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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DOUTORADO EM SOCIOLOGIA TERESA CRISTINA FURTADO MATOS RÁDIOS COMUNITÁRIAS: SINTONIA DISSONANTE E “AUTO-IMAGEM” FORTALEZA –CE 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

TERESA CRISTINA FURTADO MATOS

RÁDIOS COMUNITÁRIAS: SINTONIA DISSONANTE

E “AUTO-IMAGEM”

FORTALEZA –CE

2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

TERESA CRISTINA FURTADO MATOS

RÁDIOS COMUNITÁRIAS: SINTONIA DISSONANTE E “AUTO-IMAGEM”

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Jr.

FORTALEZA –CE

Março de 2006

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Teresa Cristina Furtado Matos

Rádios comunitárias: sintonia dissonante e “auto-imagem”

Tese defendida e aprovada, em ________ de março de 2006, pela banca

examinadora constituída pelos professores:

Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr. (orientador)

Profª. Drª. Márcia Vidal Nunes

Profª. Drª. Catarina Tereza Farias de Oliveira

____________________________________________________________ Prof. Dr. Gilmar de Carvalho

Profª. Drª. Maria Lina Teixeira Leão

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Para o sertão (meu pai) e o mar (minha mãe).

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Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal, Capes, pelo auxílio financeiro que tornou possível à realização deste trabalho. Ao meu orientador, Ismael Pordeus, pela confiança depositada e autonomia a mim conferida. Aos professores, Gilmar de Carvalho, Maria Lina L. Teixeira, Catarina Oliveira e Márcia Vidal, por terem aceito o convite para compor a bancar e pelas contribuições que certamente darão na análise deste trabalho. À professora Auxiliadora Lemenhe, sua atenção e generosidade em meus primeiros momentos no curso me marcaram profundamente. Meu sincero agradecimento. Aos professores Jacob Carlos Lima, Moacir Palmeira e Domingos Abreu, que em diferentes momentos leram e comentaram o que viria a ser essa tese. Aos professores Gilmar de Carvalho e Márcia Vidal, pelos valiosos comentários quando da realização do exame de qualificação. À Linda Gondim, pelo interesse e incentivo que sempre demonstrou na realização deste trabalho. À Márcia Vidal, que depois da qualificação me cedeu um conjunto de raros documentos sobre a história das rádios comunitárias em Fortaleza. Aos colegas que leram e comentaram as sucessivas versões deste texto: Ângela Julita, Iara Araújo, Roseane Nicolau, Maria Meirice e Lindomar Coelho. As sugestões de vocês fizeram deste um trabalho muito melhor. A minha turma de doutorado. Meninas, vocês foram e são como uma canção de Paulinho da Viola: tranqüila, honesta e elegante. O companheirismo de vocês foi a mais rica experiência deste período de minha formação. Ao “pessoal lá de casa”. Vocês foram ótimos nesse tempo todo. Perdoaram minhas omissões e me cobraram quando necessário. O afeto de vocês está em cada página deste texto. À família Brito Sousa. Pelo apoio e a torcida em mais essa empreitada. A Vancarder Brito Sousa. Porque eu não teria conseguido sem você. Seu apoio nos momentos finais da escrita foi decisivo, sua presença percorre esse trabalho, e tem tornado minha vida muito mais feliz. À Nádia, Lenildo, Ângela, Violeta, Sandra Rocha e Meirice. A amizade de vocês fez estes anos muito mais leves.

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À Daniele Nilin. As nossas conversas tornaram a angústia desse momento menos solitária. À minha amiga Evanira, que um dia impediu que a agência dos Correios fechasse antes que eu postasse minha inscrição de seleção ao doutorado. Essa tese não existira sem aquele seu gesto. Minha gratidão por todos os auxílios e meu enorme carinho por você, César e toda a família. À Catarina Oliveira, minha amiga e companheira na visita à Rádio Favela, a principal articuladora de nossa estada lá. Tenho aprendido muito com nossa convivência profissional e afetiva. À Aimbere, pelo auxílio na transformação de problemas burocráticos em soluções. A todos das rádios comunitárias visitadas que me receberam tão generosamente, prestando informações valiosas sobre suas experiências e percepções. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desse trabalho.

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Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era um que via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso com essa dupla existência da verdade.

Fernando Pessoa

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................11

1. A “auto-imagem” e a imagem do outro: o conflito no campo da radiofonia comunitária...............................................................................................................22

1.1 Transformações globais, mudanças locais..........................................................24

1.2 Conflito e auto-imagem........................................................................................30

1.3 A noção de comunidade e as rádios comunitárias...............................................36

1.4 Conflito, visibilidade e espaço público..................................................................39

1.5 A formação da auto-imagem: entre a ‘cultura comercial popular’ e a ‘cultura

alternativa’..................................................................................................................42

1.6 O conflito entre as emissoras comunitárias..........................................................46

2. O rádio: a história e os usos sociais..................................................................51

2.1 Rádio e movimentos populares............................................................................57

2.2 A inspiração das rádios livres européias..............................................................61

2.3. A gênese das rádios comunitárias......................................................................64

2.3.1 As “radiadoras”..................................................................................................65

2.3.2 Rádios livres no Brasil.......................................................................................66

2.3.3 O processo de concessão do serviço de radiodifusão

comunitária.................................................................................................................74

2.4 As rádios comunitárias em Fortaleza...................................................................79

2.5 o cenário das comunicações e as rádios comunitárias........................................96

2.6 A Abert, a Acert e as rádios comunitárias..........................................................102

3. A construção dos discursos: imprensa e rádio comunitária.........................112

3.1 A diferença.........................................................................................................113

3.2 “Um exagero de democratização”: As rádios comunitárias e a imprensa

cearense...................................................................................................................120

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3.3 “Não a censura, não ao silêncio”: O jornal “Abraço no

Ar”.............................................................................................................................134

3.4 O que deve ser uma rádio comunitária..............................................................149

3.5 As rádios comunitárias na Internet.....................................................................151

3.5.1 “Rádios do mal”? ............................................................................................154

3.5.2 Indicações ao Ministério das Comunicações..................................................157

3.5.3 Os casos de repressão: o fechamento e lacre de rádios comunitárias...........158

3.5.4 As reuniões do Conselho de Comunicação....................................................160

4. Rádios comunitárias: em busca do significado...............................................................................................................163

4.1 “A Rádio Favela é o que há”...............................................................................165

4.2 A Rádio Comunidade: “por que comunitário, comunidade é tudo a mesma

coisa”........................................................................................................................177

4.3 A Rádio Círculo FM ...........................................................................................187

4.4 103.5, A Rádio Comunitária do Antônio Bezerra................................................190

4.5 As definições e a construção da auto-imagem das rádios

comunitárias.............................................................................................................201

Considerações finais.............................................................................................206 Referências bibliográficas.....................................................................................212

Anexos.....................................................................................................................223

Anexo 1- Mapa de Fortaleza- Rádios visitas/pesquisadas.......................................224

Anexo 2 (a) – Informativo CEPOCA – Outubro de 1990..........................................225

Anexo 2 (b) – Informativo CEPOCA – Fevereiro de 1991........................................227

Anexo 3 – Quadro de diferenciação das radiocom frente as rádios

comerciais................................................................................................................229

Anexo 4 – Quadro de matérias publicadas pelo “Boletim Abraço no Ar” e pelo “jornal

Abraço no Ar” entre 1997-1999................................................................................231

Anexo 5 –“Código de ética das rádios comunitárias”...............................................235

Anexo 6 – “Crônica de Itamar”.................................................................................237

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RESUMO

O presente trabalho analisa o conflito existente no campo da radiofonia comunitária em torno dos sentidos do que seja uma “emissora comunitária”. A partir da categoria “auto-imagem”, entendida como uma construção relacional, se discute o processo de formulação da imagem das rádios comunitárias, considerando sua relação com diversos segmentos e interesses sociais. A pesquisa se centra, principalmente, no universo de emissoras comunitárias da cidade de Fortaleza-CE, e busca compreender o ambiente de disputas numa perspectiva de longo curso, desde a fundação do movimento de rádios comunitárias na cidade, que ocorre a partir dos anos 1980, até hoje, aproximando-o da trajetória de desenvolvimento dos meios de comunicação no Brasil. Palavras-chave: rádios comunitárias, comunicação, conflito, auto-imagem.

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ABSTRACT The present work evaluates the struggle found within the field of community radios in relation to the meaning of what a “community radio” is. Beginning with the category “self-image”, considered as a relational construct, the process of community radios’ image built-up is discussed considering its relationship to several segments and social concerns. The research is directed mainly towards the community radios’ universe in the city of Fortaleza, Ceara, and aims at understanding the struggle environment considering a long course approach extending from the founding movement of community radios that took place in 1980 in the city to present day bringing it closer to the development path of the mass media in Brazil. Keywords: community radios, communication, conflict, “self-image”.

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa se propõe a compreender o conflito em torno do conceito de

radiodifusão comunitária, a partir dos diferentes discursos produzidos sobre e pelas

emissoras comunitárias. A pesquisa se centra, principalmente, no campo das rádios

comunitárias da cidade de Fortaleza, Ceará.

A regulamentação da radiodifusão comunitária no Brasil data de pouco mais

de oito anos. Não é seu aparecimento que institui as primeiras experiências de

comunicação comunitária, mas sua criação significa um novo momento da

radiodifusão no país, na medida em que nela insere um novo sujeito, a

“comunidade”, e lhe reconhece o acesso a um canal de comunicação. Entretanto, o

processo não desenvolve seu curso de modo tranqüilo, antes em meio a uma

turbulenta redefinição de posições e poderes. Afinal, quem é a comunidade? A

própria questão do reconhecimento do direito e a definição de quais grupos devem

ou não ter acesso a este veículo de comunicação, e ainda que perfil deve ter uma

emissora comunitária passam a compor a pauta dos debates desde então.

As pressões econômicas e políticas que delinearam os vínculos entre

Estado, grupos econômicos e políticos marcam o sistema de concessões de canais

de rádio e televisão no Brasil e respondem por um dos elementos do conflito: a

escassez de acesso aos meios de comunicação (DEL BIANCO, 1999; NUNES,

2003). A emergência de um novo personagem nessa narrativa supõe a partilha de

um espaço antes exclusivamente loteado pelos grupos acima citados.

Desse modo, a trajetória política do trato com a questão das comunicações

no país constrói uma situação econômica e política que alija do direito de fazer rádio

uma grande quantidade de agentes, principalmente os movimentos sociais. Quando

em fevereiro de 1998 o Estado brasileiro reconhece e regulamenta a existência das

rádios comunitárias (radiocom) através da Lei 9612/98 que institui o “Serviço de

Radiodifusão Comunitária”, o reconhecimento aparece como esperança de ruptura

com o modelo de exclusão do acesso aos meios de difusão. Os grupos que

pleiteiam um destes canais têm de ser identificados através da classificação

comunidade/comunitária.

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Todavia, o próprio processo de formulação da legislação é marcado por uma

série de confrontos entre representantes das emissoras comerciais e das rádios

comunitárias, e entre os representantes das radiocom e o Estado, agente de

controle e regulação da política de comunicações no país.

Os personagens dessa história representam interesses antagônicos. Por um

lado, as emissoras comerciais, desde o processo de negociação do texto da Lei no

Congresso Nacional1 e com a finalidade de manterem sua posição de referência e

domínio da radiofonia nacional, defendem a limitação do número de radiocom e lhes

impõe restrições de funcionamento. Por outro lado os representantes das radiocom

querem o reconhecimento legal das emissoras comunitárias, o que as colocaria em

outra posição que não a de infratoras da legislação de telecomunicações do país2,

concedendo-lhes o direito de transmissão.

Porém, se a legislação representa um avanço porque reconhece o “direito de

antena” (COELHO NETO, 2002), ou seja, a possibilidade de transmitir informações

pelo espectro eletromagnético a grupos antes dele excluídos; de outro lado vem

disciplinar e institucionalizar o conflito em torno do direito de fazer radiodifusão

comunitária no país. Antes da existência da Lei a reivindicação dos que faziam rádio

comunitária se concentrava na busca pelo reconhecimento deste direito. Depois de

sua instituição a questão passa a ser o aperfeiçoamento da Lei e a definição das

fronteiras de quem pode ou não ser por ela beneficiado.

Foi no decurso do ano de 1999 que passei a estabelecer contato com o

universo das radiocom de Fortaleza, durante a realização do trabalho de campo para

a redação de minha dissertação de mestrado3. Naquela ocasião realizei pesquisa

sobre a Rádio Comunitária Mandacaru FM, localizada no bairro Ellery, na região

oeste da capital cearense. A pesquisa lidava com a questão da organização e da

sociabilidade presente nas rádios comunitárias através da noção de dádiva

(GODBOUT; CAILLÉ, 1999; MAUSS, 1988) e, tendo como pressuposto essa

1 “A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática, encarregada de debater este assunto [o texto da lei de radiodifusão] tinha em 1996, 51 membros, 40 dos quais eram concessionários de rádio e televisão” (COELHO NETO, 2002, p. 29). 2 Como antes de 1998 não havia legislação específica para radiodifusão comunitária qualquer atividade deste tipo era considerada crime federal, passível de punição aos seus infratores. 3 A dissertação intitulada “Memória e Dádiva em uma rádio comunitária” foi defendida em agosto de 2000 junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.

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sociabilidade, buscava entender como se efetua a relação entre rádio e memória

(HALBAWACHS, 1990; NORA, 1993) em uma emissora deste tipo (MATOS, 2000).

Naquele momento, embora as atenções estivessem voltadas para a questão

da dádiva e da memória, chamou-me atenção uma situação de disputa entre uma

gama de radiocom que então existiam na cidade. Ser ou não ser uma rádio

comunitária era uma questão presente nas falas dos que faziam e discutiam o

campo da radiodifusão comunitária na cidade de Fortaleza.

A observação daquela situação parecia indicar a intensa movimentação de

um campo em expansão, o da comunicação comunitária, em que se buscava e se

disputava novas definições e o reconhecimento da e para a comunicação nele

produzida.

Aquela expansão foi registrada pela Associação de Rádios Comunitárias-

Centro de Produção em Comunicação Alternativa, a Arcos-CEPOCA. A entidade

congregava as radiocom em Fortaleza à época, e hoje se encontra desativada.

A entidade considerava o crescimento numérico das emissoras como uma

ameaça a um projeto que definia um modelo de radiocom fundada nos “princípios da

pluralidade, da democracia, da gestão coletiva, do não correr atrás do lucro, da

vontade de democratizar a sociedade, etc” 4, em consonância com o movimento

nacional de radiocom. As especulações que eu também ouvia na Rádio Mandacaru

sobre o aparecimento de novas emissoras, sua localização e sua filiação a

determinados grupos políticos ou econômicos, confirmavam minha suspeita sobre a

relação entre nascimento de novas emissoras e o surgimento de novos agentes e a

busca de definição ou de redefinição de fronteiras e modelos para a comunicação

comunitária radiofônica.

Assim, a heterogeneidade dos discursos revelava posições e interesses

diversos. O cenário da radiofonia comunitária na cidade indicava uma situação de

conflito. De acordo com Pasquino (2004, p. 255) o conflito pode ser entendido como

“uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que

4 Fala presente em um dos textos do jornal “ABRAÇO no Ar”, de novembro de 1997. O jornal era o informativo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, entidade a qual a Arcos-CEPOCA era então filiada.

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implica choques para o acesso e distribuição de recursos escassos”. Observando

essa ambiência nasceu para mim a questão que norteou esse trabalho: como se

organiza e em função de que elementos se dão as disputas no espaço de atuação

das rádios comunitárias na cidade de Fortaleza?5

Penso que este conflito resulta de uma complexa trama. Como já mencionei,

a histórica concentração dos meios de comunicação no Brasil e o delicado problema

da democratização destes é um dos fios dessa malha, cenário onde se desenvolve

uma série de outros elementos, como a relação da comunicação comunitária com o

mercado, representado pelas rádios comerciais e seu modelo de fazer rádio; a

relação com o Estado e seus mecanismos de controle; e ainda a relação com os

ouvintes, que passam a ser disputados com as tradicionais rádios comerciais.

Em última instância, a expansão das rádios comunitárias encontra um limite

físico representado pelo “dial”, que comporta apenas um número limitado de

emissoras, sob pena de interferência do som de umas sobre as outras. Em outras

palavras não há espaço no ar para todos os que desejarem montar uma emissora

comunitária, mesmo que eventualmente atendessem a todos os requisitos legais.

Porém, um outro aspecto da questão se refere à preferência do “dial”6, destinada às

emissoras comerciais e educativas, estas com amplo espaço para transmissão.

Atualmente, o espaço da radiofonia comunitária institui ainda uma outra

instância de debate, que não opõe apenas rádios comunitárias a rádios comerciais,

mas comunitárias a comunitárias. No centro da oposição está o reconhecimento

como uma radiocom. O prêmio dessa disputa parece ser a possibilidade de poder ou

não fazer rádio legalmente, bem como a própria construção da legitimidade da

radiofonia comunitária. Aqui as questões do que significa ser uma emissora

comunitária, qual o seu papel social, para quem ela deve falar, como ela deve falar,

quais valores devem pautar sua produção, e que tipo de organização deve ter

passam a ser fundamentais, pois desempenham funções de afirmação,

reconhecimento e legitimação.

5 Essa questão parece revelar uma das faces da estrutura de comunicação do Brasil e das atuais transformações que estão em curso. 6 “Dial” é o dispositivo presente nos aparelhos de rádio (os rádio receptores), cuja função é sintonizar uma determinada freqüência.

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A perspectiva adotada neste trabalho pressupõe que a compreensão da

situação de disputa exige considerar uma série de problemas, instâncias, agentes e

interesses, e as combinações entre estes elementos suscitam algumas questões:

Como a história dos meios de comunicação no Brasil afeta o campo da comunicação

comunitária? Em que medida essa história é um dado constitutivo da situação de

disputa?

Qual o tipo de apropriação vem sendo feito do campo da radiofonia

comunitária em Fortaleza? Quais os grupos e quais os novos significados acionados

nesse processo de apropriação?

Grande parte destas questões passa pela construção da imagem das rádios

comunitárias. Os investimentos na elaboração de uma definição, o que implica a

aceitação de distinções e singularidades das rádios comunitárias frente às rádios

comerciais, cujos parâmetros não são consensuais, são parte importante da

dinâmica do conflito.

Acredito que a construção da auto-imagem das radiocom articula diferentes

níveis: da relação com o mercado, da relação com o Estado e da autodefinição

destas rádios. A compreensão da auto-imagem se ampara aqui em Norbert Elias e

Scotson (2000), autores que discutem o papel desta como forma de participação em

situações conflituosas e de disputa de poder. O termo “auto-imagem” é usado pelos

autores para definir a autoconsciência dos grupos, formada nas configurações

sociais e que serve, simultaneamente, como parâmetro de avaliação de si e dos

outros, e balizadora das ações sociais.

A questão da imagem é ferramenta fundamental dos conflitos no campo

intra-radiocom e nas relações entre as rádios comunitárias e as rádios comerciais.

Além de exercer papel considerável nas pressões feitas pelas radiocom sobre o

Estado, representado pelos órgãos de controle e fiscalização, é a partir da auto-

imagem que fronteiras e distinções são definidas.

Assim, também o é a qualificação positiva ou negativa das funções e modos

de fazer rádio: suas relações com a comunidade, a sua programação e formas de

organização são discursivamente construídas enquanto auto-imagem. Nestas

funções a auto-imagem é um dos elementos postos em cena na defesa de posições

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e tem papel importante nos processos de publicização das rádios e de seu trabalho

junto lugares onde se localizam.

E é no debate público que esta auto-imagem acaba por desempenhar um

papel político dentro do jogo de forças de transformação ou manutenção do espaço

da comunicação social no Brasil. Além do que, os conflitos são processos que, em

grande medida, operam a contraposição e negociação de sentidos e essa dinâmica

se torna perceptível a partir da noção de auto-imagem.

E com quais elementos se constrói a luta pela definição e legitimação da

radiofonia comunitária?

Antes de 1998, quando as rádios comunitárias transformam-se em realidade

oficial no Brasil, uma série de experimentos já conformou a trajetória destas rádios,

sob a influência de diversos movimentos sociais na América Latina. Estas

experiências se ligam a sindicatos, igrejas, movimentos populares ou a ação

espontânea de jovens que ousaram criar programas radiofônicos e colocá-los no ar.

A situação de ilegalidade marcou a maior parte destas experiências que se

autodefiniram ou foram definidas ao longo dos últimos 50 anos como popular, livre,

alternativa e comunitária (COGO, 1998).

As rádios comunitárias aparecem como um novo momento dessa trajetória.

Herdeiras da tradição que se constitui na confluência da comunicação livre,

alternativa e popular, as rádios comunitárias no Brasil passam a construir uma

identidade própria. Entretanto, com a expansão deste campo, principalmente a partir

de 1998, a construção dessa identidade e da legitimação passa por um processo

conflituoso. Afinal, o que é a comunidade para cada emissora? E o que é

comunicação comunitária?

As radiocom tratam o tipo de comunicação que produzem e sua relação com

os ouvintes a partir da idéia de comunidade. Amparadas nesta noção e no que ela

significa quando se trata de radiofonia, elas constroem uma autodefinição do que

seja uma emissora comunitária, já que sobre ela assenta a legitimação de uma

forma de fazer rádio. E neste ambiente a idéia de comunidade aparece como uma

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idéia política7. A forma como esta noção de comunidade é significada e apropriada

pelas radiocom reverbera as diferenças e a heterogeneidade que abrigam as

experiências neste campo e acabam por gerar uma situação de conflito.

A classificação “rádio comunitária” sugere também a articulação entre a

noção de lugar e o veículo rádio. Esta noção ganha espaço na década de 1990,

amparada pelas discussões sobre o processo de globalização e a respectiva

valorização do espaço local (BAUMAN, 2003). As repercussões deste processo

parecem se fazer sentir no caso das radiocom, principalmente na fase mais recente

de sua história, na medida em que a denominação rádio comunitária passa a

substituir as demais denominações existentes, principalmente “rádios populares”.

Em Fortaleza, onde as iniciativas espontâneas de uso de alto-falantes como

emissoras radiofônicas ganham impulso em meados da década de 1980 pela ação

de um projeto desenvolvido em parceria pela Prefeitura Municipal de Fortaleza e

pela Universidade Federal do Ceará (através de projeto da Professora Márcia Vidal

do Curso de Comunicação Social), para a montagem de “rádios populares”, também

se verifica essa mudança de denominação.

Na passagem da década de 1980 para 1990 a denominação muda. E sobre

os diferentes sentidos da noção de comunidade e da comunicação comunitária os

discursos irão se articular.

Na prática, as vivências e interpretações da idéia de comunidade, que

ampara a radiofonia comunitária, têm matizes variados: rádios ligadas a grupos

religiosos, rádios pertencentes a grupos políticos específicos, rádios vinculadas a

entidades comunitárias e rádios com perfil comercial.

Alguns trabalhos (NUNES, 2003; FUSER, 2002, entre outros) ensaiam a

formulação de categorias capazes de classificar e compreender essa

heterogeneidade de formatos de rádio que tomam o “dial” das cidades brasileiras, e

que se autodefinem como emissoras comunitárias. Além de compreender os

formatos em que atualmente se apresentam estas categorias, elas podem se

7 Na medida em que seu significado é usado em uma arena de disputa de poder. Segundo Bobbio (2004, p.954), “o conceito de política, entendida como forma ou atividade ou práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder”.

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constituir em parâmetros para a compreensão dos discursos de auto-

reconhecimento. Já que todas as rádios vão se definir como rádios comunitárias, são

diferentes matizes de discursos e as ações por trás de cada concepção do que seja

uma rádio comunitária que vão interessar.

Foi a leitura de uma matéria jornalística8 que me revelou pela primeira vez a

existência das radiocom. Aspectos sobre esse tipo de comunicação e o seu

significado social me foram pela primeira vez apresentados lá. Pouco tempo depois

tomei as radiocom como objeto de pesquisa (MATOS, 2000), como já mencionei.

Participações em encontros de rádios comunitárias, pesquisa de campo sobre as

rádios comunitárias de Fortaleza-Ce (MATOS, 2000) e leituras diversas me

permitiram entender melhor este universo, indicando inclusive a atual direção de

meu interesse, a questão do conflito. Essa perspectiva relacional pressupõe que o

cruzamento entre estes diferentes agentes e elementos permitiriam perceber como

se processa a disputa e sobre o que ela opera. Para dar conta deste intento um

variado circuito de fontes foi percorrido.

Para apreender a auto-imagem das rádios comunitárias, pareceu-me

importante trilhar o caminho pelo qual as rádios foram vistas e discutidas pela

imprensa local. A composição de um catálogo de matérias dos jornais locais diários

“O Povo” e “Diário do Nordeste” permitiu discutir essa questão. Os esquemas de

percepção envolvidos são indicativos dos sentidos de legitimidade atribuídos ou

negados às radiocom. Ao mesmo tempo, a compreensão que as próprias rádios,

enquanto movimento, desenvolvem sobre a comunicação comercial é reveladora do

lugar social em que se percebem. O jornal “ABRAÇO no Ar” da Associação

Brasileira de Radiodifusão Comunitária – ABRAÇO permitiu perceber a construção

dessa interpretação.

Outra fonte para a compreensão dos esquemas de percepção dos grupos

que fazem a radiofonia comunitária foi a rede mundial de computadores. Um

exemplo dessa possibilidade me surgiu ao encontrar uma lista de discussão

denominada “Rádios livres”9, espaço de debate de diferentes grupos sobre os rumos

8 A matéria intitulada “Escândalo no ar”, de Nivaldo Manzano, publicada pela Revista “Caros Amigos” (ano 1, número 2, em maio de 1997), discorria sobre várias experiências de radiofonia comunitária existentes no Brasil. 9 Cujo endereço é [email protected].

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do movimento de rádios livres e comunitárias. Em grupos como esses a crítica

interna ao papel e ao perfil das rádios comunitárias se realiza de modo mais livre,

posto que eles não representem a fala oficial, como acontece nos jornais “ABRAÇO

no Ar”. Outras importantes fontes de informações também foram acessadas a partir

da Internet, principalmente dados do Ministério das Comunicações e Agência

Nacional de Telecomunicações (ANATEL), disponibilizados quase que

exclusivamente pela rede. Além destes, foram importantes os sítios da Associação

Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e a da Associação de

Emissoras de Rádio e Televisão (ACERT).

No que concerne às radiocom de Fortaleza, a grande maioria funciona sem

o aval da Lei de Radiodifusão Comunitária, ou seja, sem outorga. Os dados do

Ministério das Comunicações informam que apenas seis emissoras foram

autorizadas a funcionar na cidade, duas delas ainda com licenças provisórias. Mas

estas não são as únicas emissoras no ar.

Com a desativação da Arcos-CEPOCA em 2001, entidade representativa

das radiocom em Fortaleza, o acesso a este universo se tornou precário. Fatores

como a efemeridade, a localização geográfica, o tipo de técnica de irradiação

utilizada pelas emissoras, nem sempre acessíveis à escuta radiofônica10, além da

tensa relação com o Estado (representado pela ANATEL como agência reguladora e

a Policia Federal como agente repressor), tornaram tortuoso o processo de

mapeamento das rádios11.

Além disto, a rádio pesquisada anteriormente, e que poderia fornecer as

relações e o acesso ao universo das radiocom estava fechada. Meu primeiro contato

se deu, então, através de um antigo diretor da Arcos-CEPOCA. Informações sobre o

estado atual de desarticulação política das emissoras e da própria Arcos-CEPOCA

apareceram a partir de sua fala.

10 Algumas emissoras operam pelo sistema de alto-falantes ou caixinhas, tendo uma audiência restrita aos bairros ou ruas onde se localizam. Estas rádios irradiam seu som através de alto-falantes dispostos em algum ponto do bairro, ou através de caixas de som atadas aos postes de iluminação ou casas ao longo das vias de um bairro. 11 Através da audição do rádio, na faixa de freqüência modulada, identifiquei 19 emissoras não outorgadas no ar. Entretanto considero que esse número possa ser bem maior. Dado que o método de audição é bastante parcial, pois, dependendo da área da cidade onde é feita revela um conjunto de rádios mas pode omitir outras tantas. Isto porque a captação se dá apartir do sinal da emissora em relação à localização da escuta. A audição foi feita no Benfica, bairro próximo ao Centro da cidade.

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A impossibilidade de realizar o mapeamento através de uma entidade

congregadora apontou como solução para a escolha das emissoras o critério de

acessibilidade. Por esse processo fui recolhendo informações a partir de diferentes

informantes e fontes - uma das mais importantes o próprio aparelho de rádio - sobre

a existência e localização de emissoras pela cidade.

Visitas e entrevistas abertas ou semi-estruturadas também foram feitas.

Visitei as rádios comunitárias: “Paupina FM”, instalada no bairro da Paupina; “Rádio

Comunidade”, operando pelo sistema de caixas de som e situada no Bairro Dias

Macêdo; “Rádio Círculo FM”, instalada no bairro Granja Portugal; “Rádio Comunitária

do Antônio Bezerra”, situada no bairro de mesmo nome, e “Rádio Interativa FM”,

situada no bairro Novo Mondubim. Todas estas emissoras estão localizadas no

município de Fortaleza (ver anexo 1).

Visitei ainda a “Rádio Favela FM”, localizada em Belo Horizonte e

considerada uma das primeiras radiocom a operar em freqüência modulada (FM)12

no Brasil. A rádio é considerada uma referência para outras emissoras.

Também foram coletados dados junto à Agência Nacional de

Telecomunicações (onde realizei entrevista sobre o processo de fiscalização das

radiocom no Ceará) e ao Ministério das Comunicações. São documentos que

versam sobre a existência, regulamentação e fiscalização das radiocom no Brasil e

na cidade de Fortaleza. Visitas às páginas da ACERT (www.acert.org.br) e ABERT

(www.abert.org.br) na Internet também me forneceram informações sobre as rádios

filiadas e à visão das duas entidades sobre as rádios comunitárias.

A participação no grupo de pesquisa “Comunicação para a Cidadania”,

durante o XXVI INTERCOM - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação13

me permitiu a descoberta de um rico material produzido sobre o tema, além da

oportunidade de discutir a questão do conflito em torno da radiofonia comunitária.

12 FM é a modalidade de serviço de radiodifusão que opera na faixa de 87,8 MHz a 108 MHz, com freqüência modulada. 13 Realizado em Belo Horizonte - MG, de 02 a 06 de setembro de 2003.

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Assim, resultado de uma composição variada, estes dados alimentam a

discussão que se segue, mosaico das diferentes formas de ver e representar as

rádios comunitárias no Brasil.

A tese está dividida em quatro capítulos. O primeiro cumpre a função de

discutir e apresentar as categorias de análise utilizadas ao longo do trabalho, ao

mesmo tempo em que transformações culturais, econômicas e políticas que afetam

o universo de existência e significação das radiocom também são debatidas.

O segundo capítulo apresenta um histórico do rádio e seus usos sociais e

dentro dele a trajetória que constituiu o campo das rádios comunitárias. O capítulo

tece um histórico do movimento de radiocom no Brasil e em Fortaleza-Ce,

oferecendo ao leitor um panorama da gênese social da idéia de emissora

comunitária.

O terceiro capítulo resulta da análise dos diferentes discursos sobre as

rádios comunitárias emanados da imprensa cearense e do movimento de radiocom,

através do Jornal “ABRAÇO no Ar”, veículo da Associação Brasileira de

Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO) e de uma lista de discussão na Internet sobre

rádios livres e comunitárias. A construção da auto-imagem das radiocom, elaborada

pelo seu próprio movimento, e a percepção dos órgãos da imprensa oficial são os

elementos indicativos dos sentidos acionados e manipulados na construção da

legitimação.

No quarto capítulo são analisados os discursos produzidos pelas próprias

radiocom. São apresentadas quatro emissoras e os discursos produzidos por

diretores, operadores e comunicadores sobre o que é ser uma rádio comunitária. A

escolha das emissoras considerou algumas das vertentes dessas experiências e

permitiu compreender como discursivamente as rádios elaboram o sentido da

legitimação e da diferenciação.

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CAPÍTULO I

A “AUTO-IMAGEM” E A IMAGEM DO OUTRO: O CONFLITO NO

CAMPO DA RADIOFONIA COMUNITÁRIA.

O surgimento de um fenômeno social pode ser melhor entendido quando o

aproximamos do quadro em que diferentes elementos se cruzaram para produzi-lo.

Considerando isto, proponho discutir como se opera a relação entre auto-imagem e

conflito no campo das radiocom a partir de processos sociais amplos, capazes de

condicionar partes importantes dessa relação.

É durante a década de 1970 que o rádio brasileiro começa a operar em

freqüência modulada. O uso dessa freqüência se associa a uma série de fatores

tecnológicos, econômicos e políticos. Entre os fatores políticos figuram os interesses

do regime militar pela penetração da radiodifusão em âmbito nacional, plano que

incorpora o desejo de maior controle dos meios de comunicação, dado o papel

estratégico das telecomunicações para os militares (SORJ, 2003). Tal como já

ocorria com as rádios que transmitiam em amplitude modulada, AMs, a difusão de

emissoras FM será feita através de concessões controladas pelo governo federal. As

FMs sedimentam, então, o modelo de propriedade dos meios de comunicação que já

estava em curso no país, aprofundando os vínculos entre propriedade, interesses

políticos e econômicos.

A existência de regiões não cobertas ainda pela radiodifusão contribui para a

interiorização, que passará a ser feita com uso da freqüência modulada, permitindo

cobrir regiões do país aonde as AMs não chegavam. De acordo com Del Bianco

(1999, p.191):

O alcance reduzido de suas ondas [FMs] possibilitava a instalação de emissoras em todos os municípios, principalmente nas ‘áreas de silêncio’, aquelas não atingidas pelas AMs com potência inferior a 2Kw. Com a medida, o governo podia combater a livre penetração de emissoras estrangeiras no país, que se tornara uma ameaça à estabilidade política na década de 70.

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Do ponto de vista econômico, a medida permitiu que a produção de rádios-

receptores fosse incrementada. Dessa forma, Del Bianco (1999, p.190) discute que:

A freqüência modulada ganhou impulso porque houve ação deliberada do governo militar no sentido de definir estratégias para a distribuição de concessões e permissões de canais e de estímulo à reativação da indústria nacional de equipamentos.

Como afirma Ortiz (1995, p.153): “entre nós é o Estado militar quem

promove o capitalismo em seu estado avançado”. O que terá repercussão na

constituição e consolidação de um mercado de bens simbólicos, que se desenvolve,

sobretudo, nos anos 1970 e 1980. Assim, comenta ainda Ortiz (1995, p.121):

Durante o período que estamos considerando [1970-1980], ocorre uma formidável expansão, a nível de produção, de distribuição e de consumo de cultura; é nesta fase que se consolidam os grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação e da cultura popular de massa.

Ainda que faça parte do singular processo brasileiro de implantação de um

mercado de bens culturais14, a expansão das rádios em freqüência modulada no

Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1970, parece se relacionar também com

o ambiente cultural de transformações políticas e econômicas que ocorrem no globo

com conseqüências para a política e para a cultura. Algumas dessas mudanças

interessam particularmente a este trabalho, entre elas: a reversão da tendência de

crescente padronização dos produtos, inclusive os produtos culturais15; a valorização

das identidades locais, que terá implicações para o argumento em favor da

comunicação comunitária, e o barateamento de tecnologias que passam a ser

acessíveis a grupos antes dela alijados.

14 Que começa a ser desenhado a partir do esforço de centralização política e cultural vivido nos anos 1930 -1940, com o Estado Novo, e que continua a se desenvolver nos anos 1960 e 1970 com o regime militar. 15 O que não vai significar o fim da concentração da propriedade dos meios de comunicação. Como afirma Castells (1999, p. 426), referindo-se a TV: “embora a audiência tenha sido segmentada e diversificada, a televisão tornou-se mais comercializada do que nunca e cada vez mais oligopolizada”.

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1.1 Transformações globais, mudanças locais

Como observa David Harvey (1989) em “Condição Pós-Moderna”, a partir de

1973 já se registram, no plano internacional, mudanças no regime de produção e em

sua forma de organização, o que produz transformações nas relações sociais, bem

como nos hábitos, práticas políticas e formas culturais. Essas mudanças

correspondem ao declínio do modelo fordista de organização da produção e de

orientação das relações políticas e sociais através do globo.

O paradigma fordista se referia basicamente à concentração produtiva e

gerencial, com elevado grau de especialização e intensa capacidade produtiva

voltada para a produção e distribuição de produtos em massa, que para tanto

deveriam se pautar o máximo possível pela padronização. A produção em massa

pressupunha uma organização social também padronizada em relação ao consumo

dos bens culturais. Estes bens, “standardizados”, são oferecidos para uma

população supostamente homogênea (aos olhos do mercado) em termos de

consumos e gostos, e em maior ou menor medida, sob o controle do Estado.

Paralela a essa forma de produção e consumo em massa, Harvey irá

apontar a emergência de uma outra racionalidade político-organizativa, em sintonia

com uma estrutura social fundada em localismos e nacionalismos, e em uma

fragmentação dos discursos de legitimação dos processos sociais.

Provavelmente essa mudança se expressa na esteira do enfraquecimento

dos grandes discursos organizadores, as metanarrativas, simultaneamente a um

avançado processo de segmentação do mercado de trabalho (com a crise do

emprego), do mercado consumidor e a formação de uma nova cultura de consumo

global. Essa cultura não mais satisfeita com as soluções de “massa” para suas

demandas e desejos, ao contrário, cada vez mais interessada na idéia de

atendimentos particularizados, aspecto que se fortalece inclusive na política.

Se a economia e a regulação do Estado no modelo fordista tinham em vista

tanto a produção quanto o consumo em massa (com bens padronizados)16, com a

16 No Brasil o período fordista de acumulação coincidiu com a modernização produtiva vivida a partir do nacional-desenvolvimentismo e da política de substituição de importações, estendo-se com nuances variadas até a década de 1970 e 1980 com os governos militares.

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crise de acumulação decorrente da queda global dos rendimentos e com as

mudanças culturais e políticas observadas ao redor do globo a partir dos anos 1960,

aquele paradigma passou a se mostrar deficiente para assegurar o crescimento dos

investimentos.

Para Harvey (1989), a solução da crise de acumulação, em nível da

produção e gestão política nos países centrais do capitalismo, veio sob a forma de

uma flexibilização da produção (acumulação flexível) em sintonia com um mercado

consumidor cada vez mais segmentado, que trouxesse “a cara” daqueles a quem se

destinariam os produtos, no segmento da indústria cultural.

No Brasil as conseqüências do processo acima descrito não são sentidas de

modo imediato. Analisando o mercado de bens simbólicos nos anos de 1970, Ortiz

(1995) observa, dentro do processo de consolidação da indústria cultural entre nós,

uma tendência à nacionalização e a “standartização” da produção cultural, o que se

evidencia pela formação de redes de televisão e de rádio que transmitem para todo

o país uma mesma programação, quase que anulando a produção antes localizada,

e respondendo às funções de integração nacional proposta pelos militares.

No entanto, ao longo dos anos 1980 e principalmente dos anos 1990 as

transformações percebidas por Harvey (1989) passam a ser sentidas entre nós em

diversas áreas. No que concerne ao rádio, algumas mudanças podem ser

associadas a esse novo momento. Se de um lado a tendência à nacionalização e

“standatização” se afirma, com o uso de satélites para transmissão em rede, a

segmentação também passa a ser verificada. (DEL BIANCO, 1999). Além disto, o

novo momento irá conviver com a popularização de tecnologias que se tornam cada

vez mais baratas, como os transmissores, permitindo a emergência de rádios de

pequeno porte que podem operar com custos reduzidos, como é o caso das

radiocom. Rádios que antes funcionavam com alto-falantes ou com transmissores

caseiros poderão “colocar a emissora no dial” com maior qualidade. Passa, então, a

ser tecnicamente possível a uma pessoa, um grupo ou comunidade ter uma

emissora de rádio.

Mudanças na orientação dos movimentos sociais também são sentidas e

terão implicações para a trajetória das radiocom. De acordo com o conjunto de

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sentidos de mudança identificados por Harvey (1989), de fortalecimento dos

localismos e das singularidades, Glória Gohn (2002, p. 301), percebe na trajetória dos movimentos sociais um processo de valorização de sentidos e categorias que se

relacionam a esta tendência. Ao discutir a nova concepção de sociedade civil e sua

relação com a dinâmica dos movimentos sociais no contexto dos anos 1990, a

autora afirma:

Este espaço [ocupado por instituições e situado entre o mercado e o Estado] é trabalhado segundo princípios da ética e da solidariedade, enquanto valores motores de suas ações, resgatando as relações pessoais, diretas, e as estruturas comunitárias da sociedade, dadas pelos grupos de vizinhança, parentesco, religião, “hobbies”, lazeres, as aspirações culturais, laços étnicos, afetivos, etc. 17

A valorização do sentido das relações comunitárias e da comunidade vai ser

decisiva nos anos 1990 também como parte das críticas aos processos de

globalização dos mercados e à incapacidade das nações e da comunidade

internacional de agir e de dar respostas aos problemas locais. E vai caminhar lado a

lado com as questões relacionadas à comunicação.

No que concerne aos meios de comunicação ligados aos movimentos

sociais, essas mudanças serão percebidas dentro de um processo que defino como

de “autonomização”: um processo que converte paulatinamente a comunicação

produzida dentro dos movimentos sociais em um valor em si e não apenas um

instrumento de divulgação dos movimentos e de suas demandas.

Doimo (1995, p. 136), citando Della Cava, afirma que a comunicação popular

nasce “com o desenvolvimento do ‘movimento popular’ (...) para referir-se a toda

sorte de iniciativas comunicacionais à base de tecnologias rudimentares (...) são

iniciativas voltadas ao incremento de grupos de base, como cartilhas, boletins,

folhetos, convocatórias, audiovídeo, alto-falantes na praça, dramatizações etc”18.

Todavia, considerando o acúmulo de experiências nessa área e, como parte do

momento de valorização de idéias como comunidade, e valores como a

solidariedade, a comunicação passa a ter um outro espaço: ela se “autonomiza”. O

17 Grifos meus. 18 Grifos meus.

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que significa que ela própria se constitui como um direito, que deve ser

assegurado19.

Para esta mudança a presença da Igreja Católica através da Teologia da

Libertação vai ser decisiva, na medida em que coloca questões para os movimentos

como a “igualdade de condições de acesso aos sistemas de comunicação existentes

para o Terceiro Mundo, a identidade cultural de todos os povos e, finalmente, a

transformação, pelo Estado, dos meios de comunicação de massa em um sistema

de comunicações do povo, para o povo e por ele dirigido” (DELLA CAVA, 1992, p.

68). A Campanha da Fraternidade de 1989, por exemplo, tem como tema “A

fraternidade e a comunicação”.

O fato de a comunicação comunitária ter se tornado objeto de um debate

jurídico sobre a liberdade de expressão e o direito de comunicar (COELHO NETO,

2002) se relaciona a esse movimento que transforma a comunicação em uma

demanda específica.

O atual conflito no campo das emissoras comunitárias pode ser entendido

também como parte dessa mudança. A demanda por um canal comunitário sai do

espaço exclusivo dos movimentos sociais e se torna uma demanda de outros

segmentos sem tradição de organização popular, como por exemplo, as igrejas

evangélicas.

Num cenário de centralidade da comunicação20 e da informação diversos

grupos querem ter seu próprio canal de comunicação. A disputa se institui em torno

de quem terá direito a ele.

Nessa nova ambiência, não apenas no plano dos movimentos sociais a

comunicação é alçada a um outro patamar. Harvey (1989, p. 140), afirma que:

19 O surgimento de emissoras comunitárias e a demanda por liberdade para existirem se situam nesse ambiente. 20 Sobre a centralidade da comunicação na atualidade Castells (2002, p. 418) afirma, por exemplo, que “o padrão comportamental mundial predominante parece ser que, nas sociedades urbanas, o consumo de mídia é a segunda maior categoria de atividades depois do trabalho e, certamente a atividade predominante nas casas”.

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Ela [a acumulação flexível] envolve um novo movimento que chamarei de ‘compressão espaço-tempo’ no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite, a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variado.

As tecnologias da informação transformam as bases materiais da sociedade e

sua forma de compreender e viver o tempo e o espaço, que passam a ser mediados

pela intensa presença dos meios de comunicação. A valorização de veículos de

comunicação local como as radiocom pode ser lida como parte desse processo de

mudanças.

Mas quais as particularidades desse processo em diferentes regiões do

planeta? Para Jesus Martin-Barbero (2001, p.271. Grifos meus),

A comunicação está se convertendo num espaço estratégico a partir do qual podem pensar os bloqueios e as contradições que dinamizam essas sociedades-encruzilhada [as sociedades latino-americanas], a meio caminho entre um subdesenvolvimento acelerado e uma modernização compulsiva. Assim, o eixo do debate deve se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de horizontes culturais.

Trabalhando na linha dos estudos culturais e enfrentando a questão da

centralidade da comunicação no contexto da América Latina, Martin-Barbero discute

os vínculos entre hegemonia, cultura de massa e cultura popular. Sua proposta é

entender os meios de comunicação a partir das inúmeras mediações das quais estes

participam: práticas de comunicação, movimentos sociais, temporalidades distintas,

pluralidade de horizontes culturais.

Ao ampliar a compreensão dos processos comunicativos para além da

análise do veículo como meio técnico, e focalizar a comunicação como dado das

interações sociais, espaço que comporta as experiências dos sujeitos e a produção

de percepções, Martin-Barbero se afasta da visão mecânica dos meios de

comunicação como agentes exclusivamente ideológicos que trabalham de modo

absoluto sobre receptores passivos. Ele irá falar de “mestiçagem” e de “mediações”

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para entender os processos de negociação de sentido que se estabelecem entre a

produção cultural de massa e a percepção formulada por quem a consome.

É a partir destes pressupostos que ele entende o rádio no contexto latino-

americano, onde este desempenhará papel importante no processo de construção

da nacionalidade, na medida em que é capaz de dialogar com matrizes da cultura

popular como a oralidade:

Daí, também, o papel peculiar de certos meios massivos que, como o cinema e o rádio, constroem seu discurso com base na continuidade do imaginário de massa, com a memória narrativa, cênica e iconográfica popular, na proposta de um imaginário e uma sensibilidade nacionais. (MARTIN-BARBERO, 2001, p. 240).

Segundo Martin-Barbero (2001, p.242), são os meios de comunicação que

se implantam a partir dos anos 1930, o rádio em especial, que irão oferecer “aos

moradores das regiões e províncias mais diversas uma primeira vivência cotidiana

da nação”. Thompson (1998) discute que o mesmo processo se realiza no século XV

na Europa com a invenção da imprensa, quando os textos deixam de ser elaborados

em latim e passam a ser escritos nos idiomas vernáculos. A presença das notícias

sobre a nação em um idioma que pretende se afirmar como língua comum colabora

para criar o sentido da nacionalidade e de pertencimento a esta.

Atualmente as radiocom oferecem uma outra experiência do espaço a seus

ouvintes. Não a da nacionalidade, mas a da localidade, amplificada e mediada pelo

rádio. Deste modo, as mediações e a mestiçagem que Martin-Barbero identifica nos

processos de produção e de apropriação da comunicação massiva podem ser

pensados para o que ele define como as “’novas maneiras de estar juntos’ pelas

quais se recria a cidadania e se reconstitui a sociedade, a partir das associações de

bairro para a resolução pacífica de conflitos, e das emissoras de rádio e televisão

comunitárias para recuperar memórias e tecer novos laços de pertença ao território”

(MARTIN-BARBERO, 2001, p. 21). Há na fala de Martin-Barbero uma grande

esperança no papel dos meios como agentes dessas novas formas de interação.

As rádios comunitárias no Brasil surgem e se fortalecem na esteira dessa

esperança e, como vimos, de uma dupla valorização: da comunicação e da

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comunidade, que os movimentos sociais a partir de um certo momento passam a

promover21. Mas simultaneamente à esperança há um processo de negociação do

sentido e do espaço com grupos e instituições de poder, como o Estado e os

proprietários dos meios de comunicação - para quem a comunicação se configura

antes de tudo como um negócio, e a entrada de novos agentes é entendida em

termos concorrênciais.

1.2 Conflito e “auto-imagem”

A negociação e os embates em torno do direito de uma rádio comunitária

existir ocorrem em diferentes instâncias. No plano político, por exemplo, a formação

de frentes parlamentares serve à defesa dos interesses destes agentes, o que já

ocorreu tanto por parte de parlamentares ligados às radiocom22, quanto

recentemente por deputados e senadores ligados à ABERT. No plano jurídico ocorre

o ingresso de ações tanto por parte de emissoras comunitárias, quanto por rádios

comerciais. No Ceará, como se verá adiante, as liminares garantiram o

funcionamento de algumas radiocom durante certo tempo. Uma outra instância de

conflito, entretanto, é de ordem simbólica, e se organiza a partir da auto-imagem,

que desempenha importante papel na construção da legitimidade presente tanto nos

discursos jurídicos, quanto políticos.

A auto-imagem é um conceito trabalhado em “Os estabelecidos e os

‘outsiders’” por N. Elias e Scotson (2000). Nessa obra seus autores elaboram um

modelo operacional de leitura dos conflitos, a figuração “estabelecidos e ‘outsiders’”,

tendo como matéria-prima um trabalho etnográfico. No povoado de “Winston Parva”

a questão do conflito é entendida através da distinção de “status” construída pela “auto-imagem” dos grupos em processo conflituoso. A marca da distinção se

21 Criando inclusive um nicho discursivo onde essa dupla valorização é associada à democratização das comunicações. 22 Em junho de 1999 houve o lançamento no Congresso Nacional da “Frente Parlamentar em Defesa da Radiodifusão Comunitária”, com adesão de mais de 100 parlamentares. Como afirma o Jornal “ABRAÇO no Ar”, nº 12 de julho de 1999, “um dos objetivos da Frente é fazer com que as rádios comunitárias contem com um grupo de deputados compromissados com a atividade e possam denunciar no Congresso ou nas instâncias jurídicas as agressões às rádios”.

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situa num plano análogo àquele que constrói a imagem da civilização: a crença na

superioridade de um dos grupos23.

O esforço de construção das crenças, na inferioridade ou na superioridade,

ocorre de modo relacional e envolve os dois grupos. Os estabelecidos defendem

suas posições a partir da auto-imagem que constroem de si e da que impõem aos

“outsiders”. No caso analisado por Elias e Scotson os móveis do conflito entre dois

grupos de trabalhadores, com perfis-socioeconômicos idênticos, não eram

econômicos. A distinção e a crença nesta opunham os dois grupos. De um lado os

“estabelecidos”, beneficiários da imagem de fundadores do pequeno povoado e

guardiões do melhor de seus costumes e tradições. De outro lado os “outsiders”,

moradores “comuns”, mal-vistos apenas por serem os mais recentes habitantes do

lugar, sem direito às benesses da tradição e da imagem de quem há mais tempo se

estabeleceu. O lucro simbólico na crença de tal distinção acaba por criar “status” e

poderes diferenciados entre eles.

A auto-imagem torna compreensível o terreno sobre o qual as disputas irão

se dar. Ela cristaliza a visão que um grupo tem de si e de suas possibilidades

sociais. O conflito analisado por Elias e Scotson é mediado pela auto-imagem, que

torna legítima ou ilegítima as pretensões de poder dos dois grupos sociais. E como

se dá a elaboração da auto-imagem?

Parte do processo posto em movimento pela figuração “estabelecidos e

‘outsiders’”, é o que Elias e Scotson chamam de “sociodinâmica da estigmatização”.

Estigmatizar torna-se um expediente eficaz na medida em que manipula

representações positivas e negativas de ambos os grupos nas relações mútuas que

estabelecem. A manipulação tem como alvo a auto-imagem do grupo a ser atingido,

cuja crença na própria inferioridade pode ser decisiva na aceitação de um diferencial

de poder negativo e de uma posição social de subordinação.

A imagem que um grupo forma de si e dos outros é mediada pelo estigma

que orienta as ações e toda uma economia emocional levada a cabo pelas relações

23 Já no “Processo Civilizador” (1994a), a própria noção de civilização é tratada em termos da auto-imagem, sendo possível verificar as dissonâncias em torno de idéias e noções como “kultur” e “civilização”. Lido como a “imagem de si” feita pelo Ocidente, o termo civilização reflete a percepção das relações sociais e das posições nestas de indivíduos e grupos.

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de vizinhança. Assim, a “superioridade de forças é equiparada ao mérito humano e

este a uma graça especial da natureza ou dos deuses” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.

26). Essa dinâmica de estigmatização exige um investimento constante na distinção

e em sua justificação, através da crença de que existe, de fato, uma diferença inata

entre os grupos.

Elias e Scotson enfatizam que em todo o processo de estigmatização as

crenças são os móveis da disputa de poder. Elas se constituem como a matéria

prima da composição da auto-imagem dos grupos que, de modo processual, tal qual

as identidades, re-elaboram-se constantemente.

Ainda que no caso das radiocom a auto-imagem não possa ser tomada nos

mesmos termos de uma relação de vizinhança, como acontece em “Winston Parva”,

a construção de uma determinada imagem das rádios e de seu movimento se torna

fundamental na disputa de poder, de legitimação e de território que as rádios

enfrentam.

Essa imagem é elaborada não apenas pelas radiocom, mas também pelas

diversas instâncias que com elas se relacionam: rádios comerciais, entidades

representativas dessas emissoras, em nível local e nacional, órgãos de governo e

meios de comunicação de massa. A formulação da auto-imagem, bem como sua

aceitação ou negação, ocorre de modo relacional, e opera um jogo de forças onde a

prevalência de uma percepção positiva ou negativa sobre as radiocom traz

conseqüências para o seu reconhecimento social, o que acontece antes e depois da

aprovação da Lei 9.612.

Por isso, a estigmatização aparece como dado importante do processo,

legitimando ou deslegitimando socialmente a presença das radiocom junto a opinião

pública.

A idéia de que as radiocom operam pondo em risco o funcionamento de

diferentes sistemas de segurança, como o dos aeroportos e da polícia, através das

interferências em seus aparelhos de comunicação, é uma das imagens difundidas

pelas emissoras comerciais que acaba por afetar negativamente a leitura que a

sociedade faz das radiocom. Ao tratar o problema da concorrência entre rádios

comerciais e rádios comunitárias como um problema de segurança pública, as

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emissoras comerciais transformaram-no em uma questão que extrapola o campo da

radiodifusão e invade outras instâncias sociais, ampliando o interesse da opinião

pública e manipulando-o a seu favor através da idéia de perigo.

Do lado das radiocom, a necessidade de respaldar constantemente o

movimento em torno da imagem de democratização e da ação comunitária, se choca

com as constantes denúncias na imprensa de emissoras que funcionam como rádios

comerciais de baixa potência ou são colonizadas por interesses políticos e

religiosos. Torna-se necessário ainda, para as radiocom, retorquir a representação

de ilegalidade, clandestinidade, pirataria, oportunismo e perigo a elas imposta pelas

emissoras comerciais e suas entidades representativas24.

Os processos de formulação de uma valoração positiva e do orgulho que a

auto-imagem pode carregar permite compreender o que acontece com as radiocom;

ainda que neste caso aspectos afetivos da percepção de um grupo humano não

sejam a questão central. Em relação às radiocom a auto-imagem torna perceptível o

processo de construção, ou não, do reconhecimento e da legitimação das emissoras

sem outorga que se definem como comunitárias. Um dos mecanismos de

legitimação se processa pelo uso da idéia de comunidade, e dos valores imanentes

a estas, que são vistos de modo positivo, e por vezes idealizado, e se fariam

presentes na programação, na organização e na relação das emissoras com os

ouvintes e o lugar onde se estabelecem.

Exemplo da elaboação da auto-imagem pode ser percebido no Jornal

“ABRAÇO no Ar”, que detalharemos a seguir. Neste informativo as radiocom

aparecem como portadoras de uma utopia revolucionária: são agentes do

aperfeiçoamento social, da democratização, do fortalecimento identitário e da

solidariedade. Ações legitimadoras que se opõem a idéias como pirataria, perigo,

clandestinidade e crimes, muitas vezes associadas às emissoras. Acompanhe

alguns trechos:

24 Já em 1997, mesmo antes da promulgação da Lei 9612, a ABERT lançou campanha nacional, em diversas mídias, inclusive o rádio, afirmando o perigo das “emissoras piratas” (MATOS, 2000).

