade social com marketing, patro-cínios e ações filantrópicas; e não enten-dem que a ética deve se estender a todasas atividades produtivas e, de forma igual,a todos os países em que atuam.■ O Ministro da Saúde, José Gomes Tem-porão, não deveria aceitar passivamen-te pagar a conta em doenças, vidas erecursos, mas exigir o cumprimento in-tegral da resolução.■ O Ministro Minc, por descumprir a pala-vra e por se mostrar tão vulnerável a pres-sões econômicas e políticas, perde impor-tante patrimônio para um servidor públi-co: a credibilidade, a confiança e o respei-to da sociedade. Não se confundem açõespirotécnicas e performances midiáticascom real compromisso com o meio ambi-ente, com a saúde pública e com a ética.

O acordo judicial foi, na realidade, umasentença de morte para milhares de brasi-leiros e um estímulo à impunidade. A soci-edade brasileira deve cobrar explicaçõese responsabilidade de quem patrocinou,participou, assinou e compactuou comessa lamentável decisão. ■

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uma questão de ética pública

Recurso sem substituto, a água é vital

à saúde, à segurança alimentar,

ao futuro energético e ao ecossistema.

Mas a corrupção que corrói a

administração desse recurso afeta

diretamente a sobrevivência e a

sustentabilidade de milhões de indivíduos,

como revela este artigo extraído do Global

Corruption Report 2008, Part one:

Corruption in the water sector, publicado

pela Transparency International (TI).

por Charles Kenny

Todo o mundo precisa de água paraviver. Mesmo assim, muitas casas,nos países em desenvolvimento,

não têm acesso à água encanada – quer porestarem fora de alcance da rede de distribui-ção, quer pelo colapso do sistema. A solu-ção é construir e manter os sistemas de dis-tribuição de água. No entanto, até mesmoquando os não-fáceis fundos de custeio detais obras tornam-se disponíveis, a corrup-ção cobra sua parte e distorce as decisõessobre a aplicação dos recursos, desperdiça-os e, ao cabo de tudo, ceifa vidas.

Uma pesquisa da corrupção no fornecimen-to de água no Sul da Ásia sugere que oscontratantes, freqüentemente, pagam su-bornos para abocanharem contratos, alémda corrupção miúda que acontece nos pon-tos de entrega do serviço. O estudo, reali-zado entre 2001-2002, mostra que o custoda corrupção para as empresas e para osetor representa um fardo considerável,

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REFERÊNCIAS

1. As opiniões expressas neste artigo são do autor e nãorefletem necessariamente as do Banco Mundial, de seusdiretores executivos ou dos países que eles representam.2. J. Davis, ‘Corruption in Public Service Delivery: Expe-rience from South Asia’s Water and Sanitation Sector’,World Development, vol. 32, no. 1 (2004).3. D. Leipziger et al., ‘Achieving the Millennium Develo-pment Goals: The Role of Infrastructure’, Policy ResearchWorking Paper no. 3163 (Washington, DC: World Bank,2003). It is worth noting that this estimate is open to dispu-te: see M. Ravallion, ‘Achieving Child-Health-Related Mi-llennium Development Goals: The Role of Infrastructure – AComment’, World Development, vol. 35, no. 5 (2007).4. M. Fay and T. Yepes, ‘Investing in Infrastructure: Whatis Needed from 2000 to 2010’, Policy Research WorkingPaper no. 3102 (Washington, DC: World Bank, 2003).5. Com base em domicílio médio de cinco pessoas e uma taxade natalidade bruta de 30 por 1.000 pessoas (a média nospaíses de baixa renda). As estimativas exatas são 18,75 e12,93 mortes evitadas, respectivamente. Cálculo para o casode baixo custo: cada US$1 milhão investido conecta 2.500(US$1.000.000/US$400) de lares com 12.500 indivíduos(2.500_ 5). Estes lares dão à luz 375 crianças a cada ano(0,03_ 12.500). Para estas casas, a cobertura aumentou 0 a100 por cento, resultando em menos 100 crianças mortas por2.000 nascimentos. Isso sugere que cada US$1 milhão possasalvar em média 18,75 crianças por ano (375_100/2000).6. M. Fay e T. Yepes, 2003. As estimativas de custo são parao período 2000 a 2010 e te por objetivo o aumento e a manu-tenção das redes de infra-estrutura de água. Não se baseia nainfra-estrutura exigida para atingir-se os objetos estabeleci-dos nas Metas de Desenvolvimento d Milênio, da ONU.7. Veja artigo que começa à página 40.

Charles Kenny é economista sênior do BancoMundial, emWashington, DC. O texto, com tra-dução da editoria de C&MA, foi extraído do Glo-bal Corruption Report 2008, Part one: Corrup-tion in the water sector, pp. 15-16. Dividido em10 capítulos, o relatório de 346 pp. pode ser bai-xado em formato PDF de www.transparency.org/publications/gcr/download_gcr#1 Primeiro rela-tório do gênero, ele identifica todas as questõesrelacionadas à água.

com perda de enormes recursos quando aconta final é tabulada. Os subornos vari-am, em média, de um a seis por cento dosvalores de contrato. Propinas pagas du-rante a construção oneram os custos emmais 11% do valor do contrato.

A formação de cartéis sancionados agra-va o problema dos custos inflados, já queeles elevam os preços 15 a 20% a mais doque o praticado pelo mercado. Piora oquadro o fato de tais pagamentos impedi-rem as empresas de cumprirem as obriga-ções contratuais. As propinas tendem amascarar um serviço de baixa qualidade ea não entregar os produtos com as carac-terísticas contratadas.

O material não-fornecido é estimado emtrês a cinco por cento do valor do contra-to.2 O custo econômico de cada dólar emmaterial não-fornecido deve ser re-estima-do em três a quatro dólares, pois implicana redução da vida útil e na capacidadede fornecimento da rede de distribuição.Esses custos somam outros 20% sobreos de contrato já inflacionados. Esse du-plo impacto da corrupção sobre a cons-trução de redes de água pode elevar ocusto do acesso à água em 25 a 45%.

E quais são os custos econômico-sociaisdessa corrupção? A análise de dados deuma pesquisa em domicílios de 43 paísesem desenvolvimento sugere forte correla-ção entre o acesso à água e a mortalidadeinfantil. Para cada ponto percentual adici-onal de acesso doméstico, verifica-se umaredução na taxa de mortalidade infantilabaixo dos cinco anos: um declínio de umamorte para cada dois mil nascimentos.3

Pesquisas comparativas entre países reve-lam que o custo da instalação de água do-méstica situa-se em redor de US$400.4 Le-vando em consideração o custo final dacorrupção no aprovisionamento de água,aquela estimativa aumenta em 45%, che-gando a US$580. Como demonstra o exem-plo, o fracasso no combate à corrupçãoresulta em menos domicílios conectados àrede de distribuição de água, em poucoavanço na redução da mortalidade infantile em maiores desafios para se alcançar asMetas de Desenvolvimento do Milênio re-lacionadas à água, saúde e pobreza.

Se considerarmos a estimativa do custode conexão em US$400 por domicílio, o

investimento de US$1 milhão em projetosde água encanada realizado em paísescom carência de tais instalações benefici-aria 2.500 famílias e salvaria 19 criançaspor ano.5 O acesso à água traria outrosimpactos positivos na saúde doméstica,na educação, no resgate da condição fe-minina e na pobreza. E os custos impos-tos pela corrupção, em 20 anos, signifi-cam que, o mesmo investimento de US$1milhão, quase 30 % menos de domicíliosteriam acesso à água, menos 113 criançassobreviveriam, e todos os benefícios rela-cionados ao serviço ficariam definitiva-mente comprometidos.

Recente estimativa na determinação doscustos de investimento, baseados em ten-dências passadas, indica que países combaixo PIB teriam que investir US$29 bi-lhões em projetos de água para enfrenta-rem a demanda dos usuários na décadaque termina em 2010.6 Os impactos de cor-rupção inevitavelmente criariam perda derecursos, arruinando a efetividade de talinvestimento. Assumindo um contexto debaixa corrupção, a cada ano a taxa de mor-talidade infantil recuaria em 540.000 víti-mas, graças ao investimento em projetosde acesso à água realizados numa déca-da. Um ambiente de alta corrupção salva-ria, ao menos, 30 % de vidas.

Essa é apenas uma estimativa parcial.Como sinalizado, os impactos da corrup-ção no acesso doméstico à água vão mui-

to além do aumento da mortalidade infan-til. A falta de acesso à água implica tam-bém em doenças e mortalidade de crian-ças mais velhas, bem como de adultos.Menos água e mais doença representamperdas de dias na escola e no trabalho. Asconseqüências do acesso reduzido à águadeixam marcas duradouras na escolarida-de e na geração de renda domiciliar.

Para cuidar dos doentes, outros membros dafamília são obrigados a se afastarem das ativi-dades economicamente produtivas. Quandoo domicílio não é servido por água encanada,muito mais tempo é gasto na coleta do líquidoem pontos distantes. E, como tal tarefa é fre-qüentemente delegada às mulheres e às cri-anças, as famílias são forçadas a se dividirementre a educação e outras atividades.7 Siste-mas de governo fracos e altos níveis decorrupçãocombinam- se em diferentes com-posições para afetarem os lares e arruinaremo sustento das famílias. De qualquer modo, oimpacto mais surpreendente vem a ser o cus-to em termos de vida e de morte. ■

Os subornos pagos

pelas empreiteiras

variam em média de

um a seis por cento

do valor contratual.

E as propinas

adicionais pagas

durante a construção

oneram os custos

em mais 11%.”

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BIO

DIV

ER

SID

AD

E

Segundo Michael Donoghue, Professor de Ecologia e Biologia Evolucionária

da Universidade Yale, os corredores ecológicos são fundamentais para

determinar a distribuição das espécies.

Em suas pesquisas, o Prof. Michael Donoghue procura entender porque existem mais espécies em certas áreas do planeta e quais são osfatores ecológicos e evolutivos que explicam os padrões de distri-

buição dos organismos. Seus estudos indicam que, ao ocorrer uma mudan-ça climática em determinado ambiente, a evolução pode se encarregar daadaptação das espécies locais. Mas é mais provável, de acordo com ele, quea área vá receber novas espécies, já adaptadas ao novo clima em outroslocais – contanto que existam corredores que permitam essa migração. Oproblema, em seu parecer, é que a ação humana causou uma fragmentaçãoda paisagem sem precedentes, dificultando a comparação com períodos demudanças climáticas anteriores. Essa dificuldade, aliada à escassez de da-dos biológicos, torna as previsões extremamente difíceis. Em visita ao Bra-sil para participar do simpósio “Biologia evolutiva e conservação da biodi-versidade: aspectos científicos e sociais”, na sede da FAPESP (Fundação deAmparo ao Desenvolvimento da Pesquisa), em São Paulo, Donoghue con-cedeu esta entrevista à Agência FAPESP.

AGÊNCIA FAPESP – UM DOS FOCOS DE SEU TRABALHO É COMPREENDER

POR QUE EXISTEM MAIS ESPÉCIES EM ALGUMAS ÁREAS DO PLANETA DO QUE EM

OUTRAS. POR QUE É TÃO DIFÍCIL ENTENDER ESSA DISTRIBUIÇÃO?

Michael Donoghue – Há muitos anos estudamos a biodiversidade, masainda temos poucos elementos para responder a perguntas como essa. Porexemplo, não sabemos quantas espécies existem na Terra. Na realidade, nãotemos a menor idéia. Há 1,8 milhão de espécies descritas, mas estima-se queexistam mais de 10 milhões ainda desconhecidas. Não conhecemos, prova-velmente, mais que 10% ou 20% do total das espécies na Terra.

MUDAR É MAIS FÁCIL DO QUE EVOLUIR

CORREDOR ECOLÓGICO

FAPESP – TAMBÉM NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES SOBRE A DISTRIBUIÇÃO

DAS ESPÉCIES CONHECIDAS?

