RAUL ANTELO Cidade Para Gulbenkian

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1 De cidade/city/cité a Babel Raul Antelo O historiador cultural americano Carl Schorske chamou nossa atenção, nos anos 80, para a configuração do espaço urbano como problema teórico-político. A despeito de suas diferenças, Voltaire, Adam Smith ou Fichte coincidiam em que a cidade era a sede das virtudes civilizatórias, argumentava Schorske, ao passo que, para o mórbido olhar de um William Blake, no entanto, a cidadee o exemplo característico é sempre Londres, a da biopolítica alegoria de Jeckyl e Hydenão passava do território por excelência dos vícios e da degradação. É só com Baudelaire, entretanto, que esse caráter bifronte se condensaria, não por esquecimento, mas por abandono, na visão de Paris como um espaço situado para além do bem e do mal, um hic et nunc eterno, cujo conteúdo, embora transitório, tornava essa mesma transitoriedade permanente 1 . Daí deriva, com efeito, a idéia de uma cidade disseminada 2 . Schorske estava de fato preocupado em traçar um percurso evolutivo da idéia de cidade européia, de Voltaire a Spengler, mas cabe-nos contudo agora esboçar uma genealogia suplementar, a da gênese da cidade euro-atlântica, de Nietzsche a Derrida. Digamos, então, 1 Cf. SCHORSKE, Carl E.- Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. Mesmo na fase de ensaios de interpretação nacional, boa parte das diagnoses latino-americanas partiam da questão da cidade. Lembremos, por exemplo do argentino Ezequiel Martinez Estrada, autor de Radiografia de la pampa (1933) e La cabeza de Goliath (1940, que alude à macrocefalia da capital sobre o interior); ou do ensaio seminal de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936), com sua discriminação entre semeadores (portugueses) e ladrilhadores (espanhóis), a construírem cidades como tabuleiros de xadrez. Com eles começa, de certo modo, o debate latino-americano em torno à idéia de cidade. Ver, a esse respeito, HARDOY, Jorge Enrique- "El rol de la urbanización en la modernización de América Latina" in IDEM - Las ciudades en América Latina: seis ensayos sobre la urbanización contemporánea. Buenos Aires, Paidós, 1972; ROMERO, José Luis Latinoamérica: las ciudades y las ideas. México-Buenos Aires, Siglo XXI, 1976; RAMA, Ángel La ciudad letrada. Hanover, Ediciones del Norte, 1984; MORSE, Richard M. “Los intelectuales latinoamericanos y la ciudad (1860-1940)” in HARDOY, Jorge E.; MORSE, Richard M. & SCHAEDEL, Richard P. (ed.) Ensayos histórico-sociales sobre la urbanización en América Latina. Buenos Aires, Ediciones SIAP, 1978, p.91-112; RAMOS, Julio Desencuentros de la modernidad en América Latina. Literatura y política en el siglo XIX. México, Fondo de Cultura Económica, 1989; SARLO, Beatriz “Modernidade e mescla cultural” in Risco. Revista de Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo, EESC- USP, São Carlos, nº 4, 2006, p.87-92 ; IDEM - Cenas da vida pós-moderna. Trad. Sérgio Alcides. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1997; IDEM - Instantáneas. Medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo. Buenos Aires, Ariel, 1996; IDEM La ciudad vista. Buenos Aires, Siglo XXI, 2009; FRANCO, Jean - Decadencia y caída de la ciudad letrada. La literatura latinoamericana durante la Guerra Fría. Madrid, Debate, 2003. Em linha dissidente com o enfoque maciçamente dialético acima apontado, ver JITRIK, Noé - “Bipolaridad en la historia” in Ensayos y estudios de literatura argentina. Buenos Aires, Galerna. 1971. 2 Jean-Luc Nancy descarta a questão da cidade e prefere falar do problema da cidade. “Le bidonville est la déjection de la ville, sa violence ramassée dans la boue. En un sens, ce serait comme une exaspération du déclassement de Los Angeles, de son bricolage et de son déglingage.” Cf. NANCY, Jean-Luc “Au loin, Los Angeles” in La ville inquiète. Le temps de la réflexion VIII. Paris, Gallimard, 1987, p.26.

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    De cidade/city/cit a Babel

    Raul Antelo O historiador cultural americano Carl Schorske chamou nossa ateno, nos anos 80, para a configurao do espao urbano como problema terico-poltico. A despeito de suas diferenas, Voltaire, Adam Smith ou Fichte coincidiam em que a cidade era a sede das virtudes civilizatrias, argumentava Schorske, ao passo que, para o mrbido olhar de um William Blake, no entanto, a cidadee o exemplo caracterstico sempre Londres, a da biopoltica alegoria de Jeckyl e Hydeno passava do territrio por excelncia dos vcios e da degradao. s com Baudelaire, entretanto, que esse carter bifronte se condensaria, no por esquecimento, mas por abandono, na viso de Paris como um espao situado para alm do bem e do mal, um hic et nunc eterno, cujo contedo, embora transitrio, tornava essa mesma transitoriedade permanente1. Da deriva, com efeito, a idia de uma cidade disseminada2. Schorske estava de fato preocupado em traar um percurso evolutivo da idia de cidade europia, de Voltaire a Spengler, mas cabe-nos contudo agora esboar uma genealogia suplementar, a da gnese da cidade euro-atlntica, de Nietzsche a Derrida. Digamos, ento,

    1 Cf. SCHORSKE, Carl E.- Pensando com a histria. Indagaes na passagem para o modernismo. So

    Paulo, Companhia das Letras, 2000. Mesmo na fase de ensaios de interpretao nacional, boa parte das

    diagnoses latino-americanas partiam da questo da cidade. Lembremos, por exemplo do argentino

    Ezequiel Martinez Estrada, autor de Radiografia de la pampa (1933) e La cabeza de Goliath (1940, que

    alude macrocefalia da capital sobre o interior); ou do ensaio seminal de Srgio Buarque de Holanda,

    Razes do Brasil (1936), com sua discriminao entre semeadores (portugueses) e ladrilhadores

    (espanhis), a construrem cidades como tabuleiros de xadrez. Com eles comea, de certo modo, o debate

    latino-americano em torno idia de cidade. Ver, a esse respeito, HARDOY, Jorge Enrique- "El rol de la

    urbanizacin en la modernizacin de Amrica Latina" in IDEM - Las ciudades en Amrica Latina: seis

    ensayos sobre la urbanizacin contempornea. Buenos Aires, Paids, 1972; ROMERO, Jos Luis Latinoamrica: las ciudades y las ideas. Mxico-Buenos Aires, Siglo XXI, 1976; RAMA, ngel La ciudad letrada. Hanover, Ediciones del Norte, 1984; MORSE, Richard M. Los intelectuales latinoamericanos y la ciudad (1860-1940) in HARDOY, Jorge E.; MORSE, Richard M. & SCHAEDEL, Richard P. (ed.) Ensayos histrico-sociales sobre la urbanizacin en Amrica Latina. Buenos Aires, Ediciones SIAP, 1978, p.91-112; RAMOS, Julio Desencuentros de la modernidad en Amrica Latina. Literatura y poltica en el siglo XIX. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1989; SARLO, Beatriz Modernidade e mescla cultural in Risco. Revista de Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo, EESC- USP, So Carlos, n 4, 2006, p.87-92 ; IDEM - Cenas da vida ps-moderna. Trad. Srgio Alcides. Rio de

    Janeiro, Ed. da UFRJ, 1997; IDEM - Instantneas. Medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo.