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Agora é a vez das rádios comunitárias assumirem a responsabilidade da continuidade no aperfeiçoamento de nossa sociedade, da democratização das informações, da cultura e das formas de se relacionar das comunidades em todos os rincões brasileiros, promovendo uma verdadeira revolução com o fortalecimento da identidade cultural local, estimulando a solidariedade entre os cidadãos e provocando a auto-estima nas pessoas (...).

Em outro trecho do jornal tem-se o reforço à imagem transformadora das radiocom,

quando elas são apresentadas como “novidade revolucionária”, meio possível de

controle coletivo e realização da cidadania, que não podem existir fora delas:

Uma rádio comunitária é algo novo. Com ela se pretende uma revolução política, social e cultural do país – a partir da tribo, da vila do povoado, do grande coração brasileiro. A rádio comunitária é o último meio de comunicação que a população pode de fato possuir e controlar neste final de século. (...) Fora das comunitárias o que vale é o dinheiro. O cidadão não existe, a comunidade não existe (...).

Por tudo isso uma rádio comunitária não pode copiar uma comercial (..). A dificuldade é como fazer uma rádio que não siga este modelo que aí está?

O jornal afirma a positividade e a legitimidade dos valores locais,

representados pelas radiocom, contra a globalalização, apresentada como

excludente e centralizadora:

O movimento de rádios comunitárias é a resistência contra a globalização, centralizadora e excludente, que está se propagando como um furacão sobre a soberania dos povos, onde grandes grupos financeiros é que ditam quem participa ou não do mundo globalizado.

Dessa forma, tem-se que a idéia de revolução e o papel social a ser

desempenhado pela comunicação comunitária se afirmam na noção de comunidade

e nas diversas interpretações favoráveis de seu papel: fortalecimento da cultura e da

identidade locais, valorização da solidariedade, oposição à globalização

centralizadora e excludente, “revolução a partir da tribo, da vila, do povoado, do

grande coração brasileiro”.

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No “ABRAÇO no Ar”, a idéia “rádio comunitária” é usada para explicar as

potencialidades da comunicação voltada para a comunidade. Do ponto de vista da

disputa política entre radiocom e rádios comerciais, essa interpretação é uma das

ferramentas usadas no jogo de legitimação, através da formação de uma imagem

com forte conotação progressista e libertária.

Como a história das comunicações no Brasil é a narrativa da concentração

dos meios em monopólios estatais, como nos anos 1930 (CAPELATO, 1998) ou dos

monopólios privados (SORJ, 2003; NUNES, 2003), como ocorre atualmente, a auto-

imagem das rádios se constrói atrelada a essa história, e se apresenta como uma

resposta de equilíbrio aos desequilíbrios criados pela concentração, sendo em

grande medida uma afirmação pela negação. Como afirma Costa Jr (1999),

As rádios comunitárias fundaram-se como alternativas e construíram sua identidade pela negação do outro que é representado pelas rádios oficiais. Mostram-se como lugar do bem, da liberdade de expressão, em oposição ao lugar da censura e da alienação. Fundaram-se como lugar da possibilidade real de participação da comunidade, em resistência aos mecanismos de exclusão na mídia oficial.

De acordo com essa interpretação, parece ser instigante pensar sobre que o

afirma N. Elias (1994) em A “sociedade dos indivíduos” sobre o desenvolvimento

histórico das palavras. Para ele a mudança de significado destas diz muito sobre a

direção que toma o desenvolvimento das figurações sociais, bem como das relações

sociais que nelas têm lugar. Nesse sentido, a prevalência do termo “comunitária” no

tratamento das experiências de comunicação alternativa, sobre outros como

“popular” e “livre”, que passa a ocorrer no início dos anos 1990 (COSTA JR, 1999;

LOPES, 2005), sugere uma reorientação das idéias norteadoras dos movimentos

sociais que alimentaram tais experiências e dos discursos sobre as emissoras. Mas,

qual o rumo dessa nova orientação?

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1.3 A noção de comunidade e as rádios comunitárias

Desde Tönnies (1995) a leitura das relações sociais constrói uma dupla

tipificação. De um lado teríamos as relações organizadas em torno daquilo que o

autor define como comunidade, e de outro as relações próprias de um universo

definido como a sociedade. Na primeira as relações seriam pessoais, marcadas

pelos contatos face-a-face e pelos laços afetivos que fazem seus participantes

manterem-se nela. Na segunda os homens fundariam uma união com base em

finalidades objetivas que podem ser melhor alcançadas em grupo. Em Tönnies, o

fundamento de tal distinção é psicológico e orientado por dois tipos de vontade: a

vontade orgânica [Wesenwille] e a vontade reflexiva [kürwille].

A força emanada das vontades constrói tipos distintos de interação. Na

primeira, a comunidade, atua a vontade orgânica, fruto do desejo, da afetividade e

da memória, construto que torna o prazer de conviver em um ambiente comum o

maior dos estímulos. “A Wesenwille [vontade orgânica], nas suas divisões de

vontade vegetativa, mental e animal, expressa-se no prazer, no hábito e na

memória”. (BELLEBAUM, 1995, p. 79).

Na sociedade, de outro lado, a vontade imperativa é a vontade reflexiva,

orientadora de um modelo de racionalidade orientada a fins, para usar os termos de

Weber (1994), e cuja associação se dirige de modo objetivo, com vistas a tornar

saciáveis certas necessidades. “A Kürwille [vontade reflexiva], como forma de

vontade isolada e autônoma, implica refletir, desejar e conceber”. (BELLEBAUM,

1995, p. 79). As necessidades e formas de organização associativas são reflexivas

e tendem a se tornar impessoais e complexas, afastando-se paulatinamente dos

limites locais.

Talvez por isso, Tönnies tenha sido revisitado (WOLF; PRAHL, 1995) em um

momento histórico em que se percebe, nos movimentos realizados pela

globalização, uma conjuntura favorável à valorização da comunidade e do local, fato

que reflete a desconfiança no projeto iluminista, nas grandes narrativas e em uma

forma de socialização que produziria o homem “blasé” (SIMMEL, 1979), protegido

dos contatos face-a-face e dos compromissos de uma interação mais intensa e por

isso mais apto à indiferença. Neste sentido, “vemos (...) porque Tönnies considera a

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comunidade o lugar em que a moral é vivida de forma mais efetiva, dominada que é

pela busca de um valor ético que se identifica com a unidade viva que forma a

comunidade”. (FREUND, 1980, p. 213).

Da forma como constrói sua argumentação, Tönnies opõe, através da dupla

tipologia das vontades, um antagonismo que parece não poder ser resolvido. Assim,

apesar de comunidade e sociedade serem apresentadas como necessárias, a

comunidade aparece de modo positivo, alvo para o qual parece se voltar na busca

de uma interação mais humana. Já a sociedade é carregada de negatividade. A

frieza, a impessoalidade e o individualismo que ela porta são vistos como elementos

desumanizantes, ainda que construam uma unidade.

Já para Weber (1994), o que confere a uma relação o caráter comunitário é

a pertença, vínculo afetivo que configurará o grupo. Deste modo, para ele, “uma

relação social denomina-se de 'relação comunitária' quando e na medida em que a

atitude na ação social – no caso particular ou em média ou no tipo puro – repousa

no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente)

ao mesmo grupo” (1994, p. 25).

O sentido atribuído à ação social e ao outro ao qual ela se dirige é dado,

segundo Weber, a partir do sentimento de mútuo pertencimento partilhado pelos

membros da comunidade, o que o aproxima de Tönnies e de sua noção de vontade

orgânica. Como afirma:

Somente quando, em virtude desse sentimento ['sentimento da situação comum e das respectivas conseqüências'], as pessoas começam de alguma forma a orientar seu comportamento pelo das outras, nasce entre elas uma relação social – que não é apenas uma relação entre cada indivíduo e o meio circundante - e só na medida em que nela se manifesta o sentimento de pertencer ao mesmo grupo que exista uma 'relação comunitária' (WEBER, 1994, p. 26).

O sentimento de pertencer ao mesmo grupo, de partilhar das mesmas

experiências e relações comunitárias, como descritas por Weber, é transportado,

enquanto significado, para o universo das rádios comunitárias e seu discurso de

fundação. Estes atributos passam a compor a auto-imagem das emissoras e são

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usadas para defender as possibilidades da comunicação por elas produzidas,

marcada por idéias como participação direta, solidariedade e democratização.

Numa situação de conflito essas imputações positivas se opõem a um leque

de sentidos negativos usados pelos seus opositores, como “piratas”, “ilegais”,

“clandestinas” ou “perigosas”, que lhes nega a caracterização de veículo legítimo de

comunicação de uma localidade.

O recorte das relações de disputa, no estudo das radiocom, expõe a própria

dinâmica conflituosa das comunicações no Brasil. Para Simmel (1977), o conflito se

constitui como evidência do processo de socialização, surgindo como um dos

elementos definidores dos rumos das interações sociais.

Em La Lucha (1977), Simmel elabora um panorama dos conflitos humanos e

defende a tese de que a disputa é um antídoto contra o “dualismo disociador, una

vía para llegar de algún modo a la unidad, aunque sea por el aniquilamento de uno

de los partidos” (1974, p. 265). A compreensão sociológica dos mecanismos de

equilíbrio social, para ele, deve ser buscada nas disputas e não na idéia utópica de

harmonia social perene. Assim, a existência dos diferentes grupos sociais se

manifesta pela necessidade de negociar seus interesses, nem sempre convergentes,

em situações de disputa. As disputas, que podem gerar conflitos sangrentos ou não,

são a marca das sociedades, enquanto que as diferentes formas em que o conflito

se estabelece permitem entender a própria dinâmica social.

Em relação ao campo da radiofonia brasileira, a dinâmica do conflito

evidencia uma busca por visibilidade através da apropriação de um veículo de

comunicação. Os diversos formatos de radiocom indicam que ela pode se pautar por

interesses religiosos, político-partidários, mercadológicos ou ainda na tradição dos

movimentos sociais na área de comunicação. Assim, diferentes discursos se

organizam e representam segmentos da sociedade em busca de visibilidade: seja

ela política, social, comercial ou cultural.

Tornar-se visível, como será visto adiante, se relaciona ao que Canclini

(1999) entende como o alargamento ou a construção do espaço público nas

periferias das grandes cidades latino-americanas. Para ele, “faz-se necessário que

nós, pesquisadores, realizemos análises cuidadosas da remodelação dos espaços

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públicos e dos dispositivos que se perdem ou se recriam para o reconhecimento ou

a proscrição das múltiplas vozes presentes em cada sociedade” (CANCLINI, 1999,

p. 21).

1.4 Conflito, visibilidade e espaço público

A remodelação dos espaços públicos passa, na percepção do autor, pela

ascensão do consumo como uma forma de exercício da cidadania, na medida em

que produz a mediação entre os sujeitos e o mundo. O olhar sobre o que se

consome, bem como sobre o significado social deste processo considera que

“quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que

consideramos publicamente valioso, bem como os modos como nos integramos e

nos distinguimos na sociedade, com que combinamos o pragmático e o aprazível”

(CANCLINI, 1999, p. 45).

O consumo, a cultura e a cidadania passam a ser vistos de modo conjugado.

Daí que, como afirma Canclini:

Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem a mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades (CANCLINI, 1999, p. 46).

Há assim um deslocamento da cidadania para a arena dos meios de

comunicação e do consumo, que tornam o exercício de ser cidadão efetivo, seja pelo

acesso à informação, que é mediado pelo consumo dos meios, seja pela compra

daquilo que é necessário à reprodução da vida em padrões confortáveis. Em relação

aos meios de comunicação, o autor afirma:

Estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo. Foram estabelecidas outras

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maneiras de se informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e exercer os direitos (CANCLINI, 1999, p. 50).

O surgimento dessas relações entre consumo e cidadania supõe um

passado que se inicia ainda com a invenção da imprensa. A produção de impressos

e suas conseqüências para o desenvolvimento das sociedades modernas já foram

discutidas por muitos autores, entre eles Habermas (1984), Rodrigues (2001) e

Thompson (1998). Em seus primórdios, aquilo que hoje chamamos de comunicação

de massa aparece e se legitima como espaço por excelência de manifestação da

“sociedade civil”,25 formando o que Habermas (1984, p. 40) define como “esfera

pública burguesa”, entendida como “o fórum para onde se dirigiam as pessoas

privadas a fim de obrigar o poder público a se legitimar perante a opinião pública”.

A gênese dessa nova esfera pública se confunde com o próprio surgimento

da modernidade e o nascimento de uma nova classe social, a burguesia, que passa

a exigir um espaço de discussão e crítica, antes só acessível à sociedade de côrte.

No período em que essa classe afirma seu papel revolucionário, ela reclama o

controle do Estado por aquilo que será depois tratado como “opinião pública”. Como

afirma Habermas (1984, p. 38):

Ela [a esfera pública], enquanto tal, desenvolve-se especialmente à medida que o interesse público na esfera privada da sociedade burguesa não é mais percebido apenas pela autoridade, mas também é levada em consideração pelos súditos como sendo a sua esfera própria.

Os circuitos de informação - inicialmente fechados aos grupos de

comerciantes26 - passam, com a invenção da imprensa e o desenvolvimento dos

primeiros periódicos, a ser publicizados e destinados a um “público”: o público

burguês letrado e interessado na ingerência das questões de Estado que afetavam

diretamente os seus negócios, que não eram mais apenas negócios domésticos,

25 Em Habermas a sociedade civil aparece, durante o período que analisa, como oposta à ordem estatal e se organiza a partir da então emergente classe burguesa. 26 Para quem as informações são dados necessários à organização dos negócios mas ainda não são um negócio em si.

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haviam rompido a barreira privada e tornavam-se de interesse público à medida que

se constituíam como mercados.

Nessa fase, o hábito de discutir em público e a partir de uma perspectiva de

crítica às questões de interesse “comum”, que na verdade são próprias de uma

esfera privada, tem lugar nos cafés e nos salões, “centros de uma crítica inicialmente

literária e, depois, também política, na qual começa a se efetivar uma espécie de

paridade entre os homens da sociedade aristocrática e da intelectualidade burguesa”

(HABERMAS, 1984, p. 48).

Ao passo que “a troca de informações desenvolve-se não só em relação às

necessidades do intercâmbio de mercadorias, as próprias notícias tornam-se

mercadorias” (HABERMAS, p. 35). Os jornais, um dos primeiros meios de

comunicação a atingir as massas, se constituem como precursores de uma indústria

de bens culturais que tem em seu âmago a tensão entre o fato de ser um produto e

de, ao mesmo tempo, se colocar como porta-voz da crítica social e dos interesses

comuns.

Como mercadoria cultural o sentido de crítica dos primeiros momentos

dessa produção é esvaziado, inclusive pela mudança no papel da burguesia que, de

força transformadora se converte, com sua chegada ao poder, em força

conservadora. Essa tensão não se dissipa com o desenvolvimento da indústria

cultural e é um dos temas que compõe as discussões sobre a democratização das

comunicações, tocando de perto o universo das rádios comunitárias, cuja proposta é

romper diversos níveis de restrições: culturais, econômicas, políticas, informacionais,

pelo descompromisso com a obtenção de lucro que marca os veículos comerciais.

Entretanto as próprias radiocom irão se constituir como um mercado. As

possibilidades de trabalho, de venda de equipamentos, de atração de pequenos

anunciantes, entre outros aspectos, sugerem essa leitura.

Paralelo ao crescimento e à organização da produção de bens culturais em

escala industrial uma série de outras manifestações e produções ocorrem fora desse

circuito. Ao longo de um período de mais de 200 anos, novas tecnologias e a

ampliação dessa esfera, através da organização e mobilização sociais, fazem surgir

novos espaços de manifestação, novos meios e sujeitos sociais dispostos a deles se

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apropriar, e um apelo constante à ampliação do acesso às comunicações, realizado

não apenas pelo papel de consumidores, mas também de produtores. O espaço

dessas manifestações pode ser entendido como uma “esfera pública plebéia”

(THOMPSON, 1998).

Todavia, o olhar de Habermas acaba por se fechar no espaço público

burguês. Alguns autores criticam essa percepção afirmando a existência de um

conjunto de outras manifestações que foram tão importantes para a constituição de

uma esfera pública moderna quanto a participação burguesa. Para Thompson

(1998, p. 69):

Dirigindo [Habermas] a atenção à esfera pública burguesa, ele tende a negligenciar a importância de outras formas de discurso e atividades públicas que existiram nos séculos XVII, XVIII e XIX na Europa, formas que não fizeram parte da sociabilidade burguesa, em alguns casos dela foram excluídos ou a ela se opuseram. (...) Da mesma forma que a esfera pública burguesa emergente se definiu em oposição à autoridade tradicional do poder real, assim também se confrontou com o levante dos movimentos populares que ela procurou conter.

As críticas também se referem à ênfase excessiva no papel da imprensa no

início do século XVIII e ao caráter restritivo dessa esfera que “não somente era

destinada às elites instruídas e afluentes, mas também implicava uma reserva

predominantemente masculina” (THOMPSON, 1998, p. 70). Em favor dessa linha de

argumentação, Stuart Hall atenta para o fato de que “a imprensa liberal da classe

média da metade do século XIX foi construída às custas da efetiva destruição e

marginalização da imprensa local radical da classe trabalhadora” (2003, p. 251).

Exercício que se repete hoje com a marginalização pela grande imprensa comercial

brasileira das rádios comunitárias.

1.5 A formação da “auto-imagem”: entre a “cultura comercial popular” e a “cultura alternativa”

Nos dias atuais, a relação entre a produção da indústria cultural e do circuito

de uma esfera pública plebéia merece ser pensada. As radiocom se encontram no

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cruzamento destes espaços. A visibilidade que acabam por produzir nas áreas onde

se instalam, onde a menção aos nomes das ruas, aos pontos comerciais, às praças

e às atividades de seus moradores produz o reconhecimento do lugar e de sua vida

social27, oferece uma primeira experiência de espaço público às localidades, sejam

elas bairros periféricos de grandes cidades, ou cidadezinhas do interior, que nunca

interessaram comercialmente aos grandes grupos de comunicação. Num movimento

análogo ao processo de construção do espaço público vivido no início da

modernidade, as rádios comunitárias dinamizam e tematizam a vida local.

Além disto, a produção cultural que circula nessas emissoras também se

encontra no cruzamento entre o massivo e popular. Stuart Hall (2003, p. 248) discute

a produção da cultura popular e sua compreensão a partir da perspectiva do conflito

e da transformação, ou seja, das “lutas em torno da cultura, tradições e formas de

vida das classes populares”.

Desde a constituição do capitalismo, afirma o autor, a cultura popular não é

apenas a forma de viver e significar o mundo de trabalhadores e pobres, mas

principalmente um lugar de transformação, considerando que “o povo é

freqüentemente objeto de ‘reforma’”. A necessidade de adequação as relações de

produção e consumo capitalistas posiciona a cultura como uma lugar onde se

disputa o controle social e o poder.

Ao tomar a cultura popular como objeto, Hall (2003) adverte para a dinâmica

nela existente, marcada pelo “duplo movimento de conter e resistir, que

inevitavelmente se situa no seu interior” (2003, p. 247). Conter e resistir, capitular e

incorporar fazem parte da reprodução cultural. Por isso,

27 No processo de pesquisa de campo, durante a audição de uma emissora comunitária localizada em um bairro onde morei por muitos anos, percebi, surpresa e comovida, a importância da publicação, através da rádio, da vida cotidiana do bairro. A menção aos mercados onde se compra diariamente, os eventos que reúnem seus moradores, a vida cultural das escolas, os recados que os moradores se enviam durante os programas, tudo isso compõe um mapa da vida social do lugar. Eles atribuem valor simbólico positivo à vida comum, tornam o que era antes imperceptível, a dinâmica cotidiana do lugar, em elemento para ser ouvido, discutido e reconhecido, o que vai além das funções de simplesmente informar ou entreter através de uma programação musical. Naquele momento da audição, moradora que fui, senti uma emoção estranha, a de ter sido parte daquele universo que a rádio irradiava.

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O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do ‘popular’” (HALL, 2003, p. 256).

A discussão se torna mais complexa com a “concentração e expansão dos

novos aparatos culturais”, que ocorre no pós-guerra. A oposição entre uma “cultura

comercial popular” e uma “cultura alternativa” (íntegra e autêntica) não responde ao

intricado processo de composição da cultura popular em um quadro de domínio da

informação e da indústria cultural. Hall pondera:

Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas e perdidas (HALL, 2003, p. 255).

No campo das radiocom a produção cultural é também território de tensões

entre o estabelecido, “representado pela cultura comercial popular” e o devir,

representado pela “cultura alternativa”. Essa oposição marcou historicamente as

radiocom em seus primeiros momentos. Como afirma Oliveira (2002, p. 14), “no caso

das radiadoras comunitárias da década de 80, era idealizada a veiculação de Música

Popular Brasileira e canções engajadas, priorizando a transmissão de debates e

mensagens com intenções socioeducativas”.

Essa idealização, que deveria ser realizada no cotidiano das radiocom com a

construção de uma perspectiva alternativa à produção massiva, também toma parte

no processo de composição da auto-imagem dessas emissoras e no processo de

sua legitimação. Oliveira (2002, p.14) registra que

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Nos anos 90 as idéias em torno das rádios comunitárias FMs começaram a refletir a pluralidade cultural existente na sociedade. Na prática as emissoras comunitárias passaram a veicular o forró, o ‘rap’, o ‘funk’, o ‘reaggae’, a Jovem Guarda e músicas internacionais, o ‘rock’ e outros gêneros que representasse essa cultura plural.

Entretanto, a oposição “cultura comercial popular” versus “cultura alternativa”

continuou marcando o debate em torno das diferenças entre rádio comercial e rádio

comunitária. É o que transparece, por exemplo, neste trecho da matéria “Banda de

Música e música bunda” publicada no jornal “ABRAÇO no Ar”:

Diante desta lixeira, e acima da indústria cultural, o papel da rádio comunitária é provocar a reflexão sobre isto, e revelar a música brasileira de qualidade. Não é só seu papel, é sua obrigação. O compromisso é com as raízes da cultura nacional, com a estética e o bom gosto da música brasileira. (...) Sim, é preciso separar o que é bunda do que é arte. Isto é fundamental para a construção de um país (Junho de 1999).

No Brasil, onde a concentração dos meios de comunicação é uma realidade

que acompanha a constituição e expansão do mercado de bens simbólicos, as

radiocom aparecem sob o signo e a expectativa da ruptura. No entanto, a produção

popular e sua relação com a indústria cultural são complexas, indo além da visão

simplificada que recusa todos os produtos por ela elaborados como inautênticos e

alienantes. Como afirma Hall:

O significado de uma forma cultural e seu lugar ou posição no campo cultural não está inscrito no interior de sua forma. Nem se pode garantir para sempre sua posição. (...) O que importa não são os objetos culturais intrínseca ou historicamente determinados, mas o estado do jogo de relações culturais: cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o que conta é a luta de classes na cultura e em torno dela (2003, p. 258).

Todas as rádios pesquisadas, por exemplo, mantém em sua programação a

oferta de um repertório musical consagrado pela indústria cultural e apreciado pela

audiência, entre eles “o brega”, e “o forró”. Na Rádio Favela, de Belo Horizonte, a

tensão entre os dois universos se apresenta em programas como o “Só Lixo”, cujo

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título expressa a avaliação feita sobre a música veiculada sem, entretanto, impedir

que ela vá ao ar. Como afirma um dos diretores da rádio sobre a programação:

Tem um programa que chama ‘Só o Lixo’, que toca só música americana, música de menino ficar balançando a bunda, de quem não pensa (...) O Pessoal fala ‘pô, essas músicas é um lixo’, ninguém entende o que fala, ai virou ‘Só lixo’.

Assim, as questões relativas à oposição indústria cultural x cultura popular

dizem respeito também à produção da auto-imagem e da identidade dessas

emissoras. As rádios se afirmam através do discurso da ruptura, da originalidade e

da autenticidade, o que às vezes as faz refém das expectativas idealizadas sobre o

que deve ser uma emissora comunitária. Nos jornais “ABRAÇO no Ar”, a perspectiva

de ruptura é muito mais forte que na vivência das próprias emissoras, que tem de se

relacionar com os gostos e interesses de seus ouvintes. No jornal, veículo de

articulação política das rádios em nível nacional, a resposta dada aos opositores das

radiocom tende a construir um espaço idealizado da produção das emissoras. O

artigo acima citado, que impõe um padrão de gosto e qualidade às emissoras, é

exemplo disto.

Para entender a força da perspectiva de ruptura é preciso considerar que a

presença das radiocom no “dial” dialoga com a estrutura da radiofonia brasileira, que

se organizou, até a entrada das radiocom, exclusivamente como comunicação

comercial ou como comunicação educativa. Em ambos os casos a comunidade

ganha espaços restritos de manifestação. A abertura do espaço às comunidades é

lida, inicialmente, como a possibilidade de construção de um modelo radicalmente

distinto dos já existentes. O aparecimento de rádios não identificadas com a auto-

imagem gestada pelo movimento de radiocom desde o das primeiras experiências

polarizará a relação entre as radiocom.

1.6 O conflito entre as emissoras comunitárias

Para confrontar a estrutura da radiofonia brasileira, as diferentes iniciativas

de comunicação radiofônica não oficiais vão unir forças no processo de defesa de

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uma lei de radiodifusão comunitária que reconhecesse as experiências já existentes.

Aprovada a Lei, a disputa em torno de quem ocuparia esse espaço e faria uso dessa

definição institui um outro momento, o de conflito intra-radiocom.

Nesse conflito a questão dos vínculos comunitários e de uma programação

diferenciada é usada para separar as “rádios verdadeiramente comunitárias” das

“picaretárias”28. Entre as radiocom, a formação de uma unidade e imagem

consensuais não se tem efetuado. Se na relação com as emissoras comerciais e

com o Estado é possível verificar num determinado período indícios de unidade,

internamente, no campo intra-radiocom, é possível perceber a ausência de consenso

quanto às fronteiras e definições de atribuição. Assim, s significados evocados pela

noção de comunidade são re-significados na defesa de uma posição diferencial no

interior do próprio campo das radiocom.

Com poucos anos de existência, a composição da auto-imagem das

emissoras comunitárias não se apresenta como algo acabado e definido, mas como

um objeto em processo de definição e que, por este movimento, e pelos interesses

em jogo, é alvo de constantes reelaborações e também de disputa. Se antes a

preocupação com a democratização das comunicações e o lugar de utilidade pública

a ser exercido pelas emissoras então colocadas numa posição de entrincheiramento

contra o bloco hegemônico de poder, imperava na produção dos discursos, hoje ela

se pulveriza e é apropriada para defender interesses não apenas dos movimentos

sociais, mas de outros grupos também alijados de meios de comunicação de

pequeno alcance, como pequenos comerciantes, grupos religiosos, notadamente

católicos e protestantes, e políticos de menor expressão.

A moldagem da auto-imagem, pela qual a apropriação e interpretação são

efetuadas, incorpora todos estes interesses, que não são consensuais. A nova

organização do campo das rádios comunitárias e as tendências por ele esboçadas

exigem a reelaboração de sua auto-imagem de modo que seja possível incorporar,

ou senão tematizar, esses novos atores sociais. A expressão “rádios comunitárias

profissionais”, usada por um dos membros das rádios pesquisadas, parece tentar

28 Nas entrevistas com as rádios comunitárias a expressão apareceu por várias vezes, usada por seus integrantes para qualificar rádios sob as quais pesa a desconfiança de não serem radiocom.

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responder a essa necessidade de lidar com novos perfis de emissoras reivindicantes

da categoria rádio comunitária.

Estas emissoras, até então distantes do movimento de rádios comunitárias,

e proibidas de usar o canal de radiocom pelo próprio texto de Lei 9612/9829,

representam orientações que nos últimos anos se tornaram mais freqüentes no

“dial”. São elas:

• Orientação religiosa claramente definida e que passa a atuar como elemento

fundamental de constituição da identidade da emissora. É o caso da rádio

“Plenitude FM”, ligada a “Igreja Pentecostal Jesus é a Aliança”.

• Aproximação das rádios do modelo de organização e manutenção das rádios

comerciais, onde audiência e a busca de recursos publicitários são suas

razões de existir.

• Busca de espaço de promoção política para políticos profissionais, ou

aspirantes a sê-lo (NUNES, 2003).

Estas orientações fragilizam a concepção ideal de pluralidade na

composição da gestão de cada radiocom. Como todos se afirmam rádios

comunitárias, essa pluralidade se desloca do interior de cada rádio, onde deveria

haver uma programação diversificada, representativa da diversidade cultural e social

do bairro, para se organizar e evidenciar no conjunto das radiocom, onde rádios com

orientações específicas produzem em conjunto um cenário plural. É o caso, por

exemplo, da Rádio Círculo FM que se “especializou” em forró. Sua comunidade de

referência deixa de ser geográfica, o bairro, e passa a ser uma comunidade de

afinidades e de consumo cultural, como se verá no último capítulo.

O tipo de orientação de uma emissora e a composição de sua programação

serve como parâmetro para sua classificação. Embora assentada sobre o

pressuposto de pluralidade, alguns discursos sobre as radiocom operam por

exclusão, recusando um conjunto de gostos e interesses culturais como inferiores,

29 Artigos da Lei referentes à prática de proselitismo político ou religioso.

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desinteressantes e pouco educativos. É o que se lê no trecho que se segue, escrito

por um militante do movimento de emissoras comunitárias:

Infelizmente no cotidiano das pessoas a questão cultural geralmente é desprezada. As pessoas brigam por tantas coisas, mas não brigam quando a cultura nacional é estuprada. A trilha sonora deste país fica uma coisa insossa e igual, sem criatividade, de mau gosto, brega, e pouca gente reclama, acha tudo normal. Ao ouvir o que toca nas rádios e TVs comerciais você deveria pensar: “esta música é a melhor música do meu país, eu me orgulho dela?” Você acha mesmo que isto é o melhor que temos? As rádios e TVs comerciais tocam a mesma coisa o dia inteiro e você acha normal. (...) Os programadores musicais das rádios comunitárias devem ficar atentos para não repetir o das rádios comerciais. Cuidado com os pedidos musicais dos ouvintes. Não esqueça que eles, como você, como todos nós, estamos mal acostumados com as comerciais, que nos impuseram seus gostos e disseram o gosto da gente. (LUZ, 2001, p. 72 e 75)

Longe da idealidade das definições que tratam da qualidade da música e de

outros produtos culturais a serem difundidos pelas rádios comunitárias e consumidos

por seus ouvintes, tais como a “música de raiz” ou “música boa” (LUZ, 1999), a

realidade complexa da dinâmica de oferta e de consumo de bens culturais gera uma

enorme pressão sobre as rádios comunitárias e põe em xeque o exercício de uma

proposta mais “pura” de programação comunitária. Já que, como afirma Stuart Hall

(2003, p.254): “não existe uma ‘cultura popular’ íntegra, autêntica e autônoma,

situada fora do campo de força das relações de poder e dominação culturais”.

A religiosidade popular católica, a expansão dos grupos evangélicos, o

interesse pelo forró tomam espaço no “dial” e reelaboram o discurso tradicional dos

movimentos sociais sobre a democratização das comunicações, bem como sobre o

controle social das radiocom.

O trabalho de Oliveira (2002) revela um novo momento da prática das

emissoras comunitárias. A introdução de um repertório consagrado pela

comunicação de massa começa a ser vista não como alienação ou capitulação da

proposta política inicial das emissoras, como nos anos 1980, mas como uma forma

de trazer para dentro das radiocom a pluralidade social existente fora delas.

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Se a leitura tradicional das rádios e seu papel político não constituem um

repertório em desuso, elas não são mais exclusivas e dividem terreno com todas

essas novas apropriações.

O peso do consumo e as questões capilares que ele levanta não podem ser

vistos de um ponto de vista normativo (o que devem ouvir, o que devem discutir, o

que devem focar como democrático). Eles estão presentes na prática das radiocom

e na relação que eles estabelecem entre seus ouvintes e, principalmente, no

discurso de construção da auto-imagem, como será demonstrado ao longo do texto.

A observação atenta da trajetória de surgimento do rádio, sua gestão como

veículo comercial ou estatal - em contextos nacionais diversos – e, ainda, o

aparecimento das primeiras experiências de comunicação alternativa ajudam a

compreender como se costura a trama que estampa as questões acima

mencionadas. É o que será visto no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO II

O RÁDIO: A HISTÓRIA E OS USOS SOCIAIS

Outubro de 1938. É noite de domingo. Nos Estados Unidos ouvintes atentos

do programa radiofônico “Mercury Theatre On The Air” são informados em tom grave

de um evento extraordinário:

_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes... Os marcianos estão invadindo a terra...

_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes... Os marcianos estão invadindo a terra...

_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes ... Os marcianos estão invadindo os Estados Unidos da América ...

No ar, Orson Wells lia “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells e informava

aos ouvintes de seu programa que ocorria, naquele momento, uma invasão

marciana. A dramatização, em tom jornalístico, foi vivida como evento real pelos

norte-americanos, provocando pânico, histeria e a sensação real de fim do mundo

(TAVARES, 1999). O rádio era naquele momento o mais importante veículo de

comunicação do mundo. Características como a rapidez na transmissão das

informações, a relação de proximidade que se estabelecia através do som entre

emissores e receptores, e o aguçamento da imaginação, próprios do rádio,

transformaram o programa de Wells daquela noite em um marco da história da

comunicação de massa.

O rádio, nas funções em que conhecemos hoje, é um saldo de guerra. Ao

final da Primeira Guerra Mundial rádios fabricados para as tropas “encalharam” na

fábrica. A solução para a venda dos aparelhos foi a construção de uma antena no

pátio da fábrica produtora que passou então a transmitir músicas, desse modo

estimulando a comercialização dos aparelhos (CALABRE, 1999). Assim nasceu a

primeira estação radiofônica. O caráter desse primeiro “experimento” foi de

orientação comercial:

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As possibilidades comerciais não escaparam à atenção dos dirigentes da Westinhouse. Resolveram construir um transmissor maior em West Pittsburg, com o fito de estimular a venda de receptores domésticos de sua própria fabricação e a venda de peças com as quais amadores montavam seus próprios conjuntos. Foi desta maneira que a Estação KDKA de Pittsburg veio a existir, em 1920. (CALABRE, 1999, p. 116)

As reações a essa nova tecnologia de comunicação foram inúmeras,

situando-se entre o espanto e o encantamento. O contato com o rádio, e as

impressões que o meio impôs à reflexão no momento em que surge, estão refletidos

na redação de “Teoria de la radio (1927-1932)”, texto em que Bertold Brecht (1973)

discute o papel social deste meio de comunicação. Preocupado com as

circunstâncias de uso do rádio, o autor simultaneamente antecipa uma discussão

hoje premente sobre a democratização da comunicação e denuncia um tipo de uso

que cristaliza as posições de receptor e emissor, além de discutir também as

implicações desta cristalização em uma sociedade de classes. O que se fala e quem

fala interessam particularmente a Brecht. Posições ideológicas, de classe e o próprio

processo de comunicação são por ele discutidos:

Deseo vivamente que esta burguesia, además de haber inventado la radio, invente otra cosa: un invento que haga posible establecer de una vez por todas lo que se puede transmitir por la radio. Generaciones posteriores tenderían entonces la oportunidad de ver asombradas cómo una casta, a la vez que haciendo posible también que el globo terráqueo viera que no tenía nada que decir (BRECHT, 1973, p. 82).

Em outra frente, Mcluhan (1969) faz uma leitura positiva dos meios de

comunicação contemporâneos, reconhecendo-os como extensões do homem e de

seus sentidos. Como expansão de nossa audição o rádio condensa várias

possibilidades, rompendo os limites impostos pelos contatos face-a-face. Todavia,

Mcluham reconhece que estas potencialidades, que envolvem os aspectos da

sonoridade sobre a psique humana, podem ser usadas para fins políticos totalitários

ou para a realização de possibilidades democratizantes e pluralistas. A ressonância

própria do rádio pode oferecer diferentes apropriações. A este respeito afirma:

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Este é o aspecto mais imediato do rádio. Uma experiência particular. As profundidades subliminares do rádio estão carregadas daqueles ecos ressonantes das trombetas tribais e dos tambores antigos. Isto é inerente à própria natureza deste meio, com o poder de transformar a psique e a sociedade numa câmara de eco. A dimensão ressonadora do rádio tem passado despercebida aos roteiristas e redatores, com poucas exceções. A famosa emissão de Orson Wells sobre a invasão marciana não passou de uma pequena mostra do escopo todo-inclusivo e todo envolvente da imagem auditiva do rádio. Foi Hitler quem deu ao rádio o real tratamento wellesiano (MCLUHAN, 1969, p. 337).

Embora perceba com otimismo a relação das novas tecnologias de

comunicação com os sentidos do homem, Mcluhan não deixa de atentar para o uso

social que se faz dessa tecnologia; a referência a Hitler confirma sua atenção aos

usos sociais. A crítica à utilização dos meios não se confunde com uma crítica à

tecnologia e a uma inerente vocação dos meios à destruição e perturbação social.

Por isso ele considera que qualquer veículo de comunicação para se tornar portador

de qualidades positivas, como a pluralidade, a regionalização da programação30,

depende da gestão social de seus recursos.

As preocupações de Brecht e Mcluhan tinham razão de ser. A partir da

década de 1930 o rádio é incorporado como um dos instrumentos de propaganda

política em diferentes regimes. O nazismo e o fascismo fizeram uso massivo do

rádio (LENHARO, 1990), e esta não foi a única experiência. Na América Latina este

modelo de uso inspirou outros regimes autoritários, como o varguismo e o peronismo

(CAPELATO, 1998), ainda que, como defende Barbero (2001), tenha oferecido para

alguns ouvintes a primeira experiência do que era a nação.

No Brasil a história do rádio começa em 1922, ainda muito tímida e regulada

por uma burocracia que distribuía “autorizações” para a propriedade dos aparelhos

mediante o pagamento de uma taxa. O rádio irá ao longo do tempo marcar a vida

nacional e das comunicações no país. Ortiz (1995, p 39) afirma que: 30 A respeito destas características, afirma: “Como a TV aceitou o encargo da cadeia central derivado de nossa organização industrial centralizada, o rádio passou a ter liberdades de diversificação, prestando serviços locais e regionais que antes não conhecera, mesmo nos primeiros tempos dos amadores de rádio-galena” (MACLUHAN, 1969, p. 344).

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Até 1935 ele se organizava basicamente em termos não-comerciais, as emissoras se constituindo em sociedades e clubes cujas programações eram sobretudo de cunho erudito e lítero musical. (...) A década de 20 é ainda uma fase de experimentação do novo veículo e a radiodifusão se encontra muito mais amparada no talento e na personalidade de alguns indivíduos do que numa organização de tipo empresarial.

A passagem dos anos 1920 para 1930 ofereceu a primeira variação

tecnológica significativa no rádio. Ainda naquela década31 os rádios eram de galena,

tecnologia que implicava um custo mais alto de produção e restringia a escuta ao

uso de fones de ouvido, limitando-a a uma ou duas pessoas. Naquele momento

existiam apenas 19 emissoras no país (TAVARES, 1999). A partir da década de

1930 os rádios passam a usar em substituição a galena a tecnologia da válvula, o

que barateia os custos e alarga o espectro de ouvintes, já que um número muito

maior de ouvintes poderia partilhar a escuta a partir de um único aparelho. Neste

novo momento ocorre simultaneamente a expansão do número de aparelhos e de

emissoras de rádio e a mudança na legislação que o rege. Nos primeiros momentos

do rádio no Brasil não havia permissão para a veiculação de publicidade.

A abertura para inclusão de publicidade orienta o rádio para uma perspectiva

mais comercial (ORTIZ, 1995). Os clubes de radiouvintes e a organização em um

molde não lucrativo são substituídos pela organização comercial. Ainda assim, há

um forte controle do Estado e uma disputa em torno de projetos distintos. De um

lado a defesa do rádio como meio educativo, de outro a defesa do rádio como

veículo de entretenimento (CAPELATO, 1998). O ambiente político e econômico que

constitui essa disputa de modelos são os anos 1930.

Nesse período o Brasil testemunha a “Revolução de 30” e o inicio do “Estado

Novo” (1937-1945). A emergência das massas no cenário político e a necessidade

de consolidar uma situação de adesão popular que abrandasse o conflito e a tensão

advindos da forma de chegada de Getúlio Vargas ao poder e, ainda, a arquitetura de

31 Movimento análogo ocorre nos anos 1970 com a introdução do radio em freqüência modulada, FM, variação técnica que irá popularizar a montagem de estações de rádio, já que mais barata que a tecnologia empregada em amplitude modulada, AM. Sobre isto afirma Tavares (1999 p. 281): “A partir de 1970 as emissoras de FM passaram a predominar nos meios radiofônicos do país; foi uma verdadeira revolução. Nova programação, nova linguagem e nova maneira de fazer rádio”.

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um projeto político de integração nacional, transformaram o rádio em um aliado

importante dos interesses do Estado Novo.

O regime, cujo viés autoritário e ditatorial se inspira no uso que fizeram dos

meios de comunicação o nazismo e o fascismo, tomará o rádio como veículo de

propaganda política. A “Hora do Brasil”, programa radiofônico de transmissão

obrigatória em cadeia nacional e até hoje levado ao ar, data deste momento político.

A esse respeito, afirma Capelato (1998, p.77):

O uso político do rádio esteve voltado para a reprodução de discursos, mensagens e notícias oficiais. Em 1931 foi criado o programa “A Hora do Brasil”, reestruturado em 1939, após a criação do DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda]. O programa tinha três finalidades: informativa, cultural e cívica. Divulgava os discursos oficiais, os atos de governo, procurava estimular o gosto pelas artes populares e exaltava o patriotismo, rememorando os efeitos gloriosos do passado. Ele era reproduzido, também, por alto-falantes instalados nas praças das cidades do interior.

Embora incluído no rol das estratégias de propaganda de um regime não

democrático, não era consensual a orientação que a programação radiofônica

deveria tomar. Capelato (1998, p. 79) afirma que “houve forte polêmica, nos anos 30,

entre a perspectiva político-cultural e a perspectiva empresarial voltada para o

consumo. Os ideólogos nacionalistas, artífices do Estado Novo, defendiam o projeto

de radiodifusão educativa com vistas à formação da consciência nacional

considerada indispensável à integração da nacionalidade”32.

A discussão em torno do caráter do rádio brasileiro envolvia não apenas o

governo mas também os intelectuais. Como afirma Calabre (2002, p. 23): “à medida

que o rádio ia se popularizando, passava a sofrer fortes críticas de uma parte da

intelectualidade, que insistia em mantê-lo como um veículo com fins educativos e

divulgador da produção cultural erudita”.

Durante todo o Estado Novo o controle dos meios de comunicação se

mantém. Com o rádio, o principal veículo de massa da época, não será diferente.

32 A Argentina de Perón também fez uso extensivo do rádio. Mantendo a liberdade de expressão como preceito constitucional, o que Vargas não fez, monta uma estrutura paralela de comunicação, capaz de saturar os ouvintes com a propaganda de governo (CAPELATO, 1998).

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Ainda que pouco a pouco o caráter comercial se imponha e com ele a necessidade

de maior liberdade (ORTIZ, 1995) se afirme. Segundo Capelato (1998, p. 76):

O rádio firmou-se nessa década, adquirindo grande prestígio entre os ouvintes graças a programas humorísticos, musicais, transmissões esportivas, radiojornalismo e às primeiras radionovelas. Em 1937 havia 63 estações e em 1945, 111. O número de rádio-receptores aumentou, durante o Estado Novo, de 357.921 aparelhos para 659.762 em 1942.

Embora o crescimento fosse considerável, sua distribuição pelo território

nacional era bastante irregular, concentrando-se essencialmente no sudeste do país

e sobretudo no Rio de Janeiro, então distrito federal. Tomando como base os dados

do censo de 1940, Calabre (2002) percebe que apenas 5,74% das residências do

país possuíam rádio, enquanto que então na capital nacional esse número era de

46,23% dos domicílios.

Mesmo considerando esse desequilíbrio, entre as décadas de 1940 e 1950 o

rádio vive seu momento de glória. Os investimentos publicitários em um país com

grande índice de analfabetos se concentram principalmente no rádio e as produções

dos programas têm fortes vínculos com o mercado. Vários programas recebem o

nome de seus anunciantes, como “Repórter Esso” e “Rádio Almanaque Kolinos”,

entre outros. Como observa Calabre (2002), “o rádio foi um excelente veículo de

divulgação de novos hábitos de consumo, sendo o preferido das multinacionais para

o lançamento de novas marcas e produtos”.

Criada em 1936 a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, cujo nome expressa

bem o ideal de integração da nação que o rádio encarna em seus primeiros trinta

anos de existência, chega aos anos 50 como a grande emissora do país (CALABRE,

2002; TAVARES, 1999). A rádio era parte de um conglomerado de empresas

jornalísticas33 e já nasceu com o propósito de ser a maior emissora do país. Os

fatores de seu sucesso associam-se a um propicio cenário onde:

33 O grupo era formado pelo jornal “A noite” e pelas revistas “Carioca”, “A Noite Ilustrada”, “Vamos Ver” e pela “Editora S.A Rio”, todos pertencentes ao norte-americano Percival Farquha (CALABRE, 1999).

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A legislação fornecia[através da regularização da publicidade] maior estabilidade ao setor; no campo profissional começava a surgir um grupo de artistas formado pelo rádio, que iniciaram suas carreiras diretamente nesse veículo; na parte técnica, os aperfeiçoamentos eram constantes (...) (CALABRE, 2002, p. 32).

Trabalhando com quatro núcleos para a programação: de música,

dramaturgia, jornalismo e de programas de variedades a emissora ganha a liderança

da audiência nacional, destacando-se, principalmente a partir de 1941, através das

radionovelas. As novelas radiofônicas foram um dos primeiros produtos culturais

realizados pelo rádio a ter circulação nacional. Produzidas pela Rádio Nacional,

eram copiadas e vendidas para irradiação em emissoras de todo o país, o que

barateava bastante os custos de sua produção (CALABRE, 2002). Depois dos anos

1950, com o advento e a popularização da televisão, o rádio é obrigado a reformular

sua programação, em virtude da divisão, com o novo veículo, das verbas

publicitárias. Além disto, a partir de 1964 “o governo militar investiu na integração

televisiva do país e as rádios foram adotando o modelo das rádios locais, com

notícias e prestação de serviços, músicas gravadas e esportes” (CALABRE, 2002, p.

50).

O rádio perdeu seu “glamour” mas continuou sendo o meio de comunicação

mais presente nos lares brasileiros. A relação com os interesses oficiais e a

presença do controle estatal será mantida.

2.1 Rádio e movimentos populares

Se até o inicio dos anos 1930 a programação radiofônica baseava-se em

música, óperas e textos instrutivos (TAVARES, 1999, p. 55) a partir de 1931, com a

autorização de veiculação de publicidade pelo rádio, ou seja, em seu formato

comercial, o rádio constrói uma programação variada em que aparecem diferentes

tipos de programas: de auditório, musicais variados e radionovelas34 (ORTIZ, 1995,

p. 40).

34 Isto a partir de 1941.

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O aspecto de instrução começa a ceder espaço para o entretenimento. No

entanto, a partir da década de 40 o rádio ganha outros usos e outros objetivos que

não apenas a distração. Novos atores sociais também aparecem e reivindicam o

direito às ondas do ar. Entra em cena a idéia de unir mobilização e articulação social

com comunicação. Ao ser proposta esta articulação as posições receptor-emissor

são colocadas em questão.

O tipo de tecnologia empregada no rádio o tornou um veículo ‘por

excelência’ para o trabalho com grupos proletarizados. Isto se relaciona a fácil

operação e um processo de construção relativamente simples se comparado a

outras tecnologias de comunicação como a televisão ou o cinema. Além de ser

barato, a não exigência de letramento para a decodificação de suas mensagens o

torna um veículo popular. Aspectos emocionais da escuta e a possibilidade de

mobilidade que ao longo do tempo se alarga e permite que a audição e a realização

de tarefas de trabalho ocorram simultaneamente aproximam este veículo das

classes populares (COGO, 1998, p. 55).

Na América Latina algumas experiências celebram este novo uso. Em 1947

na Colômbia a Igreja Católica e um grupo de camponeses fundam, através da Ação

Cultural Popular (ACPO) a Rádio Sutaneza. Segundo Cogo (1998), o objetivo da

Rádio era o “desenvolvimento rural”, o que incluia um amplo projeto de alfabetização

à distância. A Sutaneza aparece como uma das primeiras experiências deste tipo e

será também a inspiradora de outras iniciativas semelhantes. Afirma Cogo (1998,

p.60) que:

O êxito do modelo da Ação Cultural Popular (ACPO) – Rádio Sutaneza – acaba inspirando todo o conceito de rádio educativa e de escola radiofônica na América Latina e em outros continentes. Somente na América do Sul, 24 programas de radiodifusão são implantados com base no modelo da Sutaneza.

As rádios sindicais são outra vertente de uso do rádio com objetivos de

mobilização social. Na Bolívia, simultaneamente à experiência colombiana da

Sutaneza se organizam rádios sindicais. Segundo Cogo (1998, p. 63), “os dados

sugerem, (...) que já em 1946, dois anos após a criação da Federação Sindical de

Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTM), os mineiros decidem investir na

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montagem de sua própria emissora”. Segundo Oliveira (2002, p. 44), em 1947 é

criada a Rádio Sucre:

Esta experiência foi considerada um prenúncio do Movimento Revolucionário de 1952. Este movimento levou ao poder o Movimento Nacionalista Revolucionário e com ele houve o ressurgimento e uma atuação mais livre para as rádios mineiras. A rede de rádios mineiras chegou a quase trinta emissoras entre 1957-1964.

Há nestas duas experiências pioneiras a indicação de duas vertentes que se

desenvolveram na América Latina (COGO, 1998). De um lado rádios ligadas a

movimentos sociais organizados pela Igreja Católica, que misturavam ideais de

organização política e transformação social com evangelização. De outro, rádios

mais laicas ligadas a organizações trabalhistas, como os sindicatos, cujo conteúdo

da programação é político-informativo.

Na década de 1960, no Brasil, Paulo Freire revolucionou a educação através

de um novo método de alfabetização. A idéia de um ensino voltado não apenas para

o letramento burocratizado, mas direcionado para a libertação era algo que não

havia sido experimentado, principalmente pelas classes populares. O teor de

esperança e de mobilização que esta proposta continha veio ao encontro dos

anseios dos movimentos sociais. Alfabetizar passou a significar não apenas a

decodificação de palavras, mas a possibilidade de leitura e de compreensão do

mundo; e lendo-se o mundo, tornava possível transformá-lo. Assim, de acordo com a

história de mobilização que o rádio na América Latina já contava, isto foi posto em

prática em projetos de educação.

O MEB, Movimento de Educação de Base, criado em Natal, no Rio Grande

do Norte, em 1961, foi uma ação da Igreja Católica de inspiração freiriana35. Era um

programa de alfabetização de adultos a partir de emissoras radiofônicas. Neste

programa a alfabetização é entendida como um projeto de leitura do mundo e ponto

de partida para organização e mobilização popular, a caminho da transformação, 35 O projeto MEB não representava homogeneamente a visão da Igreja Católica. A esse respeito afirma Cogo (1998, p. 36-37): “Ao lado do apostolado leigo, organizado pela Ação Católica, o MEB foi um dos projetos que mais provocou polêmica e sofreu contestação por parte da hierarquia católica da época. Justamente, segundo Ismar de Oliveira Soares, ‘pelo fato do MEB adotar com inspiração os postulados freirianos’”.

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ainda que direcionado para uma proposta evangelizadora. Segundo Cogo (1998), ao

relacionar os universos da comunicação e da cultura, a educação tornou-se ponto de

partida para a explicitação do conceito de “comunicação popular”.

Embora se constituindo como uma experiência de radioeducação importante

e de proporções impressionantes, o MEB não é a primeira tentativa de utilização do

rádio para esses fins no Brasil. O caráter de instrução marca o rádio desde seus

primeiros momentos. A programação dos radioclubes, como vimos, tem essa marca.

Também as disputas dentro do Estado Novo por um projeto de comunicação que

desse ao rádio uma orientação mais voltada à educação são reflexos da tensão

histórica entre projetos de entretenimento e educação pensados para este veículo.

Já na década de 1950 Wanderley (1984) registra como antecedentes do MEB o

SIRENA, Sistema de Radiodifusão Nacional, um programa de radioeducação estatal

e o SAR, Sistema de Assistência Rural, uma iniciativa da Diocese de Natal, inspirada

na experiência da rádio colombiana Sutaneza.

O MEB contava com 1410 escolas radiofônicas da Arquidiocese de Natal. A

rede que o formava era o resultado, segundo Della Cava e Monteiro (1991) de

interesses convergentes da Igreja e do Estado. Do lado da Igreja a “campanha

contra a ‘proliferação de seitas, que já estava nas páginas dos jornais e das revistas

católicas desde o final dos anos 1940, precisava alcançar agora um meio técnico

mais eficiente, sobretudo levando-se em conta que os católicos mais propensos à

‘conversão herética’ eram os que não sabiam ler” (p. 224).

Como vimos, já a partir da década de 1940 se anuncia uma relação entre os

movimentos sociais e a comunicação radiofônica que se estreitará nas décadas de

1970 e 1980. A Igreja Católica, principalmente através da Teologia da Libertação e

das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) passa a trabalhar a idéia da construção

de canais próprios para o exercício da comunicação popular: jornais, emissoras de

rádios e outros veículos fazem parte deste projeto (COGO, 1998; DELLA CAVA;

MONTEIRO, 1991).

É interessante notar o contexto em que a busca por novos canais de

comunicação se fortalece. Iniciativas como a do MEB não são exclusividade apenas

da Igreja Católica em um esforço de evangelização, mas parte de uma tendência

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que se verifica em diferentes movimentos sociais e populares. Há uma extensa

bibliografia que discute, desde Brecht (1973), os aspectos da comunicação popular e

seu papel de insurgência política dentro dos mecanismos da indústria cultural, sendo

importantes, neste sentido, os trabalhos de Festa e Lins da Silva (1986), Melo,

(1979) e Melo (1980). A década de 1960, após a instalação da ditadura militar no

Brasil, exige estratégias que burlem o cerco às restrições impostas pela censura.

Como se sabe, em períodos de ditadura toda comunicação que se opõe ao regime é

rechaçada, tornando-se por isso clandestina ou sendo eliminada. Assim, além da

crítica à indústria cultural, a comunicação popular tenta romper os cercos impostos

por um regime ditatorial.

No período que vai dos anos 1970 aos anos 1980 é possível enxergar uma

sutil mudança na orientação da perspectiva educacional-organizativa. Segundo

Doimo (1995, p. 130),

Antes invariavelmente associada à experiência de alfabetização de adultos, a educação popular passa, a partir de meados dos anos 70, a ser preferencialmente utilizada em seu sentido estritamente organizativo-conscientizador e a agregar novos valores ético-políticos como a “democracia de base” e a “autonomia”, dentro da metáfora do ‘povo como sujeito de sua própria história’.

Este processo que percebo como sendo de autonomização, ainda que neste estágio

embrionário, será tratado a seguir.

2.2 A inspiração das rádios livres européias

Simultaneamente ao uso como instrumento educativo e de organização

pelos movimentos sociais na América Latina, o rádio é alvo de disputas e

contestação na Europa, a partir de 1950. As influências desse movimento se farão

sentir no Brasil dos anos 1980. O movimento se opõe, principalmente, ao monopólio

do rádio pelo Estado. Em diversos países, como França, Inglaterra e Itália se

verificam iniciativas de desmonopolização. Algumas destas iniciativas contestatórias

serão apropriadas por grupos cujo objetivo é abrir espaço para a radiodifusão

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comercial. O movimento se organiza em torno da idéia de liberdade no rádio e as

“rádios livres” passam a requerer o direito à palavra.

Essa idéia parece se tornar dominante no período que se inicia em meados

dos anos 1970, perdurando nos anos 1980. Ainda que a literatura registre a

existência de rádios não autorizadas desde a década de 1920 na Austrália, nos

Estados Unidos e no Brasil já em 1931 (MELIANI, 1995), a defesa do direito de fazer

rádio só se expressa com mais força e de forma orgânica nesse período.

A condição de clandestinidade, experimentada por aqueles que fizeram uso

do rádio sem os auspícios do controle estatal, passa a ser questionada.

