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A revista Cidadania & Meio Ambienteé uma publicação da Câmara de CulturaRua São José, 90, 11o andar, grupo1106Centro – 20.010-020 – Rio de Janeiro/RJTelefax (55-21) 2432-8961 • 2487-4128

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A Revista Cidadania & Meio Ambiente não seresponsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos

em matérias e artigos assinados. É proibida areprodução dos artigos publicados nesta edição sem

a devida solicitação por carta ou via e-mail aosrespectivos autores.

E D I T O R I A L

Caros Amigos,

A escultura THE WEEE MAN (Waste Electrical and ElectronicEquipment), que ilustra a matéria Como o homem está destruindo o plane-

ta (págs.4-5), representa o total estimado de lixo eletro-eletrônicoque um único indivíduo produz em toda sua vida no Reino Unido:uma montanha de dejetos com três toneladas e sete metros de altura.Esta obra de conscientização pública alerta para a crescente produ-ção de WEEE na União Européia, na qual cada cidadão contribuicom cerca de 14kg/ano, num total de 6,5 milhões de tonelada/ano.

Cristalizada no Homem de Weee, a insensata habilidade humana deproduzir descarte tóxico vem a ser uma das nefastas conseqüênciasdo atual modelo econômico insustentável, que vitima tanto as na-ções ricas como as “em desenvolvimento”. E nossa casa Terra pagao preço via aquecimento global, alterações climáticas, poluição, des-perdício e exaustão dos recursos naturais, empobrecimento genéti-co, extinção de espécies vegetais e animais.

Para dar um basta à desafiadora catástrofe induzida pela “sociedade de

consumo e de desperdício”, é urgente adotarmos atitudes criativas eimplementar ações preventivas garantidoras do desenvolvimento susten-

tável e da sobrevivência do planeta, tais como:. Tornar accessível a todos os indivíduos – a partir da infância – apercepção para o desperdício através da mudança comportamentalindividual e coletiva;. Denunciar a obsolescência industrial programada e o conseqüenteconsumismo desenfreado;. Encorajar os consumidores, os varejistas e os fabricantes a reduzi-rem o desperdício;. Promover a indústria da reciclagem em todas as esferas de bens deconsumo; e. Educar a sociedade para o consumo ético e para a administraçãodos recursos sustentáveis.

Claro que os pontos alinhavados acima não são suficientes parareformular ou frear o modelo econômico vigente baseado na especu-lação e no lucro desmedido. Mas, eles podem deflagrar um processode conscientização que ecoará um sonoríssimo não às políticas e aoscomportamentos que nos levam à autodestruição. A salvação do pla-neta está em nossas mãos.

Hélio CarneiroEditor

Diretora

Editor

Subeditor

Projeto Gráfico

Revisão

Regina [email protected]

Hélio [email protected]

Henrique [email protected]

Lucia H. [email protected]

Vanise Macedo

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conhecimento e à reflexão através denotícias, informações, artigos de opinião

e artigos técnicos, sempre discutindocidadania e meio ambiente,

de forma transversal e analítica.

Colaboraram nesta edição

New ScientistHenrique Cortez

Salvador NogueiraAndré Lemos

WRM e Norbert SuchanekRogério Grassetto T. da Cunha

IRIN/ONUCarlos MendesLeonel Rocha

UNEP e GLOBIOHorand Knaup

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Nº 17 – 2008

Capa: Wee Planet Frisco from The Roof of Bolt Peters, por Boltron

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Como a economia está matando o planetaEm plena crise global, com governos e mercados aterrorizados com uma possível recessão mundial,o relatório How our economy is killing the Earth aponta a insensatez da busca pelo crescimentoilimitado que está levando o planeta ao desastre. Por New Scientist

Como a economia está matando o planetaO special report da publicação britânica New Scientist motiva o debate sobre o desastroso modelode desenvolvimento econômico atual e formula questões vitais para o futuro da Terra. Algumasdistorções de tal modelo são dissecadas nesta reflexão crítica. Por Henrique Cortez

Aquecimento global: plantas consomem menos CO2

Novo estudo demonstra que um ano muito quente reduz a presença de umidade e leva as plantasa economizarem água. Ou seja, quanto mais o planeta esquentar, menos a vegetação planetáriaterá condições de conter o aquecimento global. Por Salvador Nogueira

Sociedade em rede: um mundo sem fronteiras?As novas tecnologias e os dispositivos desenvolvidos a partir da Web estão redesenhando asociedade e o espaço urbano. Confira como a sociedade contemporânea está sendo transformadapela internet, pela Web 2.0 e pela comunicação digital. Entrevista com André Lemos

Monocultura florestal: um deserto de árvoresAs monoculturas de árvores para fins comerciais não apenas representam gravíssima ameaça àsobrevivência da biodiversidade das florestas do mundo, como agravam a degradação dascondições socioambientais onde são implantadas. Por WRM e Norbert Suchanek

O fim dos saposApós 400 milhões de anos de evolução, sapos, rãs e pererecas poderão desaparecer da Terra.Neste 2008 – Ano da Rã e do projeto Amphibian Ark –, veja o que você pode fazer para resgataressas extraordinárias criaturas da extinção. Por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

A água está acabandoAntes de 2025, a população mundial aumentará em 2,6 bilhões, e as demandas de águaexcederão a disponibilidade em 56%. As pessoas viverão em áreas de água escassa, e as disputaspor esse precioso recurso serão inevitáveis. Por IRIN/ONU

Amazônia: moratória da soja é só propagandaCriada supostamente para frear o desmatamento na região, a moratória é tratada como umaautêntica farsa no relatório Impactos Sociais da Soja, que acaba de ser divulgado pela ComissãoPastoral da Terra (CPT) de Santarém, oeste do Pará. Por Carlos Mendes

Caatinga e cerrado estão virando carvãoEnorme devastação de vegetação natural para produção de carvão vegetal ilegal está ocorrendo emGoiás, Minas Gerais e Bahia. O comércio criminoso que movimenta cerca de R$ 60 milhões a cadamês fragiliza o que ainda resta dos biomas cerrado e caatinga. Por Leonel Rocha

Ártico: sobrevivência em riscoA abertura de estradas de rodagem nos últimos 25 anos e menos gelo no mar aliados aofenômeno do aquecimento global abriram a vasta e até pouco inacessível região ártica ao modeloatual de desenvolvimento predatório e insustentável. Por UNEP e GLOBIO

África – A corrida do “Ouro Verde"Para saciar a forme do mundo por biocombustível, empresas ocidentais estão comprando vastasextensões de terra no continente africano e comprometendo a sobrevivência de muitos povos. Maisuma forma de colonialismo econômico. Por Horand Knaup

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por New Scientist e análise por Henrique Cortez

COMO A ECONOMIA ESTÁMATANDO O PLANETA

O consumo dos recursos aumen-to com extrema rapidez, a biodi-

versidade está declinando equase todos os indícios

mostram como nós, huma-nos, estamos afetando aTerra em larga escala. Amaioria aceita a neces-sidade de um modo devida mais sustentávelvia redução das emis-sões de carbono, de-senvolvimento detecnologia renovávele aumento da efici-ência energética.

Estarão os esforçospara salvar o planeta

fadados ao fracasso?Contingente crescente de

especialistas examina os índicesde insustentabilidade e afirmaque a adesão individual ao con-trole das emissões de CO

2 e o am-

bientalismo em termos coletivossão fúteis enquanto nosso sis-tema econômico estiver lastrea-do na suposição de crescimen-to. A ciência diz-nos que se qui-sermos agir seriamente em defe-sa da Terra, teremos que refor-mar o atual modelo econômico.

Essa última afirmação é tidacomo heresia econômica. Paraa maioria dos economistas, ocrescimento é tão essencialquanto o ar que respiramos.Para eles, o modelo econômicoatual é a única força capaz deresgatar os pobres da pobreza,de alimentar a crescente popu-lação mundial, de enfrentar ocusteio dos gastos públicos ede estimular o desenvolvimen-to tecnológico – sem falar nosustento de estilos de vida cres-centemente caros. Eles não con-seguem impor limites ao cresci-mento econômico.

Desde o estouro da bolha eco-nômica internacional, ficou cla-ro como os governos apavoram-se frente a qualquer situaçãoque ameace o crescimento, comoprovam os bilhões de dinheiropúblico vertidos em um camba-leante sistema financeiro. Emmeio à confusão, qualquer de-safio ao dogma de crescimentoprecisa ser analisado muito cui-dadosamente. E essa questãocentra-se numa pergunta hámuito colocada: como enqua-drar os recursos finitos da Terraao fato de que o crescimento

“The W

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an”.

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: Law

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Em plena crise global, com governos e mercados aterrorizados com uma

possível recessão mundial, a revista New Scientist analisa no relatório

Special report: How our economy is killing the Earth a insensatez da busca

pelo crescimento ilimitado que está levando o planeta ao desastre.

Nosso planeta enfrenta uma crise.

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Nota do Editor: Recomendamos a leitura on-line (em inglês)dos textos referenciados no artigo da New Scientist. Abaixo, oslinks para acessá-los:1 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.300-special-report-economics-blind-spot-is-a-disaster-for-the-planet.html2 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100-special-report-why-polit icians-dare-not-l imit-economic-growth.html3 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.500-interview-champion-for-green-growth.html4 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100-special-report-why-polit icians-dare-not-l imit-economic-growth.html5 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.600-special-report-does-growth-really-help-the-poor.html6 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.200-special-report-interview—the-environmental-activist.html7 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.900-special-report-life-in-a-land-without-growth.html8 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026787.000-special-report-nothing-to-fear-from-curbing-growth.html

econômico exige o crescimentodos recursos naturais parasustentá-lo?! Para a economiaalcançar sua atual dimensão foinecessário todo o desenvolverda história humana. Mas nocontexto em que agora se apre-senta, em apenas duas décadaso cenário econômico dobrará.

Neste número especial, New Sci-entist reúne os pensadores maiscategorizados em política, eco-nomia e filosofia; eles discordamprofundamente do dogma docrescimento e concordam com oscientistas que monitoram nossafrágil biosfera. Herman Daly, paida economia ecológica, explicapor que nossa economia é cegaaos custos ambientais de cresci-mento (The World Bank’s blindspot)1, enquanto Tim Jackson,conselheiro para desenvolvi-mento sustentável do governodo Reino Unido, envereda pornúmeros para mostrar que os re-mendos tecnológicos não com-pensarão a velocidade horripilan-te na qual a economia está se ex-pandindo (Why politicians darenot limit economic growth)2.

Gus Speth, ex-conselheiro ambi-ental do Presidente Jimmy Carter,explica por que após quatro dé-cadas trabalhando nos mais al-tos níveis da articulação de polí-ticas dos EUA acredita que os

valores verdes não têm chancealguma contra o capitalismo dehoje (Champion for greengrowth)3. E Susan George, prin-cipal cabeça da esquerda políti-ca argumenta que somente o es-forço global capitaneado por go-vernos poderá mudar o rumo docurso destrutivo em que nos en-contramos (We must think big tofight environmental disaster)4.

Para Andrew Simms, diretor de po-lítica da New Economics Founda-tion, baseada em Londres, é cru-cial demolir uma das principaisjustificativas para crescimento de-senfreado: a de que ele pode res-gatar os pobres da pobreza (Thepoverty myth)5. E o radialista eativista David Suzuki explica

como ele inspira os líderes empre-sariais e políticos a mudarem seuspensamentos se (Interview withan environmental activist)6.

O que uma verdadeira economiasustentável seria é explorado emLife in a land without growth7,quando New Scientist recorre auma concepção de Daly paraimaginar a vida numa socieda-de que não torra os recursosmais rapidamente do que o mun-do pode recriar. Espere obser-vações duras a respeito de ri-queza, imposto, trabalho e taxasde natalidade. Mas, como enfa-tiza Daly, a transição do cresci-mento para o desenvolvimentonão tem que significar o imobi-lismo soturno típico da tirania

comunista. A inovação tecnoló-gica nos dar-se-ia cada vez maisdos recursos que já temos e,como a filósofa Kate Soper apre-senta em Nothing to fear fromcurbing growth8, restringir nos-sa dependência pelo trabalho epelo lucro melhoraria nossas vi-das de muitas maneiras.

Trata-se de uma perspectiva queJohn Stuart Mill, um dos funda-dores da economia clássica, teriaaprovado. Em Princípios de Eco-nomia Política, publicado em 1848,Mill previu que, uma vez encerra-do o crescimento econômico,emergiria uma economia ‘estacio-nária’ que possibilitaria o foco nomelhoramento humano: “Haveriauma amplitude nunca vista paratodos os tipos de pensamento,progresso moral e social... em proldo melhoramento da arte de vi-ver, com muito mais probabilida-de deste objetivo ser alcançadoquando as cabeças deixam de sefixar na arte de acumular”.

Os economistas de hoje rejeitamtais idéias como ingênuas e utó-picas; mas, com os mercados fi-nanceiros em derrocada, o preçodos alimentos em alta vertigino-sa, o mundo em processo de aque-cimento e o preço do petróleo nopico (ou em baixa), tais idéias es-tão se tornando cada vez mais di-fíceis de serem ignoradas. ■

MAIOR A RIQUEZA, MAIOR O DESPERDÍCIO

Crédito: UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library (2004) – http://maps.grida.no/go/graphic/the-richer-we-get-the-more-we-discard-human-consumption-waste-and-living-standards.Designer: Philippe Rekacewicz, UNEP/GRID-Arendal. Fonte: OCDE, 1999.

Segundo várias projeções, atendência é que o desenvolvi-mento econômico (representa-do neste gráfico como ProdutoInterno Bruto, PIB) continuaránas próximas décadas – mas,em ritmo menor para os paísesque dispõem de planos estra-tégicos para a administraçãode resíduos. Com 1,3 bilhão dechineses ingressando nos“grandes prazeres do consu-mo”, os rejeitos municipais cer-tamente serão a preocupaçãoambiental preponderante.

Índice 100 em 1980

Países da OCDEprojeção

Geração deResíduo Municipal

PIB

População

A globalização e a

financeirização da economia

criaram um modelo apenas

baseado no consumo desmedido

e na especulação.

