Psicologia das multidões

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«Em que ideias fundamentais se vão basear as sociedades que sucederão à nossa?”. Por enquanto, não o podemos saber. Mas podemos prever que terão de contar com um novo poder, último poder soberano da idade moderna: o poder das multidões. Sobre as ruínas de tantas ideias, outrora consideradas verdadeiras e já mortas hoje, sobre os destroços de tantos poderes sucessivamente derrubados, este poder das multidões é o único que se ergue e parece destinado a absorver rapidamente os outros. No momento em que as nossas antigas crenças vacilam e desaparecem, em que os velhos pilares das sociedades desabam, a ação das multidões é a única força que não está ameaçada e cujo prestígio vai sempre aumentando. A época em que estamos a entrar será, na verdade, a era das multidões.'»Gustave Le Bon (1841-1931), médico, sociólogo e psicólogo, é considerado como um genial precursor de Freud (pelas suas teses sobre o inconsciente) e de Einstein (ao considerar a matéria como uma forma condensada da energia). A Psicologia das Multidões. (1895) está, hoje, traduzida numa dezena de línguas.

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PENSADORES COLEO DIRIGIDA POR GRARD LEROUX GUSTAVE LE BON

Psicologia das multidesTRADUO DE IVONE MOURA DELRAUX Ttulo original PSYCHOLOGIE DES FOULES Presses Universitaires de France, 1895 Edies Roger Delraux, 198O, para a lngua portuguesa

A TH. RIBOT, Diretor da Revue philosophique, Professor de Psicologia no Collge de France, Membro do Institu. Afetuosa homenagem, GUSTAVE LE BON.

CONTRACAPAGUSTAVE LE BON PSICOLOGIA DAS MULTIDES Em que ideias fundamentais se vo basear as sociedades que sucedero nossa?. Por enquanto, no o podemos saber. Mas podemos prever que tero de contar com um novo poder, ltimo poder soberano da idade moderna: o poder das multides. Sobre as runas de tantas ideias, outrora consideradas verdadeiras e j mortas hoje, sobre os destroos de tantos poderes sucessivamente derrubados, este poder das multides o nico que se ergue e parece destinado a absorver rapidamente os outros. No momento em que as nossas antigas crenas vacilam e desaparecem, em que os velhos pilares das sociedades desabam, a ao das multides a nica fora que no est ameaada e cujo prestgio vai sempre aumentando. A poca em que estamos a entrar ser, na verdade, a era das multides.'

Gustave Le Bon (1841-1931), mdico, socilogo e psiclogo, considerado como um genial precursor de Freud (pelas suas teses sobre o inconsciente) e de Einstein (ao considerar a matria como uma forma condensada da energia). A Psicologia das Multides. (1895) est, hoje, traduzida numa dezena de lnguas.

PREFCIO O conjunto de caracteres comuns que o meio e a hereditariedade imprimem a todos os indivduos de um povo constitui a alma desse povo. Estes caracteres so de origem ancestral e, por isso, muito estveis. Mas quando, por influncias diversas, um certo nmero de homens se agrupa momentaneamente, a observao mostra-nos que aos seus caracteres ancestrais se vem juntar uma srie de novos caracteres por vezes bem diferentes dos que a raa lhes deu. No seu conjunto constituem uma alma coletiva poderosa mas momentnea. As multides sempre desempenharam um papel importante na histria, mas nunca to considervel como nos nossos dias. A ao inconsciente das multides, substituindo-se atividade consciente dos indivduos, uma caracterstica da poca em que vivemos.

INTRODUOA ERA DAS MULTIDES Evoluo da poca atual. As grandes transformaes de civilizao so consequncia de transformaes na mentalidade dos povos. A crena moderna no poder das multides. Essa crena modifica a poltica tradicional dos Estados. Como se verifica a ascenso das classes populares e como exercem o seu poder. Consequncias necessrias do poder das multides.As multides s podem exercer um papel destrutivo. por intermdio delas que se completa a dissoluo das civilizaes demasiado velhas. Ignorncia generalizada da psicologia das multides. Importncia do estudo das multides para os legisladores e homens de Estado. As grandes alteraes que precedem a transformao das civilizaes parecem, primeira vista, determinadas por agitaes polticas de importncia considervel: invases de povos ou quedas de dinastias. Mas um estudo atento destes acontecimentos revela que, por detrs das causas aparentes, a causa real , na maior parte das vezes, uma transformao profunda nas ideias dos povos. As verdadeiras alteraes histricas no so as que nos espantam pela grandeza e violncia. As nicas transformaes decisivas, as que conduzem renovao das civilizaes, efetuam-se nas opinies, nas concepes e nas crenas. Os acontecimentos memorveis so os efeitos visveis de transformaes invisveis nos sentimentos dos homens. E se s raramente se manifestam porque o fundo hereditrio dos sentimentos o elemento mais estvel de uma raa. A poca atual constitui um daqueles momentos crticos em que o pensamento humano se encontra em vias de transformao. Dois fatores essenciais esto na base dessa transformao. O primeiro a destruio das crenas religiosas, polticas e sociais de onde derivam todos os elementos da nossa civilizao. O segundo a criao de condies de existncia e de pensamento inteiramente novas, originadas pelas modernas descobertas da cincia e da indstria. Como as ideias do passado, embora abaladas, so ainda muito poderosas, e as ideias que as devem substituir se encontram ainda em formao, a poca moderna representa um perodo de transio e anarquia. No fcil dizer-se hoje o que poder um dia sair deste perodo necessariamente

um tanto catico. Em que ideias fundamentais se vo basear as sociedades que sucedero nossa? Por enquanto, no o podemos saber. Mas podemos prever que tero de contar, ao organizarem-se, com um novo poder, ltimo poder soberano da idade moderna: o poder das multides. Sobre as runas de tantas ideias, outrora consideradas verdadeiras e j mortas hoje, sobre os destroos de tantos poderes sucessivamente derrubados, este poder das multides o nico que se ergue e parece destinado a absorver rapidamente os outros. No momento em que as nossas antigas crenas vacilam e desaparecem, em que os velhos pilares das sociedades desabam, a ao das multides a nica fora que no est ameaada e cujo prestgio vai sempre aumentando. A poca em que estamos a entrar ser, na verdade, a era das multides. H apenas um sculo, a poltica tradicional dos Estados e as rivalidades dos prncipes constituam os principais fatores dos acontecimentos. Na maioria dos casos, a opinio das multides nada contava. Hoje, so as tradies polticas, as tendncias pessoais dos soberanos e as suas rivalidades que pouca importncia tm. A voz das multides tornou-se preponderante. ela que dita aos reis a sua conduta. Os destinos das naes no se jogam j nos conselhos dos prncipes, mas sim na alma das multides. A ascenso das classes populares vida poltica, a sua transformao progressiva em classes dirigentes, uma das caractersticas mais salientes desta poca de transio. No foi o sufrgio universal, to pouco influente durante tanto tempo e to fcil de controlar no seu comeo, que determinou essa ascenso. O poder das multides desenvolveu-se a partir da propagao de certas ideias que, gradualmente, se apossaram dos espritos, e, depois, graas associao cada vez maior de indivduos com o fim de pr em prtica concepes que, at ento, apenas tinham sido formuladas teoricamente. Foi atravs dessa associao que as multides comearam a formar ideias sobre os seus interesses, que, embora no fossem muito justas, eram decerto bastante firmes; comearam ao mesmo tempo a ter conscincia da sua fora. Fundam sindicatos perante os quais todos os poderes capitulam; bolsas de trabalho que, apesar das leis econmicas, tendem a reger as condies de trabalho e de salrio. Enviam s assembleias governativas representantes destitudos de qualquer iniciativa e independncia, que se limitam quase sempre a serem os porta--vozes das comisses que os escolheram. Hoje, as reivindicaes das multides tomam-se cada vez mais definidas e procuram destruir de alto a baixo a sociedade atual, para a reconduzirem ao comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos humanos antes da aurora da civilizao. Tais reivindicaes so a reduo das horas de trabalho, a expropriao das minas, dos caminhos-de-ferro, das fbricas e do solo, a distribuio igualitria dos produtos, a

eliminao das classes superiores em benefcio das classes populares, etc. Pouco dadas ao raciocnio, as multides mostram-se, em contrapartida, muito aptas para a ao. A organizao atual torna poderosa a sua fora. Os dogmas, que hoje vemos surgir, depressa ho de ter o poder dos velhos dogmas e ficaro investidos da fora tirnica e soberana que os colocar ao abrigo de qualquer discusso. Assim o direito divino das multides substitui o direito divino dos reis. Os escritores que gozam dos favores da nossa burguesia e que, por isso, melhor representam as suas ideias um tanto estreitas, as suas vistas um tanto curtas, o seu ceticismo um tanto sumrio e o seu egosmo por vezes excessivo, sentem-se perturbados com o novo poder que se ergue diante deles e, para combater a desordem dos espritos, dirigem apelos desesperados s foras morais da Igreja, que dantes tanto tinham desdenhado. Falam de bancarrota da cincia e lembram-nos os ensinamentos das verdades reveladas. Estes novos conversos esquecem, porm, que, se a graa, na verdade, os iluminou a eles, j no ter o mesmo poder sobre as almas fechadas aos apelos da transcendncia. As multides, hoje, no querem saber dos deuses que os seus senhores de ontem renegaram e ajudaram a derrubar. Os rios no correm para as nascentes. A cincia no sofreu qualquer bancarrota e nada tem a ver com a atual anarquia dos espritas nem com o novo poder que se ergue no meio desta anarquia. A cincia prometeunos a verdade ou, pelo menos, o conhecimento das relaes acessveis nossa inteligncia, nunca nos prometeu a paz nem a felicidade. Soberanamente indiferente aos nossos sentimentos, no ouve as nossas queixas e nada nos poder restituir as iluses que, por causa dela, fomos perdendo. Sintomas universais revelam-nos, em todas as naes, o rpido crescimento do poder das multides. Seja o que for que ele nos traga, seremos obrigados a suport-lo. As recriminaes no passam de palavras vs. A ascenso das multides marcar talvez uma das derradeiras etapas das nossas civilizaes do Ocidente, um regresso queles perodos de anarquia confusa que sempre precedem o desabrochar de novas sociedades. Mas como poderemos impedi-lo? At aqui, as grandes destruies de civilizaes envelhecidas constituram a funo mais evidente das multides. A histria ensina-nos que, no momento em que as foras morais que so o fundamento das sociedades perderam o seu domnio, as multides inconscientes e brutais, justamente qualificadas de brbaras, encarregam-se de realizar a dissoluo final. At agora, as civilizaes tm sido criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual mas nunca pelas multides. Essas, s tm poder para destruir. O seu domnio representa sempre uma fase de desordem. Uma civilizao implica regras