M.D. – Sabemos muito pouco sobre isso. Se eu apontar para um animalespecífico e perguntar onde aquela espécie está distribuída na Terra, aresposta mais freqüente será “Não se sabe”. Não temos um inventáriointegrado que dê uma boa noção de onde os organismos vivem. Isso éespecialmente verdadeiro para microrganismos. Temos realmente muitopouca noção de quantas espécies de microrganismos existem e onde elasestão distribuídas. Tentamos responder a essas questões muito amplas etemos que lidar com muitas lacunas de informação. Há muita informaçãobásica que simplesmente não temos.

FAPESP – POR QUE SERIA IMPORTANTE RESPONDER A ESSE TIPO DE QUESTÃO?

M.D. – Se pudermos determinar com mais precisão o número de espé-cies e onde elas vivem, talvez possamos ter melhores respostas sobre asmudanças que elas sofrerão no futuro. Esse tipo de informação nos colo-cará em posição para fazer previsões sobre o futuro da biodiversidade.

FAPESP – QUE TIPO DE PESQUISA PRECISA SER FEITA PARA COMPREENDER

POR QUE HÁ MAIS ESPÉCIES EM DETERMINADOS LUGARES DO PLANETA?

M.D. – Para explicar os padrões de biodiversidade é preciso conectar diver-sas áreas do conhecimento, unindo especialmente a biologia evolutiva e aecologia. Precisaremos conhecer o máximo que pudermos sobre a ecologiadesses organismos, mas também sobre sua história evolutiva, em que lugaressuas linhagens tiveram origem e por quanto tempo ocuparam determinadaárea. Para construir essa biogeografia histórica, temos que unir muitos méto-

O plantio em mosaico,técnica de manejo florestalsustentável,com talhões menoresentremeadospor vegetação nativa,forma corredoresecológicos interligandoas reservas natiuraispara a livre circulaçãoda fauna e flora.Nas duas imagens,área florestal e depreservação da MataAtlântica em Mucuri, Bahia.Fotos: Ricardo Teles/Suzano Papel e Celulose.

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dos diferentes – moleculares e ecológicos – que precisam ser integrados. Acombinação dessas informações provavelmente dará as melhores respostas.

FAPESP – ESSA COMBINAÇÃO NUNCA FOI FEITA?

M.D. – Até agora, ao observar-se a biodiversidade, os padrões de distri-buição e a razão de haver mais espécies nos trópicos, a ênfase tem sidoprincipalmente focada nas características ecológicas. O que estamos ten-tando fazer é trazer essas informações para a história evolutiva. Acreditoque isso possa fornecer um quadro mais refinado.

FAPESP – ALÉM DO INEGÁVEL AVANÇO CIENTÍFICO, ESSA COMBINAÇÃO

DE CONHECIMENTOS TERIA IMPLICAÇÕES IMPORTANTES PARA A APLICAÇÃO?

M.D. – Imensas implicações, porque neste momento, estamos enfren-tando vários desafios ambientais. Temos a destruição dos habitats, odesmatamento, as espécies invasoras de diferentes áreas e as mudançasclimáticas globais. Tudo repercute na biodiversidade e sua distribuição.Gostaríamos de fazer previsões sobre o que acontecerá com a biodiver-sidade onde houver mudanças climáticas. Os organismos vão apenas semudar, outras espécies vão se extinguir, outras vão se originar? É o tipode questão que teremos que responder.

FAPESP – O CONHECIMENTO SOBRE PERÍODOS ANTERIORES DE MU-

DANÇAS CLIMÁTICAS TAMBÉM PODE CONTRIBUIR PARA TORNAR ESSAS PRE-

VISÕES MAIS PRECISAS?

M.D. – É claro que no passado houve vários episódios de mudançaclimática e, portanto, esse conhecimento nos dará condições de começar ater alguma idéia sobre as conseqüências que podem ocorrer. Mas a tarefa defazer previsões atualmente é mais difícil do que nunca, porque estamos emum momento crítico. O ser humano construiu cidades e expandiu a agricul-tura, fragmentando a paisagem num nível inédito. Isso dificulta qualqueranalogia com o que ocorreu anteriormente. Mesmo melhorando o conheci-mento do passado, será mais difícil projetá-lo.

FAPESP – SEUS ESTUDOS INDICAM QUE É MAIS FÁCIL PARA AS ESPÉCIES

MUDAR DE LUGAR DO QUE EVOLUIR. PODERIA EXPLICAR ESSA IDÉIA?

■ Quando uma empresa adota um mo-delo de gestão empresarial que consi-dera a sustentabilidade em suas três di-mensões – social, econômico-financei-ra e social –, as agressões ao meio am-biente são minimizadas, e até anuladasvia recuperação de áreas degradadas.

■ É o caso, por exemplo, do métodode gestão de manejo florestal implan-tado pela corporação Suzano Papel eCelulose. Suas áreas florestais planta-das em São Paulo, no sul da Bahia, nonorte do Espírito Santo e no nordeste

M.D. – Se isolarmos uma montanha, fechando suas bases, as espéciesque vivem na parte baixa podem evoluir e criar habilidades para viveremno topo. Essa seria uma maneira de se ter novas espécies no topo damontanha: elas fariam adaptações. Isso certamente ocorre. Mas, comfreqüência, o que acontece é que os organismos já estão adaptados aviverem em um clima semelhante, mas desenvolveram essas adaptaçõesem algum outro lugar. E aí eles simplesmente se mudam e tomam posseda nova montanha, antes que os organismos tenham chance de ir paracima. Os estudos mostram que é mais fácil mudar para uma área quedesenvolver adaptações.

FAPESP – POR QUE ESSES ORGANISMOS MUDAM DE AMBIENTE?

M.D. – Algumas das mudanças são apenas por acaso, circunstanciais.Mas na maior parte das vezes trata-se de mudança climática. Os climasestão mudando e há novos ambientes ficando disponíveis. Quando surgeuma nova montanha, também temos um novo ambiente. E se os organis-mos tiverem um corredor disponível – uma passagem para alcançaremesse novo ambiente –, eles se mudam e assumem o local. A questão,então, é: qual o equilíbrio entre as mudanças e as adaptações dos organis-mos? Isso também é crítico para se fazer previsões. Quando o climamuda, ocorre uma rápida evolução para se adaptar ao novo clima, ousimplesmente se verifica um remanejamento de organismos para outrasáreas? Penso que não ocorre uma evolução rápida. Em vez disso, osorganismos se mudam. Mas para isso é preciso haver um corredor. Enesse momento os humanos estão tornando essa exigência difícil porqueestamos fragmentando a paisagem natural. ■

de Minas Gerais e Maranhão somam 513 mil hectares de florestas, dosquais 231 mil estão destinados ao plantio de eucalipto e 195 mil hecta-res constituem áreas de preservação de mata nativa, o equivalente acerca de 40% da área total.

■ Uma das técnicas de manejo sustentável adotada pela corporação é oplantio em mosaico, com talhões menores, entremeados por vegetaçãonativa, formando corredores ecológicos para que a fauna e a flora possamcircular livremente. Como o eucalipto é colhido aos sete anos, as áreas deplantio são divididas em sete setores e plantadas de forma rotativa, uma por

ano. Esse conceito aplica-se à colheita,reduzindo, assim, os impactos ambientale visual. Além disso, a técnica de cultivomínimo mantém o resíduo da colheita(folhas, cascas e galhos) no terreno paraagregar nutrientes ao solo, protegê-lo daerosão e preservar a umidade.

■ As técnicas de manejo integrado pro-tegem o solo contra a erosão, evitamo assoreamento dos cursos d’água,preservam os mananciais via manejointegrado das microbacias e preser-vam a biodiversidade local.

■ O sistema de plantio em mosaico demonstra que o problema não estáno plantio do eucalipto em si mesmo. Ele reside na monocultura inten-siva predatória em vastas áreas, fato que compromete a diversidadebiológica e cria os conhecidos desertos verdes. Tais monoculturas sótêm um objetivo: o máximo lucro possível.

■ Para obter mais informações sobre esse modelo de gestão ambientale social que reduz os impactos sobre o meio ambiente visite o sitewww.suzano.com.br

Michael Donoghue – Professor do Depto. de Eco-logia e Biologia Evolucionária da Universidade Yale ediretor do Museu Peabody, fundado em 1866, um dosmais antigos museus de história natural no mundo.Email: [email protected] realizada por Fábio de Castro, da AgênciaFAPESP e publicada no www.ecodebate.com.br (14/11/2008).

DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE

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LIXO

oor Daphne Wysham

POR DÉCADAS, OS RECICLADORES DE NOVA DELI TRANSFORMARAM LIXO

EM SOBREVIVÊNCIA. AGORA, A INSTALAÇÃO DE UM INCINERADOR GERADOR

DE CRÉDITO DE CARBONO PODE ACABAR COM A FONTE DE RENDA DESSES DESERDADOS

SOCIAIS, QUE TIRAM SEU PARCO SUSTENTO DOS RESTOS DO CONSUMO INTERNO,

OU DOS RESÍDUOS ELETRO-ELETRÔNICOS EXPORTADOS PELOS PAÍSES RICOS

– LEGALMENTE OU NÃO – PARA “RECICLAGEM” NA ÍNDIA.

os “garimpeiros” de Nova Deli

1 2 3

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1 Sem-teto catador de lixo - Foto: Raaf . 2 Catador de lixo “flutuante” - Foto: Koshyk . 3 Vacas comendo lixo - Foto: Yonajon . 4 Criançasextraindo cobre de peças de computador, em Nova Deli - Foto: Greenpeace/Hatvalne . 5 Homem descansa em seu quarto atulhado de dejetoseletrônicos para reciclagem - Foto: Greenpeace/Hatvalne . Na página ao lado, homem “garimpando” lixo - Foto: Mattlogelin

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Os catadores de lixo (reciclado-res) da Índia – em sua maiorparte mulheres e crianças –juntam-se às vacas e a outros

animais menos sagrados que, diariamen-te, vasculham os dejetos acumulados pe-las ruas e vazadouros de lixo. Há décadas,são eles que reciclam os rejeitos descarta-dos, antes mesmo de a moda de recicla-gem ter sido adotada pelo Ocidente. E emNova Deli, metrópole de 13 milhões de ha-bitantes, os catadores de lixo chegam adezenas de milhares. Para esses morado-res de favela, a reciclagem de plástico,papel e metal – ou qualquer coisa que pos-sa ser convertida em dinheiro – vem a sera única fonte de renda.

Bharati Chaturvedi, diretor e co-fundadorda Chintan, uma pequena ONG que provêeducação aos catadores de lixo, relata quemais de um por cento da população deDeli vive do lixo, reciclando até 59% dosdejetos da cidade. “Estes catadores de lixoexecutam um serviço público gratuitamen-te”, informa Bharati.

Mas essa situação pode logo mudar. Umnovo incinerador que converte o lixo emeletricidade deverá ser instalado emTimarpur, um subúrbio de Deli. Como oprojeto reduzirá a quantidade de gás me-tano produzido pelos aterros sanitários,ele vai gerar créditos de carbono, comopreconizado pelo Protocolo de Kyoto. Noentanto, o incinerador também emitirásubstâncias causadoras de câncer comodioxina, mercúrio, metais pesados e cinzaem suspensão. Serão nesse caso os cré-ditos de carbono disponibilizados peloMecanismo de Desenvolvimento Limpo(MDL) do Protocolo de Kyoto válidosquando dizimam a fonte de subsistênciade milhares de catadores de lixo?