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Em primeiro lugar, o artigo re-conhece o óbvio: nosso

modelo de desenvolvimento éinsustentável. Vivemos em umplaneta finito com recursos igual-mente finitos, logo o conceito dedesenvolvimento baseado na ex-pansão infinita da economia nãofuncionará por muito tempo.Pena que, reconhecer o óbvio,nem sempre seja simples.

Desde o início da era industrial,os padrões de desenvolvimentoforam concebidos a partir da re-lação produção e consumo. Des-se período inicial, os conceitosde preço, valor e custo, emboradiferentes, guardavam uma lógi-ca nas suas razões e proporções.A globalização e a finaceirizaçãoda economia criaram um modeloem que preço, valor e custo jánão guardam relação entre si. Cri-aram, na verdade, um modeloapenas baseado no consumodesmedido e na especulação.

É esta a questão essencial coloca-da pelo artigo: só encontraremosa necessária sustentabilidade pla-netária se mudarmos o modelo dedesenvolvimento e, com ele, osatuais fundamentos econômicos.Redesenhar a economia mundialseria um feito inédito, e só poderiaacontecer se realizado coordena-damente por todos os países. Ouseja, não vai acontecer.

A QUESTÃO DOCONSUMO INSUSTENTÁVELO modelo produção/consumoprecisa vender cada vez mais,

COMO A ECONOMIA ESTÁ

em escala maior do que o cresci-mento populacional. Para isso,investe-se pesadamente no ma-rketing, produzindo uma ondaconsumista sem paralelos naHistória. Ao mesmo tempo, to-dos os produtos devem ficar ob-soletos o mais rápido possível,justificando sua substituição,mesmo que desnecessária. Odesperdício é incentivado; e oconsumo desenfreado, endeu-sado. É evidente que isso de-manda cada vez mais recursosnaturais e energia, logo, nossapegada ecológica fica maior.

Muito bem, digamos que umaonda de regulação global tenteminimizar esse processo, a come-çar pela obrigação de reduzir aobsolescência, ao mesmo tempoem que, por programas de efici-ência energética, reduz-se a ener-gia agregada ao produto. O pri-meiro impacto seria a redução dademanda de recursos naturais ede energia. Mas, ao mesmo tem-po, também se diminuiria a de-manda industrial e, com ela, aoferta de empregos na indústria.Menos empregos e produçãotambém reduziriam a arrecadaçãode tributos, o que poderia enfra-quecer toda a rede de proteçãosocial oferecida pelos governos.

Com base no raciocínio acima, osdesenvolvimentistas são ferre-nhos defensores do crescimentoda produção, do consumo e, evi-dentemente, da carga tributária.Segundo eles, sem isso, o resulta-do seria uma catástrofe econômi-

Vivemos em um planeta finito

com recursos finitos.

Assim, o conceito

de desenvolvimento baseado

na expansão infinita

da economia não funcionará

por muito tempo.

MATANDO O PLANETA

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A insustentabilidade do modelo econômico desenvolvimentista atualincha as cidades, esgota os recursos naturais e acelera as mudançasclimáticas globais, prenúncios de uma catástrofe planetária.

PARA HENRIQUE CORTEZ, O RELATÓRIO DA NEW SCIENTIST É, ACIMA DE TUDO,

UMA PROVOCAÇÃO. PREOCUPA-SE EM FORMULAR QUESTÕES E MOTIVAR O DEBATE

PORQUE, SEM REFLEXÃO CRÍTICA, TALVEZ NÃO TENHAMOS FUTURO.

foto:Boltron

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Henrique Cortez – Coordenador do portal www.ecodebate.com.brE-mail: [email protected] Publicado no portalwww.ecodebate.com.br em 20/10/2008. O Special report: How our eco-nomy is killing the Earth foi publicado em New Scientist magazine,issue 2678, 16 October 2008, pp. 40-41. Pode ser lido on line em http://www.newscientist.com/article/mg20026786.000-special-report-how-our-economy-is-killing-the-earth.html

ca em escala global. Certo? Nãonecessariamente. Uma grandeparte de tal modelo de desenvol-vimento é virtual e meramente es-peculativo, como ficou demons-trado na atual crise financeira in-ternacional e na alimentar.

Na crise alimentar, ficou explíci-to que a produção de alimentosé mais do que suficiente paragarantir a segurança alimentar detoda a população do planeta.Porém, o modelo especulativoencarece os produtos, impedin-do que os mais pobres tenhamacesso aos alimentos, perpetu-ando o ciclo da fome.

LUCRO PRIVADO;PREJUÍZO SOCIALIZADOAlgo parecido acontece com osprodutos e com os serviços.Muitas empresas obtêm mais dametade de seus lucros no merca-do financeiro e, para isso, tor-nam-se grandes investidoras nasbolsas de valores. Para manter oritmo de seus lucros, buscam pa-péis mais lucrativos e, por con-seqüência, de maior risco.

Enquanto Wall Street (a econo-mia virtual) esteve desconecta-da da main street (a economiareal), o cassino especulativoenriqueceu muita gente. Masagora, com a crise, quando ospapéis perderam a gordura es-peculativa e retornaram ao seuvalor real, a conta ficou com ocontribuinte. É da essência des-se capitalismo especulativo queo lucro seja privado e o prejuí-zo, socializado.

É a forma ilógica da relação pre-ço–valor–custo que permite a umpar de tênis custar US$25 e servendido por US$400. Toda a eco-nomia global possui incontáveiscasos assim; por isso, é uma eco-nomia com muito mais dígitos doque seu valor real.

Isso também permite a executi-vos, nos EUA, terem um saláriode US$17 mil/hora e que recebe-rem generosas bonificações pe-

los lucros que oferecem aos aci-onistas, mesmo que sejam os me-ramente especulativos.

É o caso do preço do petróleo que,no último ano, variou de US$ 60para US$ 140, e agora está reduzi-do à metade, sem qualquer rela-ção real com a produção e o con-sumo. As variações de consumoforam irrelevantes e os grandesconsumidores mundiais continu-am com a mesma demanda maci-ça. Outro claro caso de especula-ção. É isto que está em questão: oque realmente deve ser entendi-do como desenvolvimento, comodeve ser medido e incentivado.O relatório Special report: How

our economy is killing the Earth,publicado pela revista New Sci-entist, não pretende esgotar otema ou propor alternativas. Tam-bém não tenho essa pretensão,pois nem que seja porque, nemde longe, tenho as respostas.Aliás, penso que ninguém as tem.

Fica, no entanto, o alerta deque esse modelo não vai fun-

cionar por muito tempo, naexata medida em que os recur-sos naturais esgotam-se, eque as mudanças climáticaspodem colocar a economia e asociedade diante de uma ca-tástrofe planetária.

Precisamos debater esses temase encontrar alternativas mais viá-veis enquanto ainda há tempo.■

A Pegada Ecológica mensura e gerencia o montante de recursos materiais e energéticos necessários para sustentaro consumo e os resíduos de indivíduos, organizações, setores industriais e de serviços, cidades, regiões e nações.Esse indicador revela que, em muitos países – e para o planeta, como um todo –, a demanda por recursos naturais(a capacidade ecológica) excede a atual disponibilidade. Os países incapazes de garantirem o consumo interno comseus próprios recursos naturais estão vivendo em déficit ecológico. Como conseqüência, vêem-se forçados aimportarem capacidade ecológica de outros pontos do planeta ou subtraí-la das gerações futuras.A pegada ecológica é atualmente usada em todo o mundo como um indicador de sustentabilidade ambiental.No gráfico publicado em 2004, mostra-se que a maioria dos países industrializados apresenta um estilo de vidagerador de fortíssimo déficit da pegada ecológica.

Fonte: UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library; 2004. http://maps.grida.no/go/graphic/ability_of_countries_to_support_their_citizens_from_their_own_environment. Designer: Philippe Rekacewicz, UNEP/GRID-Arendal

CAPACIDADE DOS PAÍSES EM SUSTENTAREM

SEUS CIDADÃOS COM RECURSOS PRÓPRIOS

Excesso

Hectare por pessoa

Déficit

Fonte: Earthday Network

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Um novo estudo, conduzido por pesquisadores americanos,

acaba de demonstrar que um ano muito quente reduz a

presença de umidade e motiva as plantas a economizarem

água — sabotando fortemente sua capacidade de tirarem

carbono da atmosfera. Ou seja, quanto mais o planeta

esquentar, menos as plantas vão ajudar a conter o aquecimento.

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AQUECIMENTO GLOBAL:

por Salvador Nogueira

PLANTAS ABSORVEM MENOS CO2

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O experimento, publicado no perió-dico científico “Nature”, deve le-var a novas formas de calcular o

quanto realmente as áreas com vegetação sãocapazes de agir como sumidouros de carbo-no — uma espécie de ralo que ajuda a contro-lar a presença de gases causadores do efeitoestufa na atmosfera. Pena que os cálculos te-rão de ser refeitos – todos – para baixo.

Para obter tais conclusões, os cientistasenvolvidos no estudo tiveram de esperarquatro longos anos. “Claro que estávamosansiosos para obter resultados desse es-tudo, mas não se pode apressar a nature-za”, disse ao G1 Paul Verburg, do Institutode Pesquisa do Deserto (Desert ResearchInstitute – http://www.dri.edu/), em Reno,Nevada (EUA). “Poderíamos ter feito umestudo de duração menor sob condiçõesclimáticas constantes, mas teria sido maisdifícil traduzir os resultados para condi-ções de mundo real”, afirma.

O esforço da pesquisa consistiu em man-ter gramíneas encapsuladas em quatro li-símetros — tanques que permitem medi-ções precisas da interação das plantas comseu ambiente — de 184 metros cúbicos.De início, essas chamadas EcoCELLs (Eco-Células) foram mantidas sob a mesma tem-peratura do ambiente. Após um ano, noentanto, chegou o momento de testar oque aconteceria se as plantas passassempor uma fase de temperaturas mais altas— um ano subitamente mais quente que oanterior. Os cientistas elevaram a tempera-tura em 4oC, e a constatação veio em se-guida. No ano mais quente, as plantas re-duziram drasticamente sua capacidade deabsorver carbono da atmosfera.

Pior: No ano seguinte ao superquente,mesmo com temperaturas mais amenas, asplantas ainda pareciam afetadas. A normali-dade só retornou no quarto ano do experi-mento. Moral da história: Num períodode quatro anos, as plantas submetidas aum ano quente recolhem apenas um terçodo carbono que aquelas que não passarampor esse apuro conseguem recolher.

PROBLEMA É PARA JÁDiz-se que, até 2100, se nada for feito paraconter o aquecimento global, as tempera-turas podem aumentar, em média, até 4o ou5oC. Mas estamos falando de algo que le-vará décadas para se concretizar. Quer di-zer, então, que as contas de Verburg e de

Fonte: A pesquisa Prolonged suppression ofecosystem carbon dioxide uptake after an ano-malously warm year assinada por John A. Ar-none foi publicada na revista Nature, Septem-ber 18, Volume 455, Number 7211, pp. 263-430 . O acesso é restrito a assinantes da revista.

Salvador Nogueira – Jornalista, editor deCiência e Saúde do G1 e autor dos livros Rumoao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Hu-mana na Conquista do Espaço e ConexãoWright-Santos-Dumont: A Verdadeira Histó-ria da Invenção do Avião.Texto com informações complementares deHenrique Cortez, do EcoDebate. Publica-do em www.ecodebate.com.br em 22/09/08.

seus colegas só se aplicam a um efeitofuturo daqui muitos anos?

Nã-nã-ni-nã-não. É para já. Isso porque,embora a média anual de temperaturas vásubir os tais 4oC só em um século, não éincomum que anos específicos apresen-tem temperaturas bem acima (ou abaixo)da média. “Um dos impactos previstos damudança climática é um aumento na fre-qüência dos anos ‘extremos’, ou seja,seca e calor extremos etc., e como elespodem impactar as concentrações atmos-féricas globais de gás carbônico é o quequeríamos estudar”, explica Verburg.

“Quando olhamos para os dados de tem-peratura média anual dos últimos cemanos para o local de Oklahoma onde cole-tamos nossos ecossistemas, notamosocorrência de anos extremamente quen-tes, que iam até 3,8oC acima da média.

Logo, os nossos 4oC estão no extremo,mas não são irrazoáveis quando olhamosos dados históricos. Além disso, um au-mento de 4oC é grande o suficiente parapermitir que vejamos algumas respostasclaras, e foi o que fizemos.”

AS TAIS RESPOSTAS CLARASPlantas tiram gás carbônico do ar por meioda famosa fotossíntese — a reação emque, sob a luz do Sol, os vegetais produ-zem seu sustento, tendo como resultadoa liberação de oxigênio.

A absorção do gás carbônico é feita por pe-quenas estruturas na superfície das folhas,chamadas de estômatos. O quanto estesabrem ou fecham está muito ligado às condi-ções do ambiente — sobretudo às umidadesdo ar e do solo.Quando a temperatura sobe, essas umi-dades diminuem. A planta percebe a mu-dança e entra em “modo de segurança”,fechando os estômatos para economizarágua. O resultado é um consumo menorde gás carbônico — e uma grande “bana-na” para os humanos, que esperavam aju-da das plantas para conter os problemasque eles próprios estão causando.

Claro, ainda há incertezas. Afinal, o aqueci-mento global não é tão global assim. Embo-ra as temperaturas médias do planeta ten-dam a subir, e muitas regiões a perder umi-dade, nem todos os lugares reagirão da mes-ma maneira. “Existem grandes diferenças re-gionais sobre como o clima pode mudar ecomo a vegetação responde a essas mu-danças”, diz Verburg. “Nosso estudo pelomenos fornece um bom entendimento dosmecanismos que podem explicar e, tomara,prever respostas dos ecossistemas à mu-dança climática.” ■

Num período de

quatro anos,

as plantas submetidas

a um ano quente

recolhem apenas

1/3 do carbono que

as plantas que não

passaram por esse

apuro conseguem

seqüestrar.

Ambiente controlado onde as EcoCELLs comgramíneas foram estudadas. Foto:John Arnone

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Que as novas tecnologias e os dispositivos desenvolvidos a partir da Web estão reconfigurando asociedade não é uma informação nova. No entanto, pensar como esse fenômenoestá redesenhando a sociedade e de que forma essa reconfiguração está se dandoé algo novo e desafiador.