fixas, disciplina, a passagem do instintivo para o racional, a previso do futuro, um grau elevado de cultura, condies estas totalmente inacessveis s multides quando abandonadas a si mesmas. Pelo seu poder unicamente destrutivo, elas agem corno aqueles micrbios que ativam a dissoluo dos corpos debilitados ou dos cadveres. Sempre que o edifcio de uma civilizao est carcomido, so as multides que provocam o seu desmoronamento. ento que desempenham o seu papel. E, por um momento, a fora cega do nmero torna-se a nica filosofia da histria. Ser tambm isto que vai acontecer nossa civilizao? o que podemos recear mas que, por ora, impossvel saber. Resignemo-nos e suportemos o domnio das multides, j que mos imprevidentes foram sucessivamente derrubando todas as barreiras que ainda as podiam conter. Essas multides, de que hoje tanto se comea a falar, conhecemo-las ainda muito mal. Os psiclogas profissionais viveram afastados delas, sempre as ignoraram e, quando delas se ocuparam, foi apenas para se debruarem sobre os crimes que elas podem cometer. No h dvida que existem multides criminosas, mas h tambm as multides virtuosas, as multides heroicas e tantas outras. Os crimes das multides so apenas um caso particular da sua psicologia e, atravs deles, no podemos conhecer a sua constituio mental, tal como no podemos conhecer um indivduo apenas pela descrio dos seus vcios. A bem dizer, os senhores do mundo, os fundadores de religies e de imprios, os apstolos de todas as crenas, os homens de Estado eminentes e, numa esfera mais modesta, os simples dirigentes de pequenas coletividades humanas, sempre foram psiclogos inconscientes que possuam um conhecimento instintivo, mas muitas vezes bastante exato, da alma das multides. E por a conhecerem bem que facilmente se tornaram os seus senhores. Napoleo compreendia maravilhosamente a alma das multides francesas mas, por vezes, mostrava total ignorncia quanto s multides dos outros povos1. Esta ignorncia levou-o a empreender, particularmente em Espanha e na Rssia, as guerras que preparariam a sua queda. O conhecimento da psicologia das multides constitui o recurso de todo o homem de Estado que quer, no digo govern-las o que hoje em dia se tornou bastante difcil mas, pelo menos, no se deixar governar completamente por elas.

1 Nem os seus mais perspicazes conselheiros conseguiram compreend-las melhor. Talleyrand escrevia-lhe dizendo que a Espanha receberia os seus

soldados como libertadores. E afinal recebeu-os como animais ferozes, reao que qualquer psiclogo conhecedor dos instintos hereditrios da raa teria decerto previsto.

O estudo dessa psicologia mostra at que ponto limitada a ao que as leis e as instituies exercem sobre a sua natureza impulsiva e como as multides so totalmente incapazes de ter qualquer opinio para alm daquelas que lhes so sugeridas. No so as regras baseadas na equidade terica pura que as podem guiar, necessrio impressionlas para as seduzir. Se um legislador quiser, por exemplo, lanar um novo imposto, dever optar pelo que teoricamente mais justo? De maneira nenhuma. O mais injusto pode ser, na prtica, o melhor para as multides se for o menos perceptvel e, aparentemente, o menos pesado. por isso que um imposto indireto, mesmo quando exorbitante, sempre facilmente aceite pela multido. Como pago, em pequenas fraes, nos objetos de consumo dirio, no chega a perturbar os hbitos nem causa impresso. Mas se o substituirmos por um imposto proporcional sobre os salrios, ou outros rendimentos, para ser pago de uma s vez, levanta-se imediatamente um coro de protestos, ainda que o novo imposto seja dez vezes menos pesado do que o outro. Neste caso, em vez das pequenas fraes invisveis, pagas dia a dia, torna-se necessrio despender uma nova soma, relativamente elevada, que, por isso mesmo, parece impressionante. S passaria despercebida se tivesse sido posta de parte aos poucos, mas esse procedimento implica uma dose de esprito de previdncia econmica de que as multides so totalmente incapazes. O exemplo to simples que acabmos de dar ilustra bem a mentalidade das multides. Essa mentalidade no escapou a um psiclogo como Napoleo, mas os legisladores, esses, continuam a no a compreender porque nada sabem dela. A experincia ainda no lhes ensinou que os homens no se deixam guiar pelas prescries da razo pura. A psicologia das multides pode aplicar-se em campos muito diversos. O seu conhecimento traz uma luz imensa a numerosos fenmenos histricos e econmicos que, sem ela, permaneceriam quase totalmente ininteligveis. O estudo da psicologia das multides deve fazer-se, quanto mais no seja, por mera curiosidade, pois tem tanto interesse descobrir as motivaes das aes dos homens, como estudar um mineral ou uma planta. O estudo que iremos apresentar da alma das multides ser necessariamente uma sntese, um simples resumo das investigaes que temos realizado. Dele apenas se podem esperar algumas ideias sugestivas. Outros o levaro mais longe. Ns, hoje, limitamo-nos a abrir os primeiros sulcos num terreno at agora inexplorado1 .1 Os poucos autores que, at hoje, se ocuparam da psicologia das multides fizeram-no, como j tive ocasio de dizer, apenas do ponto de vista da

criminalidade. Como a este aspecto dediquei apenas um pequeno captulo, aconselho o leitor a consultar os estudos de Tarde e o opsculo de Sighele, Les foules crminelles. Este ltimo trabalho no apresenta uma s ideia original do autor, mas constitui uma compilao de fatos extremamente teis para os psiclogos. As minhas concluses sobre a criminalidade e a moralidade das multides so alis totalmente opostas s dos dois escritores que acabo de citar.

Nas minhas diversas obras, sobretudo em Psychologie du socialisme, encontram-se algumas consequncias das leis que regem a psicologia das multides, que se aplicam a assuntos muito diferentes. A. Gevaert, diretor do Conservatrio Real de Bruxelas, descobriu recentemente uma aplicao notvel das leis que expus num trabalho sobre a msica, arte que ele muito justamente classifica como a arte das multides. Foram as suas duas obras, escreveu-me este eminente professor quando me enviou o seu relatrio, que me deram a soluo para um problema que, at agora, considerava insolvel: a espantosa aptido das multides para sentirem uma obra musical, recente ou antiga, nacional ou estrangeira, simples ou complicada, desde que seja apresentada numa boa execuo, com artistas dirigidos por maestro entusiasta. Gevaert demonstra admiravelmente porque que uma obra, que no foi compreendida por msicos notveis que leram a partitura no isolamento dos seus gabinetes, por vezes imediatamente apreendida por um auditrio alheio a toda a cultura tcnica. Explica tambm claramente as razes pelas quais estas impresses estticas no deixam quaisquer vestgios.

CAPTULO PRIMEIROCARACTERSTICAS GERAIS DAS MULTIDES LEI PSICOLGICA DA SUA UNIDADE MENTAL O que, do ponto de vista psicolgico, constitui uma multido. Uma aglomerao numerosa de indivduos no chega para formar uma multido. Caractersticas especiais das multides psicolgicas. Orientao fixa das ideias e dos sentimentos nos indivduos que as compem e apagamento da sua personalidade. A multido sempre dominada pelo inconsciente. Desaparecimento da vida cerebral e predominncia da vida medular. Diminuio da inteligncia e transformao completa dos sentimentos. Os sentimentos transformados podem ser melhores ou piores do que os dos indivduos que constituem a multido. A multido toma-se to facilmente heroica como criminosa. No sentido comum, a palavra multido significa um conjunto de indivduos, seja qual for a sua nacionalidade, profisso ou sexo, e independentemente das circunstncias que os renem. Do ponto de vista psicolgico, a palavra multido tem um sentido totalmente diferente. Em determinadas circunstancias, e apenas nessas, um agrupamento de indivduos adquire caracteres novos, bem diversos dos caracteres de cada um dos indivduos que o compem. A personalidade consciente desvanece-se e os elementos e as ideias de todas as unidades so orientados numa direo nica. Forma-se uma alma

coletiva, sem dvida transitria, mas que apresenta caracteres bem definidos. A coletividade transforma-se ento no que, falta de expresso mais adequada, chamarei uma multido organizada ou, se preferirem, uma multido psicolgica. Passa a constituir um ser nico e fica submetida lei da unidade mental das multides. O fato de muitos indivduos se encontrarem ocasionalmente lado a lado no lhes confere os caracteres de uma multido organizada. Efetivamente, mil indivduos reunidos ao acaso numa praa pblica, sem qualquer fim determinado, no constituem de modo algum uma multido psicolgica. Para adquirirem caracteres especficos necessria a influncia de certos excitantes cuja natureza iremos determinar. O desaparecimento da personalidade consciente e a orientao dos sentimentos e dos pensamentos num mesmo sentido, primeiras caractersticas da multido que se organiza, nem sempre implicam a presena simultnea de vrios indivduos no mesmo lugar. Milhares de indivduos separados podem, em dado momento, sob a influncia de certas emoes violentas, por exemplo de um grande acontecimento nacional, adquirir os caracteres de uma multido psicolgica. Bastar que um acaso qualquer os rena, para que a sua conduta adquira imediatamente as caractersticas especiais dos atos das multides. Em certos momentos da histria, uma meia dzia de homens pode constituir uma multido psicolgica, ao passo que centenas de indivduos reunidos acidentalmente podem no a constituir. Por outro lado, um povo inteiro, sem que haja aglomerao visvel, pode por vezes, em consequncia de determinada influncia, tornar-se uma multido. A multido psicolgica, logo que se constitui, adquire caracteres gerais provisrios mas bem determinveis. A estes caracteres gerais vo juntar-se caracteres particulares, que variam conforme os elementos que compem a multido e que podem modificar-lhe a estrutura mental. As multides psicolgicas so, pois, susceptveis de classificao e o estudo dessa classificao ir mostrar-nos que uma multido heterognea, composta de elementos dissemelhantes, e as multides homogneas, compostas de elementos mais ou menos semelhantes (castas, seitas e classes), apresentam caracteres comuns e, ao lado deles, caracteres particulares que permitem diferenci-las. Antes de tratarmos dos diferentes tipos de multides, iremos examinar os caracteres que so comuns a todas elas. Procederemos como o naturalista que comea por determinar os caracteres gerais dos indivduos de uma famlia e, s depois, trata dos caracteres particulares que permitem diferenciar os gneros e as espcies que integram essa famlia. A alma das multides no fcil de descrever porque a sua organizao varia, no