Diferentemente do que se processa nos anos 1940, 1950, e 1960, a partir de 1970 o

que se deseja é a própria possibilidade de existir sem o controle repressivo do

Estado. E esta passa a ser a grande bandeira desse movimento.

Desde os anos 1950 esse movimento esboça suas primeiras ações. O termo

“rádio pirata”, muito usado hoje no Brasil para classificar rádios não autorizadas,

aparece junto com um movimento de contestação do monopólio estatal no rádio na

Inglaterra. Já é famosa a história dos barcos que transmitiam do oceano emissões

radiofônicas, burlando o controle do Estado e registrando audiência. A associação

entre os barcos e a idéia de “contrabando de emissões radiofônica” criou a imagem

e o termo “rádio pirata”. Entretanto, o tipo de programação e o patrocínio para tais

iniciativas indicavam interesses comerciais. Segundo Oliveira (2002, p.75) “até o

surgimento das rádios piratas inglesas, a utilização ilegal do rádio representa uma

bandeira política, mas na Inglaterra essa utilização ganhou um caráter comercial”.

Sob inspiração do movimento italiano de rádios livres, em 1969 a França

registra sua primeira rádio livre, a Rádio Campus. Assim como na Itália o que se

tenta é a quebra do monopólio estatal e sua crítica. Guatarri, em uma entrevista

reproduzida no livro “Micropolítica: Cartografias do Desejo” (GUATARRI, 1999, p. 105),

fala sobre o movimento francês:

No início era apenas uma minoria: o pessoal das rádios livres era um bando de loucos, um pouco de D. Quixote atacando o grande monopólio. Era espantoso. (...) Rapidamente o fenômeno ganhou uma força incrível, produzindo um impacto sobre a grande mídia, como se esse ato de ilegalidade tivesse criado uma rachadura no

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edifício do monopólio. Parece que, de repente, se implantou uma dúvida sobre a legitimidade desse monopólio.

Em 1978 as rádios livres francesas registram o auge de seu movimento, com

uma explosão no número de emissoras. Diversos grupos culturais e políticos dão

consistência ao movimento. Segundo Guatarri (1999, p. 106), que levou ao ar

durante algum tempo a Rádio Tomate,

Houve então um fenômeno de “bola de neve”: quanto mais se reprimia as rádios livres, mais elas se desenvolviam. Enquanto os sindicatos operários eram inteiramente fiéis ao princípio do monopólio, os grupos de sessões sindicais começaram a se utilizar das rádios livres, o que provocou desequilíbrios e gerou uma série de conflitos dentro dos sindicatos. Os partidos de oposição ficaram solidários às rádios livres, dizendo: “nós somos favoráveis ao monopólio, mas não queremos repressão às rádios livres”. Então, nós pedíamos que viessem dizer isso nas nossas rádios livres. Eles vinham, a polícia vinha atrás e os processava.

Na Itália em 1975 se registra uma crise do monopólio estatal nas

comunicações e em especial no rádio. Essa crise origina dois grupos interessados

na quebra do monopólio estatal: emissoras de perfil comercial e rádios ligadas a

movimentos contestatórios, políticos e culturais. Algumas emissoras que se tornam

referência para o movimento de rádios livres nascem lá, como a Bolonha, de 1975 e

a Alice, de 1976. Nesse mesmo ano o movimento registra sua primeira vitória, com a

liberação das ondas de freqüência modulada para as emissoras livres: em 1978

chegam a ser registradas no país 2.275 unidades (PERUZZO, 1998). Ainda em 1978

ocorre a primeira Reunião Internacional das Rádios Livres, quando se forja o

Movimento Onda Livre.

O controle estatal e a clandestinidade estão irremediavelmente ligados nesta

trajetória. Não apenas porque a segunda é fruto do primeiro, mas principalmente por

um conjunto de interesses divergentes que produz tanto uma quanto outra. As

concessões no Brasil se constituíram historicamente como mecanismos de barganha

política e de controle da opinião pública (BAYMA, 2001). Além disto, serviram a

diferentes interesses econômicos. Paralelo a isto há uma trajetória de organização

social que “descobre” a comunicação e, nesta o rádio, como caminho para a

expressão de suas demandas e insatisfações. Entretanto este processo não ocorre

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de modo homogêneo. A análise da literatura sobre o rádio não autorizado no Brasil

revela que dois caminhos cresceram paralelamente, embora nem sempre

articulados, e algumas vezes ignorando-se mutuamente. Esse processo também

registra, por parte destes grupos, a construção de uma outra sensibilidade política

(OLIVEIRA, 2002). Assim, a trajetória das rádios não autorizadas erige uma pauta de

interesses e demandas, que ao longo do tempo incorpora questões culturais à pauta

política (OLIVEIRA, 2002).

Praticada desde a década de 1940 a comunicação radiofônica não

comercial, com fins educativos ou fins político organizativos viveu, ao longo desse

processo, diferentes fases. Olhada em retrospecto, percebe-se que este tipo de

comunicação seguiu um caminho de autonomização. Nesse sentido, durante a

década de 1980, no Brasil, as diferentes experiências, abrigadas sob denominações

também diversas começam a se tornar mais orgânicas. Fóruns, coletivos,

associações, ong’s, passam a tomar essa orientação de autonomização. Com

denominações diferentes as rádios de baixa potência se organizam e a partir dos

anos 90 os dois caminhos se tornam convergentes.

2.3 A gênese das rádios comunitárias

Em um livro de 2001, intitulado “Trilha apaixonada e bem-humorada do que

é e de como fazer rádios comunitárias na intenção de mudar o mundo”, Dioclécio

Luz (LUZ, 2001), um defensor do movimento de rádios comunitárias, tem como

objetivo esclarecer seus leitores sobre o que é uma emissora comunitária e assim

fazendo instruí-los sobre como colocá-la no ar, preservando uma série de

características e princípios. Logo na introdução, cujo primeiro tópico é denominado

“a diferença”, ele afirma o seguinte: “a gente é diferente delas. Elas? Sim, as rádios

comunitárias são completamente diferentes das comerciais. Elas, as comerciais, até

se parecem conosco. Mas elas são elas e nós somos nós”.

Mas o que marca essa diferença e como e quando essa demarcação nasce?

A literatura que constrói uma arqueologia das rádios comunitárias e de seu

movimento não é consensual quanto às datas, eventos e atores sociais do

movimento que a gesta, bem como aos diferentes sentidos do que seja uma

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emissora comunitária. Não há assim um registro preciso sobre o nascimento das

rádios de baixa potência não autorizadas, que têm diferentes denominações: rádios

livres, rádios populares, e mais recentemente rádios comunitárias. Vários trabalhos

registram iniciativas pioneiras que remontam ainda ao início do século passado. Mas

podemos trabalhar com pelo menos duas matrizes, de certa forma já expostas até

aqui. De um lado estão as rádios populares, de outro as rádios livres. Há aqui uma

trajetória de convergência de dois movimentos que se encontram num determinado

momento e sedimentam o terreno que, logo em seguida, será palco de disputas.

2.3.1 As “radiadoras”

Acordar com o som grave, trêmulo e chiado da “radiadora” da cidade.

Comuns em muitas cidades pequenas36 elas foram as precursoras das estações de

rádio que só chegaram ao interior depois da popularização dos transmissores em

freqüência modulada. A “Radiadora do Moreira”, como muitas outras por todo o país,

marcou a vida dos habitantes de Itapajé, uma das cidades do interior do Ceará.

Ficou no ar dos anos 1950 até a morte de seu criador, “o Moreira”, na década de

199037. Anunciava “enterro, missa e tudo em fim”. Os avisos de morte, os pedidos

de ajuda, os avisos de festa, grande parte dos eventos que envolviam a vida da

cidade passavam pelas “radiadoras”. Oferecendo uma série de serviços de utilidade

pública aos seus ouvintes e irradiando as informações através de um sistema de

alto-falantes, geralmente instalados no centro das cidades, as irradiadoras cobriam

uma lacuna de informações que, de outra forma, só seria preenchida pelos contatos

face-a-face.

Ainda que a grande maioria dessas emissoras não fosse usada para fins

políticos, a partir de determinado momento seu formato é apropriado para um uso

politizado da comunicação.

36 Cidades como Canindé e Quixeramobim, entre outras, também tiveram radiadoras. Já nos anos 1990 o Diário do Nordeste (27/06/90) publica a matéria “Seu Adolfo faz meio século de atividade com os alto-falantes”, sobre os cinqüenta anos da radiadora de Quixadá. 37 Conheci esta experiência como moradora da cidade durante parte de minha infância e adolescência nos anos 1980.

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Em várias cidades do país essa tecnologia de comunicação, que remonta à

vida e à memória dos habitantes das pequenas cidades é reinventada nas periferias

das metrópoles. Seus ouvintes são os mesmos: migrantes que trocaram as cidades

pequenas pelas grandes. Em Fortaleza um projeto coordenado por Márcia Vidal,

professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará para

a montagem de rádios populares se pautou nessa memória e nessas experiências38.

No entanto, desde a década de 1940, como vimos, na América Latina o

rádio ganha outra destinação que não a comercial. Ao longo de sua trajetória os

movimentos sociais utilizam-se dos meios de comunicação para fins pedagógicos e

organizativos. Não só em Fortaleza, mas em Recife, São Paulo e em outras capitais,

os anos 1980 são um marco de organização e capacitação de comunidades para a

produção de sua própria comunicação (COGO, 1998). A partir daí os ouvintes

passam a ter a possibilidade de ouvir suas próprias vozes e produzir seus próprios

programas.

Os grupos organizados, associações de moradores, sindicatos, movimentos

de reivindicação são os principais mantenedores destas emissoras. Os objetivos

mesclam organização política e prestação de serviços. Mas, paralelamente a esse

processo, o “dial” começa ser um espaço disputado por outros atores sociais.

2.3.2 Rádios livres no Brasil

Consideradas por alguns autores39 como as antecessoras das rádios

comunitárias no Brasil, as “rádios livres” viveram seu apogeu nos anos 1980. Antes

disso, já na década de 1970, registram-se experiências importantes como a da

Rádio Paranóica de Vitória, no Espírito Santo.

Sorocaba, cidade do interior de São Paulo assiste, a partir de 1982 a um

surto de rádios de pequena potência. As chamadas “rádios livres” ocupam o “dial”. A

maioria delas era levada à frente por garotos que se interessavam por eletrônica, o

que permitia o domínio da tecnologia, e por música, tudo isso temperado com uma

38 Para um panorama mais completo desse movimento ver Oliveira (2002), Matos (2000) e Cogo (1998). 39 Meliani (2000), Peruzzo (1999), Oliveira, (2002).

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dose de rebeldia. Segundo Meliani (2003) a espontaneidade na criação das

emissoras e o prazer de levar adiante as experiências são os principais ingredientes

destas emissoras.

Aparentemente, não há ainda uma organicidade que marque o nascimento

dessas primeiras emissões. Não há bandeiras políticas ou culturais. Como afirma

Meliani (2003, p. 05):

(...) Os contornos dessa intervenção coletiva foram de desobediência civil declarada, e o apartidarismo em que se manifestaram as aproximam de uma forma pura de luta pela democracia. O fato de dar voz às figuras do técnico em eletrônica e do amante da música faz das rádios sorocabanas a mais positiva expressão do prazer em fazer rádio.

Há um experimentalismo da tecnologia e o desejo de diversão. Muitos dos

que levaram adiante as primeiras transmissões não tinham clareza do que

significava colocá-las no ar. Em plena ditadura militar furavam as transmissões de

outras emissoras no horário da “Voz do Brasil”. No entanto, a grande quantidade de

emissoras, a repressão sofrida e o cerceamento da liberdade de expressão

vivenciado no período, ainda sob o domínio da censura, esboçam os primeiros

movimentos de organização das rádios, como o Conselho das Rádios Clandestinas

de Sorocaba, que durou apenas um mês. Num balanço do movimento de Sorocaba,

Meliani (2002, p.) afirma:

As rádios de Sorocaba não resultaram de projetos culturais ou de movimentos sociais, além de não terem resolvido questões como a sustentação financeira. Os conteúdos das programações eram apartidários, com muita música alternativa e a forma como essas rádios proliferaram, exercendo a livre expressão, sem pirataria e de forma autogestionária, as colocam como pioneiras no movimento brasileiro.

Mas o movimento de rádios livres não se restringiu a Sorocaba. Meliani

constrói uma periodização que envolve três momentos importantes. O “verão de 82”

em Sorocaba, quando ocorre a “febre local”, o “’boom’ de 1985 detonado pela rádio

Xilik, da PUC-SP, quando o ideário europeu toma canta da imprensa escrita; e o

terceiro e atual momento, estimulado pelas lutas em torno da redemocratização das

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comunicações e pela apreensão em 1991 da Rádio Reversão, uma das primeiras

rádios livres regulares no Brasil”. (MELIANI, 2003, p. 3).

Quando o termo “rádio comunitária” passa a ser usado, principalmente a

partir da década de 1990, ele representa um novo momento de organização das

rádios de baixa potência não autorizadas. Há uma convergência de interesses

dentro desse espaço que se autonomizou e que indica uma nova orientação da

concepção alternativa frente ao modelo comercial, ainda que essa orientação não

seja consensual dentro do recente movimento criado. A bandeira é a da

democratização. Essa bandeira traz consigo alguns pressupostos: O de que Brasil

não é um país democrático, em relação aos meios de comunicação de massa. E o

fato de que não há, até meados desta década, uma legislação específica sobre

rádios de baixa potência. Como afirma Dioclécio Luz, um militante do movimento de

radiocom:

A luta pelas rádios livres e comunitárias faz parte do processo de democratização dos meios de comunicação. A gente quer que todos tenham acesso a um bem público que é o espaço eletromagnético. (...) A democratização dos meios de comunicação passa por aí, por este questionamento, por essa reflexão pelo uso destes espaços (LUZ, 2001, p. 23).

Cada vez mais, a partir desse período, as rádios populares e as rádios livres

passam a ser denominadas de rádios comunitárias. As diferenças entre ambas são

incluídas e, de certa forma dirimidas, nesta nova denominação. A nova nomeação se

liga a todo um processo de organização das emissoras de baixa potência que

objetiva o reconhecimento legal destas emissoras40.

Assim, a partir da inspiração européia das rádios livres as emissoras

brasileiras passam a questionar o controle do Estado e a discutir a própria relação

entre democracia e comunicação no Brasil. Essa discussão segue um longo

caminho de organização do movimento nacional de rádios de baixa potência. Em

1986 no Rio de Janeiro, um evento festivo tenta reunir as rádios livres. Nele ocorre a 40 Exemplo dessa articulação entre a denominação e a organização do movimento está expressa em alguns trabalhos acadêmicos. É o caso do trabalho de Cogo (1994, 17), onde a autora afirma sua escolha do termo: “Optou-se por enfatizar o termo comunitário, uma vez que, além de utilizado comumente na maioria dos países latino-americanos, é em torno dele que se movimenta hoje toda a luta pela regulamentação das chamadas rádios comunitárias”.

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criação de duas entidades: Associação Brasileira de Ondas Livres no Ar (ABOLA) e

a Cooperativa de Rádios Livres no Brasil (Cora Libre).

Três anos depois, em 1989, a diretoria da União Nacional dos Estudantes

(UNE) organiza o 1o Encontro Nacional de Rádios Livres, com a participação de 10

representantes estaduais. Nesse encontro é aprovada a criação de um Coletivo

Nacional de Rádios Livres (CNRL). Em 1990 registra-se a realização do 2o Encontro

Nacional de Rádios Livres, com participação de outros países (El Salvador,

Argentina, Moçambique). Finalmente, em 1996, ocorre a criação da Associação

Nacional de Rádios Comunitárias (OLIVEIRA, 2003).

Dois anos depois da criação da ABRAÇO, uma lei de radiodifusão

comunitária é criada no Brasil. Abaixo os principais fatos desse período:

• 1995. Encontro de um grupo de radiocomunicadores comunitários

com o então Ministro das Comunicações Sérgio Mota

• 1995. Início da tramitação do primeiro projeto de Lei no Congresso

Nacional

• 1996. Criação da ABRAÇO

• 1997 I Congresso Nacional de Rádios Comunitárias, promovido pela

ABRAÇO

• 1998. Promulgação da Lei 9612/98

• 1998. Editada Norma complementar Nº 2, que complementa as

disposições estabelecidas pela Lei 9.612/98

Um militante do movimento de rádios comunitárias descreve o processo de

negociação política que culmina com a aprovação da Lei:

Que eu me lembre, tinham três propostas que nós consideramos fundamentais. Uma era do Arnaldo Faria de Sá, projeto 1512 que acabou capitaneando todos os outros. Outra era do Gabeira, que a pedido nosso apresentou. Proposta do nosso movimento que naquela época não era a ABRAÇO, era o “Fórum Pela Democratização”. E outra, exatamente essa do Franco Montoro, que

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representava esse setor da radiocom. (...) Então esse pessoal do radiocom, de quem nos aproximamos acidentalmente, acabou compondo com a gente uma proposta de substitutivo que nós apresentamos ao Edson Queiroz. E o Edson Queiroz realmente acolheu muita coisa da proposta que nós apresentamos. E na discussão, depois, pra depurar a proposta e apresentar o substitutivo ele assumiu alguns compromissos conosco e cumpriu. Um deles era manter a publicidade na rádio comunitária. Ele admitia isso e pôs isso no relatório dele. O outro era a potência de 50 watts, que tá no primeiro relatório. O outro era questão de duas freqüências, ao invés de uma, como acabou ficando. Mas o relatório do Edson Queiroz não foi aceito pelo pessoal da ABERT, o pessoal da ABERT derrubou o relatório dele, (...) Botou uma freqüência, baixou a potência pra 25 watts, tirou publicidade e botou apoio cultural, que é um negócio que não tinha absolutamente nada a ver, porque é impossível você captar recursos de apoio cultural. Deformou complemente a lei. Agora, tinha um deputado carioca, chamado Aroldo de Oliveira, que foi o principal articulador da derrota da nossa proposta. (...) foi ele que propôs 1 km de área, ele só queria 10 watts, ao invés de 25, ele peitou esse negócio da publicidade, peitou duas freqüências, só poderia usar uma. Ele foi o principal articulador do setor inimigo das rádios comunitárias. (...).41

A prevalência dos interesses do “setor inimigo das rádios comunitárias”,

representado principalmente pela ABERT, impôs muitas restrições às emissoras.

Durante a negociação do projeto, após a mudança de relator, as rádios foram

perdendo espaço paulatinamente, como se vê no depoimento, para as sucessivas

imposições de mais e maiores limitações a seu funcionamento. Duas delas, o

impedimento de veiculação de publicidade e a potência/extensão do raio de ação

das radiocom fizeram da Lei, mais do que um mecanismo de reconhecimento de um

direito, uma ferramenta para dificultar o funcionamento das radiocom42.

Depois da criação da Lei as rádios ganham maior visibilidade na imprensa e

crescem rapidamente em número. Depois de um movimento de agregação de rádios

de baixa potência que visava unir forças para pressionar o Estado a reconhecer sua

presença, como descrito acima, se configura um novo momento. Nele toma cena um

movimento de legitimação, reconhecimento e diferenciação entre diferentes tipos de

rádios que reivindicam a denominação “comunitária”. A construção da auto-imagem

41 Entrevista concedida à autora durante a realização da pesquisa “Memória e Dádiva em uma Rádio Comunitária”, em 1998. 42 Para sobreviver muitas rádios veiculam publicidade sob a denominação de apoios culturais e para atingir comunidades maiores que 1kilômetro usam transmissores de potência maior que a estabelecida pela Lei.

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das emissoras comunitárias e dos outros, representados por rádios comerciais e por

outras emissoras comunitárias ganha maior importância nesse período.

O embate em torno de concepções diversas e, em alguns momentos,

opostas do papel das rádios comunitárias começa a vir à tona durante o processo de

aprovação da Lei 9.612/98, já que antes dela havia apenas uma definição genérica

que tratava de “rádios de baixa potência”. A lei introduz um componente novo: a

seletividade.

Ao construir uma “reserva de mercado” apenas para as radiocom, excluindo

uma gama de rádios de baixa potência nem sempre identificadas com a norma

jurídica e o que ela define como radiocom, a lei cria pólos de convergência e de

divergência em torno do estabelecimento de critérios capazes de distinguir radiocom

de não radiocom. Há concordância em relação a alguns pontos da Lei de

Radiodifusão Comunitária e enormes divergências em torno de outros.

Em relação à questões como a definição do serviço de radiodifusão

comunitária, as funções e a programação de uma radiocom, e a competência para

levar a frente o serviço, a Lei 9.612/98 oferece uma clara prescrição:

De acordo com a Lei uma rádio comunitária é:

Artigo 1o. Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operando em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a Fundações e Associações Civis, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação de serviço.

As funções de uma rádio comunitária são:

Artigo 3o. O serviço de Radiodifusão Comunitária tem por finalidade o atendimento à comunidade beneficiada, com vistas à:

I. Dar a oportunidade à difusão de idéia, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade; II. Oferecer mecanismo à formação e integração da comunidade, estimulando o fazer, a cultura e o convívio social;

III. Prestar serviços de utilidade pública, integrando-se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário;

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IV. Contribuir com o aperfeiçoamento profissional nas áreas de atuação de jornalistas e radialistas, de conformidade com a legislação profissional vigente; V. Permitir a capacitação de cidadãos no exercício do direito de expressão de forma mais acessível possível.

Em relação à programação, uma rádio comunitária deve:

Artigo 4o. As emissoras de Radiodifusão Comunitária atenderão em sua programação aos seguintes princípios: I. Preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas em beneficio do desenvolvimento geral da comunidade;

II. Promoção de atividades artísticas e jornalísticas na comunidade e da integração dos membros da comunidade atendida;

III. Respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, favorecendo a integração dos membros da comunidade atendida;

IV. Não discriminação der raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relações comunitárias. Parágrafo 1o. É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.

Parágrafo 2o. As programações opinativas e informativas observarão os princípios de pluralidade de opinião e de versão simultâneas e matérias polêmicas, divulgando, sempre, as diferentes interpretações relativas aos fatos noticiados.

Parágrafo 3o. Qualquer cidadão da comunidade beneficiada terá direito de emitir opiniões sobre quaisquer assuntos abordados na programação da emissora, bem como manifestar idéias, propostas, sugestões, reclamações ou reivindicações, devendo apenas observar qual o momento adequado da programação para fazê-lo através de pedido encaminhado à direção responsável pela Rádio Comunitária.

É considerado competente para manter uma rádio comunitária:

Artigo 7o. São competentes para explorar o Serviço de Radiodifusão Comunitária as Fundações e Associações Civis, sem fins lucrativos, desde que legalmente instituídas e devidamente registradas sediadas nas áreas da comunidade para a qual pretende prestar o Serviço, cujos diferentes sejam brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos.

Artigo 8o A entidade autorizada a explorar o Serviço deverá instituir um Conselho Comunitário, composto por, no mínimo, cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, tais como associações de classe, beneméritas, religiosas ou de moradores, desde que legalmente instituídas, com o objetivo de acompanhar a programação da emissora, com vista ao atendimento do interesse

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exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no art. 4o desta lei.

As rádios existentes tiveram de se acomodar aos termos da Lei 9.612/98

para poderem concorrer a uma concessão. A observação do campo e a leitura de

alguns trabalhos realizados sobre o tema43 indicam que a definição de rádio

comunitária considera dois critérios:

1) O legal, cujo parâmetro é a letra da Lei, sobre a qual diferentes associações

de radiocom têm concordâncias e discordâncias parciais.

2) O auto-reconhecimento é o segundo critério. Nesse território de disputa a

discussão sobre a legislação e o balanço de seus aspectos positivos e

negativos se reveste de arma de legitimação das posições. A legitimidade de

uma determinada rádio é buscada através de um movimento em que a

exaltação de suas características e a distinção destas e da própria emissora

ocorre por oposição a outras emissoras, consideradas, dentro dos critérios de

auto-reconhecimento, como “não comunitárias”.

A aprovação da Lei de Radiodifusão Comunitária ao mesmo tempo em que

reconhece a existência das radiocom legitima os mecanismos de repressão e

controle às emissoras que não possuem concessão, pois na medida em que existe

uma legislação específica são obrigadas a adaptarem-se a ela. Lopes (2005) sugere

que a criação da Lei e dos procedimentos de outorga funcionariam, na verdade,

como uma estratégia de contra-reforma, usada para barrar o crescimento das

radiocom no país.

Ao definir o que é uma emissora comunitária, quais funções uma radiocom

deve desempenhar, como deve ser sua programação e quem tem competência para

mantê-la a Lei delimita um espaço e as fronteiras desse espaço: o da radiofonia

comunitária. Entretanto, se estas são as condições de direito para a existência de

uma radiocom, o que ocorre de fato transborda essas fronteiras.

A partir de fronteiras delimitadas legalmente é que se instaura um duplo

movimento: de adesão e distensão ao texto da lei. Aspectos relacionados às funções

43 Ver Peruzzo (1998), Nunes (2000), Fuser (2002).

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e ao tipo de programação de uma radiocom irão contar com o apoio do movimento

de radiodifusão comunitária; outros aspectos ligados à limitação da capacidade de

operação das emissoras serão duramente criticados por ele.

Em função disto, o conhecimento da letra da Lei vai desempenhar um papel

ambíguo na relação intra-rádios comunitárias. Ora irá funcionar como um elemento

de defesa do papel de uma radiocom, e nesse sentido, da própria Lei e da idéia de

legalidade. Ora o papel de controle do Estado sobre a radiodifusão é negado,

abrindo espaço para uma série de interpretações da necessidade de subversão da

legislação. Sob a fresta da negação da lei diferentes modelos de radiodifusão

comunitária ganham terreno.

Outra questão que surge a partir da legislação diz respeito à idéia de

comunidade. No texto da Lei 9612/98 a palavra comunidade aparece como uma

noção auto-explicativa. É citada quatorze vezes, mas em nenhum momento se

define seu significado; embora o parágrafo 2º do Artigo 1º, ao esclarecer o que é

cobertura restrita, afirme: “entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao

atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila”. Nessa acepção

a idéia de comunidade é definida como um dado geográfico, físico, ou seja, “o bairro

e/ou vila”.

Apesar das críticas à Lei, a busca de outorgas marca, a partir desse

momento, a relação das radiocom com o Estado.

2.3.3 O processo de concessão do serviço de radiodifusão comunitária

Em junho de 1999 a capa de um dos números do jornal “ABRAÇO no Ar”44,

da ABRAÇO anunciava: “Uma avalanche! 20.000 requerimentos no Minicon

[Ministério das Comunicações]”. A corrida pela outorga, afirmava o jornal, “extrapola

até a projeção feita pela ABRAÇO, de instalação de 20.000 emissoras nos próximos

10 anos”. Pouco tempo depois ficaria claro que a rapidez no encaminhamento dos

pedidos não teria a mesma velocidade de processamento por parte do Ministério das

Comunicações.

44 ABRAÇO no Ar, nº 12, junho de 1999.

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A disputa pela concessão de um canal de radiodifusão comunitária é muita

acirrada e o processo de outorga bastante lento. Em função da morosidade e de um

conjunto de problema dela decorrentes foi criado em 2003, para assessorar a

“Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das

Comunicações”, o “Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária; para, em

caráter emergencial e extraordinário, realizar todos os atos necessários à instrução,

ao saneamento e ao desenvolvimento dos processos em andamento no âmbito do

ministério das comunicações, relativos aos pedidos de autorização para o serviço de

radiodifusão comunitária”45.

Quando da criação do grupo de trabalho cerca de sete mil processos - entre

pedidos em tramitação, que somavam até então 4.400 e pedidos protocolados -

aguardavam por análise. A extinção em 2002 das Delegacias do Ministério das

Comunicações nos estados, bem como a inexistência de procedimentos

transparentes para a análise dos processos também foram considerados pela

portaria que o criou.

A principal atribuição do grupo era a criação de critérios para a análise de

requerimentos, já que “até então inexistia um Manual de Procedimentos

sistematizado para orientar o processamento dos pedidos de autorização, em

flagrante inobservância do Regimento Interno do Ministério das Comunicações”46,

dando assim maior celeridade e transparência ao processo.

O relatório final do grupo cria o manual “Procedimentos para a análise de

Processos de Radiodifusão Comunitária”47. Parte das mudanças sugeridas nesse

manual diz respeito à criação de prazos a serem respeitados pelo próprio Ministério

das Comunicações no processo de análise dos processos, até então sem definição

específica para serem realizadas, como por exemplo a publicação do Aviso de

Habilitação.

Outras medidas sugeridas foram: a simplificação da documentação exigida

das entidades que se candidatam ao serviço de radiodifusão comunitária; o respeito

à ordem cronológica de apresentação dos pedidos para sua apreciação; melhoras

45 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003. 46 Idem 47 Idem

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na qualidade e variedade dos canais de comunicação entre o Ministério das

Comunicações e as entidades solicitantes da outorga.

Ainda entre as alterações sugeridas está a “consolidação do conceito de

entidade comunitária, habilitada para o serviço de radiodifusão comunitária” que, de

acordo com a sugestão do Grupo de Trabalho, deve ser defina como:

Entidade que não pode manter vínculos de subordinação com qualquer outra e que deve expressar um projeto de construção coletiva de unidade na diversidade, através da garantia estatutária ao ingresso como associado de todo e qualquer interessado domiciliado na área de prestação do serviço, bem como de outras entidades sem fins lucrativos, sediadas nesta área e, também, que todos os seus associados têm direito de votar e ser votados para todos os seus cargos de direção, assim como o direito de voz e voto nas deliberações sobre a vida social da entidade, nas instâncias deliberativas existentes (Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão, 2003).

Preocupações com a garantia de que grupos comunitários e não outros

tivessem acesso ao serviço se expressam no relatório através de sugestões como a

de que haja “uma consulta pública através da qual a comunidade poderá se

manifestar sobre a qualificação das entidades pretendentes”48. O texto critica o fato

de que o atendimento à lei, no tocante a adequação das entidades, é apenas formal,

com a apresentação de documentos, e acontece somente no período de solicitação

da outorga. A consulta, realizada a cada dois anos, seria uma forma continuada de

aferição dos interesses comunitários pela própria comunidade.

Além disso, o relatório sugere a criação do Conselho de Acompanhamento

da Radiodifusão Comunitária, com a função de “deliberar a cerca de conflitos

envolvendo o Serviço de Radiodifusão Comunitária”, e ainda a possibilidade do

envio de reclamações contra a radiodifusão comunitária feita pelos cidadãos ao

Ministério das Comunicações. No tocante a celeridade, o relatório aconselha a

criação de uma Força Tarefa para realizar o processamento dos pedidos que se

amontoaram durante os anos.

48 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003.

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O relatório faz ainda severas críticas ao texto da lei 9.642/98, afirmando que:

“existem na lei (...) contradições insanáveis entre as finalidades atribuídas à

Radiodifusão Comunitária e as condições estabelecidas pela própria legislação para

a execução do serviço e que mudanças nestas tornam-se imprescindíveis”49. Os

pontos críticos da regulação, os acréscimos e mudanças são detalhados no relatório.

O processo de concessão da outorga que autoriza a prestação do serviço de

radiodifusão comunitária se divide em basicamente quatro fases: a demonstração de

interesse; a habilitação; a concorrência; e a aprovação do projeto técnico.

Considerando essas fases apresento a seguir, de modo sumário, os momentos

trilhados pelas entidades para a consecução da outorga50.

O primeiro momento consiste no preenchimento e entrega junto ao Ministério

das Comunicações do “Cadastro de Demonstração de Interesse”. Para isto é

necessário que a entidade requerente seja registrada em cartório, já que o cadastro

coleta informações como o número do CNPJ51, além do nome e endereço, entre

outros dados. O cadastro pode ser postado, enviado via Internet ou entregue

diretamente no setor de protocolo do Ministério das Comunicações em Brasília.

Chegando ao Ministério o formulário gera um processo de outorga de

radiodifusão comunitária. A partir daí tem curso a concorrência entre as rádios

interessadas em um canal de radiodifusão comunitária.

Num segundo momento ocorre a “Publicação do Aviso de Habilitação”. O

aviso de habilitação é uma comunicação de disponibilidade de canal de

comunicação comunitária para uma determinada área, feita pelo Ministério das

Comunicações. Nele um conjunto de comunidades é listado como aptas à recepção

do canal. Segundo dados coletados por Lopes (2005), esse é o pior momento do

processo de outorga, na medida em que não há prazos para que o Ministério

publique os Avisos. Como informa, “dos 14.006 processos analisados, 6112

estiveram represados, aguardando a boa vontade do Ministro das Comunicações

para a publicação do aviso contemplasse suas localidades” (LOPES, 2005, p. 76).

49 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003. 50 Para uma visão mais detalhada do processo de outorga ver Lopes (2005). 51 Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.

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Assim grande parte dos processos emperra nesse procedimento, que funciona como

um gargalo impedindo a passagem dos processos52.

A publicação do Aviso é feita no Diário Oficial e, a partir de 2004, também no

“site” do Ministério das Comunicações. A partir da data de sua publicação as

entidades têm 45 dias para entregar a documentação solicitada no aviso.

O terceiro momento do processo envolve a “fase de habilitação”. Nessa

etapa ocorre a análise da documentação entregue pelas entidades. Segundo dados

de Lopes (2005, p. 82), menos de 1% das entidades envolvidas no processo de

outorga conseguem entregar a documentação sem incorrer em algum tipo de

problema. Comparando dados da radiodifusão comercial e comunitária, o autor

constata que “o percentual de arquivamento de processos de radiodifusão comercial

por não cumprimento de exigências burocráticas é inferior a 10% do total dos

processos arquivados, no caso da radiodifusão comunitária é superior a 80%”. Ao

contrário da grande maioria das rádios comerciais, que possuem aparato jurídico

para prover questões como essas, a maior parte das emissoras pleiteantes de um

canal de radiocom não dispõe de acessória ou orientação no processo.

Depois se a inicia fase de “análise das manifestações de apoio”53, momento

que marca o processo de concorrência entre as entidades interessadas. A análise

considera o apoio que a candidata a radiocom tem de pessoas e entidades para o

seu funcionamento. Caso exista apenas uma entidade pleiteante do canal de uma

área, ela é declarada habilitada, seguindo para a fase seguinte, de apresentação do

projeto técnico.

Entretanto, caso exista mais de uma candidatura para a mesma área, abre-

se o processo de concorrência, onde, ou as candidatas efetuam uma associação

entre si, ou, em caso de não entendimento, é escolhida a entidade com o maior

número de manifestações de apoio. A aferição é feita através da documentação

entregue no início do processo de outorga quando pessoas físicas e jurídicas 52 Levantamento realizado pelo autor, a partir da análise dos processos de outorga entre 1998 e 2004, revela que grande parte dos processos ficam parados pela falta de publicação dos avisos de habilitação pelo Ministério das Comunicações. 53 As manifestações são coletadas através de abaixo-assinado, tanto para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas (entidades), que através do instrumento demonstram tanto interesse no canal quanto acreditarem na credibilidade do proponente. O documento se apresenta como uma primeira mostra da legitimidade da futura emissora em sua localidade.

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(associações de classe, etc) manifestam apoio à candidatura da entidade. Cada

apoio de pessoa física equivale a dois pontos e cada apoio de pessoa jurídica vale

cinco pontos, quem obtiver a maior soma de pontos é declarada habilitada.

Depois as entidades devem apresentar o “projeto técnico”. Assim,

habilitadas, as entidades seguem para o processo de qualificação do projeto técnico,

onde informações técnicas sobre a emissora são apresentadas ao Ministério das

Comunicações.

Na reta final do processo está a “ratificação da outorga”. Confirmada a

qualidade do projeto técnico e de toda a documentação entregue, as entidades

passam a aguardar a confirmação da outorga através da publicação da portaria pelo

Ministério das Comunicações.

Por fim, após a publicação da portaria pelo Ministério as entidades devem

aguardar que o Congresso Nacional54 e o Presidente da República aprovem a

autorização. Só depois podem colocar a emissora no ar.

2.4 As rádios comunitárias em Fortaleza

A segunda metade da década de 1980 é caracterizada por uma mudança no

cenário político nacional, com a consolidação da abertura política depois de um

longo período de ditadura militar. No Ceará, os anseios de liberdade e

democratização reprimidos durante o fechamento político são propícios à eleição,

em 1985, de Maria Luiza Fontenele, a primeira mulher a chefiar o executivo

municipal fortalezense. Eleita por um partido de esquerda, o Partido dos

Trabalhadores, sua vitória foi apoiada por um numeroso grupo de intelectuais que

tomou parte do governo, e cujas propostas de mudança para a administração eram

inovadoras.

Entre as inovações estava a de uso da comunicação para a mobilização

popular e comunitária. Em um contexto de remobilização da sociedade civil, a

54 Em função da demora por parte do Congresso Nacional na aprovação das concessões, foi instituída a Licença Provisória, mecanismo que libera para o funcionamento as rádios que aguardam a posição do Congresso (LOPES, 2005).

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esperança de mudança contida na eleição de Maria Luiza refletiu-se no apoio a

estratégias de comunicação popular. Assim, o projeto de “rádios populares” criado

por Márcia Vidal, professora do curso de comunicação social da Universidade

Federal do Ceará, ganhou apoio financeiro e político da prefeitura.

O projeto previa a instalação de radiadoras populares, que inicialmente

operariam com carros de som, já então chamadas de rádios, em bairros estratégicos

da cidade, localizados em cada uma das subprefeituras que dividiam político-

administrativamente a cidade. A prefeitura entrou no projeto bancando os

equipamentos, enquanto a Universidade Federal do Ceará se encarregava da

capacitação, através, inicialmente, do Núcleo de Comunicação Alternativa, O

NUPOCA, depois rebatizado de Centro de Produção Alternativa, o CEPOCA, criado

em 1987. O Centro tem em sua composição líderes comunitários “ligados as rádios

comunitárias moradores das localidades onde estão instaladas as rádios

comunitárias, sendo, em sua maioria, trabalhadores, militantes de Comunidades

Eclesiais de Base (CEB´s), líderes comunitários, jovens, etc”55.

Houve a formação técnica e política dos comunicadores, que aprenderam

técnicas radiofônicas e de comunicação, além da operação dos equipamentos,

serviços móveis que se utilizavam de tecnologia rudimentar, como explica uma das

participantes do projeto:

Eles (O CEPOCA) tinham esses bolsistas que eles pagavam, tinham alguns equipamentos que eram os mesmos de hoje, é aquela velha história de que os equipamentos têm sido sempre os mesmos: gravador, fita, sempre uma tecnologia de pouca utilidade. Esse é um grande problema da comunicação alternativa, não é um problema essencial, mas é sempre um problema de ter que trabalhar com a tecnologia que sempre é o resto da tecnologia, que dá pra se tocar56.

Desse modo, a espontaneidade na criação das rádios cede espaço, no

Ceará, e mais especificamente em Fortaleza, para uma ação acadêmica que

inicialmente recebe apoio do Estado. Embora haja o registro da existência da rádio

55Texto do Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, elaborado pelo CEPOCA (sd.) 56 Entrevista concedida à autora em 19/07/2004.

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CuraDar's - funcionando desde 1982 no bairro do Pirambu, uma favela de históricas

lutas nascidas dos movimentos populares (SILVA, 1992; MATOS, 1998).

Fortaleza e São Paulo guardam o pioneirismo de vincular as possibilidades

da comunicação comunitária a um deliberado esforço de qualificação política da

comunidade para o exercício da cidadania. A vinculação às Comunidades Eclesiais

de Base e a importância dada pela Teologia da Libertação às mídias alternativas, e

nesta à crítica das mídias tradicionais fomentam essas primeiras experiências.

Segundo Cogo (1994, p. 103) “as CEBs da zona leste de São Paulo são o palco das

experiências iniciais com alto-falantes desenvolvidas no Brasil”.

Inicialmente um megafone a pilha que convida “os moradores para reuniões,

mutirões e demais atividades realizadas na favela” (COGO, 1994, 103) se

transforma em rádio popular, por incentivo do Pe. Bernardo Paquette, um peruano

que conhecia as experiências alto-falantes como rádios populares realizadas no

Peru. Nasce assim a primeira emissora popular da região, a Rádio Nossa Senhora

Aparecida, localizada na favela de mesmo nome. A rádio surge ligada a um grupo de

alfabetização da paróquia de São Francisco de Assis na região de São Miguel

Paulista. Poucos anos depois as emissoras populares se propagam pela região e em

1987 elas somam 42 rádios, sendo a mais importante delas a Rádio do Povo

(GOGO, 1994).

Em Fortaleza, além dos ventos da renovação política que colocaram no

poder Maria Luiza Fontenele, a campanha da fraternidade de 1989, cujo tema era:

“A fraternidade e a comunicação” e o lema: “Comunicação para a verdade e a paz”,

produziram um ambiente social favorável à discussão do tema da comunicação

popular e comunitária57 e animaram a criação de novas rádios.

Na capital cearense, mesmo antes do projeto desenvolvido pelo CEPOCA

registram-se iniciativas de implantação de radiadoras por alguns padres em algumas

paróquias da cidade. É o caso do “Sistema Integrado de Rádios Alternativas de

Messejana” (o SIRASME) projeto levado a cabo pelo padre Luis, da paróquia do

Bairro Santa Maria. Entre as rádios ligadas ao sistema estavam a Dom Oscar

57 A recepção favorável que as emissoras tem dos jornais locais em seus primeiros anos de vida (e que será analisada adiante), talvez se beneficie dessa conjuntura, particularmente do ambiente criado pela campanha da fraternidade.

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Romero, situada no Parque Santa Maria, a Rádio Santo Dias, criada depois e

situada no Conjunto Palmeiras, entre outras. O CEPOCA e o SIRASME irão unir

forças no processo de implantação de emissoras comunitárias. Sobre a parceria se

afirma:

O SIRASME, embora seja uma organização independente, atua em conjunto com o Centro de Produção em Comunicação Alternativa, sociedade civil sem fins lucrativos que integra a maioria das rádios comunitárias em Fortaleza. Além das rádios comunitárias de Messejana, do SIRASME, integram o CEPOCA, as seguintes rádios: Buraco do Céu e Goiabeiras (Barra do Ceará), Genibaú (Antônio Bezerra), Parque São Miguel (Messejana), Recreio da Esperança (Mucuripe), Rádios Nova Geração (Tancredo Neves), Fumaça (João Arruda), Conjunto Ceará, Itamarati e Álvaro Weyne58.

No período posterior à administração Maria Luiza os aparelhos são alvo de

disputa entre o CEPOCA e o novo governo municipal. Uma circular do CEPOCA, de

janeiro de 198959, informa sobre as dificuldades:

(...) apesar das correspondências sofrerem atraso, conseguimos nos mantermos mobilizados diante da ameaça da posse dos equipamentos, pela nova administração a frente da prefeitura de Fortaleza. Atualmente estamos com 03 (três) sistemas em funcionamento. Após várias dificuldades conseguimos colocar no ar as rádios comunitárias: de Messejana (...) (já em funcionamento desde o final do ano passado); Antônio Bezerra (...) (inaugurada no dia 27/01/89); e na Parangaba (também inaugurada na última semana de janeiro/89). (...) No caso dos equipamentos: se legalmente forem expedidos mandatos de reintegração de posse, SÓ ENTREGAREMOS COLETIVAMENTE ATRAVÉS DO CEPOCA.

Além das três emissoras citadas na circular, já então em funcionamento, o

texto faz menção a mais duas, ainda por serem instaladas: “Em breve teremos no ar

mais duas Rádios Comunitárias: na Barra do Ceará – sediada no bairro N. Senhora

das Graças/Pirambu e a outra no Modubim”. Fixadas inicialmente em cinco áreas da

cidade, os problemas relativos a manutenção financeira do projeto foram um dos

primeiros obstáculos enfrentados pelo CEPOCA. Um projeto de 1990 escrito para 58 Texto do Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, enviado pelo CEPOCA para CABEMO, uma instituição internacional de financiamento. 59 Circular Nº 2/89 do CEPOCA de 31 de janeiro de 1989.

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captação de recursos financeiros junto uma instituição internacional60, oferece uma

imagem dos problemas enfrentados pelas rádios naquele, esboça um bom histórico

das emissoras até então e dos propósitos do CEPOCA.

Segundo o Projeto, o principal problema é a falta de equipamento, que

resume-se, segundo descreve o texto, a “um amplificador, uma mesa de som, dois

microfones, um toca discos, dois ‘tape-decks’ (casseteiras)”61: Por isso, afirma ainda

o Projeto:

Tudo isso [“trabalho de organização e conscientização na periferia de Fortaleza e também das atividades desenvolvidas na área da comunicação de noções básicas de saúde, que vem sendo desenvolvidas com o apoio do UNICEF”] está ameaçado de desaparecer por absoluta falta de equipamentos e de recursos para prosseguirmos o trabalho.

No Projeto a função e a importância sociais das rádios são apresentadas da

seguinte forma:

As rádios comunitárias de Fortaleza têm a função essencial de servir as comunidades, ajudando no seu processo de organização e conscientização. O principal objetivo das rádios comunitárias é o resgate da voz popular, dando espaço ao povo para que ele fale reflita sobre sua realidade, fazendo com que a comunicação ajude no processo de transformação da sociedade.

Entre os objetivos específicos a serem desenvolvidos pelo “Projeto de

Rádios Comunitárias” estavam:

- Colocar o povo para falar por ele mesmo, para que ele possa conhecer melhor sua realidade, organizando-se com o objetivo de promover ações que possam resolver seus problemas.

60 Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, enviado pelo CEPOCA para CABEMO, uma instituição internacional de financiamento. A relação do CEPOCA com o Grupo da “Rádio do Povo” de São Miguel Paulista também é mencionada no texto, o que revela o nível de organização e mobilização das rádios já naquele momento. 61 Idem.

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-Valorizar as manifestações culturais populares, resgatando o artista popular: o cantador, o cordelista, os grupos de teatro, as danças e as festas populares, para manter a cultura do povo viva e atuante.

- Dar notícias sobre as lutas das comunidades e sobre suas vitórias, para fortalecer o processo de organização.

- Estimular tarefas coletivas com a distribuição de atribuições e responsabilidade entre todos, visando criar novos laços de solidariedade, respeito e confiança entre membros das diversas comunidades envolvidas no trabalho com as rádios comunitárias.

- Enfim, todo o esforço das rádios comunitárias se direciona no sentido de contribuir para a transformação dessa sociedade em que vivemos, trabalhando para construir uma sociedade mais justa, mais solidária, mais fraterna e mais irmã62.

Os mecanismos usados para a consecução desses objetivos centram-se na

participação popular e na formação e renovação dos quadros, obtidas num processo

de envolvimento da população dos bairros onde as rádios se localizavam.

Nesse momento a programação é decidida coletivamente, e o Projeto afirma

que: “se baseia na participação popular através da realização de ‘sociodramas’,

‘áudio-debates’, entrevistas, comentários e ‘rádios-revistas’ de educação popular”.

Além disso, a programação oferta uma série de serviços, como:

Achar crianças perdidas, ajudar a enterrar os mortos, convocar para as reuniões e lutas para resolver problemas específicos, contar a notícia do jornal na linguagem do povo, dramatizar experiências reais, colocar no ar as músicas que as rádios comercias não tocam, enfim, as rádios comunitárias são o retrato das próprias comunidades que o fazem63.

Além de suprir necessidades de capacitação para “comunicadores

populares”, o CEPOCA desempenha o papel de formação e organização política das

rádios. No quadro abaixo uma visão das atividades de formação técnica e política

realizadas entre 1988 e 1990, primeiros anos de sua existência.

62 Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”. 63 Idem

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Quadro 1: Atividades realizadas pelo CEPOCA entre 1988-1990

Ano Atividade 1988 Assembléias mensais reunindo todos os representantes comunitários. 1988 I Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de

comunicação participativa, entre elas: “sociodrama, entrevista popular, notícia popular, disco-foro, rádio-revista de educação popular e uso e manutenção dos equipamentos da radiadora”. Sete turmas formadas.

1988 I Seminário de Comunicação Alternativa. Reuniu representante comunitários membros do CEPOCA para avaliação das atividades.

1989 II Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de comunicação participativa. Quatro turmas formadas.

1989 Pesquisa de audiência da Rádio Comunitária do Parque Santa Maria. 1990 II Seminário de Comunicação Alternativa. Participação de Pedro Sanchez, da

Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica (ALER) e Roberto Joaquim de Oliveira e Sônia Maria Fonseca do Centro de Comunicação Popular de São Miguel Paulista, São Paulo.

1990 Pesquisa de audiência da Rádio Comunitária do Parque Santa Maria. 1990 III Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de

comunicação participativa. 1990 Participação do CEPOCA no XVII Congresso Brasileiro de Comunicação da

União Cristã Brasileira de Comunicação (UCBC), no painel intitulado “Rádio e Solidariedade”.

Para fazer circular informações sobre o nascente movimento de emissoras

comunitárias, o CEPOCA criou o “Informe CEPOCA”. Ao informar sobre as

atividades da entidade, a publicação “Informe CEPOCA” oferecia um panorama

sobre o universo das rádios: cursos, criação de novas emissoras, convênios,

organização política, entre outros. Visto em retrospecto ele é uma boa fonte para a

compreensão do que mobiliza a atenção do movimento de radiocom nesse

momento. 64

Entre as notícias divulgadas chama atenção um episódio de violência contra

as rádio-radiadoras. É o caso do atentado a “Rádio Alternativa” do bairro Conjunto

Ceará, anunciada pelo “Informe CEPOCA” de fevereiro de 1991, assinado por

Adailton Moreira do Nascimento, coordenador da rádio:

A Rádio Alternativa do Conjunto Ceará, foi obrigada a suspender suas atividades desde o mês de agosto por ter sofrido uma série de atentados à bala em suas cornetas e sua torre ter pegado fogo, por isso a rádio passou por uma longa reforma. Para a alegria de todos a rádio estará novamente no ar a partir de 25 de janeiro, perturbando

64 Cópia integral dos dois primeiros números do boletim anexo 2.

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os donos do poder político e econômico do país, responsáveis pela fome e miséria absoluta que já viraram rotina. (...)

Ao acumular uma experiência na área de capacitação e formação política o

CEPOCA acaba ganhando visibilidade. Em resposta aos atentados sofridos pela

Rádio do Conjunto Ceará, o artigo da jornalista Ivonete Maia intitulado “Rádios

Comunitárias”, publicado pelo jornal “Diário do Nordeste” de 22/10/1990 faz uma

contundente defesa dessas emissoras65:

O fato é que cerca de duas dezenas de rádios comunitárias já surgiram em Fortaleza, localizadas em bairros da periferia, tocadas por associações e por grupos de pessoas que recorrem a quem possa ajudá-los na implantação e na consolidação. A prática vem demonstrando a eficácia da iniciativa, exatamente porque significa a criação de um espaço de comunicação direta, informal e objetiva com o próprio bairro. Mais: é um lugar conquistado pela comunidade para dar-lhes possibilidade de discussão, denúncia e interpretação dos seus próprios problemas. Significa a existência de um espaço difícil de ser assegurado nos veículos de massa, cuja ressonância nem sempre tem as conseqüências desejadas. (...) o que pode se fazer através desses pequenos sistemas de som é algo sem estatísticas ou diagnósticos objetivos. É um semear e é um combate, cujos frutos e cujas vitórias virão com o tempo. É só ter paciência e esperar.

Em 1995 o centro de formação une-se a Arcos, “Associação das Rádios

Comunitárias de Fortaleza”, e nasce assim a Arcos-CEPOCA. A fusão da

Associação ao CEPOCA alia os aspectos de formação técnica, já trabalhados pelo

Centro, a questão da mobilização e formação política das rádios e das comunidades.

A entidade conseguiu montar uma produtora, com um estúdio de boa qualidade que

servia para capacitação e produção de materiais das rádios comunitárias, ao mesmo

tempo que mobiliza as rádios no confronto com as entidades como ACERT e órgãos

do Estado como Departamento Nacional de Telecomunicações (DENTEL),

substituído depois pela Anatel, e Polícia Federal.

65 O tom desse artigo é bastante característico da cobertura que tem as radiadoras nesse primeiro momento. Aspectos positivos como as diferentes possibilidades da comunicação comunitária são lembrados, em oposição às dificuldades de realização dessas mesmas possibilidades nos veículos de massa. Tom completamente diverso passa a ser empregado quando a fase das radiadoras é superada, passando as comunitárias a operarem em freqüência modulada.

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Em 2001 a Arcos-CEPOCA encerra suas atividades, depois de um

conturbado processo eleitoral mobilizado pela disputas internas pelo controle da

entidade. Além do controle estava no centro das disputas a própria sobrevivência

financeira da Associação, que então se preparava para a concorrência de uma

licitação da Prefeitura de Fortaleza com vistas a implantação de rádio-escolas. A

entidade nem chegou a participar da licitação e pouco depois, fragmentada pelos

conflitos internos em torno da sucessão eleitoral, encerrou suas atividades.

De 1995 a 2001, período em que a entidade existiu, vários fatos importantes

no Ceará e em nível nacional pontuam a história do movimento de rádios

comunitárias. A mobilização em torno dos projetos de Lei que visavam a legalização

das radiocom; a criação da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias, a

ABRAÇO, na qual a Arcos-CEPOCA teve uma posição destacada; a promulgação

da Lei 9.612/98 e da Norma Complementar ao texto da Lei; o barateamento dos

equipamentos e o crescimento do mercado de transmissores; o crescimento

vertiginoso do número de emissoras em freqüência modulada; e, por fim, o processo

de esfacelamento do movimento de rádios comunitárias que acontece não apenas

no Ceará, mas também em nível nacional, tendo como conseqüência o desgaste da

imagem da ABRAÇO66.

Todos estes eventos são sintomáticos das transformações que se

encontravam em curso na área da radiofonia comunitária, não apenas no Ceará mas

também no Brasil. O conjunto dessas mudanças afeta significativamente a

organização política do movimento. Um dos antigos diretores da Arcos-CEPOCA 67

faz uma interessante análise desse processo:

Quando saiu a lei de rádios comunitárias, as empresas que vendem equipamentos criaram um outro público alvo que foram os prefeitos e os Deputados: “Monte a sua rádio comunitária”. As Câmaras estaduais e federais viviam recebendo folder de empresas que vendiam seus equipamentos: “monte a sua rádio comunitária, porque agora é lei”. E aí começou a surgir uma série de rádios comunitárias,

66 Um texto publicado no “site” do “Centro de Mídia independente” em 2003 (www.midiaindependente.org/es/2003/08/260539.shtml), intitulado “Irregularidades na Abraço RS” afirma que “dirigentes da Abraço RS tem utilizado a entidade só, e somente só, para proveito próprio”. O texto assinado por dois membros do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações é um exemplo desse processo de desgaste que sofre o movimento. 67 Entrevista concedida à autora em 02/05/2003

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que nós chamamos de picaretárias, que são as de prefeito, de vereadores, de deputados. E aí as Evangélicas. Por que as evangélicas? Porque já existiam as católicas. Então, as evangélicas: "se as católicas podem por que nós não podemos?". Aí surgiram uma série de rádios evangélicas.

A criação da Lei de Radiodifusão Comunitária é um marco importante para

as mudanças que ocorrem. A instituição da idéia de legalidade abre o cenário à um

conjunto de novos atores, sem tradição de militância junto ao movimento de rádios

comunitárias, muitos deles “sensibilizados” pelas possibilidades divulgadas pelas

empresas de equipamentos. O crescimento do número de rádios e as dificuldades

de relacionamento com uma legislação extremamente restritiva erigem a ordem

jurídica e não a organização e mobilização sociais como caminho para a defesa do

direito recém criado. Como o analisa um ex-diretor diretor da Arcos-CEPOCA68:

Depois de 98, as empresas cumpriram esse serviço de divulgar que qualquer um podia montar a sua rádio comunitária, bastava criar uma associação, ou uma fundação pra isso. E aí, um outro fator foi a questão jurídica, porque com a lei não se podia colocar rádios comunitárias. Pra colocar as rádios no ar, pra fugir da perseguição que continuava, a gente então entrava na justiça para conseguir liminar sob o argumento do artigo 5o da Constituição - da livre expressão -, e também pelo fato de que o Ministério das Comunicações tinha um determinado prazo para nos dar respostas e não dava. Então surgiu a “máfia das liminares”, onde um, dois ou três advogados, com amizade com juízes, e com o conhecimento de como funcionava o trâmite, colocavam liminares com um grupo de dez rádios no mesmo pedido. Apenas se trocava quem era o titular do processo e enfiava nas ditas varas. Então quando caísse no Juiz que liberasse, que tinha compreensão que era justo, que era legal as rádios entrarem no ar (...) Então, sabendo qual era o Juiz que via a favor das rádios comunitárias eles faziam essa prática. E os advogados que sabiam disso (me reservo não dizer os nomes para não ser processado) eles ganharam dinheiro com isso, mas do que isso, eles criaram poder de controle, de comando sobre as rádios. Eles se transformaram em lideranças, em defensores de rádios e ao mesmo tempo passaram a ter um domínio sobre essas rádios, que acabou culminando numa desfragmentação da estrutura da Associação Estadual, no caso, aqui do Ceará. (...) As rádios ficaram reféns dos advogados. Quando davam uma caçada os advogados iam lá. Então, as Associações foram transferidas para os gabinetes dos advogados que resolviam esse tipo de problemas. Então para quê associação se eu tenho um advogado que resolva o problema para mim?