Segundo o professor André Lemos, “o telefone celular, os laptops e os palmtopsservem hoje como dispositivos de produção e distribuição de informação dentro doespaço urbano. Fato que irá alterar os traçados das cidades, a forma como os arqui-tetos estão construindo os prédios e criar zonas de acesso à informação nas redes”.

Confira, nesta entrevista concedida ao IHU On-Line, como a sociedade contemporâ-nea está sendo transformada pela internet, pela Web 2.0 e pela comunicação digital.

IHU ON-LINE – A CULTURA ESTÁ CADA VEZ

MAIS LIGADA ÀS NOVAS TECNOLOGIAS. COMO

PODEMOS PENSAR O ESPAÇO URBANO CON-

TEMPORÂNEO A PARTIR DA CIBERCULTURA?

André Lemos – Na realidade, o que ve-mos é uma espécie de evolução dos pro-cessos de espacialização com as mídias.Todo o espaço urbano foi sempre transfor-mado e alterado a partir das mídias, desde aescrita, passando pelos telégrafo, rádio, te-lefone e televisão até a internet. Então, oprocesso midiático está sempre alterandoas práticas sociais nas cidades. O que nóstemos hoje é uma evolução desse proces-so com as novas tecnologias. Primeiro com

a Internet fixa – uma internet onde as pes-soas se conectam a partir de lugares preci-sos – para chegarmos ao que temos dispo-níveis hoje, ou seja, um uso mais fluido emóvel com as tecnologias e portais digitaisde acesso às redes sem fio, redes 3G ouWi-fi, etc. O que vemos hoje é, diferente-mente dos meios de massa, uma relaçãoque acopla a mobilidade física à mobilida-de informacional.

Nós já tínhamos isso, de certa forma, comos meios de massa, quando podíamos levarum radinho de pilha, uma televisão portátil,ler jornais e revistas enquanto nos desloca-

mos. Mas essa relação se dava meramente apartir de um consumo da informação. O usu-ário estava ali nos seus deslocamentos co-tidianos em contato com a informação, mascom uma postura de consumidor dessesmeios de massa. A meu ver, a diferença hojepassa, com esses dispositivos móveis, parauma possibilidade inédita, que é não só a deproduzir informação, mas de circular essainformação em mobilidade.

Há uma ampliação da potência da mobili-dade total que se liga a um deslocamentomaior pelo espaço urbano – pelos meiosde transporte –, mas também uma amplia-

Entrevista com André Lemos

SOCIEDADE EM REDE

UM MUNDO SEM FRONTEIRAS?

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ção da mobilidade informacional que pas-sa a ser não só de consumo, mas princi-palmente de distribuição e de emissãodessa produção em vários formatos so-noro, imagético ou textual. Então o telefo-ne celular, os laptops e os palmtops ser-vem hoje como dispositivos de produçãoe distribuição da informação dentro doespaço urbano. Isso irá alterar os traça-dos das cidades, a forma como os arquite-tos estão hoje construindo os prédios ecriando zonas de acesso à informação nasredes, as micro e macro relações sociais –as pessoas coordenam seus deslocamen-tos com telefone celular, por exemplo.

Então, eu penso que faz parte de uma evo-lução desse processo de espacialização,chegando hoje a uma relação mais comple-ta dessa mobilidade. Claro que, atualmen-te, essa mobilidade é potencial, porque elaestá ligada à potencialidade que cada umtem de se deslocar, o que remete a diferen-ças sociais, à possibilidade de acesso aesses dispositivos e redes. É sempre, por-tanto, uma potência, não apenas do deslo-camento físico, mas também do acesso àinformação dessas redes, que estão sem-pre bloqueadas ou controladas por senhasde acesso, por pagamentos às operadoras,ou aos provedores etc. Então, temos umapotência efetivamente muito maior de mo-bilidade física e emocional, embora isso nãosignifique que estejamos necessariamentemais móveis ou nos comunicando mais. Háuma possibilidade maior de deslocamentofísico e por informações.

IHU ON-LINE – UM FENÔMENO RECENTE

NA CIBERCULTURA É A OPORTUNIDADE DA DE-

MOCRACIA DE ACESSOS, GERADORA ATÉ DE UMA

ECONOMIA DA GRATUIDADE E DA TRANSPOSI-

ÇÃO DA NOSSA VIDA PARA DENTRO DA REDE.

QUE MUDANÇAS ESSA ECONOMIA DO GRATUI-

TO PROVOCA NO IMAGINÁRIO HUMANO E NA

SOCIABILIDADE?

A. L. – Acho que o exemplo maior dessagratuidade, e isso não foi dito por mim, maspor Pedro Rezende, um dos maiores especi-alistas em software livre, é a própria inter-net. Ela é formada por protocolos abertos. OHTML, por exemplo, é um software de códi-go aberto, que as pessoas podem alterar.Ou seja, os protocolos são livres, e nós nãoprecisamos pagar royalties para entrar narede. Isso já é fato. A internet criou a possi-bilidade efetiva dessa produção de conteú-do livre, diferente dos meios de massa, querequeriam altos volumes de recursos, con-

cessão do Estado, ser mantida por editores.O que nós temos hoje, a meu ver, é a possi-bilidade livre de conteúdo, de onde emergea gratuidade. Esse é o maior fenômeno soci-al da internet. O que estamos vendo é umaespécie de economia do dom, na qual aspessoas têm, pela primeira vez, a possibili-dade de colocar o seu conteúdo. Claro quea gratuidade está sempre balizada pelo sis-tema capitalista, pois nós podemos usar sis-

temas de busca gratuito, mas eles estão alisempre com a publicidade acoplada. É umagratuidade relativa.

Há uma economia do dom, efetivamente,da colaboração, da possibilidade daspessoas poderem liberar uma emissão –ou seja, as pessoas podem publicar assuas coisas – em conexão e cooperação.Eu faço comentário nos blogs, posso al-terar um software e trabalhar coletivamen-te com outras pessoas, além de poder pu-blicar minhas idéias sem precisar passarpor um centro de edição etc. Agora, te-mos uma maior possibilidade de emissãoda informação que se dá em colabora-ção, e essas duas pontas criam o proces-so de reconfiguração da cultura, do ima-ginário comunicacional e social. Não é ofim dos grandes meios de massa, porqueo usuário quer esses dois sistemas, oaberto e o fechado. É muito bom para essaconsciência planetária da informação queeu possa comprar um jornal na banca, ouassistir televisão, mas também possa adi-cionar outros elementos a partir do aces-so à informação nos diversos sistemasque emerge a cada dia na internet.

IHU ON-LINE – DE QUE FORMA A COMU-

NICAÇÃO DIGITAL PODE, A PARTIR DESSA ECO-

NOMIA DA GRATUIDADE, TRANSFORMAR O

CONCEITO DE VALOR E DE DEMOCRACIA?

A. L. – A meu ver, o conceito de valor setransforma. Por exemplo, os bens simbóli-cos, na realidade, os softwares, são pagosporque é criado, de alguma forma uma es-pécie de escassez artificial. Eu tenho umsoftware e posso copiá-lo várias vezes,mantendo a mesma qualidade. Então, elenão é um bem escasso e só é criada a partirdos contratos de uso. É criado, então, ummecanismo artificial de escassez. O softwa-re livre cria outro tipo de valor, que é o dacooperação de um processo que se dá commaior rapidez de atualização. O que, de al-guma maneira, estamos vendo é uma rede-finição do valor para algo que estava naeconomia da escassez e hoje passa a seralgo que apenas agrega valor. O valor quese dá a essa rede é a partir das conexõesque se estabelecem de maneira gratuita.

IHU ON-LINE – A WEB 2.0 PERMITE TAM-

BÉM UMA INTERCRIATIVIDADE POSSIBILITADA PE-

LAS NOVAS OPORTUNIDADES PARA GERAÇÃO

E DISTRIBUIÇÃO DE CONHECIMENTO. PODE-

MOS FALAR NA CONSTRUÇÃO DE UM CÉREBRO

DIGITAL PLANETÁRIO?

A comunicação digital

irá alterar os traçados

das cidades e criará

zonas de acesso à

informação nas redes –

as micro e macro

relações sociais.

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Com os dispositivos

informacionais móveis

conquistamos a

possibilidade inédita de

não só produzir

informação, mas de

circulá-la em formatos

sonoro, imagético

ou textual.

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A. L. – Essa é a teoria do Pierre Lévy, dainteligência coletiva. Na verdade, eu sem-pre brinquei que nunca existiu inteligên-cia individual, mas uma inteligência cole-tiva. Ela é construída a partir daquilo quenós lemos, ouvimos, etc. Toda inteligên-cia é, portanto, coletiva. O que eu acho –e aí concordo com o Lévy – é que agoratemos uma estrutura que potencializa isto,que faz com que a emissão só faça senti-do se o meu conteúdo estiver conectadoa outros. Só assim terá valor. Assim, secria uma maior conexão entre as pessoas,com trocas mais intensas entre elas, nãoapenas entre as que estão próximas, mastambém com as que estão próximas pelapossibilidade criada pela cibercultura. Te-mos aí uma potência de trabalhos coope-rativos. É assim que teremos de evoluir.

IHU ON-LINE – A WEB 2.0 PERMITE QUE A

CIRCULAÇÃO DE INFORMAÇÕES PELA INTERNET

POSSA SER AMPLIADA, BEM COMO OS SUJEITOS

QUE ANTES APENAS RECEBIAM AS MENSAGENS

POSSAM SER PRODUTORES DE NOTÍCIAS. COMO

O SENHOR ANALISA A QUESTÃO DA IDENTIDA-

DE DAS MINORIAS QUE TAMBÉM SE APROPRIAM

DA REDE E DE SUAS POSSIBILIDADES?

A. L. – Não são todos os que podem fa-lar nos meios de massa. As conversas sedão depois com os meus próximos e serevelam no processo democrático. À me-dida que, com a internet, qualquer pessoase torna um potencial produtor de infor-mações, é nesse espaço que as pessoaspoderão expressar as suas opiniões so-bre qualquer assunto e nos conectar a ou-tros, gerando transformações e uma re-configuração na sociedade.

Não é à toa que países totalitários vão impe-dir que as pessoas falem e se juntem sempreque pudemos fazer coisas colaborativamen-te. Isso reconfigura a vida social, a arte, acultura. O que nós temos hoje é uma possi-bilidade de as minorias se expressarem porelas mesmas; o que já está acontecendo aoredor do mundo, de uma maneira mais livre.

Passamos de uma cidadania restrita e localpara algo de dimensão planetária. Os índi-os do Chiapas, no México, por exemplo,conseguiram repercussão internacionalpara a sua luta porque o que comunicamnão fica restrito à sua comunidade local,mas solto no mundo. Isso reforça um as-pecto muito positivo da globalização: a vi-sibilidade do planeta, como as minorias seexpressam e como os totalitarismos atuam

contra elas. Como vamos usar isso? Comoisso vai evoluir para algo mais criativo, maisinteligente? É uma abertura para o futuro…

IHU ON-LINE – HUGO PARDO KUKLINSKI

AFIRMA QUE A WEB 2.0 NÃO NASCEU DE FOR-

MA ESPONTÂNEA, MAS PROMOVEU UM ESPAÇO

NORMATIVO DE PRESCRIÇÃO E IMPOSIÇÃO DE

VALORES. HÁ ALGO QUE PODE SER PERDIDO

DENTRO DA UTOPIA TECNOLÓGICA?

A. L. – O problema da utopia é semprecolocar esperanças ou colocar a fé no dis-positivo em si. Historicamente, nós temosfeito isso. Não há uma causalidade quenós possamos colocar como unívoca nes-se sistema. Por isso, por um lado, a utopiaé positiva, pois está sempre nos colocan-do para além do nosso aqui e agora. Poroutro lado, no entanto, temos de nos pre-caver em relação à idéia de que a simplesdisponibilização de redes, tecnologias, ar-tefatos e dispositivos irá causar essatransformação. O perigo é acreditar quepassamos a viver no melhor dos mundos,ou que estejamos nos comunicando me-lhor, ou mesmo criando uma espécie deplaneta mais inteligente, cooperativo, etc.Essa utopia existe desde sempre e dois-terços da população mundial hoje vivefora das condições mínimas de existência.

Então, o sonho de que o progresso tecno-lógico-científico irá solucionar todos osnossos problemas não funciona mais. Todaessa utopia atual é voltada para isso, poistodos os dispositivos lançados nessa fase

dizem que vivemos num mundo sem fron-teiras e viramos nômades. Por isso, o peri-go está em dois aspectos: na crença linearno dispositivo e em achar que tudo issonão serve para nada e que está ligado aomesmo sistema dos meios de massa.

IHU ON-LINE – EM SUA OPINIÃO, COMO A

NOVA GERAÇÃO DA REDE AFETA A MÍDIA?

A. L. – Acredito que a nova geração estáafetando, em primeiro lugar, pelo viés do con-sumo. Hoje, o tempo que os jovens dedicamà internet é grande. Temos visto que o usointensivo dos dispositivos tecnológicos criauma crise de acesso aos meios massivos.Então, as grandes empresas de comunicaçãoestão tendo de se adaptar a essa realidade e,assim, passam a utilizar esses recursos paraligar os dispositivos tecnológicos e suas pos-sibilidades aos meios massivos.

Em segundo lugar, pela possibilidade quetem esta geração em produzir informação.Isso é bastante sedutor e faz parte da cul-tura da juventude, causando um problemaentre a forma de produzir conteúdo e a for-ma de colaborar. O meio de massa tem suaimportância, mas nos coloca algumas per-guntas: “Quem sou eu para produzir infor-mação? Quem sou eu para produzir um li-vro? Quem sou eu para fazer uma exposi-ção de foto? Quem sou eu para aparecer natelevisão?”. Hoje, temos a possibilidade defazer tudo isso de uma maneira aberta. En-tão, a meu ver, os jovens utilizam muito essemeio por essa potência da emissão da in-formação. Há uma migração que abala aindústria cultural. A mediação não é maisdos intelectuais, dos jornalistas, da Igreja,dos militares, dos governos. Ela se dá en-tre os próprios usuários. ■

André Lemos é engenheiro mecânico pela Uni-versidade Federal da Bahia. Obteve o título de mes-tre em Engenharia de Produção pela UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, e em Sociologia, pelaUniversité de Paris, onde também doutorou-se namesma área. É pós-doutor pela Mcgill University epela University of Alberta, ambas no Canadá. Atu-almente, é professor da UFBA e tem como fococentral de suas pesquisa o tema da cibercultura. Éautor de Cultura das Redes. Ciberensaios para oséculo XXI (Salvador: Edufba, 2002) e Cibercultu-ra. Tecnologia e vida social na cultura contemporâ-nea (Porto Alegre: Sulina/Meridional, 2002).