O MDL de Kyoto foi originalmente cria-do para financiar projetos de energia lim-pa nos países em desenvolvimento. Soba bandeira do MDL, os créditos de car-bono gerados em países pobres podemser vendidos aos ricos, possibilitandoque estes últimos descontem de suasemissões domésticas de CO

2 as reduções

de emissões bancadas pelos países po-bres. Entretanto, o MDL está se conver-tendo rapidamente em salvo-conduto deemissão para algumas das indústrias maispoluentes do planeta – como as gerado-ras de eletricidade alimentadas a carvão e

Mais de um por

cento da população

de Deli vive do lixo,

reciclando até 59%

dos dejetos da

cidade.

as aciarias –, e enriquecendo com o es-quema muitos intermediários, inclusive oBanco Mundial que, ao negociar os cré-ditos recebem 13% de comissão sobre to-das as corretagens que intermedeia.

Primeiro de uma série de incineradores a se-rem implantados no planeta para beneficiar-se do florescente mercado global de carbo-no, a unidade de Timarpur sequer leva emconsideração a indústria de reciclagem in-formal e eficiente da Índia, país hostil aosincineradores. “No passado, havíamos con-seguido sustar uma meia dúzia desses pro-jetos duvidosos”, informa Gopal Krishna,pesquisador em saúde pública da Jawahar-lal Nehru Universidade, em Nova Deli. “Mas,neste momento, sob o álibi dos créditos decarbono, ações fraudulentas estão sendocometidas na maior impunidade”.

No caso de Timarpur, usam-se os seguin-tes argumentos: (a) os incineradores ge-rarão energia a partir do lixo; (b) o lixo usa-do como combustível reduz o uso de com-

bustível fóssil; (c) desse modo, todas asemissões de CO

2 que teriam sido geradas

pelo uso de combustível fóssil podem rei-vindicar créditos de carbono.

Para tornar o projeto ainda mais lucrativo,as empresas instaladoras dos incinerado-res podem alegar que estão capturando equeimando o metano que seria liberadodo lixo em processo de degradação. Ecomo este é um gás de efeito estufa 24vezes mais potente do que o CO

2 – conti-

nua o raciocínio –, sua queima no incine-rador evita a liberação de toneladas dopotente metano, liberando apenas CO

2,

seu primo mais fraco.

A primeira proposta de construção de umincinerador de lixo, em Nova Deli, nos pri-mórdios dos anos 90, morreu sem dizer aoque vinha. A razão dessa morte silenciosa:“o lixo de Nova Deli não contem suficientematerial combustível”, informa Neil Tangri,da Global Alliance for Incinerator Alternati-ves. “O lixo também é úmido e contém muitacinza, areia e materiais inertes não combus-tíveis”. Em outras palavras, o lixo não con-tém muito plástico e papel graças, em gran-de parte, aos diligentes catadores de lixo,que os enviam à reciclagem.

Um estudo produzido em 1997 pelo Minis-tério de Ambiente e de Florestas da Índiaconcluiu ser a incineração na região de NovaDeli “não viável”, e que a via preferencialpara o tratamento do lixo é a compostagem.

Tais projetos são um eco distante do de-senvolvimento limpo que o CDM preten-dia subsidiar. No entanto, há ainda outromotivo de preocupação: como descartar acinza produzida pela incineração do lixo?“Viajei por toda a Índia”, informa PatriciaCostner, conselheira científica da GlobalAlliance for Incinerator Alternatives(GAIA) e da International POPS Eliminati-on Network. “Sei o que acontece com acinza do incinerador: a maior parte termi-na na margem das estradas. Não há ater-ros sanitários estruturados na Índia. Amaioria dos países exige que os resíduosde cinza sejam tratados com muito cuida-do, fato impossível na Índia por carênciade infra-estrutura.”

O tratamento impróprio dos resíduos doincinerador coloca um novo problema paraos residentes mais pobres de Nova Deli.“Quando é negado aos catadores o aces-

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so ao fluxo de lixo, eles passam a vascu-lhar a cinza em busca de metal, a únicasubstância que sobrevive intacta à inci-neração”, esclarece Neil Tangri, diretorade campanha para resíduos e mudança declima da GAIA. “Eu já vi pessoas enterra-das até o joelho nas cinzas de incineradorà procura de restos de metal. O organis-mo humano passa a ser um absorventetóxico. É como servir de colher, a cadacatador, uma dose de elementos tóxicos”.

Daphne Wysham – Membro do The Insti-tute for Policy Studies (www.ips-dc.org) emWashington, DC; fundadora e co-diretora doSustainable Energy & Economy Network e daEarthbeat Radio. Matéria publicada na ediçãode Julho/Agosto de 2008 de Mother Jones(www.motherjones.com).

Segundo Tangri, os catadores de lixo es-tão sendo molestados e impedidos deacessar itens secos e altamente calóricosque o incinerador devora. “A instalaçãodesse incinerador nega o sustento aosmais pobres dos pobres”, afirmaChaturvedi. “É crime negar-se esse últimorecurso de sobrevivência aos miseráveis.Especialmente nesse momento em que ospreços dos alimentos estão em escaladacrescente. O que farão essas pessoas? A

capacitação local para a reciclagem estásendo eliminada. Logo ela, que é essenci-al a uma sociedade sustentável.” ■

Em função da constante atualização e desenvolvimento de novos produtos, a“vida média” dos modelos antigos torna-se a cada dia menor. À semelhança doque ocorre com os navios, a reciclagem de produtos eletrônicos (e-lixo) torna-seum problema tanto para os fabricantes quanto para seus usuários, que acabamenviando os produtos obsoletos para a Ásia, à Europa Oriental e à África. Mas,ao invés de agirmos de forma “ecologicamente correta”, acabamos por exportarproblema para as coletividades que não têm opção senão escolher entre a po-breza e o veneno. Este gráfico ilustra os maiores receptadores de lixo eletro-eletrônico na Ásia.

Who gets the trash? (2004). UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library. http://maps.grida.no/go/graphic/who-gets-the-trash Cartógrafo/designer: Philippe Rekacewicz,UNEP/GRID-Arendal

TRÁFICO DE LIXO:

IMORAL E HIPÓCRITA

Até que a Convenção de Basiléia – queentrou em vigor em maio de 1992 – fixouregras internacionais para acabar com otráfico de lixo, contudo os paísesautoproclamados desenvolvidos entupi-ram o Terceiro Mundo com lixo tóxicodurante décadas. Mas o tráfico de lixotóxico continua, e os mesmos criminososambientais de antes agora chegam comnovo argumento: trata-se de exportaçãopara reciclagem, com vantagens ambi-entais (a reciclagem) e sociais (geraçãode emprego e renda no Terceiro Mundo).

Milhares de pessoas na Ásia – em especi-al na Índia e na China – “garimpam” pou-cos gramas de metais preciosos em cente-nas de quilos de lixo eletrônico, expondo-se nesse mister a metais pesados e acu-mulando toneladas de sucata tóxica. E esselixo tóxico não se limita ao eletrônico;também ocorre com o químico e outrosresíduos, como navios e pneus. Incontá-veis recicladoras de fachada servem paralavar esse comércio tóxico.

O Brasil enfrenta a União Européia naOrgnização Mundial de Comércio (OMC)na questão da importação de pneus usa-dos para reciclagem. Em média, 10% dosimportados são utilizados na recuperaçãoe os demais permanecem no lixo. Só queem nossos aterros sanitários, não nos euro-peus! Não é por outra razão que a UniãoEuropéia insiste no direito de exportarpneus usados: quer o lixo longe de casa!

A exportação de lixo é imoral e ilegal.Mas a exportação irresponsável, sob odisfarce da reciclagem sem controle esem cuidados, é igualmente imoral e hi-pócrita. Na verdade, o processo não pas-sa de mais uma das incontáveis hipocri-sias dos “senhores” do mundo, que jul-gam perfeitamente moral “exportar” lixopara aqueles que, no fundo, eles tam-bém consideram lixo.

Henrique Cortez – Coordenador doportal EcoDebate

PARA ONDE VAI O LIXO?

A China recebe 90% domercado de reciclagem asiático.

da Europa

da Américado Norte

Pontos de reciclagem de e-lixo

Principais países de reciclagem de e-lixo

Principais portos receptorese de despacho de e-lixo

conhecidas suspeitas

dapeninsulaárabe

Cerca de 100 mil recicladores(inclusive crianças)sem água potável

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CR

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A tragédia das queimadas

sem controle repete-se in-cansavelmente, ano após ano.Os criminosos são os de sem-pre e fazem parte da mesma so-ciedade abalada e prejudicadapela irresponsabilidade daque-les que sempre afirmam, “ape-nas”, terem queimado um ino-cente roçado.

Todo grande incêndio florestalcomeça com uma “inocente” quei-ma de roçado, que qualquer pro-dutor rural sabe ser o início dosincêndios florestais, ainda maisem época de estiagem. Sabem,mas pouco se importam. Ignoramque, além dos inestimáveis preju-ízos ao patrimônio natural, cau-sam sérias conseqüências à saú-de pública, atingindo principal-mente as crianças e os idosos.Crianças e idosos dos outros...

A queima é simples, fácil e ba-rata. Em tempo: barata, porquetodos os custos sócio-ambien-tais serão diretamente transfe-ridos à sociedade. A fumaça eas cinzas atentam contra a saú-de da população da periferiadas cidades e das populaçõesindígenas. Pessoas com que oagronegócio e as autoridadesnão se preocupam. Melhor di-zendo, não ligam mesmo. A des-

Henrique Cortez – Coordena-dor do portal EcoDebate. E-mail:[email protected]

Foto: Leo Ffreitas

O FUTURO em CINZASCERRADO

truição tem sempre a mesmacausa – as queimadas ilegaispraticadas por fazendeiros, pe-cuaristas e produtores rurais.

Apenas o Instituto Brasileiro doMeio Ambiente e dos RecursosNaturais Renováveis (Ibama)confia na idéia de que os produ-tores rurais obedecerão às porta-rias de proibição de queimadascontroladas. Como se isso exis-tisse... Impressiona o fato de am-plas áreas e unidades de conser-vação estarem, literalmente, emchamas e que nada seja dito quan-to aos autores desse continuadocrime sócio-ambiental. As autori-dades, e até mesmo as manifesta-ções populares, agem como se osautores fossem desconhecidos.

Às autoridades cabe agir emdefesa da sociedade, mesmoque isso signifique reprimir um“aliado” politicamente influen-te e economicamente podero-so – o agronegócio, que se sen-te no direito de condenar a po-pulação à condição de cidadãode segunda classe. E as autori-dades sabem que eles não sãodesconhecidos. Aliás, a socie-dade afetada também.

Todos os anos, incansavelmen-te, nossas unidades de conser-

vação são atingidas por incêndi-os criminosos, com o único pro-pósito de sua destruição. Há al-gum tempo, contarem-me que, noCerrado, causar um imenso in-cêndio é simples: basta amarrar,com um grosso barbante, umatocha em um animal selvagem.Este, em pânico, espalhará o fogopor quilômetros, até morrer. Asprovas (a tocha e o barbante) de-saparecerão com as chamas. Per-verso e eficiente.

Recentemente, o Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais(Inpe) recebeu um merecido prê-mio internacional (“Tecnologi-as para novos desenvolvimen-tos em uma sociedade susten-tável”) pelo excelente trabalhode monitoramento de queima-das. O instituto está fazendo asua parte, mas o Ministério doMeio Ambiente (MMA), o Iba-ma e os órgãos ambientais esta-duais estão muito longe de mos-trarem-se à altura do trabalho demonitoramento. A informaçãoexiste, mas nada acontece, por-que o país continua em chamas.

Guardadas as devidas propor-ções, a situação assemelha-sea um paciente crônico. O enfer-mo conta com a melhor tecno-logia para o diagnóstico clíni-

co, mas os médicos não iniciamo tratamento ou não sabem oque fazer. De fato, o monitora-mento é ótimo; mas e daí?