apenas conforme a raa e a composio das coletividades, mas tambm de acordo com a natureza e o grau dos estmulos a que esto sujeitas. Alis, surge-nos esta mesma dificuldade quando encetamos o estudo psicolgico de qualquer indivduo. Nos romances que os indivduos se apresentam com um carter constante, mas na vida real isso no acontece. S a uniformidade dos meios gera a uniformidade aparente dos caracteres. J tive ocasio de provar que todas as constituies mentais possuem virtualidades caracterolgicas que se podem revelar sob a influncia de uma brusca mudana de meio. Foi assim que, entre os mais ferozes Convencionais da Revoluo Francesa, se encontraram inofensivos burgueses que, em circunstncias normais, teriam sido pacficos notrios ou virtuosos magistrados. Passada a tempestade, retomaram o seu carter normal e Napoleo encontrou neles os seus mais dceis servidores. Como no podemos estudar aqui todas as etapas da formao das multides, iremos examin-las sobretudo na fase da sua j completa organizao. Veremos aquilo que podem ser, mas no aquilo que j so. apenas nesta fase j adiantada de organizao que, ao fundo invarivel e dominante da raa, se sobrepem certos caracteres novos e especficos que orientam numa direo nica todos os sentimentos e pensamentos da coletividade. S ento se manifesta a lei psicolgica da unidade mental das multides, que j tive ocasio de mencionar. Certos caracteres psicolgicos das multides so comuns aos dos indivduos isolados; outros, pelo contrrio, s se encontram nos agrupamentos. So esses caracteres especiais que iremos estudar primeiramente, a fim de realarmos a sua importncia. O que h de mais impressionante numa multido o seguinte: quaisquer que sejam os indivduos que a compem, sejam quais forem as semelhanas ou diferenas no seu gnero de vida, nas suas ocupaes, no seu carter ou na sua inteligncia, o simples fato de constiturem uma multido concede-lhes uma alma coletiva. Esta alma f-los sentir, pensar e agir de uma maneira diferente do modo como sentiriam, pensariam e agiriam cada um isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos s surgem e se transformam em atos nos indivduos em multido. A multido psicolgica um ser provisrio, composto de elementos heterogneos que, por momentos, se uniram, tal como as clulas que se unem num corpo novo formam um ser que manifesta caracteres bem diferentes daqueles que cada uma das clulas possui. Contrariamente opinio de um filsofo to arguto como Herbert Spencer, no agregado que constitui uma multido no encontramos de modo algum uma soma ou uma mdia dos seus elementos, mas sim uma combinao e criao de caracteres novos. Tal como na qumica, certos elementos, postos em presena uns dos outros, as bases e os cidos por exemplo, combinam-se para formarem um corpo novo dotado de propriedades

diferentes das dos corpos que entraram na sua composio. fcil verificar como o indivduo em multido difere do indivduo isolado; mas j as causas que do origem a tal diferena so mais difceis de determinar. Para as podermos pelo menos entrever necessrio, primeiro, ter presente esta observao da psicologia moderna: no somente na vida orgnica, mas tambm no funcionamento da inteligncia, que os fenmenos inconscientes desempenham um papel preponderante. A vida consciente do esprito representa apenas uma pequena parte comparada com a vida inconsciente. O mais hbil analista ou o mais perspicaz observador no consegue descobrir seno um pequeno nmero de motivaes. Os nossos atos conscientes provm de um substrato inconsciente constitudo sobretudo de influncias hereditrias. Este substrato contm os inumerveis resduos ancestrais que constituem a alma da raa. Por detrs das causas confessadas dos nossos atos, encontram-se sempre causas secretas, que ns prprios ignoramos. A maioria das nossas aes quotidianas so a consequncia dos motivos ocultos que escapam nossa conscincia. sobretudo pelos elementos inconscientes que formam a alma de uma raa que todos os indivduos dessa raa se assemelham, e pelos elementos conscientes, resultantes da educao mas, principalmente, de uma hereditariedade excepcional, que eles se distinguem. Homens completamente diferentes pela sua inteligncia tm instintos, paixes e sentimentos por vezes idnticos. Mesmo os homens mais eminentes raramente ultrapassam o nvel dos indivduos vulgares em tudo o que seja matria de sentimento: religio, poltica, moral, afeies, antipatias, etc. Entre um matemtico clebre e o seu sapateiro poder existir um abismo do ponto de vista intelectual, mas quanto ao carter e s crenas de cada um a diferena muitas vezes nula ou muito pequena. Ora so estas qualidades gerais do carter, regidas pelo inconsciente e possudas quase no mesmo grau pela maioria dos indivduos normais de uma raa, que se encontram em comum nas multides. Na alma coletiva desaparecem as aptides intelectuais dos homens e, por consequncia, as suas individualidades. O homogneo absorve o heterogneo e as qualidades inconscientes passam a dominar. esta comunidade de qualidades vulgares que explica que as multides no possam realizar atos que exijam uma inteligncia elevada. As decises de interesse geral tomadas por uma assembleia de homens distintos, mas com diferentes especialidades, no so sensivelmente superiores s decises tomadas por um grupo de imbecis, pois esses homens s conseguem associar qualidades medocres que toda a gente possui; as multides no podem acumular a inteligncia mas somente a mediocridade. No toda a gente, como muitas vezes se repete, que tem mais esprito do que Voltaire, mas sim Voltaire que tem

com certeza mais esprito do que toda a gente, se este toda a gente representa as multides. Todavia, se os indivduos em multido se limitassem a tornar comuns as suas qualidades vulgares, estabelecer-se-ia apenas uma mdia e no haveria, como j dissemos, a criao de novos caracteres. Como se criam ento esses caracteres? o que tentaremos agora descobrir. So diversas as causas que determinam a apario de caracteres especiais nas multides. A primeira que o indivduo em multido adquire, pelo simples fato do seu nmero, um sentimento de poder invencvel que lhe permite ceder a instintos que, se estivesse sozinho, teria forosamente reprimido. E ceder tanto mais facilmente quanto, por a multido ser annima e por consequncia irresponsvel, mais completamente desaparece o sentimento de responsabilidade que sempre retm os indivduos. A segunda causa, o contgio mental, intervm igualmente para determinar nas multides a manifestao de caracteres especiais e, ao mesmo tempo, a sua orientao. O contgio mental um fenmeno fcil de observar mas que, at hoje, ainda no foi explicado e que preciso relacionar com os fenmenos de carter hipntico que iremos agora estudar. Numa multido, todos os sentimentos, todos os atos so contagiosos e sono a ponto de o indivduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Trata-se de uma aptido que contrria natureza do homem e de que ele s capaz quando faz parte de uma multido. Uma terceira causa, e de longe a mais importante, o poder de sugesto, determina nos indivduos em multido caracteres especiais que so por vezes bastante opostos aos do indivduo isolado. Alis o contgio mental, j referido acima, no passa de um efeito desse poder da sugesto. Para compreender este fenmeno necessrio ter bem presentes algumas descobertas recentes da fisiologia. Sabemos hoje que um indivduo pode ser posto num estado em que, perdida a sua personalidade consciente, obedece a todas as sugestes do operador que lha fez perder e comete atos totalmente contrrios ao seu carter e aos seus hbitos. Observaes cuidadosas parecem provar que o indivduo mergulhado durante algum tempo no seio de uma multido em atividade, e em consequncia dos eflvios que dela se desprendem, ou por qualquer outra causa ainda desconhecida, depressa se encontra num estado caracterstico que muito se assemelha com o estado de fascinao do hipnotizado nas mos do hipnotizador. Sendo paralisada a vida do crebro no hipnotizado, ele torna-se escravo de todas as suas atividades inconscientes, que o hipnotizador orienta como quer. A personalidade

consciente desaparece; a vontade e o discernimento ficam anulados. Os pensamentos e sentimentos so ento dirigidos no sentido determinado pelo hipnotizador. este, mais ou menos, o estado em que se encontra o indivduo integrado numa multido. No tem conscincia dos seus atos. Nele, tal como no hipnotizado, ao mesmo tempo que certas faculdades so destrudas, outras podem ser levadas a um grau de extrema exaltao. Sob a influncia de uma sugesto, esse indivduo pode lanar-se com irresistvel impetuosidade na execuo de certos atos. Tal impetuosidade ainda mais irresistvel nas multides do que no indivduo hipnotizado, porque, como a sugesto igual para todos os indivduos, ao tornar-se recproca, amplia-se. Os indivduos de uma multido que possuem uma personalidade bastante forte para resistirem sugesto so em nmero to diminuto que acabam por ser arrastados pela corrente. Podem, quando muito, tentar desviar-lhe o curso fazendo uma sugesto diferente e, por vezes, uma palavra adequada ou uma imagem evocada a propsito j tm conseguido evitar que as multides cometam atos sanguinrios. O desaparecimento da personalidade consciente, o predomnio da personalidade inconsciente, a orientao num mesmo sentido, por meio da sugesto e do contgio, dos sentimentos e das ideias, a tendncia para transformar imediatamente em atos as ideias sugeridas, so, portanto, os principais caracteres do indivduo em multido. Deixa de ser ele prprio para se tornar um autmato sem vontade prpria. S pelo fato de pertencer a uma multido, o homem desce vrios graus na escala da civilizao. Isolado seria talvez um indivduo culto; em multido um ser instintivo, por consequncia, um brbaro. Possui a espontaneidade, a violncia, a ferocidade e tambm o entusiasmo e o herosmo dos seres primitivos e a eles se assemelha ainda pela facilidade com que se deixa impressionar pelas palavras e pelas imagens e se deixa arrastar a atos contrrios aos seus interesses mais elementares. O indivduo em multido um gro de areia no meio de outros gros que o vento arrasta a seu bel-prazer. Assim se explica que certos jris formulem veredictos que cada jurado individualmente reprovaria e que assembleias parlamentares aprovem leis e medidas que cada um dos membros que as compem repudiaria. Tomados separadamente, os homens da Conveno eram burgueses de hbitos pacficos. Agrupados em multido, no hesitaram, influenciados por alguns chefes, em mandar para a guilhotina indivduos manifestamente inocentes; mais ainda, contrariamente a todos os seus interesses, renunciaram prpria inviolabilidade e dizimaram-se. No apenas pelos seus atos que o indivduo em multido se torna diferente de si prprio. J antes de ter perdido toda a independncia, as suas ideias e os seus sentimentos se tinham transformado, fazendo do

avarento um prdigo, do ctico um crente, do homem honesto um criminoso, do covarde um heri. A renncia a todos os privilgios, votada pela nobreza num momento de entusiasmo, naquela clebre noite de 4 de Agosto de 1789, jamais teria sido aceite por nenhum dos nobres isoladamente. Do que dissemos anteriormente, conclui-se que a multido sempre intelectualmente inferior ao indivduo mas, no que se refere aos sentimentos, aos atos que eles provocam, pode, conforme as circunstncias, ser melhor ou pior. Tudo depende da maneira como a multido sugestionada. E precisamente isso que ignoram os escritores que tm estudado as multides estritamente do ponto de vista criminal. Sem dvida que as multides so por vezes criminosas, mas tambm so muitas vezes heroicas. fcil levlas a darem a vida pelo triunfo de uma crena ou de uma ideia, entusiasm-las para a glria e para a honra, arrast-las quase sem po e sem armas, como no tempo das cruzadas, para libertarem o tmulo de um Deus das mos dos infiis, ou, como em 1793, para defenderem o solo da ptria. Estes herosmos so sem dvida um pouco inconscientes mas com eles que se faz a histria. Se s as grandes aes, friamente raciocinadas, figurassem no ativo dos povos, os anais da histria do mundo pouco teriam que registar.

CAPITULO IISENTIMENTOS E MORALIDADE DAS MULTIDES 1. Impulsividade, mobilidade e irritabilidade das multides. A multido o joguete de todas as excitaes exteriores e reflete-lhes as incessantes variaes. Os impulsos que elas sofrem so de tal modo imperiosos que apagam o interesse pessoal. Nas multides nada premeditado. A ao da raa. 2. Sugestibilidade e credulidade das multides. A sua obedincia s sugestes. As imagens evocadas no seu esprito so tomadas por realidade. Como estas imagens so semelhantes para todos os indivduos que compem uma multido. Integrados numa multido o sbio e o imbecil ficam iguais. Vrios exemplos das iluses a que todos os indivduos de uma multido esto sujeitos. Impossibilidade de acreditar no testemunho das multides. A unanimidade de muitos testemunhos a pior prova que se pode alegar para estabelecer a veracidade de um fato. Fraco valor dos livros de histria. 3. Exagero e simplismo dos sentimentos das multides. As multides desconhecem a dvida e a incerteza e so constantemente levadas a extremos. Os seus sentimentos so sempre excessivos. 4.