68 Entrevista concedida à autora em 02/05/2003.

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Esse processo se relaciona com o que Bernardo Sorj (2001) chama, a partir

de Habermas, de “juridificação” da sociedade, movimento que se encontra em

processo de crescimento na sociedade brasileira. A juridificação é definida como

uma tendência de adensamento do direito coletivo, de institucionalização do conflito

de classes, da legislação trabalhista e de regulação do conflito social. Nele a

resolução das disputas é transferida para o interior do Estado, mais precisamente

para o campo jurídico.

Entretanto, as discrepâncias entre a prescrição jurídica e a capacidade real

de sua efetivação tornam mais complexa a resolução dos conflitos, o que é agravado

pelo surgimento de uma “visão transnacional dos direitos” (SORJ, 2001). Essa visão

é fruto da universalização dos direitos humanos através de acordos e declarações

de organismos internacionais que acabam se chocando com as capacidades

econômicas de realização e com o quadro de percepção sobre esses direitos que

existem nos diversos países. Como afirma Sorj (2001, p. 107):

A acumulação de direitos confirmados inclusive por convenções internacionais mas não efetivamente aplicados em nível nacional, cria uma distância entre a realidade discursiva e sua aplicação (muitos juristas as denominam de direitos ‘pragmáticos’, um horizonte mais que uma obrigação efetiva atual do Estado), o que pode ser tanto um desafio como uma fonte de desmoralização da idéia de direitos.

No Brasil o conflito em torno da existência das rádios comunitárias se situa

nesse limite, entre a criação de uma legislação nacional específica sobre o tema e

os acordos de livre expressão dos quais o país é signatário. Como afirma Coelho

Neto (2002, p. 111):

Com o Brasil na qualidade de signatário do Pacto de São José da Costa Rica [Convenção Interamericana de Direitos Humanas, de 1969], o Poder Judiciário tem oscilado entre aquele Tratado Internacional, a Constituição e a Lei Ordinária. A coexistência dessas normas e a tentativa de dizer onde o direito tem sido um constante desafio para os juízes.

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Além de empurrar a decisão sobre esse conflito para o interior do Estado,

tornando-o não apenas uma questão política, mas uma questão jurídica, essa

decisão transfere a importância da discussão do plano de ação dos movimentos

sociais para o plano de ação dos operadores do direito. Mercado onde a moeda não

é mais a capacidade de mobilização e articulação social e sim a capacidade de

pagamento dos serviços. Como afirma o ex-diretor diretor da Arcos-CEPOCA69:

Com essa possibilidade [de consecução de liminares], as várias rádios evangélicas, as católicas, as dos prefeitos, dos vereadores e deputados colocaram as suas rádios no ar, bastava pagar bem os advogados para isso. Eles ganharam muito dinheiro. Eles diziam isso pra gente: “rapaz eu estou ganhando muito dinheiro com isso”. Pelo fim a coisa estava ficando assim tão esquisita, que eles começaram, alguns, a fornecer o serviço de advocacia para rádios que não tinham condições de pagá-los. Por quê? Porque eles precisavam ser legítimos. Eles precisavam colocar rádios verdadeiramente comunitárias no ar para que justificasse as outras que não eram verdadeiramente comunitárias. Uma tática que funcionou, porque transformavam as rádios verdadeiramente comunitárias em reféns de qualquer divergência ou ataque da política que eles estavam implementando. Também não vou dizer o nome das rádios porque isso não é o caso. Mas isso é verdade. Isso aconteceu. O importante é saber que as poucas rádios verdadeiramente comunitárias, que conseguiam liminar na justiça, conseguiram de forma gratuita, ou digamos, amenizada. Se, na época, ele cobrasse 1.500 reais, no ano de 98-99, para colocar uma rádio no ar, ele cobrava 300-500 reais numa rádio que não podia pagar. Aí a rádio ia fazer bingo, rifa. Algumas não pagavam. Ainda estão devendo até hoje.

A demora do Minicom em liberar as primeiras concessões transforma o

expediente jurídico em saída para a regularização das entidades. A partir de então a

prática da apelação jurídica acaba estreitando os vínculos entre emissoras de perfis

bastante diferenciados. Uma intensa troca se estabelece constituindo uma lógica de

cumplicidade: “rádios verdadeiramente comunitárias” emprestam sua credibilidade

para um pedido de liminar tendo em troca os serviços jurídicos pagos, ou

“amenizados”. Essa nova dinâmica, que não é a da mobilização dos movimentos

sociais, funcionou como uma máquina de produção de emissoras e de concessões

precárias (as liminares), o que alimentou o crescimento vertiginoso ocorrido no final

dos anos 90 e inicio dos anos 2000.

69 Entrevista concedida a autora em 02/05/2003.

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Um representante da Anatel70 revela que as liminares foram, de fato, uma

prática mais comum no Ceará do que em outros Estados, garantindo, durante o

período em que o expediente vigorou, que as rádios não sofressem com as ações

da Agência:

Aqui no Ceará há um caso atípico porque havia um entendimento dos juízes de que essas rádios eram consideradas inofensivas para o espectro; levou-se muito da agência fazendo um trabalho junto ao judiciário para que houvesse um entendimento, embora no Tribunal em Recife, da 5º Região, isso já fosse claro de que era ilegal independente de quanto era grave para o espectro ou não, por critérios técnicos, mas essas liminares sempre eram derrubadas pela turma a nível de segunda instância, mas a nível de primeira instância persistiu durante muito tempo, muitas rádios funcionando com liminar, então levou algum tempo, acho que até 2000 ou 2001, a partir daí os juízes não mais concediam liminar aqui no Ceará, então hoje (...) nenhum juiz... todos já têm o entendimento de que há necessidade de outorga e há necessidade de disciplina no uso do espectro porque um [espectro] não autorizado, que você desconhece, pode trazer um dano desconhecido, que pode ser grave, pode ser extenso, exatamente por você não conhecer a fonte e não saber como ela se comporta, ou seja, de não ser administrado. As liminares que ainda existem hoje são remanescentes dessa época.

A emergência da “máfia das liminares” fragiliza a articulação do incipiente

movimento de radiocom que há pouco tempo começara a se articular e construir

uma tradição, um discurso e uma memória. O aparecimento de novos agentes, sem

vínculo histórico com o movimento, com suas práticas e demandas, torna nebuloso o

debate sobre a democratização das comunicações, questão fundamental nesse

campo, e o papel das rádios comunitárias que vinha sendo discutido pelo movimento

tem de ser revisto com a introdução desses novos personagens. Como verifica o ex-

diretor71:

Então, isso [a compra de liminares e o poder dos advogados] foi complicando mais ainda para o movimento. Porque essa realidade afastou o movimento de rádios comunitárias daqui de outros segmentos da sociedade civil organizada que defendiam, como o sindicato dos jornalistas, a universidade, como outras ONGs que trabalhavam com isso, até sindicatos: CUT, centrais sindicais que

70 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005. 71 Entrevista concedida á autora em 02/05/03.

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eram defensores do movimento como um todo, se afastaram porque não viram mais nesse movimento algo legítimo, algo honesto. Viam como um jogo. (...) Esse foi um aspecto que trouxe uma paralisação do verdadeiro movimento de rádios comunitárias: a busca pela democratização da comunicação. Aí, o que nos resta? Agora, passou essa fase das liminares. Passou por quê? Porque o Ministério começou a liberar autorizações. E quando ele começa a liberar autorizações o Juiz não tem mais argumentos para ele dizer que não está mais encaminhando processo.

Depois do momento de distribuição das liminares a entrada de novos atores

não reconhecidos no interior do próprio movimento de radiocom começa a esboçar a

fragilização da organização do movimento. Como analisa o ex-diretor:

E eu dizia isso já em 99, um dia as liminares vão acabar e eu quero saber o que é que vai ser desse movimento. A Associação não dá uma resposta, não discute isso. E aí o que vocês vão fazer? Moral da história: alguns advogados que faziam isso acabaram abandonando esse tipo de coisa porque não dá mais. (...) A estadual está precisando se reestruturar, e quando se fala de reestruturação vamos ter que reunir todo mundo: católicos, protestantes, evangélicos, prefeitos, vereadores, deputados. Todos que se dizem do movimento de rádios comunitárias, para discutir uma coisa concreta. Ou viram rádios comunitárias mesmo, porque, também, ninguém quer tirar o direito de expressão, ou vão procurar outro rumo. Se a entidade continuar sendo, ainda, reboque da política de advogados, da política de grupos que querem manter a mesma linha de rádios de deputados, de rádios de prefeitos, de evangélicos. Como ela ficou omissa para discutir isso, durante esses quatro anos, nas duas últimas gestões, dizendo que isso dividiria o movimento (...)

Os interesses “individuais” de cada rádio, a busca de outros canais de

defesa de suas demandas como, por exemplo, o apadrinhamento político, também

esvaziam a organização. Em uma das emissoras visitadas durante a pesquisa, a

Rádio Comunitária do Antônio Bezerra encontrei a seguinte situação: depois de ter

sofrido uma ação de lacre72, só se falava na busca de um deputado para a resolução

da questão. Ao mesmo tempo a organização ou a falta dela era vista como um

problema para as radiocom que, diferentemente da ACERT, que seria marcada pela

unidade, era “desunida”, e entre as radiocom “cada uma só queria saber do seu”.

72 Intervenção realizada pela policia federal em que os equipamentos da radio são lacrados, impedidos assim de funcionar.

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Além disto, mais recentemente, a comunicação alternativa se converte em

um mercado em expansão, que representa a possibilidade de empregos, venda de

equipamentos, espaço de comunicação e promoção de políticos de menor

expressão, de igrejas interessadas em “invadir os meios seculares”, comunidades

sem memória ou história dos movimentos sociais que querem fazer uso dessa

possibilidade tecnológica. Todos eles, sob o guarda-chuva da designação “rádios

comunitárias”, junto com as experiências que tradicionalmente se ligam aos

movimentos sociais vão criar e conviver com um conjunto de novos usos e discursos

sobre a comunicação comunitária.

Em Fortaleza o “dial” está tomado dessas emissoras. Reproduzo a seguir as

freqüências de transmissão captadas pelos receptores domésticos em Fortaleza73.

Apresento em azul, seguindo a estrutura de freqüência do “dial”, as rádios não

oficiais identificadas; em verde as rádios comunitárias outorgadas pelo Ministério das

Comunicações; e em preto as rádios comercias e educativas também outorgadas

pelo Ministério:

73 Audição feita no bairro do Benfica, próximo ao centro da cidade.

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Freq. Emissora 87,5 Eco Musical FM 87,7 Israel FM 87,8 Manchete Gospel 87,9 Rádio Interativa 87,9 Assoc. Cultural do Conj. José Walter 87,9 Assoc. Cultural da Água Fria 87,9 Associação Cultural Santa Edwirges 87,9 Assoc. Cultural dos Amigos do Bairro da Pedra 87,9 Assoc. Comunitária dos moradores do João XVIII

87

87,9 Assoc. Crescer e Flores 88 88,9 Jangadeiro FM

89,3 Adiante FM 89 89,9 Somzoom Sat FM

90 90,3 Liberdade FM 91 91,5 Pentecostal FM

92,1 Educativa Parreão 92 92,9 Tropical FM

93,5 Círculo FM 93 93,9 Verdes Mares

94 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência 95 94,7 Jovem Pan

96,9 Dom Bosco FM 96,5 Apostólica FM

96

96,9 Caminho Santo FM 97,7 Portugal FM 97,7 Costa do Sol

97

97,3 Gospel FM 98 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência

99,1 Rádio Cidade FM 99,9 Record FM 99,5 Rádio Espaço Cultural

99

99,9 Rádio Gospel (Rede Aleluia) 100,9 FM 100 100 100,2 Rádio Cálice 100,1 Estação 101 101 101,7 Casa Blanca FM 102,9 Canção Nova 102 102,3 A Rádio Rock

103 103,9 Tempo FM 104,3 Rádio Esperança 104 104,7 Paupina FM 105,3 Muriá FM 105 105,7 Atlântico Sul

106 106,7 Calypso FM 106,3 Plenitude FM

107 107,9 Universitária FM 108 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência

Legenda:

Rádios não oficiais identificadas Rádios comunitárias outorgadas pelo Ministério das Comunicações Rádios comerciais e educativas outorgadas pelo Ministério das Comunicações

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Num cenário de disputa originado pela expansão do campo da radiofonia

comunitária, o texto abaixo,74 escrito por um militante das rádios livres e

comunitárias, fala sobre essa mudança e permite que se compreenda o que muda

nessa trajetória:

(...) Dos anos 80 à década de 90, a crescente facilidade para se comprar transmissores de baixa potência (dado o desenvolvimento técnico que ocorre, e o barateamento subseqüente) de um lado, e a falta de uma legislação que acompanhasse este novo quadro tecnológico de outro, fez proliferar no Brasil em ritmo cada vez maior as rádios clandestinas(...).

Neste quadro, a maioria das rádios que surgem, reproduzem o modelo das rádios comerciais oficiais, seja em relação à sua estrutura de funcionamento, seja no conteúdo ou na linguagem usada na programação. Por outro lado, mesmo sendo minoria, os projetos autênticos de comunicação popular e de expressão cultural não param de crescer – em quantidade e qualidade. Legalizados ou não.(...)

Na democratização dos meios de comunicação no Brasil podemos destacar atualmente as rádios que se desenvolvem nas periferias das grandes cidades (em articulação com espaços culturais/comunitários e com o movimento hip-hop), nos assentamentos rurais (em geral vinculadas ao MST), nas Universidades (iniciativas primordialmente estudantis, mas que muitas vezes adquirem caráter comunitário), e em pequenas cidades, onde a rádio da comunidade chega a superar a audiência das grandes rádios.(...)

O direito de comer, de trabalhar, de morar, de querer uma ecologia sustentável, ter o acesso mais amplo possível à cultura e educação, de criar e resistir à ideologia dominante. Ou simplesmente o direito de poder se expressar e afirmar um pouco do que é para a coletividade. A auto-estima de se saber ouvido. Antes ouvintes, agora locutores.

A afirmação do direito referida pelo autor, vai tornar-se cada vez mais

complexa com a entrada em cena de novos interessados na exploração da

radiodifusão comunitária.

74“Rádio: um sistema de transmissão e recepção de mensagens sonoras”. Artigo de Thiago Pires Galleta, membro do coletivo da Rádio Muda. O texto captado na Internet na lista de discussão “rádios livres e comunitárias” não estava datado. Disponível em [email protected] Acesso em: 7 de jan. de 2003.

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Nesse novo momento a visão romantizada da unidade dos grupos que

fazem a comunicação alternativa, que foi fundamental no processo de mobilização

política para a aprovação Lei de Radiodifusão Comunitária (que une rádios livres,

rádios populares, rádios religiosas75), vai perdendo espaço para a defesa de

posições mais particulares dentro de um campo social em processo de

transformação e expansão.

O que distingue uma emissora comunitária das demais e a torna legítima

não é ponto consensual entre os diferentes grupos que compõem este vasto

universo que se autodenomina de rádio comunitária. Mas em que ambiente mais

amplo das telecomunicações no Brasil se insere essa disputa?

2.5. O cenário das comunicações e as radiocom

Sorj (2003) propõe uma periodização das telecomunicações no Brasil a partir

de três momentos fundamentais. O primeiro ocorre ainda no século XIX (1852), com

a instalação do primeiro telégrafo elétrico e perdura até 1964. Nesse período

companhias telefônicas se instalam no país de forma fragmentada. Há a implantação

da radiodifusão a partir de 1922 e da televisão a partir de 1950.

O segundo momento compreende o período entre 1964 até o início dos anos

1990, com a reorganização do sistema de telefonia e a “radical transformação do

setor de telecomunicações” (2003). Datam daí a criação da Radiobrás e do Sistema

Telebrás, com a expansão da telefonia e a crescimento da televisão através do

sistema de rede nacional. Sobre esse período, afirma Sorj (2003, p.77):

As realizações do sistema telebrás são impressionantes. No período entre a criação da Telebrás e 1980, o número de terminais telefônicos passa de 1,69 milhão para sete milhões e meio. A Embratel criou troncos de interligação telefônica, via satélite em todos os estados brasileiros e o sistema internacional (...) Nesse período, também é criada a Radiobrás, canal do governo que atinge todo o território nacional. Mas o fenômeno cultural central desse período é a expansão da televisão, em particular da Rede Globo, que. Associada a canais locais criou uma rede nacional para,

75 Vide a participação da “Associação das Rádios Comunitárias Católicas” no processo de mobilização política para a aprovação da Lei 9612/98.

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inicialmente, transmitir o seu jornal vespertino e, posteriormente, o conjunto da programação.

O terceiro momento pode ser localizado a partir dos anos 1990, com a crise

do Sistema Telebrás e as privatizações na área.

A expansão das comunicações no país foi seguida de um contínuo processo

de concentração. As relações entre o Estado e o setor privado, com fortes ligações

políticas marcam a história das comunicações brasileiras. Além disto, investimentos

no estabelecimento e expansão dos sistemas de comunicações ocorrem durante

governos militares: no varguismo, a partir da revolução de 1930, se estendendo pelo

período do Estado Novo, e no regime militar, a partir de 1964.

Em relação à radiodifusão as dificuldades financeiras do Estado, ainda no

varguismo, para custear a sua expansão em plano nacional, bem como as pressões

pela abertura do rádio à publicidade (permitindo seu funcionamento em regime

comercial, com provisão de receitas) tornaram mais complexas as relações de

controle estatal sobre o veículo e sua programação, ainda que não se possa falar

em separação de interesses e ausência de influência deste sobre o rádio.

Excetuando-se os períodos ditatoriais a presença dos interesses políticos e

de Estado sobre as comunicações, e o rádio em especial, não se apresenta

imediatamente no controle do conteúdo produzido, mas principalmente no controle

do acesso às emissoras, através da política de concessões.

Em relação às concessões, os sistemas de exploração da radiodifusão

(ORTRIWANO, 1985) são basicamente dois: 1) O Estado detêm o monopólio e

explora diretamente a radiodifusão através de uma ou mais empresas estatais; 2)

Coexistem empresas estatais e privadas. O Estado concede temporariamente a

terceiros o direito de transmitir.

No Brasil temos a prevalência do modelo de coexistência de empresas

públicas e privadas. Como afirma Ortriwano,

A política adotada pelo Brasil para a exploração da radiodifusão é baseada na teoria da responsabilidade social pela iniciativa privada, em que o Estado procura estabelecer princípios que garantam o uso

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social dos meios de comunicação, tornando-os responsáveis pelo conteúdo da programação que transmitem e suas conseqüências. O estado concede uma autorização para que entidades executoras de serviços de radiodifusão possam explorar comercialmente os veículos. (ORTRIWANO, 1985, p. 53)

Compete então ao Estado conceder o direito de transmissão a terceiros por

um prazo pré-estabelecido. Durante muito tempo essa foi uma atribuição exclusiva

do Presidente da República. Ortriwano (1985) observa que

No Brasil, desde o advento da radiodifusão, em 1922, todas as constituições foram unânimes em afirmar a competência da União para explorar os serviços de radiodifusão, diretamente ou mediante concessão, a prazo fixo e com direito a rescisão pelo poder competente não havendo qualquer interferência do poder Legislativo ou judiciário nesse processo de concessão. A decisão é uma prerrogativa exclusiva do Presidente da República. Convivem entre nós emissoras estatais e comerciais com ampla predominância quantitativa destas sobre aquelas (ORTRIWANO, 1985, p. 53).

A Constituição de 1988 afirma em seu capítulo V, dedicado à comunicação

social, artigo 223, que: “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão,

permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens,

observando o princípio da complementaridade dos sistemas privados, públicos e

estatais”. Contudo, rompe a exclusividade dada nas cartas anteriores ao chefe do

executivo e designa como necessária a apreciação do Congresso Nacional. Assim, o

“ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos legais após deliberação do

Congresso Nacional, na forma dos parágrafos anteriores”.

A concessão é obtida num processo de concorrência pública entre os

interessados na execução dos serviços de radiodifusão76, o que vale tanto para os

canais comerciais, comunitários ou educativos, passando depois pela apreciação do

Presidente da República e do Congresso Nacional.

Além dos órgãos envolvidos no processo de outorga, como o Ministério das

Comunicações, existem também os órgãos de controle e fiscalização, como a

Agencia Nacional de Telecomunicações. 76 Desde 1995 as concessões de radiodifusão passam a seguir as regras da Lei de Licitações (Lei 8.666/93).

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A criação do Ministério das Comunicações é bastante recente no Brasil, data

dos anos 60. Antes dele existia o Conselho Nacional de Telecomunicações, criado

em 1961, e diretamente subordinado à Presidência da República, responsável pelos

processos de concessão77. Em 1962 é instituído o Código Brasileiro de

Telecomunicações, criando uma regulação para a área, até então descoberta por

uma legislação específica. Somente em 1967, considerando as telecomunicações

como área estratégica para o projeto de integração nacional é criado o Ministério das

Comunicações. No mesmo período é criado o Departamento Nacional de

Telecomunicações (DENTEL), responsável pela fiscalização das telecomunicações e

subordinado ao Ministério.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) substitui o DENTEL, a

partir do início dos anos 2000 nas funções de fiscalização das telecomunicações,

incluindo é claro a radiodifusão. Com a intensificação do número de emissoras não

outorgadas a Anatel aparece para estas emissoras, junto com a Polícia Federal,

como uma das principais antagonistas ao seu funcionamento.

De fato o “combate a estações não outorgadas” é um dos temas específicos

dos relatórios anuais da “Superintendência de Radiofreqüência e Fiscalização” da

Anatel, denominados “Relatórios de Gestão da Superintendência de

Radiofreqüência e Fiscalização” (RGSRF). Uma análise dos relatórios publicados no

período de 2002-2005, oferece o seguinte panorama da ação da Agência:

Números do combate às entidades não-outorgadas: denúncias, ações de combate,

lacre de emissoras Ano Número de denúncias de

entidades não outorgadas Número de ações de

combate Número de rádios

lacradas 2002 8.153 5.300 3.200 2003 11.800 6.627 4.412 2004 7.917 4.089 2.443 2005 4.400 3.900 1.800 Fonte: Relatórios de Gestão da Superintendência de Radiofreqüência e Fiscalização (RGSRF) dos anos 2002, 2003, 2004, 2005.

77 Naquele período as concessões eram válidas por apenas três anos, embora fossem renováveis. A liberação de uma nova outorga ou a renovação da já existente era atribuição do presidente da república, o que dava enorme poder de negociação política.

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Em 2002 o Relatório faz referência ao crescimento das denúncias e

especula sobre as causas do aumento, entre eles a confiança no trabalho de

interrupção das atividades das emissoras realizado pela Agência78:

Em relação ao ano anterior, houve, em 2002, crescimento de 60% no número de denúncias sobre o funcionamento de entidades não outorgadas – que passaram de cinco para oito mil. Tal evolução mostra confiança da sociedade no trabalho da Anatel: as pessoas sabem que as denúncias serão apuradas e as entidades não outorgadas lacradas. (RGSRF 2002, p. 20)

O Relatório de 2003 também registra um crescimento no número de

denúncias, mas credita o fato não mais a consolidação das ações da Agência, mas

ao aumento do número de não outorgadas:

O crescimento decorre, em parte, do acréscimo número de estações clandestinas. O crescimento do número de denúncias deveu-se, também, e principalmente, pelo numero expressivo de interferências causadas pelas não-outorgadas. (RGSRF, 2003, p. 19)

Já em 2004 o relatório registra uma diminuição do número de denúncias,

mas traz pela primeira vez uma referência direta as rádios comunitárias e afirma

que,

74,5% das ações de fiscalização relacionadas a estações de radiodifusão, ditas “comunitárias” funcionavam com potência maior que 25 watts, ou seja, com uso de potência superior à regulamentada para o funcionamento das rádios comunitárias. (RGSRF, 2004, p. 10)

Em 2005 a tendência de queda no número de denúncias se mantém, o

relatório desse ano, entretanto e, pela primeira vez, faz menção não apenas as

questões técnicas de operação das emissoras, como, por exemplo, a potência

superior a 25W, mas também a programação das rádios: 78 Sobre o papel exercido pela Polícia Federal o relatório afirma: “Em mais de 2,4 mil atividades de combate ao funcionamento de entidades não-outorgadas, 46% do total – os equipamentos usados foram lacrados pelos colaboradores da Anatel. Em 7% das ações, a Anatel teve o apoio da Polícia Federal em atividades de busca e apreensão dos equipamentos usados em transmissões irregulares” (p. 21).

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Das 1,8 mil estações interrompidas de janeiro a setembro, foi possível medir a potência de 1.143 estações. Destas, 849 eram estações não-outorgadas associadas ao serviço de radiodifusão, sendo 368 (43,3%) funcionavam com a potência superior a 25W e as demais, em quase sua totalidade praticam proselitismo político e exploram comercialmente o serviço, descaracterizando, desta maneira, a condição de uma rádio comunitária (RGSRF, 2005, p. 10).

No Ceará, assim como em outros estados, o fim das Delegacias do

Ministério das Comunicações, abre espaço para uma presença mais efetiva da

Anatel nos serviços de fiscalização. Como afirma o responsável79pelo setor de

fiscalização da Agência:

A partir dos primórdios da Anatel e até um pouco antes, no Ministério das Comunicações havia uma delegacia, Delegacia do Ministério das Comunicações, lá havia um setor de fiscalização e mesmo quando não existiam as leis começaram a aparecer as rádios não outorgadas, que eram clandestinas no serviço de rádio difusão ainda não designado comunitário, embora que eles se auto- denominassem assim, então a fiscalização sempre foi voltada para o espectro, havendo qualquer emissão não autorizada do espectro, isso é feito ou através de denúncia ou do nosso monitoramento, a gente tem um sistema que vasculha o tempo inteiro o espectro e qualquer emissão que não bata com os nossos registros elas são fiscalizadas.

No Estado do Ceará a maioria das rádios de baixa potência que passa a

operar em freqüência modulada surge a partir do final dos anos 1990. A emergência

dessas emissoras é acompanhada pela Agência como um fenômeno relacionado à

aprovação da Lei 9612/98, como afirma o representante da Anatel:

Elas começaram a realmente existir com maior freqüência a partir de 1998. Embora antes se verificasse, eu acho que um pouquinho antes da lei aqui no Ceará a gente tinha um demonstrativo razoável e, logo após a Lei, várias entidades entram com o pedido no Ministério. Uma quantidade grande de entidades e, é claro que o Ministério não respondia tão rápido quanto era esperado, e as entidades entravam também na justiça conseguindo liminar.

79 Entrevista concedida a autora em 17/01/2005.

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Embora em situação de embate com os órgãos de controle como a Anatel,

as rádios comunitárias sempre buscaram o reconhecimento legal e a proteção do

Estado. O que só é possível quando a presença das experiências se transforma em

pressões sobre o poder público para o reconhecimento da radiodifusão em baixa

potência que já vinha sendo praticada no país através da organização das rádios

comunitárias em diversas entidades, entre elas: Associação Brasileira de

Radiodifusão Comunitária, ABRAÇO; Associação Mundial Rádios Comunitárias,

Amarc; Rede Brasil Cidadã, RBC; Fórum Nacional pela Democratização da

Comunicação, FNDC; Associação Nacional Católica de Radiodifusão Comunitária,

Ancarc e União Cristã Brasileira de Comunicação Social, UCBC, entre outras.

2.6 A ABERT, a ACERT e as rádios comunitárias

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, ABERT, é a

entidade que congrega desde 1962 os proprietários de canais de rádio e televisão

no Brasil. Antes disso, como afirma no “site”, “no inicio dos anos 60, os empresários

da Radiodifusão estavam reunidos em sindicatos, mas sua atuação era regional, não

sistemática e não espelhava o poder da categoria”80. Segundo a própria entidade,

sua criação resultou da necessidade de uma defesa mais sistemática dos interesses

do setor durante a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações, em função

dos vetos governamentais ao projeto.

Hoje a ABERT tem mais de 2.000 emissoras filiadas e várias associações

regionais, entre elas a ACERT, representante do setor no Ceará. Desde o seu

nascimento a ABERT possui fortes ligações lobistas com parlamentares na defesa

de seus interesses. Seguindo essa tradição, em 08 de dezembro de 2005 foi

instalada a “Frente Parlamentar da Radiodifusão no Congresso Nacional”, composta

por mais de 130 parlamentares, a Frente é presida pelo deputado Ivan Ranzolin do

Partido Frente Liberal, PFL, de Santa Catarina. Entre os deputados que integram a

Frente 24 são membros da Comissão Ciência Tecnologia Comunicação e

Informática, CCTCI, e seis são, além de membros da comissão, concessionários de

80 http: www.abert.org.br.

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canais de radiodifusão81. Entre os alvos da Frente encontra-se o Serviço de

Radiodifusão Comunitária, como informa a matéria da Agência Câmara82:

A habilitação de novas rádios comunitárias, de acordo com a Frente, precisa sofrer restrições. A autorização não deveria ser concedida, por exemplo, em localidades de pequeno porte que já disponham de emissoras comerciais ou em localidades com grande concentração de serviços de Radiodifusão. Para evitar a instalação de emissoras piratas, a Frente propõe que a venda de equipamentos transmissores, incluindo aqueles destinados às emissoras comunitárias, só possa ser feita a entidades jurídicas que tenham obtido autorização prévia do Ministério das Comunicações. Na avaliação da Frente Parlamentar, o Ministério das Comunicações precisa de uma estrutura adequada de fiscalização das rádios comunitárias nos estados. A Frente também sugere que o ministério estabeleça convênio com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para uma prática mais rotineira de fiscalização. Para evitar infrações por parte das emissoras comunitárias, os Parlamentares propõem um conjunto de punições, incluindo multa, interrupção do funcionamento e cassação do ato de outorga.

O caráter lobista presente já na gênese do que seria a Associação é

expressa na narrativa de sua fundação: “João Calmon liderou um grupo pequeno,

mas inteligente, sólido e ativo, que reuniu subsídios para a discussão sobre os vetos

e criou o que hoje se chamaria de lobby do empresariado no Congresso”83.

Esse “lobby” permanece ativo e, como vimos, durante o processo de

negociação do projeto de radiodifusão comunitária no Congresso Nacional a ABERT

participou ativamente da defesa de um projeto que subordinasse os interesses da

radiofonia comunitária aos da radiofonia comercial.

Aprovada a Lei a ABERT traça uma estratégia de repressão e controle

destas emissoras. Em suas páginas na Internet tanto ABERT quanto suas alfilaidas,

incluindo-se aí a ACERT mantêm formulários para denuncia de “rádios piratas”. Na

página da ABERT, depois da apresentação de um texto intitulado “Denuncie a

radiodifusão ilegal”, há um “link” do “departamento jurídico”, onde a denúncia pode

81 “Uma frente contra as rádios comunitárias”, texto de Vinício A. de Lima publicado no “site” Observatório da Imprensa em 13/12/2005. Disponível em: http://observatório.último segundo.ig.com.br/artigos Acesso em: 14 dez. 2005. 82 “Frente lançada hoje quer novas regras para radiodifusão”. Agência Câmara, 7/12/2005. 83 http: www.abert.org.br.

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ser encaminhada. Como será visto adiante, a ABERT e ACERT ganham muita

visibilidade nos jornais locais quando invocam o controle das radiocom.

Em um balanço sobre o papel da ABERT nos dias atuais o controle das

rádios de baixa potência aparece como uma das prioridades:

Hoje a ABERT tendo apreendido em suas lutas históricas o valor da unidade, trabalha o dia-a-dia da Radiodifusão e participa ativamente de importantes questões como, por exemplo, a elaboração da nova lei de comunicação eletrônica de massa que deverá substituir o antigo código brasileiro de televisão, no que diz respeito a radiodifusão. A associação luta ainda contra a proliferação das rádios ilegais, que sob a alcunha de “comunitárias” operam sem licença do Governo Federal. Com a ajuda de denuncias encaminhadas pela ABERT, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) lacrou em 1998 mais de 500 emissoras ilegais e em 1999, mais de 3 mil”84 (grifos meus).

O número de emissoras lacradas pela Anatel é anunciado como um trunfo

da própria ABERT, numa sugestão da parceria entre a entidade e a Agência

reguladora. Nessa parceria a ABERT coleta as denúncias que são investigadas pela

Anatel.

Já a ACERT existe desde 1977 e reúne hoje “cinco geradoras de televisão,

com sede em Fortaleza e 121 emissoras de rádio AM e FM, as quais 23 instaladas

em Fortaleza”. As rádios instaladas em Fortaleza e filiadas a ACERT são as

seguintes: AM Cidade, Ceará Rádio Clube, FM Jangadeiro, Rádio Costa do Sol,

Rádio Verdes Mares AM, Rádio FM 93,Rádio Oi FM, Rádio 100 FM, Rádio AM do

Povo, Rádio Assunção, Rádio Atlântico Sul FM, Rádio Calypso FM, Rádio Dragão do

Mar, Rádio FM Cidade 91,7, Rádio Iracema, Rádio Jovem Pan, Rádio Liderança,

Rádio Maxi FM, Rádio Tempo FM e Rádio Universitária, esta última uma rádio

educativa ligada a Universidade Federal do Ceará..

Assim como na página da ABERT na Internet, a ACERT também mantêm

mecanismos de controle às atividades das radiocom através de um espaço para

denúncias. Em sua página85 a partir da chamada “Rádio Pirata: se você conhece

84 http: www.abert.org.br. 85 http: www.acert.org.br.

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alguma rádio pirata em sua região, denuncie aqui”, o internauta é enviado a um

protocolo onde informa pormenores da denúncia que é encaminhada a Anatel:

O Brasil, com 5.941 canais em operação é o segundo maior mercado de

rádio do mundo, ficando atrás apenas dos EUA, com 12.000 canais (LOPES, 2005,

p. 40). Existem 2165 canais de FM e 1856 rádios comunitárias com licença

provisória ou definitiva.

Vários estudos apontam a concentração dos meios de comunicação no

Brasil. A forma como se organizou historicamente o gerenciamento dos veículos de

comunicação e as concessões, bem como o papel privilegiado que os meios de

comunicação têm no campo cultural, simbólico, político e ideológico estão entre as

causas dessa concentração, onde a propriedade familiar é uma das marcas deste

mercado.

A pesquisa, “Os donos da mídia”86, realizada entre 2001 e 2002 pelo

“Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação” para mapear o que foi

denominado pelo Instituto de “as bases de poder econômico e político construído a

partir das redes privadas de televisão no Brasil”, aponta a existência de um circuito

86 Relatório da Pesquisa disponível em http//www.fndc.org.br.

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de concentração da propriedade dos meios que se estabelece a partir das principais

de redes de televisão do país.

Assim, seis redes privadas (Rede Globo, Rede SBT, Rede Record, Rede

Bandeirantes, Rede TV! e Rede CNT) dominam o segmento de tv, vinculado a 372

outros veículos, entre rádios e jornais. A comparação entre as redes privadas e as

redes públicas explicita a concentração da propriedade. As redes públicas,

segmentadas e grupos independentes somam um total de 135 veículos, com 35

emissoras de TV e 102 outros veículos. Já as redes privadas somam 668 veículos,

com 296 emissoras de tv que se soma aos 372 outros veículos já mencionados.

Grande parte dos principais grupos regionais de mídia é afiliada da Rede Globo, que

está presente em todos os estados.

O estudo aponta ainda que a tv e o rádio são as únicas fontes de informação

da maioria dos brasileiros. A tv está em 87,7% das residências e 88% dos brasileiros

ouvem rádio diariamente. Mais de um terço dos brasileiros, 39% não têm revista ou

só tem acesso uma vez a cada três meses, e quase metade, 48 % dos brasileiros

não lêem jornal ou só tem acesso ao meio uma vez por semana. A tv concentra

56,1% do total de verbas publicitárias, enquanto o rádio fica com apenas 4,9% desse

total.

No Ceará a disputa de mercado entre os diferentes tipos de rádio é acirrada.

Algumas emissoras publicam anúncios nos principais jornais da cidade, como os

reproduzidos abaixo87:

87 Os anúncios foram publicados no mesmo período, durante o mês de maio de 2005.

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Figura 1: Anúncio publicado no Caderno Política do Jornal O Povo, no dia 05 de maio de 2005.

Figura 2: Anúncio publicado no caderno Vida e Arte do jornal O Povo no dia 21 de maio de 200588.

Figura 3: Anúncio publicado no caderno Política do Jornal O Povo, no dia 22 de maio de 2005.

88 Durante algum tempo a rádio Dom Bosco FM funcionou como emissora comunitária, sendo inclusive filiada a Arcos-CEPOCA, conseguindo posteriormente a concessão de rádio educativa.

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Figura 4: Anúncio publicado no caderno Vida e Arte do jornal O Povo no dia 25 de maio de 2005.

Mesmo premidas pela situação de ilegalidade, as rádios comunitárias

também desenvolvem mecanismo de publicização de suas atividades. Circulando

em espaços menos consagrados e de reverberação menores que os grandes jornais

do Estado, adesivos, “sites”, e jornais comunitários ampliam a visibilidade dessas

emissoras, disputam e despertam os interesses da audiência. Os materiais abaixo

são exemplos desse modelo de divulgação:

Figura 5: Adesivo de divulgação da Rádio Comunitária Círculo FM. O interessante nesse material é que ele não divulga a emissora como uma emissora comunitária. A grande ênfase

está na associação entre a Rádio Círculo e o segmento musical de forró.

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Figura 6: Panfleto religioso usado também pra a divulgação da Rádio Plenitude 106,3, “24h de louvores no ar”, ligada a Igreja Pentecostal Jesus é a Aliança.

Figura 7: Adesivo de divulgação da Rádio Comunitária 103,5 Antônio Bezerra.

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Os anúncios da radiocom tentam ganhar uma audiência historicamente

concentrada na mão de poucos grupos.

As conseqüências políticas da concentração dos meios aparecem em alguns

estudos. Como afirma Del Bianco (1999, p. 193-194), os critérios políticos usados na

distribuição dos canais de radiodifusão pelos militares e pelos presidentes da Nova

República criaram uma divisão entre “os empresários que vivem do negócio do rádio

e os políticos e pastores que exploram o veículo para autopromoção ou divulgação

de crenças”. O governo Sarney “distribui em quatro anos (1985-1989), durante o

período de negociação da constituição de 1988, mais de 900 canais, 632 FMs e 314

AMs. Entre 1987 e 1988 distribuiu em média 32 canais de FM por mês” (Del Bianco,

1999, p. 199).

Embora tenham ocorrido mudanças na política de concessões como

discutido anteriormente, durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso,

“até setembro de 1996, foram autorizadas 1.848 licenças de RTV, repetidoras de

televisão, sendo que 268 para entidades controladas por 87 políticos, todos

favoráveis a emenda da reeleição” (BAYMA, 2001). Ainda segundo os dados

apresentados por Bayma, nesse período têm-se a seguinte composição política para

a propriedade dos meios:

% de concessões de rádio e televisão exploradas por políticos Partidos políticos

Total de concessões

PFL PMDB PPB PSDB PSB

3.315 (100%) 37,5% 17,5 12,5% 6,25 6,25 A base aliada no governo FHC detinha assim 73,75 do total de

emissoras de radiodifusão no país

Vários deputados e senadores membros da Comissão de Ciência

Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), responsável pela apreciação dos

pedidos de novas outorgas e renovações eram também proprietários de rádios e

emissoras de televisão. Lima (2005) afirma que “em 2003, os nomes de 16

deputados membros da CCTCI aparecem no cadastro do MiniCom [Ministério das

Comunicações] como sócios e/ou diretores de 17 concessionárias de rádio e 6 de

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televisão – inclusive o próprio presidente da comissão, deputado Couraci Sobrinho

(PFL- SP). Seis desses deputados eram do PFL, três do PL, dois do PP, um do PSL,

um do PSDB e um do PTB”.

Já em 2004, ainda segundo Lima, dos 33 membros da CCTCI, 15 eram

sócios ou diretores de concessionárias de rádio e/ou tv.

A presença destes políticos demonstra que a resolução das questões

relacionadas ao universo da comunicação social pelo Congresso Nacional está

colonizada por interesses pessoais de políticos ou dos grandes grupos de

comunicação por eles representados. Para defender seus interesses as radiocom

têm de construir no plano da auto-imagem uma representação legitimadora, capaz

de sensibilizar positivamente a opinião pública a favor de suas demandas.

O mesmo exercício, o de elaboração de uma auto-imagem legítima, é feito

pelas emissoras comerciais e suas entidades representativas. O duelo entre a

“imagem de si” e a “imagem do outro”, que se constrói a partir das relações que

travam, é o que será visto no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO III

A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS: IMPRENSA E RÁDIO

COMUNITÁRIA

Depois de expor a trajetória que institui as radiocom e seu movimento, este

capítulo discute a formação da auto-imagem de dois grupos: o das radiocom e das

rádios comerciais. A capacidade de representar a legitimidade através de atributos

favoráveis e atribuir ao “outro” qualidades negativas que neguem sua legitimidade,

ocorre de modo relacional. Tomo como material para a análise da formação das

auto-imagens e da imagem do outro os jornais da Associação Brasileira de

Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO)89 e os jornais diários “O Povo” e “Diário do

Nordeste”90.

Além da relação da relação entre rádios comerciais e radiocom analiso

também a produção da auto-imagem das emissoras a partir do interior de seu

próprio campo. Neste caso, a composição da imagem de si se refere menos as

pressões de fora, representadas pelos grupos de comunicação comercial, e mais a

de novos discursos e agentes nesse campo. A análise é feita a partir de um “grupo

de discussão” denominado “rádios livres e comunitárias”, cujo endereço é

[email protected].

Antes, porém, de discutir a produção da auto-imagem a partir destes dois

espaços, a imprensa e a Internet, apresento a visão das radiocom a partir de um

manual escrito para rádios comunitárias, e também um panorama dos trabalhos

89 Os títulos desses periódicos, aqui analisados, não esgotam a produção sobre a temática e fazem parte de um elenco que, embora incompleto, representa uma significativa parte das análises sobre o tema. 90 Os dois jornais fazem parte de grupos empresariais na área de comunicação. O Diário do Nordeste foi fundado em 1980 e integra o grupo Verdes Mares de Comunicação, formado também pela retransmissora de tv Verdes Mares, afiliada da Rede Globo de Televisão no Estado, e as rádios: Verdes Mares AM e FM 93. O jornal O Povo foi fundado em 1927 e é parte integrante do grupo O Povo de Comunicação, formado ainda pelas rádios: AM do Povo, Calypso FM e Rádio Mix FM. A posição destes jornais como parte de grupos econômicos da área de comunicação não é desconsiderada aqui, na medida em que seus interesses são contrários aos das radiocom.

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sobre o tema. Acredito que eles também são elementos importantes de

compreensão da elaboração da auto-imagem.

A relação conflituosa entre rádios comerciais e radiocom exigirá a

construção de um discurso sobre um campo ainda em formação, o da radiofonia

comunitária. O discurso produzido sobre e pela as emissoras comunitárias permite

entender como, ao longo do tempo, sua trajetória e auto-imagem foi se construindo,

bem como a de seus opositores.

3.1 A Diferença

O que faz a diferença entre as radiocom e rádios comerciais? Em um trecho

do livro “Trilha apaixonada e bem-humorada do que é e de como fazer rádios

comunitárias na intenção de mudar o mundo”91, de Dioclécio Luz (2001, p.13), já

citado anteriormente, destaca o seguinte:

Aqui você fica sabendo que pode e deve fazer rádio diferente. Fica sabendo que a emissora em que você atua deve frisar isto na programação e alertar a comunidade servida pela rádio. Todo o tempo, toda hora: atenção povo do Brasil, gente daqui e dacolá, você está sintonizado numa rádio comunitária, aqui é diferente de uma comercial. Diferente como? Ôxe?! O quadro abaixo [ver anexo 3] mostra as nossas principais diferenças:

Através da avaliação e análise de uma série de temas, considerados na

produção radiofônica, o autor pretende esclarecer o sentido da diferença entre

radiocom e rádios comerciais. Como guia, o manual acena com um repertório de

ações que sedimentariam esta distinção.

A relação com assuntos como a religião, a política, os movimentos sociais, a

busca por audiência, entre outros, seria a norteadora da distinção, criando as

fronteiras capazes de demarcar os diversos modos de fazer rádio, entre eles o das

radiocom. Elencar uma série de relações diferenciadas com temas e agentes é a

91 O autor é militante do movimento de rádios comunitárias, tendo sido membro da primeira diretoria da ABRAÇO. É também dos autores da cartilha “Radiodifusão Comunitária: reforma agrária no ar”. A cartilha ensina a montar rádios e tvs comunitárias e está disponível na Internet em: hhttp;//www.pt.org.br//radiodif.htm

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forma encontrada pelo autor para marcar um “novo modelo” de fazer rádio, diferente

do que tradicionalmente tem sido feito no Brasil em matéria de radiodifusão. Assim,

além de um mecanismo de distinção política, o guia pode ser lido também como uma

tentativa de constituição de um modelo, de uma forma de fazer rádio que se afirme

como comunitária.

O que o manual oferece é uma interessante representação do lugar e do

papel social de cada forma de fazer rádio. As radiocom sendo apresentadas como

uma alternativa de melhor realizar aquilo que as rádios comerciais já fazem: a

comunicação com sentido de utilidade pública. Através de quatorze pontos o leitor é

levado, através de um movimento de oposições, a perceber a atuação diferenciada

que caracteriza as radiocom frente às rádios comerciais. A marca das rádios

comerciais seria o lucro, sendo seus valores os do mercado. As radiocom, ao

contrário, pautar-se-iam pelo “interesse comunitário”. Essa seria a diferença,

segundo o autor, entre éticas diferentes presentes na maneira de fazer rádio. Mas o

que seria o “interesse comunitário?” Ele é discutido de modo difuso a partir da

caracterização apresentada abaixo.

A “prioridade” das radiocom seria a promoção da “cultura, a arte, a

educação, o desenvolvimento da comunidade” enquanto que nas rádios comerciais

a prioridade seria o lucro. No tópico sobre a “cultura”, Luz esclarece que as

radiocom “estimulam os artistas locais, têm compromisso com a legítima arte popular

e valorizam a arte verdadeira; a boa música brasileira e a música de raiz. Por sua

vez as emissoras comerciais difundem os produtos que a indústria cultural gera”

(LUZ, 2001, p. 13).

No tocante a forma de fazer jornalismo, as radiocom se voltariam para “os

interesses da comunidade e para sua integração, já que debate todos os temas em

profundidade”. As rádios comerciais praticariam um jornalismo “voltado para os

interesses dos ricos, dos patrões, da elite”. O objetivo seria ”fragmentar a

comunidade” (LUZ, 2001, p.13). Em relação à “programação” Luz constrói uma

oposição entre as emissoras comerciais e as radiocom que se baseia na alienação,

produzida pelas primeiras, versus a promoção da inteligência, compromisso das

segundas. (LUZ, 2001, p.14).

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No quadro criado por Luz a “participação popular” também é analisada. Para

o autor a rádio comunitária não aparece como “porta-voz do povo, ela é o povo”. As

rádios comerciais se apresentam como porta-vozes da população, e a interatividade

criada por certas emissoras, onde os ouvintes são chamados a participar, apenas

ratifica as opções oferecidas pela rádio (LUZ, 2001).

Em relação ao tópico sobre “cidadania”, Luz opõe o estímulo à ação cidadã

desenvolvida pelas radiocom junto a seus ouvintes, à perspectiva adotada pelas

rádios comerciais onde “as pessoas são tratadas como consumidoras”. A

“audiência”, outro ponto tratado no quadro, é considerada secundária nas radiocom,

já que “faz publicidade, mas sobre certas regras éticas” (LUZ, 2001, p. 14). Nas

rádios comerciais a publicidade e audiência são consideradas fundamentais.

Luz apresenta da seguinte forma a relação entre política e radiocom: “aberta

a todos os partidos e candidatos” ao mesmo tempo em que “não tem compromisso”

com estes. Nas emissoras comerciais esta relação estaria assim caracterizada: “tem

prioridade na emissora aqueles candidatos e partidos que tem relações com o dono

da empresa /emissora” (LUZ, 2001, 14).

Em relação à “religião” a marca da diferença entre radiocom e comerciais é,

assim como na política, o afastamento de posturas proselitistas. Assim “as radiocom

não pertencem a nenhuma religião enquanto as rádios comerciais algumas

pertencem a religiões e, deste modo, discriminam outras” (LUZ, 2001, p.15).

Em relação aos “movimentos populares”, afirma Dioclécio Luz (2001, p.15),

no que se refere às radiocom: “Eles [os movimentos sociais] fazem parte da rádio –

no modo como formal ou informal. A RC anuncia as reuniões dos movimentos

populares, divulga manifestos, cobre atos – reuniões, manifestações públicas,

solenidades. Se movimento não é parte da RC, ela é, no mínimo parceira dos

movimentos populares”. Já as emissoras comerciais, afirma, “desqualificam os

movimentos populares. Satanizam eles. Os movimentos populares são tratados

como inimigos da ordem e da lei. São difundidos como formados por baderneiros,

terroristas, agitadores, subversivos e radicais...” (LUZ, 2001, p.15)

Nesta tabela o sentido de distinção procura se apropriar da idéia de “bem”,

expressa pelos diferentes papéis sociais das radiocom em oposição às rádios

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comerciais. A própria escolha dos tópicos evidencia uma nova pauta para o rádio,

proposta pelas radiocom, como a questão da participação e da relação de parceria

com os movimentos sociais. A “participação” sugerida pelo autor trabalha com a

idéia de que a rádio comunitária é a “voz do povo”, ao mesmo tempo em que aponta

como falsa a participação oferecida pelas rádios comerciais que se apresentam

como “porta-vozes da população”.

É interessante notar que em vários momentos do texto os termos “povo”,

“cidadão” e “comunidade” tornam-se sinônimos, ganham equivalência para explicitar

o que é uma rádio comunitária, para quem ela fala e o que ela objetiva: “a rádio (...)

é o povo, busca no ouvinte sua participação na comunidade como cidadão”, seu

jornalismo “é voltado para os interesses da comunidade” (LUZ, 2001). Se pensarmos

a partir de Brecht (1973), o pressuposto de Luz (2001) é a inversão dos papéis de

emissor e receptor; inversão potencialmente capaz de mudar a compreensão sobre

os meios de comunicação e seu papel social. A parceria com os movimentos sociais

ratificaria a concepção deste lugar social das radiocom, elas próprias integrantes de

um movimento (Movimento pela Democratização das Comunicações)92,

contestatórias e politicamente ativas.

Para Luz (2001), enquanto os valores e as necessidades de mercado

balizam a ação das rádios comerciais, as radiocom se assentam sobre um outro

paradigma e, livres da imposição de mercado, se colocam a tarefa e a imagem de

promotoras de certas virtudes. O sentido de distinção é construído como moralmente

superior e pode ser visto em quase todos os tópicos, onde as radiocom aparecem:

“valorizando a vida”, “promovendo a cultura”, “a legítima arte popular”, “a arte

verdadeira”, fazendo um “jornalismo voltado para os interesses da comunidade”,

profundo, capaz de produzir a “integração da comunidade”. Sua programação

“estimula a inteligência” e o ouvinte a buscar mais conhecimento. Em relação à

“política” e a “religião” sua prática é entendida pelo autor, como “plural” e foge do

proselitismo.

Todos esses sentidos se constroem em oposição às rádios comerciais,

vistas como o avesso das radiocom e de suas virtudes: seus valores são os valores

de mercado, e estes produzem alienação; praticam o proselitismo político e religioso 92 A ABRAÇO é filiada ao Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações.

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e desqualificam os movimentos sociais (LUZ, 2001). Assim a própria distinção em

relação as rádios comerciais simultaneamente ergue as fronteiras e define o que é e

o que faz uma rádio comunitária.

É interessante lembrar que o esforço de dissimilitude se dá em função de

uma oposição com as rádios comerciais e não há referência explicita às rádios

consideradas “não comunitárias”, mas que se utilizam dessa denominação para

disputar um lugar no mercado da comunicação. Entrentanto a própria instituição das

fronteiras e da diferença em relação às rádios comerciais se constitui como um

parâmetro para distinguir “rádios comunitárias” de “não comunitárias”.

A ênfase na diferença é também o indício de construção da auto-imagem

que as rádios fazem de si. Imagem que, nas disputas internas ao campo, é utilizada

como ferramenta, tendendo a separar os “estabelecidos e os ‘outsiders’” (ELIAS,

2000).

Os sentidos atribuídos à idéia de rádio comunitária são discutidos por uma

série de autores que buscam analisar este fazer. Muitas das ações recomendadas

como integrantes do “modus operandi” de uma rádio comunitária são tornadas ideais

e alçadas à condição de marca destas emissoras por alguns trabalhos. Este tipo de

leitura aparece não apenas em guias como o Luz (2001), mas em alguns títulos que

analisam as radiocom sob diferentes aspectos. Ao mesmo tempo em que mudanças

na trajetória das radiocom acontecem, o olhar sobre elas também se modifica.

Mapeando alguns trabalhos segue-se a trilha das transformações.

Inicialmente a preocupação dos pesquisadores se volta para a compreensão desta

“nova” forma de fazer comunicação, o que ocorre a partir da análise de diferentes

experiências e da própria história do movimento. Os trabalhos de Denise Oliveira

(1994), Cogo (1998), Cecília Peruzzo (1998a e 1998b) e Marisa Meliani (1995) são

representativos deste momento.

Em Fortaleza, já a partir do inicio dos anos 1990, vários trabalhos

monográficos de graduação produzidos no Curso de Comunicação Social da UFC,

um dos berços das radiocom na cidade, abordam o tema da comunicação popular e

alternativa na cidade. Esses trabalhos são registros importantes desse primeiro

momento. São eles: “Buraco do Céu: a caminho da comunicação comunitária”

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(OLIVEIRA, 1990); “Rádio Comunitária Dom Oscar Romero: igreja e comunicação

popular” (UCHOA, 1993); e “Gente de luta: uma tentativa pioneira de massificação

da comunicação alternativa” (NORÕES, 1993).

Outras pesquisas se voltam para a discussão das relações entre

democratização, exercício da cidadania e emissoras comunitárias. O trabalho de

Fernadez (1998), “Democratização do ar como exercício de cidadania” é

representativo dessa abordagem também realizada posteriormente por Nunes (2000;

2003). Fernandez trata como exercício de cidadania e de democratização com a

“participação local da comunidade” no processo de desenvolvimento local. Já Nunes

(2003) discute como essa possibilidade de exercício da cidadania pode ser

“instrumentalizada” por interesses político-partidários em um processo eleitoral. Em

seu trabalho a diversidade e apropriações da idéia de rádio comunitária por grupos

não vinculados a movimentos de comunicação comunitária já são identificados.

Outros aspectos que não os estritamente políticos passam a ser adotados

para a análise, como a memória no rádio (MATOS, 2000) ou a relação entre cultura

popular e massividade na escuta de uma radiocom (OLIVEIRA, 2002). Mais

recentemente a discussão sobre a própria noção de emissora comunitária e os

diferentes modos de fazer rádio comunitária são tematizados. São representativos

desse momento das discussões os trabalhos de Fuser (2002), Nunes (2000 e 2003)

e Peruzzo (2003).

À medida que a composição do campo das emissoras comunitárias se torna

mais complexa, a diversidade de discursos produzidos sobre as rádios comunitárias

passa a também interessar aos pesquisadores. O trabalho de Costa Jr. (1999) “Da

Clandestinidade à legalidade: o discurso social sobre as rádios comunitárias” trata

da multiplicidade de discursos sobre o que é ser uma emissora comunitária.