Se as eternas campanhas educa-tivas são inúteis, não resta à so-ciedade outra alternativa a nãoser a rigorosa fiscalização. Denada adianta proibirem as quei-madas, se isso não significar se-vera fiscalização e punições exem-plares. O poder público continuainoperante, e sua omissão preju-dica a população mais pobre emais frágil. Como sempre.

A tragédia das queimadas semcontrole é um imenso desastresócio-ambiental, por suas con-seqüências à saúde pública,pela destruição de centenas denascentes e olhos d’água, pelamodificação do microclima e, aolongo do tempo, por potenci-alizar os períodos de estiagem.

Esta agrosselvageria irrespon-sável fará com que as próximasgerações recebam, como heran-ça, apenas as cinzas da Amazô-nia e do Cerrado. E não será porfalta de aviso. ■

por Henrique Cortez

No Cerrado, causar um imensoincêndio é simples: basta amarrar,com um grosso barbante, umatocha em um animal selvagem.Este, em pânico, espalhará o fogopor quilômetros, até morrer.As provas (a tocha e o barbante)desaparecerão com as chamas.

Perverso e eficiente.

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Cidadania&MeioAmbiente 17

18

O aumento da renda

pessoal em escala global

repercute no crescente

apetite pela dieta à base

de carne. Mas essa esca-

lada pode ter sérias con-

seqüências para a saúde

do planeta e da própria

humanidade. Especialis-

tas discutem a questão e

indicam que para a Terra

superpovoada a solução

será a dieta vegetal.

No primeiro trimestre de 2008, ospreços dos grãos sofreram umaescalada nunca vista em 30 anos.

Em média, os preços dos alimentos estão54% mais altos do que em 2007. Os grãossubiram 92%. Turbas famintas em buscada subsistência revoltaram-se no Haiti, noMéxico e em Bangladesh. Os especialis-tas apontam uma “tempestuosa conjun-ção” de especulação, seca na Austrália edesvio de grãos para a fabricação de bio-combustíveis como responsáveis pela cri-se mundial de alimento. No entanto, paraoutros, a escalada do preço dos grãos éapenas a concretizacão de uma previsãohá muito anunciada: a crescente popula-ção mundial tem maior poder de compra, eos novos consumidores estão se banque-teando com mais carne! Por isso, boa par-te da crescente produção agrícola mundi-al é destinada ao consumo animal.

Embora os estoques de grãos sejam maisdo que suficientes para alimentar a popu-lação do planeta, a atual escalada de pre-ços revela que essa provisão não garanteque os mais pobres não passem fome. Embreve, chegará o dia em que não haverá

grãos em quantidade suficiente à alimenta-ção humana e à ração animal – ao menosnos EUA, aos atuais índices de consumo.Somem-se a isso os impactos ambientaisda atual produção industrial de carne e nãose pode deixar de pensar se, em 2050, comuma populacão mundial prevista para 9,5bilhões, não estaremos todos condenadosao vegetarianismo.

Talvez nem todos, alegam os especialistas.Mesmo com as inovações tecnológicas ali-mentares, provavelmente comeremos muitomenos carne. E, quem sabe, os habitantes daÁfrica subsaariana comerão um pouco mais.Um terço da terra cultivável do mundo é des-tinada à produção de alimento para gado eaves de corte, e aproximadamente 36% daprodução mundial de grãos viram ração ani-mal. O problema, dizem os especialistas, resi-de na ineficiência da conversão do grão emcarne. Para se produzir meio quilo de carnesão necessários sete quilos e meio de grão.Para a carne de porco, a relação é de um paratrês; e para o frango, de um para dois. (Peixesde sangue frio, que não precisam de energiapara manter temperatura corporal, são cria-dos com maior eficiência.)

O INSUSTENTÁVEL MODELO AMERICANO

“Os grãos usados para alimentar gado enão pessoas estão exercendo enorme pres-são sobre os estoques”, informa KatarinaWahlberg, coordenadora do programa depolíticas econômicas e sociais do GlobalPolicy Forum, ONG sediada na cidade deNova Iorque.

“Os atuais níveis de consumo são insus-tentáveis”. O americano médio consomeaproximadamente 140 kg de carne por ano,informa a Organização das Nações Uni-das para Agricultura e Alimentação (FAO).Cada um deles consome 885 kg/ano degrãos, diz Lester Brown, autor de “Plan B3.0: Mobilizing to Save Civilization”. E ape-nas 110 kg de grão são consumidos naforma de pão, massas e cereais. O restan-te é ingerido via produtos animais.

Se todos os habitantes do planeta con-sumissem grãos na escala dos EUA, suaatual safra mundial de dois bilhões detoneladas de grãos alimentaria apenas 2,5bilhões de indivíduos – dois quintos dapopulação mundial! Se o mundo comes-se no padrão italiano – 400 kg/ano de

por Moises Velasquez-Manoff / Christian Science Monitor

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Cidadania&MeioAmbiente 19

grão por pessoa – tería-mos como alimentar cin-co cinco bilhões de pes-soas. E se todos nós ado-tássemos o regime alimen-tar vegetariano, típico doshabitantes da Índia – 5 kg/ano de carne por pessoaou 200 kg de grão –, a atu-al produção mundial degrãos poderia alimentar 10bilhões de indivíduos.

Para Lester Brown, as com-parações acima têm sériasimplicações. Mesmo sedesconsideramos os as-pectos morais da questão,não podemos esquecer que pessoas fa-mintas conduzem ao desassossego soci-al – fato de conseqüências para todos.“Quantos estados desabarão antes do fra-casso global da civilização?”, interrogaBrown. “Ninguém sabe a resposta, por-que ninguém jamais enfrentou tal realida-de. As tendências de consumo mundialindicam maior – e não menor – consumode carne. De 1970 a 2005, a produção mun-dial de carne nos países em desenvolvi-mento mais que quintuplicou: de 30 mi-lhões para 162 de milhões de toneladas,segundo a FAO. Se a tendência continu-ar, a demanda global por carne aumentarápela metade novamente antes de 2030.

Por volta de 2050, a produção mundial decarne mais do que dobrará a do nível de2000: alcançará 513 milhões de toneladas/ano. O aumento do poder de compra emescala mundial acelera o apetite por car-ne. Segundo o relatório de 2003 da Natio-nal Academy of Sciences, aproximada-mente 1,1 bilhão de novos consumidores– pessoas com significativa renda dispo-nível – emergiu em décadas recentes. Umcontingente que se soma aos 850 milhõesde consumidores dos países ricos. Todosquerem comer carne.

E, como os novos consumidores aumen-taram esse consumo de carne, tambémdeixaram de ser menos saudáveis. Cercade 1,6 bilhões de adultos ao redor domundo apresentam sobrepeso (400 mi-lhões são obesos), informa a Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS). Infelizmen-te, cerca de 800 milhões sofrem desnutri-ção crônica. “O mundo não precisa terfamintos”, diz a médica Polly Walkert,

diretora associada do Center for a Liva-ble Future, do Johns Hopkins BloombergSchool of Public Health, em Baltimore.“Trata-se de uma questão de justiça quedeveria incomodar a todos.”

A CARNE E O IMPACTO AMBIENTAL

Mesmo abstraindo a questão da escassezde grãos, muitas vozes afirmam que o im-pacto ambiental é argumento suficientepara repensar a produção animal em esca-la industrial. A criação de animais para ali-mento gera 18% dos gases estufa na for-ma de metano, mais que todo o setor detransporte. “Mudar a dieta humana é es-sencial para controlar a mudança climáti-ca”, afirma Peter Singer, professor de Bio-ética da Universidade de Princeton, emNew Jersey. Também é um modo simples e

rápido para cada indivíduoreduzir sua pegada de car-bono. “Essa providênciapode ser tomada imediata-mente. É algo que poderí-amos fazer imediatamente.Não precisamos inventarnada renovável.”

O relatório “LivestockLong Shadow”, da ONU,de 2006, concluiu que aprodução animal, como éatualmente praticada, apre-senta uma gama de amea-ças a exigir atenção imedi-ata: da degradação de ter-ra à perda de biodiversida-

de. Um relatório subseqüente da Pew Com-mission on Industrial Farm Animal Produc-tion ecoou aquelas conclusões, acrescen-tando que o uso rotineiro de antibióticosna criação animal aumenta o risco de secriarem os animais resistentes aos antibi-óticos. Até mesmo os oceanos são afeta-dos pela produção de animais de corte.Em águas litorâneas, as zonas mortas cau-sadas por despejos de nutrientes – boaparte proveniente de dejetos animais – tor-nam-se um problema crônico. E uma cotacrescente da pesca mundial agora é trans-formada em farinha e óleo de peixe paraser adicionada à ração animal.

Os altos preços dos alimentos tornaram apesca mais lucrativa, afirma H. Bruce Frank-lin, autor de “The Most Important Fish inthe Sea: Menhaden and America.” Os pei-xes são freqüentemente vitais para seusecossistemas, já que devoram volumosaquantidade de microorganismos e servemde alimento para os maiores. (O menhadencomum médio, com 20 cm de comprimen-to, filtra de quatro a sete galões de águado mar por minuto.) A exaustão dessas cri-aturas pode provocar o desequilíbrio emum ecossistema. “Os oceanos não podemmais agüentar esse tipo de pressão”, afir-ma Bruce Franklin.

AS PASTAGENS E OS ECOSSISTEMAS

Muitos estudiosos observam que os ani-mais de corte não precisam competir comos seres humanos por grãos, nem a ativida-de de criação tem necessariamente de serdestrutiva. Enormes parcelas de terra aoredor do mundo são próprias para pasta-gem. Os ruminantes – animais que digeremcapim e plantas que o homem não come –

Um terço da terra

cultivável no mundo

é destinada à

produção de

alimento para gado

e aves de corte, e

cerca de 36% da

produção mundial

de grãos vira ração

animal.

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■ Segundo levantamento realizado pelo Instituto do Homeme Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apenas 5% da car-ne produzida em áreas de desmatamento da Amazônia sãoexportadas. E dos 95% que ficam no país, quase 70% sãoenviados ao Sudeste. Só 12% viram alimento dentro da pró-pria Amazônia Legal.

■ A pecuária é o setor produtivo que mais influencia no des-matamento da Amazônia. Cientistas e ambientalistas esti-mam que mais de 70% das derrubadas florestais são feitaspara a abertura de pastagens. Os pesquisadores do Imazoncalculam que 253 mil km2 na Amazônia foram ocupados porpastos, entre 1990 e 2006 – uma área maior do que o Piauí.O rebanho da região aumentou 180% no mesmo período,passando de 26 milhões para 73 milhões de cabeças, o equi-valente a 36% do total nacional. Entre 2000 e 2005, 27 frigo-ríficos instalaram-se na região.

convertem esses vegetais em carne, alimen-to para os seres humanos. Se a criação degado mimetizar as grandes migrações dobisão nas pradarias americanas – áreas na-turais comuns a mitos ecossistemas pré-existentes à instalação da pecuária –, aatividade pode melhorar o ecossistema emlugar de degradá-lo, afirma John Ikerd, pro-fessor emérito de Economia Agrícola daUniversidade de Missouri, no estado deColumbia. “Contamos com um tremendo

potencial para produzir muito mais proteí-na, e conseguir isso da maneira correta,sem danificar o solo”, diz Ikerd.

Em muitas regiões, como grandes exten-sões da África, os animais garantem a pro-teína necessária que, caso contrário, seriaindisponível. Lá, por exemplo, a criação degado deveria aumentar, informa PierreGerber, co-autor do relatório “Livestock’sLong Shadow”. As preocupações ambien-

tais são importantes, diz ele, mas igualmen-te relevante é o bem-estar humano. “Nãose deve parar a produção de proteína ani-mal devido a questões ambientais. Na ver-dade, é a questão ambiental que deve equa-cionar a atividade produtiva.” ■

A produção animal, como é atualmente praticada, apresenta

uma gama de ameaças a exigir atenção imediata:

da degradação de terra à perda de biodiversidade.