Entrevista publicada pelo IHU On-line, 17/09/2008 [IHU On-line é publicado pelo Insti-tuto Humanitas Unisinos - IHU, da Universi-dade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, emSão Leopoldo, RS.]E por www.ecodebate.com.br em 19/09/2008.

O telefone celular,

os laptops e os palmtops

servem hoje como

dispositivos de produção

e distribuição da

informação dentro do

espaço urbano

foto: Sebastian Prooth

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umdesertodeárvores

MONOCULTURAFLORESTAL

por World Rainforest Movement (WRM) e Norbert Suchanek

As monoculturas de árvores para fins comerciais não apenas

representam gravíssima ameaça à sobrevivência da

biodiversidade das florestas do mundo, como agravam

a degradação das condições sócioambientais onde são

implantadas. Confira a gravidade da situação.

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A plantação de árvores é uma atividade que, em geral, é percebidacomo positiva. O ato de plantar uma árvore – seja em uma escola ou emuma comunidade rural – simboliza, em muitas sociedades, o cuidadocom a natureza e uma contribuição da geração atual para as futuras.

Além desse aspecto simbólico, muitas plantações de árvores são efe-tivamente positivas, em particular quando se realizam por decisão daspróprias comunidades para atender suas necessidades, tal como nocaso da plantação de árvores frutíferas ou de espécies lenhosas queservem para satisfazer outras necessidades como lenha, fibras, semen-tes, flores, medicinais, sombra, refúgio, etc. Muitas dessas plantaçõesconstituem de fato sistemas agroflorestais, que freqüentemente fazemparte de sistemas tradicionais de manejo dos ecossistemas locais,sendo por isso socialmente benéficas e ambientalmente adequadas.

MONOCULTURA FLORESTAL:MODELO DE DEGRADAÇÃO SÓCIOAMBIENTAL

Ao amparo dessa imagem positiva das plantações foram desenvol-vidos, porém, outros tipos de plantações que têm gerado ampla opo-sição, primeiramente em termos locais e, posteriormente, internacio-nais. Estamos nos referindo às monoculturas em grande escala, tan-to àquelas destinadas à produção de madeira e celulose quanto àsque visam à produção de óleo de dendê ou de borracha. Mais recen-temente foram incorporadas a esse grupo as monoculturas de árvo-res estabelecidas para servirem como sumidouros de carbono e asdestinadas à produção de biodiesel e etanol celulósico.

Esse modelo é ativamente promovido por um conjunto de atoresque inclui tanto os organismos internacionais como a FAO e oBanco Mundial, as agências estatais dos países industrializados(de financiamento às exportações, de cooperação bilateral, deapoio técnico) quanto as empresas que se beneficiam dessesinvestimentos (bancos, indústria do papel e celulose, produtoresde maquinaria, empresas consultoras, etc.).

O resultado é a produção de matéria-prima abundante e barata – sejamadeira, celulose, borracha, óleo de dendê ou outros – que servecomo insumo para o crescimento econômico dos próprios paísesindustrializados. Nos países produtores, o que resta é um ambientedegradado e uma população empobrecida, ou seja, os “custos exter-nalizados” para que a matéria-prima possa resultar barata.

É a esse tipo de plantações que entidades como o World Rainfo-rest Movement (WRM - Movimento Mundial pelas Florestas Tro-picais) vêm se opondo há mais de 20 anos, devido aos gravesimpactos sociais e ambientais. Apesar de serem definidas comoflorestas plantadas, é evidente que elas nada têm em comum comas florestas, como mostra o quadro comparativo abaixo:

Nota do Editor: Para mais informações sobre a Rede Latino-americanacontra a Monocultura Florestal visite o site do World Rainforest Move-ment (WRM) – www.wrm.org.uy. Recomendamos a visualização da muitodidática apresentação Impactos de plantações da monocultura da árvore dagrande escala (em Power Point) encontrável em http://www.wrm.org.uy/plantaciones/21_set/portugues/monocultura2008.pps

Fonte: Boletim 134 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais.Editor: Ricardo Carrere – [email protected]. Colaboração de NorbertSuchanek, Rio de Janeiro, Correspondente e Jornalista de Ciência e Eco-logia, colaborador e articulista do EcoDebate. Publicado emwww.ecodebate.com.br em 20/09/2008.

Todos esses impactos são uma conseqüência inevitável do modelobaseado em monoculturas de uma única espécie – a maioria dasvezes, exótica – que ocupam vastas áreas de terra antes destinadasa satisfazerem as necessidades de vida das populações locais, e queconstituíam o habitat de inúmeras espécies de plantas e animais.

AGROQUÍMICOS: ÁGUA, AR E SOLO POLUÍDOSAos impactos sociais e ambientais decorrentes de tal ocupaçãoterritorial somam-se os decorrentes da aplicação de grandes quan-tidades de fertilizantes químicos, herbicidas, inseticidas e fungi-cidas usados para garantir a rentabilidade do investimento. Es-ses agrotóxicos poluem a água, o ar e o solo, com a conseqüentedesaparição de espécies animais e vegetais e com graves impac-tos sobre a saúde de trabalhadores e moradores locais.

Por sua vez, o próprio crescimento das árvores plantadas em mono-culturas em grande escala exaure os recursos hídricos e os nutrien-tes do solo. Os escassos empregos que o modelo promove – tempo-rários, com baixos salários e más condições de trabalho – diminuemà medida que avança a mecanização de todas as operações.

ESPÉCIES TRANSGÊNICAS: ALERTA MÁXIMO

A isso tudo se soma agora a recente ameaça da incorporação deárvores transgênicas (modificadas geneticamente para aumentara rentabilidade das plantações). Tal tipo de pesquisa está emandamento em, no mínimo, 19 países (ver detalhes emwww.wrm.org.uy). O uso dessas árvores em plantações comerci-ais não apenas implicaria uma gravíssima ameaça para as flores-tas do mundo, mas agravaria ainda mais os impactos já compro-vados nas monoculturas existentes.

Pelo que foi exposto, é cada vez maior o número de organizações epessoas que se opõe às monoculturas de árvores em grande esca-la, e que se reúne sob o lema “plantações não são florestas”. Porisso, devemos apoiar determinados tipos de plantações e nos oporao modelo de utilização de árvores – agora, até geneticamente ma-nipuladas – que beneficia as grandes empresas e prejudica as co-munidades locais e o ambiente em que são implantadas. ■

AS FLORESTAS PLANTADAS...

expulsam as populações locaisesgotam e poluem as fontes de águaexaurem os nutrientes e erodem o solosão desertos verdes

ENQUANTO AS FLORESTAS...

servem de sustento às populações locais (pessoas e fauna)regulam o ciclo hidrológicoprotegem e enriquecem o soloabrigam enorme diversidade de vida

A floresta plantada produzcrescimento econômico

para os países industrializadose deixa nos países produtores

um ambiente degradado e umapopulação empobrecida.

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EX

TI

ÃO

por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

Após 400 milhões de anos de evolução, sapos, rãs e pererecas poderão

desaparecer da Terra. Para evitar o desastre, o projeto Amphibian Ark

propõe salvar as espécies mais ameaçadas com a reprodução em

cativeiro, já que na natureza as chances estão a cada dia mais remotas.

Neste 2008 – Ano da Rã – , veja o que você pode fazer

para resgatar essas extraordinárias criaturas da extinção.

Grupo biológico do qual fazem par-te sapos, rãs e pererecas, os anfí-bios já sobreviveram a quatro ex-

tinções em massa na história do planeta(houve uma quinta, antes de seu surgimentona Terra). Porém, a notícia triste é que, naatual onda de extinções causadas pela açãohumana, eles estão se dando muito mal.

Para piorar, eles fazem parte de um grupoinjustiçado de seres vivos que causamsentimentos negativos em muitas pesso-as, seja por falta de conhecimento apro-

A perereca-de-folhagem-com-perna-reticulada (Phyllomedusa ayeaye), acima, figura entre os 627 bichos ameaçados de extinção listados noLivro Vermelho, do Ministério do Meio Ambiente, lançado em novembro de 2008. Foto:Célio F. B. Haddad

priado, seja por razões de segurança ouhigiene. Há exageros sobre envenenamen-to (embora algumas espécies muito colo-ridas sejam até letais, caso o veneno pe-netre a corrente sanguínea). Sapos não mi-ram para urinar nos olhos de ninguém.Muitas pessoas sentem asco ao contatocom a sua pele fria e úmida, e a maioriaacha-os simplesmente feios ou repugnan-tes. Também são conhecidos os atos decrueldade que crianças costumam prati-car com esses bichos, torturando-os comsal ou colocando cigarros para que fumem.

Honestamente, tenho dificuldade deachar algum bicho verdadeiramentefeio, mesmo dentre aqueles tidoscomo os mais asquerosos. Anos detreinamento profissional em Biologia,além de uma inclinação anterior àapreciação da natureza, fizeram comque eu veja os seres vivos com ou-tros olhos. Enxergo a mão invisívelda evolução aqui, aprecio a belezade um comportamento ali, admiro aadaptação de uma estrutura morfo-lógica acolá.

O FIM

SAPOS

dos

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Cidadania&MeioAmbiente 17

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha–Biólogo e doutor em Comportamento Animalpela Universidade de Saint Andrews. Artigo en-viado pelo autor e originalmente publicado noCorreio da Cidadania e em www.ecodebate.com.brem 01/10/2008.

ANFÍBIOS: MARAVILHAS DA NATUREZAE, no caso dos anfíbios, ao estudá-los umpouco mais vemos que são animais fasci-nantes. Eles surgiram por aqui há muito tem-po, entre 350 e 400 milhões de anos atrás.Para se ter uma idéia, calcula-se que o serhumano, na sua forma atual, não tenha maisque 150-250 mil anos no planeta.

Apesar de a maioria das cerca de seis mil es-pécies de anfíbios depender de água parareprodução, elas são encontrados nos maisdiversos ambientes. Há sapos até em deser-tos e pererecas que passam a maior parte davida em árvores ou dentro de bromélias. Al-gumas, particularmente as realmente vene-nosas, são de um colorido tão vivo que pare-cem pinturas: laranja intenso, vermelhas compernas azuis, amarelas e pretas (sugiro ao lei-tor que faça uma busca na internet por Den-drobatidae, para conhecer essas espécies).

Um dos aspectos mais fantásticos dos anfí-bios está na diversidade das suas formas dereproduzir-se. Na mais comum, os esperma-tozóides e os óvulos encontram-se na água(e não no corpo da fêmea), formando ovosque se desenvolvem em girinos, os quais,após algum tempo, metamorfoseiam-se emadultos (caso único entre os vertebrados).

Mas há todo o tipo de variação imaginável:ovos dos quais eclodem sapinhos em minia-tura, sem a fase de girino; fecundação inter-na, com produção de ovos, que podem eclo-dir dentro do corpo da fêmea; ou até mesmoo nascimento direto de sapinhos, sem forma-ção de ovos. Os girinos podem desenvolver-se até no interior do estômago de adultos,após serem engolidos por eles! Há espéciesque carregam os ovos no dorso, outras queos colocam em ninhos de espuma sobre aágua, e espécies que fazem “piscininhas” paraseus girinos. Isso para não mencionar a sin-fonia dos machos, ao procurarem atrair asfêmeas ou defender um território de acasala-mento. Quem já passou perto de um lagui-nho, em local quente no verão, principalmen-te após fortes chuvas, e ouviu a maravilhosaprofusão (e confusão!) de sons de diversasespécies cantando simultaneamente sabe doque estou falando. É encantador!

AS CAUSAS DA EXTINÇÃOVoltando à situação delicada em que seencontram esses animais, já se sabia, háalgum tempo, que várias espécies vêm so-frendo uma misteriosa redução populaci-onal, maior do que se esperaria com base

nos resultados usualmente catastróficosde nossa interferência nos ambientes na-turais. Estudo conduzido por David Wakee Vance Vredenburg com pesquisadoresdo Museu de Zoologia Vertebrada da Uni-versidade da Califórnia, em Berkeley, EUA,aponta que pelo menos um terço dos maisde 6,3 mil espécies de anfíbios está amea-çado em todo o mundo.

Diversas causas – a maioria de origem hu-mana – contribuem para o problema:■ redução, alteração e fragmentação dehabitat, alterações climáticas, superexplo-ração de espécies, introdução de preda-dores e competidores, poluição química(principalmente pesticidas agrícolas);■ poluição sonora (dificulta a comunica-ção, a qual é fundamental na reprodução);■ doenças infecciosas (sobretudo umaquitridiomicose causada por um fungo aqu-ático de origem desconhecida, possivel-mente facilitada pelo aquecimento global);■ aumento da radiação UV, deformidadese malformações de origem desconhecida.No Brasil, já perdemos uma espécie deperereca que habitava a região de Parana-piacaba, no estado de São Paulo.

UMA “ARCA” PARA SALVAR AS ESPÉCIESA situação é tão grave que, no ano passado,cientistas do mundo todo se reuniram no pro-jeto Amphibian Ark (www.amphibianark.org),como parte de um plano geral de conservação

dos anfíbios. Eles pretendem reproduzir emcativeiro aquelas espécies que não estão se-guras na natureza, até que um dia possamosrepovoar o ambiente. Uma espécie de Arca deNoé dos tempos modernos. Ou seja, a situa-ção está tão ruim que já estão partindo paratentar salvar as espécies em cativeiro, porquena natureza as chances são cada vez menores.Como parte da campanha de conscientização,elegeram 2008 como o Ano da Rã.

Por comporem um grupo que se mostrou maissensível aos desequilíbrios ecológicos (em-bora por razões ainda não-compreendidas),a situação dos anfíbios exemplifica bem osimpactos desastrosos do homem sobre omeio ambiente. Em nossa curta estada no pla-neta, principalmente nos últimos 200 anos(uma mísera fração, se pensarmos no tempoque a Terra é habitada por seres vivos), con-seguimos nos tornar a espécie que, sozinha,mais alterações promoveu em todo o globo.