    Buenos Aires, Ariel, 1996; IDEM La ciudad vista. Buenos Aires, Siglo XXI, 2009; FRANCO, Jean - Decadencia y cada de la ciudad letrada. La literatura latinoamericana durante la Guerra Fra. Madrid,

    Debate, 2003. Em linha dissidente com o enfoque maciamente dialtico acima apontado, ver JITRIK,

    No - Bipolaridad en la historia in Ensayos y estudios de literatura argentina. Buenos Aires, Galerna. 1971. 2 Jean-Luc Nancy descarta a questo da cidade e prefere falar do problema da cidade. Le bidonville est

    la djection de la ville, sa violence ramasse dans la boue. En un sens, ce serait comme une exaspration

    du dclassement de Los Angeles, de son bricolage et de son dglingage. Cf. NANCY, Jean-Luc Au loin, Los Angeles in La ville inquite. Le temps de la rflexion VIII. Paris, Gallimard, 1987, p.26.

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    para incio de conversa, que essa outra configurao urbana, a da cidade disseminada, configura uma rede incessante de deslocamentos e usos, no s do prprio e do alheio, mas tambm do pblico e do privado, em que toda noo de origem surge como plenamente ilusria j que, para sua cabal manifestao, so indispensveis os forasteiros. So eles, atravs do nomadismo, que mostram o trnsito ininterrupto da natureza cultura e, alm do mais, de uma a outra cultura, i.e. de tcnica a tcnica, sempre exibindo o enigma de um percurso sem fundao nem orientao final: uma circulao que no cessa de atiar mas, ao mesmo tempo, de contrariar tambm a necessidade de dominar o espao e mesmo a reivindicao irrecusvel quanto justa partilha desse mbito, para rechaar, enfim, toda apropriao comunitria irreversvel. H uma cena emblemtica, a meu ver, na arte moderna, que so os ensaios de Marcel Duchamp por cubificar uma cidade modernizada. Ele no escolhe nem a capital do sculo XIX, Paris, excessivamente familiar, nem a capital do sculo XX, Nova York, ainda esquiva, mas uma cidade que, at certo ponto, ele desprezava por julg-la um arremedo provinciano de metrpole cosmopolita, Buenos Aires, mas que, mesmo assim, devia lhe parecer manejvel ou, ao menos, tradutvel. Sua tcnica estereoscpica para captar esse novo cenrio euro-atlntico admite, de fato, vrias leituras. Rosalind Krauss detectou nela a origem do inconsciente tico contemporneo. T.J. Demos, o primeiro ensaio de nomadismo multicultural. Michel Gurin, uma encenao performtica de anartismo3. Eu, particularmente, creio ver nessa cubificao tica urbana a postulao da mquina contra a estrutura, idia que, embora esboada em Bergson, tornar-se- decisiva, mais adiante, no pensamento ps-fundacional. Duchamp no intervm na cena urbana modernizada nem para o registro (memria), nem para a formalizao (representao) da experincia. Essa a opo dos artistas territorializados4, ou dos filsofos memoriosos (No esqueamos que foi nesse mesmo cenrio latino-americano que Ortega y Gasset desenvolveu sua preveno s massas, em El tema de nuestro tiempo). Duchamp, pelo contrrio, persegue o esquecimento e, para tanto, precisa abolir a dimenso sagrada e regrada do espao urbano para nos propor, entretanto, uma primeira verso ps-literria da cidade ocidental, em particular, uma iconologia (ou, talvez, at mesmo uma icnologia) do intervalo euro-americano. A estereoscopia nos desvenda, na cidade, Babel, e nela, a ps-histria.

    3 KRAUSS, Rosalind - El inconsciente ptico. Trad. J. Miguel Esteban Cloquell. Madrid, Tecnos, 1997;

    DEMOS, T.J. - The Exiles of Marcel Duchamp. Cambridge, MIT Press, 2007; GURIN, Michel Marcel Duchamp. Portrait de lanartiste. Nmes, Lucie, 2007. 4 Tomemos, a ttulo ilustrativo, a Paulicia Desvairada (1922) de Mrio de Andrade. Em O domador,

    por exemplo, sob o arlequinal do cu ouro-rosa-verde... da cidade, o poeta louva a sistmica verticalidade da arquitetura funcionalista e condena a neo-colonial (as sujidades implexas do urbanismo de manuelino), apostando sempre no arlequinal dizer, i.e. na estrutura, que purifica os dilvios de penetras, ou seja, a histria, que se manifesta, ambivalentemente, atravs dos contatos corporais (bateladas de hngaros, blgaros, russos se despejam na cidade), como constata, resignado, em Improviso do mal da Amrica, 1928. Poderamos incluir tambm o argentino Arturo Cancela, com Una semana de holgorio, de Tres relatos portos (1922), que ficcionaliza a greve anarquista que apanha Duchamp em Buenos Aires, ou at mesmo Borges, mas no s o poeta saudosista de Fervor de Buenos

    Aires (1923) ou Cuaderno San Martn (1929), tambm o ensaista que, contrariamente a Mrio de

    Andrade, julgava, em Inquisiciones (1925), que a cidade no era iada e ascendente ou que, em La presencia de Buenos Aires en la poesia (1926), evoca a cidade como uma travessia plutnica por sua capilaridade subterrnea, o que, paradoxalmente, lhe confere velocidade e eficincia cada vez mais

    desmaterializadas.

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    Duchamp escolhe um limite, a orla do rio-mar, e torna-o um limiar. No se posiciona, como os antecessores, na gua, olhando para a cidade. Duchamp no Danvin nem Dulin. No mesmo Paul No, nem Pio Collivadino, nem Aquiles Badi. Nem Lazzari, Daneri ou Pacenza5. Duchamp posiciona-se pois no cais e nele contempla o rio-mar. o infinito. E a capta uma cena de origem, virando as costas, precisamente, para o nascimento da Ninfa (uma alegoria do nascimento de Vnus, e da prpria Renascena como pureza, idia materializada na escultura de Lola Mora, recm instalada naquele passeio). Analisando a iconologia do intervalo desta figura, Aby Warburg j mostrara, alis, em 1893, que, maneira estranhamente inquietante de Gradiva, os atributos de uma imagem podem definir sua substncia mas da substncia no se derivam nunca atributos permanentes, de modo que Vnus pode muito bem ser, fantasmagoricamente, algo at grotesco, prximo, por ex., das marionetes de Kleist6. Nesse sentido, diramos que a imagem convencional da Ninfa a origem. Mas a estereoscopia, entretanto, um salto origem. No a fonte das coisas, nem uma imagem original da Histria, mas aquilo que nasce, como efeito de montagem temporal, da prpria passagem do velho ao novo. Ao cubificar a cidade modernizada, Duchamp situa-se, com efeito, na vertigem do devir como turbilho temporal, devorando consigo o prprio tempo, e posicionando-se num entre-lugar que j no nem o da restaurao da gnese, nem o do acabamento conceitual, de modo que suas pirmides de tempo7 no esto nem c nem l da demarcao entre o fixo e o fludo, entre a terra e a gua. A estereoscopia est construda com e no tempo. Como escano desse tempo, ela j no coincide com o factual (a cidade emprica onde Marcel foge da guerra, do tempo, a Buenos Aires de 1918) mas superpe-se quilo que nos remete sua pr-histria (o contato com a alteridade radical) e sua ps-histria (a abjeo e a exceo)8. Essa cidade comeou, de fato,

    5 DANVIN, Victor-Marie Flix (1802-1842) - Buenos Aires Ro de la Plata, circa 1890, gravura em

    cobre sobre papel (Museu Histrico Nacional de Buenos Aires); DULIN, J. D. (1839-1919) - Buenos Ayres. La Boca del Riachuelo cerca de Barracas, circa 1860 (ibidem); NO, Paul Buenos Aires, 1899, leo (coleo Museu Histrico de Buenos Aires Cornelio de Saavedra); COLLIVADINO, Pio (1869-