A PECUÁRIA E A DEVASTAÇÃO NA AMAZÔNIA

Fonte: Herton Escobar, de O Estado de S.Paulo (22/10/2008).

■ Enquanto isso, no Sudeste, ocorreu o inverso: a área depastagem diminuiu 15% e o rebanho encolheu 3% no perío-do 1996-2006, segundo dados do Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística (IBGE) compilados no Anuário da Pecuá-ria Brasileira (ANUALPEC), do Instituto FNP (www.fnp.com.br).

■ O aumento das exportações de carne, nos últimos anos,deixou um “vácuo” de abastecimento no mercado interno,que está sendo suprido, ao menos parcialmente, com carneproduzida na Amazônia. As exportações nacionais do setoraumentaram 126% entre 2002 e 2006. “Como o Norte nãotem ainda condições de exportar, o Sudeste exporta e a gentepreenche a lacuna”, diz o diretor de pesquisa ambiental doInstituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambientaldo Pará (Idesp), Jonas da Veiga.

■ “A Amazônia abriu espaço para a pecuária crescer com pro-dução barata, caso contrário o preço da carne no mercadointerno teria aumentado muito”, avalia o pesquisador PauloBarreto, que coordenou a pesquisa. A grande vantagem daregião é o preço baixo – ou quase nulo – da terra. “Fazen-deiros que se apossam de terras públicas ganham mais do queo normal, pois não compraram a terra, nem pagam aluguelpelo seu uso”, escrevem os autores.

■ O consultor José Vicente Ferraz, do Instituto FNP, vê a expan-são da pecuária na Amazônia como um “fenômeno natural”associado ao perfil “nômade” do setor, que está sempre embusca das terras mais baratas para produzir. “Como se costu-ma dizer, não existe boi barato em cima de terra cara”, diz. “Asterras mais baratas hoje estão no Norte e Nordeste. O pecuaristavende um hectare aqui (no Sudeste) e compra 10 hectares lá.”

Moises Velasquez-Manoff – Artigo pu-blicado no Christian Science Monitor (18/7/2008) e em www.globalpolicy.org com o títu-lo Diet for a More-Crowded Planet: Plants.

Cidadania&MeioAmbiente 21

Não é preciso derrubarmais árvores na Amazô-

nia para expandir a agropecuá-ria brasileira, mas o mero conge-lamento da atividade não garan-tirá a preservação da floresta.Quem conhece a realidade local,bem distante de Brasília, identi-fica melhor as causas do desma-tamento, originadas, principal-mente, pela forma como a regiãofoi ocupada, em uma época emque a própria lei estimulava a der-rubada da selva.

Hoje, carvoarias, madeireiras,assentamentos, produtores ru-rais e a população que, literal-mente, vive da floresta divi-dem, em vários níveis, a res-ponsabilidade pela reduçãogradual do bioma. Porém, oEstado brasileiro merece, tam-bém, uma parcela de culpa porter subestimado a importânciada Amazônia no passado.

O desafio, agora, é dimensionaro nível de responsabilidade decada agente, adotando alterna-tivas sustentáveis – e viáveiseconomicamente – que contri-buam para o equilíbrio entre ohomem e a natureza na região.

Sob pressão externa, trata-se odesmatamento na Amazônia deforma emocional e nem semprecom base em dados confiáveisque, por sua vez, acabam justi-ficando medidas inconseqüen-tes. Tampouco a estrutura tec-nológica disponível é capaz dedetectar as ocorrências em tem-po real, a fim de reprimi-las.

Perdem-se meses discutindo acredibilidade das listas de des-matadores, quando, na verda-de, desconhecemos os propri-etários das terras. Aliás, a re-

PO

NTO

-DE-VISTA

O DESAFIO DA AMAZÔNIApor Reinhold Stephanes

gularização fundiária da Ama-zônia é tão necessária que de-verá merecer a criação de me-canismos próprios de acompa-nhamento, propostos pelo Mi-nistro Extraordinário de As-suntos Estratégicos, Manga-beira Unger, com aval do Pre-sidente da República.

A legislação ambiental contri-bui, também, para engessar odebate sobre as melhores al-ternativas para a região. As leismudaram, os critérios foram al-terados, mas a realidade per-siste. Por exemplo, até 2001, oCódigo Florestal obrigava osprodutores a preservarem 50%da área, e não 80%, como atu-almente. Quem derrubou me-tade da propriedade passou aser obrigado a reflorestar. Foio que aconteceu com os as-sentamentos incluídos recen-temente na lista dos maioresdesmatadores da Amazônia.

Vale lembrar que a legislaçãoambiental contempla o territó-rio nacional, mas não conside-ra as diferentes realidades nemas regiões nas quais a agricul-tura instalou-se há décadas. Seas normas forem cumpridas àrisca, praticamente a metadedas propriedades rurais doCentro-Sul do país, onde a agro-pecuária está consolidada, estáou estará fora da lei.

Outra questão é a existênciade duas Amazônias constan-temente confundidas: a do bi-oma e a legal.

Sobre o bioma amazônico, ésimples: abrange a marca dafloresta, embora registre ou-tros sub-biomas. A AmazôniaLegal é uma ficção geográfi-ca, fruto da busca pelos bene-fícios fiscais da União por par-te dos estados vizinhos à flo-resta. Alguns destes com par-te predominante dos territóri-os fora do bioma amazônico,sobretudo no Centro-Oeste,onde estão os biomas de cer-rado, pantanal ou caatinga.Mesmo assim, a lei ambientalequiparou áreas desses bio-mas às da floresta amazônica,impondo-lhes, em grande par-te, as mesmas restrições.

No que se refere ao agrone-gócio, repito, o Brasil tem al-ternativas para a expansão. Háestudos técnicos apontandopara o uso preferencial de áre-as agricultáveis, atualmenteocupadas por pastagens quese encontram em vários níveisde degradação. E isso deveacontecer fora do bioma ama-zônico. Basta lembrar que apecuária utiliza 200 milhões dehectares em todo o país paraum rebanho estimado de 180milhões de cabeças de gado.

Reinhold Stephanes – Econo-

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s

Ninguém, em sã consciência,discorda que essa distribuiçãopode ser refeita e até incenti-vada pelo Governo Federal.Além do apoio à atividade eco-nômica, a utilização correta dasáreas degradadas evita a ero-são e a desertificação, que le-vam ao assoreamento dos riose ao empobrecimento do solo,respectivamente.

A questão, porém, é haver áre-as degradadas na região ama-zônica que poderiam ser recu-peradas com culturas perenes,como o dendê e outras espéci-es nativas que, além de seqües-trarem carbono da atmosfera, re-cuperam o solo e geram empre-gos em quantidade suficientepara absorver os que por faltade opção sobrevivem consu-mindo a riqueza da floresta.

Compreende-se que a defesa daAmazônia exige uma posiçãoprotecionista mais rígida. Issonão pode impedir, porém, queignoremos áreas agrícolas con-solidadas há gerações, sem en-contrar formas de flexibilizaçãodo uso do solo. Ambas as posi-ções são necessárias para al-cançarmos o desenvolvimentosustentável que a Amazônia esua gente merecem. ■

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mista, DeputadoFederal licenciado(PMDB-PR), é oMinistro da Agri-cultura, Pecuária eAbastecimento.Foi Ministro do

Trabalho e Previdência Social(1992-1995) e da Previdência eAssistência Social (1995-1998).Artigo transcrito de Tendências/Debates, Folha de S. Paulo, em16/11/2008.

22

Vivemos uma emergência. Emmenos de uma década, teremosde mudar de rumo – assumindo

que o colapso da economia norte-america-na ou a explosão do Oriente Médio nãoimponham uma mudança via caos. Para con-frontar essa emergência, temos deentendero objetivo do plano de ação: criar uma so-ciedade sóbria; delinear o caminho para sairdo impasse; realizar essa transformaçãocom justiça, isto é, forçando os mais aqui-nhoados a segurarem o fardo da transfor-mação dentro e entre as sociedades e ins-pirarem-se nos valores coletivos de “Liber-dade, ecologia, fraternidade”.

OS PRINCIPAIS OBSTÁCULOS A ENFRENTAR

EM PRIMEIRO LUGAR, as arraigadas certe-zas recebidas – na verdade, preconceitos –que orientam a ação coletiva, sem que nin-guém realmente as analise em profundida-de. E a mais poderosa dessas idéias pre-concebidas é a crença no crescimento comoúnico e exclusivo meio de solucionar os pro-blemas sociais. Uma crença ferozmente de-fendida até mesmo quando os fatos contra-dizem-na. Uma posição que descarta a eco-logia, pois seus apóstolos defensores têmconsciência de que o crescimento é incapazde solucionar a questão ambiental.

A SEGUNDA CERTEZA, menos convincen-te, embora amplamente disseminada, procla-ma que o progresso tecnológico soluciona-rá os problemas ambientais. A propagaçãodessa idéia dá aos indivíduos a esperançade não ter de enfrentar sérias mudanças noscomportamentos coletivos graças ao pro-gresso tecnológico. O desenvolvimento datecnologia – ou melhor, de certos canais téc-nicos em detrimento de outros – reforça osistema e avaliza proveitosos lucros.

A TERCEIRA CERTEZA vem a ser a inevita-bilidade do desemprego, concepção forte-mente atrelada a duas certezas prévias. Odesemprego tornou-se uma determinantefabricada pelo capitalismo para assegurara docilidade da população, muito especial-mente dos nichos operários. No entanto,outra forma de olhar a questão indica que atransferência de riqueza das oligarquias àefetivação dos serviços públicos; um pe-sado sistema de tributação sobre o capitale a poluição, não mais sobre o emprego;uma política agrícola sustentável para ospaíses em desenvolvimento e pobres e apesquisa em eficiência energética consti-tuem imensas fontes de emprego.

Nossa biosfera está morrendo e, com ela,

o sustento de bilhões de seres vivos.

Mas a elite globalizada que dita os modelos

de interação homem-meio ambiente

permanece insensível a tudo que não seja

o seu próprio ego e imensos lucros.

E, assim, a crise planetária cevada na

insustentabilidade continua triunfando.

Haverá meios de reverter esse quadro caótico?

Leia, aqui, como enfrentar as forças

destrutivas para reinaugurar uma nova era de

por Herve Kempf

os ricos estão destruindo

a TERRA

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L I B E R D A D E

E C O L O G I A

F R A T E R N I D A D E

22

Cidadania&MeioAmbiente 23

A QUARTA CERTEZA geralmente associa aEuropa e os Estados Unidos a uma comuni-dade de riqueza. No entanto, os caminhosde cada um deles divergem. A Europa aindaé o arauto de um ideal universalista, cujavalidade é manifestada pela habilidade emreunir – apesar dos problemas – estados eculturas tão diferentes. Outras característi-cas – como o consumo de energia, os valo-res culturais (por exemplo, o sentido críticodo alimento), a rejeição à pena de morte e àtortura, a desigualdade menos pronunciadae a manutenção de um ideal de justiça soci-al, de respeito ao direito internacional e deapoio ao Protocolo de Kyoto na questãoclimática – separam a Europa dos EstadosUnidos. Aquela está distanciada do poderopressor e deve se aproximar mais dos paí-ses pobres, a menos que este realmentemostre que pode mudar.

A OLIGARQUIA PODE SER DIVIDIDA

O primeiro obstáculo a vencer é o poder dopróprio sistema. Os fracassos que ocorre-rão não serão em si mesmos suficientes parafragilizarem o sistema, pois, como sabemos,as forças oligárquicas podem criar pretex-tos para promoverem um sistema autoritáriodespido de qualquer grau de democracia.