Intolerncia, autoritarismo e conservantismo das multides. Causas destes sentimentos. Servilismo das multides diante de uma autoridade forte. Os momentneos instintos revolucionrios das multides no as impedem de serem extremamente conservadoras. As multides so instintivamente hostis mudana e ao progresso. 5. Moralidade das multides. A moralidade das multides pode, conforme forem sugestionadas, ser muito mais baixa ou muito mais elevada que a dos indivduos que a constituem. Explicao e exemplos. As multides raramente so guiadas pelo interesse, que exclusivo do indivduo quando isolado. Papel moralizador das multides. Depois de termos indicado de um modo muito geral os principais caracteres das multides, vamos agora estud-los em pormenor. Alguns caracteres especficos das multides, a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocinar, a ausncia de juzo e de esprito crtico, o exagero dos sentimentos e outros ainda, podem igualmente encontrar-se em formas inferiores da evoluo, como o selvagem e a criana. uma analogia que assinalo de passagem, pois a sua demonstrao ultrapassaria o mbito desta obra, alm de que seria intil para quem conhece a psicologia dos primitivos e no chegaria a convencer os que a ignoram. Abordarei agora sucessivamente os diversos caracteres que facilmente se podem observar na maior parte das multides. 1. Impulsividade, mobilidade e irritabilidade das multides A multido, como ficou dito ao estudarmos os seus caracteres fundamentais, guiada quase exclusivamente pelo inconsciente. Os seus atos esto muito mais sujeitos ao da espinal medula do que do crebro. As suas aes podem apresentar-se perfeitas na execuo mas, como o crebro no as dirige, o indivduo procede segundo o acaso das excitaes. A multido o joguete de todos os estimulantes exteriores e, por isso, reflete todas as suas incessantes variaes. Ela , pois, escrava dos impulsos recebidos. O indivduo isolado pode estar submetido aos mesmos excitantes que o homem em multido, mas como a razo lhe mostra os inconvenientes de ceder sua ao, ele no cede. Fisiologicamente, pode definir-se este fenmeno como a capacidade do indivduo de dominar os seus reflexos, capacidade essa que a multido no possui. Os diversos impulsos a que as multides obedecem podem, conforme os excitantes, ser generosos ou cruis, heroicos ou pusilnimes, mas sero sempre to imperiosos que, diante deles, desaparecer at o prprio interesse da conservao. As multides so extremamente mveis porque so muitos os excitantes capazes de as sugestionar e porque elas lhes obedecem sempre. Assim, vemo-las passar, de um

momento para o outro, da ferocidade mais sanguinria generosidade ou ao herosmo mais absoluto. A multido torna-se com facilidade carrasco, mas com a mesma facilidade se faz mrtir. Foi do seu seio que sempre correram os rios de sangue exigidos pelo triunfo de todas as causas. No necessrio retrocedermos s pocas heroicas para vermos aquilo de que as multides so capazes. Nunca regateiam a vida num motim e ainda h poucos anos um general, que se tinha tomado subitamente muito popular, teria encontrado, se quisesse, cem mil homens prontos a morrerem pela sua causa 1. Nada pode ser premeditado nas multides. Sucessivamente deixam-se percorrer por toda a gama de sentimentos contrrios, sob a influncia das excitaes do momento. Assemelham-se s folhas que o vendaval levanta e espalha em todos os sentidos, para novamente as deixar cair. O estudo de certas multides revolucionrias dar-nos- alguns exemplos da variabilidade dos seus sentimentos. Esta mobilidade das multides torna-as difceis de dirigir, sobretudo quando parte dos poderes pblicos cai nas suas mos. Se as necessidades da vida quotidiana no constitussem uma espcie de regulador invisvel dos acontecimentos, as democracias no teriam possibilidade de existir. Mas as multides que querem as coisas freneticamente no as querem, contudo, durante muito tempo, pois so to incapazes de uma vontade durvel como o so de pensamento. A multido no apenas impulsiva e mvel. Tal como o selvagem, tambm ela no admite que se interponham obstculos entre o seu desejo e a realizao desse desejo, e admite-o tanto menos quanto maior for o seu nmero, o que lhe d a sensao de um poder irresistvel. Para o indivduo em multido a noo de impossibilidade desaparece. O homem isolado sabe bem que sozinho no poder incendiar um palcio ou roubar um armazm e, por isso, a tentao de o fazer nem sequer lhe aflora ao esprito. Mas, ao fazer parte de uma multido, toma conscincia do poder que o nmero lhe confere e cede imediatamente primeira sugesto de crime ou de roubo. Qualquer obstculo inesperado ser derrubado com mpeto. Se fosse possvel ao organismo humano perpetuar o furor, poder-se-ia dizer que esse era o estado normal da multido contrariada. Na irritabilidade das multides, na sua impulsividade e mobilidade, tal como em todos os sentimentos populares que iremos estudar, intervm sempre os caracteres fundamentais da raa, que constituem o terreno imutvel em que germinam os nossos sentimentos. As multides so irritveis e impulsivas, sem dvida, mas em graus muito variveis. por exemplo extraordinria a diferena entre uma multido latina e uma

1 Trata-se do general Boulanger, que, em 1886, tentou derrubar o regime republicano. (N. da T.)

multido anglo-saxnica. Os fatos recentes da nossa histria so bem elucidativos quanto a este ponto. Em 187O, bastou a publicao de um simples telegrama, que noticiava um suposto insulto, para que explodisse uma onda de furor que imediatamente deu origem a uma guerra terrvel. Alguns anos mais tarde, a notcia telegrfica de uma derrota insignificante em Langson provocou nova exploso, que levou queda instantnea do governo. Em contrapartida, a derrota bem mais grave de uma expedio inglesa em Kartum causou fraca emoo em Inglaterra e nenhum ministro foi demitido. As multides so em todo o lado femininas, mas as latinas so de todas as mais femininas. Quem nelas se apoiar poder subir muito e muito depressa, mas andar sempre beira da Rocha Tarpeia e com a certeza de, um dia, dela se precipitar. 2. Sugestibilidade e credulidade das multides Dissemos j que um dos caracteres gerais das multides uma sugestibilidade excessiva e mostrmos tambm como a sugesto contagiosa em qualquer aglomerao humana, o que explica a rpida orientao dos sentimentos num sentido determinado. Por muito neutra que a julguemos, a multido encontra-se quase sempre num estado de ateno expectante que favorece a sua capacidade de se sugestionar. A primeira sugesto feita impe-se imediatamente por contgio a todos os crebros e estabelece logo a orientao. Nos seres sugestionados a ideia fixa tem tendncia para se transformar em acro. Quer se trate de incendiar um palcio ou de realizar uma obra de abnegao, a multido execut-lo- com a mesma facilidade. Tudo depender da natureza do excitante e no, como no indivduo isolado, da relao que possa existir entre o ato sugerido e as razes que se oponham sua realizao. Assim, aflorando sempre os limites da inconscincia, submetendo-se a todas as sugestes, animada da violncia de sentimentos prpria dos seres que no podem apelar para a influncia da razo, destituda de esprito crtico, a multido no pode deixar de ser de uma credulidade excessiva. Para ela o inverossmil no existe e necessrio no o esquecermos para podermos compreender a facilidade com que se criam e se propagam as mais espantosas lendas e narrativas1. A criao das lendas, que to facilmente circulam entre as multides, no apenas o resultado de uma total credulidade mas tambm das prodigiosas deformaes que sofrem os acontecimentos na imaginao dos indivduos quando aglomerados. O acontecimento mais simples, visto pela multido, logo fica deturpado. A multido pensa por imagens e a

1 As pessoas que assistiram ao cerco de Paris (em 187O) viram numerosos exemplos desta credulidade das multides em coisas completamente

inverossmeis. Uma vela que se acendia no andar superior de uma casa era imediatamente considerada como um sinal para os sitiantes. No entanto, dois segundos de reflexo bastariam para mostrar que era materialmente impossvel ver-se a luz de uma vela a vrias lguas de distncia.

imagem evocada evoca, por sua vez, muitas outras que nenhuma relao lgica tm com a primeira. Perceberemos facilmente esse estado, se pensarmos nas inslitas sucesses de ideias a que por vezes somos levados quando evocamos um fato qualquer. A razo mostra-nos a incoerncia de tais imagens, mas a multido no se apercebe dela e, por isso, tudo o que a sua imaginao deformadora acrescentar ao acontecimento ser confundido com o prprio acontecimento. Incapaz de estabelecer a separao entre o subjetivo e o objetivo, a multido aceita como reais as imagens evocadas no seu esprito e que, a maior parte das vezes, s tm uma relao longnqua com o fato observado. As deformaes sofridas por um acontecimento, de que a multido testemunha, deviam, ao que parece, ser inmeras e de sentidos diversos, por serem de temperamentos muito variados os indivduos que as compem. Mas no assim. Como consequncia do poder de contgio, essas deformaes acabam por ser da mesma natureza e ter o mesmo sentido em todos os indivduos da coletividade. A primeira deformao percebida por um deles constitui como que o ncleo da sugesto contagiosa. Antes de aparecer a todos os cruzados nas muralhas de Jerusalm, S. Jorge foi com certeza visto apenas por um dos assistentes e, por meio da sugesto e do contgio, o milagre foi imediatamente aceite por todos. sempre este o mecanismo das alucinaes coletivas, to frequentes na histria e que parecem ter todos os caracteres clssicos de autenticidade, pois so fenmenos verificados por milhares de pessoas. A qualidade mental dos indivduos que constituem a multido em nada contradiz este princpio. Com efeito, essa qualidade no tem qualquer importncia neste caso. A partir do momento em que se integram numa multido, tanto o ignorante como o sbio ficam igualmente incapazes de ter qualquer poder de observao. Esta tese pode parecer paradoxal e para a demonstrar seria necessrio relatarmos numerosos fatos histricos, o que encheria vrios volumes. Mas, como no queremos deixar o leitor com a impresso de que fazemos afirmaes sem termos provas, vamos apresentar alguns exemplos tomados ao acaso entre todos os que poderamos citar. O fato que vamos relatar um dos mais tpicos porque foi escolhido entre as alucinaes coletivas que grassaram numa multido onde se encontravam indivduos de todas as espcies, ignorantes e instrudos. Foi incidentalmente narrado pelo tenente da marinha Julien Flix no livro que escreveu sobre as correntes do mar. A fragata La Belle-Poule navegava com o fim de encontrar a corveta Le Berceau, da qual uma violenta tempestade a tinha separado. Era dia claro e o Sol brilhava. De repente o vigia assinalou uma embarcao deriva. A tripulao olhou na