    1945) -Paseo Coln, 1925, leo (Museo de Bellas Artes de La Boca Benito Quinquela Martn); BADI, Aquiles (1894-1976) Buenos Aires 1936, leo (coleo Francisco Traba); LAZZARI, Alfredo (1871-1949) - Calle Paseo Coln, 1899, leo (coleo famlia Lazzari); DANERI, Eugenio (1881-1970) - Calle de La Boca, 1936, leo (coleo particular); PACENZA, Onofrio (1904-1971) - Paisaje de La Boca 1946, leo, (coleo Ministerio de Economia, Buenos Aires). Tomo como referncia o excelente catlogo de Laura Malosetti Costa, Pampa, ciudad y suburbio, Buenos Aires, Fundacin OSDE, 2007. 6 Cf. WARBURG, Aby - La Naissance de Vnus et le Printemps de Sandro Botticelli. Paris, ditions

    Allia, 2007. 7 A expresso provm do soneto 123 de Shakespeare: No, Time, thou shalt not boast that I do change:/

    Thy pyramids built up with newer might / To me are nothing novel, nothing strange;/ They are but

    dressings of a former sight./ Our dates are brief, and therefore we admire / What thou dost foist upon us

    that is old;/ And rather make them born to our desire / Than think that we before have heard them told./

    Thy registers and thee I both defy,/ Not wondering at the present nor the past, / For thy records and what

    we see doth lie,/ Made more or less by thy continual haste./ This I do vow and this shall ever be;/ I will be

    true despite thy scythe and thee. 8 Remo Bodei, que analisou essas ambivalncias temporais, argumenta que memria sobrevivncia, na

    medida em que l'illusione di un ricordo successivo alla percezione nasce perch la maggior parte di quel che percepiamo e viviamo nel presente sembra perdersi e, come in un gran naufragio, pare che restino

    solo i relitti dei ricordi che si sono salvati. In realt, anche per Bergson (come per Freud e per i fsiologi

    della loro poca) niente si perde, ma non tutto emerge alla superficie della memoria, perch essa ha il

    compito di selezionare e di far venire alla coscienza solo quel che serve per l'azione e per il futuro. Cf. BODEI, Remo Piramidi di tempo. Storie e teoria del dj vu. Bologna, il Mulino, 2006, p. 65.

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    com um repasto totmico dos soldados espanhis por parte dos ndios, tal como narrado por Juan Jos Saer (1937-2005) em O enteado. Mas outros soldados, os que em 1918 tanto temor causavam em Marcel, ao v-los trajados maneira alem, fazendo-o sentir cercado, estavam, simultneamente, matando anarquistas e, em um tempo posterior, desmaterializariam at mesmo a morte, causando desaparecidos), de modo que, diramos, a estereoscopia, como tableau urbano situado para alm da pintura, cinde tambm o prprio tempo em dois. Benjamin, alis, deixa isso claro, no s em Origem do drama barroco alemo como tambm no Livro das passagens, j que, enquanto postulao de uma origem, as pirmides de tempo, tanto contemplam a ascenso quanto a decadncia das construes histricas, e funcionam como um dispositivo que permite a passagem temporal, fazendo surgir, a partir de um interior vazio e disponvel, a srie infinita das formas, que nada mais so do que meras metamorfoses do mesmo, lampejos intermitentes, como os das bias no rio, de duas imagens que, nem descartadas, nem mesmo assimiladas integralmente, conservam-se numa existncia imvel, porm, carregada de tenso. Elas desfazem qualquer pretenso de saber da tecnocincia, porque claro que todo devir torna-se simplesmente ilusrio, face dura permanncia dos objetos, que no so seno uma still life, ou mesmo uma after-life, ou seja, a natureza morta da Coisa, aquilo que permite, enfim, a Duchamp postular uma beleza de indiferena como alternativa para os impasses da reproduo seriada. A imagem celebratria da Ninfa, sentada beira da concha, suplementada, assim, pelas estereoscopias, assinaturas urbanas que mostram que a cidade no nem uma essncia nem uma substncia, mas um simples vestgio que, ao interromper o continuum natureza-cultura, mina o prprio processo de identificao com o ideal, atendendo premissa de que s existe o tempo (e o texto, e a imagem) a partir da interrupo do tempo (bem como do texto e da imagem). Sua linha de fuga necessria poderia ser ilustrada com os trabalhos de Jorge Macchi. No apenas com Buenos Aires Tour9, experincia compartilhada com a poeta Maria Negroni10, mas tambm com Horizonte (1995; tcnica mista, coleo particular). Mas deixemos, por um momento, os ensaios anartistas de Marcel Duchamp, de to forte atrao em Walter Benjamin, em particular, por sua idia de uma obra-porttil11, e detenhamo-nos em um texto no menos interessante para o pensador alemo. Refiro-me a Paris, mito moderno de Roger Caillois. Nesse ensaio premonitrio, Caillois admite a existncia de uma robusta tradio mimtica da metrpole, operando sobre a imaginao, a ponto de confiscar-lhe a aferio precisa. Este fenmeno, contemporneo da grande indstria e da formao do proletariado urbano, est principalmente ligado, para comear pelo mais

    9 MACCHI, Jorge, RUDNITSKY, Edgardo e NEGRONI, Maria Buenos Aires Tour. Madri, Turner,

    2004. 10

    NEGRONI, Maria Buenos Aires Tour. Mxico, Aldus, 2006. 11

    Em meados de 1937, Duchamp e Benjamin encontram-se num caf de Saint-Germain. Em manuscrito

    indito Benjamin menciona:Saw Duchamp this morning, same Caf on Blvd. St. Germain... Showed me his painting: Nu descendant un escalier in a reduced format, colored by hand en pochoir. breath-takingly

    beautiful. maybe mention Cf. Walter Benjamin Archive, Institut fr Sozialforschung, Goethe Universitt, Frankfurt. Apud BONK, Ecke Delay included in Joseph Cornell / Marcel Duchamp .In Resonance. The Menil Collection Houston / Philadelphia Museum of Art, Cantz, 1999, p.102. Uma das

    mais diretas consequncias dessa des-obra como obra-em-valise VILA MATAS, Enrique - Histria

    Abreviada da Literatura Porttil (1985). Trad. Jos A. Palma Caetano. Lisboa, Assrio & Alvim, 1997.

    Sentido Porttil a adaptao desse texto, com encenao de Carla Bolito (Centro Cultural de Belm,

    2009).