De qualquer modo, o movimento social des-pertou e pode continuar ganhando poder.Mas, sozinho, ele não será capaz de enfren-tar abertamente o surgimento da repressão:será necessário que as classes médias e par-te da oligarquia – não-monolítica – clara-mente optem pelas liberdades públicas e pelobem comum.

Os meios de comunicação de massa consti-tuem um desafio central. Hoje, eles apóiamo capitalismo devido à sua própria condi-ção econômica. Em sua maioria, as mídiasdependem de publicidade, fato que lhes tor-na difícil pleitear a redução do consumo.

Além disso, o desenvolvimento de publi-cações independentes que precisam depublicidade aumenta ainda mais a pres-são sobre os jornais pagos de grande cir-culação, muitos dos quais abrigados nosestábulos de grandes grupos industriais.Embora imensa, não é certo que as possi-bilidades de informação geradas pela In-ternet– pelo menos enquanto a rede per-manecer com livre acesso – sejam fortes osuficiente para contrabalançarem o pesodos meios de comunicação de massa, casotodos se tornem a voz da oligarquia.

Não obstante, nem todos os jornalistasestão escravizados; assim, poderiam sergalvanizados para o ideal de liberdade.

A terceira força – manca – é a esquerda.Considerando que o componente social-democrata tornou-se seu centro de gravi-dade, esse grupo abdicou de toda e qual-quer ambição de transformar o mundo. Aoestabelecer um acordo com o liberalismode livre-mercado, a esquerda mergulhoude cabeça em seus valores do liberalismode livre-mercado tão fortemente que já nãoousa – exceto em condições muito caute-losas – deplorar a desigualdade social.Para coroar a questão, ainda se recusa aenvolver-se verdadeiramente nas ques-tões ambientais.

Assim, permanece aferrada à idéia de pro-gresso concebida no século 19 e ainda acre-dita que ciência é produzida do mesmo modocomo à época de Albert Einstein, e entoa ocanto do crescimento econômico sem o maisleve traço de reflexão crítica. Além disso,para ela, “capitalismo social” em vez de “de-mocracia social” tornou-se indubitavelmen-te o termo mais apropriado.

A despeito de tudo, poderão os desafiosdo século 21 ser encampados pelas cor-rentes da tradição diferentemente daquelaque um dia identificou na desigualdade seumotivo primário de revolta? Esse hiato estáno coração da vida política. A esquerdarenascerá ao unir as causas da desigual-dade e do meio ambiente – ou, incapaz dis-so – desaparecerá na desordem geral quese baterá sobre ela e sobre tudo mais?

Hervé Kempf – Jornalista especializado eminformação ambiental e ecológica desde 1988. Edi-tor de Meio Ambiente do jornal Le Monde, des-de 1998, e criador da revista ambiental Reporterre.Também publica em jornais científicos e econô-

A mais poderosa

idéia preconcebida

é a crença no

crescimento como

único e exclusivo

meio de solucionar

os problemas sociais

e acabar com a

pobreza.

micos. O texto acima foiextraído de seu novo li-vro – How the Rich AreDestroying the Earth(Chelsea Green Publish-ing, 2008) – e publicadoem www. alternet.org/environment/107988, em22/11/2008. Tradução li-vre realizada pela edito-ria de Cidadania & MeioAmbiente.

De qualquer forma, não devemos deixar deser otimistas. Otimistas, pois existem cadavez mais pessoas que entendem – ao con-trário de todos os conservadores – a novi-dade histórica da situação: estamos viven-do uma nova e nunca antes vista fase dahistória da espécie humana. Eis um momen-to em que após ter conquistado a Terra eatingido seus limites, a humanidade tem derepensar sua relação com a natureza, como espaço e com seu próprio destino.

Estamos otimistas pela amplitude da cons-cientização frente à importância dos de-safios atuais, e pelo fato de que o espíritode liberdade e de solidariedade desper-tou. Desde Seattle e dos protestos contraa Organização Mundial de Comércio, em1999, o pêndulo começou a balançar emdireção à preocupação coletiva acerca dasescolhas futuras e da busca por coopera-ção em vez de competição.

A, até certo ponto, bem-sucedida, embo-ra ainda incompleta, luta européia contraos Organismos Geneticamente Modifica-dos; a perseverança da comunidade in-ternacional na efetivação do Protocolo deKyoto, de 2001, apesar do boicote dosEstados Unidos; a negativa européia emparticipar da invasão do Iraque, em 2003;e o reconhecimento unânime e urgentedos desafios propostos pelas mudançasclimáticas são sinais de que o vento dofuturo começou a soprar.

Apesar da escala dos desafios que nosesperam, começam a surgir soluções –em oposição aos prognósticos sombriospromovidos pelos oligarcas – e o desejode reconstruir o mundo está em francorenascimento. ■

Cidadania&MeioAmbiente 23

24

Débito de

por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

Temos que frear o consumismo

desregrado, reduzir paulatinamente

o que achamos ser necessidade,

aumentar a reciclagem, repensar

nosso estilo de vida e mudar a nossa

relação com o meio ambiente.

Embora a crise econômico-financeira atual

motive preocupação, principalmente emrelação às conseqüências para os mais po-bres, preocupo-me muito mais com turbulên-cias de outra natureza, que só tendem a au-mentar e terão impacto muito mais profundo.Isso porque estou convicto de que as crisesocasionadas pela reação da natureza aos nos-sos despautérios ambientais (embora negli-genciadas pela maioria da mídia e da socieda-de) aumentarão muito em freqüência, serãomuito piores e terão efeitos mais duradourosque aquelas geradas pela criatividade burrade engravatados milionários.

Ao focarmos nossa atenção apenas nosaspectos econômicos da crise atual, esta-mos perdendo uma importante chance dediscutir com coragem as bases insusten-táveis da economia global. Ou seja, o mo-delo que se baseia no crescimento eterno

a crisefuturo:

definitiva

e funciona no formato de um fluxo linear,que começa na extração de recursos na-turais e termina na disposição de lixo. Masnão. O principal tema que domina as dis-cussões é o temor da recessão e da que-da no consumo, vendidas como mons-tros terríveis. Na verdade elas são, sim,monstros, mas apenas se aceitarmos essemodelo. Por isso que é preciso analisá-loe criticá-lo a partir de uma perspectiva ex-terna, para fugir das amarras que nos im-põe e mostrar suas incongruências.

CONSUMO E CRESCIMENTO SUICIDAS

Por exemplo, essa falsa necessidade de queé preciso crescer, crescer sempre, crescer aqualquer custo. Mas a economia não existecomo algo que paira suspenso no vácuo (em-bora alguns financistas tenham lucrado mui-to vendendo essa idéia, antes que a bombaestourasse no colo de todos). Ela precisa de

dois elementos básicos, além do trabalho hu-mano: matéria-prima e energia. Como seu su-primento destes é finito, simplesmente não hárecursos naturais suficientes para sustenta-rem um crescimento constante da economia.Aliás, não há recursos suficientes nem mes-mo para sustentar por muito tempo a taxa atu-al de consumo de recursos naturais, ainda queas economias permaneçam com a dimensãoatual, sem crescimento algum! É até assusta-dor, de tão simples e óbvio.

Não há pirotecnia de argumentos tecnicis-tas que possam contradizer essa realidadeinquestionável. Até uma criança pode en-tender isso facilmente (às vezes elas enten-dem melhor do que muitos adultos nas prin-cipais cadeiras das maiores universidades).Experimente. Dê a ela uma pilha de qualquercoisa (feijões, bolinhas, botões – que seriamos recursos naturais não-renováveis) e pro-

Enquanto o Homem Vitruviano, de Leonardo daVinci (1452-1529), traduz as concepções de pro-porção, simetria e equilíbrio aplicadas à naturezahumana, o burlesco Homer de Vitruvio (acima)representa o desequilibrado homem contempo-râneo, vitimado por seu consumismo insustentá-vel (fast-food, eletrônicos, e-lixo, poluentes...).

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Caso contrário, só teremos uma opção: a extinção!

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ponha um jogo: “Olha, toda a vez que vocêquiser brincar ou ganhar um doce (os obje-tos de consumo), você tem que jogar no lixoum item”. A criança trocará seus itens atéque acabem, e só então irá abalar-se de ver-dade. Mas daí perceberá que os recursosfinitos são justamente isso, finitos e, umavez terminados, adeus consumo.

ESTAMOS EM “DÉBITO DE FUTURO”Diversos cálculos já foram feitos mostran-do que o planeta não conseguirá suprirrecursos naturais suficientes para susten-tarmos taxas até mesmo modestas de cres-cimento até o fim deste século. Outros cál-culos comparam a quantidade de recur-sos que consumimos a cada ano comaquela que o planeta é capaz de repor nomesmo período. Essas estimativas mos-tram que, a partir de meados de 1980, pas-samos a gastar mais recursos naturais doque o planeta pode repor. Com isso, cria-mos um débito de futuro.

Os responsáveis pela idéia usam uma me-táfora, pela qual vão somando o consumodiário de recursos desde o dia primeiro dejaneiro. Na data em que o uso acumuladoiguala a quantidade que o planeta é capazde repor ao longo do ano inteiro, chega-seao limite que poderíamos ter consumidonaquele período. A partir daí, passamos aavançar nos recursos do futuro. E essa datatem chegado mais cedo a cada ano.

Ou seja, não estamos nem pagando e nemestacionando a nossa dívida, mas aumen-tando-a continuamente. Pior ainda, a pró-pria quantia que descontamosa cada ano de nosso futuro tam-bém vem aumentando. É comose estivéssemos na mão de umagiota cruel:nós mesmos! Porisso, ainda que toda a econo-mia do planeta parasse subita-mente de crescer, ficaríamos es-tacionados no volume atual e,mesmo assim, a Terra nãoagüentaria por muito tempo.

CONSUMISMO: A PRAGA

QUE DEVORA A TERRA

Qual a solução? Bem, em pri-meiro lugar, seria necessárioque houvesse uma estagna-ção do crescimento e uma re-cessão por algum tempo, atéque as economias chegassema um nível de consumo de re-

cursos que fosse inferior à capacidade dereposição do planeta. “Ah, mas recessãogera desemprego e pobreza”, dirão. Sim, éverdade, mas apenas se forem mantidosoutros pressupostos e pilares dessa estru-tura socioeconômica. Se houvesse distri-buição mais eqüitativa da riqueza gerada,o problema seria menor. Mais, se o lucro ea produtividade não fossem os únicos pa-râmetros a guiarem as atividades econômi-cas, e sim a função social das mesmas, terí-amos mais elementos positivos para com-bater o desemprego.

Por fim, e mais importante, o problema seriaimensamente menor se a estrutura econô-mica não fosse calcada no consumismo, numsem-número de necessidades fictícias queforam criadas nos últimos séculos, e sem asquais convivemos sem grandes crises du-rante 99,9% do tempo em que estivemos aquineste planeta.

Reduzindo-se a necessidade de satisfaçãodos desejos de consumo, reduz-se tambéma precisão de dinheiro para adquiri-los, oque casa perfeitamente com uma distribui-ção mais eqüitativa da riqueza e com o focovoltado à função social das produções in-dustrial, agrícola e de serviços.

E se você acha a proposta muito radical, ébom lembrar que a crise ambiental já vemapresentando-se aos poucos. É um furacãoCatarina aqui, um desastre de Nova Orleansali, uma abertura do mar do Pólo Norte aco-lá. Não sabemos ao certo se a catástrofeambiental virá na forma de uma batida abrup-

ta contra o muro que afetará a todos (ou amaioria) de uma vez só ou se seguirá de for-ma mais gradual e dispersa, como tem acon-tecido, intensificando-se aos poucos. Po-rém, qualquer que seja o processo, logo nãoserá questão de escolha: seremos forçadosa uma redução drástica no consumo. De-pendendo da magnitude da crise, talvez se-jamos obrigados até mesmo a mudar paraum estágio pré-industrial.