direo indicada e todos, oficiais e marinheiros, viram nitidamente uma jangada carregada de homens que mostravam sinais de desespero. O almirante Desfosss mandou aparelhar uma embarcao para ir socorrer os nufragos. Ao aproximarem-se, os marinheiros e oficiais que a tripulavam viram massas de homens agitarem-se e estenderem as mos e ouviram o rudo surdo e confuso de grande nmero de vozes. Chegados junto da pretensa jangada, encontraram apenas alguns ramos de rvores cobertos de folhas que a tempestade arrancara costa prxima. Perante um fato to evidente, a alucinao desfezse. Este exemplo torna bem claro o mecanismo da alucinao coletiva tal como ns o explicmos. De um lado, temos a multido em estado de ateno expectante; do outro, a sugesto provocada pelo vigia, ao assinalar um barco abandonado no mar, sugesto que foi aceite, por contgio, por todos os presentes, oficiais e marinheiros. Uma multido no precisa de ser numerosa para que seja destruda a sua faculdade de ver as coisas corretamente e para que os fatos reais sejam substitudos por alucinaes sem qualquer relao com eles. Alguns indivduos reunidos constituem uma multido e, nem que sejam ilustres sbios, adquirem logo todos os caracteres das multides em tudo o que esteja fora do mbito da sua especialidade. A faculdade de observao e de esprito crtico, que cada um individualmente possui, desaparece imediatamente. Davey, um psiclogo arguto, d-nos um exemplo bem curioso, publicado pelos Annales des sciences psychiques, e que merece ser aqui relatado. Davey tinha convocado uma reunio de ilustres observadores, entre os quais se encontrava um dos mais eminentes sbios de Inglaterra, Wallace, e depois de os deixar examinar alguns objetos e marc-los onde queriam, executou diante deles todos os fenmenos clssicos do espiritismo, materializao dos espritos, escrita em ardsias, etc. Depois de ter conseguido que esses notveis espectadores lhe escrevessem relatrios em que afirmavam que os fenmenos observados s podiam dever-se a meios sobrenaturais, revelou--lhes que eram apenas o resultado de truques muito simples. O mais espantoso da investigao de Davey, escreve o autor do artigo, no o maravilhoso dos truques em si, mas a extrema fraqueza dos relatrios dos no iniciados. Portanto, acrescenta, as testemunhas podem fazer numerosas narraes positivas, que so completamente erradas, mas que tm por resultado, se aceitarmos as suas descries como verdadeiras, os fenmenos descritos passarem a ser inexplicveis por ilusionismo. Os mtodos inventados por Davey eram to simples que at admira que ousasse utiliz-los; mas ele tinha tal poder sobre o esprito da multido que a conseguia convencer de que estava a ver o que na realidade no via. Tratase, como sempre, do poder do hipnotizador sobre o hipnotizado. Mas quando vemos esse

poder exercer-se sobre espritos superiores e antecipadamente desconfiados, apercebemonos da facilidade com que se podem iludir as multides vulgares. So inmeros os exemplos anlogos a este. H alguns anos, os jornais publicaram a histria de duas meninas que se afogaram e foram retiradas do Sena. Essas crianas foram primeiro categoricamente reconhecidas por uma dzia de testemunhas. Perante afirmaes to unnimes, no subsistiu qualquer dvida no esprito do juiz de instruo que mandou lavrar a respectiva certido de bito. Mas, quando as crianas iam ser enterradas, o acaso fez descobrir que as supostas vtimas estavam vivas e que a semelhana entre elas e as afogadas era muito vaga. Aqui, como nos exemplos anteriormente citados, a afirmao da primeira testemunha, vtima de uma iluso, foi o bastante para sugestionar todas as outras. Em casos como estes o planto de partida da sugesto sempre a iluso criada num indivduo por reminiscncia mais ou menos vagas e, em seguida, o contgio por meio da afirmao da primitiva iluso. Se o primeiro observador muito impressionvel, bastar que o cadver que julga reconhecer apresente qualquer particularidade, uma cicatriz, um pormenor do fato, capaz de evocar nele a ideia de uma outra pessoa, sem que seja necessrio haver ou no uma semelhana real. Esta ideia evocada torna-se ento o ncleo de uma espcie de cristalizao que invade o domnio do entendimento e paralisa toda a capacidade crtica. O que o observador v ento j no o objeto em si, mas a imagem evocada no seu esprito. assim que se explicam os reconhecimentos errados de cadveres de crianas, feitos pela prpria me, tal como no caso que vamos relatar a seguir, j antigo, mas que nos permite ver manifestarem-se precisamente os dois graus de sugesto, cujo mecanismo acabei de expor. A criana foi reconhecida por outra criana, que na realidade se enganou. A partir da sucederam-se reconhecimentos errados. E assistiu-se a uma coisa extraordinria. No dia a seguir quele em que o estudante o tinha reconhecido, uma mulher exclamou: "Meu Deus, o meu filho!" Levaram-na junto do cadver, examinou-o o verificou que tinha uma cicatriz na testa. "Sim, o meu pobre filho, que desapareceu em Julho do ano passado. Roubarammo e mataram-no!" A mulher era porteira na Rua do Forno e chamava--se Chavandret. Chamaram o cunhado, que afirmou sem hesitao: "Sim, o pequeno Philibert." Vrios moradores da mesma rua reconheceram tambm a criana como Philibert Chavandret e o mesmo aconteceu com o prprio professor, para quem a medalha que o pequeno tinha era um

indcio seguro. Pois bem, os vizinhos, o cunhado, o professor e a me enganaram-se todos. Seis semanas mais tarde foi descoberta a identidade da criana. Era natural de Bordus, tinha sido assassinada em Bordus e trazida depois para Paris1. Devemos notar que estes reconhecimentos so geralmente feitos por mulheres e crianas, quer dizer, precisamente pelos seres mais impressionveis, e mostram bem o valor que, em justia, podemos atribuir a tais testemunhos. As afirmaes feitas por crianas, principalmente, no deviam nunca ser invocadas. Os magistrados repetem, como um lugar-comum, que as crianas no mentem. Se possussem uma cultura psicolgica menos limitada, esses homens saberiam que, ao contrrio do que afirmam, na infncia que mais se mente. Claro que a mentira inocente, mas no deixa por isso de ser mentira. Mais valia condenar-se um acusado atirando uma moeda ao ar do que faz-lo, como tantas vezes se fez j, tomando por base o testemunho de uma criana. Voltando s observaes feitas pelas multides, somos levados a concluir que as observaes coletivas so sem dvida as mais erradas e traduzem, quase sempre, a simples iluso de um indivduo que, por contgio, sugestionou os outros. So inmeros os fatos que nos mostram que o testemunho das multides nos deve merecer a maior desconfiana. Milhares de homens assistiram clebre carga de cavalaria da batalha de Sedan e, mesmo assim, no possvel saber-se quem a comandou, devido a serem to contraditrios os testemunhos. Num livro recente, o general ingls Wolseley demonstrou que at hoje se tm cometido os mais graves erros a respeito dos fatos mais importantes da batalha de Waterloo, fatos esses que, no entanto, foram atestados por centenas de pessoas2. Todos estes exemplos nos mostram, repito, o que vale o testemunho das multides. Os tratados de lgica integram a unanimidade de numerosos testemunhos na categoria das provas mais slidas da exatido de um fato. Mas o que sabemos da psicologia das multides mostra--nos bem como esses compndios esto enganados neste ponto. Os acontecimentos mais duvidosos so certamente os que foram observados pelo maior nmero de pessoas. Afirmar que um fato foi presenciado simultaneamente por milhares de testemunhas equivale a dizer que o fato real geralmente muito diferente daquilo que foi1 2

clair, 21 de Abril de 1895.

Saberemos ns porventura o que se passou numa nica batalha que seja? Tenho fortes dvidas. Sabemos quem foram os vencedores e os vencidos, mas talvez nada mais. O que Harcourt, ator e testemunha, relata da batalha de Solferino pode aplicar-se a todas as batalhas: Os generais (naturalmente informados por centenas de testemunhas) elaboram os seus relatrios oficiais; os oficiaisencarregados de levar as ordens modificam estes documentos e redigem o texto definitivo; o chefe de estado-maior discorda e f-lo de novo. Levamno ao marechal que exclama: "Estais completamente enganados!", e d nova redao ao texto. Do relatrio primitivo quase nada resta. Harcourt narra este fato como uma prova de que impossvel estabelecer-se a verdade sobre um acontecimento, ainda que ele tenha sido de grande importncia e observado por muita gente.

relatado. Do que ficou dito depreende-se claramente que os livros de histria devem ser considerados como obras de pura imaginao. So relatos fantasistas de fatos mal observados, acompanhados de explicaes forjadas posteriormente. Se o passado no nos tivesse legado as suas obras literrias, artsticas e monumentais, nada de real poderamos conhecer dele. Sabemos por acaso alguma coisa verdadeira sobre a vida dos grandes homens que desempenharam papis 'de relevo na histria da humanidade, como Hrcules, Buda, Jesus ou Maom? Provavelmente, no. Alis, no fundo, a vida deles pouco nos importa. Os homens que impressionaram as multides foram heris lendrios e no verdadeiros heris. Infelizmente, tambm as lendas no tm qualquer consistncia. A imaginao das multides transforma-as continuamente de acordo com as pocas e, principalmente, de acordo com as raas. grande a distncia que vai do Jeov sanguinrio da Bblia ao Deus todo amor de Santa Teresa, e o Buda adorado na China no He parece em nada com o que venerado na ndia. Nem sequer preciso que os sculos passem sobre os heris para que a imaginao das multides lhes transforme a lenda. Por vezes essa transformao faz-se em poucos anos. Na nossa poca vimos a 'lenda de um dos maiores heris histricos modificar-se vrias vezes em menos de cinquenta anos. No tempo dos Bourbons, Napoleo tornou-se um filantropo, um 'liberal, um ser quase idlico, amigo dos pobres, que, no dizer dos poetas, nas suas choupanas o recordariam por muitos anos. Trinta anos depois, o heri bom e terno torna-se um dspota sanguinrio, usurpador do poder e da liberdade, que sacrificara trs milhes de homens sua ambio. Atualmente a lenda continua a transformar-se. E quando alguns sculos tiverem passado sobre ela, os sbios do futuro, perante essas narrativas contraditrias, poro talvez em dvida a existncia do heri, como ns pomos em dvida a de Buda, e vero nele apenas um mito solar ou um desenvolvimento da lenda de Hrcules. Contudo, facilmente se consolaro dessa incerteza porque, mais iniciados do que ns na psicologia das multides, ho-de saber que a histria s pode eternizar os mitos. Os bons ou maus sentimentos manifestados por uma multido apresentam a dupla caracterstica de serem muito simples e muito exagerados. Neste ponto, como em muitos outros, o indivduo em multido assemelha-se aos seres primitivos. Incapaz de graduaes, encara as coisas em Moco e desconhece as transies. Na multido, o exagero de um sentimento que rapidamente se propaga por sugesto e contgio consideravelmente fortalecido pela aprovao geral que suscita.