Outras abordagens, não apenas no plano da comunicação e da sociologia,

mas também na área do direito passam a ser realizadas, tendo como foco o direito à

comunicação comunitária. Este é o caso do trabalho de Coelho Neto (2002) “Rádio

Comunitária não é crime”, onde o autor, delegado da Polícia Federal, trata, a partir

de um recorte legal não positivista, da criminalização de emissoras não outorgadas.

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Passados alguns anos da promulgação da Lei de Radiodifusão Comunitária,

a própria Lei, entendida como política pública, passa a ser avaliada. Esse o tema do

trabalho de Lopes (2005) “Política pública de radiodifusão comunitária no Brasil:

exclusão como estratégia de contra-reforma”. A análise dos processos de concessão

permite entender a dinâmica de cerceamento do direito, entendido como uma

estratégia deliberada do Estado de “contra-reforma”. Um mecanismo pensado não

para garantir um direito, mas para dificultar o acesso a ele.

Ao analisar as rádios e o movimento de radiocom estes trabalhos acabaram

por constituir representações sobre estas emissoras. Tais representações conferem

significado à prática das radiocom e proclamam, a partir da análise de algumas

experiências, um campo de ação válido e reconhecível como pertencente às

radiocom. Nesse sentido as pesquisas acabam por criar um quadro de legitimação e

delimitação de fronteiras.

Inicialmente, os trabalhos constroem um ambiente de catalogação de

convergências: elementos que fazem parte da prática das emissoras são indícios de

sua existência e da formação de uma unidade, de um campo que partilha regras

comuns de atuação e promove a construção de uma identidade. Logo em seguida, a

percepção de que existem práticas divergentes salta aos olhos dos pesquisadores e

passa a compor o próprio objeto da pesquisa. Podemos perceber algumas

orientações nesta literatura: estão presentes elementos normativos e o enfoque

político é evidente. É possível perceber também o processo de constituição de

fronteiras, já aludidas no capítulo anterior.

As radiocom nos últimos anos cresceram numericamente e este crescimento

representa a apropriação de uma fatia do espaço mais amplo das comunicações, o

que acaba por constituir um ambiente próprio de ação cujas regras ainda estão em

fase de definição e por isso passíveis de disputas sobre seu sentido e de mudança.

O fato de a trajetória das rádios estar associada aos movimentos sociais e

particularmente a uma causa específica – a democratização das comunicações no

país -, faz com que elas sejam percebidas como objetos de pesquisa que guardam

um potencial político e ideológico enorme. Tal percepção parece estar presente em

muitos dos trabalhos realizados.

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3.2 “Um exagero de democratização”: As rádios comunitárias na imprensa cearense

Desde os anos 1980 as radiocom estão presentes nos principais jornais

diários de Fortaleza, “O Povo” e “Diário do Nordeste”. A visibilidade que recebem se

relaciona à ação institucional da Prefeitura de Fortaleza e da Universidade Federal

do Ceará que dinamiza a criação de rádios naquele momento. Entretanto, também

contribui para este fato a própria visibilidade que estas emissoras passam a ter nos

bairros onde se instalam93.

Encontrei nos arquivos do jornal Diário do Nordeste, em uma edição de 1983

a primeira matéria sobre uma rádio não outorgada, sob o título “Informação pirata:

sucesso de uma rádio FM na Aerolândia”. A matéria afirma o seguinte:

Sem potência suficiente para ser captada pelo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), mas com muito entusiasmo e um embaladíssimo programa de rock, a ‘Rádio Local Fm’- imaginada e constituída pelo jovem Francisco Glauco da Silva, 15 anos – vem levando alegria a alguns dos moradores das ruas Capitão Olavo com Brigadeiro Vilela e adjacências.

Embora o tom da matéria seja positivo e interessado, o medo das instâncias

de controle do Estado, representada pela fiscalização, está presente. Assim se

informa:

Tão logo viu a reportagem Glauco passou a temer pela sua rádio. Tanto é assim que perguntou se ‘algo vai acontecer’ .O Dentel, através do senhor Brígido Silveira, disse que toda rádio tem de ter um projeto: ’As finalidades e planos técnicos tem de ser avaliados e posteriormente, se for o caso, aprovados’.

Quatro anos depois, em 1987, uma outra notícia dá conta da existência de

mais uma emissora não comercial: “Jardim Iracema inaugura hoje a sua emissora: ‘A

voz da união’”. Em 1988 nova matéria apresenta as rádios comunitárias como uma 93 É importante considerar como hipótese explicativa dessa visibilidade o lugar social e o trânsito junto à imprensa escrita e aos meios de comunicação que as pessoas envolvidas na criação das primeiras radiocom tinham.

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alternativa de comunicação para comunidades carentes. O título reportagem é

exatamente “Rádio comunitária é alternativa”.

A notícia reproduz a fala de um dos integrantes da “Rádio Comunitária da

Barra do Ceará: a nossa população agora pode reivindicar usando um meio de

comunicação alternativo. Apesar de estar funcionando a pouco tempo, tem mostrado

bons resultados e a tendência é melhorar ainda mais”. A rádio é apresentada como

uma das ações da Secretaria de Imprensa e Relações Públicas da Prefeitura de

Fortaleza que “teria como objetivo resgatar a participação da comunidade no

processo comunicativo, que era tão usado nos tempos das radiadoras espalhadas

nos mais diversos bairros da capital”.

Nesse momento as rádios são serviços móveis que se deslocam por alguns

bairros da cidade, a matéria explica seu funcionamento: “Bruno afirmou que a Rádio

Comunitária funciona numa Kombi cedida pela Superintendência Municipal de Obras

e Viação (SUMOV), conhecida também como Unidade Móvel. ‘O sistema é simples,

são alto-falantes e um microfone. O mais importante são as propostas levantadas

pelos moradores”. Embora a matéria faça referência a precariedade técnica, destaca

como dado mais importante o sentido participativo da experiência. Ganham relevo

no texto dois elementos muito presentes na leitura positiva das radiadoras nesse

primeiro momento: a participação e os vínculos estreitos entre moradores e rádio.

Já em 1989 a chamada é a seguinte “Comunicação alternativa apresenta

bom resultado”. Nesse momento inicial da cobertura das emissoras não comerciais

pela imprensa as matérias são apenas informativas. Há um tom positivo que

perpassa as notícias sobre a existência de uma emissora e sua relação com o

bairro. Ainda que essa relação nem sempre seja amistosa, como é o caso da “Rádio

Voz do Pirambu”, fechada pela polícia a pedido da comunidade que, através de um

abaixo-assinado pede um controle da poluição sonora.

Outro conflito ocorre entre a Rádio “Buraco do Céu” e um dos moradores do

bairro do Pirambu, onde a rádio estava instalada. O motivo é também a poluição

sonora. A questão recebe destaque da imprensa, que cobre uma reunião de

moradores onde o tema é debatido. O resultado da reunião é que,

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Depois de ouvirem as colocações dos representantes da Associação, de acordo com Assis Amâncio [então presidente da Associação de Moradores], os moradores decidiram dar total apoio à direção da rádio comunitária. Eles acharam que a posição desse morador não representava a verdadeira realidade da comunidade. ‘Estamos documentados para participar de uma audiência com a coordenadora do Serviço de Defesa Comunitária, Socorro França, que será realizada no dia 3 de abril’, argumentou.

As emissoras funcionam em condições bastante precárias. Em alguns casos

a falta de estrutura técnica suficiente é a causa dos problemas, ou, como neste caso,

parte da solução. A matéria esclarece, a partir da fala de um integrante da rádio, a

respeito da reclamação do morador: “Ele reclama que trabalha à noite e dorme mal

durante o dia. Acontece que nós instalamos a torre da rádio em cima de uma

‘castanhola’ [uma árvore] medindo cerca de 20 metros de altura. Quem mora perto já

não é mais incomodado”.

O processo de cobertura das rádios pela imprensa se faz acompanhar de

um simultâneo procedimento de qualificação e classificação das emissoras. Assim,

em seis anos de cobertura, diferentes denominações são usadas no tratamento

dado as rádios: “pirata”, “alternativa”, “comunitária”. Essas denominações revelam

diferentes concepções e avaliações sobre o lugar e papel dessas emissoras. No

início da década de 1990, o tom informativo continua e as rádios passam a ser

chamadas de populares ou comunitárias.

A matéria “Rádio comunitária volta ao ar”, de 18/12/89, trata da visita do

então Secretário de Segurança Pública do Estado, Moroni Torgan, à comunidade

Buraco do Céu para discutir o encerramento definitivo das atividades da Rádio

Comunitária de mesmo nome. O texto explicita como a decisão de fechamento da

emissora foi revertida em função da mobilização em torno de seu papel social.

Participaram do encontro representantes da União das Comunidades da Grande Fortaleza, União das Mulheres Cearenses, Comissão dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, lideranças comunitárias, estudantes e sindicalistas. (...) a reunião foi aberta com a palavra dos representantes do movimento popular. ‘Cada um deles ressaltava a importância da rádio para a comunidade. Os moradores do Buraco do Céu também disseram ao secretário, que as denúncias segundo as quais a rádio incomodava às famílias do bairro, não tem fundamento. (...) Moroni Torgan disse que a rádio poderia voltar a

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funcionar, e sugeriu que os moradores debatessem a questão do horário de funcionamento.

A afirmação dessa denominação das emissoras, “comunitárias”, pode se

relacionar com uma outra percepção de seu papel. A década de 1990 se pauta pela

discussão sobre o local e o global, construindo um ambiente de forte valorização da

idéia de comunidade e das relações sociais que parecem só serem possíveis nesse

espaço (BAUMAM, 2003). As emissoras deixam de ser identificadas exclusivamente

com as lutas populares, se autonomizando e buscando uma outra âncora de

significação presente na idéia de comunidade, que parece evocar simultaneamente

a referência ao local e a determinadas relações, sem a necessária vinculação a um

universo de lutas políticas. Embora a discussão sobre o direito a voz, intrínseco à

existência das radiocom, seja eminentemente político.

No trajeto do tratamento conferido as radiocom é possível perceber também

que o espaço que ocupam vai se convertendo gradativamente na criação de um

campo com problemas próprios. A relação com as localidades, com o DENTEL, a

Polícia Federal, as dificuldades financeiras, a problemática da legalidade, a relação

com a política partidária, a relação com as emissoras comerciais, etc, estão

presentes na cobertura que a imprensa lhes dá.

Em fevereiro de 1990, entre os dias 21 a 24 o jornal Diário do Nordeste

publica uma série de matérias sobre “rádios populares”. Os temas abordados estão

presentes nas chamadas: “Rádios populares: Fortaleza já conta com vinte emissoras

no ar”; “Dificuldades técnicas de início”; “As emissoras ainda não tem situação

legalizada”; “repórteres têm destaque na programação variada” e “Emissora das

Goiabeiras é exemplo para outras”. O fato de o jornal lhe dedicar uma série de

reportagens parece ser expressivo do espaço e atenção que passam a ganhar as

radiocom.

A série expressa não apenas o reconhecimento da existência das rádios,

chamadas de “populares”, mas reflete também o reconhecimento dos problemas que

naquele momento as rádios enfrentavam. Já aparecem questões como a legalização

das emissoras, o espaço ocupado pelas rádios na cidade, a relação com um modelo

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de comunicação (entendido como uma fórmula diferente em forma e conteúdo

daquelas apresentadas pelas rádios comerciais), entre outros.

Até 1996 as rádios aparecem na imprensa com uma cobertura que aborda

estes temas, como é possível ver no quadro abaixo:

Quadro 2: Matérias publicadas no Jornal O Povo e Diário do Nordeste entre

1990-1995 sobre rádios populares e comunitárias

Jornal Data Matéria DN 12/06/90 "Comerciante ajuda rádio popular para ter a torre" DN 25/08/91 "Rádio Comunitária instalada no Edson Queiroz presta serviço" DN 08/12/94 "A voz do Pirambu está calada" O Povo 05/12/94 "Delegada do 7o DP manda retirar do ar rádio comunitária Voz do

Pirambu" DN 02/05/94 "Uma barulhenta útil" DN 25/02/94 “Irradiadoras voltam a fazer sucesso nos bairros de Fortaleza. A

comemoração se deu com o aluguel de uma rádio de Maracanaú (Pitaguary) que transmitiu dois programas da emissora”.

O Povo 28/01/95 "Emissora clandestina é autorizada a funcionar" DN 07/07/95 "Rádios Comunitárias criam Associação"

Logo em seguida, já a partir de 1996, as rádios comunitárias, como então

são denominadas, passam a ser retratadas como agentes de disputa. Esse

momento coincide com o processo de sua organização com vistas à aprovação da

lei de radiodifusão comunitária. Nesse período já se registram em todo o Brasil a

existência rádios comunitárias operando em freqüência modulada. Antes operando

através de alto-falantes as rádios não causam incômodo. Uma vez disputando o

espaço da radiodifusão comercial na faixa de freqüência modulada a discussão

sobre a regulação e o controle crescem, culminando com a lei que regularia essas

iniciativas.

Mas o que se disputa? As matérias assinalam a busca de espaço e de

legitimidades, principalmente no plano legal. A visibilidade da disputa também é um

elemento importante a considerar, já que o espaço da imprensa começará a ser

usado tanto pelas radiocom quanto pelos grupos de radiodifusão comercial para

influenciar a opinião publica no debate sobre a legalização da radiodifusão

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comunitária, que se torna premente com a discussão no Congresso Nacional de uma

lei de radiodifusão comunitária. Observe o quadro:

Quadro 3: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste em 1996 sobre rádios comunitárias

Jornal Data Matéria O Povo

15/12/96 "Rádios Comunitárias de Fortaleza querem maior alcance e criticam projeto para regulamentação"

DN 18/05/96 "Relator apresenta parecer sobre radiodifusão de pequeno porte" DN 14/06/96 "Rádio Comunitária em debate na audiência pública do dia 17" DN 28/07/96 "Começa disputa pela legalização das rádios comunitárias" DN 07/11/96 "Rádios Comunitárias podem funcionar dentro das normas"

Neste momento as reportagens dão menos ênfase ao trabalho das

emissoras nos seus bairros e comunidades, como aconteceu num primeiro

momento, para centrar-se na articulação e no embate que protagonizam nos

espaços públicos pelo reconhecimento e pela legalização. A busca por “maior

alcance, a crítica ao projeto de regulamentação”, a discussão aberta sobre a

“legalização” e a possibilidade de funcionar desde que “dentro das normas”, dão

outro rumo ao olhar sobre as rádios. Para além de suas comunidades, isoladamente,

as rádios são vistas como um movimento, com organização e ação política definidos

e reconhecidos, embora alvos de ataque.

A partir de então é através da idéia de legalidade que elas passarão a ser

observadas pela imprensa. Há uma série de termos associados a esta conjuntura:

“questionadas”, “debatidas”, “interditadas”. As expressões revelam a situação de

negação das rádios, ao mesmo tempo de confronto dessa negação. Expressões que

se notabilizarão nos anos seguintes ganham seus primeiros registros, como “rádio

pirata”. Assim, em 1997 a expansão das radiocom para o interior, a interdição de

emissoras, as audiências e debates sobre as rádios são o tema das páginas a elas

dedicadas. Observe:

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Quadro 4: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste em 1997 sobre rádios comunitárias.

Jornal Data Matéria DN 21/02/97 "Rádio Pirata Titã FM é interditada" O Povo 22/05/97 "Rádios Comunitárias são abertas no Sertão Central" O Povo 14/06/97 “Engenheiro crítica excesso de rádios comunitárias” DN 13/12/97 "Audiência debate Rádios Comunitárias"

Entre estas matérias uma merece destaque. Publicada pelo O Povo de

14/06/1997, ela cobre a 3ª Convenção Anual da ACERT e sua chamada é

“Engenheiro critica excesso de rádios comunitárias”. Nela ganha destaque a fala do

engenheiro Cláudio Young, diretor de uma empresa de telecomunicações, que

afirma: “Não há espaço no espectro (radiofônico e comercial) para as ditas rádios

comunitárias”. A matéria segue apresentando detalhadamente o ponto de vista do

engenheiro que, sob a prevalência dos argumentos técnicos, defende um maior

controle sobre o número de radiocom:

Cláudio Young alega que a explosão de rádios comunitárias está interferindo na transmissão das rádios comerciais. Ele explica que isso ocorre porque há um limite que o espectro radiofônico pode suportar. O engenheiro estima entre 20 e 25 emissoras como o máximo para uma mesma cidade. (...)Young destaca ainda que a explosão do número das emissoras [comunitárias] põe em risco a sobrevivência financeira dos veículos comerciais. ’Não adianta ter 30 emissoras em Fortaleza, todas falidas porque nenhuma consegue receita suficiente para se manter’ (grifos meus).94

O debate sobre o reconhecimento e a legalização se transfere do campo

político para o campo técnico. Não se nega a existência das radiocom95, desde que

dentro de certas regras (apresentadas como condições técnicas) que claramente

privilegiam a existência das emissoras comerciais. Assim, o texto afirma que:

O engenheiro fez coro à posição da ABERT, ao defender o projeto de regulamentação das rádios comunitárias. O projeto foi votado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados e está sendo encaminhado ao Senado. (...) Pelo projeto, essas emissoras

94 A fala expressa claramente uma representação corrente fundada nos interesses do mercado contra a amplificação das rádios comunitárias. 95 Existência já é fato, embora não tenha reconhecimento de direito.

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operariam em uma única freqüência para todo o território nacional. Isso implica uma única emissora para determinada região. A potência das rádios seria de 25 watts, capaz de cobrir 5 quilômetros de diâmetro.

Regulamentar para limitar passa a ser uma questão de ordem para a ABERT

e ACERT, o que se expressa no tom das matérias a partir de então.

Em 1998, ano da aprovação da lei de radiodifusão comunitária, a questão da

legalidade passa a ser central no tratamento dado as radiocom pela imprensa

cearense. Este é o ano em que elas mais aparecem nos jornais: foram registradas

22 reportagens. Com base num parâmetro legal claramente definido, a nova Lei de

Radiodifusão Comunitária, elas são avaliadas. Termos como “clandestina” e “pirata”

passam a ser usados com mais constância.

Intensifica-se também o uso de termos como “apreensão”, “combate” e

“fiscalização”. Classificar, vigiar e principalmente punir passam a ser os enfoques

dados a estas emissoras nas matérias. Ao privilegiar os aspectos relacionados a

legalidade das radiocom quase nenhum espaço sobra para o trabalho das

emissoras, como ocorre com as primeiras matérias. É como se a existência efetiva

perdesse espaço para o reconhecimento legal ou ilegal da rádio.

E se nos primeiros meses do ano de 1998 a cobertura se centra no processo

de aprovação da lei de radiodifusão, ao longo do ano a cobertura se desloca para o

processo de enquadramento e repressão às emissoras. Como vimos, termos como

“clandestina”, “pirata”, “apreensão”, “combate” e “fiscalização” são dominantes na

descrição das rádios e no tratamento dado a elas. Órgãos de regulação e

fiscalização, como o Dentel, Anatel e a Polícia Federal passam a ser relacionados e

cobrados quanto ao controle das emissoras.

Ao mesmo tempo a ABERT e a ACERT tornam pública a rivalidade e a

disputa de espaço com as radiocom. Chamadas como “ACERT reforça fiscalização

contra as piratas”; “ACERT quer o fim das rádios piratas no Estado”; “ACERT

intensifica combate às rádios piratas no Ceará”; "Campanha contra a pirataria:

ACERT vai investir contra as rádios clandestinas" e “ABERT: denúncia de emissoras

por todo o país" transformam as entidades em protagonistas do combate às

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emissoras, chamadas sempre de “piratas” ou “clandestinas”. Nessa posição elas

encarnam o papel de benfeitoras sociais, responsáveis por livrar a sociedade de

uma comunicação perigosa e usurpadora. Observemos o quadro:

Quadro 5: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste entre

1998-1999 sobre rádios comunitárias. Jornal Data Matéria DN 21/01/98 “Comissão adia votação sobre rádio comunitária” O Povo 27/01/98 "Projeto sobre rádios clandestinas reduz número de emissoras" DN 28/01/98 "Aprovado funcionamento das rádios comunitárias" DN 21/02/98 Mais uma rádio pirata fechada no interior" DN 26/02/98 "Senado aprova projeto que permite a operação livre" DN 05/05/98 "Polícia Federal vai intensificar o combate ao funcionamento de

'rádios-piratas'". O Povo 05/05/98 "ACERT quer rigor na fiscalização de rádio pirata” DN 15/05/98 "Policia Federal irá apreender material de rádios piratas: maior

preocupação da ACERT é a veiculação da propaganda eleitoral ilícita."

DN 21/05/98 "Rádios Comunitárias temem repressão: superintendente da PF garante que apreenderá equipamentos de acordo com a lei"

O Povo 24/05/98 "Dial sem trégua" O Povo 02/07/98 Jovens são treinados para atuar em rádios comunitárias nas escolas" O Povo 01/08/98 "Católicos usam rádios comunitárias como instrumento de

evangelização" DN 27/08/98 "Corregedoria aperta o cerco às rádios piratas" DN 05/09/98 "UFC nega espaço para a festa da Arcos" DN 17/09/98 "MP pede apreensão de material de rádios piratas" DN 22/09/98 "PF deve receber hoje mandatos de apreensão" DN 22/09/98 "Pedido de busca tem efeito pedagógico" DN 23/09/98 "Apreensão dos equipamentos das rádios" DN 29/07/98 "Campanha contra a pirataria: ACERT vai investir contra as rádios

clandestinas" O Povo 26/10/98 "A voz da Comunidade" DN 28/11/98 "ABERT denuncia de emissoras por todo o país" DN 05/12/98 "Agência de telecomunicações preocupa setor da radiodifusão" DN 10/02/99 “Anatel continua fiscalização sobre rádios piratas” O Povo 28/03/99 “3.373 emissoras de rádios FM serão criadas no país” DN 12/04/99 “1º Fórum de radiodifusão do Sertão Central” O Povo 28/07/99 “FHC pede instalação de 70 rádios comunitárias” O Povo 14/08/99 “Uso de rádios comunitárias divide opinião em evento” DN 28/10/99 “ACERT reforça fiscalização contra rádios piratas” DN 30/10/99 “ACERT quer o fim das rádios piratas no Estado” DN 04/12/99 “ACERT intensifica combate às rádios piratas no Ceará”

Notícias sobre o número de emissoras a serem criadas também revelam a

movimentação do campo das radiocom e permitem identificar uma tendência de

expansão. Matérias como “FHC pede instalação de 70 rádios comunitárias” e “3.373

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emissoras de rádios FM serão criadas no país” tratam da expansão legal desse

universo, enquanto que chamadas como “Anatel continua fiscalização sobre rádios

piratas”, "Corregedoria aperta o cerco às rádios piratas" e "Polícia Federal vai

intensificar o combate ao funcionamento de 'rádios-piratas'" indicam o grau de medo

e intolerância em relação ao crescimento de emissoras comunitárias.

A movimentação-expansão espelha também o curso da articulação do

movimento de radiocom e as tensões que começam a ser evidenciadas. Exemplo

disto é a matéria de 14/08/2005 do Jornal “O Povo” que traz a seguinte chamada:

“uso de rádio comunitária divide opiniões em evento”. A reportagem afirma que os

participantes do 1º Encontro de Radiodifusão Comunitária do Ceará “se dividem em

dois grupos: os que defendem a posse das rádios comunitárias por políticos e os

que querem o controle social das emissoras”. As oposições e a apropriação das

radiocom por grupos até estranhos ao movimento de rádios comunitárias começam

a se afirmar. Como explica ainda a matéria:

De um lado, estão os que defendem a importância das emissoras controladas por políticos como uma forma de ampliar a pressão para que o Governo Federal aprove a legislação que aumente a potência das emissoras. De outro, os que defendem que as emissoras estejam sob o controle do movimento social, organizado em associações comunitárias e organizações não governamentais. (...) Francisco Lopes, o Kim, presidente da Arcoce, condena a exploração política das rádios, mas reconhece que elas contribuem para pressionar por mudanças na legislação.

Essa divisão, que ganha destaque na imprensa, já refletia uma tendência

que começava a ser decisiva no movimento: de um lado a quantidade sendo vista de

modo positivo, na medida em funcionaria como mecanismo de pressão sobre o

governo, de outro lado, numa visão mais crítica, como uma possibilidade de

descaracterização do movimento e da própria imagem das rádios comunitárias.

Durante os últimos quatro anos a construção da imagem de pirataria e de

perigo que as radiocom representariam continua a ser alimentada. A forma como a

questão da interferência nas freqüências aparece torna as rádios comerciais vítimas

das rádios sem autorização, enquanto toda a sociedade é transformada em vítima

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potencial das emissoras comunitárias. Além disso, ganha enorme destaque as ações

de fechamento e lacre de emissoras, como mostra o quadro abaixo:

Quadro 6: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste entre

2000-2004 sobre rádios comunitárias Jornal Data Matéria DN 21/02/00 “Rádios oficiais sofrem interferência de piratas” DN 29/02/00 “Polícia Federal inicia caça as rádios piratas” DN 02/03/00 “Duas ‘rádios piratas’ são fechadas pela Polícia Federal” DN 28/03/00 “Procuradoria investe contra rádios piratas” DN 21/04/00 “Federal e Anatel fecham rádios piratas no interior” DN 21/10/00 “Orçamento e as rádios piratas nos debates da Assembléia

Legislativa” O Povo 04/12/00 “Advogado de rádios diz que Anatel evita perícia” O Povo 04/12/00 “Relatório sigiloso alerta sobre risco” O Povo 04/12/00 “Perigo no ar: interferências de rádios podem provocar acidente

aéreo” DN 08/12/01 “PF fecha rádio ‘pirata’ em Fortaleza” DN 28/09/01 “Justiça proíbe liminares para rádios ilegais” DN 02/02/02 “Operação conjunta com a Anatel: PF fecha rádio ‘pirata’ no

Centro” O Povo 05/05/02 “Ceará ganha mais rádios comunitárias do Senado” O Povo 20/06/03 “Só na vontade” O Povo 08/04/03 “Rádios comunitárias e TVs públicas em discussão” O Povo 17/08/03 “A luta das comunitárias” O Povo 22/08/03 “Nas ondas” O Povo 28/09/03 “Sistema vai cadastrar laranjal” DN 05/12/03 “Democratização sem exagero: aberto 9º Congresso Cearense de

Radiodifusão” DN 6/12/03 “Piratas na mira” O Povo 14/02/04 “Sistema vai cadastrar rádios comunitárias” O Povo 15/04/04 “Xô, piratas” DN 14/11/04 “Pirataria: fraude também atinge emissoras de rádio” O Povo 26/10/04 “Belo Horizonte: PF fecha 15 emissoras de rádio clandestinas” O Povo 24/10/04 “Comunitárias: número de rádios fechadas aumenta 37% no

governo Lula”

Na matéria “Rádios oficiais sofrem interferência das piratas”, a oposição

oficial-pirata dá o tom da valoração dos dois tipos de emissoras, tornando àquelas,

as oficiais, vítimas da pirataria:

Sintonizar uma estação de rádio oficial na Freqüência Modulada (FM) pode ser uma tarefa difícil. Isto se deve à quantidade de rádios piratas que estão invadindo o “dial”. A interferência das rádios piratas pode afetar não apenas as emissoras oficiais, mas o sistema de comunicação como um todo: nos aparelhos telefônicos,

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principalmente celulares, de navegação, aeronaves e até equipamentos médicos.

Outro exemplo de construção da imagem das radiocom a partir da

perspectiva do perigo e do medo aparece na longa matéria “Perigo no ar:

interferência de rádio pode provocar acidente aéreo”. Em duas páginas a

reportagem discorre sobre os perigos para os aeroportos da interferência de certas

transmissões. Embora a chamada faça referência genérica as rádios, o conteúdo da

matéria trata da interferência específica das “rádios livres”. Observe a imagem da

chamada:

Essa matéria, entretanto, diferentemente da maioria dos textos analisados,

abre espaço para a resposta das rádios comunitárias, e produz um raro diálogo entre

Anatel, Rádios Comunitárias e ACERT. Seu ponto de partida foi a ocorrência de

problemas de comunicação do Destacamento de Proteção do Vôo com nove

aeronaves, em 24 de agosto de 2000, que “teria sido provocada por sinais espúrios

(interferências) gerados por pelo menos três rádios consideradas clandestinas pela

Anatel. A matéria informa ainda que cerca de 1.115 passageiros viajavam nas nove

aeronaves”.

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De fato as transmissões fora de padrão representam um perigo, mas ele não

é exclusivo das rádios comunitárias. Entretanto, segundo afirma um técnico da

Anatel, os problemas se concentram na faixa de freqüência onde operam as

radiocom:

Há radiointerferência principalmente nessa faixa de FM [108 MHZ]. Se ela não for devidamente alocada de maneira legal, ou seja, vendo se realmente é possível colocar mais uma rádio ali (...), então há uma geração de espúrio e de produtos de termodulação que ocorre quando outras freqüências se combinam e a soma e diferenças delas produzem outras freqüências, freqüências novas (...) Então se a freqüência de fm vai até 108 mhz, logo em seguida vem a faixa do módulo aeronáutico, ou seja, toda a comunicação entre torre e piloto se dá nessa freqüência, então toda a geração de espúrio e de produtos de termodulação caem dentro dessa faixa e podem vir a prejudicar e até a impedir que o piloto venha se comunicar com a torre, se ele estiver numa situação de que ele não está entendendo ou entendeu errado isso pode levar a um problema96.

Muito presente ainda na cobertura das radiocom é o processo de repressão

às emissoras, representado por 11 das 25 matérias encontradas sobre o tema entre

2000 e 2004. O termo pirata se institui como o mais usual no tratamento das

emissoras. Vedete deste momento da cobertura é todo o aparato estatal

representado pela Policia Federal, procuradoria, juizes, Anatel, Assembléia

Legislativa, que aparecem nas chamadas “Polícia Federal inicia caça as rádios

piratas, Federal e Anatel fecham rádios piratas no interior”; “Justiça proíbe liminares

para rádios ilegais” e “Procuradoria investe contra rádios piratas”, entre outras.

Também se verifica notícias sobre o processo de concessão de emissoras, o

que passa a acontecer a partir de 2000. Além disto, a discussão sobre a

democratização se faz presente a partir do ponto de vista das emissoras comerciais.

Assim, em um dos congressos da ACERT, realizado em dezembro de 2003,

um dos temas de discussão foi a comunicação comunitária, mais particularmente as

rádios comunitárias. A cobertura sobre o debate feita pelo jornal Diário do Nordeste

(de 05 de dezembro de 2003) estampou como chamada uma das frases proferidas

durante as discussões: “Democratização sem exagero”. Aqui o tema da legalidade

ganha contornos dramáticos, na medida em que o direito de expressão, princípio 96 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005.

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norteador da idéia liberal de democracia, é discutido como um exagero democrático.

Seguem alguns trechos da matéria:

O exagero no processo de democratização da comunicação, aplicado neste ano pelo Governo Federal, é uma das temáticas em destaque no 9º Congresso Cearense de Radiodifusão, que acontece até amanhã no Marina Park Hotel (...) Segundo o presidente da ACERT, Fernando Eugênio Marinho, o governo Lula, ‘com o pretexto de democratizar a comunicação’, tem ‘exagerado na dose’ ao conceder concessões de rádios comunitárias, sem fiscalizar, com a eficiência necessária, o conteúdo dessas emissoras.

Se ABERT e ACERT montam estratégias de combate às radiocom cuja

principal arma é uma construção imagética e imaginária que associa as radiocom a

um conjunto de idéias como pirataria, descontrole e perigo97 - na medida em que,

afirmam estas entidades, elas produziriam interferência na freqüência da polícia e

dos aeroportos, atrapalhando a operação dos instrumentos e pondo em risco a vida

de quem viaja de avião ou precisa de atendimento policial - as emissoras, em outra

frente, somarão esforços para responder a essas acusações e construir uma outra

imagem de si e das emissoras comerciais e suas instituições junto a opinião pública.

Um exemplo dessa tentativa de reversão da imagem das rádios comunitárias

aparece na matéria “A mentira das interferências”, publicada no boletim “ABRAÇO

no Ar” de março de 1997:

Dizem os donos das emissoras convencionais que as comunitárias podem interferir nos sistemas de comunicação e navegação das aeronaves, até causando sua queda (...). Segundo João de Ataliba Nogueira, engenheiro de instrumentos da Varig, (...) “nenhum tipo de radiofreqüência adentra através da fuselagem de aeronaves comerciais modernas, pois elas construídas para suportar todo tipo de interferência que possa prejudicar a segurança de nossos passageiros”. (...). O mundo inteiro, por onde passam essas

97 Em uma matéria da Revista “Força Aérea” sobre o GEIV- Grupo Especial de Inspeção de Vôo, órgão da Força Aérea Brasileira dedicado a garantir as condições de segurança dos vôos em território brasileiro, afirma-se o seguinte: “os equipamentos utilizados no SMA (Serviços Aeronáuticos) são construídos com transmissores de baixa potência e de receptores de alta sensibilidade. Assim, as interferências podem ser causadas por diversos fatores: emissoras de rádios (regulamentadas ou não), na faixa de VHF, moduladas em FM, que não seguem padrões exigidos pelas normas técnicas; ruídos industriais, ocasionados por soldas; emissões ilícitas, na faixa de freqüência do SMA, efetuadas por organizações clandestinas, constituídas com a finalidade de ouvir mensagens veiculadas e até mesmo transmitir em freqüência do SMA” (p. 51, Grifos meus).

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aeronaves, é pulverizado por todo tipo de emissoras (grandes, pequenas, legais ou não), mas só aqui, no Brasil, provocam essas supostas interferências, como alegam os donos de grandes rádios.

Alijadas dos meios de comunicação hegemônicos, a resposta se organiza a

partir da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, a ABRAÇO, e suas

afiliadas estaduais, e é irradiada através dos meios de comunicação ao seu dispor:

as próprias radiocom, o jornal “ABRAÇO no Ar” e os informativos produzidos pelas

associações estaduais e pelas inúmeras listas de discussão que com a

popularização da internet irão surgir98.

3.3 “Não a censura, não ao silêncio”: O jornal “ABRAÇO no Ar”

Com a criação em 1996 da Associação Brasileira de Radiodifusão

Comunitária – ABRAÇO - é instituído o boletim “No Ar ABRAÇO” depois

transformado no jornal “ABRAÇO no Ar”, com edição mensal, tiragem média de

10.000 exemplares e circulação nacional.

O Jornal expressa o esforço de estabelecimento das pautas do movimento

de rádios comunitárias a partir de sua Associação, ao mesmo tempo em que

responde as questões então em evidência na imprensa brasileira, como a

ilegalidade das emissoras, o perigo de transmissão das comunitárias, entre outras.

Os exemplares recolhidos para a análise compreendem os anos de 1997 a

1999, e embora não permitam esboçar uma regularidade anual99 do jornal, dão

conta de momentos importantes do movimento das radiocom vividos durante o

período, permitindo identificar o que se veicula e qual imagem das radiocom é

construída pelo seu próprio movimento.

Em 1997 o boletim cobre o processo de negociação da nova lei de

radiodifusão comunitária então em trâmite no Congresso Nacional. Após o mês de

fevereiro de 1998, quando da promulgação da Lei, se inicia uma outra fase, onde se

98 A seguir apresento a dinâmica de uma dessas listas. 99 Tive acesso e analisei três números do boletim “No ar ABRAÇO”, de 1997, dois números do “ABRAÇO no Ar”, de 1998, e sete de 1999.

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misturam críticas a alguns aspectos da Lei e da Norma Complementar Nº 2/98 e

esperança pela liberação das primeiras concessões. Conforme o tempo passa, as

expectativas de outorga se transformam em frustração - dada a lentidão na

apreciação dos pedidos pelo Ministério das Comunicações – convivendo com o

processo de combate as rádios não outorgadas100. A matéria “Depois de um ano e

dois meses apenas vinte nove rádios habilitadas” resulta dessa decepção101.

Inicialmente o jornal veicula apenas as ações da ABRAÇO, e a pauta é

quase que exclusivamente política. A partir de 1998 percebe-se a tentativa de

inclusão de outros tópicos, como as artes, a cultura e a formação de

radiocomunicadores - uma forma de buscar uma maior qualificação dos quadros. No

entanto, o grande eixo temático são as questões políticas, através das quais é

possível compreender o sentido ‘nativo’ dos discursos sobre as radiocom e sua

relação com o Estado, o mercado, e temas como a democracia.

O “ABRAÇO no Ar” funciona como um espaço de construção da auto-

imagem das radiocom. O investimento é feito na afirmação de uma imagem que

legitime a posição das comunitárias no cenário da comunicação brasileira. Para isto

uma das estratégias consiste em dar relevo ao papel social das emissoras e a

construção de fronteiras que caracterizem as radiocom e marquem sua

singularidade. Assim, em um dos primeiros números do boletim, ao fazer um balanço

das ações políticas e organizativas do movimento (e do I Congresso da

ABRAÇO)102, se afirmam os princípios que devem regê-las. O jornal é do período

anterior à aprovação da Lei 9612/98, momento onde as rádios precisavam legitimar-

se para ver reconhecido o seu direito de existência:

Nosso primeiro Congresso, nesse sentido, deu um verdadeiro banho de entusiasmo em todos nós. Foi com muita surpresa e alegria que percebemos que aquele coletivo que ali estava presente no congresso, está totalmente convencido dos princípios que devem nortear nosso movimento e nossas emissoras. Os princípios da pluralidade, da democracia, da gestão coletiva, do não correr atrás do lucro, e da vontade de democratizar a sociedade, etc... (Editorial

100 Levantamento realizado por Lopes (2005, p. 77) mostra que, “entre 1998 e 1999, 2.543 processos aguardavam a publicação dos Avisos de Habilitação pelo MiniCom, um dos primeiros procedimentos do processo de outorga”. 101 Para uma visão mais completa das questões de interesse do jornal apresento, no anexo 4, as matérias publicadas em cada exemplar analisado. 102 I Congresso Nacional de Rádios Livres e Comunitárias, ocorrido em setembro de 1997.

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do boletim “No Ar ABRAÇO”, Novembro/1997).

Pluralidade, democracia, gestão coletiva, recusa da busca pelo lucro

delimitam os limites entre as radiocom e as outras rádios.

O período dessa afirmação coincide com a tramitação do Projeto de Lei no

Congresso Nacional e com a expectativa de uma legislação que atendesse aos

interesses das radiocom, o que só seria possível pela construção de uma unidade

estratégica do movimento:

Para que o movimento consiga recuperar as principais emendas de seu maior interesse (...) será de fundamental importância a busca de unidade tática, principalmente com os segmentos do próprio movimento, além de outros setores da sociedade que apóiam a luta pela democratização das comunicações (Conjuntura, Jornal “ABRAÇO no Ar”, Novembro/1997).

A imagem democrática associada as radiocom contrasta com a imagem do

governo103/ Estado, visto como um agente repressor e um dos maiores inimigos das

comunitárias, na medida em que tenta impedir o número crescente de emissoras de

executar seus serviços. Nessa oposição as radiocom se percebem e se proclamam

como portadoras da “voz da democracia”:

Toda a repressão e estratégias usadas pelo governo não tem sido suficientes para calar a voz da democracia, da soberania popular, da cultura emergente que vem das emissoras verdadeiramente comunitárias, cada dia mais apoiadas pela sociedade civil organizada. (...) Dados do Ministério [das Comunicações] afirmam que as Delegacias Regionais já fecharam mais de 1.700 rádios comunitária. Mas reconhecem que já chegam a mais de 7.000 o número delas em todo o país(...). (Conjuntura, Jornal “ABRAÇO no Ar” Novembro/1997).

Em outra matéria, “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil

ceder”, já do período pós-surgimento da legislação, os mesmos princípios são

reafirmados e a definição da comunicação comunitária se impõe para além da 103 À época, governo de Fernando Henrique Cardoso.

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regulamentação: “todas as emissoras de gestão pública, sem fins lucrativos e

programação plural terão sempre o nosso apoio, será objetivo de nossa existência,

seja REGULAMENTADA OU NÃO!“ (“Sonhar mais um sonho impossível. Lutar

quando é fácil ceder”. “ABRAÇO no Ar”, Julho/1998).

A decepção com a nova Lei, antes esperança de reconhecimento, se

expressa em matérias como “Lei das rádios comunitárias ... o começo ou fim”, de

autoria de Ismael Lopes, então diretor da Rádio Novos Rumos, uma das primeiras

emissoras em FM a brigar pelo reconhecimento legal.

O texto admite que a existência da Lei é uma conquista do movimento de

radiocom, mas critica diversos aspectos, como a limitação de potência, a

impossibilidade captação de recursos publicitários, a proibição de transmissões em

cadeia entre comunitárias, entre outros. A legislação passa a atuar como uma

garantia legal contra as emissoras comunitárias e não a favor de sua existência.

Como discute Lopes (2005) como uma estratégia de “contra-reforma” dos setores

hegemônicos no controle dos meios de comunicação no país. Eis alguns trechos do

jornal:

Essa conquista poderá significar um avanço na democratização da comunicação ou uma ‘vitória de pirro’, dependendo das normas que regularão pontos obscuros da Lei. É cedo ainda para uma avaliação definitiva. Por enquanto, o que se pode observar é um paradoxo congênito: ao mesmo tempo que a Lei acolhe princípios democratizadores, modernos e até ousados, possui limitações que a tornam tímida, arcaica, cerceadora, frustrante.” (“Abraço no Ar” Julho/1998).

Em outra matéria há a inversão do sentido de usurpação atribuído à

expressão “pirata”. O governo, políticos e os grandes empresários de comunicação é

que são tratados como usurpadores, como ladrões de direitos:

O que houve com a regulamentação e, pra piorar com as normas técnicas, foi um verdadeiro assalto a legítimos direitos que adquirimos com a nossa Lei maior. (...) ‘De fato, com a regulamentação e as normas técnicas ficou simplesmente impossível o cumprimento da Lei (...) Há duas formas de tratar aqueles que nos roubam: a primeira é buscar na justiça uma solução para as causas e os efeitos desse roubo. (...) o segundo modo de tratar essa questão

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é, sem nenhum problema de consciência, político ou legal, orientar nossas emissoras para que não respeitem aquilo que fere direitos conquistados e legitimados” (Os ladrões entram pelas portas dos fundos”. Agosto/1998)

Noutra matéria o tom de crítica a legislação é ainda mais duro. Ao mesmo

tempo em que as garantias legais são invocadas na defesa do direito de expressão,

a legislação específica sobre a radiodifusão comunitária guarda um outro significado

para o movimento. Ela não é considerada legítima, ainda que legal, e o sentido de

rebelião e insurgência contra a Lei se reveste do sentido de defesa dos direitos

democráticos. Não são elas que são ilegais, a Lei é que seria ilegal e ilegítima:

Portanto, o desfecho da luta pela democratização das rádios comunitárias, defronta-se, neste com um impasse. Ou se aceita estas “leis”, que na verdade são a expressão da censura e da legalização da repressão, ou mantêm-se acessa a resistência, não aceitando os limites perversos estabelecidos pelos interesses dos monopólios de comunicação do país, que são, na verdade, os inimigos viscerais da democracia nos meios de comunicação e radiodifusão popular (“Não a censura, não ao silêncio!” , texto do deputado federal Fernando Ferro (PT-Pe) – Jornal “Abraço no Ar” Agosto/1998).

Essa idéia reaparece várias vezes em diferentes momentos do jornal.

Legalidade e legitimidade são discutidas tendo como marco o direito à palavra e a

informação. Esse direito legítimo é barrado pela regulamentação, como afirma outro

trecho do Jornal:

A lei em seus artigos (...) em nenhum momento fixou a limitação de alcance agora determinada no decreto regulamentador. Assim, ao procurar regulamentar uma lei, para torná-la eficaz, o executivo acabou por criar, de forma ilegal, uma normalização nova, não prevista na lei que instituiu o serviço de radiodifusão comunitária. Outra ilegalidade foi o fato de, através de portaria e do próprio decreto regulamentador, estabelecer o funcionamento de atividades de radiodifusão comunitária apenas em áreas urbanas, em prejuízo das comunidades rurais. Diante disto, não nos resta outra alternativa, senão questionar juridicamente a ilegalidade cometida pelo executivo (uso abusivo do poder de regulamentar), na expectativa de que o poder judiciário declare como existente tais restrições.” (“Agora o mandado segurança é ‘contra o Ministério’’, texto de Alberto Moreira Rodrigues Assessor Jurídico da bancada do PT – Jornal “Abraço no Ar”, Março/1999).

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O jornal opõe os pares legalidade-ilegítma e ilegalidade-legítima. Por essa

oposição a legalidade instaurada por uma regulação específica para as radiocom é

ilegítima, sendo contraposta a existência real das radiocom, uma ilegalidade legítima

que restabelece a justiça, o direito usurpado. O argumento expõe não apenas a

situação legal e política das rádios comunitárias, mas associa a baixa qualidade da

Lei à baixa qualidade parlamentar, produzindo uma contra-ofensiva em torno da

criminalização das emissoras e de seus membros, o que se expressa no título da

matéria: “Criminosos são eles”. O texto afirma:

Se nós temos uma lei idiota, ruim, para as rádios comunitárias, é porque muita gente que hoje mexe com rádio elegeu deputado imprestável. E se a lei é imprestável (como o parlamentar), se o movimento cresceu usando a carta magna – que então se volte para ela e não aceite as limitações impostas por um regulamento burocrata, burro, medíocre. O povo tem que tomar conta do Brasil ou, eles saqueiam e exploram este país e sua gente há 500 anos, vão festejar mais uma data, e povo explorado, espancado, vai comemorar junto. Diga não! ( “Criminosos são Eles”. Texto de Dioclécio Luz - Março de 1999/08).

O mesmo argumento que inverte o discurso de criminalização das radiocom

aparece em outro texto intitulado “Os ladrões entram pela porta dos fundos”, que se

refere ao processo de regulamentação da Lei 9.612 pela Norma Complementar que

institui um conjunto de restrições adicionais ao texto da lei. O texto afirma:

Acreditávamos pelo menos que o MiniCom respeitaria o que foi discutido e aprovado pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado). É verdade que a própria lei 9.612 é uma violência constitucional, um desrespeito às leis internacionais e a liberdade de expressão.

(...) De fato, com a regulamentação e as normas técnicas ficou simplesmente impossível o cumprimento da lei.

(...) o segundo modo de tratar essa questão é, sem nenhum problema de consciência, político ou legal, orientar nossas emissoras para que não respeitem aquilo que fere direitos conquistados e legitimados. (“Os ladrões entram pelas portas dos fundos”, texto de Sebastião Santos, presidente da ABRAÇO – Agosto /1998)

Algumas matérias elaboram um lugar de devir para as radiocom. Elas

representam não apenas a urgência da fala democrática, mas também da via

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revolucionária, necessidade histórica que no Brasil legitimaria a sua existência. A

declaração do papel revolucionário das rádios tem como ambiente a discussão sobre

o decreto que cria a radiodifusão comunitária e a legislação complementar a este.

Na matéria “No Brasil, lutar pela democratização da comunicação é um ato de

coragem” percebe-se essa leitura:

Nesse panorama sombrio, o maior movimento surgido depois do movimento sem-terra que são as rádios comunitárias, têm sido caladas na ponta das metralhadoras da polícia federal, do confisco dos equipamentos e da prisão arbitrária de militantes, sindicalistas, mães e donas de casa. (texto de Beth Costa, diretora da FENAJ,- Jornal “ABRAÇO no Ar”, Julho/1998)

O campo político de disputa por legitimação parece ficar evidente na citação

a seguir. A história do Brasil é contada para afirmar que piratas não são as

emissoras comunitárias, mas “os piratas que detêm o poder há quase 500 anos”. A

legalização aparece como conseqüência do processo de democratização que as

rádios buscam assegurar com sua existência e que lhes é negada. De forma

contundente a ocupação do “dial” é defendida:

Os que fazem rádios comunitárias sempre defenderam o que a este governo parece ofensa: a democracia. A democracia radical. Direitos iguais para todos, Direito à população ter acesso aos meios de comunicação. Essa defesa sempre foi tão radical que na cartilha sobre rádios comunitárias, editada por três deputados do PT, está sublinhada: rádio comunitária não pode pertencer a nenhum partido. Ela tem que abrir espaço para todos. Ela tem de ser plural! Este é um dos princípios da comunicação democrática. E isto incomoda aos piratas que detêm o poder há quase 500 anos neste país. O que está em jogo, portanto, não é a regulamentação das rádios comunitárias. O que está ou não em jogo é haver ou não democracia no Brasil. (...) a questão das rádios comunitárias, portanto, é essencialmente política. Há um poder político que não admite que o povo possa divulgar a informação. (...) vamos colocar as rádios no ar. Do mesmo modo que o movimento do sem-terra ocupa as terras improdutivas, instalando-se, produzindo, porque é um direito enquanto cidadão e cidadã brasileira. Cabe aos que fazem rádios comunitárias enfrentar a arbitrariedade e ocupar o espaço que lhes pertence. (...) Agora não dá pra voltar. Ou insistimos e mantemos as rádios comunitárias e abrimos outras 50 mil, 100 mil, como o povo quer, como o povo brasileiro tem direito ou nos dobramos ao presidente déspota que aí está. Se a legislação não presta, se ela é fascista, discriminadora, uma vergonha jurídica e um acinte a democracia, então que a luta continue (...) Ninguém cala a voz do povo. Nem com baionetas ou AR15 é impossível impedir que o futuro chegue, o futuro que

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merecemos. Vamos botar as rádios no ar. Democracia ou nada (“Voltamos à luta!” Texto de Dioclécio Luz, “Abraço no Ar”, Agosto/1998)

O lugar da fala do movimento das rádios comunitárias é o lugar reivindicação

de um direito, já existente constitucionalmente, mas não efetivado: o do direito a livre

expressão, viabilizado pelo acesso a um canal de comunicação comunitária. Para

tanto são invocadas as garantias legais do estado de direito e sua promessa de

democratização e universalização da liberdade de expressão, rapidamente frustrada

pela lentidão na avaliação dos pedidos de concessão - pressuposto de

reconhecimento legal para os milhares de rádios que já atuavam no país. Nesse

sentido, como já sugeri antes, se judicializa o processo de discussão das emissoras

comunitárias.

Ao trabalhar discursivamente com o sentido de democratização as

radiocom aparecem, enquanto movimento, como uma das oportunidades de

melhoramento da sociedade. Uma série de atributos presentes nas comunitárias

realizaria esse intento:

O movimento de rádios comunitárias no Brasil carrega em si e para si aspectos sócio-culturais-políticos e econômicos inerentes a sua trajetória de luta pela democratização dos meios de comunicação. A busca incessante para saber e fazer radialismo popular de forma diferenciada também nos fortalece enquanto gente, se sente, faz e acontece. É bem verdade que nesses anos de experiências re-construímos as nossas próprias contradições históricas. As nossas limitações nos convidam a descobrir as nossas próprias possibilidades. (texto “Os homens, as mulheres e as rádios comunitárias”, Jornal “Abraço no Ar”, Maio/1999).

Outro tema recorrente é o da repressão efetuada pelo Estado. Os agentes

da ação repressora são identificados como inimigos das rádios e do movimento. Em

uma matéria sobre a campanha “Quem tem medo das rádios comunitárias”, feita

para esclarecer a população do “verdadeiro assalto de que nossas rádios têm sido

vítimas”, se afirma:

A Anatel e a Polícia Federal tem ido com freqüência ás rádios roubar nossos equipamentos. Não os deixe entrar sem um mandato de

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busca e apreensão sob hipótese alguma, pois eles têm usado diversos ardis para convencer os diretores das rádios com promessa de apenas lacrar os equipamentos e quando dentro das rádios botam as garras de fora e apreendem tudo. Portanto, não se deixe roubar (“Abraço no Ar”, Maio/1999).

O Ministério das Comunicações também ocupa o lugar de inimigo das

rádios, mas pela via do não fornecimento de autorizações de funcionamento:

Se existia algum comunicador comunitário nutrindo um sentimento positivo pelo processo de regulamentação, agora esse sentimento certamente foi por água abaixo com a publicação da relação intitulada “Aviso para apresentação dos dados de instalação da estação”. Isto porque a esperada lista contém, pasmem, apenas 29 emissoras, sendo elas, 16 de Minas, 1 do Rio, 1 de Pernambuco, 1 do Espírito Santo, 4 do Amazonas e 2 de Alagoas. Vale lembrar no Brasil existem cerca de 5000 emissoras operando clandestinamente, esperando por sua regulamentação. Não é fácil descobrir exatamente o porquê deste número ser absolutamente baixo, mas podemos tentar imaginar essa última cartada do MiniCom através de várias hipóteses: Amadorismo e ineficiência. O feitiço se volta contra o feiticeiro (...) Não deu tempo pra lacrar todo mundo (...) Enrolar até que seja aprovada a lei geral (...) Ta difícil de conter o lobby (...) Nós somos realmente maus. (...) Mas acima de tudo, se o MC continuar lacrando rádios e publicando listas provocativas como a última, podemos já prever num futuro próximo, o rompimento com esta legislação, a favor da verdadeira democracia. ( “Depois de 1 ano e 2 meses apenas 29 habilitadas”, “Abraço no Ar”, Maio/1999)

A identidade das rádios aparece como uma preocupação constante.

Expressões como “rádios verdadeiramente comunitárias”, ou “picaretização”, visam

delimitar fronteiras e promover uma qualificação do que seja uma emissora

comunitária e separá-las de outras rádios, efetuando uma distinção entre o “joio e o

trigo”. A chamada para um ato “Contra a Picaretização”, descrita abaixo, expressa

essa preocupação:

O ato servirá também para a ABRAÇO lançar uma conclamação contra a “picaretização” no movimento de Rádios Comunitárias. A entidade quer iniciar uma campanha contra a apropriação indevida de rádios comunitárias por pessoas interessadas apenas no proselitismo religioso, político e de autopromoção. Vamos separar o joio do trigo, porque isso é condição fundamental para as rádios comunitárias sejam instrumentos reais de disputa de hegemonia, de construção de uma nova via revolucionária cultura participativa, justa

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e gêneros ( “Dia estadual das rádios comunitárias”, jornal “Abraço no Ar”, maio/1999).

Inimigos internos ao campo, os “picaretas”, e os inimigos externos (grupos

de comunicação, ABERT, parlamentares, órgãos de estado, juristas, etc) são as

duas frentes que passam a ser enfrentadas no processo de legitimação das

radiocom e de disputa por espaço e reconhecimento legal. A partir desse duplo

enfrentamento o processo de construção da imagem das rádios é elaborado. Desse

modo, o papel político da comunicação e o compromisso das rádios comunitárias

com a “verdade”, também aparecem como elementos de construção da auto-

imagem das emissoras pela ABRAÇO:

Reconhecer que a comunicação se constitui como o quarto poder é óbvio. No entanto, como operacionalizar-se contra tal constatação? É o que procuramos realizar quando instalamos rádios comunitárias: fazer com que as pessoas das comunidades, via associações populares de diversos tipos, se comprometam na produção, com qualidade e verdade, das informações que serão veiculadas. ”Compromisso: democracia na comunicação” – maio/1999)

O filtro de controle sobre um campo em franco processo de expansão, desde

muito cedo preocupa a ABRAÇO, repercutindo no tom das matérias veiculadas pelo

jornal. Colocando como bandeira o fortalecimento da entidade e seu papel no

controle da qualidade das emissoras, as matérias diferenciam-nas em dois grupos:

aquelas “sob o controle da própria comunidade” e as outras ligadas a “oportunistas”.

O filtro responde às constantes acusações presentes em grandes meios de

comunicação e nas campanhas produzidas pela ABERT e suas afiliadas estaduais,

que afirma serem todas as rádios comunitárias rádios piratas. O termo usado por

essas entidades como sinônimo de perigo das transmissões dessas emissoras

ganha um outro sentido dentro do próprio movimento de radiocom, associando-se a

idéia de oportunismo. Nessa acepção vincula-se a grupos que não podem ser

identificados com as comunidades, entre estes políticos e grupos religiosos. A

matéria afirma:

A ABRAÇO é uma entidade aglutinadora de todos os movimentos sociais em torno da comunicação (...) Portanto, como principais beneficiários, nada mais justo que os movimentos se

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responsabilizarem pelo fortalecimento da ABRAÇO, para que ela possa ter condições de atuar nas comunidades difundo os conceitos da verdadeira comunicação comunitária, mobilizando-as para a construção de rádios comunitárias sob o controle da própria comunidade. Pois, os oportunistas estão ganhando terreno (Editorial: “A ABRAÇO e os movimentos sociais”, jornal “Abraço no Ar”, setembro/1999).