Não defendo agora um retorno ao estilo devida pré-industrial como solução. Primeira-mente, porque não sei se seria preciso sertão radical. Ademais, por julgar que nuncaconseguiremos isso por vontade própria, pormais que seja interessante do ponto de vis-ta ambiental. Teremos sim (por bem ou pormal) que frear muito o consumismo, reduzirpaulatinamente o que achamos ser necessi-dade (e no geral não o é...), mudar a nossarelação com o meio ambiente, repensar nos-so estilo de vida, aumentar muito a recicla-gem e tentar ir equilibrando por aí.

Aqueles que começarem mais cedo esta-rão mais preparados e sofrerão menos (fí-sica e psicologicamente) com as mudan-ças que inevitavelmente virão. Bem, háoutra opção: a nossa extinção. ■

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha –Doutor em Comportamento Animal pela Uni-versidade de Saint Andrews e biólogo, colunistado Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br), parceiro estratégico do portalEcoDebate na socialização da informação socio-ambiental. Artigo publicado em www.ecodebate(12/11/2008) com o título As outras crises.

Os bens que hoje acumulamos serãoresíduos e lixo amanhã. As projeçõesindicam que, antes do ano 2050, aTerra abrigará nove bilhões de indiví-duos. Segundo o Global Print Network,nosso planeta é atualmente incapazde garantir o sustento de dois bilhõesde pessoas com padrão de consumosemelhante ao dos países mais ricosda atualidade. E já somos seis bilhõese meio de almas.

De acordo com a pegada ecológica– a métrica que possibilita calcular apressão humana sobre o planeta –,se cada habitante da Terra vivesse oestilo de vida do cidadão americanomédio, o sustento da população mun-dial exigiria nada menos do que cin-co Terras.

Fontes: Population Division of the Department of Economic and Social Affairsof the United Nations Secretariat, World Population Prospects:The 2004 Revision; Global Footprint Network, 2005.

Média variáveldas projeções

Nove bilhões depessoas em 2050

População sustentávelao nível de consumode renda média

A população da Índiadeve suplantar a da Chinapor volta de 2030.

População sustentávelao nível de consumode renda alta

POPULAÇÃO MUNDIAL E CONSUMOPopulação em bilhões

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por M. Nathaniel Mead

Em estudo publicado na edição

de maio de 2008 do Internatio-

nal Journal of Oncology, pesqui-

sadores suecos evidenciaram sig-

nificativas associações entre o

uso a longo prazo de telefones

celulares e o risco de desenvolvi-

mento de tumores cerebrais.

Com três bilhões de usuári-os de telefonia móvel em

escala planetária – 122,8 milhõesno Brasil1 e mais de 260 milhõesnos EUA2 (46% de crianças nafaixa etária de 8 a12 anos) –, aexposição do ser humano à radia-ção de baixa energia na faixa de800-2.000 megahertz gama está emcrescente aumento. E a mais re-cente revisão epidemiológica sis-temática para avaliar o risco do de-senvolvimento de tumores cere-brais relacionados à telefonia ce-lular traz novos esclarecimentossobre essa experiência global.

“Evidenciamos que o uso deaparelhos celulares está associ-ado a gliomas (tumores cere-brais malignos) e a neuromasacústicos (tumores benignos donervo auditivo cerebral) que co-meçaram a surgir nos últimosdez anos”, informa LennartHardell, coordenador da pesqui-sa, oncologista e epidemiologis-ta oncológico do Hospital Uni-versitário de Örebro, na Suécia.

No estudo que analisou indivídu-os expostos à radiação emanadapelo aparelho celular nos últimos10 anos, o risco de glioma ipsilate-ral (do mesmo lado) dobrou, fatonão-ocorrido contra-lateralmente(lado oposto da cabeça) em fun-ção do hábito de se segurar e dese falar ao celular em um ou outroouvido. Verificou-se, ainda, umaumento de 2,4 vezes do risco dedesenvolvimento de neuromasacústicos devido à exposição ipsi-lateral, e nenhum risco aumentadopara meningiomas (tumores queacometem as membranas que co-brem o cérebro e a espinha dorsal).

ALERTA

“Obviamente que precisamos demais pesquisas a longo prazosobre o uso da telefonia celularpara melhor balizar o risco de cân-cer”, informa o co-autor MichaelCarlberg. Os telefones celularessó passaram a ter seu uso popu-larizado há cerca de uma década,enquanto os tumores cerebraisinduzidos por radiação levamaproximadamente 10-15 anos parase desenvolverem, segundo aAmerican Cancer Society.

A equipe de pesquisa de Hardellfoi a fonte de vários estudos,sendo incluída na meta-análise.Na edição de outubro de 2006 doWorld Journal of Surgical Onco-logy, os investigadores informa-ram 70% de aumento para o riscode desenvolvimento de astroci-tomas de grau III-IV (tumores ce-rebrais altamente agressivos) nosusuários de telefones analógicos.O mesmo estudo reportou umamaximização de quase quatro ve-zes para neuromas acústicosapós 15 anos de exposição aoscelulares analógicos. No entan-to, não foi verificado risco au-mentado para câncer testicular,linfoma de célula B ou tumo-res da glândula salivar Portanto,os resultados observados nãoforam conseqüências de erros deinterpretação dos dados.

Para verificar se as pesquisas an-teriores não poderiam ter influ-enciado as conclusões da meta-análise de 2008, a equipe omitiuseus próprios dados da análise,e ainda assim encontrou riscosignificativamente aumentadopara gliomas e não-significativopara neuromas acústicos (au-

Celular e câncer

VERMELHO!

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M. Nathaniel Mead – Artigo publicado emEnvironmental Health Perspectives, Volume116, Number 10, October 2008. EPH é publi-cado por The National Institute of Environ-mental Health Sciences.http://www.ehponline.org/docs/2008/11610/forum.html#stro

mentos de 50% e 210%, respectivamente)para exposições ipsilaterais. “Agora iden-tificamos um consistente padrão de au-mento de risco para glioma e neuromaacústico”, informa Kjell Hansson Mild, es-pecialista em radiação da Universidade deUmeå, na Suécia. “Tais evidências não sãoapenas reveladas por nossa pesquisa,mas também por todos os outros estudosfocados em pelo menos 10 anos de perío-do de latência.”

As evidências apontadas sugerem que ascrianças podem ser mais vulneráveis aosefeitos carcinogênicos potenciais de telefo-nes celulares e de outras tecnologias comemissão de microondas. “A preocupaçãosobre a vulnerabilidade potencial da crian-ça aos campos de RF (radiofreqüência) foire-estimada devido à suscetibilidade poten-cialmente maior do sistema nervoso em de-senvolvimento”, alerta Leeka Kheifets, pro-fessor de epidemiologia na Universidade daCalifórnia, em Los Angeles, e ex-diretor doprograma de pesquisa do Electric PowerResearch Institute EMF . “Além disso, o te-cido cerebral da criança é mais condutivo, apenetração da RF é maior em relação à aotamanho da cabeça, e sofrerá uma maior ex-posição durante sua vida [embora o grau derisco para qualquer agente carcinógeno sejadeterminado principalmente pelo tempo epela magnitude de exposição].

A importância da caixa craniana mais fina edas propriedades dielétricas discrepantes foiconfirmada num estudo publicado em Physicsin Medicine and Biology, de 7 de junho de2008. Segundo esse trabalho, o cérebro deuma criança absorve até duas vezes mais RFdo que o cérebro adulto. As crianças hojeexperimentarão um período mais longo de ex-posição porque elas começam a usar celula-res em tenra idade. Esse dado é de alta rele-vância haja vista que doses cumulativas pa-recem fortemente influenciar o risco de tumo-res cerebrais. Não obstante, Kheifets chamaa atenção para a “falta de dados sobre osefeitos de exposições em tumores cerebraisinfantis... [e] que outros fatores sobre a saú-de também precisam ser analisados”.

A indústria de produtos eletro-eletrônicossem fio prefere manter uma visão cautelosaquanto à pesquisa. “O peso da evidênciacientífica e as conclusões de boa quantida-de de resenhas especializadas mostram queos celulares não representam um risco à saú-de”, diz Joseph Farren, vice-presidente as-sistente para relações públicas da CTIA–The Wireless Association. “A indústriaapóia o desenvolvimento de pesquisas àmedida que a tecnologia evolui, mas tam-bém enfatiza o fato de haver por parte dosmais respeitados organismos de saúde umconsenso sobre as pesquisas que apontamnão haver razões para preocupação.”

Hardell concorda que ainda é muito cedopara determinar-se um limite seguro para ouso de telefone celular. “Ainda não pode-mos afirmar que uma chamada telefônica dedez minutos equivale a dez chamadas de umminuto. Até estarmos prontos para respon-der tal interrogação não se pode estabelecerum novo limite ou até mesmo afirmar os pa-râmetros ou as unidades que possam aju-dar a definir aquele limite. No entanto, a par-tir do momento em que detectamos um riscoaumentado para o desenvolvimento de tu-mores cerebrais, torna-se necessário aplicaro princípio de precaução a essa situação,especialmente para exposições de longo al-cance, que parecem afetar as crianças emparticular”. Na prática, a providência podeser a limitação de uso de celular pelas crian-ças para minimizar a exposição de RF direta-mente à cabeça. ■

REFERÊNCIAS

1 – O Brasil terminou em janeiro de 2008, com122,8 milhões de celulares e uma densidade de64,5 cel/100 hab, segundo a Rede de Informa-ção Tecnológica Latino-Americana (RITLA).2 – Segundo dados da Nielsen Mobile libera-dos em setembro de 2008.

■ Os campos eletromagnéticos são uma combinação de cam-pos de força elétricos e magnéticos invisíveis gerados por fenô-menos naturais e pelo uso da eletricidade. A maioria dos gera-dos pelo homem compreende as radiofreqüências altas (RF),como as dos celulares; as intermediárias (IF), como as geradaspela TV; e as extremamente baixas (ELF), como as das linhaselétricas. As radiofreqüências vão de 100 kHz a 300kHz.

FONTES DE EXPOSIÇÃO AOS CAMPOS ELETROMAGNÉTICOS

Fonte: Comitê Científico de Riscos Sanitários Emergentes e Recente-mente Descobertos (CCRSERI), 2007. Informações completas emhttp://www.greenfacts.org/es

■ Os campos de radiofreqüência (RF) são vitais aos sistemas decomunicação atuais. As fontes mais conhecidas são os celulares,os telefones e as redes sem fio e as torres de transmissão de sinaisde rádio. Também utilizam campos de radiofreqüência os tomó-grafos médicos, os sistemas de radar e os fornos microondas.

■ Ao ser exposto a um campo de radiofreqüência, o organis-mo humano absorve energia. Não se pode precisar a quanti-dade que uma pessoa absorve diariamente, já que a exposi-ção depende de multifatores, sobretudo da distância que se-para o indivíduo da fonte emissora. A intensidade do campodiminui rapidamente ao se aumentar a distância, o que signi-fica que uma pessoa pode absorver mais energia de um dis-positivo próximo a si (o celular) do que de uma fonte maispotente (uma torre de transmissão) mais afastada.

■ A possibilidade de as radiofreqüências extremamente baixas(ELF) serem carcinogênicas não está descartada. Estudos preli-minares comprovam que crianças expostas a fortes camposmagnéticos gerados por redes de alta tensão são mais pro-pensas a desenvolver leucemia

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Estão (parcialmente) errados os obser-vadores que atribuem o recente de-

sastre de Santa Catarina apenas ao des-matamento na Amazônia. É verdade queesse é um forte determinante – tanto pormeio de mudanças climáticas regionaisquanto globais – dos fenômenos climáti-cos extremos, assim como tudo indica queo acontecido nos últimos dias faça partedessa categoria.