Eliminamos ou fragmentamos boa parte dosambientes naturais; poluímos mares, rios, la-gos, o solo e o ar com um sem-número desubstâncias tóxicas diferentes; represamos emudamos a direção de boa parte dos rios paranos prover de energia ou para nossa como-didade; movemos montanhas, não por fé, maspara extrair minérios de suas entranhas; in-troduzimos espécies onde elas não existiam,muitas vezes com conseqüências desastro-sas; estamos mudando o clima. Com isso, jádizimamos várias espécies (algumas dasquais nem chegamos a conhecer); sem falarnas que eliminamos diretamente, tanto paranos alimentar quanto por mero esporte.

Extinção é um processo natural para as espé-cies, mas a velocidade e as taxas com quevêm ocorrendo aumentaram muito recente-mente, apenas por nossa causa. Tanto quealguns cientistas e ambientalistas já denomi-nam o fenômeno como a provável sexta ex-tinção em massa da história do planeta. Masnão nos iludamos. A natureza cobrará seupreço e a chance de continuarmos habitandoa Terra dependerá da nossa capacidade defrear e reverter parte de nossos impactos.Caso contrário, apenas aceleraremos a nossaprópria extinção, junto à de muitos anfíbios,peixes, répteis, insetos e plantas. ■

Palaeobatrachus gigas fossilizado.

Pelo menos 1/3

dos mais de 6,3 mil

espécies de anfíbios

no mundo está

ameaçado.

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18

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A população mundial

cresce, o consumo de

água aumenta, mas

os recursos hídricos

estão diminuindo. “Omundo está com falta

d’água”, advertiam

Tony Clarke e Maude

Barlow, ativistas e

especialistas em

assuntos hídricos do

Polaris Institute

(www.polarisinstitute.org)no artigo “Guerras da

Água”. Segundo os

autores, antes de

2025, a população

mundial aumentará

Atualmente, há 263 riose incontáveis aqüífe-ros que cruzam ou

demarcam os limites políticos in-ternacionais, segundo informao Atlas of International Fresh-water Agreement. Assim, cercade 90% de países têm de com-partilhar seus recursos d’águacom pelo menos um ou dois ou-tros estados.

O Foro de Política Global, umorganismo sem fins lucrativossediado nos Estados Unidos eórgão consultivo das NaçõesUnidas usa o termo estressed’água para descrever situa-ções nas quais cada pessoa

A

ÁGUAESTÁ

em 2,6 bilhões, e as

demandas de água

excederão a disponibilidade

em 56%. As pessoas viverão

em áreas de água escassa, e

as disputas por esse precioso

recurso serão inevitáveis.

tem acesso a menos de 1.500metros cúbicos de água a cadaano. O termo escassez de águarefere-se a situações em quecada qual tem acesso a menosde um mil metros cúbicos deágua por ano. Estima-se quedois terços da população mun-dial viverão em áreas de agudoestresse d’água ou de escassezde água por volta do ano 2025.

Hoje, as tensões e as disputasentre países aumentam em fun-ção dos crescentes problemasde escassez de água, do rápidocrescimento populacional, dadegradação da qualidade deágua e do crescimento econô-

por IRIN-ONU

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Cidadania&MeioAmbiente 19

ACABANDOmico desigual. “Se tendênciasatuais continuarem, poderemosenfrentar uma situação muitoséria”, sentencia o ex-Presiden-te da URSS, Mikhail Gorbachev,fundador da Green Cross Inter-national (www.gci.ch), organi-zação que provê análise e perí-cias em assuntos ambientais eeconômicos.

A questão da água e de seucompartilhamento sempreconstituiu uma preocupaçãofundamental no Oriente Mé-dio. Das águas da Jordânia atéos rios Tigre e Eufrates, opotencial de disputas porágua é hoje até maior que an-

tes, devido ao fato de essasregiões sofrerem com a carên-cia num ambiente de crescen-te insegurança política. Des-de 1950, 80% das violentasdisputas pelos recursos deágua ocorridas na Terra acon-teceram no Oriente Médio.Segundo Aaron Wolf, doTransboundry FreshwaterDispute Database, da Univer-sidade de Oregon, EUA, aspessoas que vivem na regiãohá muitas gerações têm comogarantida a disponibilidade deágua. Só recentemente se co-meçou a perceber a escassezdesse recurso vital. Wolf ad-verte que a provisão de água

em diminuição pode debilitarmais adiante as frágeis rela-ções entre as nações, entre se-tores econômicos e entre osindivíduos e o ambiente queocupam na região.

O conflito armado entre Israele a Palestina sobre o rio Jor-dão já dura mais de 50 anos, eestá se tornando ainda pior.Esse rio sagrado para cristãos,muçulmanos e judeus agoraenfrenta um sério problema, jáque não apenas a cada anoseu débito diminui, como aprópria água está a cada diamais poluída. Um ‘kibbutznik’israelense diz: “É duro acredi-

tar no que estamos vendoquando bebíamos a água enadávamos com as criançassem nos preocupar”. O israe-lense Gidon Bromberg, diretorda organização Friends ofEarth, declara que o governoprecisa agir para resolver ime-diatamente o problema do rioJordão. “O ecossistema do riofoi tão comprometido que odano pode ser irreversível”.

No sudeste da Ásia, Bangla-desh, Índia e Nepal disputamos melhores usos de água dabacia do Ganges-Brahmaputra.Tensões e discórdias lastrea-das na água também estão es-tourando ao longo do rio Me-kong, na Indochina, bem comono entorno do Mar de Aral, naEuropa Oriental. Há muito severificam disputas entre a Etió-pia, o Sudão e o Egito a respei-to do Nilo. A maior vazão dorio é aproveitada pelo Egito,embora tenha sua nascente naEtiópia. Informa MisfintaGenny, Ministro da Água etío-pe: “Nós geramos 85% do totalde água do Nilo, e até hoje nãoutilizamos este recurso paranada. […] Temos de desenvol-ver o aproveitamento deste re-curso basicamente para o be-nefício de nosso povo”. A pre-ocupação principal do Egito éque a Etiópia diminua a vazãode água do Nilo antes que elealcance seu país, fato de sériasimplicações à agricultura e àspequenas indústrias instaladasao longo dos bancos do Nilo.A competição pela água tam-bém está esquentando o climano interior de certos países.

De modo crescente, os peri-tos na questão acautelampara o fato de que, se certospaíses não melhorarem a ad-ministração da água e a coo-peração no futuro, as guer-ras da água serão inevitáveis.Boutros Boutros Ghali, ex-Secretário-geral da ONU, bra-dou: “A próxima guerra entrepaíses não será por petróleo

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Poço no Distrito de Gulu, norte de Uganda: a seca limita ainda mais o acesso à água já escassa.

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As tensões e as disputas entre países

aumentam em função

da escassez e da degradação da

qualidade de água, do rápido

aumento populacional e do

crescimento econômico desigual.

ou por fronteiras territoriais,mas devido à água.”

ÁGUA: SITUAÇÃO MUNDIAL

Em todo o mundo, existem cer-ca de 263 bacias fluviais queatravessam fronteiras internaci-onais. A Europa possui o maiornúmero de bacias internacio-nais (67), seguida pela África(59), pela Ásia (57), pela Améri-ca do Norte (40) e pela Américado Sul (38). Essas bacias fluvi-ais internacionais cobrem qua-se metade da superfície de terrado planeta e também albergamaproximadamente 40% da popu-lação do globo. Os rios geram60% de fluxos de água doce aoredor da Terra.

A maioria das bacias cruzaduas ou mais fronteiras políti-cas. O rio Danúbio, por exem-plo, percorre 17 estados ribei-rinhos. O Congo, o Nilo, oNíger e o Reno ficam contidosem nove países diferentes. OAmazonas, o rio Mekong, oEufrates, o Tigre, o Mar de Aral,o Ganges, o Jordão e o rio daPrata (na América do Sul) es-tão situados dentro e/ou flu-em por pelo menos cinco Esta-dos soberanos. O terceiro ForoMundial da Água Mundial, se-diado em Kyoto, Japão, em2003, enfatizou a crítica e ur-gente necessidade da adminis-tração da água e da coopera-ção entre os estados ribeiri-nhos a fim de preservar a pro-visão de água e prevenir dis-putas. Gorbachev, representan-te da Green Cross Internatio-nal, declarou: “A administraçãoda água só pode ser efetiva sebaseada no conceito de bacia.Todos os países envolvidos –toda a bacia fluvial – devemtomar decisões em conjunto.”

BASE DE CONFLITOSegundo a World Water Orga-nization (www.worldwater.org),uma rede humanitária fundadaem Montreal, Canadá, há umahistória prolongada de conflitose de tensões baseada nos re-

cursos d’água. O Pacific Insti-tute for Studies in Development,Environment and Security(www.pacinst.org) iniciou, nosanos 1980, um projeto para lo-calizar todos os incidentes e astensões originados pela ques-tão da água. Foram cronologi-camente listados conflitos rela-cionados à água do ano 3000a.C. até hoje. Os diferentes ti-pos e categorias desse tipo deconflito baseavam-se na seve-ridade do evento:■ Controle das fontes de água:as fontes ou o acesso à águaestão na raiz das tensões;■ Instrumento militar (agentesestatais): as fontes ou os siste-mas de água são usados poruma nação ou um estado comoarma durante ação militar;■ Instrumento político (Estadoe atores não-estatais): as fon-tes ou os sistemas de água sãousados por uma nação, um es-tado ou por parte não-estatalpara um objetivo político;■ Terrorismo (atores não-esta-tais): as fontes ou os sistemasde água são alvo ou instrumen-

to de violência ou de coerçãopor atores não-estatais;■ Alvo militar (atores estatais):as fontes ou os sistemas de águasão objetos de ações militarespor nações ou estados;■ Disputas por desenvolvimen-to (Estado e agentes não-esta-tais): as fontes de água ou sis-temas de água podem ser usa-dos como instrumento militar.Os sistemas de água são a fon-te principal de disputa no con-texto dos desenvolvimentoseconômico e social.

As fontes de água são cruci-ais para usos doméstico, in-dustrial, agrícola e ambiental.Ao controlá-las, um país tema possibilidade de controlar aeconomia e a população. Porexemplo, regiões ou países si-tuados a montante das fontesde água desfrutam o benefí-cio de usar a que flui direta-mente, enquanto os a jusantepodem acabar recebendo me-nos volume de água de mui-tas bacias situadas entre fron-teiras. E a cooperação entre

estados ribeirinhos pode seraltamente problemática.

O desenvolvimento industrialou a expansão agrícola tam-bém podem causar conflitosquando o uso excessivo dorecurso hídrico por um Esta-do afeta a provisão de outro.Na Índia e na China, em parti-cular, o uso maciço e não-re-gulado de bombas privadasestá esvaziando aqüíferossubterrâneos a taxas insusten-táveis e sem precedentes.

A urbanização também tem au-mentado desproporcional-mente a demanda de água paraas populações urbanas quan-do, na verdade, são as ruraiscom fazendas e gado que pre-cisam de mais água. O proble-ma da distribuição desigualdos recursos hídricos e a de-terioração de sua qualidadedevido à poluição e à conta-minação por substâncias quí-micas contribuem para o sur-gimento de tensões e de con-flitos dentro e entre estados.

ÁGUA E CONFLITO CIVILNo dia 6 de julho de 2000, mi-lhares de fazendeiros na baciade rio Amarelo, na China, en-frentaram a polícia devido aum projeto governamentalpara realocar a água em exces-so de um reservatório localpara cidades e indústrias. Osfazendeiros esperavam usar a

Rio Nilo, Uganda. O rio Nilotornou-se o centro de disputa entreo Egito e outros 10 países que com-partilham sua bacia hidrográfica. Se-gundo o Acordo Colonial do Nilo,assinado em 1929, qualquer país aosul necessita da aprovação do Egitopara implantar projetos de irriga-ção ou hidrelétricas. Tal cláusula éhoje contestada, pois dificulta ascondições de sobrevivência, em es-pecial das crianças.Foto: Manoocher Deghati/IRIN

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reserva para irrigarrm suas co-lheitas após uma dramáticaestiagem que secou os riosque habitualmente alimenta-ram seus campos de cultivo.O incidente aconteceu a ju-sante, em Shandong, a últimaprovíncia que o rio Amareloatravessa antes de desaguarno mar. Antes de alcançar omar, o rio já secara várias ve-zes desde 1972. O registromais longo, por 226 dias, ocor-reu em 1997.

No mesmo ano, disputas deágua também aconteceramentre províncias do norte e dosul da Tailândia, onde o nívelde água do rio Chao Phrayatinha diminuído sensivelmen-te. Há anos as tensões são la-tentes em regiões do interior ea jusante do rio Indus, onde oPunjab paquistanês e as pro-víncias de Sind disputam o usoda água. Em abril de 2001, ma-nifestantes em desespero gri-tavam “Dê-nos água!” em vi-olentos confrontos com a po-lícia, em Karachi.

As tensões degeneram emconflitos violentos quando oacesso aos recursos d’águasofre redução devido a fato-res excepcionais, como umperíodo de estiagem. Em 2002,no sul da Índia, estouraramconfrontos entre os estadosde Karnataka e Tamil Nadu porcausa do acesso ao rio Chau-

very, que flui de Karnataka aTamil Nandu. Karnataka acu-sou Tamil Nandu de desperdi-çar água e de ampliar sua terrairrigada. Tamil Nandu alegouque seu vizinho tinha esque-cido o princípio do comparti-lhamento e sugeriram que osfazendeiros de Karnataka con-centrassem seus plantios emoutras colheitas que não o ar-roz. Os fazendeiros e a juven-tude local bloquearam estra-das com pneus incendiados eslogans gritados contra TamilNandu. Quando a Corte Su-prema da Índia ordenou queKarnataka liberasse mais águade suas represas, o descon-tentamento público em Karna-taka piorou. Violência similarocorreu em Bangalore, em1991, com 25 mortes.

Em janeiro de 2005, no Quê-nia, milhares de pessoas tive-ram de abandonar suas casasdevido a confrontos sobre aágua do Rift Valley, a noroes-te da capital Nairóbi. Jovensdas comunidades Maasai e

Kikuyu lutaram usando ma-chados, lanças, arcos, flechase tacapes. Pelo menos 15 pes-soas foram mortas.

