Projeto de Qualificação (Mestrado - 2015) Título: Política Nacional de Assistência Social e o...

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 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL DANIEL DALL’IGNA ECKER Política Nacional de Assistência Social e o Programa Mais Educação: entre o direito à educação e a obrigatoriedade de estudar Porto Alegre 2015

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Projeto de Qualificação (Mestrado - 2015) Título: Política Nacional de Assistência Social e o Programa Mais Educação: Entre o Direito à Educação e a Obrigatoriedade de Estudar

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

    DANIEL DALLIGNA ECKER

    Poltica Nacional de Assistncia Social e o Programa Mais Educao:

    entre o direito educao e a obrigatoriedade de estudar

    Porto Alegre

    2015

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    DANIEL DALLIGNA ECKER

    Poltica Nacional de Assistncia Social e o Programa Mais Educao:

    entre o direito educao e a obrigatoriedade de estudar

    Projeto de Qualificao apresentado ao Instituto de

    Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul [UFRGS] como parte dos requisitos do

    Curso de Mestrado Acadmico Edital PPGPSI n.

    01/2013.

    rea de concentrao:

    Programa de Ps-graduao em Psicologia Social

    e Institucional [PPGPSI]

    Orientadora: Prof Neuza M. de F. Guareschi

    Porto Alegre

    2015

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    SUMRIO 1. Introduo ao estudo .................................................................................. 4

    2. Poltica Nacional de Assistncia Social e educao ................................ 7

    2.1 Assistncia social e educao: mecanismos de governo da populao

    .......................................................................................................................... 10

    3. Educao no Brasil: direito da populao, dever do Estado ................ 13

    4. Discursos sobre educao integral em contexto brasileiro .................. 29

    5. Caracterizao do problema de pesquisa ............................................... 42

    5.1 O Programa Mais Educao ...................................................................... 42

    5.2 Questo de pesquisa ................................................................................. 50

    5.3 Questes norteadoras ............................................................................... 50

    6. Processos metodolgicos ........................................................................ 51

    6.1 Contexto de pesquisa ................................................................................ 51

    6.2 Procedimentos de pesquisa ....................................................................... 52

    6.3 Organizao dos materiais de pesquisa, anlise e discusso .................. 53

    7. Referncias ................................................................................................. 54

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    1. Introduo ao estudo

    Este Projeto de Pesquisa de Mestrado tem como objetivo discutir a

    relao entre a Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS) e o Programa

    Mais Educao, no BrasilI. Atravs dele, visamos ampliar a compreenso sobre

    como se constitui certa noo de cidadania e de direitos humanos no arranjo

    entre essas polticas, que se operam atravs de aes do Estado, justificadas

    pelo argumento da garantia dos direitos sociais populao.

    O Programa Mais Educao foi criado atravs da Portaria Interministerial

    n. 17/2007 (2007) e regulamentado pelo Decreto n. 7.083/2010 (2010) com o

    objetivo de fomentar a educao integral de crianas, adolescentes e jovens,

    atravs de atividades socioeducativas no turno inverso ao escolar. Amparado

    pela Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, ele integra as aes do

    Ministrio da Educao [MEC] que visam conjugar todos os esforos

    objetivando a progresso das redes escolares pblicas urbanas de ensino

    fundamental para o regime de escolas de tempo integral (1996, 5).

    No ano de 2011, representantes do Ministrio do Desenvolvimento

    Social e Combate Fome [MDS] (2011) indicaram que o Mais Educao

    deveria ser considerado um Programa complementar a Poltica de Assistncia

    Social. Desde ento, o MEC e o MDS tm estabelecido aes estratgicas

    visando ampliar o acesso ao Mais Educao dos beneficirios do Bolsa

    Famlia. A justificativa se ampara pelo argumento de que os beneficiados pelo

    Bolsa Famlia refletiriam o quadro histrico de desigualdades e de

    vulnerabilidades sociais do contexto brasileiro. A meta governamental prevista

    para at o final de 2014 era a de que todos os Estados do Brasil

    concentrassem esforos para que pelo menos metade de todas as escolas com

    educao integral fossem compostas por uma maioria de alunos do Bolsa

    Famlia.

    I O Projeto formulado a partir da perspectiva de aprofundamento da produo desenvolvida na Linha de Pesquisa Polticas Pblicas, Sade, Trabalho e Produo de Subjetividade. O estudo faz parte do Projeto guarda-chuva Psicologia Social, Polticas Pblicas e o Governo das Populaes coordenado pela Prof. Dr. Neuza M. de F. Guareschi atravs do grupo de pesquisa - Estudos Culturais e Modos de Subjetivao dentro do Ncleo e-politcs - Estudos em Polticas e Tecnologias Contemporneas de Subjetivao - do PPGPSI da UFRGS.