Nessa definição de fronteiras e no sentido de devir que o Jornal constrói o

texto a seguir é exemplar. Quase que como um manifesto ele define a diferença

entre as radiocom e as outras, discutindo os princípios destas emissoras e a relação

destas com as comunidades, com a informação e o mercado. Além disto, o texto

esquadrinha o papel social das emissoras, que seria o de romper com o poder dos

“coronéis dos meios de comunicação”:

A comunicação tem de ser livre, desprovida de preconceitos, genuína e autêntica. (...) Ficou mais uma vez esclarecido que uma Rádio Comunitária é gerida pelo movimento popular organizado. Tem que ser plural, prestando-se ao debate e a multiplicidade de opiniões, sem ficar atrelada a partidos políticos, grupos econômicos ou religiosos. “A comunidade é plural e assim deve ser a sua rádio”, conclui José Sóter, presidente nacional da ABRAÇO. (...) queremos mostrar nossa cara para nós mesmo. Dar subsídios para a formação de opiniões mais consistentes e autênticas. Reverter valores estéticos e culturais impostos pelos grandes meios de comunicação de massa. Isto é verdadeiramente revolucionário. (...) O Brasil possui hoje 5.508 municípios. A meta é que cada um tenha em média três radiocom. Mais de 15 mil emissoras portanto: (...) A ABRAÇO foi criada em conseqüência do movimento de Rádios Comunitárias no Brasil, que despontou no início da década de noventa, motivada fundamentalmente pela compreensão de que só existirá uma sociedade justa e igualitária se, antes, a comunicação for democrática, o poder dos coronéis dos meios de comunicação for descentralizado e entregue nas mãos do povo (“Nas ondas do rádio”, jornal “Abraço no Ar”, Julho/1999).

Quando tematiza oportunidades dentro do campo das próprias radiocom o

jornal fala otimista da criação de empregos, oferta que as rádios comunitárias

poderiam realizar:

Nos próximos dez anos o Movimento de Rádios Comunitárias, MRC, criará 200 mil novos empregos diretos, se o Minicom [Ministério das

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Comunicações] fizer valer a lei 6.912/98, autorizando o funcionamento das radiocom nos mais de cinco mil e quinhentos municípios brasileiros. Cada emissora emprega um mínimo de cinco trabalhadores. Indiretamente, garantirá emprego para outras centenas de profissionais da indústria de equipamentos de radiodifusão e ainda poderá revitalizar a economia municipal. (jornal “Abraço no Ar”, Agosto/1999)

Ainda sobre a relação das rádios comunitárias com a constituição de um

mercado específico de oportunidades, o jornal afirma:

Como o mercado de equipamentos está estagnado na comunicação convencional e já existem milhares de entidades interessadas em canais de radicom, a Abird [Associação Brasileira da Indústria de Radiodifusão], agora aparece para criar, junto com o Ministério, regras que lhe garanta o mercado emergente das radiocom. (Jornal “Abraço no Ar”, Agosto/1999).

Constituir-se também como um mercado e não apenas como um movimento

social tem conseqüências importantes para o campo das emissoras comunitárias. As

tensões colocadas pela necessidade de financiamento e o surgimento de

oportunidades de negócio que o aumento de emissoras traz, expandem as fronteiras

dos interessados no negócio das comunitárias para além dos movimentos sociais104.

É o caso, por exemplo, do crescimento das empresas de equipamentos que, nas

próprias páginas “ABRAÇO no Ar” anunciam a venda de equipamentos para a

montagem da “sua própria rádio comunitária”.

A esse respeito, uma matéria do jornal “Folha de São Paulo” de 26/06/2000

informa sobre o crescimento da venda de transmissores. Um dos gerentes de uma

das empresas que registram um aumento de cinqüenta por cento nas vendas afirma

que “45% dos compradores são políticos e outros 45% são evangélicos”105.

Cada edição do “ABRAÇO no Ar” analisado tinha em média três anúncios de

equipamentos para montagem de emissoras. Reproduzo a seguir algumas destas

propagandas. Abaixo um anúncio da empresa “Sany” e dois da empresa “Teclar”

104 Durante algum tempo a ABRAÇO gerenciou um consórcio denominado “Consórcio Nacional ABRAÇO/BANCORBRÁS”, para viabilizar a compra de equipamentos pelas emissoras comunitárias. 105 “Cresce a venda de transmissores”. Matéria de Daniel de Castro publicada no jornal “Folha de São Paulo” em 26/06/00

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publicados no jornal com os títulos: “Tenha sua própria rádio comunitária106. Agora é

legal” e “Monte já sua rádio comunitária. Agora com o apoio da Lei”:

Figura 8: Anúncio da empresa de transmissores “Sany” publicado no ABRAÇO no Ar nº 12, de Junho de 1999.

Figura 9: Anúncio “Tenha sua própria rádio comunitária”, da empresa de equipamentos eletrônicos “Teclar” publicado no número 8 do Jornal ABRAÇO no Ar, de março de 1999.

106 Outras empresas que também anunciaram nas páginas do jornal foram “a APEL”, “a TELETRONIX”, a “DB-NET”, a “TELEKOM” e “Victor do Brasil LTDA”.

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Figura 10: Anúncio de página inteira: “Monte já sua rádio comunitária. Agora com o apoio da Lei”, da empresa de equipamentos eletrônicos Teclar publicado no número 8 do Jornal ABRAÇO no Ar de julho de 1998.

O jornal registra também uma preocupação com a formação jurídica, já que

boa parte das rádios não tem concessões e podem ser lacradas a qualquer

momento, estando seus responsáveis sob o risco de responder a processo criminal.

Em um dos números do jornal se oferece o seguinte material: “Saiba como

instalar uma rádio verdadeiramente comunitária” e “Porque defendo as rádios

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comunitárias” do Juiz Federal de Direito de Uberaba-MG, Paulo Silveira Fernando107.

São oferecidos também os seguintes títulos: “Como fazer uma boa programação de

rádio comunitária”, “Como adquirir equipamentos para as rádios comunitárias” e

ainda um “kit jurídico com modelos de mandato de segurança preventivo, acórdãos,

agravo de instrumento, sentenças....” (Jornal “ABRAÇO no Ar”, nº 14, setembro de

1999).

Depoimentos de operadores do direito que interpretam a legislação sobre a

radiocom de modo crítico e, portanto, favoráveis as emissoras comunitárias, e que

haviam concedido liminares de funcionamento às emissoras, são apresentadas pelo

jornal no esforço de legitimação das posições favoráveis às radiocom. Os agentes e

as experiências têm destaque no jornal e ilustram, de um lado, o caráter repressivo

da Lei e, de outro, oferecem alento a ação das rádios dentro do Estado de direito,

amparadas principalmente no direito de expressão como uma garantia

constitucional. São exemplos desse recorte as matérias: “Juiz federal vê país numa

ditadura mascarada” (“ABRAÇO no Ar”, setembro/1999), “Com a palavra a justiça”

(“ABRAÇO no Ar”, setembro/1999) e “A questão jurídica das rádios comunitárias”

(“ABRAÇO no Ar”, outubro/1999).

A importância do campo jurídico no “Abraço no A”r, revela que parte

importante dos problemas enfrentados pelas emissoras se resolve no campo legal, o

que afeta, como visto no caso do Ceará, a organização do movimento, já que o

ordenamento jurídico desempenha papel tão importante quanto a mobilização

política.

Do ponto de vista da construção da auto-imagem, as disputas jurídicas,

quando ganhas, revelam aspectos das distorções da legislação, e sua ilegitimidade.

As rádios aparecem nestes casos como instrumentos da liberdade de expressão, e

em um esforço para reverter a imagem de ilegais e piratas que lhes é imputada

pelas matérias da imprensa, como visto no caso da cobertura feita das radiocom

pelos jornais cearenses.

107 O Juiz, atualmente aposentado, é autor do livro “Rádios Comunitárias”, que analisa o fenômeno das emissoras comunitárias sob a perspectiva do direito de informar e ser informado. O juiz também como assessor na elaboração do projeto de Lei que municipaliza as concessões de radiocom na cidade de São Paulo, recentemente sancionada pelo prefeito José Serra.

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O grande tema presente no jornal é a democratização das comunicações, o

que liga a auto-imagem das emissoras a uma proposta libertária e revolucionária.

Assim elas são vistas como guardiãs da liberdade; porta-vozes do povo, ou melhor,

encarnação do próprio povo; instrumentos de democratização; promotoras dos

valores culturais brasileiros; agentes do desenvolvimento comunitário; agentes de

transformação social. Estas, entre outras representações, passam a compor

positivamente a auto-imagem das radiocom, e buscam equilibrar a balança do

“diferencial de poder” (ELIAS, 2000) que pesa a favor das emissoras comerciais.

O jornal esboça ainda um cenário de negação do modelo de

telecomunicações do Brasil e reverte a questão da pirataria, atribuída as rádios

comunitárias, em argumento para a leitura dos atuais proprietários de meios de

comunicação no Brasil, representados como “saqueadores, piratas que colonizaram

o Brasil”.

A utopia revolucionária a ser realizada pelas radiocom, que englobaria

aspectos da mudança política, com uma participação do cidadão a partir de um meio

de comunicação feito por ele e para ele; a mudança cultural, com a possibilidade de

produção alternativa à das emissoras comerciais, entre outros, produzem uma

idealização do papel social das radiocom. Mas guardam lugar importante no

processo de interpretação destas emissoras, negando as atribuições desfavoráveis

que os grandes grupos de comunicação lhes imputam, e que se expressa na

cobertura dos jornais vista anteriormente.

3.4 O que deve ser uma rádio comunitária

O manual de Dioclécio Luz (2000) e algumas matérias presentes no Jornal

“ABRAÇO no Ar” sugerem a constituição de uma “etiqueta”, uma orientação de

comportamento dos membros das radiocom frente a seu funcionamento. A etiqueta,

depois transformada em código de ética pela ABRAÇO (anexo 5), constitui um

elemento de diferenciação das radiocom em relação às emissoras comerciais, que

são, segundo Luz, pautadas pelo lucro, guiadas pelos interesses da indústria cultural

e avessa aos movimentos sociais. A identidade das radiocom se constrói, portanto,

pela negação do campo institucional da radiodifusão.

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A construção de uma imagem e identidade que se fundamenta pela negação

demarca um esforço de afirmação que se desenvolve em diversos campos.

Juridicamente se afirma uma disputa pelo espectro eletromagnético que torna

possível sua partilha com as rádios oficiais. No campo da programação se afirma a

possibilidade de uma programação mais cultural e mais educativa. E em relação à

participação social se afirma uma relação de diálogo com a sociedade (movimentos

sociais).

Está pressuposta neste processo a idéia de bem, da qual as radiocom

seriam portadoras, donde se conclui que seriam melhores que as emissoras

comerciais. É com base nesse discurso que o campo se afirma, num movimento de

dentro pra fora. E é ainda com base nele que as disputas internas se pautam. Os

elementos de perversão daquilo que seria o destino das radiocom são apontados

como presentes nesta ou naquela emissora que, por isto, não poderiam ser

reconhecidas pelos seus pares como radiocom. Daí as denominações: “rádio

comunitária mista, rádio picaretária, falsa comunitária, pseudo-comunitária, etc”.

O debate interno entre as rádios se situa nesse ambiente onde a definição

do que é ser uma “rádio verdadeiramente comunitária” tem um papel central. Nesse

sentido, ora a argumentação se volta para a defesa da Lei, ora para sua negação.

Ora para a atribuição de legitimidade de sua prática, ora para a deslegitimação da

prática de emissoras de baixa potência não reconhecidas como comunitárias. Ora na

defesa da liberdade de ação, ora na defesa do controle estatal. A articulação dessas

falas irá depender do lugar e dos atores sociais que as formulam.

Além dos interesses distintos dos diversos agentes, o que constitui a atual

legislação de radiocom no Brasil é o reconhecimento da existência de uma prática e

a necessidade de seu controle. As práticas e as fronteiras desse espaço social só

podem ser compreendidas de modo relacional, no jogo de força e do interesse de

diferenças esferas: O Estado, as rádios comerciais e as radiocom.

Além do Abraço no Ar, com a popularização da Internet grande parte da

discussão sobre as emissoras se transfere para as listas de discussão na internet.

Além do caráter interativo, estas listas são interessantes porque não apresentam

apenas a visão institucional sobre as rádios, oferecendo inclusive farto material de

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crítica aos agentes institucionalizados que representam as radiocom, como a

ABRAÇO. O tópico a seguir trata do acompanhamento a uma dessas listas.

3.5 As rádios comunitárias na Internet

No campo das comunicações alternativas, parte das informações e dos

discursos também circula pela rede mundial de computadores. Campo de discussão

e exposição de idéias, a Internet fornece material importante para o pesquisador

interessado na discussão de temas polêmicos108, entre eles as radiocom. “Sites”

institucionais ou particulares e listas e grupos de discussão oferecem material que

permite visualizar o cenário de perspectivas sobre as emissoras comunitárias.

Estratégias de legitimação e de deslegitimação destas rádios e formas diferentes de

entender o que é uma emissora comunitária e qual o seu papel são expressas

nestes espaços virtuais.

Assim, de acordo com a idéia de apreensão da auto-imagem das radiocom,

a Internet aparece como um campo fecundo para se compreender os mecanismos

usados no processo de identificação e de interpretação do papel destas rádios. A

idéia de legalidade no campo das radiocom gera um ambiente de disputas sobre a

própria legalidade, sobre a idéia de democratização das ondas do ar, ao mesmo

tempo em que produz uma dinâmica de afirmação das distinções, com vistas a

“separar o joio do trigo”.

Essas disputas ressurgem no espaço virtual da Internet. Os fóruns, listas ou

grupos de discussão sobre rádio discutem estes problemas. Esses territórios virtuais

tornam-se espaços privilegiados para a compreensão das divergências, são

108 Na verdade a Internet tem se mostrado um campo fecundo de informações sobre os mais diversos temas, polêmicos ou não. Vários pesquisadores têm se dedicado a discutir aspectos metodológicos da pesquisa nesse meio. Assim, Em um texto intitulado “Antropologia e Internet. – Pesquisa e Campo no meio virtual” (AMARAL, 2002) a antropóloga Rita Amaral discute a Internet como um campo para a pesquisa antropológica. A autora trata da necessidade de debate sobre o “campo virtual e oferece um guia dos primeiros passos e possibilidades a quem se aventura no uso do computador, para além das funções de uma máquina de escrever sofisticada ou de uma calculadora e bem mais o de um ativo assistente de pesquisa, capaz de solucionar alguns dos problemas práticos durante as várias fases de uma pesquisa...” (p. 3). O argumento é o de que “os computadores podem transformar, em alguns sentidos, o modo pelo qual a pesquisa qualitativa vem sendo feita e, até mesmo, sugerir novas pesquisas sobre o próprio uso da Internet como fonte de dados ou como espaços de relacionamento entre grupos” (p. 2).

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compostos de fragmentos das formas de compreensão do papel da rádio e do

movimento das radiocom109. Eventos e fatos movimentam as discussões.

Em dezembro de 2002, numa das visitas a Internet em busca de dados para

a pesquisa me tornei assinante de uma lista de discussão sobre rádio denominada

“Rádio Livre”, e cujo endereço é [email protected]. Minha principal

motivação para o ingresso na lista era sua configuração como um provável campo

de informação sobre as emissoras comunitárias e rádios livres em nível nacional.

Fonte de perspectivas e informações nem sempre visíveis no espaço local da

pesquisa, Fortaleza-Ce.

Depois de alguns meses recebendo o material, decidi analisá-la não apenas

como uma fonte de informações, mas também como um espaço de percepção, onde

a legitimação e definição das emissoras e dos rumos dos movimentos das radiocom

também ocorre.

Na lista, que recebia “e-mails” de diversos colaboradores e debatedores,

analisei também uma publicação, chamada “Revista Rádio Livre”, circulante nesta e

em outra lista Fazem parte da lista pessoas e instituições interessadas na discussão

sobre rádios livres e comunitárias. Além da discussão especifica sobre as emissoras,

a lista escoa e socializa informações sobre arte, cultura, política e as produções

específicas dos participantes, como textos, boletins, avisos, etc, nem sempre

relacionadas diretamente com a temática do rádio. O período analisado compreende

aos meses de dezembro de 2002 a junho de 2003. Dentre os tantos “e-mails”

recebidos, 35 foram escolhidos para a análise.

Na lista, quando o assunto é rádio110 o principal tema são as radiocom.

Circulam principalmente e-mails com informes e opiniões. A dinâmica é a seguinte:

alguém manda uma informação (matérias da grande imprensa ou informações sobre

um determinado evento, como por exemplo o fechamento de uma emissora ou uma

audiência pública sobre as radiocom) que é então debatido/respondido/comentado.

Assim, os eventos que são informados passam a compor o repertório das

109 Talvez por isso uma boa imagem para entender e classificar as formas de compreensão das rádios e de seu papel parece ser a do caleidoscópio. 110 Nem sempre o que chega a lista como opinião, informação ou informe se refere ao rádio, como referido antes.

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discussões. Estas nem sempre contam com a mesma audiência e assistência. Há

eventos e notícias que por seu conteúdo polêmico movimentam mais os debates.

Outros, embora falem das rádios, não provocam manifestações111.

Acontecimentos nacionais e internacionais importantes ocorreram durante o

período de recepção dos materiais produzidos pela lista e de alguma forma

repercutiram na orientação das discussões. A posse do novo Presidente da

República e as esperanças que esse novo momento acenava estão lá. A guerra dos

Estados Unidos contra o Iraque também, assim como a composição do novo

governo e as primeiras críticas e expressões de decepções com os

encaminhamentos na área das telecomunicações. Desta forma, a discussão na lista

acaba incorporando as temáticas nacionais e internacionais como pauta.

Os “e-mails” analisados aqui se relacionam apenas com a temática rádio e

de acordo com a dinâmica da lista são tratados como “episódios significativos”:

Àqueles que puseram em relevo as questões mais conflituosas do universo das

radiocom e, por isso, foram os mais respondidos, criando, naquele momento da lista,

uma pauta comum de debates112. São eles: 1) O caso das “rádios do mal” 2) O caso

ABRAÇO (indicação ao MinCom) 3) Os casos de repressão PF e Anatel: fechamento

e lacre de rádios 5) Relatos sobre as reuniões do Conselho de Comunicação. Há

ainda os que, embora não tenham gerado um ativo debate, trataram da definição

das radiocom e de seu papel.

111 Como campo de discussão, a lista, com mais de 35 participantes no período acompanhado, parece não corresponder às expectativas do mantenedor do grupo. Tanto que em 22 de maio ele circula e-mail com aviso de sua desativação. A motivação? A fuga de seu propósito. 112 Como todo recorte de pesquisa, a seleção se efetuou também e principalmente em função dos interesses do trabalho de investigação: compreender o conflito em torno da definição do que seja uma rádio comunitária e as diferentes percepções sobre esta definição.

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3.5.1 “Rádios do mal?”

“A primeira rádio fechada no governo Lula”113. Com essa matéria Laura

Mattos, repórter do jornal Folha de São Paulo, informa o fechamento da emissora

comunitária Rádio Vale do Paraíba FM e discute a perplexidade do movimento de

radiocom frente à ação de repressão dessas emissoras no novo governo, expressas

no Fórum Social Mundial e nos “blogs” de discussão de rádios na Internet. Ela

encerra seu texto dizendo:

São debates relevantes, principalmente em início de governo. Mas seria bom que o fórum servisse também para questionar por que alguns chegaram a se assustar com o fato de uma rádio ser fechada no governo Lula. E 14 dias depois da posse. Será que não é hora de buscar um amadurecimento, inclusive, para admitir que nem toda rádio chamada de comunitária é “do bem”?

A construção de uma forma de diferenciação das radiocom baseada na idéia

de “bem” e de “mal” suscitou um dos mais acalorados debates da lista, a maioria das

falas respondendo diretamente a autora. Grande parte das réplicas se colocava

contra sua posição, posta sob suspeita. Outras tomaram a discussão da matéria

como ponto de partida para uma reflexão sobre os rumos do movimento de rádios

comunitárias e sobre sua composição.

Parte das participações no debate da matéria colocou a autora e não o tema

do bem e do mal na radiodifusão comunitária, um recorte por si só mobilizador de

argumentos maniqueístas, no centro das discussões. Assim, entre as falas

contrárias ao texto de Laura Mattos, está a que afirma uma dubiedade nas posições

da autora, identificada até então como uma das defensoras da causa das radiocom:

“Da maneira como você (que também é defensora dessa causa) está escrevendo,

está provocando desconforto no movimento pela democracia nas comunicações.

Seus textos estão trazendo algo que deixa dúbia sua própria concepção”.

A dubiedade seria marcada pela confusão entre legalidade e legitimidade, na

medida em que a autora só reconheceria como legítimas as rádios que tivessem

obtido autorização para funcionar. Haveria também a recusa em aceitar que as 113 Matéria publicada na coluna “Outra Freqüência”, do suplemento “Ilustrada”, no dia 22/01/2003.

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rádios sem autorização agem em defesa da democratização e que sem elas tudo

ficaria como está, sendo a ação das rádios uma transgressão necessária. Além

disso, a autora da matéria reforçaria a visão conservadora da Policia Federal e o seu

modo de ação na repressão às rádios.

Outros membros da lista denunciam uma ligação do jornal e da jornalista

com os interesses de grandes grupos de comunicação, eles sim “do mal”, portadores

do privilégio de poder comunicar em proveito de grandes grupos nacionais e

internacionais. O debate produz interessante reflexão sobre o termo “pirata”. As

rádios assim chamadas o seriam porque não tiveram liberadas as concessões de

funcionamento114.

Emerge ainda da discussão a esperança de que o novo Presidente da

República entregue licenças às “verdadeiras comunitárias” e cace “licenças

eleitoreiras”, que haviam sido distribuídas no período da campanha eleitoral, em

2001. Um dos participantes da lista afirma esperançoso: “Agora as rádios irão cair

nas mãos dos pobres e os ricos que subam para as parabólicas. A freqüência de 88

a 108 é nossa e ninguém tira”. E sobre o fechamento das rádios o mesmo “e-mail”

diz:

Se perante a lei todos são iguais, porque somente os pobres não podem possuir rádio? (...) A nossa não tem anúncios, todas as religiões tem direito e temos o serviço de cultura. Esta foi lacrada e por eles seria definitivo, mas eu sei deslacrar rádio, é simplesmente com uma boa tesoura. Quem está com as comunitárias está com Deus.

Outros membros da lista se posicionaram de modo diverso nessa polêmica.

Em um dos textos de resposta há uma reflexão sobre o espanto pelo uso do termo

“rádios do mal”. Espanto que refletiria uma visão ingênua e paranóica sobre o

universo das rádios. Anexo ao “e-mail” uma mensagem que noticia a apreensão de

uma emissora que seria exemplo do que “é exatamente uma rádio do mal”, cujo

título é “Suposto padre tinha armas e rádio pirata em igreja”. O “e-mail” reconhece

114 Um dos “e-mails” da lista informa a criação de um grupo de trabalho, no novo governo, para agilizar os pedidos de concessão, calculados a época em torno de 4.400 processos. O grupo trabalhou em 2003 e criou uma série de procedimentos para análise dos pedidos de radiodifusão comunitária, que foram sugeridos para incorporação junto ao MiniCom.

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que existem rádios diferentes em um mesmo campo, o das radiocom, e afirma que é

preciso reconhecer também formas diferentes de exploração do serviço de

radiodifusão comunitária, nem sempre efetuadas a serviço das comunidades onde

estão sediadas as radiocom.

Na polêmica, outro membro se diz feliz pelo debate causado pelo uso do

termo “rádios do mal” e defende a posição da jornalista. A leitura feita do episódio e

que a põe em suspeita (ela estaria aliada a grupos contrários as radiocom) seria

equivocada. O uso do termo seria assim “uma forma de separar o joio do trigo”. Há

também o reconhecimento da pluralidade de posições e da tensão entre elas

presentes no movimento das radiocom. Os “grupos de esquerda”, ao negar esse

fato, agiriam de modo ingênuo, ao reconhecer uma coesão e pureza do movimento

que seriam inexistentes.

O episódio suscita uma série interessante de formas de representar as

radiocom e o movimento. A adjetivação bem e mal e os sentidos evocados por estas

idéias são acionados em função de um debate sobre outras noções e

representações: “legitimidade, legalidade, democratização”. Sob forte pressão do

Estado e de grandes grupos de comunicação, a necessidade de distinguir entre as

“verdadeiras rádios comunitárias”, representantes do bem, e as outras,

representantes do mal, se converte, ora em defesa irrestrita do movimento e na

negação de sua heterogeneidade (e da existência de ações oportunistas em um

campo ainda em formação), ora na defesa da crítica e da denúncia de rádios que

não são comunitárias, como forma de preservar o próprio movimento.

Nesse processo representações usadas de “fora” para deslegitimar as

radiocom são re-apropriadas internamente pelo movimento, construindo uma

distinção entre eles, as rádios não comunitárias, e nós, “rádios verdadeiramente

comunitárias”. Esse movimento de manipulação das representações é parte do

processo de estabelecimento da “auto-imagem”, que surge como um campo

importante de ação, dentro e fora do movimento, como será visto adiante.

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3.5.2 Indicações ao Ministério das Comunicações

Outro momento interessante da lista foi o de indicação de alguns nomes

para a composição do novo secretariado do Ministério da Comunicação. Em

encaminhamento do Boletim do Fórum Nacional pela Democratização das

Comunicações (FNDC)115, os membros da lista são informados dos indicados pelo

FNDC. As reações que se produzem são principalmente de repúdio e de negação a

alguns dos nomes propostos. Ainda que as indicações tenham sido realizadas

depois de teleconferência com as cinco entidades que compõe a Diretoria Executiva

do Fórum, composta pela Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação

(ENECOS), Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (ABRAÇO), Conselho

Nacional de Psicologia, Federação Interestadual dos Trabalhadores em

Radiodifusão e Televisão (FITERT) e Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ).

Nas expressões de desaprovação o principal alvo é a ABRAÇO, que aparece

como116:

• Uma entidade desacreditada, marcada pelo oportunismo e pela

“politicagem”. Uma “entidade de cargos” distanciada das bases, e cuja principal

motivação é conseguir indicação para seus membros em cargos em entidades e

instituições governamentais.

• Há a memória da entidade como porta-voz de um grande projeto

esvaziado e por isso mesmo, clamando por uma retomada.

• Há uma exposição clara de tensões que esfacelaram a entidade

construindo outras instituições como a Rede Brasil de Comunicação Cidadã (RBC)

Federação de Rádios Comunitárias (FARC)

• Os nomes rejeitados têm postas sob suspeita suas intenções para com

o movimento das radiocom, mais interessados que estariam em “crachás” e

“empregos”.

A fragmentação do movimento e a descrença em algumas entidades e

instituições encontram espaço para ser debatida com mais franqueza nas listas.

115 Boletim Número 11, de 10/01/2003. 116 A desaprovação de alguns nomes se relaciona diretamente ao vínculo destes com a ABRAÇO.

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Nesta, a recusa se expressa claramente, inclusive com a menção dos nomes

indicados e recusados por alguns participantes da lista.

3.5.3 Os casos de repressão: o fechamento e lacre de rádios comunitárias.

Parte significativa dos “e-mails” analisados trata do fechamento de radiocom

pela Polícia Federal e Anatel. A situação de tensão a que estão submetidas as

rádios sem concessão, funcionando com o amparo de liminares, ou, como muitas

vezes acontece, sem nenhum resguardo legal, torna a presença da rádio no ar um

possível problema criminal para aqueles que estão à sua frente.

Um técnico117 da Anatel-Ceará, explica o que acontece com uma rádio que é

posta no ar sem autorização:

O procedimento da Anatel, previsto na LGT [Lei Geral das Telecomunicações], é de que os agentes de fiscalização pudessem fazer busca e apreensão dos equipamentos, aí esse dispositivo foi revisto numa ação direta de inconstitucionalidade e está liminarmente suspenso, o mérito dele não foi julgado ainda. Então hoje a gente fiscaliza e faz interrupção cautelar, os equipamentos são lacrados (...) e ficam na guarda do proprietário. Eles passam a ser o fiel depositário do equipamento e a gente encaminha esse termo de interrupção para a Polícia Federal, fazendo uma denúncia e tipificando quais são os crimes ali, quais são os dispositivos previstos, e a Polícia Federal instaura um inquérito, um inquérito que em seguida vai para a justiça, que é denunciado. (...) Aí geralmente a polícia pede a apreensão (...) e os juízes geralmente concedem busca e apreensão.

Uma rádio sem autorização representa, ao mesmo tempo, um ato de

desobediência legal, de luta pela democratização das comunicações mas também

uma provável ocorrência policial. Inúmeras são as estratégias usadas para fugir da

apreensão dos equipamentos e abertura de inquérito contra os comunicadores. Tirar

a rádio do ar, impedir que os fiscais entrem sem mandato são algumas das táticas

usadas para fugir da vigilância.

117 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005.

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Nos grupos de discussão estratégias preventivas ao fechamento e ações

solidárias às rádios apreendidas são criadas, entre elas a campanha “Libertem

Nossos Presos” liderada pela ONG AMARC (Associação Mundial de Rádio

Comunitárias). Há ainda uma série de informações que circula sobre o processo de

legalização das emissoras e a saída destas da condição de clandestinas.

Além de estratégias preventivas contra o fechamento de emissoras, a lista

registra as apreensões e lacres e manifesta seu repúdio contra o fato. Num “e-mail”

de abril de 2003, é repassada a informação, embora ressaltando-se a necessidade

de que checagem de sua autenticidade, sobre apreensão de 132 emissoras em São

Paulo, listadas com nome, endereço e tipo de ação realizada, divida em quatro

categorias: “equipamentos lacrados, local fechado/emissora no ar, impedida de

vistoriar e emissora desativada”.

A “Revista Rádio Livre”, que circulou na lista em 3/12/02, por exemplo,

anuncia: “Rádios Comunitárias exigem abertura de inquérito contra a Anatel”. O texto

avisa que:

As entidades que congregam as rádios comunitárias do Rio Grande do Sul e trabalhadores dessas pequenas emissoras denunciam nesta quarta-feira, dia 27, as arbitrariedades e violência que vêm sofrendo da Policia Federal, a mando da Anatel, ao mesmo tempo em que divulgaram reivindicando os direitos constitucionais e democráticos de funcionarem a bem dos interesses da comunidade.

É interessante observar que a Anatel faz referência parecida a ações de

violência contra seus fiscais em um de seus relatórios de fiscalização, afirmando: “As

ameaças sofridas pelos fiscais e os locais fechados foram alguns dos principais

responsáveis pela ineficiência das ações de fiscalização e combate a estações não-

outorgadas” (Relatório Gerencial da SRF 2004, p. 10).

O acompanhamento dos processos e ações do executivo, legislativo e

judiciário também é constante. Audiências públicas, projetos de lei, campanhas de

apreensão de rádio são constantemente monitoradas. Alimentam a lista informações

dos boletins parlamentares, matérias de jornais de grande circulação nacional,

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boletins de entidades e denúncias de comunicadores e simpatizantes contra

arbitrariedades às emissoras.

Na situação de clandestinidade, o uso do termo pirata divide os

comunicadores comunitários e militantes do movimento das radiocom. Para alguns o

termo acentua a situação de criminalização das radiocom que ainda não

conseguiram concessão, não devendo ser usado. Para outros ele encarna o espírito

de rebeldia que as radiocom levam a frente ao democratizarem as ondas do ar.

Também chamadas de rádios livres, denominação que se insurge contra a idéia de

legalidade e restrição do direito de voz representado pela ação restritiva do Estado,

a denominação rádio pirata também é usada por aqueles que encontram no termo

uma definição de sua condição a espera da legalidade.

Aqui também se expressa uma pulverização de formas de compreensão do

papel das rádios e de sua situação frente a uma provável legalização. O termo

“pirata” passa a ser usado como instrumento para uma distinção interna ao

movimento das radiocom, referindo uma diferença entre “rádios não comunitárias” e

“verdadeiramente comunitárias”.

3.5.4 As reuniões do Conselho de Comunicação.

Um “e-mail” solitário na lista traz impressões pessoais sobre o

funcionamento do Conselho Nacional de Comunicação Social. Entre elas a

observação sobre a lentidão nos encaminhamento e na própria estrutura do

conselho; a forma de tratamento e de percepção das rádios comunitárias neste

órgão é um capítulo interessante da relação entre o movimento de radiocom e os

órgãos de estado e entidades de classe como ABERT (Associação Brasileira de

Emissoras de Rádio e Televisão). A autora da mensagem se espanta com a

negação do fechamento de radiocom pela Policia Federal. As rádios fechadas não

seriam comunitárias, seriam piratas e ilegais. Este tratamento é considerado pela

observadora como o “fato mais inacreditável da reunião”

Ainda que “inacreditável” a estratégia de deslegitimação das emissoras

lacradas por interesse destes grupos, não exclui a ausência de unanimidade dentro

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do próprio movimento de radiocom quanto a proliferação de emissoras de baixa

potência que não são usadas para fins comunitários, estas também não seriam

consideradas radiocom.

Daí, talvez, a delicada posição de admitir o uso de termos utilizados

anteriormente apenas por grupos contrários as radiocom por parte de integrantes do

próprio movimento, como “rádios piratas” e “rádios do mal”. A necessidade de

denunciar a presença de oportunistas que colocam rádios no ar, sob a definição de

radiocom, exige uma nova forma de conceber o movimento e estas ações. A auto-

imagem parece incorporar as funções de definição e distinção no jogo de construção

da legitimidade, de acordo com a lei e para além dela.

Na batalha por legitimação a auto-imagem, que passa por um constante

processo de definição, é arma importante nas disputas de poder: seja internamente,

seja na relação do Estado com as Rádios, seja na relação das entidades de classe

com estas. A lista analisada permite visualizar esse processo. As formas de

compreender e definir as emissoras estão na base da construção dessa imagem e

ainda não são homogêneas.

Considerando os materiais analisados é possível identificar quatro grupos a

partir dos quais são elaborados discursos sobre as rádios comunitárias: os órgãos

de Estado e “empresários de comunicação” (onde se mesclam interesses de

grandes grupos de comunicação, políticos influentes e órgãos como Anatel e

Ministério das Comunicações); o movimento de rádios comunitárias e militantes a ela

vinculados; e as rádios que historicamente não participaram do movimento das

radiocom. As imagens produzidas por eles compõem um mosaico de interpretações

sobre o que seja a radiofonia comunitária que, de acordo com os interesses de cada

um, podem construir uma imagem positiva ou negativa das emissoras.

Na elaboração dos discursos, cada um deles produz uma interpretação

sobre as radiocom com base na presença ou ausência de certos elementos, a partir

dos quais se afirma o que elas são e o que elas não são. Entre os órgãos de Estado

prevalece a oposição legal/ilegal. Já entre os grupos empresariais de comunicação e

seus órgãos de classe como ABERT e ACERT, a oposição legal/ilegal é acrescida

de outras qualificações relacionadas a idéia de pirataria.

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Dentro do movimento de rádios comunitárias a oposição legal/ilegal é

relativizada. Ela é subordinada a outra oposição as “picaretárias” versus

“verdadeiramente comunitárias”. A definição “verdadeiramente comunitárias” é

atribuída a quem participa e compõe o movimento de rádios comunitárias (até um

certo momento coeso, depois esfacelado e em processo de recomposição, aqui no

Ceará e em nível nacional).

A proclamação de certos princípios, que funcionam como utopias e

idealizam um lugar social bem como a prática de uma radiocom. Essa idealização

diz respeito a aspectos que vão desde a prática política, compromisso com certos

temas e posições, até a idealização da participação da comunidade ou a

composição da programação, onde programas educativos, o bom gosto e respeito

devem imperar.

Entre as rádios não vinculadas ao movimento de radiocom (ou que dele se

afastaram), a autoproclamação como radiocom não tem o mesmo sentido que tem

para as rádios vinculadas ao movimento. Ela não se afirma a partir de todos aqueles

princípios. É principalmente a pratica e a relação com a comunidade que marcam o

discurso.

O controle do espaço e da posição de cada um deles no quadro das

comunicações se efetiva através da capacidade de construir um discurso e uma

imagem sobre si e sobre o outro. Nessa disputa pelo reconhecimento, legitimação e

respeitabilidade, parte das armas é discursiva.

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CAPÍTULO 4

RÁDIOS COMUNITÁRIAS: EM BUSCA DO SIGNIFICADO

O objetivo deste capítulo é compreender, a partir do discurso de algumas

emissoras, os sentidos presentes na construção da significação “radio comunitária”.

E, a partir daí, entender que elementos participam da construção da auto-imagem

dessas emissoras.

Foram selecionadas para a análise três emissoras da capital cearense.

Todas elas se auto-intitulam emissoras comunitárias, embora tenham trajetórias e

formas de operação diferenciadas. Os critérios para a seleção das emissoras foram

a acessibilidade e a diversidade do tipo de experiência, representada por variáveis

como tempo de existência ou sistema de transmissão, se cabo ou freqüência

modulada.

Uma das rádios, a “Cabo Comunidade”, funciona pelo sistema de caixas de

som e participa de modo particular do debate sobre as radiocom, já que não ocupa a

freqüência radiofônica, não sendo por isso considerada ilegal. Outra emissora

escolhida foi a “Círculo FM”. Hoje ela funciona pelo sistema de freqüência modulada,

mas já teve um passado como rádio de caixinha.

A terceira emissora, a “Rádio Comunitária Antônio Bezerra”, é a mais jovem

entre as emissoras pesquisadas; já surge depois da promulgação da Lei 9.612 e

incorpora de modo muito evidente o tema da legalidade/legitimidade de uma

emissora comunitária.

Durante a pesquisa visitei ainda a Rádio Interativa FM, uma das oito

emissoras outorgadas em Fortaleza. A Rádio funciona no bairro do Novo Mondubim

e mesmo depois da concessão não tinha programação. No estúdio simples, mas

bem equipado, um computador mantinha a freqüência ocupada. O grupo a frente da

emissora era um grupo religioso, inclusive com ligações com a “TV Comunitária”,

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canal disponível para assinantes da tv a cabo na cidade e que também leva ao uma

programação de cunho religioso118.

Sofrendo com a interferência de outra emissora, a Rádio Interativa já usava

o argumento repressivo a seu favor, opondo as rádios oficiais, que como ela haviam

conseguido a concessão, às clandestinas e piratas. O argumento era o de que essas

emissoras deveriam ser contidas, lacradas pela Polícia Federal e Anatel.

Além dessas emissoras, trabalho ainda com a Rádio Favela FM, emissora

situada em Belo Horizonte, Minas Gerais. Durante o ano de 2003 visitei a emissora e

realizei uma entrevista com um seus diretores.119

Embora hoje funcione com licença de emissora educativa, essa rádio passou

grande parte de sua história como emissora clandestina aos olhos do Estado e se

converteu, ao longo de sua trajetória, em uma referência para as rádios comunitárias

em todo o Brasil. Em 2001 foi tema do filme “Uma onda no Ar”, do cineasta Helvécio

Ratton, chamando a atenção para a questão das rádiocom e a democratização das

comunicações. O filme narra a trajetória da emissora desde as primeiras

transmissões no horário da “Voz do Brasil”, até o reconhecimento internacional, bem

como toda a violência e perseguição sofrida por seus membros em função da

manutenção da emissora no ar.

Hoje, reconhecida e admirada, a Rádio Favela ocupa um papel importante

no cenário da comunicação comunitária, seja pelo pioneirismo, seja pelo sucesso e

qualidade da iniciativa. Uma série de premiações recebidas pela rádio transpõe,

como afirma um de seus fundadores, da página policial para o caderno de cultura a

visibilidade e a interpretação do lugar social da emissora: de marginais a agentes de

cidadania. A posição da rádio é bastante significativa, na medida em permite ver, a

partir da perspectiva da consagração, o ambiente de disputa vivido pelo espaço da

radiofonia comunitária.

118 Nesta rádio não houve autorização para que eu gravasse entrevista. 119 A visita a Rádio Favela e entrevista à Misael foram feitas em 04/09/2003, por mim e Catarina de Oliveira também pesquisadora da temática das rádios comunitárias.

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4.1 “A Rádio Favela é o que há!”

A Rádio Favela surgiu como uma iniciativa espontânea de um grupo de

jovens moradores de uma das regiões mais pobres de Belo Horizonte, o Aglomerado

da Serra. Como no cenário descrito por alguns autores como Meliani (2003) e Costa

Jr. (1999, p. 21) “onde jovens estudantes de eletrônica montavam pequenos

aparelhos para transmitir e escutar, à distância, suas músicas prediletas”, no

Aglomerado não foi diferente. A compra dos equipamentos, a montagem do

transmissor caseiro e a decisão de botar a rádio no ar no horário da “Voz do Brasil”

foram iniciativas de um grupo de amigos, vizinhos do bairro. Olhando

retrospectivamente, Misael Avelino dos Santos, um dos fundadores da Rádio, afirma

orgulhoso sobre o pioneirismo da emissora:

Aqui na minha cidade foi o lugar que lançou a primeira FM do Brasil. Então os caras lançaram a primeira, nós lançamos a segunda, ou seja, a primeira rádio pirata do Brasil nasceu aqui, que é a Rádio Favela. Então, nós tínhamos certeza que não tinha mais nenhuma, nós entramos no ar em 76, a primeira rádio entrou aqui, a FM entrou em 73. (...) Então, nós entramos em segunda, aliás entramos em terceiro, não entrou em segunda porque veio uma rádio lá do Rio de Janeiro que se chamava Jornal do Brasil, para cá, nós entramos em terceiro...

A Rádio está localizada no alto do morro, na favela do Cafezal, uma das

áreas que compõe o Aglomerado. Do terraço da rádio se enxerga grande parte de

Belo Horizonte e muito do conjunto de onze favelas que compõe o Aglomerado. O

prédio é modesto mas de alvenaria, tem três andares e um padrão construtivo

melhor que o cenário que o rodeia. A rádio funciona em um espaço amplo, e abriga

não apenas as atividades comuns a uma emissora, mas projetos sociais

desenvolvidos por ela. Três estúdios bem equipados compõem sua estrutura de

trabalho. Do lado de fora a rádio é lugar de referência, crianças podem ser vistas nas

imediações da emissora. Se a rádio é lugar de referência para o Aglomerado da

Serra não o é para toda a cidade.

Ao chegar em Belo Horizonte, depois de algumas perguntas sobre a

existência da Rádio Favela, ainda no Aeroporto e logo depois na chegada ao hotel, a

impressão que se tinha era a de a rádio não existia. As respostas foram quase

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sempre negativas, senão de estranhamento, “que? conheço não”. Encontramos120

no hotel um rapaz que sorriu orgulhoso e simpático a pergunta “você conhece a

Rádio Favela?”, respondeu: “É lá de onde moro”. Orgulhoso do bairro, da rádio e de

outra identificação que não a da subalternidade, cuja posição de trabalho no hotel

lhe conferia, ele generosamente nos ensinou a chegar lá.

Para chegar à rádio sobe-se um morro, onde fica o Aglomerado. Até uma

certa altura a área se configura como um bairro de classe média, mas conforme se

sobe o aspecto muda: casebres e infra-estrutura precária se alongam até o topo.

Depois de um certo ponto a subida é a pé. Durante o percurso uma senhora

também orgulhosa da rádio nos permite acompanhá-la. Ela vai passar pela emissora

indo pra casa e nos deixará lá. No trajeto fala de seus programas prediletos. Seu

favorito é um programa de música caipira que toca toda manhã, o “’Arapuca caipira’,

bom demais!”. Após uma breve caminhada chegamos ao portão da rádio, depois

dele, no primeiro e segundo andares, um conjunto de salas com os três estúdios

bem equipados formam a emissora.

Hoje a Rádio Favela funciona com patrocínio e possui uma concessão de

rádio educativa, que Misael prefere chamar de “Conceição, porque Conceição é uma

mulher, e mulher tem que ser respeitada (...) Concessão é coisa de palavra lá de

baixo, do asfalto, que não soa bem aqui dentro”.

Mas a vida com a “conceição” é a fase mais recente da história da emissora.

Durante os anos 1970, momento em que a rádio é criada, o Brasil ainda vivencia o

regime militar e as circunstâncias de um período de exceção que, somadas à

questão da desigualdade social e das diferentes formas de repressão (política, de

classe, étnica), marcaram profundamente a história da Rádio Favela e de seus

fundadores. Prisões, espancamentos, reforço do estigma do favelado e do marginal

se inscrevem na memória de quem viveu o momento inicial da emissora.

120 A visita e entrevista à Misael foi feita em 23/09/2003, por mim e Catarina Oliveira, também pesquisadora da temática das rádios comunitárias.

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Ao falar sobre a verossimilhança do filme “Uma onda no Ar” com a história

da rádio, Misael121, o personagem que protagoniza a película e a direção da rádio

deixa clara a violência sofrida durante o período:

Olha, nós contamos a real, o filme chega muito perto da real. A única coisa que não é real é o tratamento que a polícia dá ali no filme, que é ficção purinha, que é a visão do diretor do filme. Porque não se pode, com o dinheiro público, mostrar o que o público paga para ser feito, a covardia que é feita com o dinheiro nosso, contra nós mesmos. Então mostrou aquela coisa de carinho, de dá um tapa só na cara, entendeu? Se fosse assim a gente tinha resistido mais do que Zumbi, mais quinhentos anos a gente resistiria. Eu tenho o corpo todo marcado. Eu assinei um total de sete às oito processo por causa dessa rádio.

O sofrimento e o pioneirismo são dois dos elementos que ganham relevo na

narrativa de Misael sobre a rádio. Ele percebe a experiência da emissora sob a

perspectiva da singularidade. Em sua narrativa não há lugar para outras

experiências que repitam o êxito obtido pela Favela FM:

Olha, eu sou suspeito falar isso, porque nós somos reconhecido nacionalmente e mundialmente, eu particularmente não conheço ninguém no Brasil que faça o que a gente faz, ninguém. (...) Se as pessoas tivessem noção do que é uma rádio realmente comunitária, de verdade, ninguém queria mexer. As pessoas querem mexer em rádio comunitária para ter um título de diretor, para nas próximas eleições disputar uma campanha política.

Temas como o reconhecimento legal, a relação com o movimento de

radiocom e com outras emissoras também aparecem sob a perspectiva da

singularidade da emissora. A compreensão da rádio é marcada por uma forte

oposição entre o “nós” e os “outros”, o que aparece na afirmação do pioneirismo da

experiência, na defesa de seus ideais ou na coragem de abrir novos caminhos. Além

disto, a afirmação que quem tem interesse em rádio comunitária quer ser diretor ou

quer disputar campanhas eleitorais, reforça a distância entre os interesses da Favela

FM e dos outros. Perguntado sobre o que define a emissora, Misael afirma que é a

121 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.

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“resistência e disposição que os pretos daqui têm e que os outros ainda não

tiveram”.

A dedicação ao trabalho, a resistência e a disposição de seus membros são

vistas como os elementos produtores da reversão da forma negativa como antes a

emissora era vista, transformando desconfianças e acusações em reverências.

Nessa posição a rádio favela aparece como vencedora. Às outras rádios resta

provarem também vencer. Como afirma Misael:

Aqui não tem tenente, não tem major, nem comandante, todo mundo aqui é soldado. Todo mundo aqui pega no batente, aqui os delegados ajoelhou para nós, os major, os comandantes, os padres, os pastor, uma porção de gente que jogou pedra na gente ajoelhou. É sinal que a nossa resistência é o que há. Eu resumo em duas palavras nós tivemos paciência e resistência, agora quem quiser que vença igual a gente, quem tiver disposição, com nós mesmos, nós temos disposição para o mau e para o bem, tanta faz pela frente e pela costas, eu não faço curva.

Na visão de Misael é a resistência da rádio, e sua vitória, que trazem a

concessão até a emissora em 1999, já que, como afirma “nós não lutamos para

conseguir a “conceição” comunitária nem a concessão educativa. A “conceição”, os

cara entregaram por que viram que não tinha mais jeito de não liberar a “conceição”

para nós. E depois que a “conceição” chegou eles pararam de encher o saco”. Sua

leitura da obtenção do documento também marca a interpretação da diferença entre

Favela e outras emissoras. Como explica:

Nós nunca pleiteamos conceição com ninguém, independente de partido. (...) Não teve cutuca nenhuma, nós não fizemos comida de porco com ninguém, eles entregaram porque acharam no direito de entregar, e uma rádio na minha opinião, eu Misael, acho que rádio nenhuma tem que ter concessão, quem concede uma concessão de uma rádio para ela funcionar são as pessoas do outro lado que liga o rádio (...).

O fato de não ter feito acordos para a obtenção da outorga distingue o

processo da Favela FM de outros, considerando-se que as relações políticas

desempenham papel importante na mediação dos pedidos de concessão no país.

Na visão de Misael é a história da emissora que obriga o Estado a reconhecer sua

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existência. De fato, o reconhecimento do Estado vem a reboque dos inúmeros

prêmios recebidos pela emissora.

Em sua argumentação Misael não identifica na “conceição” uma importância

particular para o funcionamento da rádio, além do alívio em relação aos

cerceamentos impostos pelo Estado a uma emissora sem outorga, experiência

vivida pela rádio durante muito tempo. Entretanto, Misael têm uma posição curiosa

em relação às outras rádios não-outorgadas, hoje na mesma posição da Favela em

um período não muito distante de seu passado:

Não precisa proibir rádio nenhuma (...) A não ser aquelas que estão dando interferência, que estão atrapalhando, então, essas aí devem ser proibidas mesmo, porque quem está fazendo a coisa direito tem o direito de fazer direito, agora quem quer atrapalhar não tem o direito, na minha opinião. Ai tem que ter um impedimento nessas rádios que estão atrapalhando, mas concessão não vale porra nenhum.

É a evidencia da saturação do “dial” que transforma a aparente falta de

significado da outorga em necessidade. Se inicialmente afirma que “não precisa

proibir rádio nenhuma”, logo em seguida, a percepção de que existem rádios que

atrapalham, faz do impedimento uma necessidade. Mesmo que represente uma

ambigüidade em relação a sua própria trajetória, a posição da Favela agora é

favorável ao controle.

A grande quantidade de emissoras existentes em Belo Horizonte e em

outras cidades brasileiras congestiona o “dial” das transmissões, interferindo na

escuta e podendo tornar impraticável a recepção de uma emissora. A saturação vai

exigir a intervenção do Estado para tornar o espectro praticável. O que se tornará

uma exigência não apenas das rádios comerciais, mas também das rádios

comunitárias.

Embora não opere com os limites impostos por uma outorga de radiocom -

o que diminui consideravelmente a potência e as possibilidades de sustentação

financeira da emissora - a posição da Rádio Favela é característica deste momento

da radiodifusão comunitária, marcada pela concorrência não apenas entre rádios

comerciais e rádios comunitárias, mas principalmente entre as próprias radiocom. Os

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mesmos argumentos antes usados apenas por associações de emissoras

comerciais, sobre a interferência causada pelas emissoras comunitárias, agora são

usados também pelas próprias radiocom.

No caso da Favela FM a obtenção da concessão foi parte de um processo

que envolveu não apenas a emissora, que segundo Misael, não batalhou por ela,

mas outros segmentos sociais. Ao explicar como se deu o processo, ele faz questão

de sublinhar o fato da rádio não interferir na freqüência de nenhuma outra emissora.

É interessante perceber que esse argumento é usado por ele, em vários momentos,

como critério importante para impedir o funcionamento de emissoras que

“atrapalham”. Como explica:

Para a conceição chegar até aqui veio uma porrada de cara, pessoas enchendo o saco, esse pessoal acadêmico lá para o lado do asfalto que sabe uma porrada de teoria, mas prática eles não sabem porra nenhuma de prática. Ai eles que mexeram com as papeladas. Eu fui sabatinado três vezes lá em Brasília pelo Ministro, e fui no Ministério das Comunicações, e tal. Mas toda vida, desde o primeiro dia que a Rádio Favela foi para o ar, eu tive a consciência que a Rádio Favela não gerava harmônico em rádio nenhuma, ou seja, a Rádio Favela não confrontava com rádio nenhuma. Então, eles arrumaram um argumento e tentaram provar por “a” mais “b” que a gente dava abatimento em outros canais de rádio, da qual não foi verdade. E não comprovado isso, eles tiveram que entregar a ‘conceição’ para a gente, entendeu?

O fato da rádio nunca ter causado interferência em nenhuma outra, revela

também que, quando do surgimento da emissora, o cenário da radiofonia alternativa

era bem diferente, quase não haviam emissoras no ar e o “dial” estava livre para ser

ocupado. Quando a rádio é criada ainda não existe esse ambiente de disputa por

espaço e reconhecimento vivido atualmente, fenômeno que passa a ser observado a

partir dos anos 1990.

A Rádio Favela é um exemplo da forma como a disputa por espaço constrói

a auto-imagem das emissoras comunitárias. Embora funcione como uma espécie de

ícone para outras rádios do país, a Favela FM tem uma visão interessante das

rádios sem outorga, chamadas por Misael de “genéricas”. A partir da imagem

metafórica da “pedra” e da “vidraça” explica como se dá a dinâmica entre “eles” e as

”outras”:

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Porque a Rádio Favela foi a primeira rádio a aparecer nas ondas de todos nós no Brasil, a primeira genérica antes do genérico surgir, ela deixou de ser pedra, porque foi ela pioneira, e as pessoas acham que hoje ela é vidraça, porque nós ganhamos um papel com autorização, porque eles acham que hoje não podemos ser mais a pedra, tem que ser a vidraça para ser quebrada. Então, hoje é motivo quase todos, a direção das rádios genéricas querer ir contra os ideais da Rádio Favela (...).

A posição de confronto estabelecida pela imagem da “pedra” e da “vidraça”

faz referência também a percepção da solidão enfrentada pela rádio ao longo de sua

trajetória, quando enfrentou sozinha os processos de repressão:

Antes, em 1979, quando os nossos [transmissores] foram preso pela primeira vez, não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 81 não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 85 não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 88 não teve ninguém para discutir a cadeia. Em 85, em 92 não teve. Em 95 não teve, em 97 não teve. De 97 para cá ai virou moda fazer, depois que a rádio saiu da página de crime do jornal, da página vermelha, passou para o jornal de cultura, ai o padre começou a fazer pirataria, o pastor da igreja começou a fazer pirataria, e por ai foi. Ai virou moda, hoje em dia ter uma rádio pirata é igual a loja de pão de queijo em Minas Gerais, qualquer esquina tem uma, mas tem umas que tem um sabor todo especial, que existe várias, mas tem uma que tem o segredo. A Rádio Favela é o que há, o mesmo propósito que os dezesseis moleques que colocaram ela no ar em 76 está de pé, não fez curva não.

Misael percebe a Rádio Favela como construtora de uma nova imagem das

rádios comunitárias. A passagem da página de crime à de cultura guarda esse

significado. No tratamento das outras emissoras, o termo pirataria aparece para

explicitar a “moda” de emissoras não-outorgadas e os agentes dessa nova mania:

entre eles, pastores de igrejas.

Ainda no que se refere à legalização, embora defenda uma posição de

controle sobre a interferência das “emissoras que atrapalham”, Misael não valoriza

em sua fala a legalização de sua própria emissora. Para ele a concessão aparece

como “encheção de saco”. Um direito muito mais associado ao controle que a

proteção da emissora. Entretanto a liberação do documento produz uma mudança

na situação de clandestinidade da Rádio, que passa a ter outra visibilidade, podendo

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ser mais facilmente localizada e ficar de portas abertas. A visibilidade e o

reconhecimento tornam a concessão também necessária, não apenas para a

relação da rádio com o Estado, mas também para a relação da rádio com as

“genéricas”:

Nossa rádio com a concessão só uma coisa mudou. Antes se você viesse igual você veio, você ia ficar no mínimo trinta dias para poder achar a rádio. Depois que todo mundo visse que você não tinha nada a ver, eles davam o canal onde que a rádio tava. Agora com a ‘conceição’ o portão fica aberto, que eles não tem mais direito, que a gente tem um papel para esfregar na cara deles e falar, ‘está aqui, tchau, um abraço’, só isso que mudou, porque a rádio já fazia todos os informes publicitários do governo estadual, a rádio fazia, o governo mandava, ela era uma rádio pirata com bloco de nota fiscal endereço e tudo. Uma rádio pirata paga conta de água e conta de luz e tem endereço próprio, certo? Se é contribuinte do governo, quem é pirata? Será que é nós ou será que é eles? Existe um estado legalizado e existe o estado paralelo, de quem que é o poder oficial hoje em dia? (...) Eu acho que as pessoas não devem pensar nesse negócio de legalização, de não sei o quê, isso é a maior babaquice do mundo, a não ser que você está tendo, eu acho que o papel só vale por uma coisa, que infelizmente no meio das rádios genéricas, eu não gosto de falar de rádio pirata, que pirata é muito pejorativo, são genéricas.