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    aparente, transformao do romance de aventuras em romance policial12, idia que, mais tarde, alimentar uma polmica entre Caillois e Borges, porque o escritor argentino no via, no policial, qualquer resduo pico. Caillois, entretanto, atribua a esse carter pico da vida urbana, de consequncias ainda imprevisveis, o protagonismo de Baudelaire, no sculo XIX francs, tese encampada por Benjamin, embora seja bom lembrar que, para Caillois, essa pica era ainda inespecfica. Com efeito, a vida moderna, para Baudelaire, no tem forma pr-concebida. por isso que julga suas Flores do mal autnticos romances e chega mesmo a cham-las um livro de arte pura, ainda que saiba, mesmo assim, que qualquer uma dessas definies no s falha quanto falsa. Em oposio cidade mtica, verdadeiro cadinho de paixes que sagra, embora tambm dilacere, o herosmo urbano da modernidade movido pela vontade de poder e, mesmo nas sombras, manipula os recursos de uma maquinao to complexa quanto grandiosa, prova de sua inteligncia luciferina, pontificial e guerreira. a melancolia das cidades, dentre elas Lisboa, tal como aparece nas imagens da revista surrealista Variets, em dezembro de 1929. Mas Caillois soube perceber que essa atitude anti-mtica, em particular com relao a Paris, acabaria por configurar uma posio mtica, de que alis do prova livros como os de Ramalho Ortigo ou Nestor Victor, o que, embora implique uma projeo da imaginao na vida social, estimula, paradoxalmente, uma literatura de evaso que ainda permaneceria, por muito tempo, slidamente literria, uma vez que ela alimenta os mais ideais e os mais inofensivos prazeres de substituio, ao operar, por tabela, um recuo da imaginao na ordem prtica da vida. Em suma, o mito de Paris enuncia inquietantes e ambivalentes poderes da literatura, graas aos quais a arte, ou melhor ainda, a imaginao renunciaria, da em diante, a seu mundo autnomo, para retornar quilo que Baudelaire chamava de traduo lendria (o grifo do prprio Baudelaire, mas no menos de Caillois) da vida exterior, mas que no custaria, absolutamente, aproximar do conceito benjaminiano de tradutibilidade, construdo junto ao de legibilidade da cidade moderna, reconhecvel atravs da fotografia ou das tcnicas de signatura (impresses digitais, documentos, etc). Pouco depois de escrever esse ensaio sobre Paris como mito moderno, Caillois comea, em funo da guerra, um exlio de seis longos anos na Amrica Latina. Reside em Buenos Aires, conhece e frequenta So Paulo, visita e at analisa o Rio de Janeiro. Nesta ltima cidade publica, antes mesmo do que em Paris, seu Vocabulrio esttico, suplemento de um livro posterior, Babel (1948). E na capital do Brasil onde Caillois testa sua teoria das loterias culturais, a organizao para-estatal, to ou mais eficiente do que o prprio Estado, aquilo que, recentemente, Norbert Martin chamou de a regra-mundo, a narco-cidade (a anarco-cidade). E , ainda, Crnicas de Babel o ttulo dado pelo escritor a seus esparsos latino-americanos, nunca republicados em vida, crnicas at certo ponto informes, como os tableaux de Baudelaire. No exagero, porm, se afirmo que devemos ver, em Babel, como pequeno tratado de teologia-poltica, no s a prefigurao do contemporneo, mas tambm a possibilidade de pensar a cidade, a partir da margem, isto , da Amrica Latina, mas tambm da imagem, ou seja, do contato com os corpos, como um trnsito ininterrupto, uma peculiar passagem, da natureza cultura, sem dvida, porm, igualmente, de uma a outra cultura, como tradutibilidade incessante, traando um percurso, sem origem nem orientao final, um

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    CAILLOIS. Roger O mito e o homem. Trad. Jos Calisto dos Santos. Lisboa, Edies 70, p.115.

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    eterno comeo que se apresenta, ao mesmo tempo, como decididamente ps-fundacional, revelia dos mapas ao uso13. Com efeito, ao redigir Babel, Caillois torna-se consciente, como antes dele, Duchamp, com seus dispositivos ticos an-artsticos, que, em uma cultura ps-sacra, como a contempornea, o lugar residual da mimese est ocupado pela literatura, e que, portanto, o desafio no a reproduo mas a repetio, um gesto que evoca o da marionete dad. No entanto, compreende tambm que essa literatura, pautada pela mimese, est irreversivelmente morta, da que o estudo de uma esttica generalizada, ou at mesmo gerativa, o mimetismo, possa ser a forma arcaica e proto-histrica de resgatar a potncia da imaginao, deslocando o conflito primordial de uma sociedade que declina e, em vo, se debate, agnicamente, em busca de sua prpria identidade. No h identidade porque simplesmente no h memria do mesmo. Ou antes, a memria vertigem, bipolaridade perptua. A singularidade contempornea consiste, portanto, na disseminao annima, ou inclusive anmala, de uma competncia performtica que nos permite analisar ou desdobrar a esttica nas representaes suscitadas pela prpria morfologia da sociedade, em incessante metamorfose14, e observar, ademais, que o mito moderno da cidade s se tornou possvel quando o conjunto da sociedade ocidental comeou a ler, quer dizer, quando todos os seus membros submeteram-se, voluntariamente, a leis estatais de ensino pblico obrigatrio15. William Kentridge, em Strade della citt (ed altri arazzi), exibida em Npoles (Museu di Capodimonte, nov. 2009-fev.2010) projeta, sobre antigos mapas de cidades europias, a sombra de figuras literrias mticas, como Dom Quixote, que remedam sombras em preto, la Soulages. A cidade moderna pura legibilidade mas a experincia ps-literria de Babel solicita, entretanto, uma outra disposio e assim cabe aventar que a imagem aberta s advm, de fato, com a queda efetiva do Nome-do-Pai. Voltaremos a essa idia mais adiante. De Paris, mito moderno, cidade latino-americana, como texto ps-literrio, h uma imaginao, portanto, que se nos impe, precisamente, com o fim da guerra material clssica, e que consistiu, como sabemos, em desvincular, socialmente, o equitativo do igualitrio, para assim poder afirmar a livre e ilimitada superioridade da iniciativa individual, hipottico instrumento de progresso social, que se oporia, desse modo, obsoleta concepo de propriedade coletiva dos meios de produo ou, at mesmo, do simples Estado benfeitor. Depois da guerra fria, porm, capitalismo e democracia surgiriam, de fato, reciprocamente vinculados, ora como capital-parlamentarismo, ora como Estado espetacular integrado, na

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    Cf. DIEGO, Estrella de Contra el mapa. Disturbios en la geografia cultural de Occidente. Madrid, Siruela, 2008. 14

    Cf. OLALQUIAGA, Celeste Megalopolis. Contemporary Cultural Sensibilities. Minneapolis, University of Minesotta Press, 1992. 15

    impossvel separar as anlises de Caillois do contexto latino-americano em que se produzem. Sua

    anlise de Hitler como dolo, O poder carismtico, apia-se na emergncia de movimentos de multides, no sujeitos rbita do popular-estatal. Fascinava-lhe, dizia, a fuso de santa, meretriz e

    soberana que via em Eva Pern, o que levava concluso de que o poder carismtico trabalha com a

    faculdade mimtica (sonambulismo, hipnose, vertigem, xtase), movimentos que se tornariam cada vez

    mais indissociveis nas sociedades ocidentais. Cf. CAILLOIS, Roger Instintos y sociedad. Trad. Carmelo Martnez Pealver, Julin Calvo e C.A. Jordana. Barcelona, Seix Barral, 1969. Para uma

    sequncia dessas idias, BAUDRILLARD, Jean - L'change symbolique et la mort. Gallimard. Paris,

    1976; LACLAU, Ernesto On Populist Reason. London, Verso, 2005; MARCHART, Oliver In the Name of the People: Populist Reason and the Subject of the Political in diacritics .Vol. 35, n 3, Fall 2005, p. 3-19.

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    busca herica do risco, atravs de no menos equvocas regras, que preservariam a concorrncia, quando ameaada pelos controles estatais, mas manteriam o controle de mercado, quando o consumo fosse desestabilizado pela concorrncia, regras essas cuja ambigidade essencial se estenderia mtua mistura de regulao e desregulamento e at mesmo ao abandono de muitos atores sociais, uma vez que excluir, pura e simplesmente, o conjunto dos cidados desestabiliza o jogo democrtico mas, inclu-los a todos igualmente, torna-o decididamente invivel16. Essa acelerada e vertiginosa fuso de lugares e de espaos sociais, que em sua verso mais amena conhecemos como ps-modernidade e que hoje, de forma talvez mais ntida e perversa, poderamos chamar de desinsero, traou, alis, uma nova cartografia histrica que, da liberao da metafsica entre passado e presente, prometida pelo modernismo, rapidamente passou metafsica da liberao, que se tornou, aos poucos, fuso, ambivalente quando no paradoxal, de represso e desinibio, como lembrana do presente, nas ps-utopias contemporneas17.