3. Exagero e simplismo dos sentimentos das multides A simplicidade e o exagero dos sentimentos colocam as multides ao abriga da dvida e da incerteza e, como as mulheres, das passam imediatamente aos extremos. Uma suspeita esboada logo se transforma numa evidncia indiscutvel. Um comeo de antipatia ou desaprovao que, no indivduo isolado, permaneceria pouco acentuado, na multido passa a ser um dio feroz. A violncia dos sentimentos das multides, e sobretudo das multides heterogneas, ainda ampliada pela ausncia de responsabilidade. A certeza da impunidade, tanto mais forte quanto mais numerosa for a multido, e a noo de um poder momentneo bastante considervel, devido ao nmero, tornam possveis no grupo sentimentos e atos que eram impossveis no indivduo isolado. Nas multides, o imbecil, o ignorante e o invejoso, libertam-se do sentimento da sua nulidade e da sua impotncia, que substitudo pela conscincia de uma fora brutal, passageira mas imensa. O exagero nas multides incide muitas vezes sobre os maus sentimentos, restos atvicos dos instintos do homem primitivo, que o receio do castigo obriga o indivduo isolado e responsvel a reprimir. Assim se explica a facilidade com que as multides so levadas aos piores excessos. Mas, habilmente sugestionadas, as multides tornam-se capazes de herosmo e dedicao, muito mais capazes at do que o indivduo isolado. Ao estudarmos a moralidade das multides teremos ocasio de voltar a este assunto. Como a multido s se deixa impressionar por sentimentos excessivos, o orador que a quiser seduzir ter de usar e abusar das afirmaes violentas. Exagerar, afirmar, repetir e nunca tentar demonstrar o que quer que seja pelo raciocnio, so os processos de argumentao utilizados pelos oradores das reunies populares. A multido exige ainda os mesmos exageros nos sentimentos dos heris cujas qualidades e virtudes aparentes devem ser sempre ampliadas. Tambm no teatro a multido quer que o heri da pea possua virtudes tais, uma coragem e uma moralidade to fortes, que na vida real elas nunca se podem encontrar. Tem-se falado com razo da ptica especial do teatro. Claro que ela existe, mas as suas regras, na maioria dos casos, nada tm a ver com o bom-senso e com a lgica. A arte de falar s multides de ordem inferior mas exige aptides especiais. Pela leitura, tornase por vezes difcil de explicar o xito de certas peas. Os empresrios teatrais, quando as leem, tm tambm grandes dvidas quanto ao seu xito, pois, para estarem certos dele,

seria necessrio que eles prprios se transformassem em multido1 . Se fosse possvel entrarmos em pormenores, seria fcil demonstrar tambm a influncia preponderante da raa. A pea de teatro que entusiasma a multido num pas um fracasso noutro, ou alcana apenas um xito de estima e conveno, porque no pe em jogo as molas capazes de entusiasmar o seu novo pblico. Intil ser acrescentar que o exagero das multides incide unicamente nos sentimentos e de modo algum na inteligncia. Pelo simples fato de estar inserido na multido, o nvel intelectual do indivduo, como j demonstrei, baixa consideravelmente. O escritor Tarde verificou o mesmo fenmeno ao investigar os crimes das multides. , pois, apenas no plano sentimental que as multides podem subir muito alto ou, pelo contrrio, descer muito baixo. 4. Intolerncia, autoritarismo e conservantismo das multides As multides apenas conhecem os sentimentos simples e extremos, e, nesse sentido, aceitam ou recusam em bloco as opinies, as ideias e as crenas que lhes so sugeridas, considerando-as verdades absolutas ou erros igualmente absolutos. o que sempre acontece com todas as crenas que tm origem na sugesto, em vez de terem sido determinadas pelo raciocnio. Todos sabemos como as crenas religiosas so intolerantes e conhecemos o poder desptico que elas exercem sobre as almas. Como no tem qualquer dvida sobre o que julga ser uma verdade ou um erro e possui, por outro lado, a noo clara da sua fora, a multido to autoritria quanto intolerante. O indivduo capaz de aceitar a contradio e a discusso; a multido nunca as tolera. Em reunies pblicas, a mais leve contradio por parte de um orador imediatamente recebida com gritos de fria e violentas invectivas, logo passadas a vias de fato e at de expulso se o orador tiver a imprudncia de insistir. Sem a presena inquietante dos agentes da autoridade, o contraditor acabaria muitas vezes por ser linchado. O autoritarismo' e a intolerncia so gerais em todos os tipos de multides mas variam muito de grau; e aqui, mais uma vez, entra em jogo a noo fundamental da raa, dominadora dos sentimentos e dos pensamentos dos homens. O autoritarismo e a intolerncia esto especialmente desenvolvidos nas multides latinas e de tal maneira que destruram nelas o sentimento de independncia individual, to acentuado nos anglosaxes. As multides latinas s so sensveis independncia coletiva da seita a que1 isso que explica que certas peas, recusadas por todos os empresrios teatrais, alcancem fabulosos xitos quando por acaso so representadas. conhecido o xito da pea de Coppe, Pour La couronne, que foi recusada durante dez anos pelos melhores teatros, apesar do nome do seu autor. La

marraine de Charley, montada custa de um corretor de fundos, depois de ter sido sucessivamente rejeitada, conseguiu duzentas representaes em Frana e mais de mil em Inglaterra. Se no tivssemos j explicado a impossibilidade em que se encontram os empresrios teatrais de se colocarem mentalmente no lugar da multido, tais aberraes crticas seriam incompreensveis em indivduos competentes e interessados em no cometerem erros to graves.

pertencem, e a caracterstica dessa independncia a necessidade de sujeitarem imediata e violentamente s suas crenas todos os dissidentes. Nos povos latinos, os jacobinos de todos os tempos, desde os da Inquisio, no puderam nunca elevar-se a outra concepo de liberdade. O autoritarismo e a intolerncia so, para as multides, sentimentos muito claros, e suportam-nos com a mesma facilidade com que os praticam. Respeitam a fora e pouco se deixam impressionar pela bondade, que facilmente consideram como uma forma de fraqueza. As suas simpatias nunca vo para os senhores benevolentes mas para os tiranos que vigorosamente as dominaram. sempre a esses que erguem as mais belas esttuas. Quando pisam com prazer a seus ps o dspota derrubado porque, perdida a sua fora, esse dspota entrou na categoria dos fracos que se desprezam e j no se receiam. O tipo de heri querido das multides tem de ter sempre a estatura de um csar que as seduz com a sua glria, que se lhes impe com a sua autoridade e que as atemoriza com a sua espada. Sempre pronta a revoltar-se contra uma autoridade fraca, a multido curva-se servilmente perante uma autoridade forte. Se a ao da autoridade intermitente, a multido, obedecendo sempre aos sentimentos extremos, passa alternadamente da anarquia ao servilismo e do servilismo anarquia. Seria, alis, ignorar a psicologia das multides o acreditar na predominncia dos seus sentimentos revolucionrios. Neste ponto, so as suas violncias que nos iludem. O certo que as exploses de revolta e de destruio so sempre muito efmeras. Demasiado guiadas pelo inconsciente, e, por isso, submetidas influncia de hereditariedades seculares, no podem deixar de se mostrar excessivamente conservadoras. Abandonadas a si prprias, cansam-se depressa das suas desordens e encaminham-se instintivamente para a servido. Os mais orgulhosos e mais intratveis jacobinos aclamaram fervorosamente Bonaparte quando ele suprimiu todas as liberdades e fez sentir com dureza a sua mo de ferro. A histria das revolues populares quase incompreensvel se no se conhecerem os instintos profundamente conservadores das multides. Querem mudar os nomes das instituies e, para conseguirem essas mudanas, fazem por vezes revolues violentas; mas o fundo dessas instituies de tal modo a expresso das necessidades hereditrias da raa que as multides acabam sempre por voltar a elas. A incessante mobilidade das multides atua apenas sobre o que superficial. De fato, elas possuem instintos conservadores irredutveis e, como todos os primitivos, um respeito supersticioso pelas tradies, um horror inconsciente s novidades capazes de modificar as suas reais condies de existncia. Se o poder atual das democracias existisse na poca em que foram

inventadas as atividades mecnicas, a mquina a vapor e os caminhos-de-ferro, a realizao destas invenes teria sido impossvel ou apenas se faria custa de repetidas revolues. Felizmente para o progresso da civilizao, a supremacia das multides s se fez sentir quando as grandes descobertas da cincia e da indstria j se tinham realizado. 5. Moralidade das multides Se atribuirmos palavra moralidade o sentido de respeito constante por certas convenes sociais e represso permanente dos impulsos egostas, evidente que as multides so demasiado impulsivas e instveis para serem susceptveis de moralidade. Mas se o termo abranger tambm o aparecimento momentneo de certas qualidades, como a abnegao, a dedicao, o altrusmo, o auto-sacrifcio, o desejo de equidade, poderemos dizer que as multides so, pelo contrrio, susceptveis da mais elevada moralidade. Os raros psiclogos que estudaram as multides s o fizeram do ponto de vista dos seus atos criminosos e, como esses so frequentes, atriburam s multides um nvel moral muito baixo. Realmente, j muitas vezes o tm demonstrado. Mas por qu? Simplesmente porque os instintos de ferocidade destrutiva so resduos das idades primitivas que dormem no fundo de cada um de ns. Para o indivduo isolado seria perigoso entregar-se a esses instintos, mas, integrado numa multido irresponsvel, onde a impunidade est por consequncia assegurada, tem plena liberdade para os satisfazer. Como normalmente no podemos exercer esses instintos destruidores sobre os nossos semelhantes, limitamo-nos a exerc-los nos animais. A paixo pela caa e a ferocidade das multides derivam da mesma fonte. A multido que despedaa lentamente uma vtima sem defesa d provas de uma crueldade muito covarde mas que, para o filsofo, se aproxima muito da crueldade dos caadores que se renem para terem o prazer de assistir ao espetculo dos seus ces a estriparem um pobre veado. Se certo que a multido capaz de assassinar, incendiar e cometer toda a espcie de crimes, no menos certo que tambm capaz de atos de sacrifcio e de desinteresse mais elevados do que aqueles que o indivduo isolado capaz de praticar. principalmente ao indivduo em multido que se dirige a exortao dos sentimentos de glria, de honra, de religio e de ptria. A histria est cheia de exemplos anlogos s cruzadas e aos voluntrios de 1793. S as multides so capazes de grande dedicao e de grande desinteresse. Quantas se deixaram j massacrar heroicamente por ideias e crenas que mal compreendiam! As multides que fazem greves, fazem-nas mais por obedincia a uma palavra de ordem do que para conseguirem um aumento de salrio. Para elas, o interesse pessoal raramente uma motivao poderosa, ao passo que para o indivduo isolado

quase o motivo exclusivo. No foi certamente o interesse que guiou as multides em tantas guerras, geralmente incompreensveis para a sua inteligncia, nas quais se deixaram massacrar to facilmente como as cotovias hipnotizadas pelo espelho do caador. At os patifes mais refinados, s pelo fato de estarem integrados numa multido, adquirem por vezes princpios muito severos de moralidade. Taine chama a ateno para o fato de os massacrantes de Setembro1 virem colocar na mesa dos comits as carteiras e as joias que encontravam nas vtimas e facilmente poderiam roubar. A multido ululante, raivosa e miservel, que invadiu as Tulherias durante a revoluo de 1848, no se apossou de nenhum dos objetos que a fascinaram e um s desses objetos representava o po de muitos dias. Esta moralizao do indivduo pela multido no certamente uma regra constante, mas pode observar-se frequentemente e at em circunstncias menos graves do que aquelas que acabei de referir. No teatro, como j expliquei, a multido exige virtudes exageradas ao heri da pea, e o pblico, at quando constitudo por elementos inferiores, mostra-se por vezes muito austero. vulgar o estroina, o chulo ou o vadio chocarreiro murmurarem perante uma cena um pouco ousada ou menos decente, que, no entanto, completamente inocente comparada com as suas conversas habituais. Assim, as multides, que se entregam tantas vezes aos instintos mais baixos, do tambm o exemplo de atos da mais elevada moralidade. Se a abdicao, a resignao e a dedicao absoluta a um ideal quimrico ou real so virtudes morais, podemos dizer que as multides possuem por vezes essas virtudes num grau que os filsofos mais sbios raramente conseguem atingir. No h dvida de que as praticam inconscientemente, mas isso pouco importa. Se as multides se entregassem ao raciocnio e atendessem aos seus interesses imediatos, talvez nenhuma civilizao se tivesse desenvolvido superfcie da Terra e a humanidade no teria histria.