Em seu discurso a relação com as “rádios genéricas” é de muita tensão. Em

jogo nessa relação o funcionamento da emissora e a defesa de seus ideais e

propósitos. Na fala de Misael pode ser observada, a partir da apresentação dos

ideais da emissora, a construção da diferença entre a Rádio Favela e as outras

rádios. O fato de ser ela uma rádio “de preto pra preto”, de “favela pra favela”,

marcada, portanto, pela independência, produz a diferença. Como afirma:

Nossos ideais (...) era defender com unhas e dentes o povo do morro onde ele estivesse, e levantar a voz para aqueles que nunca tiveram, independente se ele tivesse na frente ou atrás dos muros. É nós mesmo, preto para preto. Então, o papo nosso continua, a gente é de favela para favela, e contra qualquer um que quer ofender. Então, os caras acham que a gente tem que ter uma linha, uma linha “light”, para ficar fazendo política partidária, defendendo partido “a”, “b” e “c”. A Rádio Favela é apartidária, nós discutimos com qualquer partido, independente da sigla e dos ideais. A gente deixa todo mundo falar, igual religião. Aqui todo mundo participa, mas infelizmente uma religião vai lá e monta a rádio, outro não pode falar, ai uma facção monta a rádio não pode falar, ‘ah! você não pode’, que a Rádio

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Favela faz uma linha diferente, todo mundo aqui fala, a única pessoa que até hoje não teve espaço aqui foi um grupo de surdo-mudo, porque na rádio não tem jeito deles fazer. As prostituta teve participação, as lésbicas, os bichas tem um programa só de viado, tem um programa e tal, sapatão tem um programa deles. (...) Mas infelizmente quem mexe com rádio comunitária, as rádios tem dono, e a Rádio Favela não tem.

A ligação com a comunidade, a favela, a possibilidade de levantar a voz por

aqueles que nunca tiveram, dando-lhes visibilidade e dignidade, e a pluralidade

aparecem como as principais marcas da Rádio Favela, o que a faz diferente de

outras rádios, as que “tem dono”, as genéricas, ligadas a grupos religiosos ou

políticos específicos, onde a ausência de pluralidade não produz independência.

Tendo construído uma trajetória distante dos movimentos de rádios

comunitárias, relativamente recentes, considerando-se a longevidade dessa

experiência, a Rádio Favela avalia de modo bastante crítico a atuação desses

movimentos, sempre opondo a sua trajetória e demandas, às demandas

apresentadas por estes movimentos. Na fala de Misael a afirmação do

reconhecimento da emissora é proporcional a identificação da falta de

reconhecimento e solidariedade destes movimentos para com a Rádio Favela:

É o seguinte. Quando a gente começou com rádio, era todo mundo moleque e a gente não tinha a dimensão formada de como que isso ia crescer, e a gente ia ser destaque. (...) E saiu para a página de cultura, ai todo mundo está fazendo rádio pirata, está fazendo associação de rádio, está fazendo sindicato de rádio, brigando por coisa boba. Nós da Rádio Favela vimos isso como interesse por um poder, para ter um tipo de dominante, era igual na época da escravidão, tinha que ter um escravo para mostrar que tinha que ter alguma coisa, que era um senhor. A mesma coisa está o movimento de rádio, os caras não admitem, que nós negros favelados é destaque no mundo inteiro, é reconhecido no mundo inteiro. Nós temos uma pessoa que chegou hoje solicitando há quatro meses atrás estágio aqui na Rádio Favela. Ela veio da Áustria (...) vem gente da Itália, já veio gente dos Estados Unidos para cá. Então, eles não admitem porque cada um quer ter o direito de mandar, e nós não manda porra nenhuma não. O ideal nosso é muito simples, e eles querem complicar a coisa, eles querem ter o poder, ninguém na Rádio Favela não manda em nada.

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Misael vê a emissora como distanciada das disputas que capitaneiam as

atenções do movimento de rádios comunitárias. Eles, da rádio favela, são vistos

como expectadores das disputas, não participam dela:

(...) E os caras quer ter [poder], você vai nesses encontros de rádio, te dá dó, deu estar desde o inicio, eu ter colocado a semente lá, regado a planta, ver ela nascer. Ai eu vou, fico olhando aquela discussão, todo mundo aqui da rádio vai, dá dó você ver aquela briga lá. Todo mundo brigando por umas migalhas, para quê?

Em sua longa trajetória a Rádio Favela consolidou-se não apenas no plano

das entidades das quais recebeu premiações, mas também e principalmente do

ponto de vista da audiência. A rádio possui índices invejáveis, com 22 pontos no

IBOPE. Como afirma Misael: “fica 78 para dezoito rádio disputar, ai você divide entre

dezoito, 22 é nosso garantido. Isso incomoda porque é negros, são favelados,

beiçudo, que a gente não tem estudo, que a gente fala tudo atrapalhado, não fala

português correto”.

O reconhecimento e a preferência da audiência exigem enormes doses de

profissionalismo na direção da rádio e criatividade para montar estratégias de

manutenção financeira e operacional. Longe da imagem idealizada onde apenas o

voluntariado desenvolve a manutenção da emissora, Misael afirma:

O voluntariado na rádio o quê que acontece. A mulher que alisa o cabelo, (...) no dia que chove ela não sai. Sabe porque? Ela vai perder a prancha dela. Aqui a rádio comunitária é a mesma coisa. No dia que está fazendo calor vou tomar uma cerveja, não vou. No dia que está chovendo eu não vou molhar meu pé, vou gripar. A Rádio Favela tem despesa, o custo dela é alto, porque ela tem equipamento de ponta, a gente usa tecnologia há cinco anos há frente que os caras usam hoje aqui hoje, a nível de Brasil. (...) A gente tem quase duzentos voluntários da rádio que todo mundo ajuda, contribui na hora que puder. Treze pessoas são fixas, fora os gastos que a gente tem com equipamento. Nós temos na rádio cerca de dez computadores ligado em rede, a gente fala com o mundo inteiro, recebe em média trezentos e-mail dia, o dia que recebe menos, mil e duzentos telefonemas dia, não é brincadeira. Nós temos oito linha de telefone, vê quanto isso gera de custo, nós temos uma conta de luz altíssima.

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A partir desse relato percebe-se que a pluralidade se institui também na

colaboração dos diversos grupos com a manutenção financeira da emissora.

Embora a rádio sobreviva dos comercias122, a “moeda cultural”, referida por Misael,

parece mediar a relação dos grupos com a rádio, ajudando a financiar não só a

emissora, mas também os projetos sociais por ela desenvolvidos. Assim:

Todas essas pessoas que vem fazer programa aqui, exemplo, a Assembléia de Deus, usa duas horas os equipamentos da Rádio Favela para passar a mensagem evangélica dela, ela contribui com cem reais mensais. O quê que isso não dá para fazer nada com cem reais, ela contribui porque os cem reais que ela dá para inteirar para comprar uma vassoura, nós temos que ter a moeda cultural da rádio. Nós temos quatro professores, que a gente paga a passagem, e dá ajuda de custo para o pessoal. Nós temos as pessoas, só locutores, que tem o compromisso de vir todos os dias e fazer aquele horário x combinado. O voluntariado na rádio ele não funciona. Exemplo. Vender espaço na rádio nós não fazemos isso, a gente sim, quer fazer um programa, beleza, qual que é o propósito, tal. Isso aqui você vai dar uma contribuição sua vai ser X, porque X, porque a gente não vai ficando fazer projetos, esperando disso daquilo, para eles devolverem para a gente, aqui o dinheiro, eles não devolvem. Então, cada um aqui é obrigado a gerar a moeda cultural que sustenta a rádio, fora as trezes pessoas que tem aqui que são remuneradas, porque se não tiver treze pessoas aqui a rádio não funciona, vai funcionar os dias que os voluntários quiserem.

A exposição da dinâmica de funcionamento da rádio revela os diferentes

vínculos da emissora com a favela, que se estabelecem não apenas a partir da

programação. Os programas sociais por ela desenvolvidos são outro mecanismo

importante dessa relação.

Quando se trata de programação, a Rádio Favela, dentro do espírito de

favela pra favela”, Mencionado por Misael, assim como outras rádios, é também

espaço de “aprendizado da palavra”123. Este entendido como exercício de

enunciação da visibilidade de pessoas que não dispõem de um lugar social que os

valorize. Duas crônicas levadas ao ar na Rádio falam exatamente da construção de

122 Como afirma Misael: Nós fazemos comercial para Prefeitura Municipal, do Governo do Estado e de vez em quando o Governo Federal, eles mandam porque a rádio tem audiência, e tem que ser com a nossa linguagem... 123Expressão usada por Catarina Oliveira em entrevista concedida a autora para expressar um dos significados sociais e culturais das radiocom.

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uma outra imagem social a partir da emissora e da respeitabilidade que a presença

da voz amplificada pode produzir. A primeira diz o seguinte124:

Falamos muito aqui na Favela do resgate social, tarefa essa que seria do poder público, contudo estes o braço se cruzam, e assistem de pé a execução do refém. Morto não gera gastos. Queria falar hoje de um grande resgate, de um favelado que tudo perdera acreditando na justiça. Ela é cega e anda a passos de tartaruga, a demora já é uma injustiça. E quando ela vem, quando vem, às vezes a morte já resolveu a questão. Tiraram meu sangue e a vontade de viver, levaram minha prole para um cárcere distante. Pedras, cachaça e poeira, cenário da fortaleza sinistra, bruxaria e êxtase. Um bar ali, outro aqui, minha vida era assim. Mas antes disso me viram gente, sóbrio e capaz. Quando tudo parecia perdido veio a onda e me trouxe até aqui. Naquele dia eu tive vontade de tomar banho, de me barbear e alimentar-me. Senti de novo o sangue correr nas veias, o coração reagir no ritmo da vida, do barraco para o mundo (...) Quando menino eu falava na latinha de extrato de elefante, o fio era um barbante. Hoje, eu posso falar para o mundo, falar que Bush é um sacana, que é o PT não mais aquele, que ninguém gosta de mim mais do que eu. Aqui eu aprendi o que é ser cidadão, ocuparam meu espaço mesmo com toda repressão, mas ocupá-lo, tomar para mim o que é de direito. Também como ícone sonhei em voar, é a onda no ar, falando nas alturas, como um doutor fala em suas palestras, limpo e barbeado, de roupa de deputado. Medo de avião não tenho mais, hoje meu único medo está no chão, aquartelado e subindo o morro à noite. Como eu queria que todos os injustiçados que como eu fossem resgatado, mas nessa nave não cabe todos, a vontade do comandante é que coubesse. Eu existo, eu posso, eu acredito, sou Favela, sou mais eu. Misa, Miramar, Rádio Favela, obrigado! Meu nome é Itamar Fernandes moro no Aglomerado da Serra, nós somos a Rádio Favela FM, 106.7, um compromisso com a cidadania (grifos meus).

A situação de invisibilidade social, de marginalidade e de desprezo

vivenciadas pelo cronista125 pode ser revertida quando a rádio o salva de sua

tragédia pessoal e social, permitindo que ele re-elabore sua identidade a partir de

aspectos positivos. Estar no rádio o iguala ao doutor e ao deputado, posições que

expressam respeito e credibilidade sociais, e constrói, para ele, o aprendizado da

cidadania através da palavra. Orgulho de ocupar um lugar social e dizer: “Eu existo,

eu posso, eu acredito, sou Favela, sou mais eu”.

124 As crônicas foram apresentadas no quadro “A crônica de Itamar”, que vai ao ar pela Rádio Favela. 125 O próprio autor das crônicas as apresentou a mim e Catarina Oliveira. Havia um enorme orgulho de sua posição de cronista e da oportunidade que Misael e a rádio haviam aberto para sua mudança de vida. Depois de problemas familiares que lhe colocaram em uma situação de dificuldade a posição de radialista o afirmava como alguém.

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Em outro texto126, em que fala do primeiro aniversário da “Crônica de

Itamar”, afirma que o rádio lhe trouxe a cura:

Há um ano atrás essa crônica ia ao ar pela primeira vez. Medo e incertezas, tudo começou assim. Pela primeira vez milhares de pessoas iriam me ouvir, graças, a um alguém que eu ouvia pelas ondas do rádio, na solidão do meu quarto negro, como nos meus dias de descrença e ódio, de dor e tristeza. Se hoje estou aqui curado do mal que me consumia, dos bares que me consumia, como fuga daquilo que eu pensava que era vida, é porque o rádio através da voz que eu ouvia sabia quem eu era, e do que eu poderia fazer (...). Mais do que isso que eu fosse capaz de falar algo que alguém quisesse ouvir, alguém bem próximo e pelo qual ainda mantenho bastante respeito disse que eu havia morrido. Este respeito aumentou ainda mais, porque estava constatada a verdade nisso. Aquele outro de fato morreu, mas que renasceu numa onda tão clara quanta a vida que hoje vivo e que Deus sempre quis para mim.(...) Enfim, obrigado a todos aqui e a todos ai, você que nos ouve e que nos dá o prazer da sua companhia, mas do que ouvintes, temos em vocês nossa referência, nosso compromisso com a cidadania. Até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através dela e só você viu e nos ouviu. Muito obrigado mais uma vez e até amanhã.

As duas crônicas apresentam a visibilidade como cura, lugar de elaboração

de uma identidade positiva. Para o autor ser capaz de falar e poder surpreender-se

com o fato de ser objeto do interesse da audiência transforma a morte social em

renascimento, já que “até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através

dela e só você viu e nos ouviu”.

De modo geral, a imagem que a Rádio Favela constrói para si, se apresenta

a partir da perspectiva de distinção. O pioneirismo e sucesso da experiência a

colocam em uma posição de estabelecimento. É a partir dela que a visão sobre as

outras emissoras se constrói, e ela é, como discuti anteriormente, marcada por muita

tensão.

4.2 A “Rádio Comunidade”: “porque comunitária, comunidade, a

mesma coisa”

A Rádio Cabo Comunidade se localiza no bairro Dias Macedo, zona sul da

cidade de Fortaleza. Como na visita a outras emissoras fui de ônibus a essa rádio. 126 A íntegra da crônica se encontra no anexo 6.

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Isto permitia conhecer o bairro e aspectos de sua vida que talvez de carro não

pudessem ser observadas. Além disto, o contato com os moradores desde o coletivo

facilitava o processo de localização das emissoras, ao mesmo tempo em que

possibilitava saber um pouco de suas relações com a rádio. Se ninguém a conhecia

restavam dúvidas sobre sua penetração junto aos moradores, se logo alguém dizia

conhecer ficava, evidente a visibilidade da rádio no bairro. No caso da Rádio

Comunidade a primeira pessoa perguntada sobre a emissora logo me informou

como chegar lá.

A Rádio funciona na sede Associação de Moradores do bairro Dias Macedo,

por trás da Escola Municipal, num dos pontos centrais do bairro. Chegando ao Dias

Macedo já se ouve sua presença e todo mundo sabe informar onde se localiza.

A rádio tem uma singularidade. Num tempo em que quase todos os serviços

de som já foram transformados em emissoras de freqüência modulada, a Cabo

Comunidade não é uma FM, pois não tem sua transmissão efetuada através do

rádio. É uma emissora que funciona através do sistema de cabo, ou de caixas de

som, que são atadas aos postes ao longo bairro. Quando a rádio iniciou suas

atividades, elas eram oito, durante a pesquisa elas já somavam mais de quarenta

caixas, “com 80% do bairro coberto”. A Emissora funciona das sete da manhã às

sete da noite, com uma parada de meio dia até as 14 horas, já que como assinala

Isaac, um de seus diretores127, “nós nos preocupamos com o descanso dos nossos

ouvintes, ai nós [re]começamos às duas horas da tarde, e vai de duas às sete”.

Num momento em que muitas rádios são canais de grupos religiosos, a

Rádio Comunidade seguiu um caminho inverso. Ela iniciou suas atividades em 1996,

como uma rádio de orientação evangélica, ligada a Assembléia de Deus. A rádio

funcionava nos fundos da igreja e se chamava “100% Jesus”, como conta Isaac:

Nós começamos lá com uma programação genuinamente evangélica, numa radiadora. Nós tínhamos dois programas: um programa dos senhores, que era aproximadamente seis horas da manhã, e outro, às seis horas da noite, que era o programa dos jovens. Os senhores era a voz da Assembléia de Deus, o dos jovens era só evangélico, no qual eu comecei com 15 anos ali. E foi interessante, porque foi uma experiência muito boa. Quando nós

127 Entrevista concedida à autora em 25/09/03.

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começamos lá, eu tive a curiosidade de visitar as rádios profissionais, e isso eu não falei no ar [nesse dia antes da entrevista ele tinha estado no ar falando da importância de uma rádio comunitária nas comemorações do dia da radiodifusão], mas eu tive a curiosidade de saber, como era que os radialistas, o pessoal da técnica trabalhava, e foi indo, nós tivemos a idéia de fazer um programa na Rádio Aero FM, que hoje realmente é FM, na época, ela era caixinha como a nossa aqui. E daí nós passamos um mês, juntou-se dez pessoas, fizemos um grupo de dez, e cada um colaborava, nós pagamos 50 reais na época, cada um deu uma quantidade em dinheiro... Com isso nós pegamos a idéia de fazer uma rádio comunitária aqui no Dias Macedo. Como os dez eram evangélicos, foi sugerido que se colocasse uma rádio genuinamente evangélica. Aí surgiu.

A mudança no perfil da emissora ocorre por fatores ligados ao próprio

esvaziamento da capacidade de gerenciamento e manutenção da rádio apenas pelo

grupo evangélico. Como explica Isaac, com a saída de algumas pessoas do grupo

inicial que funda a “100 Jesus, a rádio foi ficando só, ficou só com um operador e um

apresentador, resolvemos fechar, mas não era um fechar para terminar, fechamos,

damos apenas uma pausa na nossa programação, e com essa parada nós ficamos

devendo muito, não tínhamos como pagar a dívida”.

“Ficando só”, também os problemas financeiros se tornaram graves, como

narra Ana Lúcia128 também integrante da emissora:

Tinha poucos apoios culturais, era mais o próprio evangélico, então não tinha como sustentar a rádio, todo mundo trabalhava realmente de graça porque o dinheiro era pros equipamentos e é interessante que, lá é meio que aquele filme “Uma onda no ar”, que um sabia mexer em eletrônica e foi montando aquilo e um outro que tinha a voz legal foi falar. Foi bem legal o começo da rádio “100% Jesus”. Então parou a rádio, aí depois de um tempo eles tentaram colocar tipo pirata mesmo, pra FM, só que não deu certo, pois o aparelho queimou e aí pronto, eles desistiram, depois disso veio uma turma que não era evangélica e quis retomar, então os equipamentos da “100% Jesus” foram pra Rádio Comunidade.

Além dos problemas relativos aos apoios culturais e à manutenção

financeira da emissora, nem todo mundo no bairro recebia efusivamente uma

programação apenas evangélica. A mudança trouxe não apenas novos ouvintes e

128 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.

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patrocinadores, mas também novos comunicadores, antes afastados pela

impossibilidade de desenvolverem programas dentro de suas áreas de interesse.

Como afirma Ana Lúcia129:

A rádio (...) começou como 100% Jesus e era totalmente voltada pros evangélicos, então as pessoas passavam pelas caixas [de som] e diziam: “Pôxa! Mas direto só evangélico, só evangélico falando, a gente já escuta tanto, só músicas evangélicas”. As pessoas questionavam muito, eu também questionava, eu não conhecia as pessoas que trabalhavam lá, mas eu questionava essa coisa de ser só evangélica, então a rádio teve um problema pois não tinha mais pessoas pra ficar no rádio direto pois tinham outras atividades na igreja...Não funcionava na Associação, era nos fundos da igreja Assembléia de Deus, por isso só evangélicos.

Só depois de refundada é que a emissora passa a se chamar “Rádio

Comunidade”. A escolha do nome reforça a mudança no perfil da rádio e o

desligamento da comunidade religiosa específica para abraçar uma comunidade

maior, geográfica, o bairro. Isaac explica como se deu o processo de surgimento da

nova emissora:

Um amigo nosso resolveu patrocinar, a Associação de Moradores resolveu trazer para cá. Quando veio para cá, aí sentamos, vimos a melhor forma de trabalhar, como nós já tínhamos o programa de esporte, como já tínhamos da própria Associação dos Moradores, que era a voz da comunidade, o Sérgio Rocha, que é uma cara muito inteligente, que é secretário aqui da nossa Associação, ele montou esse nome Rádio Comunidade, que colou de uma forma tremenda, porque comunitária, comunidade, a mesma coisa.

No caso de alguns membros que chegaram a emissora nessa

recomposição, o grupo religioso foi à ponte para a rádio. A relação igrejas rádios

torna-se mais aberta com o aparecimento da Rádio Comunidade, na medida em que

a emissora se abre pra outros grupos religiosos. Para Ana Lúcia, por exemplo, o

convite para integrar a emissora veio de um colega do grupo da Igreja Católica. Seu

primeiro programa foi um programa um programa “da crisma”. Ela afirma: “Eu fiquei

nervosa mais aceitei. Fui à primeira vez, gostei muito e continuei indo. Aí eu aceitei a

129 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.

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proposta e tô até hoje. Já faz um ano que eu comecei com um programa católico, da

crisma e tô até hoje”.

Como a rádio estava em processo de recomposição, adotando uma postura

mais plural, além do programa católico ela também apresenta um programa de Rock

e uma revista cultural. Ela narra como ocorreu a mudança:

Aí começou a Comunidade, com uma diversidade de programas, aí as pessoas passaram a ouvir mais, tem esporte, tem música, acho que o programa mais ouvido é o de esporte que é à noite e por isso mesmo é um ótimo horário pras pessoas, muito embora tenha a novela os homens vão pro pezinho do poste ouvir. (...) Exatamente o mesmo convite que surgiu pra mim, sendo que pra um programa católico, diferente de um evangélico, surgiu pra outros, os organizadores da rádio resolveram chamar outras pessoas da comunidade pra participar e eu acho que o engajamento das pessoas foi bem melhor, hoje realmente tem gente da comunidade.

A introdução de programas variados trouxe a audiência ao “pezinho do

poste”. As diferenças entre uma rádio comunitária evangélica e uma rádio

comunitária mais aberta podem ser resumidas na seguinte afirmação: “hoje

realmente tem gente da comunidade”. Participação e engajamento podem acontecer

com abertura da comunidade religiosa para a comunidade geográfica. E a inclusão

dos diferentes interesses existentes no bairro no interior da emissora.

Por ser uma “emissora a cabo” a rádio não enfrenta uma situação

desconfortável em relação a Anatel e Polícia Federal. Como afirma Ana Lúcia: “No

caso da Rádio Comunidade, a gente não tem esse receio porque somos a cabo, a

gente não é, entre aspas, uma rádio pirata, que tem mais de 25Watts, a gente não

tem isso”.

O mesmo não acontece com outras rádios que funcionam sem outorga, ou

mesmo com liminares. Em função da fiscalização algumas rádios mantêm um duplo

sistema de transmissão. É o caso da rádio Aero FM, que funciona apenas parte do

tempo em freqüência modulada, o restante do tempo pelo sistema de cabo. Como

afirma Ana Lúcia, uma ouvinte desta emissora:

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Na Aero FM, que é a rádio comunitária da Aerolândia, e também é um sistema a cabo e...é meio pirata, só que eles só colocam a partir das 04:00 hs por causa da Policia Federal, mas esse é um problema que a maioria da comunidade sabe, mas eles [a comunidade] têm uma integração muito grande (...) Ele tem até um cartaz lá, tanto que ele bota no cartaz ‘AERO FM a cabo’.

Embora esteja nos planos da emissora a mudança para o sistema em FM, a

rádio ainda não conseguiu, com recursos próprios, efetuar a mudança. A emissora já

havia recebido propostas de dois deputados para financiar a compra dos

equipamentos130. As ofertas foram recusadas pelo temor de que a ajuda tivesse de

significar uma dívida a ser paga com o atrelamento da rádio a um grupo político.

Em uma emissora à cabo é a rua e não o aparelho de rádio que produz a

mediação entre o ouvinte e a rádio. O espaço público se torna de fato lugar de

recepção. Uma vez estando na rua ou mesmo em casa, não há a possibilidade de

desligar o aparelho, o que faz com que a audiência seja compulsória. Nessas

circunstâncias a relação entre a emissora e a audiência difusa de moradores e

transeuntes se torna delicada. A forma como se distribui as caixas de som pelo

bairro bem como o horário de funcionamento são parte fundamental da negociação

da presença da rádio na comunidade. Como explica Ana Lúcia:

Nós colocamos (as caixinhas) em pontos estratégicos. Aonde tem muito movimento de carro a gente colocou mais alto o som ,não me lembro mais quanto, acho que seis, tentamos fazer todas as caixinhas na mesma intensidade de som, só que algumas pessoas reclamavam que era muito perto - é no poste então fica muito perto das casas - aí pediram pra baixar, então teve que mudar, então mudamos os sons na medida em que as pessoas foram dizendo:“Tá muito alto”, “tá muito baixo”, porque no caso é só uma altura. No caso da que eu coloquei na minha casa, pois eu quero tá ouvindo os programas, na minha tem um regulador de som, eu aumento, baixo, desligo, mas nas outras não é assim, porque na hora que uma abre todas abrem ao mesmo tempo.

Perguntada sobre os possíveis conflitos decorrentes do funcionamento da

emissora, e a existência de pedidos para que a rádio funcionasse em horário

reduzido, Ana Lúcia afirma:

130 Que teria um custo orçado em dez mil reais, preço elevadíssimo para os padrões da Associação e da própria emissora.

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Pra menos [o horário de funcionamento da rádio] não, o que elas perguntam é porque não funciona mais até mais tarde? Alguma pessoa, deve ser aquelas que mais se interessam com a programação, agora pra menos realmente não, a gente tem intervalo pro almoço, de meio dia até duas da tarde não funciona, tanto pra esfriar o equipamento, como por quem quer dormir depois do almoço.

Após a mudança a Rádio inaugura um outro momento na própria vida do

bairro, e vai pouco a pouco construindo e ampliando um espaço público local. O

mesmo processo que parece ter acontecido com a Rádio Favela, ao tornar os

assuntos de uma área marginal da cidade, a favela, interessantes, visíveis,

discutíveis para um público que não teria acesso a eles por outros meios. Um

exercício que se realiza na elaboração dos programas, na cobertura de assuntos

como o fechamento de uma escola, ou na manutenção do chafariz; na cobertura do

desfile de 7 de setembro, nas estratégias de geração de notícias locais, ou ainda na

divulgação de socorro para quem dele precisa. Como afirma um dos membros sobre

a mudança da “100% Jesus” para Rádio Comunidade:

Então, (...) quando ela veio para cá, nós abrimos o leque. Aí vamos chamar de leque, porque muitas rádios chamam de plural, porque a Igreja Católica, a Igreja Assembléia de Deus, a Igreja Batista, a Igreja Universal, ai veio o programa brega, veio o programa de esporte, veio o programa de forró, veio o programa de rock. E pronto, quando nós começamos a trabalhar com isso nós percebemos que começamos a conquistar a comunidade.

A emissora tem fortes vínculos com a vida do bairro. Talvez pela

proximidade física junto aos ouvintes, que não escolhem ouvi-la simplesmente a

ouvem: na parada de ônibus, na praça, nas ruas, no colégio (durante os horários de

intervalo), em frente de casa, ou, em alguns casos, dentro de casa. Há ouvintes que

pedem a instalação de caixas de som da rádio em algum cômodo de suas casas. As

notícias sobre os acontecimentos do bairro muitas vezes chegam pessoalmente aos

estúdios da rádio. Dada a proximidade, as notícias costumam chegar:

De boca, de boca mesmo. Por exemplo, o carro bateu ali, ora meu irmão é ligeirinho, fulano diz, ‘olha fulano bateu o carro’. Ou então

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alguém liga, ‘olha está acontecendo isso aqui, aqui. Nós íamos até criar o ‘moto olympi’, seria uma moto mesmo, e quando tivesse um negócio desses nós íamos está em cima do fato. Mas aí não houve possibilidade devido as condições financeira,, mas não morre, essas idéias não morrem.

As igrejas, o comércio, a escola, o chafariz, o telefone público, os jogos de

futebol do bairro, a vida cotidiana do lugar passa a ser assunto da rádio, que amplia

e alimenta uma pauta comum de debates sobre o lugar.

Durante a pesquisa131 percebi que a auto-imagem de uma emissora

comunitária se constrói é e afirmada também pela percepção que seus membros

têm da importância da rádio para a comunidade. O termômetro disto é a recepção de

sua programação ou atividades pelos ouvintes, o que geralmente é percebido e

narrado sob a perspectiva da fundação. Certos eventos ou programas definem-se

como um momento inicial aonde os vínculos da rádio com a comunidade passam a

ser visíveis, e assim legitimados simbolicamente. Dentro do discurso legitimador que

toda rádio procura tecer, a emissora nasce como “rádio comunitária” ali, quando

pode ser identificada a esse grupo difuso chamado comunidade.

O momento que funda essa relação pode ser a percepção de audiência

significativa a um certo programa, ou o comparecimento da comunidade a um evento

produzido ou coberto pela emissora (como “clássicos” do futebol local ou a

transmissão de missas, feiras culturais e shows de rock), ou ainda, a cobertura de

um problema existente no bairro, como o fechamento de uma escola ou a resolução

do problema no chafariz, como aconteceu com a Rádio Comunidade. Os registros

desses momentos marcam definitivamente a memória da emissora, evidenciam a

importância da rádio para a comunidade e são resgatados e re-elaborados

continuamente em face da construção da idéia de legitimidade em relação a

comunidade e aos agentes externos.

A relação rádio-comunidade encontra sentido nessas narrativas. Afinal se a

existência de uma rádio comunitária se justifica pelo conjunto de sentidos que os

significantes comunidade/comunitária são capazes de evocar, os eventos narrados

preenchem de sentido positivo a idéia de uma rádio feita para e pela comunidade.

131 E já durante a pesquisa de mestrado quando pesquisei a Rádio Mandacaru.

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Outro fato interessante na Rádio Comunidade é a relação que possui com

outras emissoras, sejam elas comunitárias ou comerciais. Longe da adoção do

discurso que opõe de modo absoluto os interesses das rádios comunitárias ao das

rádios comerciais, a Rádio Comunidade elaborou uma forma de apropriação do

espaço da emissora comercial para tratar de interesses do bairro, ampliando sua

visibilidade e seu poder de pressão e intervenção. Ainda que estabeleçam

diferenças entre uma radiocom e uma rádio comercial, e entre rádios em freqüência

modulada e rádios à cabo, a oposição “nós” e “eles” não se apresenta como

indissociável.

As rádios comerciais não são identificadas pelos comunicadores como o

inimigo, representando um antagonismo inconciliável. Considerando as diferenças

entre uma radiocom e uma rádio comercial, a Rádio Comunidade transforma as

emissoras comerciais em amplificadoras de suas demandas. Em dois episódios da

vida do bairro, emissoras comerciais de rádio e tv foram chamadas pela própria

Rádio Comunidade para cobrir o problema. Possuindo uma cobertura não restrita ao

bairro e a uma região, e por uma melhor qualificação, segundo a visão da emissora,

elas aparecem como o modelo de eficiência para a resolução de problemas, por isso

mesmo necessárias a resolução de certas questões. Ao explicar como acontece a

participação da comunidade na rádio e da rádio na comunidade uma integrante da

Comunidade fala também da parceria com a rádio comercial:

Todos os programas são de gente da comunidade, cobrindo matérias sobre a comunidade. Um exemplo foi a questão da Escola Paula Francinete que ia ser retirada pra colocar uma particular e a comunidade não quiz, então chamaram a rádio, a rádio não deu muita conta do lance porque era um negócio muito grande, então a gente resolveu ligar pra outra rádio, que no caso foi a AM do POVO, então o POVO cobriu a matéria e pelo fato deles terem curso, mais tempo de rádio...eles conhecem mais pessoas que a gente. Então quando não dá pra gente nós chamamos outra rádio, fica uma união mesmo não sendo rádio comunitária.

Em outro episódio, na resolução do problema do telefone público, a

emissora comercial é novamente chamada a atuar:

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Teve o caso de um telefone público de um colégio que a gente não conseguiu resolver, passamos a manhã inteira ligando pra Telemar e nada. No dia seguinte ligamos pra AM do POVO e só aí... eles foram lá, ligaram pra Telemar e imediatamente eles consertaram o telefone. Mas pelo menos deram explicação no ar, ela falou de manhã no programa que foi porque quando o problema é com telefone público de rua, se liga pra um número, no caso de telefone público escolar já é outro número.

O mesmo papel teve a televisão no episódio do fechamento do colégio. Um

integrante da emissora narra como aconteceu:

Houve um problema, ia haver uma desativação da escola, porque era um anexo da Prefeitura de Fortaleza. (...) Como a escola tinha muitos alunos, e não pagava absolutamente nada, e a escola tinha um excelente trabalho, sabe, tanto educacional, como espiritual, tinha assim uma qualidade enorme. E nós víamos a necessidade de lutarmos, fomos convidados pela direção, participamos de uma reunião, vimos a melhor forma de divulgar, mobilizamos a comunidade. A comunidade lutou com unhas e dentes, a TV Diário tinha na época um programa que era voltado as comunidades (...) E nós transmitimos o pessoal lutando lá na escola, nós transmitimos ao vivo... (...) Então, foi muito interessante, porque os que não puderam sair, acompanharam na televisão, mas que estavam no ponto de ônibus acompanharam pela rádio. Então, foi uma conquista muito boa, o prefeito Juraci Magalhães desistiu de tirar o anexo.

Em relação à manutenção financeira a rádio depende da estrutura física

fornecida pela Associação, já que funciona na sede desta, mas tem despesas

próprias com luz e telefone, principalmente. A cobertura dos gastos é feita pelos

apoios culturais conseguidos pela emissora ou pelos integrantes.

Na história da Rádio Comunidade chama atenção a metamorfose que a

emissora enfrenta no processo de seu (re)nascimento. Com parte da equipe vinda

de uma outra emissora com perfil religioso, a articulação da Associação Comunitária

com os membros da antiga “100% Jesus” acaba significando uma enorme mudança

na percepção sobre a relação rádio e comunidade. Mais aberta, e com uma memória

sobre o período anterior, a rádio percebe que se abrindo para a comunidade o

funcionamento da emissora e sua própria relação com o bairro, se abrem, com um

“leque”, como afirma um de seus membros.

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4.3 A Rádio Círculo FM

A Rádio Círculo existe a mais de 10 anos e funciona no bairro Granja

Portugal. Teve um passado como radiadora e depois passou a operar em freqüência

modulada. Como afirma um de seus membros:

Muitas emissoras comunitárias já fecharam e a Círculo Fm continua por seu “know-how” de trabalho continua no ar com a mesma freqüência 93.5, nunca mudou, começou em caixinha, o sistema comunitário, o nosso diretor Luis Maia sempre lutou muito pra ter a Círculo Fm, então começaram com caixinha em postes e hoje já passa pros dez anos a Círculo Fm.

A emissora já foi filiada a Arcos-CEPOCA. Hoje funciona sob a proteção de

liminar e como muitas outras encaminhou processo ao Ministério das Comunicações

e aguarda o lento trâmite do processo.

A rádio funciona na casa de seu diretor, num pequeno estúdio. Uma placa

de identificação na fachada é a única comunicação fornecida sobre a presença ali de

uma emissora. A porta da casa, localizada no primeiro andar, fica sempre fechada e

durante o período em que estive lá nenhuma pessoa esteve na rádio. Todos os

contatos com os ouvintes foram telefônicos e referiam-se a solicitações musicais e

um contato mais pessoal com o comunicador.

Toda a decoração do estúdio faz referência ao universo do forró e numa

rápida conversa o comunicador informa que a emissora “só toca forró”. Sua

programação reproduz “24 horas de forró”. A afirmação é feita em tom de

legitimação da cidade, como significando a comunidade, a partir de uma proposta

musical mais consagrada.

Na fala de um comunicador da rádio Círculo FM, alguns termos indicam a

perspectiva em que é interpretada a radiofonia comunitária, entre eles, por exemplo,

“rádio comunitária profissional e o nosso cliente”.

A ligação da rádio com a comunidade não é referida ao bairro onde ela se

situa como usualmente costuma acontecer, a associação é com a cidade, com

“todos os bairros da cidade”:

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Rádio comunitária é o seguinte, (...) o intuito da rádio comunitária é trabalhar pra comunidade, como hoje o projeto da Circulo FM é indicar e acima de tudo informar o que acontece em toda capital Fortaleza, em todos os bairros da nossa cidade, então a Circulo Fm o trabalho dela é isso.

A construção da legitimidade da rádio como emissora comunitária não

aparece pela estreita vinculação da emissora a vida do bairro, mas pela veiculação

de campanhas de utilidade pública, que são realizadas “gratuitamente pela rádio”:

Nós temos já há muitos anos uma parceria com o EMOCE [Emocentro do Ceará], toda campanha do EMOCE eles enviam pra Círculo Fm e quando chega aqui a gente se encarrega de conseguir conquistar inúmeras pessoas pra que possa ser doador de sangue; outra campanha também foi essa que passou agora no natal da LBV [Legião da Boa Vontade], que arrecada alimentos não perecíveis para 200 famílias, a LBV teve vários artistas que participaram dessa campanha e a Círculo Fm também se engajou na campanha da LBV; então tudo que traz benefícios para a comunidade à rádio comunitária entra, ela entra sem cobrar absolutamente nada e, a outra eu citei agora no início que é informar e acima de tudo deixar a comunidade informada do que acontece em toda capital, em todos os bairros para que a gente possa fazer um trabalho bem melhor, então rádio comunitária não cobra por trabalho prestado à comunidade e fazemos o nosso trabalho aqui porque amamos o rádio e trabalhamos voluntariamente sem cobrar absolutamente nada.

Em sua fala a gratuidade e a utilidade pública são suficientes para marcar o

lugar “comunitário da emissora”.

Como afirma um ex-diretor da Arcos-CEPOCA sobre a construção da

legitimidade no campo das rádios,

Você quer ver um radialista brilhar os olhos é você pegar um Cd de “spots”, de campanhas educativas e dar pra ele. São loucos por material radiofônico, desesperados. Se tiver qualquer besterol, qualquer campanha de alimentos, campanha de saúde pública, eles querem para poder encher a rádio, para poder dizer que ela é bem comunitária. E se você vai realizar uma oficina com cursos, eles querem ir porque além deles se encontrarem com outras rádios, discutirem idéias, mostrar o que eles estão fazendo, porque eles adoram se mostrar. Então, eles acabam trocando figurinhas, e isso

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não deixa de ser positivo. Às vezes eles dizem que são os mais comunitários e às vezes não é. Na rádio são ‘cabra’ bem ditador.

De fato a existência dessas campanhas é sempre mencionada como dado

de legitimação das emissoras, como uma variável de aferição do grau de veracidade

de uma emissora comunitária.

Na Rádio Círculo Fm a idéia de comunidade aparece como comunidade de

interesse cultural, cuja vinculação se dá pela predileção a um segmento musical, o

forró, adotado pela rádio como o segmento a ser trabalho.

Embora se afirme que a rádio funciona a partir do voluntariado, apresentado

como uma marca deste tipo de emissora, o seu comunicador esclarece que ela é um

lugar para treino, e uma vitrine de exposição, um lugar de oportunidades que se

situa dentro da comunidade de interesses.

O bom disso tudo é que nós não somos assalariados, não temos salários, trabalhamos voluntariamente, sem ganhar nada. Aqui é mais pra ganhar experiência para uma rádio maior e, a rádio comunitária hoje é uma idéia bem legal, se toda capital, se toda cidade pudesse ter uma rádio comunitária era muito legal pra todo mundo até mesmo pelo período de informação, pelo período de chegar e trabalhar, fazer aquele trabalho pra comunidade, rádio comunitária é bem legal (grifos meus).

Muitos dos comunicadores das rádios comunitárias se encontram em

situação de desemprego ou subemprego e tem na rádio, além de um lugar de

exercício da palavra, como discutido no caso da Favela FM, uma chance de

construir oportunidades de trabalho através da visibilidade produzida pelo microfone

comunitário. Muitos falam em sair da situação de desemprego com a possibilidade

de contratação para uma rádio de maior porte, onde possam ser remunerados pelas

tarefas que realizam132. A precariedade da atividade de muitos comunicadores

ligados as radiocom pode colocar obstáculos a sua sobrevivência. O vínculo moral 132 Durante minha visita a uma outra emissora, o comunicador, no final de nossa conversa, num tom mais intimista e angustiado, me perguntou o que achava de sua voz e se eu acreditava que ele tinha chances em uma emissora maior, entendida como uma emissora comercial. Depois da pergunta me confidenciou que gostava de trabalhar em uma rádio comunitária, mas que não ganhava pelo trabalho e com o longo período de desemprego que vivia, sonha em ser contratado por uma emissora comercial.

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sugerido pela relação comunitária, de compromisso com a continuidade do projeto

comum, pode ser fragilizado.

O fato da legislação de radiodifusão comunitária ter resumido as chances de

autofinanciamento das emissoras aos apoios culturais133, medida que esvazia o

interesse de vinculação de publicidade dos pequenos anunciantes à uma radiocom,

as coloca em uma situação de penúria. Além do financiamento mínimo das contas

das rádios com despesas como água, luz e telefone, bem como com a compra e

manutenção de equipamentos e eventualmente aluguel ficarem comprometidas, a

própria sobrevivência dos comunicadores tem de passar por outros espaços que não

a emissora.

4.4 103,5 A Rádio Comunitária Antônio Bezerra

A 103,5 Rádio Comunitária Antônio Bezerra funciona desde 1999 no bairro

de mesmo nome. Diferentemente das outras emissoras já apresentadas, ela surge

depois da promulgação da Lei 9.612. Esse contexto tem conseqüências para a

percepção de sua posição no cenário da radiodifusão comunitária.

As idéias de legalidade e o compromisso com os princípios legais são muito

fortes no discurso da emissora que, entretanto, funciona sem outorga. Durante uma

visita à rádio, logo após minha saída, a emissora teve seus equipamentos

apreendidos pela Anatel, sendo seu diretor preso pela Polícia Federal e solto sob o

pagamento de fiança.

No dia seguinte a rádio efetivamente já não existia mais. O vazio deixado

pelos equipamentos era visto pelos que fazem a emissora não como uma perda,

mas como uma possibilidade, “um mal que vem para o bem”, já que colocaria a

mobilização pela legalização da emissora em outro patamar.

Nos estúdios a movimentação era intensa. Um dos membros da equipe da

rádio recolhia os equipamentos que sobraram da operação da Anatel e falava da

necessidade de conversar com “o deputado” para resolver de uma vez a situação.

Outro comunicador, que passou por lá “para ver como andavam as coisas”, dizia que

133 Modelo que se aproxima do mecenato e não da publicidade.

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não havia sido apenas aquela rádio que havia sido fechada. Segundo ele, teria

ocorrido uma reunião entre Anatel, ACERT e Polícia Federal que havia deflagrado a

operação de lacre de radiocom134. Para ele, elas não gostam de rádios comunitárias

e o problema é que as radiocom são muito desunidas.

O fechamento da emissora e a apreensão dos equipamentos são

reveladores da relação de tensão das radiocom com o Estado e da forma como hoje

se constrói a obtenção de outorga de uma rádio comunitária. Como afirma o diretor

da emissora135 sobre sua prisão: “está no meu depoimento lá que eu disse que nós

sabemos que essas concessões só saiam através de influência política, e é verdade

entendeu? Só são oito rádios comunitárias em Fortaleza autorizadas, você pode ver

que todas têm participação política”.

A lentidão na análise dos pedidos de concessão pelo Ministério das

Comunicações, que discuti no segundo capítulo, onde, segundo seu diretor, o

processo “fica tramitando, aquele tramitando andando parado”, além de produzir

descrença na ação e eficiência dos órgãos de Estado reforça procedimentos que

marcaram historicamente o processo de concessão de canais de comunicação no

país.

O conflito existente em torno da comunicação comunitária deriva para a

descrença no direito, e reforça a crença da mediação política, entendida como

apadrinhamento, para a produção do mesmo. Nesse processo paralelo são exigidos

a criação de um padrinho político e o deslocamento da arena de pressão para

Brasília, num jogo de barganha junto a parlamentares que tenham algum peso para

intervir em favor da rádio. Como explica o diretor da emissora: “eu vou procurar um

deputado federal, porque você sabe que com um deputado federal fica tudo mais

fácil, então vou buscar um deputado federal cearense para a gente poder legalizar

essa rádio”. Ainda sobre o processo de apadrinhamento ele afirma:

Padrinho [precisa] com certeza. E se for ao lado do governo Lula é mais fácil ainda. Nós vamos buscar também um canal desses. (...) Eu preciso ir a Brasília, dar plantão lá e se for possível fazer greve de fome para ver se consigo falar com o Ministro das Comunicações

134 De fato, o diretor da rádio, um jovem estudante de ciências sociais, revelou que encontrou com outros responsáveis por radiocom na Polícia Federal. 135 Entrevista concedida à autora em 26/01/05.

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para mostrar para ele que não é falta de iniciativa nossa, é morosidade deles do Ministério, porque desde 2002, a entrada foi dada em 1999, em 2002 eles fizeram uma última análise dos documentos e daí em diante está tudo parado. Nós sabemos que são milhares de pedidos de rádio comunitária em todo o Brasil. Mas eu tive até a iniciativa de mandar o documento voluntariamente para ver se eles se mexiam. “Realmente essa entidade aqui está interessada em ser legalizada. Vamos ver aqui, analisar, vamos dar os próximos passos para eles serem autorizados...”. mas não, voltou foi à documentação.Quando eu vi o meu envelope voltando eu fiquei muito triste porque a gente faz todo esforço. Peguei apoios da associação do bairro, apoios individuais de comerciantes, de uma pessoa influente do bairro, um radialista, o padre, fiz abaixo-assinado, toda a comunidade envolvida apoiando, querendo a rádio, e o Ministério não toma a iniciativa.

O ingresso do processo em 1999, sete anos atrás, e a morosidade do

Ministério contrastam com a celeridade da própria emissora, e o investimento feito

para cumprir as exigências legais do processo de outorga. Sem a obtenção da

resposta a saída do apadrinhamento político aparece como mecanismo mais

adequado para a legalização da emissora.

A história da Rádio se inicia já em freqüência modulada. O convite para a

participação em um programa de debates em outra emissora desperta o interesse

pela montagem da rádio:

Eu despertei para a rádio porque eu fui convidado por essa rádio [QC FM] para participar de um programa através de um professor, o professor Cosme, ele disse depois do debate “(...) porque a gente não monta uma rádio no Antônio Bezerra, você que é envolvido na política e tudo?”, eu disse: professor, sabe que é interessante, eu gostei mesmo de ter participado do debate nessa rádio aqui do Quintino Cunha, e ele disse “por que a gente não abre uma aqui no Antônio Bezerra não é ?(...)”. Eu disse: “vamos buscar os caminhos”. O primeiro passo foi ter uma entidade, aí fundamos a associação de jovens do Antônio Bezerra, compramos o equipamento da QC, o meu avô ajudou.

Se o envolvimento com a política aparece como o primeiro momento de

interesse por uma emissora comunitária, a busca “dos caminhos”, ou seja, a criação

efetiva da rádio exigiu criação de uma entidade que desse suporte legal à rádio.

Assim foi criada a Associação de Jovens do Antônio Bezerra. Atualmente, além da

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Rádio, a Associação edita o “Jornal Antônio Bezerra”, que funciona como veículo de

divulgação das atividades do bairro, entre elas a própria emissora. A compra dos

equipamentos é viabilizada com o auxilio financeiro do avô de seu diretor, que

naquela época era vereador de Fortaleza136, e com promoções para a arrecadação

de recursos. A emissora é colocada no ar simultaneamente ao ingresso do pedido

de outorga. Livres para a escolha da freqüência, inicialmente a emissora ocupa a

freqüência 103,1:

Na verdade a 103,5 já foi 103,1 por quê? Porque quem define a freqüência somos nós já que nós não estamos autorizados pelo Ministério, então nós temos um técnico para isso e ele decide a freqüência. Em 1999 nós fundamos a associação de jovens do Antônio Bezerra e na época eu fui eleito presidente com o objetivo de constituir uma associação para as pessoas participarem e o nosso primeiro projeto era a rádio comunitária, daí fundamos associação, fizemos promoções, o meu avô inclusive deu uma boa ajuda, o meu avô era vereador na época e o restante nós fizemos bingo, fizemos eventos para pode arrecadar o dinheiro e comprar, aí nós compramos os equipamentos de uma rádio que era lá no Quintino Cunha, a QC FM.

O próprio processo de aquisição dos equipamentos diz muito sobre a

dinâmica de nascimento e morte das radiocom. A oferta de compra dos

equipamentos da QC FM, feita para a montagem da 103,5, foi prontamente aceita,

considerando a falta de recursos e as dificuldades de organização daquela

emissora:

Eu perguntei: Elder você não interesse em, por acaso você nunca pensou em vender os seus equipamentos? Ele disse “rapaz eu tô é querendo vender porque eu estou com uma conta aqui de 1500,00 reais e o negócio aqui está meio desorganizado, estou com outro trabalho e os meninos aqui não estão tomando conta direito da rádio, tô querendo é botar para frente”. Aí foi quando adquirimos, fechamos o negócio, na época fechamos o negócio em 3000,00 reais, e compramos os equipamentos.

136 O próprio diretor foi candidato a vereador nas últimas eleições (2004) pelo Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB.

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Depois da compra dos equipamentos a Rádio inicia suas atividades, no

clube da família de seu diretor. A transmissão dos jogos do bairro é a primeira

atividade a aproximar a rádio do bairro.

Começamos aqui nesse local de forma bem caseira mesmo, a torre era um ferro de cinco metros, já tinha esses equipamentos aqui, não tinha computador na época era com um aparelho de cd,, Nós temos um clube aqui no bairro chamado Grab que foi fundado pelo meu avô, pelos irmãos dele, que tem uma família muito grande, ele é aqui nessa mesma rua. Nós fizemos promoções também e nós construímos lá o estúdio da rádio com o nosso próprio dinheiro, com promoções, com o apoio de comerciantes nós compramos a nossa própria torre por R$ 1.200,00, uma torre de 30 metros, e daí começamos a fazer a transmissão de jogos.

Atualmente a rádio funciona na casa da mãe de seu diretor137 e divide lugar

com o serviço de um caixa do Banco Postal. Uma placa pequena na fachada da

casa indica a existência da emissora. Em um estúdio simples e pequeno, mas

confortável, uma pequena ilha com transmissor, computador, aparelhos de CD,

microfone e telefone compõem a rádio. Quando da apreensão dos equipamentos

apenas o aparelho telefônico, o microfone e o monitor do computador ficaram na

emissora.

Como outras emissoras, a Rádio Comunitária do Antônio Bezerra tem na

resposta do público às atividades realizadas o marco de sua existência como

radiocom. E é a partir deste marco que a construção do discurso que a liga a

comunidade pode se instituir. A participação das pessoas nos eventos parece ser a

prova inconteste de que a rádio é bem recebida pela comunidade, mais de que ela é

querida. Em sua leitura, o diretor da emissora, a construção de um espaço público

local, que produz o “envolvimento com a comunidade”, a possibilidade de ouvir-se na

rádio:

Em 1999 já chegando 2000, aí veio à idéia de transmitir os jogos do campeonato de futebol aqui, porque o campo é vizinho, aí nós trouxemos uma equipe esportiva e aí fizemos uma ligação dos cabos pelos postes mesmo até o estádio, aí fizemos a transmissão dos jogos e fui até eu o comentarista esse dia. A gente começou todo um envolvimento com a comunidade, o pessoal começou a gostar da rádio porque você do bairro ouvir o seu nome na rádio, o nome do

137 Um jovem estudante de ciências sociais, cuja família tem tradição com a vida política no bairro.

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seu filho que está jogando futebol, isso passa a cativar, daí eu vi a importância da rádio. Por mais que tenha a televisão, mas tendo uma rádio alternativa onde elas possam ter voz e vez, co certeza elas vão apoiar a nossa rádio e vão ser participantes ativos da nossa programação.

Outras atividades que não apenas a cobertura dos jogos de futebol do bairro

provam a ligação rádio/comunidade. Um evento em especial, um show de rock, mais

ligado ao público jovem, é lembrado como evidência da importância da rádio como

canal comunitário. Os eventos e a participação da população afirmam o apoio da

comunidade a emissora. Como afirma o diretor da emissora:

Tudo que a gente promovia a comunidade apoiava. Fizemos a campanha de arrecadação de alimentos e a comunidade foi, fizemos um tributo a Legião Urbana e veio jovem de todo lugar de Fortaleza, fizemos dois tributos a Legião Urbana, o que nós fizemos? A rádio passou um mês divulgando o tributo, os primeiro participantes do evento ganhavam uma fitinha e uma camisa da Legião Urbana e ainda ia concorrer a cd e tudo. Gente que gostava da Legião e viu que a rádio era organizada e começou a dar brinde para a gente e tudo; veio gente do colégio que eu estudava, do Evolutivo do centro, o professor viu o cartaz, ou seja, é através da rádio... É interessante quando a rádio promove evento. A rádio, só o estúdio, não é muito interessante, é interessante quando ela promove eventos, nem que seja um jantar ou uma festa dançante.

As promoções são vistas como estratégias de atração e sedução de novos

ouvintes, e também como um mecanismo para tornar a rádio mais interativa. As

pessoas que comparecem aos eventos no bairro são importantes porque, segundo o

diretor da emissora: “serão potenciais ouvintes. A gente está todo tempo dizendo

ouça a 103,5, esse evento tem promoção da 103,5. A pessoa pensa ‘uma rádio no

meu bairro e eu não sabia’, daí ela sintoniza e diz ‘a programação é boa’”.

De outro lado, a programação é considerada também um fator de construção

de laços com a localidade. A transmissão da missa, por exemplo, é lembrada como

uma das atividades que trouxe o reconhecimento à emissora. A programação da

rádio é considerada eclética e, segundo seu diretor, isto acontece em função dos

interesses daqueles que fazem a rádio, possuidores de interesses musicais e

culturais variados, mas também como uma exigência legal:

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Começou a aparecer gente aí de todo canto dizendo eu faço programa de reggae, eu faço programa de forró, eu faço programa de rock, eu faço programa de pagode, aí eu fui dando oportunidade a todo mundo porque a lei manda o quê? Manda ter uma programação bem eclética, então eu peguei o rock, peguei o pagode, peguei o programa da igreja católica, peguei o evangélico e fiz, montei a programação junto com os locutores, e aí nós fomos encaixando a programação, daqui a pouco nós tínhamos o programa da igreja católica todo diariamente com uma audiência muito grande, aí nós pensamos “nós vamos é para a missa”, daí eu peguei o meu carro e botei um som e ia para a missa, para a quadra, e aí chamava o pessoal do ECC [Encontro de Casais com Cristo] e do EJC [Encontro de Jovens com Cristo] que é o encontro de jovens, do grupo de casais, o próprio pároco para dar entrevista e para falar sobre a missa, e aí tinha as festas de final de ano, as quermesses, tinha as festas da igreja de final de ano, e aí nós tivemos todo um envolvimento, aí daqui a pouco nós estávamos envolvidos com o futebol do bairro, com a igreja e todos esses segmentos que atraem multidões. Aí a nossa rádio foi adquirindo credibilidade, audiência, e daí se tornou uma paixão, porque eu gosto dessa coisa de estar envolvido na comunidade. E eu sabendo que a pessoa ia para a rádio e poderia encontrar um documento, buscar uma ajuda de alguém que estivesse ligada à causa dela.