    16

    Analisando o caso das cidades brasileiras, Raquel Rolnik observa que, mesmo sin figurar en los mapas de catastros de prefecturas y concesionarias de servicios pblicos, sin existir en los archivos de los

    registros de la propiedad, os precrios asaentamentos urbanos que surgem, no Brasil, como decorrncia dessa situao, mantienen una relacin ambigua con las ciudades en las que se localizan. Como modelo dominante de la territorializacin de los pobres en las ciudades brasileas, su consolidacin es progresiva,

    pero siempre incompleta y dependiente de la accin discrecional de los poderes pblicos. As, nunca se

    sabe a ciencia cierta si forman o no parte de la ciudad: en algunos casos, con el transcurso de dcadas, la

    ocupacin se acaba consolidando; en otros, se emprenden batallas judiciales y administrativas para

    desmantelar los asentamientos, dispersar a sus ocupantes y recuperar suelo para el mercado. Al delimitar

    las fronteras que separan los asentamientos regulares/formales de los irregulares/informales, el modelo de

    exclusin territorial que distingue la ciudad brasilea es mucho ms que la mera expresin de las

    desigualdades sociales y de renta, en la medida en que funciona, para el circuito financiero, como una

    especie de engranaje de la mquina de generar valor, inflando el capital en ella invertido. Dicha mquina,

    al producir ciudades, provoca desigualdades en la medida en que una ciudad dividida entre el sector rico,

    legal y con infraestructuras, y el sector pobre, ilegal y precario, concentra la riqueza y bloquea el acceso a

    las oportunidades econmicas y culturales que el ambiente urbano ofrece. El acceso a los territorios que

    concentran las mejores condiciones urbansticas es exclusivo para quien previamente ya forma parte de

    l Cf. ROLNIK, Raquel - Confinamiento o conflagracin: metrpolis brasileas al lmite. SMITH, Neil et alii - Despus del neoliberalismo: ciudades y caos sistmico. Trad. Mariano Antoln y Juan de

    Sola. Barcelona, Museu dArt Contemporani de Barcelona / Servei de Publicacions de la Universitat Autnoma de Barcelona, 2008, p.46. E essa situao responde pelo fato de que las grandes reas de produccin fordista fueron sustituyndose por una economa de flujos, desterritorializndose y dejando

    por el camino grandes reas urbanizadas vacas, a menudo tambin contaminadas. El territorio popular se

    densifica sobre una base urbanstica frgil y tosca, fruto de intervenciones fragmentadas, desconectadas y

    discontinuas, definidas y ejecutadas en la temporalidade de la poltica. El espacio metropolitano de la era industrial tambin se transforma, expandindose sobre la zona rural, redefiniendo las fornteras

    urbanas y diseminando enclaves como condominios, hipermercados y centros comerciales. La antigua

    dualidad centro-periferia se disuelve para dejar paso a otra nueva: lugares seguros versus lugares

    violentos. La conquista de asentamientos precarios por el comercio de drogas a pequea escala impuso

    una nueva sociabilidad en estos territorios, una sociabilidad violenta, que paralelamente, fue

    implementada en los aparatos de seguridad monopolizados por el Estado. Aunque solo estuviera presente

    en algunos de los asentamientos precarios del pas, la territorializacin de las favelas por parte del trfico

    de drogas contribuy, en el imaginario urbanstico colectivo, a la identificacin de todas las favelas y

    periferias precarias del Brasil como lugares violentos. (ibidem, p.51-52). 17

    Diego Tatin l a loteria de Babilnia e a prpria construo da torre (a poltica) como um

    intransfervel instante de deciso entre as paronomsicas conjetura / conjura, isto , entre apatia e

    rebelio.TATIN, Diego La conjura de los justos. Borges y la ciudad de los hombres. Pref. S. Mattoni. Buenos Aires, Las Cuarenta, 2009. bom no esquecer que a conjurao o tema (nietzscheano) que

  • 8

    A ttulo ilustrativo, relembremos que o poetamenos Augusto de Campos props, em cidade/city/cit (1963-1965), uma posio biformativa para a cidade, que tanto ordem, estado, espao, quanto abstrao genrica ou tradutibilidade, enquanto sufixo, cidade. Porm, alguns anos antes, em 1957, outro concretista, Dcio Pignatari, provavelmente inspirado em Nombre dambre de Michel Leiris (1939), elaborara um poema visual, hombre hambre hembra, onde a hesitao valeriana entre som e sentido, estranhada pelos significantes em espanhol, contaminava-se, ainda que ingnuamente, pelo discurso do nuevo hombre guevarista, tornando-se cubagrama. Haroldo de Campos forneceria ainda mais uma alternativa em Servido de passagem (1961), a da poesia em tempo de fome, em que s resta ao poeta a funo dictica de disseminar as marcas das coisas,

    nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome

    para, mais tarde, em 1983, a convite de Roberto Schwarz, teorizar, exemplarmente, esse deslocamento esttico18. Uma ilustrao potica desse percurso encontra-se, com efeito, em Parania (1963), de Roberto Piva19. Mas quem, delirantemente, reverte no s o mundo imaginrio da urbs, mas at mesmo a sua verso de autonomia extrema, a dos fantsticos mundos possveis de Tln, o escritor argentino Osvaldo Lamborghini (1940-1985), quem, ao potencializar a fico, inverte a genealogia bblica (Gn. 1:27) e lana ao Estado a pergunta ps-fundacional dirigida a Deus,era hombre o mujer?, para encontrar, como nica resposta, em seu romance pstumo Tadeys, a alternativa maqunica, no-estrutural, do estado de exceo contemporneo nem homem, nem fmea, mas fome: es hambre para todos. Ora, nesse sentido, diramos que a cidade esvaziada, Babel, o neutro mas, ao mesmo tempo, bom frisar que no h Babel sem mimetismo, porque a autntica imaginao puramente

    rene Bataille, Leiris e Caillois em torno do Colgio de Sociologia, como destruio e conservao

    simultneas da autonomia e da histria, em chave no-comunitria, sacer. A esse respeito, ver, entre

    outros, ALEMAN, Jorge et al. Los otros entre nosotros. Alteridad e inmigracin. Madrid, Crculo de Bellas Artes, 2009. 18

    Despoetizar a poesia, quelas alturas do triunfalismo neoparnasiano da Gerao de 45, era reduzi-la ao seu mnimo mltiplo comum: resposta sincrnica da srie literria srie pictrica (Malevitch, Mondrian) e musical (Webern). Da economia restrita da poesia pura viu-se, a seguir, num determinado lance da prtica potica da poesia concreta, que se podia passar economia generalizada da poesia para. Como experincia dialtica de extremos. (Entre a poesia a plenos pulmes de Maiakovski, que engendra o agit-prop de massas, construtivista, e a poesia como cenografia espiritual exata de Mallarm, teatro hermtico de cmera, cruel antes de Artaud, nas fronteiras do silncio, no ser bizarria surpreender o faiscar limtrofe de certas afinidades eletivas; leia-se Blanchot em Le Livre Venir e Walter Benjamin sobre o Coup de Ds em Einbahnstrasse). LIXO/LUXO de Augusto um exemplo frisante dessa dialtica de extremidades, que encena na arte mnima de seu procedimento menos (...) o jogo de suas tenses e mediaes, como uma tatuagem intersemitica. O oxmoro paronomstico lixo/luxo se redobra visualmente numa tipografia desejadamente Kitsch, enquanto as pginas desdobrveis vo

    compondo e decompondo, numa escanso pardica, a luxria do LUXO de encontro lixvia do LIXO. CAMPOS, Haroldo de - "Arte pobre, Tempo de pobreza, Poesia menos". In: Os Pobres na Literatura

    Brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1983, p.188. 19

    PIVA, Roberto Parania. Fotografias de Wesley Duke Lee. So Paulo, Instituto Moreira Salles, 2009. Sobre a esttica urbana do grupo Rex, comandado por Duke Lee, ver LOPES, Fernanda A experincia Rex. So Paulo, Alameda, 2009.