A ciência já identificou – apesar de não ex-plicar completamente – a complexa relaçãoque vincula as alterações na troca de umi-dade entre a floresta e a atmosfera na regiãoamazônica tanto com o regime pluvial nabacia do Prata quanto com a convecção dovapor que afeta a temperatura da camadasuperficial dos oceanos, importante fator nageração de furacões e outros eventos ca-tastróficos. Mas a natureza extrema do fe-nômeno climático que afetou Santa Catari-na não é suficiente para explicar a dimensãodos impactos. Há também a vulnerabilidadesem precedentes do nosso território diantede um clima exacerbado.

AS LIÇÕES DE SANTA CATARINApor Roberto Smeraldi Fotos: Wilson Dias/ABr

Independentementede nossacapacidade deadotar medidasefetivas paramitigar a criseclimática, teremosa intensificaçãode eventosextremos naspróximasdécadas.

As chuvas e inundações que devastaram o Morro do Baú, em Ilhota-SC(foto)constituem desastres ambientais – e sociopolíticos – há muito anunciados.

Independentemente de nossa capacidadede adotar medidas efetivas para mitigar acrise climática, teremos, de qualquer forma,uma intensificação de eventos extremos naspróximas décadas, além do que ocorreu nes-ta, já sem precedentes. Podemos e devemosfazer muito, agora mesmo, para mitigar essatendência na segunda parte do século e nosvindouros, mas, infelizmente, já é tarde paraevitá-la no curto prazo.

A vulnerabilidade extrema do território deSanta Catarina – e a de outras importan-tes regiões do país – é devida principal-mente a desmatamento local, com altera-ções expressivas no uso do solo e nagestão das águas. Se o Código Florestaltivesse sido respeitado, especialmente noque diz respeito às áreas de preservaçãopermanente (APP) – que incluem toposde morro, encostas e matas ciliares –, nãoveríamos erosão e assoreamento nessaescala. Fator agravante é a crescente po-pulação localizada em áreas de risco, oque reflete peculiar sensibilidade socialpor parte de nossos governantes: preo-

cupam-se tanto com as populações maiscarentes que até se negam a retirá-las deonde a morte as ameaça.

Mas há outras contradições paradoxais,na contramão da história: enquanto asmanchetes contabilizam as vítimas, noCongresso Nacional se cogita – acredi-te se quiser – “flexibilizar” o CódigoFlorestal, tanto no que diz respeito aodesmatamento em geral (a chamada re-serva legal) quanto em relação às cita-das APPs. Em ambos os casos, a basedo raciocínio é o reconhecimento do fatoconsumado.

Prevalece ainda a hipócrita cultura doperdão que, por trás de sua fachada debondade, implica a socialização dos pre-juízos e, muitas vezes, assume a vitima-ção até mesmo de seus supostos benefi-ciários. Isso caracteriza a relação de umregime autoritário com seus súditos, enão de uma democracia com seus cida-dãos, que exige responsabilidade, certe-za do direito e cobrança mútua.

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Danos ambientais provocados pelas alterações climáticas, como desertificação e inun-dações, vão provocar dramáticos êxodos populacionais nas próximas décadas. Ofenômeno de migração ambiental está acelerando. Dados alarmantes indicam quemais de 40 países já não mais existirão ao final deste século devido às mudançasclimáticas, e estima-se que até 2050 cerca de 200 milhões de pessoas serão desloca-das por problemas ambientais.

“Todos os indicadores mostram que estamos lidando com um grande problema globalemergente”, sentencia Janos Bogardi, diretor do Instituto do Meio Ambiente e da Segu-rança Humana (Institute for Environment and Human Security, UNU-EHS), ligado à Uni-versidade da ONU. O número atual de refugiados ambientais varia de 25 a 27 milhões.

No passado, muitas vítimas dessa situação seriam qualificadas como migrantes eco-nômicos, classificação que não mais se aplica. A migração por motivos ambientaisdeve expulsar gente mais pobre – em sua maioria mulheres, crianças e idosos – deregiões gravemente atingidas.

Um estudo realizado por várias instituições européias expressou o temor de que redesde tráfico humano aproveitem-se dessa situação. Em Bangladesh, por exemplo, mu-lheres com filhos, cujos maridos morreram no mar durante o ciclone Sidr ou estão foracomo trabalhadores migrantes temporários, são presa fácil de traficantes e acabamem redes de prostituição. Ou ainda, prestam-se ao trabalho forçado na Índia. Aexploração de pessoas deslocadas por contrabandistas é relatada cada vez mais,conforme incha o fluxo de migrantes informais ou ilegais, revela o estudo.

Assim, mete-se a mão no bolso do contribu-inte para enfrentar os danos da calamidade,mas não se realizam os investimentos, bemmais modestos, que poderiam fomentar arestauração das florestas, a recuperação dasáreas alteradas e a proteção civil do territó-rio, além do desenvolvimento de uma eco-nomia de uso dos recursos florestais.

Se tivermos, como contribuintes, de sub-sidiar alguma parte no interesse supremoda sociedade, deveria ser a eliminação dospassivos. Ao contrário, subsidia-se, me-diante a impunidade e a tolerância, a ma-nutenção destes passivos, o que custamuito, muito mais caro.

Nosso Plano Nacional sobre MudançasClimáticas foi lançado dia 1º de dezembro –o que vale uma comemoração –, mas commetas pífias para a Amazônia e sem metapara o cerrado – que se tornou, hoje, a pri-meira fonte de emissões do país – e para aMata Atlântica, essencial para diminuir avulnerabilidade de nossa população.

Prevalece ainda pernicioso provincianis-mo, pelo qual, ao reduzirmos de fato nos-sas emissões, estaríamos atendendo a in-teresses alheios antes dos nossos legíti-

mos. Daí a preocupação em não assumircompromissos de descarbonização com-petitiva da nossa economia sem contra-partida no contexto internacional.

Quantos mortos são necessários para seentender que estamos entre os países maisvulneráveis à mudança climática? Nesta se-mana, em Poznan, reúne-se a convenção declima: o Brasil está no topo da agenda da

“mitigação” – por estar regularmente entreos cinco principais poluidores – , mas tam-bém daquela da “adaptação”, por sofrer asconseqüências mais graves da mudança emtermos de saúde, segurança costeira, agri-cultura e eventos catastróficos. ■

lhota (SC) - Resgate das vítimas atingidas pelos temporais no Vale do Itajaí.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS PODEM CRIAR MILHÕES DE REFUGIADOS AMBIENTAIS

Fonte: United Nations Unversity – Institute for Environment and Human Security /UNU-EHS[www.ehs.unu.edu]. Para mais informações sobre refugiados consulte - LISER: World InformationCentre on Environmental Refugees [www.liser.org/]Refugiados etíopes no Sudão - Foto: Daveblume

Roberto Smeraldi – Jornalista, é diretor daOscip Amigos da Terra – Amazônia Brasileira.Artigo publicado na Folha de S.Paulo, 02/12/2008.

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A alimentação humana, contamina-da por agrotóxicos e pesticidas, ealterada em sua natureza intrínse-

ca pelo processamento radical, está sendoacusada por especialistas de ter sido trans-formada em uma máquina de fabricar doen-tes e gerar verdadeiras epidemias contem-porâneas, como cânceres e diabetes.

Para complicar mais, ao produzir comida,agora se exige que a agricultura dispute asterras disponíveis com os biocombustíveisnecessários para moverem outra praga glo-bal: a frota explosiva de automóveis.

Durante o século 19, as principais preo-cupações associadas a questões agríco-las e ambientais na Europa e na Américado Norte eram o esgotamento da fertili-dade das terras, a crescente poluição dascidades e o desflorestamento de conti-nentes inteiros.

Com a exaustão dos fertilizantes naturais,agricultores europeus da época chegarama invadir as regiões das batalhas de Wa-terloo e de Austerlitz para buscarem osossos das catacumbas e espalhá-los moí-dos sobre seus campos. O primeiro barcocarregado de guano peruano – esterco deaves marinhas – chegou a Liverpool em1835; em 1847, já se importavam 222 miltoneladas anuais. Por volta de 1860, Marxhavia se convencido da natureza insus-tentável da agricultura capitalista.

Suas contradições foram muito sentidasnos EUA com o bloqueio do guano peru-ano pelo monopólio britânico. O Decretodas Guano Islands, aprovado pelo Con-gresso em 1856, fez os norte-americanosapossarem-se de quase 70 ilhas e arreci-fes em todo o mundo. Com o esgotamen-

Gilberto Dupas – Economista, coordenadorgeral do Grupo de Conjuntura Internacional daUSP, presidente do Instituto de Estudos Eco-nômicos e Internacionais e autor de “O Mito doProgresso” e de “O Incidente”, entre outrasobras. Artigo transcrito de Tendências/Debates,Folha de S. Paulo, em 4/11/2008.

saúde ou doença?

por Gilberto Dupas

Podemos sonhar com uma agricultura

to das reservas peruanas, foi necessáriosubstituir o guano por nitratos chilenos.Essa sucessão de crises impulsionou osgrandes avanços na ciência do solo, esti-mulando a revolução agrícola com a in-dústria de fertilizantes.

Continuavam, porém, preocupações cres-centes com a exaustão do solo e o proces-so de destruição ecológica. Começaram,então, a ser utilizados nitrogênio, fósforo,potássio e os superfosfatos sintéticos.

Percebendo essa crise estrutural na ferti-lidade das terras, Marx acusou a agricul-tura capitalista de larga escala e a indús-tria de se unirem para empobrecerem o soloe o trabalhador; a grande propriedade fun-diária iria reduzindo a população agrícolaa um mínimo e surgiria uma crescente po-pulação industrial amontoada nas cidades.

Para ele, era uma falha irreparável no pro-cesso interdependente do metabolismosocial, prescrito pelas leis naturais; o sis-tema industrial e o amplo comércio aplica-dos à agricultura debilitariam os trabalha-dores e ofereceriam aos produtores meiospara exaurir o solo. As condições de sus-tentabilidade impostas pela natureza ha-viam sido violadas. Curioso que tal idéiaaproxime-se da noção atual de desenvol-vimento sustentável.

A solução de Marx para essa grave ques-tão era o tratamento racional da terra comopropriedade comunal permanente, o que,porém, mostrou-se um fracasso quandoaplicado às experiências de socialismo real.Foi a agricultura capitalista de larga escala– apoiada numa poderosa indústria globalde agrotóxicos, fertilizantes, pesticidas eprodutos químicos avançados – que aca-

bou se impondo globalmente durante asegunda metade do século passado.

De fato, com essas tecnologias e mane-jos, o grande agronegócio global deu con-ta da oferta de alimentos básicos para cres-centes populações mundiais; contudo, aqualidade dos produtos alimentares resul-tantes degradou-se. Contaminados porpesticidas, antibióticos, hormônios e re-síduos tóxicos, alimentos padronizados esuas cadeias protéicas deixam atrás de sium meio ambiente devastado.

Os transgênicos, última promessa da téc-nica, são ditos capazes de revoluciona-rem o mundo dos alimentos. Mas omitem-se seus riscos, culturas tradicionais e va-riedades genéticas são destruídas, a pa-dronização aumenta, a qualidade final éposta em dúvida, os efeitos sobre a saúdecausam preocupações e a dependênciatecnológica concentra-se.

Será que podemos voltar a sonhar comuma agricultura orgânica que gere maissaúde que doenças, produzindo comidanatural de boa qualidade, verduras e le-gumes sem agrotóxicos e não enveneneterras cultiváveis e rios? Ou estaremosinevitavelmente condenados à esquizofre-nia de uma civilização que alerta cada vezmais sobre o risco dos alimentos contami-nados, mas obriga quem quiser ser sau-dável a procurar produtos orgânicos pormais do dobro do preço? ■

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TÉCNICAS ALIMENTARES:

orgânica que gere mais saúde que doenças,

produzindo comida de boa qualidade?

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