No final de julho de 2006, amanchete de um jornal no SriLanka alardeava: “A guerra daágua começou!” Eclodiram vi-olentos conflitos entre as tro-pas governamentais e as for-ças dos Tigres de Tâmil, deTamil Eelam. O governo acu-sou os rebeldes de fecharema comporta de Maavilaru, nonordeste de Sri Lanka. Os Ti-gres defenderam-se, alegandoque a tinham bloqueado com-porta em protesto contra a de-mora governamental em me-lhorar o sistema de abasteci-mento de água na região.

O fechamento da comportaafetou 50 mil pessoas com li-mitadas alternativas de águapotável e sem acesso à águapara irrigar suas fazendas.Outra preocupação crítica paraa região sul do Sri Lanka é ainsuficiência de lençóis freáti-

cos. A via fluvial de Maavilarué o principal provedor de águada região. Mas, ao ser bloque-ado, a região ficou ainda maisvulnerável. Sabe-se que foramusados tratores para transpor-tar água à região. O conflito afe-tou fazendeiros que, nas cincodas últimas seis estações, en-frentaram tempos difíceis devi-do à escassez de água, à baixacotação para o arroz e aos al-tos custos com combustível,com trabalhadores e com pes-ticidas. Só alguns tiveram lu-cro e conseguiram estocar umpouco da colheita. PalithaKohona, secretário para a pazdo Sri Lanka, disse à agênciaReuters: “A água é crítica à exis-tência humana. Nosso objeti-vo é garantir a segurança hídri-ca, o que faremos”.

O governo do Sri Lanka decla-rou que os Tigres de Tamilhaviam infringido as leis deguerra ao bloquearem a provi-são de água. Esses eventoshostis são os mais recentesentre o governo e os rebeldesdo Tigres do Tâmil, e que con-duziram à morte de pelo me-nos 800 pessoas neste ano emais de 85 mil desde 1983.

O perito em água Aaron T.Wolf declarou que por voltade 2015, quase três bilhõesde pessoas (40% da popula-ção mundial estimada) esta-rão morando em países comgrande dificuldade em mobi-lizarem água para satisfazeremas necessidades industriais edomésticas. A competiçãopela água entre cidades e pro-dutores rurais, entre estadosvizinhos e províncias, será in-tensa. Tensões em termos re-gionais ou intranacionais po-dem eventualmente gerarconflitos de fronteiras. Comoa quantidade de água diminuitodos os anos e a qualidadepiora em muitas partes domundo, as estabilidades na-cional, regional e internacio-nal estão em jogo. Tensões

Distrito de Kitgun, Uganda.No campo de Padibe, criadopara abrigar as vítimas de des-locamentos internos, mulherese crianças com seus vazilhamesfazem fila perto de um poçode coleta de água. A cada dia,milhões de mulheres lutampara encontrar água para su-prir as necessidades familiares.Foto: Stuart Price/IRIN

Em 2015, quase três bilhões de

pessoas (40% da população

mundial) estarão em países com

grande dificuldade de mobilizar água

para satisfazer as necessidades

industriais e domésticas.

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internas pela água acabarãopor alterar as alianças políti-cas internacionais e criarãomais crises humanitárias.

ÁGUA

E CONFLITO INTERNACIONALÉ hoje consenso entre políti-cos e especialistas no tópicoágua a crença de que naçõesentrarão em guerra por ela, enão mais por petróleo, no sé-culo 21. Calcula-se que pelomenos 90% dos recursos deágua estejam situados no solode várias nações soberanas.

Os estados ribeirinhos apre-sentam vantagens e/ou des-vantagens naturais. Estadossituados a jusante enfrentamo pesadelo de não exerceremqualquer controle sobre aquantidade de água que fluiem suas terras. A vulnerabili-dade dos Estados situadosainda mais distante de qual-quer rio é aumentada natural-mente. O Egito e a bacia deNilo ilustram os problemasque isso pode causar. O paísvive com medo de seu vizi-nho rio acima – o Sudão – emtermos de consumo de água.Esse exemplo será discutidoem pormenor neste artigo.

De forma semelhante, a Tur-quia, que se beneficia das ca-beceiras dos rios Tigre e Eu-frates, implantou 19 centraishidrelétricas e 22 represascomo parte do Projeto Ana-tólia, conhecido pela abrevi-atura GAP. Objetiva-se au-mentar a quantidade de águairrigada disponível aos fazen-deiros turcos. Porém, o efeitocolateral é que o Iraque e aSíria, a jusante, experimentamum declínio de aproximada-mente 50% de água em am-bos os rios desde os anos1990 – e a totalidade do pro-jeto somente será concluídaem 2010. A Síria obtém 80%de sua provisão de água des-ses rios, enquanto o Iraque é100% dependente.

Fonte: IRIN – Serviço de infor-mação e análise do Escritório dasNações Unidas para a Coordena-ção de Assuntos Humanitários.http://www.irinnews.org

Em fevereiro de 1992, por oca-sião da inauguração da repre-sa Ataturk, o ex-Presidenteturco, Suleyman Demirel, de-clarou: “Nem a Síria nem o Ira-que podem reivindicar os riosda Turquia assim comoAnkara não pode reivindicaro petróleo sírio ou iraquiano.Trata-se de uma questão desoberania. Nós temos o direi-to de agirmos como bem en-tendermos. As fontes de águasão turcas; as fontes de pe-tróleo são do Iraque e da Síria.Nós não reivindicamos com-partilhar os recursos petrolí-feros deles e eles não podemreivindicar o compartilhamen-to de nossas fontes de água”.

O Projeto Anatólia quase cau-sou um conflito militar entre aTurquia e a Síria, em 1998. Da-masco acusou Ankara de res-tringir a provisão de água paraos países a jusante, enquantoAnkara acusou a Síria de prote-ger os líderes separatistas cur-dos. As implicações de menoságua são vitais para as socie-dades predominantemente agrá-rias, que dela dependem parasua agricultura e para suas in-dústrias nascentes

Em 2000, eclodiu uma disputaentre a China e a Índia acercado rio Brahmaputra. A Índiaacusou a China de não com-partilhar informações referen-

tes à pressão da água e dastorrenciais chuvas no rio amontante. A água de excessocausou um deslizamento deterra e o desmoronamento deuma represa no Tibete O aci-dente liberou uma parede deágua de 26m que varreu a Ín-dia e o Bangladesh, causandoinundação, destruindo propri-edades e reivindicando vidas.Inquietações adicionais surgi-ram quando se soube que aChina planejava desviar aágua do rio para construir re-presas e hidrelétricas.

Vários especialistas afirmamque países densamente povo-ados sentirão o maior impactodevido à escassez de água. OFórum de Política Global(www.globalpolicy.org) infor-ma que a Índia, nação com umdos mais baixos níveis em re-curso de água do mundo, so-frerá severa “fome” de águapor volta de 2015.

O Okavango é o quarto maiorrio do sul da África. Sua baciaatravessa Angola, Botsuana,Namíbia e Zimbábue. Em 1996,a Namíbia planejou desviar aágua do rio para Windhoek ,sua cidade mais importante.Angola e Botsuana protesta-ram contra esse plano da Na-míbia, alegando que ele preju-dicaria as populações ribeiri-nhas e o ecossistema fluvial.

Embora a Okavango Commis-sion tenha sido criada em 1994para administrar disputas naárea, as rivalidades em tornoda água continuam.

QUEM É DONO DA ÁGUA?A soberania sobre os cursosde água é difícil de definir e degarantir, mesmo que haja acor-dos entre estados ribeirinhos.A identificação clara dessapropriedade das fontes deágua é problemática, mas ne-cessária para fortalecer a es-tabilidade política e as relaçõesinternacionais. A negociaçãode acordos pode levar anos.Enquanto isso, o ecossistemade um rio pode continuar sen-do prejudicado ou mesmo des-truído, sendo acompanhadopela deterioração da qualida-de e da quantidade de águapara as populações locais. OTratado de Indus exigiu 10anos de negociações, enquan-to os acordos sobre as águasdo Ganges levaram 30 anos eo do Jordão 40 anos.

Segundo o Institute for Studiesin Development, Environmentand Security ocorreram 507 dis-putas internacionais relativasaos recursos hídricos nos últi-mos 50 anos. Apenas 37 delesse tornaram violentos – a maio-ria envolvendo Israel e seus vi-zinhos. Os analistas advertempara o fato de que com recur-sos hídricos cada dia mais es-cassos, mais sobreexplorados ecom a população mundial emextensão, a ameaça de violên-cia intensifica-se. Peter Gleick,especialista em água internaci-onal e presidente do PacificInstitute, sentencia: “Os confli-tos pela água são antigos, ecomo a água se torna mais es-cassa, certamente teremos nofuturo violentas lutas.” ■

Abidjan, Costado Marfim. Pelaprimeira vez na his-tória, o contingentepopulacional habi-tando áreas urbanasé maior do que o dasrurais. Foto:SarahSimpson/IRIN

Muitos países já estão em estado

de estresse hídrico. Por isso,

as guerras do futuro não terão como

móbile o petróleo, mas a água.

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DEVASTAÇÃOFLORESTAL

AMAZÔNIA :

por Carlos Mendes

Criada supostamente

para frear o

desmatamento

na região, a moratória

é tratada como uma

autêntica farsa no

relatório Impactos

Sociais da Soja, que

acaba de ser divulgado

pela Comissão Pastoral

da Terra (CPT) de

Santarém, oeste do Pará.

Assinada em outubro de 2006 e rati-ficada em junho passado, a mora-

tória foi um compromisso assumidopela Associação Brasileira da Indústriade Óleos Vegetais (Abiove), Associa-ção Nacional dos Exportadores de Ce-reais (Anec) e suas empresas associa-das de não adquirirem soja de áreas ondea floresta tivesse sido derrubada. O rela-

MORATÓRIA DA SOJA É SÓ PROPAGANDA

Carlos Mendes – Jornalista. Artigo publi-cado originalmente em O Liberal, Pará, em 21/09/2008 e no portal www.ecodebate.com.brem 22/09/2008.

tório da CPT diz que, além dos impactosambientais, o cultivo de soja na Amazôniaprovoca conflitos sociais e fundiários.

As famílias dos municípios de Santarém ePrainha, no oeste do Pará, por exemplo, con-tinuam sendo expulsas de suas terras, algu-mas vezes sob a mira de armas e ameaças demorte, para dar lugar a empresas que derru-bam a floresta para venderem a madeira eplantarem grãos. O cacique Odair Borari, daaldeia Novo Lugar, situada na Gleba NovaOlinda, sofreu dois atentados por ter denun-ciado às autoridades públicas a presençade grileiros nas terras indígenas onde viveseu povo. Ele diz-se jurado de morte pelosnovos barões do campo e seus pistoleiros.

IMPACTOS AMBIENTAIS E SOCIAISA produção de soja, ainda de acordo com aCPT, nunca foi interrompida no Pará, por-que as mesmas empresas que assinaram odocumento continuam expandindo as áre-as de plantio. Foi tudo, literalmente, parainglês ver. Resultado: nove comunidadesdos municípios de Santarém e Belterra jádesapareceram e outras 31 tiveram a popu-lação diminuída, correndo também o riscode extinção. A pressão é muito forte.

Isso acontece porque novas fazendas desoja fecharam estradas comunitárias, emvários locais, e guaritas e homens armadosimpedem o acesso de moradores. O relató-rio Impactos Sociais da Soja também de-nuncia a dispersão de agrotóxicos utiliza-dos no plantio da soja com prejuízo à saú-de de moradores vizinhos às plantações.

No documento, há uma crítica velada àdiscussão, com ‘viés puramente ambien-

talista’, a respeito do avanço da soja naregião, o que teria deixado de lado os im-pactos socioeconômicos da monoculturado grão sobre as populações dos pólosde Santarém, Paragominas e Redenção. “Amoratória da soja, que foi tão divulgada,não passou de propaganda. Serviu ape-nas aos interesses dos representantes dasoja, que precisavam de um marketing jun-to aos consumidores da Europa, que ame-açavam boicotar produtos ligados à sojada Amazônia”, acusa o relatório.

Os compradores responsáveis por 94%da soja comercializada pelo país secomprometeram a não compraremgrãos produzidos em áreas desmata-das. Na prática, nada disso ocorreu.

GRUPO ECONÔMICOQUER A FLORESTA NO CHÃODois fortes motivos atraem empresas

do Centro e do Sul do país em direção aoPará: o baixo preço da terra e a vantajosapropaganda em torno da soja. Para a Co-missão Pastoral da Terra (CPT), essa cor-rida causou uma série de conflitos, tor-nando recorrentes os casos de grilagemde terras, queimadas e intimidação às li-deranças, além de comprovadas persegui-ções e mortes. Na região do Planalto, emSantarém, estão as maiores plantações desoja, por localizarem-se próximas ao portoda multinacional Cargill.

Essa proximidade, intencional, diz o rela-tório, facilita o escoamento da produçãoda soja pelo porto. E mais: os impactos dasoja na região são tão danosos como emoutras áreas, mas com um agravante. NoPlanalto santareno e em Belterra, o culti-vo da soja já é realidade há vários anos, oque tem intensificado e provocado dispu-ta pela terra e a expulsão dos pequenoscamponeses.

Em vistoria recente, a CPT constatou gran-des áreas de soja sendo plantadas. EmSantarém e em Belterra, a soja teve suamaior produção em 2005, com ligeira dimi-nuição em 2007. Em 2008, a produção re-toma seu crescimento. Levantamento fei-to pelo Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE) estimou que, até abrilde 2008, a produção de soja tenha sido de46.575 toneladas em Santarém e de 27 milem Belterra. ■

Leo Freitas

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Caatinga e Cerrado

por Leonel Rocha, da equipe do Correio Braziliense.

Enorme devastação de vegetação natural para

produção de carvão vegetal ilegal está

ocorrendo em Goiás, Minas Gerais e Bahia.

O comércio criminoso que movimenta cerca

de R$ 60 milhões a cada mês fragiliza o que

ainda resta dos biomas cerrado e caatinga.