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    negativa e deconstructiva, como alis Benjamin j apontara em um manuscrito indito de 1920. Com efeito, a partir de 1933, poca de Experincia e pobreza, Doutrina da semelhana e Sobre a faculdade mimtica, trs outros sintomticos e instigantes ensaios de Benjamin, Caillois tambm comea a pensar no mimetismo como uma potncia passiva: quando corrige o ensaio de Dal sobre o mtodo paranico-crtico20, desenvolvido em conjunto com Lacan, para sua publicao na revista Minotaure, na qual, pouco tempo depois, o prprio Caillois editaria seu estudo sobre um tema dumeziliano, a manta religiosa21, onde se prope um imaginrio espontneo, relativamente separado da semitica institucionalizada e mais atento, porm, fantasiosa sintaxe de suas combinaes, uma forma de criticar o primado moralizante da alegoria22. Num clima cultural influenciado por Metrpolis, o filme de Fritz Lang, Walter Benjamin tambm apontara, na resenha de Cathrine-Paris da Princesa Bibesco, em 1928, que essa capitulao do desejo configura uma apoteose de remota extrao barroca23. Na mesma linha de anlise, Caillois afirmaria que o mimetismo biolgico, entendido como fenmeno de capitulao e abandono do indivduo perante o meio que o circunda, um passo para alm do funcionalismo. Benjamin ainda faria suas essas observaes de Caillois no Livro das Passagens, no sentido de que o automatismo da manta, mesmo acfala, consegue realizar todas as funes vitais, e correlaciona-se at, em funo de sua significao funesta, com certos automatismos mticos (o de Pandora, o do vodu haitiano), que, ao associarem o mecnico e o satnico, constatam a relao pulstil entre o amor e a morte, algo que, muito mais adiante, Lacan chamaria de Real24. Em meados de 1937, poca do encontro de Duchamp e Benjamin na zona25, no limiar [Schwelle] entre prprios e estranhos, num caf de Saint-Germain, Caillois publica uma sintomtica resenha do mtodo anartstico do primeiro deles, exaltando um para alm da obra, a des-obra ou des-oeuvrement, ou seja, a inoperncia do sistema convencional. Caillois sublinha a a bipolaridade e ope o modelo benjaminiano do sonhador alegrico, ao modelo dos anartistas e crticos acfalos, que se identificariam com o investigador rido e sinttico de

    20

    Cf SAN MARTIN, Francisco Javier - Dal-Duchamp: una fraternidad oculta. Madrid, Alianza, 2004 e

    PARCERISAS, Pilar Duchamp en Espaa. Madrid, Siruela, 2009. 21

    Cf. LASERRA, Annamaria Materia e immaginario. Il nesso analogico nellopera di Roger Caillois. Roma, Bulzoni, 1990, p.31-42; IDEM Bataille e Caillois: osmosi e dissenso in RISSET, Jacqueline (ed.) Georges Bataille: il Politico e il Sacro. Napoli, Liguori, 1987, p. 120-136. 22

    Em um manuscrito contemporneo do ensaio sobre a obra de arte, mais especficamente, numa carta

    parisiense sobre pintura e fotografia, redigida no fim de 1936, Benjamin associa dois artistas, Bosco e

    Dali, por sua tendncia ao ptrido e corrupo, o que lhes faria perceber novas verdades que no so

    verdades exclusivas da pintura. Cf. CAILLOIS, Roger. Bosch et Dal. Determinations inconscientes en peinture in Images du Labyrinthe, ed. S. Massonet, Paris, Gallimard, 2008, p. 30-2. Dessa independncia da sintaxe (e at mesmo do semitico) com relao ao semntico deriva a esttica generalizada ou

    fantasmtica de Caillois. Ver, desse autor, Esthtique gneralise. Paris, Gallimard, 1962; Au couer du

    fantastique. Paris, Gallimard, 1965; Images, imagesParis, Corti, 1966; Lcriture des pierres. Paris, Skira 1970; La Dyssimtrie. Paris, Gallimard, 1973; Cohrences aventureuses. Paris, Gallimard, 1976. 23

    Cf. BENJAMIN, Walter Paris as Goddess in Selected Writings. Ed. M.W.Jennings H. Eiland & G. Smith. Camridge, Harvard University Press, 1999, Vol 2, 1927-1934, p.141-3. 24

    Cf. IDEM Paris, capitale du XIX sicle. Le livre des Passages. Trad. Jean Lacoste. 2 ed. Paris, Cerf, 1993, p.707. 25

    KOHAN, Martin Zona urbana. Ensayo de lectura sobre Walter Benjamin. Buenos Aires, Norma, 2004.

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    cartas roubadas26, destacando, por exemplo, na experincia de Duchamp, a total eliminao desse aspecto psicolgico do jogo, implicado na natureza agonstica da partida e inscrito, como dado conjectural, no prprio movimento das peas, para sublinhar, entretanto, que o alvo era determinar um ponto de desconstruo, uma dobradia ps-fundacional que, ao mesmo tempo e em todas as circunstncias, satisfizesse vrias exigncias discordantes, no interior de um mesmo sistema de relaes. Nessa vertigem do jogo, onde se superpem a circularidade do dom de Marcel Mauss, a idia do grand jeu de Ren Daumal, a singularidade absoluta da patafsica, as regras do jogo de Leiris e at mesmo o jogo sublime de Guy Debord, aquilo que, justamente, na in-operncia, chama a ateno de Caillois a sintaxe das combinaes, o que j no remete a um indivduo especfico, mas aponta sempre ao singular de uma conjuno discordante27. Esse ponto singular-plural, como o chamaria Jean-Luc Nancy, o da desindentificao, como suspenso das oposies binrias, e conecta-se com a busca, em Duchamp, de um para alm da pintura e um para alm do gnero, o que nos conduz, por sua vez, rearticulao anagramtica da linguagem. A esse saber, denominado cincia diagonal28,

    26

    CAILLOIS, Roger - Les checs artistiques et lopposition et les cases conjugues in Nouvelle Revue Franaise, set 1937, p.511-4 e, nessa linha, o prefcio a POTOCKI, Jan Manuscrit trouv Saragosse. Pref. R. Caillois. Paris, Gallimard, 1958. 27

    Cf. CAILLOIS, Roger Cases dun chiquier. Paris Gallimard, 1970. O conceito de singular no-especfico, de sorte que, enquanto a linhagem deleuziana opta pela singularidade, a vertente foucaultiana

    tende ao especfico, muito embora o ltimo Foucault seja consciente do poder oikonmico de um discurso

    omnis et singulatim. Cf. ATTRIDGE, Derek The Singularity of Literature. London, Routledge, 2004. 28

    Em 1924, Viking Eggeling filma Sinfonia diagonal, que Deleuze considera um exemplo da poderosa

    vida orgnica, maneira da esttica in-existente de Kandinsky (o conceito de seu sobrinho, Kojve, e

    no deve espantar sua proximidade com a noo lacaniana de Real), a contaminar a figura e assim

    fornecer subsdios para uma montagem intersticial, tpica de Resnais ou Godard. Pouco depois, em 1929,

    dois cineastas hngaros, Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny, filmariam, nessa mesma linha in-

    existente, So Paulo, Sinfonia de uma Metrpole, em sintonia, talvez, com a experincia de Walter