Programas consagrados em rádios comerciais tornam-se parte da

programação da emissora, que é a seguinte:

Seg a sexta-feira 06h Som da Terra 07h Forrozão do Glaydson Silva 09h Comando 103 17h Recordações com o Rei 19h Sombras do Passado Sábado 06hRaiz de David 08h Forrozando 10h Sertanejo 12h Bregão do Marcos Sam 14h Revivendo a Jovem Guarda 16h Raggae Life 16h Consciência Ecológica 20h Dance Mania Domingo 07hTempo de Restituição (programa da Igreja do Evangelho Quadrangular) 08h Despertando para Cristo 10h Bregão do Marcos Sam

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12h Funk 40º 14h Amado sempre Amado 16h Sertanejo 18h Sport Music

Embora programas consagrados nas rádios comerciais tenham espaço na

emissora, a programação, assim como a forma de organização da emissora e seu

modelo de manutenção financeira são apresentados a partir da oposição rádio

comunitária versus rádio comercial. Como explica seu diretor:

A nossa organização aqui é a seguinte, eu faço uma reunião sempre no começo de cada mês com todos os locutores, aí eu sempre digo que a nossa família é muito grande porque são 18 locutores, coisa que as rádios comerciais no máximo botam seis locutores com quatro horas para cada e ponto final. Pagam o salário e pronto, porque eles são profissionais e logicamente a gente respeita. Só que a rádio comunitária é diferente, primeiro porque eles não têm salário, eles mesmos vão buscar o próprio ganho deles, como? Eles vão buscar os apoios culturais, tem um percentual deles no caso eu faço de até 50% para poder manter a rádio, porque nós temos conta de telefone, conta de luz e tudo mais.

“50% é dele e 50% para a manutenção da rádio?”

É. Eu presto contas com eles, digo: comprei um hd, paguei conta da luz, do telefone, a da luz principalmente dá alta porque nós temos ar condicionado (...). Então a nossa equipe é muito grande, são 18 locutores, aí eu tenho o locutor do brega, do forró, do programa consciência ecológica para conscientizar a pessoa a preservar o meio ambiente.

A ausência de uma relação de assalariamento, que profissionalizaria a

equipe e tiraria o caráter informal da rádio, bem como a grande quantidade de

locutores, também são apresentadas como marcas da diferença entre a 103,5 e as

emissoras comerciais. A quantidade de locutores aparece como sinônimo da

pluralidade e da diversidade.

A rádio sobrevive dos apoios culturais, que tem preços diferenciados, de

acordo com a esperada capacidade de pagamento do anunciante. As diferenças de

preço também são estratégias para envolver os comerciantes do bairro e garantir a

sobrevivência da emissora. Como afirma seu diretor:

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Os apoios culturais para os pequenos e médios comerciantes, o da bodega, o da mercearia, o do mercadinho com valores diferenciados para poder atender a demanda deles e porque eles vão vender dentro dessa região aqui, eu tenho certeza que o pequeno comerciante não vai ter interesse em divulgar em uma rádio comercial, enquanto que a rádio dele aqui próximo vai atender o público dele.

“A receptividade deles também sempre foi muito boa?”

Muito boa, está a tabela aí com os nossos apoiadores, aonde nós chegamos a ter mais de trinta apoiadores aqui.

O discurso sobre a relação entre comunidade e rádio se apresenta como

arma importante de legitimação frente ao discurso legalista produzido pelo Estado

(Anatel e Polícia Federal). A ruptura do lacre colocado nos equipamentos da rádio,

por exemplo, é defendida em termos do envolvimento e da importância da rádio para

a comunidade:

A nossa rádio tem uma importância muito grande dentro da comunidade. Quando eu disse ao delegado... ele disse assim: “(...) você fez pouco caso da Anatel, porque eles estiveram lá num primeiro momento e lacraram o transmissor e você deslacrou”, eu disse: doutor eu deslacrei não foi para fazer pouco caso, nem desafiar a Anatel, e nem desafiar nenhum órgão de competência dessa situação não, foi porque nós já temos todo um envolvimento com a comunidade.

O enredamento da rádio na vida comunitária se prova, também, pela

realização de campanhas em parceria com órgãos que “emprestam” sua

credibilidade à emissora. Além disto, o fato da rádio merecer o crédito dessas

instituições na divulgação de suas atividades demonstra que a emissora é

considerada séria e respeitável. Aqui é possível perceber o enorme significado

atribuído à presença das campanhas de utilidade pública na programação das

radiocom. O assíduo comparecimento desse tipo de campanha parece ser

associado ao sentido “comunitário” de uma radiocom, ao beneficio público que ela é

capaz de garantir. No caso da 103,5 as campanhas são lembradas como dado que

demonstra a importância da rádio para a os moradores do bairro, para a

comunidade, bem como pela realização de eventos culturais:

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Nós fizemos campanha para o Iprede [Instituto de Prevenção à Desnutrição e Excepcionalidade], nós fizemos campanha para o Albert Sabin [hospital infantil] , nós fizemos alguns eventos culturais, você acredita que nós fizemos um tributo a Legião Urbana dentro da quadra paroquial, a nossa credibilidade era tão grande dentro da comunidade, eu não lembro o ano, mas o padre aceitou que nós fizéssemos um nós fizemos tributo a Legião Urbana, rock, críticas, letras do Renato Russo que falam sobre sexo, sobre amor, sobre o sistema, e nós fizemos dentro da quadra paroquial que foi uma polêmica, alguns casais do ECC contestaram, “Padre, o sr está ficando louco de deixar esse pessoal vir para dentro da quadra? Esse pessoal que vem com roupas pretas...”, ele disse “Não, tem a participação do R.[o informante] com a rádio dele, a entidade dele, eu sei que é uma coisa séria, e o espaço está aberto”.

Mesmo ações consideradas pelo diretor da rádio como assistenciais são

lembradas como prova da importância social da emissora:

Nós já fizemos campanha para ajudar a favela do viaduto quando estava se constituindo aqui próximo ao terminal de Antônio Bezerra, arrecadando os alimentos, é claro que isso é um assistencialismo, mas enquanto entidade já que nós não somos órgão do governo de execução, nós somos uma ONG, uma organização não-governamental, nós podemos amenizar o sofrimento das pessoas demonstrando solidariedade. A meta do governo Lula, por exemplo, ele queria que no final do mandato os brasileiros tivessem tomando café, almoçando e jantando? Qual o problema de a gente como entidade dar a nossa contribuição numa comunidade carente que está se formando dentro no nosso próprio bairro. É claro que eu acho que a comunidade deve se organizar e buscar o nosso apoio no saneamento, na iluminação, buscar os serviços públicos aos quais elas têm direito.

Estes argumentos alimentam a formação da auto-imagem das rádios,

relacionando de tal modo a emissora e o bairro que a legitimidade da primeira não

pode ser contestada. Na história da emissora essa auto-imagem é fundamental,

considerando que, durante seu curto tempo de existência a rádio já foi lacrada

algumas vezes, e em função disto já esteve dois anos fora do ar. Durante algum

tempo, como outras radiocom, funcionou sob a proteção de liminares. Depois, em

2001, sem essa proteção, a rádio foi lacrada. Após dois anos aguardando uma

resposta ao pedido de concessão feito ao Ministério, seus membros resolvem

quebrar o lacre e recolocar a rádio no ar. Como explica seu diretor:

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Foi o que eu disse no depoimento também, eu disse Dr. eu não pude mais esperar não, e fiz o que fiz, o que tinha de ser feito, decidi por conta própria juntamente com os locutores que nós vamos abrir a rádio, ela não pode ficar fora do ar não, ela tem uma importância muito grande dentro da comunidade. Nós abrimos a rádio no começo de 2005.

Os compromissos com o pequeno mercado publicitário do bairro, feito pelos

“apoiadores culturais”, a necessidade de marcar o espaço da emissora no “dial” e a

“importância da emissora para a comunidade” exercem enorme pressão para que a

rádio volte ao ar. Novamente, depois disso, dois novos lacres, com sucessivos

deslacres mantiveram a rádio no ar até a apreensão dos equipamentos. Como

explica seu diretor:

Eles lacraram e eu deslacrei, eles lacraram a segunda vez e eu deslacrei, e agora não teve jeito, eles levaram os nossos equipamentos, eu fui conduzido também, vou responder a um processo por isso, paguei fiança [que é de um salário mínimo], eu acho que isso de fiança é um absurdo, eu acho quer não deveria existir fiança não.

Os episódios de prisões e lacres acabam produzindo troca de informações

entre as rádios que são vítimas de processos como este. Em operações onde várias

rádios são fechadas no mesmo dia, seus responsáveis trocam informações sobre as

possibilidades legais de saída para radiocom. É o que aconteceu com a Rádio

Comunitária do Antônio Bezerra:

E o detalhe é que eu descobri que tem juiz que não considera isso crime não, um dos quatro juízes desses casos não considera isso crime, ele manda devolver o equipamento. (...) Aqui em Fortaleza, eu não sei o nome do juiz, mas ele manda devolver os equipamentos, ele manda devolver a fiança, e deixa você à vontade. Eu descobri isso ontem porque houve esse problema. A constituição garante que nós temos liberdade de expressão.

A imagem de emissora criminosa é rebatida pela leitura dos serviços

prestados pela rádio à comunidade. Na narrativa sobre a emissora ganha

importância a defesa de atributos que construam uma imagem da rádio como veículo

comunitário, legitimando a rádio frente aparato as ações de repressão.

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4.5 As definições e a construção da auto-imagem das rádios comunitárias.

Para além das diretrizes traçadas pelo movimento de rádios comunitárias, ou

pelas interpretações sobre as radiocom muitas vezes normativas, as rádios

comunitárias em seu dia-a-dia constituem sua práxis e um discurso que dialoga com

um conjunto de tensões entre um modelo idealizado de comunicação comunitária e

a prática efetiva.

A tensão pode ser percebida no conjunto de designações criadas pelas

próprias radiocom para explicar o território onde nascem e com o qual elas têm de

conviver. Entre as designações ouvidas estão: “rádios verdadeiramente

comunitárias”, “rádios comunitárias profissionais”, “rádios piratas” ou “rádios

genéricas”. Cada uma dessas denominações revela nuances diferentes das tensões

que venho discutindo.

A construção de um lugar de verdade, onde as rádios podem expressar a

verdade de uma relação comunitária, a busca de expressão de rádios que não se

identificam com o discurso de comprometimento e idealidade sobre a comunicação

comunitária, são expressões dessas diversas apresentações do discurso que se

forja sobre as radiocom. Para melhor compreender o significado e o sentido dessas

denominações, observe como elas aparecem no discurso das rádios pesquisadas.

A oposição “estabelecidos e ‘outsiders’” pode ser considerada na leitura que

a Rádio Favela faz da radiofonia comunitária. Tendo uma longa trajetória, a rádio viu

mudanças significativas acontecerem nesse campo. Quando eles são a terceira

emissora em freqüência modulada de Belo Horizonte. Durante muito tempo a

emissora viveu como emissora clandestina, até 1999, quando recebe a concessão

como emissora educativa. Nos mais de vinte anos da rádio, o “dial”, antes livre para

ser ocupado começa a ficar saturado.

A posição de “estabelecida” se afirma pela referência ao pioneirismo da

emissora: “a primeira rádio genérica antes do genérico existir, a primeira rádio pirata

do Brasil”, ou ainda na percepção que de que “de 97 para cá ai virou moda fazer.

Depois que a rádio saiu da página de crime do jornal, da página vermelha, passou

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para o jornal de cultura, ai o padre começou a fazer pirataria, o pastor da igreja

começou a fazer pirataria, e por ai foi. Ai virou moda”.

Nessa posição a rádio marca sua diferença das demais, tanto comerciais

como comunitárias, vistas por Misael como genéricas, ou as vezes, piratas.

Já na “Rádio Comunidade”, o termo comunidade é usado principalmente

como sinônimo do bairro. O fato de estar fisicamente próxima dos ouvintes através

das caixas de som, parece colocar a “comunidade” muito mais próxima da emissora.

Além disto, a condição de operar em freqüência modulada não lhe impõe

constrangimentos legais. Diferentemente de outras rádios que se afirmam a partir da

relação com o universo jurídico-legal da radiofonia comunitária, através da

concessão, das liminares, da concorrência com outras emissoras que também se

definem como radiocom, na Rádio Comunidade a relação com bairro é que marca

primordialmente a imagem da emissora como veículo comunitário.

Perguntados sobre uma diferença entre emissoras comercias e

comunitárias, as respostas fazem referência à liberdade e o não interesse pelo lucro.

Como afirma Ana Lúcia:

De cara o que eu percebi é que as pessoas nas rádios FM, freqüência modulada, elas não tem a mesma liberdade, nem elas nem as AM , pois as AM também são comerciais, então ela não tem liberdade, muito embora eu ache que o vocabulário das pessoas da AM é diferente das de FM. Eu percebo no vocabulário das pessoas e na forma como elas dão a notícia, No caso da comunitária é muito mais centrado naquilo [a notícia] sem ter muito que esconder (...).

Para outro comunicador da emissora, a diferença está no interesse pelo

ouvinte, que se manifesta em ações assistenciais, na prestação de serviços, ou na

ausência de lucro da emissora comunitária. Como afirma

A diferença é a seguinte, nós nos preocupamos com o hoje, do dia a dia dos nossos ouvintes, do povo da nossa comunidade, aquela coisa, de termos o prazer de ver a nossa comunidade bem. Nós aqui fazemos questão, e até brigamos às vezes, quando a Centro Comunitário não manda um aviso, para nós, que tem um curso bom, que o nosso jovem fique lá e aprenda, nós brigamos com ele. E a

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rádio comercial não, ela visa o lucro. Ela quer saber quanto é que vai dá no final do mês o caixa dela. Ela não está preocupada com o bairro Ellery, com o Pirambu, com a Boa Vista. Se tá na lama se está na seca, se o seu Joaquim tem o que comer ou que não tem. Já nós não, a nossa rádio, a diferença da rádio comunitária em si, é essa, que não visamos o lucro, mas visamos a alegria do nosso ouvinte. Ele pode até não está ouvindo, não importa, mas o importante para nós é que ele amanheça o dia e tenha o que comer. Eu me emociono pelo seguinte, porque nós nos preocupamos com isso. Nós não estamos preocupados aqui em dizer, ‘puxa vida hoje, s. Joaquim não tem o que comer, eu não tenho a nada com isso’ não, assim vamos brigar hoje, vamos brigar com fulano dos anzóis, que está fazendo assim, assim daquela rua. Se for para deixar a nossa comunidade feliz nós vamos brigar (grifos meus)

Para o comunicador a função primeira de uma emissora comunitária é a

prestação de serviços que garantam o bem-estar do ouvinte, ao contrário da busca

do lucro existente nas rádios comerciais. O entretenimento deve vir a reboque

dessas funções:

Então, nós nos preocupamos com isso que o nosso futuro ouvinte, chegue amanhã, e nós tenhamos a certeza que ele está bem. Essa é a diferença da rádio comunidade, levar entretenimento sim, mas levar também serviço, utilidade pública.

Já na Rádio Círculo a organização da emissora a aproxima muito do modelo

empresarial. A expressão “rádios comunitárias profissionais” tenta dar conta dessa

situação. Embora afirme o discurso do voluntariado e da gratuidade na prestação de

serviços, a vinculação da rádio a um segmento musical de mercado, oferta um

conjunto de oportunidades, para quem a faz, como por exemplo, apresentação de

shows de forró ou veiculação de propagandas das bandas.

Na Rádio Comunitária do Antônio Bezerra as diferenças entre tipos de

emissoras são claramente colocadas. Elas são usadas para construir a diferença

entre a 103,5, vista como verdadeiramente comunitária, as rádios comerciais e as

piratas. Como analisa o diretor da emissora:

Tem espaço para todo mundo na medida em que o Ministério for selecionando quais são as entidades realmente que tem um trabalho sério e que podem realmente receber a concessão, veicular programas com caráter educativo, informativo, cultural, essas

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entidades sim podem ter espaço para isso. Em fortaleza nós temos 114 bairros se eu não me engano, já pensou cada bairro com a sua rádio comunitária? Já que tem uma definição na Lei de que só pode ter 1km de raio, então com certeza poderia ter mais de cem rádios comunitárias em Fortaleza hoje, só que, nós, só temos oito. Agora tem que eliminar as piratas. Eu classifico como rádio pirata aquelas que não tem entidade, não tem pessoas na sua direção, não tem diretoria organizada, não existe uma organização com definição de programação, com documentação de entidade, com serviços públicos, com prestação de utilidade pública, com nada disso, com equipamentos sem homologação do Ministério, essas são as rádios piratas, são as feitas nos próprios quintais, que só funcionam no sábado e no domingo ou à noite quando não tem a fiscalização, aí eu classifico. E aí vem a nossa rádio como rádio comunitária que segue uma programação eclética, sem distinção de raça, de cor, de gênero, com participação de todo mundo, com a programação que vai do forró ao “funk”, como entidade organizada e com credibilidade dentro da comunidade onde está instalada, com pessoas idôneas compondo a sua diretoria, com locutores que não são profissionais, mas que sabem o que dizem sem estar promovendo político.

Nesta perspectiva, as rádios comunitárias seriam marcadas pela seriedade,

pela veiculação de programas educativos, informativos e culturais, enquanto que as

“piratas” são classificadas pela ausência dos atributos ligados às comunitárias. Além

disso, não tem entidade, logo não tem documentação da entidade, não tem direção,

não há definição clara de programação, a ausência de uma entidade, sem diretoria

organizada, etc. A apresentação desses elementos serve para reforçar a

legitimidade da Rádio Comunitária do Antônio Bezerra. Ainda sobre a relação entre

rádios comunitárias, rádios comerciais e piratas, afirma:

Na verdade as piratas são totalmente irresponsáveis, elas acabam atrapalhando as que realmente querem buscar a sua autorização, as que tem projeto para poder desenvolver, que tem um projeto para poder desenvolver através das ondas do ar, e aí a Acert e a Anatel acabam generalizando, quem não autorização é pirata, mas na verdade não é, o que eu queria era que a Acert e a Anatel soubessem distinguir esses dois segmentos, porque no nosso caso nós temos toda uma história, é tanto que desde 1999, já vamos fazer sete anos que nós estamos buscando a nossa autorização no Ministério da Comunicações e não fomos autorizados. E existem as comerciais tem uma organização que é a Acert que tem um poder econômico muito forte, uma influência política também e eles são os nossos repressores.

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O diretor da rádio expõe ainda nesse processo de construção das distinções

o vazio deixado pela ausência de uma instituição representativa forte, capaz não

apenas de defender os interesses das comunitárias, mas de eliminar as piratas.

Infelizmente o nosso movimento fragmentou, nós tínhamos a Abraço Ceará e cada estado tinha a sua associação de rádios comunitárias e infelizmente o movimento fragmentou, cada um foi se preocupar com a sua autorização. (...) Fragmentou porque cada um foi se preocupar com a sua autorização. Se nós tivéssemos entidade organizada dando capacitação para as rádios comunitárias talvez metade dessas piratas já tinham sido extintas ou então elas tinham se capacitar para se transformar em comunitárias e o nosso movimento estava bem mais numeroso e organizado, e realmente cada vez mais unido buscando o nosso espaço e não de combater as comerciais porque as comerciais tem os espaços delas, só que as comerciais não tem interesse que a gente se organize porque você imagina cada rádio comunitária em um bairro? Eles não perdem patrocinadores porque eles trabalham com grandes patrocinadores, mas eles perdem audiência e conseqüentemente vão perder os patrocinadores porque os patrocinadores vão ver que eles estão perdendo audiência para nós comunitárias e aí não vão apoiar, por isso que eles não têm interesse nenhum, eles têm interesse que a Anatel cada vez mais fiscalize, que a Polícia Federal e o Ministério Público fiscalize as rádios piratas como eles dizem, eles englobam tudo, eles não querem saber se a minha entidade, se a nossa rádio tem um trabalho voltado para a comunidade não, pelo contrário, eles não querem que a gente tenha esse trabalho não, eles querem que a gente dê interferência no aeroporto porque isso aí é um perigo muito grande, ontem mesmo eu soube que tem uma rádio no aeroporto que estava dando interferência na hora da aterrissagem dos aviões, essa rádio realmente tem que ser eliminada porque ela pode provocar acidente e matar muitas pessoas.

É interessante perceber a re-apropriação do termo pirata pelas emissoras

que se afirmam comunitárias. Como também o é, o uso de argumentos que serviram

para opor a legitimidade das rádios comerciais às nascentes emissoras

comunitárias. O perigo agora se encontra ao lado, no próprio campo das radiocom.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste trabalho era a discutir o conflito no campo das rádios

comunitárias, indagando em função de que elementos ele se organiza. Para fornecer

uma resposta a essa pergunta, acabei por construir um percurso que tornasse

possível a leitura dessas emissoras, bem como um panorama que expressasse as

mudanças que a interpretação e representação das radiocom sofrem ao longo do

tempo.

Uma canção138 de um grupo de rock brasileiro dos anos 1980 foi talvez a

primeira manifestação que ganhou dimensão massiva sobre o fenômeno das rádios

não-regulamentadas no país. A canção utilizava positivamente a expressão “rádio

pirata”, hoje uma expressão usada como valor depreciativo por grupos contrários às

emissoras comunitárias, para falar da necessidade da “pirataria nas ondas do rádio”.

Na canção as rádios são lugar de revolução, por isso devem “disputar em

cada freqüência um espaço nosso nessa decadência”, já que só “no submundo,

repousa o repúdio”. A rádio pirata seria uma forma de retomada, um mecanismo

para “invadir, tomar o que é nosso”, para “fazer justiça com as próprias mãos”.

É muito provável que a inspiração para esta canção tenha vindo dos

movimentos de rádios livres existentes na Europa e no Brasil. A bandeira desses

movimentos, como foi visto, era a ruptura com a exclusividade de uso de canais de

comunicação pelo Estado, como acontecia na Europa, ou explorados

exclusivamente pelo Estado e comercialmente, como acontecia no Brasil.

A canção, o movimento de rádios livres, o aparecimento das rádios

comunitárias, a criação de uma legislação e os desdobramentos de seu

aparecimento são expressões diversas da relação de conflito social que a

radiodifusão brasileira, em um sentido mais amplo, vem passando no Brasil.

138 “Rádio Pirata”, de autoria de Paulo Ricardo e Luiz Schiavor, interpretada pelo Grupo “RPM”.

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Como visto ao longo do trabalho, além do movimento de rádios livres,

diversos outros movimentos sociais passam a fazer uso do rádio para se expressar e

a confluência desses movimentos faz parte da história do surgimento das rádios

comunitárias e da instituição de um direito, o da radiodifusão comunitária, objeto de

recente reconhecimento jurídico. Nesse ínterim, das páginas policiais elas saltam

para o caderno de cultura, como afirma Misael Avelino, da Rádio Favela. De

criminosas elas se transformam em necessidade social, já que a lei apazigua as

disputas antes existentes, certo? Não exatamente.

A instituição do direito não pôs fim ao conflito e às demandas do movimento,

apenas o colocaram em outro patamar. A legislação também não apaziguou as

contendas em torno da legitimidade das rádios e a forma como são representadas e

percebidas. A auto-imagem e a imagem do outro, que associações de radiodifusão

comercial, associações de rádios comunitárias, órgãos de governo e meios de

comunicação constroem ao se relacionarem, são o mecanismo pelo qual duelam

estes agentes. Através da defesa de uma imagem de si e de uma imagem do outro,

forjam a defesa de seus interesses, articulando-os às idéias de legitimidade e de

ilegitimidade.

Ao encampar o conflito sobre a comunicação comunitária, o Estado, quando

da criação da lei, o tornou ainda mais complexo. O inimigo comum das radiocom,

representado pelos mecanismos de controle e repressão e pelas emissoras

comerciais, dividiu-se.

Havendo o reconhecimento do direito, o discurso não é mais o de que o

Estado não reconhece a existência de emissoras comunitárias, mas o de que não

respeita o direito que ele próprio reconheceu. A demora na análise dos processos de

concessão, as operações de fechamento e lacre de emissoras são ocorrências do

desrespeito. O conflito se diversifica.

As radiocom passam a brigar, primeiramente, dentro de seu próprio campo,

para definir o que é ou não verdadeiramente comunitário. Fora dele a qualidade da

legislação passa a ser questionada, ao mesmo tempo em que as radiocom buscam

a outorga e se defendem contra a fiscalização e controle de suas atividades.

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A legitimidade e a legalidade tornam-se temas por excelência nessa

conjuntura. A produção de discursos capazes de constituir legitimidade sobre o

direito de uma emissora comunitária existir passa a ser central. Eles aparecem nos

relatórios de órgãos como a Anatel, na cobertura da imprensa sobre o tema, na

produção das entidades ligadas às rádios comunitárias (como a ABRAÇO), na

produção das entidades ligadas à radiodifusão comercial, como a ABERT e ACERT

e é claro, na fala das diversas emissoras que se intitulam comunitárias.

Havendo consensos parciais sobre o que seja uma radiocom, que se

organizam a partir de grupos de interesse, os discursos colocam em operação

imagens de legitimidade ou de ilegitimidade. Parece-me que a “idéia” rádio

comunitária já construiu sua legitimidade. Como idéia não se nega mais sua

existência. Porém, como realização dessa idéia as rádios ainda enfrentam o

problema de uma efetividade marginalizada. E de sofrer vários processos de

constrangimento. O principal deles diz respeito à quantidade: O “dial” é dedicado

preferencialmente às rádios comerciais e a Lei 9612 define que as radiocom têm

apenas uma freqüência à sua disposição. O discurso sobre as rádios livres e a

liberdade de qualquer um montar o seu veículo de comunicação se mostra de pouca

viabilidade. O “dial” congestionado dos rádios prova essa dificuldade.

Emissoras consagradas como a Rádio Favela começam a pedir a retirada

das rádios “genéricas” do ar. Não há como transmitir e receber informações com o

espectro congestionado. A questão da legitimidade diz respeito a quem deve ficar.

Sobre esse aspecto, as matérias dos jornais cearenses “Diário do Nordeste”

e “O Povo” apontam um número reduzido. A observação do histórico das coberturas

indica que a posição positiva quando do surgimento das radiocom no Ceará, quando

elas são apenas radiadoras, altera-se completamente quando do surgimento das

radiocom em freqüência modulada, disputando audiência com as rádios comerciais.

Não há uma única matéria recente sobre as radiacom que não as trate sob a

perspectiva da suspeita, da ilegitimidade. Nestas representações, elas catalisam um

conjunto de valores negativos. Usurpam o direito das emissoras comerciais

trabalharem, são ilegais e não respeitam vários aspectos da legislação brasileira:

fazem propaganda política e põem em perigo a população. Depois de sua

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legalização, as rádios comunitárias podem existir como idéia, mas não como

efetividade.

A “perda do espaço da alternativa popular” (FUSER, 2003) para outros

grupos transfere para o interior do próprio movimento de comunitárias uma disputa

que antes ocorria apenas fora dele, na relação comunitárias versus comerciais.

Depois da Lei 9.612 o mercado de rádios comunitárias explodiu. A expansão

do número de emissoras que inicialmente ilustra e denuncia o “déficit” de meios de

comunicação nas mãos dos movimentos sociais e comunidades e que serve de

pressão para a discriminalização e surgimento de uma legislação específica,

transforma-se paulatinamente. Depois da regulamentação a diferenciação passa a

ser vista como um problema, com a penetração nesse espaço, antes exclusivo dos

movimentos sociais, de novos agentes: igrejas, políticos e pequenos empresários. A

ênfase na divisão “nós” / “eles” se intensifica. A análise dos jornais “ABRAÇO no Ar”

mostra que os inimigos são internos e externos ao campo da radiofonia comunitária.

Longe dos movimentos de rádios comunitárias, que no Ceará vivem um

momento de refluxo, as rádios de diferentes matizes seguem construindo sua prática

e um discurso identitário. A necessidade de se qualificar como o mais capaz para

realizar um projeto de comunicação comunitária se apresenta como auto-imagem.

Nas emissoras pesquisadas a comunidade pode ser: comunidade de interesses,

comunidade geográfica, o bairro, a audiência. Às vezes idéia adjetivada, às vezes

substancializada. Matrizes de orientação religiosa, política ou comercial foram

identificadas no processo de nascimento dessas emissoras. Porém, como a

pesquisa revelou, nem sempre elas permanecem orientando a emissora.

Rádios que durante algum tempo estiveram ligadas a Arcos-CEPOCA, como

a Círculo FM, aproximam seu funcionamento da prática das rádios comerciais.

Outras, como a Rádio Comunidade, um dia “100% Jesus”, saem de um campo de

atuação restrito à comunidade religiosa para se relacionar com o bairro e sua

pluralidade de interesses. Rádios como a Comunidade não sabem da existência de

um modelo já estabelecido de organização e funcionamento de uma emissora

comunitária. Sabem da existência da legislação, mas não a conhecem, sabem das

Associações, mas nunca participaram. A compreensão dos parâmetros de

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funcionamento de uma rádio comunitária é construída cotidianamente. Ela cria

mecanismos que vão sendo testados e aperfeiçoados ao longo do tempo, como a

programação, a relação com o ouvinte, ou a forma de organização interna da

emissora.

Já na Rádio Comunitária Antônio Bezerra o horizonte legal, conhecido desde

que a idéia de fundar a emissora surgiu, serve como guia de seu funcionamento. A

transgressão que a presença da rádio no ar torna mais necessária a elaboração de

uma imagem de emissora autenticamente comunitária, o que percorre a narrativa de

sua história, desde o nascimento até o lacre. A pluralidade é uma arma na disputa

legal, mas também no processo concorrencial de conquista da audiência e

envolvimento da comunidade.

Ao longo da pesquisa fui percebendo que o surgimento da Lei 9.612 cria

uma divisão na história das rádios comunitárias. A partir dela, novos personagens

entram em cena, na disputa pelo direito de se apropriar de um canal de radiodifusão

comunitária. A ‘reserva de mercado’ detida pelos movimentos sociais é rompida

pelos novos grupos de interesse. A necessidade de forjar um discurso de inserção

nesse universo erige a auto-imagem das emissoras como lugar de definição de

quem tem ou não direito a canal de rádio comunitária. Para sobreviver a essa

disputa interna com outras emissoras que se intitulam rádios comunitárias, a

construção de uma imagem que articule qualidades que possam descrever a

emissora com a idéia de comunidade é fundamental. A história das rádios contada

pelos seus membros revela isto.

O trabalho me mostrou ainda que a comunicação comunitária é um exercício

recente, um aprendizado da relação das rádios com os ouvintes e com a vida do

lugar onde se inserem, o bairro. Esse espaço público desprezado durante muito

tempo pelas emissoras comerciais, começa a ser objeto de interesse pela ação das

rádios comunitárias. Aquilo que antes passava como dado menor da vida desses

bairros agora ganha visibilidade. Talvez não da forma idealizada como inicialmente

se pensa o papel dessas emissoras, e muito mais por uma relação concorrencial de

mercado que elas estabelecem com as emissoras comerciais e entre elas próprias.

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Assim, pela via do conflito, uma enorme mudança no cenário da radiofonia

brasileira se apresenta. Com o “dial” congestionado, talvez o que esperam o ouvinte,

o bairro, a comunidade é o que afirma a canção139: que essas emissoras

Toquem o meu coração, façam a revolução

Que está no ar, nas ondas do rádio

Nos submundos repousa o repúdio

E deve despertar

139 “Rádio Pirata”.

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SALES, Iracema. Rádios populares II: As emissoras ainda não têm situação legalizada.

Diário do Nordeste, Fortaleza, 22 fev. 1990. Caderno Cidades.

SALES, Iracema. Rádios populares III: Repórteres têm destaque na programação variada.

Diário do Nordeste, Fortaleza, 23 fev. 1990. Caderno Cidades

SALES, Iracema. Rádios populares IV: Emissoras das Goiabeiras é exemplo para outras.

Diário do Nordeste, Fortaleza, 24 fev. 1990. Caderno Cidade.

Comerciante ajuda rádio popular para ter a torre. Diário do Nordeste, Fortaleza, 12 jun.

1990.

Rádios piratas afetam pouso em Cumbica. Diário do Nordeste, Fortaleza, 14 dez.1990

Rádio Comunitária instalada no Edson Queiroz presta serviço. Diário do Nordeste, Fortaleza, 25 ago. 199.

GCC promove 1o seminário sobre comunicação em pequenos meios. Diário do Nordeste, Fortaleza, 27 jul. 1992. A voz do Pirambu está calada. Diário do Nordeste, Fortaleza, 08 dez. 1994

Delegada do 7o DP manda retirar do ar rádio comunitária Voz do Pirambu. O Povo,

Fortaleza, 05 dez. 1994

Uma barulhenta útil. Diário do Nordeste, Fortaleza, 02 mai. 1994

Irradiadoras voltam a fazer sucesso nos bairros de Fortaleza. A comemoraação se deu com

o aluguel de uma rádio de Maracanau (Pitaguary) que transmitiu dois programas da

emissora. Diário do Nordeste, Fortaleza, 25 fev 1994.

Emissora clandestina é autorizada a funcionar. O Povo, Fortaleza, 28 jan. 1995

Rádios Comunitárias criam Associação. Diário do Nordeste, Fortaleza, 0 7 jul. 1995

VIERA, Leônia. Rádios Comunitárias de Fortaleza querem maior alcance e criticam projeto

para regulamentação. O Povo, Fortaleza, 15 fev. 1996. Caderno Cidades.

Relator apresenta parecer sobre radiodifusão de pequeno porte. Diário do Nordeste, Fortaleza, 18 mai. 1996.

Rádio Comunitária em debate na audiencia públcia do dia 17. Diário do Nordeste, Fortaleza, 14 jun. 1996.

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220

Começa disputa pela legalização das rádios comunitárias. Diário do Nordeste, Fortaleza,

28 jul. 1996

Rádios Comuni9tárias podem funcionar dentro das normas. Diário do Nordeste, Fortaleza,

07 nov. 1996.

Rádios Comunitárias são questionadas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 00/01/00 ?

Rádio Pirata Titan FM é interditada. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 fev. 1997

Rádios Comunitárias são abertas no Sertão Central. O Povo, Fortaleza, 22 mai. 1997

Audiência debate Rádios Comunitárias. Diário do Nordeste, Fortaleza, 13 dez. 1997

Comissão adia votação sobre rádio comunitária. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 jan.

1998.

Projeto sobre rádios clandestinas reduz número de emissoras. O Povo, Fortaleza, 27 jan.

1998.

Aprovado funcionamento das rádios comunitárias. Diário do Nordeste, Fortaleza, 28 jan.

1998.

Mais uma rádio pirata fechada no interior. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 fev. 1998

Senado aprova projeto que permite a operação livre. Diário do Nordeste, Fortaleza, 26 fev.

1998.

PF vai intensificar o combate ao funcionamento de 'rádios-piratas'. Diário do Nordeste, Fortaleza, 05 mai. 1998

ACERT quer rigor na fiscalização de rádio-pirata. O Povo, Fortaleza, 05 mai. 1998

PF irá apreender material de rádios piratas: maior preocupação da ACERT é a veiculação

da propaganda eleitoral ílicita. Diário do Nordeste, Fortaleza, 15 mai. 1998. Caderno

Cidades.

Rádios Comunitárias temem repressão: superintendente da PF garante que apreenderá

equipamentos de acordo com a lei. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 mai. 1998.

Dial sem trégua. O Povo, Fortaleza, 24 mai. 1998.

Jovens são treinados para atuar em rádios comunitárias nas escolas. O Povo, Fortaleza, 02

jul. 1998.

Católicos usam rádios comunitárias como instrumento de evangelização. O Povo, Fortaleza,

01 ago. 1998.

Corregedoria aperta o cerco às rádios piratas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 27 ago. 1998.

UFC nega espaço para a festa da Arcos. Diário do Nordeste, Fortaleza, 05 set. 1998.

MP pede apreensão de material de rádios piratas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 17 set.

1998.

PF deve receber hoje mandatos de apreensão. Diário do Nordeste, Fortaleza, 22 set. 1998.

Pedido de busca tem efeito pedagógico. Diário do Nordeste, Fortaleza, 22 set. 1998.

Apreensão dos equipamentos das rádios. Diário do Nordeste, Fortaleza, 23 set. 1998.

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221

Campanha contra a pirataria: ACERT vai investir contra as rádios clandestinas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 29 jul. 1998.

A voz da Comunidade. O Povo, Fortaleza, 26 out. 1998.

Abert denuncia de emissoras por todo o país. Diário do Nordeste, Fortaleza, 28 nov. 1998

Agência de telecomunicações preocupa setor da radiodifusão. Diário do Nordeste, Fortaleza, 05 dez. 1998.

Anatel continua fiscalização sobre rádios piratas: somente nas duas últimas semanas. 21

emissoras clandestinas forma fechadas no CE. Diário do Nordeste, Fortaleza, 10 out.

1999.

3.373 emissoras de rádio FM serão criadas no país. O Povo, Fortaleza, 28 mar. 1999.

1o Fórum de Radiodifusão do Sertão Central. Diário do Nordeste, Fortaleza, 12 abri. 1999.

FHC pede instalação de 70 rádios comunitárias. O Povo, Fortaleza, 28 jul.

1999.

Uso de rádio comunitário divide opiniões em evento. O Povo, Fortaleza, 14 ago. 1999

ACERT reforça fiscalização contra rádios piratas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 28 out.

1999.

ACERT quer o fim das rádios piratas no Estado. Diário do Nordeste, Fortaleza, 30 out.

1999.

Rádios oficiais sofrem interferência de piratas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 fev. 2000

Polícia Federal inicia caça as rádios piratas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 29 fev. 2000

Duas ‘rádios piratas’ são fechadas pela Polícia Federal . Diário do Nordeste, Fortaleza, 02

mar. 2000.

Procuradoria investe contra rádios pirata. Diário do Nordeste, Fortaleza, 28 mar. 2000

Federal e Anatel fecham rádios-piratas no interior. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 abr.

2000.

Orçamento e as rádios piratas nos debates da AL [Assembléia Legislativa]. Diário do Nordeste, Fortaleza, 21 out. 2000.

Advogado de rádios diz que Anatel evita perícia. O Povo, Fortaleza, 04 dez. 2000.

Relatório sigiloso alerta sobre risco. O Povo, Fortaleza, 04 dez. 2000.

Perigo no ar: interferências de rádios podem provocar acidente aéreo. O Povo, Fortaleza,

04 dez. 2000.

PF fecha rádio ‘pirata’ em Fortaleza. Diário do Nordeste, Fortaleza, 08 dez. 2001.

Justiça proíbe liminares para rádios ilegais. Diário do Nordeste, Fortaleza, 28 set. 2001.

Operação conjunta com a Anatel: PF fecha rádio ‘pirata’ no Centro. Diário do Nordeste, Fortaleza, 02 fev. 2002.

Ceará ganha mais rádios comunitárias do Senado. O Povo, Fortaleza, 05 mai. 2002.

Só na vontade. O Povo, Fortaleza, 20 jun. 2003.

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Rádios comunitárias e TVs públicas em discussão. O Povo, Fortaleza, 08 abr. 2003.

A luta das comunitárias. O Povo, Fortaleza, 17 ago. 2003.

Nas ondas. O Povo, Fortaleza, 22 ago. 2003.

Sistema vai cadastrar laranjal. O Povo, Fortaleza, 28 set. 2003.

Democratização sem exagero: aberto 9º Congresso Cearense de Radiodifusão. Diário do Nordeste, Fortaleza , 05 dez. 2003.

Piratas na mira. Diário do Nordeste, Fortaleza, 6 dez. 2003.

Sistema vai cadastrar rádios comunitárias. O Povo, Fortaleza, 14 dez. 2004.

Xô, piratas. O Povo, Fortaleza, 15 abr. 2004.

Pirataria: fraude também atinge emissoras de rádio. Diário do Nordeste, Fortaleza, 14 nov.

2004.

Belo Horizonte: PF fecha 15 emissoras de rádio clandestinas. O Povo, Fortaleza, 26, out.

2004.

Comunitárias: número de rádios fechadas aumenta 37% no governo Lula. O Povo,

Fortaleza, 24 out. 2004.

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ANEXOS

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Anexo 1 Mapa de Fortaleza - Rádios visitadas/pesquisadas

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Anexo 2 (a)

Informativo CEPOCA - Outubro de 1990

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Anexo 2 (b)

Informativo CEPOCA – Fevereiro de 1991

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Anexo 3

Quadro de diferenciação radiocom versus rádios comerciais

Radiocom Emissoras comerciais Ética Fundamenta-se numa ética, num

conjunto valores, que se manifesta como o respeito à vida, aos ser humano, ao meio ambiente.

A ética é fundamentada no mercado. Os valores são os valores de mercado

Prioridade Promover a cultura, a arte, a educação, o desenvolvimento da comunidade.

Promovem o lucro dos proprietários

Cultura Propagam, difundem e estimulam os artistas locais, valorizando os de qualidade. Têm um compromisso com a legítima arte popular Valorizam a arte verdadeira; a boa música brasileira e a música de raiz.Mostram o que há de melhor na cultura de outros povos

Difundem os produtos que a industria cultural gera. Não há compromisso com a arte e a cultua do povo, mas com o lucro gerado pela venda de determinados produtos (cantores, bandas...) Difundem entretenimento – que é o lazer alienado, disfarçado como cultura.

Jornalismo É voltado para os interesses da comunidade, o povo faz e é o jornalista. Provoca a integração da comunidade Debate todos os temas com a profundidade que cada um merece, sem se limitar ao tempo dos programas.

Voltado para o interesse dos ricos, dos patrões, da elite. Visa fragmentar a comunidade Debate os temas que interessam aos dirigentes da emissora, no tempo limitado da programação

Programação Visa estimular a inteligência das pessoas que compõe a comunidade Estimula a inteligência, o debate, a integração da comunidade com seus problema, suas derrotas, seus sucessos.

Serve aos interesses financeiros da rádio e das gravadoras Promove a alienação do ouvinte

Participação Popular A comunidade, o povo, faz e é a rádio A participação do povo é intrínseca A rádio não porta-voz do povo, ela é o povo.

Apresentam-se como porta-vozes da população. Mas o povo aparece como bandido, ladrão, assassino, criador de casos. Em alguns casos a participação popular é interativa: vota nas opções que a emissora coloca a disposição (conforme interesses delas), criando a falsa aparência de que o povo pode escolher, participar.

Conhecimento Estimula no ouvinte, e quem faz a emissora, a buscar o conhecimento.

Não valoriza o conhecimento. Estimula a alienação

Cidadania Estimula no ouvinte sua participação na comunidade como cidadão. Destaca seus direitos e deveres na comunidade e no país

As pessoas são tratadas como consumidoras. As pessoas valem pelo que têm, pelo cargo que ocupam.

Audiência Audiência é secundário. Mais importante é a integração da

A audiência é fundamental, porque isto representa ganho

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comunidade, a difusão da inteligência, da cultura e da arte.

comercial, e sem ganho comercial não interessa ficar no ar.

Publicidade É uma questão secundária. Não é fundamental. Faz publicidade mas sob determinadas regras éticas.

É o fundamental na emissora. Sem publicidade ela não existe.

Quem opina Todos opinam: gente do povo, autoridades e especialistas no assunto

Todos, mas o povo não conta muito. São censuradas ou boicotadas as opiniões que não coincidem com os interesses comerciais e políticos da emissora.

Política Aberto a todos os partidos e candidatos. Antes do período das eleições a comunidade pode conhecer os candidatos, através de debates. Não tem compromisso com partidos ou candidatos.

Têm prioridade na emissora, aqueles candidatos e partidos que tem relações com o dono da empresa/emissora

Religião Rc não pertence a nenhuma religião. Não faz proselitismo (catequese) de nenhuma religião. Abre espaço para, quando chamadas, elas opinarem sobre determinados temas. Não discrimina religiões – todas tem os mesmos direitos

Algumas pertencem a religiões e, deste modo, discriminam outras. Fazem proselitismo sistemático. Mesmo quando não pertencem a determinada religião, as emissoras procuram orientar a programação para a religião que tiver mais poder ou para aquela que estiver na moda.

Movimentos populares Elas fazem parte da rádio – no modo formal ou informal. A RC anuncia as reuniões dos movimentos populares, divulga manifestos, cobre atos –reuniões, manifestações públicas, solenidades. Se o movimento não é parte da RC, ela é, no mínimo, parceira dos movimentos populares.

Desqualificam os movimentos populares. Satanizam eles. Os movimentos populares são tratados como inimigos da ordem e da lei. São difundidos como formados por baderneiros, terroristas, agitadores, subversivos, radicais,...

Fonte: “Trilha Apaixonada e bem-humorada do que é de como é fazer rádios comunitárias

na intenção de mudar o mundo” (LUZ, 2001, p. 13-15).

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Anexo 4

Quadro de matérias publicadas pelo boletim “No Ar ABRAÇO” e pelo jornal “ABRAÇO no Ar” entre 1997-1999.

Jornal/Data/Número Matéria No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Resoluções do 1º Congresso da ABRAÇO

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Conjuntura

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Editorial

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Diretoria Executiva da ABRAÇO reformulada no 1º Congresso

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Estatuto da ABRAÇO

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Ações políticas da ABRAÇO para o próximo período

No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4

Curso de formação e capacitação

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

“Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder”

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

“Todos no Congresso da ABRAÇO”

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

“No Brasil, lutar pela democratização é um ato de coragem

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

“Lei das rádios comunitárias ... o começo ou o fim”

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

“ É da reflexão que nasce a luz”

ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6

A resistência da rádio Cantagalo – PR”

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

“Alô, Alô Teresina. Aquele ABRAÇO”

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

Em formação

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

Os ladrões entram pelas portas dos fundos

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

A seca, a comunicação e a solidariedade

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

I Congresso de São Paulo- ABRAÇO SP

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

Caça as bruxas em Santa Catarina

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

“Voltamos à luta: Ministério das Comunicações baixa regulamentação das rádios comunitárias de forma arbitrária, passando por cima do legislativo”

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

Não a censura, Não ao silêncio

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

Maranhão: Democracia na comunicação e reggae na veia do movimento

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

FNDC: um breve histórico do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

MD x computador

ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7

ABRAÇO na WEB

ABRAÇO no Ar – março O céu é o limite

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1999 Número 8 ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Horóscopo poético

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Revolução em curso

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Consórcio Nacional ABRAÇO- BancorBras: a oportunidade que faltava para a aquisição de equipamentos de rádio comunitária

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Frente parlamentar pela democratização da comunicação

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

III Congresso Nacional de Rádios Comunitárias

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Informe da Secretária de Comunicação

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Ousar, transmitir, resistir: I Congresso da Apraço

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Congresso da Apraço

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Mídia brasileira: a defesa autoritária da globalização

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

As mascaras da informação

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Agora o mandado de segurança é ‘contra o Ministério. Por que questionar juridicamente o decreto regulamentador das atividades da radiodifusão comunitária

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

ABRAÇO- MG na internet

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Terrorismo no interior da Paraíba: fiscais da Anatel e Polícia federal, sob mandado judicial, lacram, apreendem equipamentos e prendem radialista.

ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8

Criminosos são eles

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

A vida além da dívida

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

MST e a reforma agrária no ar

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

ABRAÇO Goiás

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

Vitória em dois Estados: RS e PB asseguram funcionamento das rádios comunitárias

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

Horóscopo poético

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

ABRAÇO Bahia: Rearticulação das rádios baianas.

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

ABRAÇO e CESE se reúnem em Salvador

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

Capacitação para comunicadoras comunitárias

ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9

Técnicas de radiojornalismo: manual de radialista que cobre educação

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Impulsionando a democracia

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Depois de um ano e dois meses apenas vinte nove habilitadas

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Relatório da Reunião da Agraço e da ABRAÇO: I Encontro Mercosul de Rádios Comunitárias e III Congresso Brasileiro de TV e Rádios Comunitárias da ABRAÇO

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Coluna Fique Ligado: Freios e contrapesos; “checks and balance”; Frente Parlamentar possui grupo de apoio; ABRAÇO no FNDC e FIEC; quem é o sindicato

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233

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Compromisso: Democracia e comunicação/ ARCEPI presta contas do II Congresso

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Quem tem medo das rádios comunitárias

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Encontro Regional cria rede de ‘comunicadoras no rádio’

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Os homens, as mulheres e as rádios comunitárias

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

PM de Manaus impede preservação ambiental

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

APARCOM prepara congresso de rádios comunitárias

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Com organização e mobilização a gente avança

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

ABRAÇO Maranhão implementa programa de formação/Dia Estadual de Rádios Comunitárias

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Técnicas de radiojornalismo: manual do radialista que cobre educação

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Rondônia: rádios se mobilizam para a fundação da ABRAÇO no Estado

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Associação paraibana agradece

ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10

Audiência na Procuradoria

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Parcerizar para crescer junto

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Ábraço lançará prêmio brasileiro de comunicação comunitária

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Nas ondas do rádio

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Consórcio Nacional treina representantes

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Coluna Fique Antenado: comunidade organizada por um Brasil melhor; Prêmio Ibero-americano pelos direitos da infância; jabá gratuito Bundas

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Correios: emprego sim

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Câmara dos deputados discute emenda constitucional sobre propriedade dos meios de comunicação

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Banda de música e música bunda

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

III Encontro Estadual da Ábaco- RN

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Técnicas de radiojornalismo: manual do radialista que cobre educação

ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12

Frente parlamentar é lançada em Brasília

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Editorial: Trabalho infantil

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Prêmio Brasileiro de Comunicação Comunitária

ABRAÇO no Ar – agosto 1999 Número 13

Rádio Comunitárias vão gerar 200 mil novos empregos

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

ABRAÇO cria fundo técnico de apoio a projetos técnicos

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Imunidade parlamentar

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Governo FHC continua perseguindo movimento de rádios comunitárias

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ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Consórcio facilita aquisição de equipamentos em 18 prestações

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

ABRAÇO compõe conselho da UNIR

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Escola especial monta rádio comunitária

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Seminário Nacional de metodologias de capacitação

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

ABRAÇO apóia mobilização nacional

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Marcha popular pelo Brasil

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Mulheres em el aire

ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13

Fazendo gênero no rádio: nos microfones e nas diretorias

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

ABRAÇO e os movimentos sociais

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Juiz federal vê país numa ditadura mascada

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Coluna Fique Ligado: prêmio CNT de jornalismo 99 dará R$ 35 mil a vencedores; Apresentação de propostas para pesquisa 1999; programação para o III Congresso ABRAÇO; ABRAÇO produz material sobre rádios comunitárias; uma notícia ta chegando lá do Maranhão

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Rumo ao III Congresso Brasileiro

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Prestando Contas

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Carta de denúncia da Comunidade de São João do Campestre- RN

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Edital

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Com a palavra a justiça

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

V Encontro Nacional da Rede de Mulheres no Rádio: Macapá nunca mais será a mesma

ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14

Manual das palavras limpas

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

ABRAÇO é mil vezes maior que a ABRAÇO

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

I Encontro Mercosul de Rádios e TV Comunitária

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

III Congresso Brasileiro de Rádios e TVs comunitárias da ABRAÇO

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

FUNAEPT - Fundo Nacional de Apoio à Elaboração de Projetos Técnicos

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

A questão jurídica das rádios comunitárias

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

Coluna Fique Antenado.

ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15

Fazendo gênero: comunicadoras comunitárias têm participação expressiva no V Encontro da Rede de Mulheres do Rádio; Machismo radiofônico em Cuba; Representantes da AMARC também se capacitam em gênero.

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Anexo 5

CÓDIGO DE ÉTICA DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS

A Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), elaborou um Código de ética para aqueles que atuam com rádios e televisões comunitárias. É importante conhecê-

lo, porque sem ética não existe radiodifusão comunitária.

1. A radiodifusão comunitária tem como premissa fundamental a intransigente defesa e prática da democracia na sociedade, da qual é componente essencial a democratização dos meios de comunicação de massa, especialmente o rádio e a televisão.

2. A ABRAÇO situa-se no campo dos movimentos populares, sendo seus associados comprometidos com os interesses e lutas destes setores sociais, marcadamente contra toda e qualquer forma de exclusão, discriminação ou preconceito, seja de gênero, raça, religião ou cultura, seja de condição social ou econômica, ou de opção sexual.

3. As entidades ligadas a ABRAÇO se comprometem a lutar pela democratização e controle público dos meios de transmissão pela sociedade civil organizada e rejeitam, no seu quadro associativo, a propriedade individual das emissoras de rádio e televisão comunitária, que devem ser de caráter social e gestão pública.

4. As entidades emissoras de radiodifusão comunitária devem pertencer à entidade de caráter cultural e comunitário, sem fins lucrativos, constituídas, prioritária e preponderantemente, por organizações e movimentos formais e não-formais sendo controladas por conselhos comunitários em que diversos setores da comunidade estejam representados.

5. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de não realizarem, nem possibilitarem qualquer tipo de proselitismo, seja político-partidário, religioso ou de qualquer espécie.

6. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de buscar refletir a pluralidade de opiniões que envolvem os fatos divulgados, resguardando os direitos individuais e coletivos.

7. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de apoiar e difundir a produção cultural das comunidades em que estão inscritas.

8. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso do respeito mútuo, o que, entre outras coisas, significa observar a compatibilização de freqüências e potências e priorizar o diálogo e a negociação.

9. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de buscar o aprimoramento técnico e o desenvolvimento de uma linguagem adequada à comunidade.

10. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de manter uma grade de programação variada, onde esteja garantido o debate das idéias, e o acesso das entidades, movimentos e pessoas da comunidade, para apresentarem reivindicações, sugestões, denúncias de violações de direitos e posicionamentos.

11. A busca de apoios culturais e publicidade pelas entidades e emissoras de radiodifusão comunitária deve garantir, na medida do possível, o acesso de empresas de pequeno porte da comunidade, que têm dificuldade de acesso aos grandes meios de comunicação de massa.

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12. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de desenvolverem, com as organizações e pessoas que as constituem, mecanismos para a sua manutenção, buscando sua autonomia financeira e sem estabelecer vínculo de dependência.

13. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de defesa dos direitos da cidadania, divulgando as garantias constitucionais e legais, como o Código de Defesa do Consumidor, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, etc., inclusive através da realização de campanhas denunciando suas violações.

14. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de contribuir decididamente com os projetos de educação da comunidade, inclusive realizando campanhas educativas e de esclarecimentos, sempre norteadas pela valorização da vida.

15. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de manter seus equipamentos em funcionamento adequado, de maneira a não prejudicar outras emissoras ou serviço de telecomunicações.

Fonte: Disponível em: www.http://abraconet.org.br

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Anexo 6

“Crônica de Itamar”

“Hoje, 17 de julho poderia passar desapercebido como um dia qualquer, mais um

santo da igreja, por isso estabeleço por conta própria o dia de hoje como o dia do resgate. Há um ano atrás essa crônica ia ao ar pela primeira vez. Medo e incertezas, tudo começou assim, pela primeira vez milhares de pessoas iriam me ouvir, graças, a uma alguém que eu ouvia pelas ondas do rádio na solidão do meu quarto negro, como meus dias de descrença e ódio, de dor e tristeza. Se hoje estou aqui curado do mal que me consumia, dos bares que me consumia, como fuga daquilo que eu pensava que era vida, é porque o rádio através da voz que eu ouvia sabia quem eu era, e do que eu poderia fazer me estendeu além das mãos a certeza absoluta, que hoje tem, é possível reverter qualquer situação desde que exista em cada um de nós a vontade de querer mudar. E eu quis, obrigado mais uma vez Misael por ter acreditado sempre que eu fosse capaz de reverter aquela situação. Mais do que isso que eu fosse capaz de falar algo que alguém quisesse ouvir, alguém bem próximo e pelo qual ainda mantenho bastante respeito disse que eu havia morrido. Este respeito aumentou ainda mais, porque estava constatada a verdade nisso. Aquele outro de fato morreu, mas que renasceu numa onda tão clara quanta a vida que hoje vivo e que Deus sempre quis para mim. Não posso deixar de agradecer também, o apoio irrestrito da direção da Rádio Favela, através do cara que pôs fogo nessa fogueira há vinte e três anos e que nela vamos queimando a cada dia a exclusão, o preconceito e a vaidade a cima de tudo. (...) Enfim, obrigado a todos aqui e a todos ai, você que nos ouve e que nos dá o prazer da sua companhia, mas do que ouvintes, temos em vocês nossa referência, nosso compromisso com a cidadania. Até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através dela e só você viu e nos ouviu. Muito obrigado mais uma vez e até amanhã”.

Fonte: Arquivo Rádio Favela (não foi possível localizar o ano do texto)