Uma operação do Instituto Brasi-leiro do Meio Ambiente e dosRecursos Naturais Renováveis

(IBAMA) realizada entre maio e julho de2008 identificou o grande centro de pro-dução ilegal de carvão vegetal no Brasil.O que resta dos biomas cerrado e caatin-ga está sendo derrubado em 24 municípi-os – 13 do centro-oeste da Bahia, outrosnove do norte de Minas Gerais e três deGoiás. O IBAMA identificou um grupo –formado por fazendeiros, comerciantes, ca-minhoneiros e até políticos da região –que derruba e, depois, queima, em cente-nas de fornos, florestas inteiras e até pe-quenas árvores. A cada mês são produzi-dos e vendidos ilegalmente cerca de 210mil metros cúbicos de carvão.

Para movimentar essa carga criminosa, osfiscais do IBAMA constataram a circula-ção mensal de três mil caminhões na re-gião. Cada um deles transporta, em média,

Madeireiras e carvoarias em Tailândia (PA), onde também ocorrem operações de combateà exploração ilegal de madeira e carvão. Foto:William Dias/ABr

virandoCARVÃOestão

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Cidadania&MeioAmbiente 25

100 metros cúbicos de carvão por viagem.Para completar uma carga, os agricultoresderrubam um hectare da vegetação naturale demoram apenas cinco dias para queima-rem a madeira em fornos e transformá-la emcarvão. O valor de cada caminhão carrega-do é estimado em R$ 20 mil, e o negóciofatura quase R$ 60 milhões mensais, se-gundo as projeções do instituto. O cálculofoi feito em apenas três locais de passagemde caminhões entre Bahia e Minas: Urandi(BA) e Espinosa (MG); Juvenilha (BA) eManga e Mantovânia (MG). O terceiro ficaentre Cabeceiras, em Goiás, e Arinos, emMinas. Existem outras 17 rotas de carvãona região já identificadas.

A operação denominada Trevo da Zizinha,em alusão ao ponto de encontro dos ca-minhoneiros à beira da estrada do municí-pio de Feira da Mata, no oeste baiano, foirealizada pela superintendência do IBA-MA de Brasília, responsável pela fiscali-zação da região. “Se a devastação conti-nuar nesse ritmo, em menos de cinco anosnão restará qualquer vestígio do cerradoou da caatinga na região”, prevê José Ri-bamar de Lima Araújo, coordenador dasequipes de fiscalização.

CERRADO

■ Importante fronteira agrícola des-

de a década de 1970.

■ Quase 193 milhões de hectares de

área em 11 estados.

■ Representa quase 23% de todo o

território.

■ Abriga 22 milhões de moradores.

CAATINGA

■ 736,8 mil km²

■ 10% do território brasileiro

■ Um dos cinco maiores biomas

(Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica

e o vizinho Cerrado).

SEM PRISÕES

Nenhum produtor, caminhoneiro ou inter-mediário do negócio ilegal foi preso na ope-ração, porque os fiscais do IBAMA nãoestavam acompanhados pela Polícia Fede-ral ou por policiais militares. Mas várias fa-zendas foram autuadas; e parte das cargas,apreendida. Os fiscais identificaram as cida-des de Bom Jesus da Lapa e Guanambi, naBahia, localizadas às margens do rio SãoFrancisco, como os dois mais importantes

entroncamentos de negócios para a vendailegal de carvão destinado às siderúrgicasde Minas Gerais e Espírito Santo.

Na Lapa, os fiscais do instituto identifica-ram a produtora rural Ana Célia como su-posta controladora do esquema no cen-tro-oeste baiano. Segundo o relatório dafiscalização do IBAMA, há cerca de doisanos a comerciante chegou a ser convo-cada pela CPI da Biopirataria da Câmarados Deputados para explicar por que man-dou construir 3,8 mil fornos em suas ter-ras. Xinha, a Rainha do Carvão, como acomerciante é conhecida, aparece comdestaque no relatório da autarquia.

A devastação ilegal do cerrado e da caa-tinga foi descoberta pelos fiscais, depoisda apreensão de alguns caminhões carre-gados de carvão e sem autorização paratransportarem a carga, nem a comprova-ção do Documento de Origem Florestal(DOF). Emitido exclusivamente pelo IBA-MA, esse documento só é fornecido coma comprovação de que a madeira cortadapara fazer carvão ou destinada a outrasutilidades tenha origem em área com ma-nejo florestal e expressamente autorizado.Os fiscais suspeitam que parte do carvãovegetal transportado pela Bahia em dire-ção a Minas Gerais também tenha origemno cerrado do sul do Piauí.

“Se a devastação continuar nesse rit-mo, em menos de cinco anos não resta-rá qualquer vestígio do cerrado ou dacaatinga na região”, sentencia José Ri-bamar de Lima Araújo, coordenador dasequipes de fiscalização do IBAMA.

FUGA DA FISCALIZAÇÃO

A quadrilha transporta o produto por es-tradas vicinais, nas quais não há balançasde pesagem das cargas e fiscalização esta-dual. Somente no posto fiscal próximo àscidades de Urandi e Pindaí, na divisa daBahia com Minas Gerais, por exemplo, fo-ram encontradas, nos arquivos, 316 notasfiscais emitidas para a compra ou venda decarvão em menos de 60 dias. Durante osdois meses que durou a operação Trevoda Zizinha, passaram por esse posto trêsmil metros cúbicos de madeira que, teorica-mente, pertenciam à P.J. Agropecuária Ltda.No mesmo período, a BG ReflorestamentoServam Ltda. transportou pelo mesmo pos-to 2.850 metros cúbicos de carvão.

Depois de passar por Urandi e Pindaí, naBahia, os caminhões carvoeiros chegam àcidade de Espinosa, em Minas Gerais, ondehá um outro posto de pesagem, controla-do pelo Instituto Estadual de Florestas(IEF). Os fiscais do IBAMA constataramque a autarquia estadual não conseguesaber se a carga que está passando peloposto é legal ou não. É que os funcionári-os do IEF não possuem senha de acessoao sistema federal para saber se aquela car-ga é legal e se pode ser transportada.

No posto de fiscalização estadual de Ca-beceira da Mata, em Goiás, a planilha deabril deste ano, referente ao controle detráfego de subprodutos florestais, chamoua atenção dos fiscais: por lá passaram1.032 caminhões abarrotados de carvãono período. O negócio ilegal do carvãopor ali é tão aberto que em cidades peque-nas e pobres como Baianópolis, por exem-plo, existe uma frota registrada de 701 ca-minhões. Em Morpará são 537, e no mi-núsculo Riachão das Neves, 361.

O relatório registra que no posto de pesa-gem da cidade mineira de Janaúba, porexemplo, ao longo dos 122 dias, entre 2 deabril e 3 de julho deste ano, passaram 2.750caminhões carregados de carvão vegetal.Um movimento, em média, de quase 30carregamentos por dia.

AROEIRAS DERRUBADAS

O Prefeito de Palma de Monte Alto (BA),Manoel Rubens Vicente da Cruz (PSDB), foimultado em R$58,6 mil pela fiscalização doIBAMA por ter derrubado 293 metros cúbi-cos de aroeira sem autorização. Segundo oauto de infração lavrado em 5 de maio, oPrefeito é o responsável pelo desmatamen-to de 750 hectares de floresta – principal-mente de aroeiras, árvores consideradas emextinção. A multa também foi aplicada, por-que o governante construiu 62 fornos paraa queima de madeira para a produção de car-vão vegetal e não apresentou a autorizaçãopara essa atividade. O político contestou amulta na Justiça Federal e aguarda decisãoliminar para tentar vender a madeira e conti-nuar a utilizar os fornos. Ele alega ter autori-zação para a derrubada. (LR) ■

Leonel Rocha, da equipe do CorreioBraziliense, 04/10/2008. Publicado emwww.ecodebate.com.br em 06/10/2008.

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AL

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ÁRTICO:

por UNEP e GLOBIO

A abertura de estradas de rodagem

nos últimos 25 anos e menos gelo

no mar aliados ao fenômeno do

aquecimento global abriram a vasta

e até pouco inacessível região ártica

ao modelo atual de desenvolvimento

predatório e insustentável.

O Ártico engloba o oceano Ártico,os territórios ao norte da Américado Norte, a Groenlândia, a Islân-

dia, o norte da Escandinávia e o norte daFederação Russa. Embora ainda seja a últi-ma região virgem na Terra, cerca de 70%dessa imensidão poderá ser gravementedanificada pela atividade industrial em me-nos de 50 anos. A vida selvagem e as po-pulações indígenas serão particularmentevulneráveis às ameaças representadas pelodesenvolvimento industrial, pelos poluen-tes e pela mudança climática global.

O fato de os recursos do Ártico serem deextrema importância e valor econômico parao sistema econômico mundial não anula umgrande desafio moral e político: a pequenapopulação do Ártico – menos de 4 milhõesde pessoas – não colherá os benefícioseconômicos e sociais da exploração da re-gião. Será necessário implantar novas es-tratégias locais de sustentabilidade paracontrolar o desenvolvimento da região esalvaguardar os seres humanos e a biodi-

versidade local. “Os habitantes autócto-nes distribuídos em comunidades de sub-sistência, como os Saamiis, ainda depen-dem da rena e do caribu. Caso a exploraçãoindustrial ocorra sem precauções, essespovos pouco a pouco perderão suas ter-ras e os animais que garantem sua tradicio-nal forma de vida”, adverte Dr. KlausTöpfer, diretor-executivo da United NationsEnvironment Programme (UNEP).

Svein Tveitdal, diretor do Key PolarCentre da UNEP, na Noruega, alerta: “Afalta de planejamento estratégico da ex-pansão da rede de infra-estrutura é umadas maiores ameaças ao desenvolvimen-to sustentável no mundo. Muitos dos im-pactos negativos já perceptíveis na bio-diversidade e nos habitantes do Árticopoderiam ter sido evitados se tivessemsido implantados planos estratégicos dedesenvolvimento regionais. Infelizmente,os regulamentos ambientais e o foco dosgovernos não brindam o desenvolvimen-to de projetos à luz da defesa das comuni-

dades. E se aparentemente tais projetossão individualmente insignificantes, elesse revelam críticos ao ambiente e às pes-soas no plano coletivo.”

A mudança no clima mundial e o desenvol-vimento de rede de estradas estão aceleran-do o desenvolvimento industrial e ameaçan-do muitas populações indígenas do mar deBarents, do noroeste da Sibéria, do territó-rio Yukon e do declive norte do Alasca. En-quanto se debateu com intensidade o desti-no do Refúgio Ártico da Vida Selvagem, noAlasca, a discussão sobre a expansão darede de infra-estrutura no Alasca, no Cana-dá e na Rússia foi negligenciada.

Dois corredores – um do lago Athabas-can via delta do Mackenzie, em Yukon,cortando o declive norte do Alasca; e ou-tro correndo da costa norueguesa do marde Barents até a península de Yamal – sãoagora as principais portas de entrada àvastidão ártica para as companhias mine-radoras e exploradoras de petróleo.

A exploração de petróleo, gás e minerais já começa a gerar graves

impactos sócio-ambientais. A preocupação é tanta que até um crítico

Papai Noel (foto) propõe trocar os ho-ho-ho... por um emprego num

campo de petróleo. Será que ainda há tempo de deter a catástrofe?

SOBREVIVÊNCIA em RISCO

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Ao índice atual, a expansão contínua deinfra-estrutura de exploração de gás, depetróleo e de extração mineral pode, em40-50 anos, impactar severamente as po-pulações originais e os ecossistemas doÁrtico em 50-80%. Espécies migratórias,como pássaros, levarão consigo tais im-pactos para muito além do Ártico.

Muitos elementos químicos liberados no arou na água por atividades industriais naEuropa e na América do Norte se acumulamno norte do planeta. Já se sabe que subs-tâncias perigosas geram problemas genéti-cos, alterações metabólicas, redução na fer-tilidade e câncer. Também podem afetar osistema nervoso e as funções musculares.Assim, tais poluentes podem alterar seria-mente a saúde e o bem-estar de comunida-des inteiras do Ártico.

O atual clima mais morno possibilita ummaior período de atuação à atividade danavegação, despertando o interesse dotransporte oceânico pela Rota Marítima doNorte. A Noruega abriu-se para o gás natu-ral no mar de Barents, em 2002, e a produ-ção de petróleo, ao norte da península deKola, está atualmente em andamento.

Enquanto as grandes companhias petro-líferas operam segundo regras ambientaisrígidas, o desenvolvimento secundáriodescontrolado da rede rodoviária associ-ado à nova atividade econômica produzos maiores impactos nas populações e navida selvagem. Afinal, agora o Ártico é defácil acesso, e nele foram implantadas ins-talações recreativas, complexos turísticos,

estradas, torres de transmissão, represase turbinas eólicas para gerar energia. En-fim, toda uma infra-estrutura para recepci-onar e acomodar o trânsito crescente depopulação não-indígena que chega paraexplorar as novas terras.

Na região do mar de Barents, 30% da flo-ra e da fauna já sofrem os impactos dodesenvolvimento promovido pela mãohumana. O desenvolvimento não-plane-jado está fragmentando a tundra e a taiga,reduzindo o habitat dos grandes mamífe-ros locais (ursos, renas, caribus, carca-jus). O índice atinge 49% na Noruega e13% na Rússia. Em menos de 50 anos,mais de 90% da fauna e da flora serãoatingidos, o que tornará tais áreas impró-prias ao tradicional pastoreio da rena edo caribu.

O desenvolvimento de estradas e outrainfra-estrutura fragmentam a tundra frágile a taiga, reduzindo o valor do hábitat pormamíferos maiores, como rena, wolverinese ursos. Isso ilustra o crescimento proje-tado, de acordo com o GEO-3 ‘segurançaprimeiro’ enredo.

Nesse ambiente, agora voltado a ativida-des extrativas, o contingente de renas teráque ser continuamente reduzido para evi-tar a exaustão dos pastos. Ao mesmo tem-po, os predadores tradicionais – lobos(Canis lupus) e carcajus (Gulo gulo) –,ambos sob proteção de convenções in-ternacionais, também enfrentarão proble-mas, já que as áreas de reserva a eles des-tinadas encolherão rapidamente.