    Ruttmann, em Berlim: sinfonia de uma cidade (1927). A esse respeito, Lvi-Strauss assinala que ce nest donc pas de faon mtaphorique quon a le droit de comparer comme on la si souvent fait une ville une symphonie ou un peme; ce sont des objets de mme nature. Plus prcieuse peut-tre encore,

    la ville se situe au conluent de la nature et de lartifice. Congrgation danimaux qui enferment leur histoire biologique dans ses limites et qui la modlent en mme temps de toutes leurs intentions dtres pensants, par sa gense et par sa forme la ville relve simultanment de la procration biologique, de

    lvolution organique et de la cration esthtique. Elle est la fois objet de nature et sujet de culture; individu et groupe; vcue et rve: la chose humaine par excellence. LEVI-STRAUSS, Claude Tristes tropiques. Paris, Plon, 1955, p.138. sintomtico, portanto, que Lustig e Kemeny, os diretores de So

    Paulo, Sinfonia de uma Metrpole, centrem sua ateno no regime disciplinar da Casa de Deteno

    paulista, apagando os limites entre o fora (a metrpole) e o dentro (a cela). Abordam o avesso da So

    Paulo modernista que, no obstante, Blaise Cendrars soube captar (da deriva, com efeito, seu Elogio da

    vida perigosa de 1938, que no podemos cindir de certas idias de Bataille ou Genet) porque nesse local

    se entrevistou com Febrnio Indio do Brasil, um sujeito que hoje, anacrnicamente, chamaramos de

    pedfilo serial-killer, mas que, naquela poca, foi preso no manicmio judicirio, um jardim zoolgico

    deserto, segundo Cendrars, vendo ento destruda sua obra Revelaes do Prncipe de Fogo (um poema

    milenarista maneira dos que Macaba, a imigrante nordestina, protagonista de A hora da estrela, ouviria

    pelas praas de So Paulo, meio sculo depois). So essas concomitncias que nos permitiriam falar de

    um saber sagital (Foucault), aquilo que define a fico em contraponto com a fbula, ou diagonal (como

    preferem Caillois ou Arendt). No confundir com o conceito arlequinal, de Mrio de Andrade, porque

    nele o losango, de remota extrao futurista, aponta sempre, como vimos, fuso homognea.

  • 11

    Caillois dedica um livro, Medusa & Cia29, de cujo proveito os Seminrios de Lacan daro farto testemunho, na discusso acerca do anamorfismo da imagem, idia que ainda opera, atualmente, mesmo que sem reivindicao formal, na semelhana por anacronismo de Didi-Huberman30. Com efeito, Caillois aproxima duas figuras suplementares, o jogador de xadrez e o detetive, porque compreende que assim se consolida a identidade entre o jogo e a modernidade, como fuso ambivalente entre o jogo e o poder. No seu texto sobre Mendeleiev, por exemplo, prope a tabela de elementos como um tabuleiro real ou virtual, maneira dos tabuleiros-cidades de Vieira da Silva, o que confirma, na diferena, a ntima unidade do universo, a ordo rerum analisada por Mauss, a signatura rerum proposta por Agamben. No , em suma, na densidade literria da capital do sculo XIX Paris, o mito moderno seno na experincia esttica ps-literria, a de Babel31, que se encontra, portanto, o n entre a proto-cena e a histria, segundo admite o prprio Caillois no prefcio de 1978 a Babel. Nos estudos pioneiros sobre mimetismo, o autor buscava a relao entre a histria e a Ur-histria, ao passo que, em Babel, passou a se sentir atrado e, ao mesmo tempo, alarmado por uma trilogia funesta, o orgulho, a confuso e a conseqente runa da literatura que advm com a ps-histria, o que levou-o a investigar as leis de economia geral do mundo32. Em outras palavras, a equao literria modernista lamentava que o epos moderno ou at mesmo nacional casse no esquecimento. A leitura ps-literria celebrava, no entanto, que assim fosse. A primeira alternativa queria realizar a literatura sem suprimir a instituio, ao passo que a segunda buscava suprimir a literatura sem chegar a institucionaliz-la. Ora, essa desconstruo da metafsica a que Caillois chama de Babel parte de trs noes bsicas, sua idia de nao como uma guerra de discursos, a definio de sujeito como acefalidade pulsional e a lgica da repetio como simulacro vertiginoso, idias que se desdobraro em vrias outras vertentes, que no desdenham o emblema nem a cifra ludica barrocas, presentes no programa situacionista33, bem como nas fices de Lezama Lima ou

    29

    Cf. CAILLOIS, Roger - Medusa y Ca: pintura, camuflaje, disfraz y fascinacin en la naturaleza y el

    hombre. Trad. Manuel F. Delgado. Barcelona, Seix Barral, 1962. 30

    Encore faut-il reconnatre lessentielle vitalit des survivances et de la mmoire en gnral lorsquelle trouve les formes justes de sa transmission. Alors se dgagerait, dans cette combinaison gomtrique du

    retrait et du non-repli, ce que Arendt nomme superbement une force diagonale, qui diffre des deux

    illimites quant leur origine, lune venant dum pass infini et lautre dum futur infini; mais, bien quelles naient pas de commencement connu, elles ont un point daboutissement, celui o elles se heurtent les forces antagonistes, mais elle serait infinie en ce qui concerne sa fin tant le rsultat de laction concerte de deux forces dont lorigine est linfini. Cette force diagonale, dont lorigine est connue, dont la direction est dtermine par le pass et le futur, mais dont la fin dernire se trouve linfini, est la mtaphore parfaite pour lactivit de la pense. DIDI-HUBERMAN, Georges Survivance des Lucioles. Paris, Minuit, 2009, p.132. Para Didi-Huberman a questo da origem no

    seno a emergncia, em sua diferena, dos sujeitos representados, na imagem, e o modo de sua exposio,

    o que desloca o foco do problema da representao em direo repetio, no coincidncia de si para

    consigo. Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges - Peuples exposs, peuples figurants in De(s)gnerations, n 9, Paris, set 2009, p. 7-17. 31

    CAILLOIS, Roger Babel. Prced de Vocabulaire esthtique. Paris, Gallimard, 1978, p.103-373; IDEM Chroniques de Babel. Paris, Denel / Gonthier, 1981. 32

    IDEM Babel , op. cit., p.14-5. 33

    La distinction centrale quil faut dpasser, cest celle que lon tablit entre le jeu et la vie courante, le jeu tant tenu pour une exception isole et provisoire. Il ralise, crit Johan Huizinga, dans limperfection du monde et la confusion de la vie, une perfection temporaire et limite. La vie courante, conditionne jusquici par le problme des subsistances, peut tre domine rationnellement cette

  • 12

    Sarduy, em Cuba, ou as de Manuel Puig e Copi, na Argentina (ou, melhor dizendo, no exlio dela). Josefina Ludmer definiu, alis, algumas caractersticas dessa cidade bablica, qual ela prefere chamar de ilha urbana.