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    Ao nos aproximarmos de escolas que implementaram o Mais

    EducaoII, dentre as diversas problemticas apresentadas, nos deparamos

    com o relato de que o Programa no tem ocorrido via Poltica de Assistncia

    Social, mas sim, diretamente atravs da Secretaria da Educao junto s

    escolas de cada regio. Mesmo assim, no so todas as escolas de cada

    territrio que possuem o Programa. Segundo a coordenadora do Centro de

    Referncia de Assistncia Social (CRAS), da regio nordeste de Porto Alegre

    (Rio Grande do Sul - RS), possvel que hajam jovens cadastrados no

    Programa Bolsa Famlia que estejam no Mais Educao, dado que no est

    presente no cadastro das famlias e nem foco de interveno dos

    profissionais do servio de assistncia.

    A educao integral, atravs do Mais Educao, tem se apresentado

    como estratgia governamental para jovens em situao de vulnerabilidade

    social como, por exemplo, os que se encontram em situao de Abrigo.

    Oficinas de msica, arte e reforo escolar so as principais atividades

    executadas atravs do Mais Educao. Segundo relato de uma gestora do

    Programa, a poltica tem desviado a ateno do que seria prioridade no ensino

    bsico atual: mais necessidade de investimento em infraestrutura, em recursos

    humanos e maior valorizao dos profissionais envolvidos, especialmente os

    professores. Ela descreve que o Mais Educao produz precariedade nos

    servios ao sobrecarregar responsabilidades aos docentes, impondo tarefas e

    aes em meio a um ambiente que j problemtico.

    Junto a isso, o vnculo de carter voluntrio oferecido aos monitores do

    Programa desvaloriza os profissionais no momento em que oferece uma bolsa

    de, em mdia, R$275,00 para um trabalho de 20 horas semanais. Sendo a

    remunerao extremamente baixa muitos monitores acabam se

    responsabilizando por mais de uma turma, trabalhando excessivamente para

    receber menos do que um salrio mnimo brasileiro, j que a regulamentao

    do governo abre a possibilidade para que o monitor atenda a mais de uma

    II Relatos obtidos na aproximao com os servios referenciados na regio do Centro de Referncia de Assistncia Social (CRAS), da regio nordeste de Porto Alegre (RS), que disponibilizaram autorizao para a execuo deste estudo.

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    classe. Essas problemticas, frente execuo do Programa Mais Educao,

    justificam a necessidade de estudos e discusses nesse campo.

    Visando pensar na articulao de prticas governamentais sobre a

    populao no Brasil, na relao entre o Programa Mais Educao e a PNAS,

    fazemos uma aproximao com os estudos de Michel Foucault. No curso

    intitulado Segurana, Territrio, Populao, dado no Collge de France no

    ano de 1977 a 1978, Foucault inicia sua discusso sobre as tecnologias de

    segurana, que reativam e transformam as tcnicas jurdico-legais e as

    tcnicas disciplinares, fazendo emergir a noo de governamentalidade

    (Foucault, 2008a). Essa noo entendida como uma racionalidade que se

    forma no ocidente, principalmente a partir do sculo XVIII, tendo como ideia

    central a de que a populao um elemento fundamental nas prticas de

    governo, estando na base de manuteno da estrutura de poder do Estado, se

    envolta por todo um aparato regulamentar (Foucault, 2004; 2008).

    Assim, entendendo as polticas sociais brasileiras como modos de

    governar atravs de determinadas racionalidades (Cruz & Guareschi, 2012;

    Cruz, Guareschi & Rodrigues, 2013; Scisleski & Guareschi, 2014) elaboramos

    este Projeto de Mestrado visando aprofundar a seguinte questo de pesquisa:

    Como se constitui o sujeito cidado e de direito educao na relao entre a

    Poltica de Assistncia Social e o Programa Mais Educao, no Brasil?

    Para dar suporte s discusses aqui colocadas, organizamos a escrita

    do Projeto dividindo-a em cinco etapas. Na primeira, introduziremos elementos

    referentes Poltica de Assistncia Social no Brasil e sua aproximao com as

    polticas de educao. Em seguida, apresentaremos pontos histricos sobre o

    processo de constituio da educao como direito da populao e dever do

    Estado, trazendo para anlise fragmentos das Constituies Federais

    brasileiras desde sua primeira formulao no ano de 1824. Essa aproximao

    objetiva ampliar a compreenso sobre como foi se produzindo o sujeito de

    direito educaoIII, no pas.