A fragmentação do habitat no Ártico po-derá, em termos do desenvolvimento pre-visto, ameaçar seriamente a biodiversida-de e a funcionalidade do ecossistema. Pes-quisas científicas realizadas na década de1990 confirmam que a fragmentação deecossistemas por infra-estrutura e ativi-dades humanas (moradia, agricultura, ex-tração mineral, etc.) reduz a sobrevivên-cia de muitas espécies e, conseqüente-mente, diminui a riqueza da fauna local.

O desenvolvimento da infra-estrutura nasterras antes inexploradas também deveráafetar substancialmente os ecossistemasaquáticos, via poluição e transporte dosrecursos primários produzidos e escoados.Os rios e os lagos também sofrerão com aconstrução de barragens, com o aterramentode terras alagadas, com a construção decanais e com a exploração de aqüíferos.Tudo isso afetará peixes, invertebrados,mamíferos marinhos e outros organismos.Na verdade, a infra-estrutura de desenvol-vimento em implantação no Ártico vai mui-to além dos problemas diretamente provo-cados pela abertura de estradas e pela im-plantação de atividades extrativas altamen-te desestabilizadoras do meio ambiente. Nofuturo próximo, todos nós sofreremos asconseqüências do desbravamento da últi-ma fronteira da Terra. ■

Fonte: Relatório Mudança Ambiental Global– Meio Ambiente e Segurança 2000-2050, co-missionado ao Global Methodology forMapping Human Impacts on the Bios-phere (GLOBIO - www.globio.info) pelaUnited Nations Environment Programme(UNEP - www.unep.org).

DESENVOLVIMENTO ÁRTICO E IMPACTO HUMANO EM 2050

As projeções do impacto hu-mano no Ártico até 2050 sãoalarmantes. A biodiversidade, ohabitat de florestas, tundra eplanícies serão gravemente afe-tados. As conseqüências emâmbito global são imprevisíveis.

Fonte: UNEP/GRID-ArendalMaps and Graphics Library - http://maps.grida.no/go/graphic/arctic-development-scenarios-human-impact-in-2050. Cartógrafo/designer: Hugo Ahlenius, UNEP/GRID-Arendal

2002 2050

Impacto humano

médio-baixo

alto

alto-médio

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O

por Horand Knaup

Empresas ocidentais estão comprando vastas extensõesde terra para satisfazerem as necessidades mundiais debiocombustível. Os governos africanos e os pequenosproprietários rurais são cobertos de promessas de umfuturo brilhante. Na verdade, tudo indica que estamosfrente a mais uma forma de colonialismo econômico.

A CORRIDA DO “OURO VERDE”

ÁFRICA

Viveiro de pinhão manso em Kaffrine, Senegal.Em 2007, foram plantadas as primeiras 35 milmudas de centenas de milhares previstas paraum projeto de cultura energética. Foto:treesftf

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Tudo dará certo. Correção: tudo vaimelhorar. Haverá novas estradas,escolas, farmácias e até mesmo pro-

visão de água própria. Melhor ainda: se-rão criados no mínimo 5 mil postos de tra-balho. “Se houver trabalhos, então serábom para nós”, diz Juma Njagu, 26 anos,que deseja deixar para trás sua difícil exis-tência de carvoeiro.

Njagu vive em Mtamba, uma aldeia com1.100 habitantes no distrito de Kisarawe,Tanzânia, aproximadamente 70 quilôme-tros sudoeste de Dar es Salaam, a maior emais importante cidade. Mtamba, acessí-vel por uma estrada de terra, é um lugaronde as pessoas sobrevivem com umpouco de agricultura e de pesca e a pro-dução de carvão. Não há muito mais.

Isso pode mudar se a empresa britânica SunBiofuels der prosseguimento a seus pla-nos de produção de biodiesel do pinhãomanso (Jatropha curcas), uma planta ener-gética com alto conteúdo de óleo, que es-pera plantar nas terras de Kisarawe.

O governo da Tanzânia concedeu à empre-sa britânica o uso de 9 mil hectares (22.230acres) de terra cultivável nessa região es-cassamente povoada, ou seja, aproximada-mente 12 mil campos de futebol, por umperíodo de exploração de 99 anos – gratui-tamente. Em contrapartida, a companhiainvestirá aproximadamente U$20 milhões(•13 milhões) na construção de estradas ede escolas, trazendo, assim, um mínimo deprosperidade à região.

A Sun Biofuels não está só. Na realidade,meia dúzia de outras companhias dos Pa-íses Baixos, Estados Unidos, Suécia, Ja-pão, Canadá e Alemanha já enviaram seusagentes para a Tanzânia. Prokon, empresaalemã conhecida principalmente por suasturbinas de vento, já começou a cultivarjatropha curcas em larga escala. Ela espe-ra ter brevemente cerca de 200 mil hecta-res (494 mil acres) plantados – a superfí-cie de Luxemburgo – na Tanzânia.

A Kavango BioEnergy, empresa britânica,planeja investir milhões de euros no norteda Namíbia. As empresas ocidentais estãose implantando em Malawi e em Zâmbia,onde planejam produzir diesel e etanol apartir da jatropha curcas, do dendê ou dacana-de-açúcar. Os investidores estrangei-ros estão de olho em 11 milhões de hecta-

res (27 milhões de acres) em Moçambique– mais de 1/7 da área total do país – paracultivarem plantas energéticas. O governoda Etiópia já disponibilizou 24 milhões dehectares (59 milhões de acres).

A corrida do ouro explodiu; não só naÁfrica Oriental, mas em todo o continen-te. Em Gana, a empresa norueguesa Bio-fuel África conseguiu o direito de plantarem 38 mil hectares (93.860 acres), e a SolBiofuels também está negociando na Eti-ópia e em Moçambique.

As conseqüências dessa corrida são dra-máticas. Os especialistas concordam quea compulsão mundial pelo cultivo de plan-tas energéticas é fator preponderante daexplosão global dos preços de alimentos.Segundo um estudo do Banco Mundial,até 75 % do aumento podem ser atribuí-dos a essa mudança nos tipos de planta-ções. Muitos fazendeiros de países indus-trializados ficam mais que felizes em acei-tarem subsídios governamentais para plan-tarem milho ou canola, às expensas do cul-tivo de trigo, de batata e de legumes.

Plantas produtoras de óleo não compe-tem com as terras cultivadas na África —pelo menos ainda. Os investidores argu-mentam que estão usando a terra não-pro-dutiva ou subutilizada. No entanto, o cus-to em alta dos alimentos e o aumento po-

A África ofereceaos fazendeiros de

energia condiçõesideais para seus

objetivos: muita terraimprodutiva e a

baixo preço, títulosde propriedade

nebulosos e regimespolíticos altamente

influenciáveis.

pulacional também exercerão pressão nohemisfério sul para a conversão de terranão-produtiva em produtiva.

BIOCOMBUSTÍVEL: LUCRATIVO

FRENTE AO PETRÓLEO CARO

Para os investidores, as plantações energé-ticas na África são altamente lucrativas. Opetróleo cru se tornar-se-á escasso no futu-ro próximo, de forma que o biocombustívelfácil de produzir chega no tempo certo. Aum rendimento anual estimado de 2.500 li-tros por hectare, a Sun Biofuels ficará naTanzânia por muito tempo. A produção debiocombustível torna-se lucrativa quandoo preço do barril de petróleo cru ultrapassaos U$100 (•69) no mercado mundial.

A África oferece aos “fazendeiros de ener-gia” condições virtualmente ideais paraseus objetivos: terra improdutiva em mui-tos lugares, baixos preços de terra, títulosde propriedade nebulosos e, sobretudo,regimes políticos altamente influenciáveis.

A terra é improdutiva, diz o Ministro daEnergia etíope em Adis-Abeba, capital dopaís. “Nada mais que terra marginal”, con-firmam os funcionários do Ministério deEnergia e Recursos Minerais em Dar esSalaam. “Tudo isto é mais que positivo”,afirma o administrador de distrito de Kisa-rawe, responsável pelo projeto da SunBiofuels. “Nós convencemos as pesso-as.” Em seu escritório rudimentar, no qualfaltam computador e copiadora, ele folheiaos documentos do projeto.

Em nenhum desses lugares, as necessi-dades dos residentes foram levadas emconta. Em Gana, a BioFuel África arran-cou a concessão de uso da terra de umchefe de aldeia que não sabe ler, nem es-crever. O chefe tribal deu seu consenti-mento imprimindo no documento sua im-pressão digital. O jornal semanal PublicAgenda fez lembrar os mais sombrios diasdo colonialismo. Infelizmente, a Agênciade Proteção Ambiental de Gana acaboucom a farra da limpeza do terreno apenasdepois que 2.600 hectares (6.422 acres) defloresta foram derrubados.

Na Tanzânia, as esperanças também dão mar-gem ao ceticismo acerca das promessas deque tudo melhorará. Em abril de 2006, a SolBiofuels alegou ter recebido aprovação for-mal para o cultivo em 10 das 11 aldeias afeta-das. No entanto, naquele momento, várias

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Horand Knaup – O texto Green Gold Rush– África becoming a Biofuel Battleground foipublicado em Spiegel online – www.spiegel.de(09/05/2008).

comunidades nem mesmoestavam cientes dos pla-nos, enquanto outras ha-viam colocado condiçõespara darem seu consenti-mento. Um líder de aldeiareclamou, por escrito, à ad-ministração do distrito quea Sol Biofuels tinha limpa-do o terreno e separado aterra sem mesmo contataros anciões da aldeia.

Em Dar es Salaam, PeterAuge, gerente geral daSol Biofuels Tanzânia, re-cebeu-nos em seu escri-tório. Trata-se de um sul-africano simpático e defala direta. “É verdade ter-mos sido um tanto reser-vados acerca de nossapolítica de informação.Ainda há muitos senõese tudo o que não deseja-mos ver publicado nos jornais é que nossoprojeto está atrasado em dois anos.”

Auge promete investimentos sociais, em-bora eles não façam parte dos acordos atéo momento. Mesmo quando se aborda oitem compensação para as pessoas quevivem na terra, e que o governo insisteque devam ser indenizadas, os investido-res estão fazendo um excelente negócio.Afinal, eles ofereceram o equivalente acerca de •450.000 – preço ridículo para os9 mil hectares (22.230 acres) que poderãodesfrutar durante quase um século.

Setenta quilômetros mais ao sul, no rio Ru-fiji, milhares de residentes estão sendo for-çados a se mudarem para darem lugar aosprojetos da sueca Sekab: cultivo de cana-de-açúcar, uma plantação altamente con-sumidora de água, que cobrirá cerca de 9mil hectares (22.230 acres) para, em segui-da, ser destilada em etanol. Cinco mil hec-tares (12.350 acres) já foram aprovados.

O rio e as terras alagadas ao longo de suasmargens são a única fonte de água potávelpara milhares de pessoas, especialmente du-rante a estação seca. A Sekab também pla-neja fechar esse reservatório para irrigar suasplantações. Transparência? Inexistente.Compensação? Nenhuma. Informação? Umartigo escasso. Quando os residentes pre-sentes ao evento de apresentação do proje-

to perguntaram sobre os pagamentos deindenização, receberam a seguinte respos-ta: “Vocês receberão o que foi acordado”.

O sistema de Relações Públicas está cadavez mais ativo, até mesmo em países po-bres como a Tanzânia. A sul-africana Jose-phine Brennan, chefe de RP da Sekab emDar es Salaam, só vê para a Tanzânia umfuturo rosa. O cultivo de biocombustívelpermitirá ao país construir novas escolas eestradas, que resultarão em melhores opor-tunidades para a nação. Segundo Brennan,no futuro, os pequenos fazendeiros tam-bém poderão ganhar mais dinheiro culti-vando plantas energéticas. E apenas issopermitirá que três milhões de habitantes es-capem à linha da pobreza. Com seus doismilhões de hectares de terras cultiváveis, aTanzânia, diz Brennan, tem potencial decrescimento semelhante ao Celtic Tiger, daIrlanda. Ela está convencida de que o mun-do precisa da Tanzânia.

Mas as róseas previsões de Brennannão refletem o que se pensa na ÁfricaOriental. Um estudo realizado pelaAgência Alemã para Cooperação Téc-nica sobre plantas energéticas na Tan-zânia lista um rol de efeitos colateraisnegativos. Agrava a questão o fatodesta não ser a primeira vez em que in-vestidores brancos prometem prospe-ridade ao país.

Com semelhantes pro-messas atraentes, os pe-quenos agricultores fo-ram desalojados de suasterras para darem lugara cafezais algumas déca-das antes. Nos anos 90,as companhias mineirasestrangeiras chegaram àTanzânia para prospec-tarem ouro. “Eles nosprometeram trabalho,novos poços de água,estradas e escolas”, lem-bra o jornalista JosephShayo. “E o que aconte-ceu? Nenhuma escola,nenhum poço e poucospostos de trabalho malpagos”. Para tornar ascoisas ainda piores,grandes regiões minei-ras foram cercadas e fi-caram inacessíveis aosantigos residentes.

Em estudo recente, publicado em “BiofuelIndustry in Tanzânia”, o jornalista Khoti Ka-manga, da Universidade de Dar es Salaam,adverte contra os efeitos colaterais das plan-tações energéticas. A população, Kamangaescreve, é normalmente desinformada so-bre o fato de que o cultivo de plantas ener-géticas normalmente caminha de mãos da-das com o deslocamento populacional for-çado. Segundo ele, é muito provável que aprodução de etanol também afete os preçosdos alimentos na Tanzânia, aumentando ain-da mais a dependência do país por alimen-tos importados.

Em Dar es Salaam, o governo agora reco-nheceu que o boom do ouro verde tam-bém traz problemas. “As plantas energé-ticas não podem ser uma alternativa pro-dução de alimentos”, sentenciou o Presi-dente Jakaya Kikwete, em resposta ao res-sentimento geral difundido no país em re-lação aos altos preços dos alimentos.

Mas os “fazendeiros de energia” perma-necem insensíveis. Tanto a Sun Biofuelsquanto a Sekab querem ampliar suas pro-duções para 50 mil hectares (124.000 acres)– o mais rápido possível. ■

A empresa de biocombustível sueca Sekaba planeja plantar cana-de-açúcar aolongo de um rio da Tanzânia. A cultura do biocombustível competirá com asplantações de subsistência pela água do rio. Foto: Article[25]

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