CAPITULO IIIIDIAS, RACIOCNIOS E IMAGINAO DAS MULTIDES 1. As ideias das multides. As ideias fundamentais e as ideias acessrias. Como podem subsistir simultaneamente ideias contraditrias. Transformaes que as ideias superiores devem sofrer para ficarem acessveis s multides. O papel social das ideias independente da parte de verdade que elas podem conter. 2. Os raciocnios das1 Setembro de 1792, poca do Terror. (N. da T.)

multides. As multides no se deixam influenciar por raciocnios. Os raciocnios das multides so sempre de carter muito inferior. As ideias que elas associam apenas tm uma aparncia de analogia ou de sucesso. 3. A imaginao das multides. Poder da imaginao das multides. Pensam por imagens e essas imagens sucedem-se sem nexo. As multides impressionam-se sobretudo pelo lado maravilhoso das coisas. O maravilhoso e o lendrio so os verdadeiros suportes das civilizaes.-A imaginao popular foi sempre o sustentculo do poder dos homens de Estado. Como se apresentam os fatos capazes de impressionar a imaginao das multides. 1, As ideias das multides Ao estudarmos numa outra obra o papel das ideias na evoluo dos povos, provmos que cada civilizao deriva de um limitado nmero de ideias fundamentais raramente renovadas. Expusemos ento como estas ideias se enrazam na alma das multides, a dificuldade com que penetram e a forma que possuem depois de terem penetrado. Mostrmos tambm que as grandes perturbaes histricas so causadas a maior parte das vezes por modificaes nestas ideias fundamentais. Como tratei esse assunto com pormenor, limitar-me-ei agora a dizer algumas palavras sobre as ideias acessveis s multides e as formas como elas as concebem. Podem dividir-se em duas categorias. Uma compreende as ideias acidentais e passageiras criadas sob as influncias do momento, como, por exemplo, o entusiasmo por um indivduo ou uma doutrina. outra pertencem as ideias fundamentais, a que o meio, a hereditariedade e a opinio do uma grande estabilidade, como outrora as ideias religiosas e, nos nossos dias, as ideias democrticas e sociais. Poderiam representar-se as ideias fundamentais pela massa das guas de um rio que lentamente segue o seu curso; e as ideias passageiras pelas vagas, sempre variveis, que agitam a superfcie e que, embora sem real importncia, so mais visveis do que o correr do prprio rio. Hoje em dia, as grandes ideias fundamentais de que viveram os nossos pais parecem cada vez mais vacilantes e, simultaneamente, as instituies que assentavam sobre elas veem-se profundamente abaladas. Atualmente, aparecem muito as pequenas ideias transitrias de que falei h pouco, mas poucas so as que chegam a adquirir uma influncia preponderante. Quaisquer que sejam as ideias sugeridas s multides, s se podero tornar dominantes se se revestirem de uma forma muito simples e lhes aparecerem representadas sob o aspecto de imagens. Estas ideias-imagens no se ligam entre si por nenhum lao lgico de analogia ou sucesso; podem substituir-se umas pelas outras, como os vidros da

lanterna mgica que o operador tira da caixa onde estavam guardados. Isso torna possvel observar nas multides uma sucesso de ideias totalmente contraditrias. Segundo as circunstncias do momento, a multido ficar sob a influncia de uma ou outra das ideias guardadas no seu entendimento e cometer por isso os atos mais contraditrios, sem que a sua total ausncia de esprito crtico lhe permita aperceber-se dessas contradies. Alis, isso no um fenmeno especfico das multides. Pode encontrar-se em muitos indivduos isolados, no s entre os seres primitivos, mas em todos os que deles se aproximam por qualquer caracterstica do seu esprito, como, por exemplo, os sectrios de uma f religiosa intensa. Tive oportunidade de o observar em hindus educados que estudaram nas nossas universidades europeias e tiraram os seus cursos. Ao seu fundo imutvel de ideias religiosas e sociais tinha-se sobreposto, sem minimamente as alterar, uma camada de ideias ocidentais sem qualquer ligao com as outras. Segundo as ocasies, apareciam umas ou outras, com os discursos correspondentes, e o mesmo indivduo apresentava assim as mais flagrantes contradies. Contradies mais aparentes do que reais, pois no indivduo isolado s as ideias hereditrias tm poder bastante para se tomarem verdadeiros motivos de conduta. S quando, por cruzamentos, o homem se encontra sob a influncia de impulsos de hereditariedade diferentes que os atos podem ser, de um momento para o outro, totalmente contraditrios. intil insistir sobre estes fenmenos, embora a sua importncia psicolgica seja capital. Para os chegar a compreender julgo que so precisos pelo menos dez anos de viagens e observaes. Visto que as ideias s so acessveis s multides depois de revestirem uma forma muito simples, para se tornarem populares tm de sofrer completas transformaes. Quando se trata de ideias filosficas ou cientficas um tanto elevadas, so necessrias profundas modificaes para, de degrau em degrau, descerem ao nvel das multides. Essas modificaes dependem sobretudo da raa a que pertencem as multides, mas so sempre minimizantes e simplificantes. Assim, de um ponto de vista social, no h, na realidade, hierarquia das ideias, isto , ideias mais ou menos elevadas. O simples fato de uma ideia chegar s multides e conseguir faz-las vibrar basta para despojar essa ideia de tudo quanto constitua a sua elevao e a sua grandeza. De resto, a importncia de uma ideia no est tanto no seu valor hierrquico como nos efeitos que produz. As ideias crists da Idade Mdia, as ideias democrticas do sculo passado, as ideias sociais do nosso tempo, no so decerto muito elevadas, e, filosoficamente, podemos consider-las erros lamentveis. Contudo, o seu papel foi e ser imenso, e elas durante muito tempo figuraro entre os fatores essenciais da conduta dos Estados.

Mesmo que a ideia sofra as modificaes que a tornam acessvel s multides, s atuar quando, por processos que depois estudaremos, penetrar no inconsciente e passar a ser um sentimento. Esta transformao geralmente muito demorada. Alis, no se deve acreditar que por ficar demonstrada a sua veracidade que uma ideia pode produzir os seus efeitos, mesmo nos espritos cultos. Verificamos facilmente que a mais clara demonstrao pouca influncia consegue ter na maioria dos homens. A evidncia mais patente poder ser, decerto, reconhecida por um ouvinte instrudo, mas este depressa se ver reconduzido, pelo inconsciente, s suas concepes primitivas. Poucos dias depois, usar de novo os antigos argumentos e exatamente nos mesmos termos. Na realidade, ele est sob a ao de ideias anteriores que se tomaram j sentimentos, e s essas atuam sobre os motivos profundos das nossas aes e das nossas palavras. Quando, por processos diversos, uma ideia acaba por se enraizar na alma das multides, adquire um poder irresistvel e d origem a uma cadeia de consequncias. As ideias filosficas que conduziram Revoluo Francesa levaram muito tempo at se implantarem na alma popular. Mas quando l penetraram, conhece-se bem a fora irresistvel que tiveram. O impulso de um povo inteiro para a conquista da igualdade social, para a realizao de direitos abstratos e de liberdades ideais, fez vacilar todos os tronos e alterou profundamente o mundo ocidental. Durante vinte anos, os povos precipitaram-se uns sobre os outros e a Europa conheceu hecatombes comparveis s de Gengis Kh e Tamerlo. Nunca o mundo viu to claramente o que o desencadear de ideias com capacidade para mudar os sentimentos pode provocar. Se certo que as ideias precisam de muito tempo para se estabelecerem na alma das multides, no precisam de menos tempo para de l sarem. Por isso, as multides, quanto s ideias, tm sempre um atraso de vrias geraes relativamente aos sbios e aos filsofos. Todos os homens de Estado sabem hoje como so erradas as ideias fundamentais que citmos h pouco, mas, como a sua influncia ainda muito forte, veem-se obrigados a governar seguindo princpios em cuja verdade deixaram j de acreditar. 2. Os raciocnios das multides No se pode afirmar peremptoriamente que as multides no se deixam influenciar pelo raciocnio. Mas os argumentos que utilizam e os que sobre elas atuam so, do ponto de vista lgico, de tal modo inferiores que s por analogia podem ser considerados raciocnios. Os raciocnios inferiores das multides, tal como os superiores, baseiam-se em associaes, mas as ideias associadas pelas multides s tm entre si laos aparentes de

semelhana ou sucesso. Encadeiam-se como as de um esquim que sabe que o gelo, corpo transparente, se derrete na boca e conclui por isso que o vidro, tambm transparente, dever do mesmo modo derreter-se na boca; ou como as do selvagem que acredita que comendo o corao de um inimigo corajoso fica possuidor dessa coragem, ou como as de um operrio que, por ser explorado pelo patro, conclui que todos os patres so exploradores. A associao de coisas dissemelhantes, que apenas tm relaes aparentes, e a generalizao imediata de casos particulares so as caractersticas da lgica coletiva. So associaes deste tipo que so sempre apresentadas s multides pelos oradores que as sabem manejar, pois so as nicas capazes de as influenciar; uma sequncia de raciocnios rigorosos seria completamente incompreensvel para as multides e por isso se pode dizer que elas no raciocinam ou raciocinam erradamente ou no so influenciveis pelo raciocnio. Por vezes ficamos espantados, quando os lemos, com a debilidade de certos discursos que exerceram enorme impacto sobre aqueles que os ouviram; mas esquecemonos de que eles foram escritos para convencer grupos e no para serem lidos por filsofos. O orador em comunicao ntima com a multido sabe evocar as imagens que a seduzem. Se o conseguir, atinge a sua finalidade, e um volume cheio de discursos no vale a meia dzia de frases capazes de seduzir as almas que era necessrio convencer. intil acrescentar que a incapacidade das multides para raciocinar as priva de todo o esprito crtico, ou seja, da capacidade de distinguirem a verdade do erro e de formularem um juzo preciso. Os juzos aceites pelas multides so sempre juzos impostos e nunca juzos discutidos. Quanto a este aspecto, so numerosos os indivduos que no ultrapassam o nvel das multides. A facilidade com que certas opinies se generalizam deve-se sobretudo impossibilidade de a maior parte dos homens formularem uma opinio baseada nos seus prprios raciocnios. 3. A imaginao das multides Como em todos os seres em que o raciocnio no intervm, a imaginao representativa das multides susceptvel de ser profundamente impressionada. As imagens que uma personagem, um acontecimento, um acidente, evocam no seu esprito tm quase a vivacidade das coisas reais. As multides esto um pouco na situao da pessoa adormecida cuja razo, momentaneamente suspensa, permite que surjam no esprito imagens de grande intensidade, mas que depressa se dissipariam se fossem submetidas reflexo. As multides, incapazes de reflexo e de raciocnio, no conhecem o inverossmil; ora as coisas mais inverossmeis so geralmente as que mais impressionam. por isso que os aspectos maravilhosos e lendrios dos acontecimentos so sempre os que