    III A expresso sujeito de direitos utilizada no documento da PNAS para afirmar a necessidade de interveno da Poltica Nacional de Assistncia Social sobre a populao. Utilizaremos no texto a ideia de sujeito de direito educao para nos remetermos a esse sujeito contemporneo que foco de polticas governamentais de educao sob a justificativa de ser uma ao que lhe garante proteo social atravs

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    Por terceiro, colocaremos em anlise discursos que emergem junto s

    propostas de educao integral na historicidade do Brasil. A partir dos

    principais enunciados presentes nesses discursos, apresentaremos alguns

    contrapontos que marcam as cenas do quadro histrico de constituio do pas

    enquanto Estado-nao, especialmente no que se refere ao processo de

    colonizao, aps a chegada dos espanhis e portugueses na Amrica Latina.

    No quarto momento, apresentaremos a caracterizao da pesquisa, o

    Programa Mais Educao e as questes de pesquisa. Por fim, descreveremos

    os percursos metodolgicos previstos para o desenvolvimento do estudo, que

    se realizar junto a um CRAS de Porto Alegre e s escolas de seu territrio,

    tendo tem como objetivo geral compreender como se constitui certa noo de

    cidadania e de direitos humanos no arranjo entre a Poltica Nacional de

    Assistncia Social e o Programa Mais Educao, no Brasil.

    2. Poltica Nacional de Assistncia Social e educao

    No contexto brasileiro pode-se dizer que a garantia dos direitos polticos,

    sociais, econmicos e culturais do cidado foi assumida como responsabilidade

    do Estado a partir da Constituio Federal de 1988. atravs de sua

    promulgao que vemos determinados direitos serem definidos como

    compromisso do governo onde a assistncia, juntamente com a sade e a

    previdncia social, constituram o trip da seguridade social. Assim, inspirada

    na noo de Estado de Bem Estar Social, a Constituio de 1988 um marco

    histrico que institui o incio da transformao da assistncia social no pas.

    Historicamente, a assistncia estava associada a um longo perodo de prticas

    vinculadas caridade, Igreja Catlica, filantropia e ao primeiro-damismo.

    Prticas de um sistema meritocrtico, calcado na tica da benemerncia e da

    relao de subalternidade (Couto, Yasbek, Silva & Raicheles, 2010, p. 53).

    Com a promulgao da Constituio, a assistncia social deixa de ser

    caracterizada pela noo de caridade e filantropia para se tornar poltica

    pblica de Proteo Social, inserindo-se em um novo campo de atuao: dos

    direitos e da universalizao dos acessos, assim como da responsabilidade

    Estatal. Articulada a poltica de educao, ela se direciona garantia de

    da garantia de direitos.

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    direitos e de condies dignas de vida, demarca seu carter universal, ainda

    que seletivo, destinada apenas a quem dela necessitar (Cruz; Guareschi &

    Rodrigues, 2010).

    Na dcada seguinte, diante de um quadro de crises econmicas, vemos

    promulgada a Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (1993) que, como

    grande avano ao campo, institui a assistncia social como compromisso

    poltico no mais vinculado s prticas de protecionismo filantrpico. Intitulada

    de Lei Orgnica da Assistncia Social [LOAS], essa Lei estabelece a proteo

    como um mecanismo contra as formas de excluso social, organizando a

    poltica de assistncia a partir de dois tipos de proteo: 1) Proteo social

    bsica: visa prevenir situaes de vulnerabilidade e risco social por meio do

    desenvolvimento de potencialidades, aquisies, fortalecimento de vnculos

    familiares e comunitrios; 2) Proteo social especial: objetiva contribuir para

    a reconstruo de vnculos familiares e comunitrios, fortalecimento das

    potencialidades, aquisies e a proteo de famlias e indivduos para o

    enfrentamento das situaes de violao de direitos.

    A materializao desses princpios ocorre com a elaborao, em 2003,

    do Sistema nico de Assistncia Social [SUAS] pelo qual o acesso poltica de

    assistncia se dar pela condio de sujeito de direitos. Segundo a Poltica

    Nacional de Assistncia Social [PNAS], o pblico usurio do SUAS so os

    cidados e grupos em situaes de vulnerabilidade e risco social. De acordo

    com a proposta da poltica, faz-se necessrio considerar as pessoas, as suas

    circunstncias e dentre elas seu ncleo de apoio primeiro, isto , a famlia

    (Brasil, 2004a, p. 10). Desse modo, o fortalecimento dos vnculos familiares e

    comunitrios torna-se fundamental garantia dos direitos sociais, sendo

    estratgico que a principal ao do Servio de Proteo e Atendimento Integral

    Famlia [PAIF] seja a consolidao dos Servios de Convivncia e

    Fortalecimento dos Vnculos, destinados insero dos usurios em situao

    de vulnerabilidade socialIV.