    La ciudad del presente como la sociedad y a la vez como una teora de la divisin global. Y no slo la ciudad imaginaria de Angosta (do romance de Abad Faciolince) con sus sektores. La Habana, Mxico, Bogot, Medelln, Caracas, Santiago, Lima, San Pablo, Buenos Aires las ciudades latinoamerianas de la literatura son territorios de extraeza, miedo y vrtigo con cartografas y trayectos que marcan zonas y lmites, entre fragmentos y ruinas. El nombre de la ciudad puede llegar a vaciarse (como pueden vaciarse la narracin o los sujetos de las ficciones) y desaparecer, y entonces el trayecto, el cruce de las fronteras, y el vrtigo, son los de cualquier ciudad o los de una ciudad. 34

    possibilit est au coeur de tous les conflits de notre temps el le jeu, rompant radicalement avec un temps et un espace ludiques borns, doit envahir la vie entire. La perfection ne saurait tre sa fin au moins dans

    la mesure o cette perfection signifie une construction statique oppose la vie. Mais on peut se proposer

    de pousser sa perfection la belle confusion de la vie. Le baroque, quEugnio dOrs qualifiait, pour le limiter dfinitivement, de vacance de lhistoire, le baroque et lau-del organis du baroque tiendront une grande place dans le rgne prochain des loisirs. DEBORD, Guy Contribution a une definition situationniste du jeu in Internationale Situationniste, n 1, jun. 1958, p.10. E ainda: INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Seccin inglesa La revolucin del arte moderno y el moderno arte de la revolucin. Logroo, Pepitas de calabaza, 2007. 34

    LUDMER, Josefina Territorios del presente. En la isla urbana in Pensamiento de los confines, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, n 15, dez. 2004, p.104. O corpus ficcional de bablicas

    ilhas urbanas montado por Ludmer inclui ABAD FACIOLINCE, Hctor Angosta. Buenos Aires, Seix Barral, 2004 [2003 Colombia]; AIRA, Csar La villa. Buenos Aires, Emec, 2001 [Argentina]; BELLATIN, Mario Saln de belleza. Lima, Jaime Campodnico Editor, 1994 [Per-Mxico]; IDEM Perros hroes. Tratado sobre el futuro de Amrica Latina visto a travs de un hombre inmvil y sus

    treinta Pastor Belga Malinois. Buenos Aires, Interzona, 2003; CABALLERO, Atilio La ltima playa. La Habana, Ediciones Unin, 1999 [Cuba]; CASTELLANOS MOYA, Horacio El asco. Thomas Bernhard en San Salvador. San Salvador, Editorial Arco Iris, 1997 [El Salvador]; CUCURTO,

    Washington [Santiago Vega] Cosa de negros. Buenos Aires, Interzona, 2003 [Argentina]; FRANCO, Jorge Paraso Travel. Bogot, Planeta Colombiana, 2001 [Colombia]; GUTIRREZ, Pedro Juan El rey de La Habana. Barcelona, Anagrama, 1999 [Cuba]; LISCANO, Carlos El camino de Ithaca. Montevideo, Cal y Canto, 1997 [Uruguay]; MALCA, Oscar Al final de la calle. 4. ed. Lima, Libros de Desvo, 2000 [Per]; MELLA, Daniel Derretimiento. Montevideo, Trilce, 1998 [Uruguay]; PONTE, Antonio Jos Contrabando de sombras. Barcelona, Mondadori, 2002 [Cuba]; TRAS, Fernanda La azotea. Montevideo, Trilce, 2001 [Uruguay] e VALLEJO, Fernando La Virgen de los Sicarios. Bogot, Alfaguara, 1994 [Colombia]. Poderamos acrescentar dois outros romances disponveis em portugus,

    CHEJFEC, Srgio Lugar sinistro. Trad. Marcelo Barbo. So Paulo, Amauta, 2009 [Boca de lobo, Argentina, 2000] e KOHAN, Martin Cincias Morais. Trad. E. Brando. So Paulo, Companhia das letras, 2008 [Argentina, 2006]. Ou a polmica experincia narrativa de Bruno Morales, pseudnimo de

    Sergio Di Nucci, em Bolivia construcciones [Buenos Aires, Sudamericana, 2007], enxertando um objet

    trouv, 50 pginas de Nada, de Carmen Laforet, romance premiado com o Nadal, em 1944, por narrar a

    migrao urbana na Barcelona franquista. E provavelmente Montserrat de Daniel Link [Buenos Aires,

    Mansalva, 2006] ou Ocio, de Fabin Casas [Buenos Aires, Santiago Arcos, 2006], situado na miudeza

    cotidiana de Boedo, o bairro da literatura proletria nos anos 20. Sem esquecer, no Brasil, dos Romances

    e contos reunidos de Joo Gilberto Noll [So Paulo, Companhia das Letras, 1997], da srie Inferno

    provisrio de Luiz Ruffato, em cinco volumes [Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo, Vista parcial

    da noite e O livro das impossibilidades] ou O Sol se Pe em So Paulo, de Bernardo Carvalho [So

    Paulo, Companhia das letras, 2007].

  • 13

    O artista aceflico dessa cidade esvaziada, dessa ilha urbana, dessa Babel, algum voltado para si mesmo, como para a sua prpria fantasmagorizao, na medida em que espera o absolutamente outro, o heterolgico de si, operando em seu redor a convergncia de duas idias antagnicas: procura, de um lado, a normativa de Lvi-Strauss sobre o fato social total de Mauss (vivenci-lo como nativo em vez de analis-lo como etngrafo), mas busca, ao mesmo tempo, seu complemento antagnico, a revoluo psicolgica apregoada por Caillois, ao fingir-se estrangeiro sociedade em que vive35. Essa vertigem intelectual, que prepara o espectro de Derrida, a estratgia de uma hantologia desconstrutiva36, no hesita, entretanto, em reconhecer, na nova situao, a auto-imunidade da prpria democracia, uma vez que, em Babel, a vida est suspensa ao poder soberano do sagrado e por isso mesmo que a prpria cidade oscila, numa paronomsia j apontada por Roland Barthes, entre o centre-ville e o centre-vide37.

    35

    CAILLOIS, Roger - Prefcio a MONTESQUIEU - Oeuvres Compltes. Paris, Gallimard, 1949, p.xiii. 36

    Cf.HEIMONET, Jean-Michel Politiques de lcriture, Bataille / Derrida. Le sens du sacr dans la pense franaise du surralisme nos jours. Paris, Jean-Michel Place, 1989. 37

    Toutes ses villes [as do Ocidente] sont concentriques; mais aussi, conformment au mouvement mme de la mtaphysique occidentale, pour laquelle tout centre est le lieu de la vrit, le centre de nos villes est

    toujours plein: lieu marqu, cest en lui que se rassemblent et se condensent les valeurs de la civilisation: la spiritualit (avec les glises), le pouvoir (avec les bureaux), largent (avec les banques), la marchandise (avec les grands magasins), la parole (avec les agoras: cafs et promenades): aller dans le centre, cest rencontrer la vrit sociale, cest participer la plnitude superbe de la ralit. La ville dont je parle (Tokyo) prsente ce paradoxe prcieux: elle possde bien un centre, mais ce centre est vide. Toute la ville

    tourne autour dun lieu la fois interdit et indiffrent, demeure masque sous la verdure, dfendue par des fosss deau, habite par un empereur quon ne voit jamais, cest--dire, la lettre, par on ne sait qui. Jounellement, de leur conduite preste, nergique, expditive comme la ligne dun tir, les taxis vitent ce cercle, dont la crte basse, forme visible de linvisibilit, cache le rien sacr. Lune des deux villes les plus puissantes de la modernit est donc construite autour dun anneau opaque de murailles, deaux, de toits et darbres, dont le centre lui-mme nest plus quune ide vapore, subsistant l non pour irradier quelque pouvoir, mais pour donner tout le mouvement urbain lappui de son vide central, obligeant la circulation un perptuel dvoiement. De cette manire, nous dit-on, limaginaire se dploie circulairement, par dtours et retours le long dun sujet vide. Cf. BARTHES, Roland Lempire des signes. Paris, Flammarion, 1984, p.44-46. Reaparece, sob outra perspectiva, a tenso entre um Ocidente

    ladrilhador e um Oriente semeador, disseminador, aventada por Srgio Buarque de Holanda, em Razes

    do Brasil, contemporneamente s pesquisas de Duchamp e Benjamin.