mais impressionam as multides. Na realidade, o maravilhoso e o lendrio so os verdadeiros suportes da civilizao. Na histria, a aparncia sempre desempenhou um papel bem mais importante que a realidade. A o irreal que predomina sobre o real. Porque s podem pensar por imagens, s por imagens as multides se deixam impressionar. S elas as conseguem aterrorizar ou seduzir, tornando-se finalidades de ao. por essa razo que as representaes teatrais, que do a imagem na sua forma mais ntida, tm sempre uma influncia enorme nas multides. Po e espetculo eram na Antiguidade, para a plebe romana, o ideal de felicidade. No decorrer dos tempos, este ideal pouco tem variado. Nada impressiona mais a imaginao popular do que uma pea de teatro. Toda a sala sente ao mesmo tempo as mesmas emoes e, se elas no se transformam imediatamente em atos, porque nem o espectador mais inconsciente consegue ignorar que est a ser vtima do iluses e que riu ou chorou perante aventuras imaginrias. Mas, por vezes, os sentimentos sugeridos pelas imagens so to fortes que, tal como as sugestes habituais, tendem a transformar-se em atos. muito conhecida a histria daquele teatro popular dramtico que se viu forado a proteger sada o ator que desempenhava o papel de traidor para o poupar violncia dos espectadores indignados com os seus crimes imaginrios. Isto constitui, em minha opinio, um dos indcios mais notveis do estado mental das multides e, sobretudo, da facilidade com que podem ser sugestionadas. O irreal aparece-lhes com quase tanta importncia como o real, e elas manifestam uma tendncia evidente para os no distinguir. na imaginao popular que se baseia o poder dos conquistadores e a fora dos Estados. E atuando sobre essa imaginao que se arrastam as multides. Todos os grandes feitos histricos, como a criao do Budismo, do Cristianismo, do Islamismo, a Reforma, a Revoluo e, nos nossos dias, a invaso ameaadora do Socialismo, so as consequncias diretas ou remotas de profundas impresses produzidas na imaginao das multides. Por isso, os grandes homens de Estado de todas as pocas e de todos os pases, incluindo os dspotas mais absolutos, sempre consideraram a imaginao popular como o alicerce do seu poder e nunca tentaram governar contra ela. Foi tornando-me catlico, dizia Napoleo ao Conselho de Estado, que acabei com a guerra da Vendeia; foi fazendome muulmano que me instalei no Egito e foi fazendo-me ultramontano que conquistei os padres em Itlia. Se governasse um povo de judeus, restauraria o templo de Salomo. Depois de Alexandre e Csar, talvez nenhum grande homem tenha compreendido melhor como se deve impressionar a imaginao das multides. A sua preocupao constante foi

impression-la. No meio das suas vitrias, dos seus discursos, de todos os seus atos e at no seu feito de morte, era nisso que pensava. Como se impressiona a imaginao das multides? o que veremos daqui a pouco. Por agora diremos apenas que no com aes destinadas a influenciar a inteligncia e a razo que se consegue atingir esse fim. Antnio no precisou de uma retrica muito trabalhada para amotinar o povo contra os assassinos de Csar. Leu-lhe o seu testamento' e mostrou-lhe o seu cadver. Tudo o que toca a imaginao das multides apresenta-se sob a forma de uma imagem empolgante e ntida, livre de interpretaes acessrias ou apenas acompanhada de alguns fatos maravilhosos: uma grande vitria, um grande milagre, um grande crime, uma grande esperana. O que importante apresentar as coisas em bloco e sem nunca indicar a sua gnese. Uma centena de pequenos crimes ou de pequenos acidentes no causam qualquer impresso na imaginao das multides, enquanto um s grande crime, uma s catstrofe, as abalar profundamente, mesmo que tenha consequncias infinitamente menos graves do que os tais cem pequenos acidentes todos juntos. A grande epidemia de gripe que numa semana provocou a morte de 5.000 pessoas em Paris no impressionou a imaginao popular, porque esta verdadeira hecatombe no se traduziu numa imagem visvel mas apenas em informaes semanais de estatsticas. Mas um desastre que, em vez dessas 5.000 pessoas, tivesse feito morrer apenas 500, no mesmo dia, numa praa pblica, por um caso bem visvel como, por exemplo, a queda da Torre Eiffel, teria produzido imensa impresso na imaginao popular. A possvel perda de um transatlntico que, por falta de notcias, se julgava naufragado, impressionou profundamente durante oito dias a imaginao das multides. Ora as estatsticas oficiais mostram que no mesmo ano se perderam cerca de mil navios. Mas, com estas sucessivas perdas de vidas e de mercadorias, nunca as multides se preocuparam um s instante. No so por isso os fatos em si mesmos que impressionam a imaginao popular, mas sim a forma como estes fatos se apresentam. Esses fatos devem por condensao, se assim me posso exprimir, produzir uma imagem empolgante que encha e impressione o esprito. Conhecer a arte de impressionar a imaginao das multides conhecer a arte de as governar.

CAPTULO IV

FORMAS RELIGIOSAS DE QUE SE REVESTEM TODAS AS CONVICES DAS MULTIDES O que constitui o sentimento religioso. independente da adorao de uma divindade. As suas caractersticas. Poder das convices que revestem uma forma religiosa. Diversos exemplos. Os deuses populares nunca desapareceram. Novas formas sob as quais renascem. Formas religiosas do atesmo. Importncia destas noes sob o ponto de vista histrico. A Reforma, o dia de S. Bartolomeu, o Terror e todos os acontecimentos anlogos so consequncia dos sentimentos religiosos das multides e no da vontade de indivduos isolados. Vimos que as multides no raciocinam, que aceitam ou rejeitam as ideias em bloco, que no admitem a discusso nem a contradio, e que as sugestes que sobre elas atuam invadem inteiramente o campo do seu entendimento e tendem logo para transformar-se em atos. Demonstrmos que as multides convenientemente sugestionadas ficam prontas a sacrificarem-se pelo ideal que lhes foi sugerido. Vimos, por fim, que apenas conhecem sentimentos extremos e violentos, que a simpatia transforma-se em adorao e a antipatia, mal desponta, logo passa a ser dio. Estas indicaes de carter geral permitem-nos adivinhar a natureza das suas convices. Se examinarmos de perto as convices das multides, tanto nas pocas de f como durante as grandes alteraes polticas, as do sculo passado por exemplo, podemos verificar que se apresentam sempre de uma forma especial, s possvel de caracterizar se lhes dermos o nome de sentimento religioso. Este sentimento tem caractersticas muito simples: adorao de um ser supostamente superior, receio do poder que lhe atribudo, submisso cega s suas ordens, impossibilidade de discutir os seus dogmas, desejo de os divulgar, tendncia para considerar como inimigos todos os que se recusam a admiti-los. Um sentimento destes, quer se aplique a um Deus invisvel, a um dolo de pedra, a um heri ou a uma ideia poltica, sempre de essncia religiosa. O sobrenatural e o milagroso esto sempre presentes, pois as multides investem do mesmo poder misterioso a frmula poltica ou o chefe que momentaneamente as fanatiza. No se religioso s quando se adora uma divindade, mas tambm quando se empregam todos os recursos do esprito, todas as submisses da vontade, todos os ardores do fanatismo, ao servio de uma causa ou de um ser que se tornou finalidade e guia dos sentimentos e das aes. A intolerncia e o fanatismo acompanham vulgarmente um sentimento religioso e so inevitveis naqueles que julgam possuir o segredo da felicidade terrestre ou eterna.

Encontram-se estas duas 'caractersticas em todos os homens agrupados, sempre que uma convico qualquer os anima. Os jacobinos do Terror eram to ferozmente religiosos como os catlicos da Inquisio, e o ardor cruel de uns e dos outros provinha da mesma origem. As convices das multides revestem estas caractersticas de submisso cega, de intolerncia feroz, de necessidade de propaganda violenta que so inerentes ao seu sentimento religioso; pode por isso afirmar-se que todas as crenas tm uma forma religiosa. O heri que a multido aclama para ela um verdadeiro deus. Napoleo foi um deus durante quinze anos, e nunca divindade alguma teve mais perfeitos adoradores e nenhuma enviou com mais facilidade os homens para a morte. Os deuses do paganismo e do cristianismo no conseguiram exercer um imprio to absoluto sobre as almas. Os fundadores das crenas religiosas ou polticas fundaram-nas porque souberam impor s multides estes sentimentos de fanatismo religioso que fazem o homem encontrar a felicidade na adorao e o levam a sacrificar a vida pelo seu dolo. Sempre assim tem sido em todos os tempos. No seu belo livro sobre a Glia romana, Fustl de Coulanges chama precisamente a ateno para o fato de o Imprio romano no se ter mantido pela fora mas pela admirao religiosa que inspirava. Seria uma coisa sem exemplo na histria do mundo, afirma ele com razo, que um regime detestado pelas populaes se mantivesse durante cinco sculos [...]. No poderia explicar-se como trinta legies do Imprio poderiam ter obrigado cem milhes de homens a obedecer. Se obedeciam porque o imperador, que personificava a grandeza romana, era unanimemente adorado como uma divindade. At na mais pequena povoao do imprio, o imperador tinha os seus altares. Nesse tempo viu-se nascer nas almas, de uma ponta outra do Imprio, uma nova religio, que tinha por divindades os prprios imperadores. Alguns anos antes da era crist, toda a Glia, representada por sessenta cidades, erigiu em comum, perto da cidade de Lyon, um templo a Augusto [...]. Os seus sacerdotes, eleitos pelo conjunto das cidades gaulesas, eram as primeiras personalidades dos seus pases [...] impossvel atribuir tudo isto ao medo e ao servilismo. Povos inteiros no so servis e no o so durante trs sculos. No eram os cortesos que adoravam o prncipe, era Roma. E no era apenas Roma, era a Glia, eram a Espanha, a Grcia e a sia. Hoje, a maioria dos grandes conquistadores de almas no possuem j altares, mas tm esttuas e imagens, e o culto que se lhes presta no muito diferente do de outrora. S se poder compreender um pouco a filosofia da histria dep