    Assim, a famlia acaba se constituindo como a principal via para o

    acesso educao de crianas e adolescentes, j que a educao colocada

    IV Os servios ofertados so divididos por faixa etrias constituindo, por exemplo, Grupos de Convivncia para crianas, adolescentes e idosos separadamente.

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    como um dos mnimos sociaisV a ser garantido pela poltica de assistncia. De

    acordo com Piana (2009), na contemporaneidade, a educao tem ocupado

    lugar central na esfera poltica, econmica e cultural dentro dos campos de

    batalha que se forjam na busca pela execuo de diferentes projetos

    societrios. A reformulao ou criao de novas legislaes tornou possvel a

    potencializao do vnculo entre as polticas de assistncia social e de

    educao. Segundo a autora, a educao nem sempre foi prioridade dos

    dirigentes polticos e a democratizao do acesso, por muito tempo, foi

    relegado a segundo plano em suas pautas de discusso, visto que a educao

    sempre esteve a servio de um modelo econmico de natureza concentradora

    de rendas e socialmente excludente (Piana, 2009, p.67).

    Na conjuntura atual, a educao se torna um dos pontos centrais no

    discurso das polticas de governo que visam combater as vulnerabilidades

    sociais e as desigualdades. Nisso, surgem diversos Programas que articulam

    as polticas de educao, sade, assistncia social e direitos humanos como,

    por exemplo, o Programa de Benefcio de Prestao Continuada [BPC] na

    Escola, Programa Brasil Alfabetizado, Programa Brasil Profissionalizado, entre

    outros (Brasil, 2014b). Atravs do Plano Mais Brasil, a Secretaria de Educao

    Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso [SECADI] prope polticas

    pblicas visando integrar Programas e Aes da Educao Superior,

    Profissional e Tecnolgica e Bsica. Seu objetivo principal poder contribuir

    para o enfrentamento das desigualdades educacionais, considerando os

    diferentes pblicos e temticas como, por exemplo, Educao Especial,

    Educao para as Relaes tnico-Raciais, Educao do Campo, Educao

    Escolar Indgena, Educao Quilombola, Educao em Direitos Humanos,

    Educao Inclusiva, Gnero e Diversidade Sexual, Combate Violncia,

    Educao Ambiental, Educao de Jovens e Adultos (Brasil, 2014b, 1).

    Alm desses Programas e Aes, as polticas de educao se

    vinculam s polticas de assistncia social entendendo essa ltima como

    V A ideia de mnimo social aparece na poltica da LOAS (Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993), mas sua compreenso no detalhada. Entendemos que os mnimos sociais comportam a afirmao dos direitos previstos em Constituio, nos quais toda a populao deveria ter acesso, o que inclui o direito educao. Na rea de saber do Direito, por exemplo, determinados autores trabalham tambm com a noo de mnimo existencial (Figueiredo, 2007).

  • 10

    possibilidade de garantia da insero dos sujeitos na escola. o caso do

    Programa Bolsa Famlia [PBF] que, por meio de transferncia direta de renda,

    beneficia famlias em situao de pobreza e de extrema pobreza em todo o

    Brasil. Ao receber o benefcio, a famlia se torna sujeita a condicionalidades

    que, segundo a poltica, visam reforar o acesso a direitos sociais bsicos nas

    reas de educao, sade e assistncia social para que se supere a situao

    de vulnerabilidade anteriormente identificada (Brasil, 2014c). Do ponto de vista

    terico, por exemplo, os elos que associam educao e pobreza

    fundamentam-se segundo a concepo de que os investimentos em mo de

    obra resultam num dado positivo para o aumento da produtividade do trabalho

    e, com efeito, do desenvolvimento econmico (Silva, Brando & Dalt, 2009).

    Recentemente, uma parceria entre o MDS e o MEC, priorizou a

    implantao do Programa Mais Educao em escolas com grande volume de

    alunos beneficiados pelo Bolsa Famlia. Mais de 11,7 mil escolas se

    inscreveram nesse Programa do Ministrio que prope o estmulo da educao

    integral nas escolas pblicas, nmero que representa 67% do total de unidades

    que comportam a maioria de alunos atendidos pelo Bolsa Famlia. A meta

    pactuada entre os dois Ministrios de inserir 50% dos alunos beneficiados

    pelo Bolsa Famlia na educao integral at o final do ano de 2014 (Brasil,

    2011).

    2.1. Assistncia social e educao: mecanismos de governo da populao

    A discusso proposta por este projeto parte da desnaturalizao do

    vnculo entre a poltica de assistncia social e educao, entendendo que as

    mesmas constituem importantes mecanismos de governo da populao. Ao

    colocarmos essa aproximao em anlise emerge a problemtica das

    estratgias de governo e dos jogos de interesses alocados frente ao

    gerenciamento dos sujeitos. Esse exerccio de desnaturalizao sustenta-se

    pela aproximao que fazemos com os estudos do filsofo Michel Foucault.

    Foucault (2004) discutiu sobre o modo como as polticas, a partir do

    sculo XVIII, foram sendo pensadas atravs de uma racionalidade de

    interveno no estilo neoliberal dos alemes. Atravs da desnaturalizao de

    prticas de gesto da populao pelo governo, o autor torna possvel pensar

  • 11

    sobre como os processos polticos da era moderna se caracterizariam por uma

    racionalidade neoliberal de pensar o governo das vidas.

    Atravs da racionalidade do clculo e da diminuio da interveno

    governamental, esse estilo de prtica instauraria a lgica do Estado Mnimo

    como organizador da racionalidade de governo. Desse modo, o governo no

    visa somente seu crescimento, sua riqueza, sua fora e sua populao. A

    razo governamental passa a obedecer principalmente a interesses, um jogo

    complexo de anseios individuais e coletivos, benefcio econmico e utilidade

    social, junto ao equilbrio de mercado e ao regime do poder pblico. A

    estratgia do Estado Mnimo abre espao para que o mercado possa surgir e

    se estabelecer como lugar de veridico da prtica governamental e da

    regulao dos processos de concorrncia econmica. A interveno do Estado

    ficaria limitada ao princpio da utilidade ou no utilidade de sua ao, passando

    a agir em funo dos jogos de interesses (Foucault, 2004).

    Dessa forma, as polticas sociais, ao contrrio do que poderamos pensar

    em um primeiro momento, no buscariam a repartio do consumo dos bens,

    mas sim, a transferncia de uma parte do subconsumo da renda. O que estaria

    em jogo no seria uma preocupao acerca de como se poderia assegurar o

    poder aquisitivo da populao, a igualdade no um princpio a ser atingido,

    mas sim, assegurar aos indivduos um valor mnimo, sem o qual eles no

    conseguiriam garantir sua sobrevivncia. Podemos pensar no slogan do atual

    governo brasileiro que enfatiza que pas rico pas sem pobreza (Brasil,

    2014d), pois o que parece estar em questo em tal afirmativa no a busca de

    igualdade entre os sujeitos, onde todos deveriam ter as mesmas condies de

    vida, mas o rompimento com a condio de vida que habita a linha da extrema

    pobreza, onde no h possibilidade de determinada parcela da populao

    ingressar no jogo postulado pelas relaes de mercado.

    Assim, o fundamental s polticas sociais (inspiradas por um modo

    neoliberal de governar) no a garantia de uma cobertura social para os

    riscos, mas um espao econmico para seu enfrentamento. O ponto de

    aplicao das intervenes governamentais no ter a necessidade de corrigir

    os efeitos destruidores do mercado na sociedade, mas a interveno sobre a

    prpria sociedade em sua trama e em sua espessura para que os mecanismos

  • 12

    de concorrncia continuem a assumir seu papel regulador (Foucault, 2004, p.

    199). No se almeja a igualdade social, mas a garantia de um mnimo possvel

    para que todos possam entrar no jogo de mercado.

    O que caracteriza essa racionalidade poltica no um governo

    econmico, mas um governo de sociedade (o alvo e o objetivo da prtica de

    governo). Uma sociedade onde prevalece a lgica da concorrncia, na qual

    vemos a tica social da empresa infiltrando-se em suas unidades de base e

    multiplicando-se no interior de todo corpo social constituindo formas

    empresas como o indivduo empresa e a famlia empresa, ao modelo do

    neoliberalismo americano (Foucault, 2004).

    Ao colocar em discusso a emergncia desses jogos de racionalidades,

    Michel Foucault torna possvel ampliarmos nossa percepo sobre como as

    polticas pblicas funcionam como estratgias no processo de constituio de

    um Estado e das prticas governamentais que o sustentam. Originrio do

    contexto Europeu, o autor acaba tendo como principal base para sua discusso

    dados que emergem da anlise de documentos histricos datados aps o

    sculo XVII. Atravs de uma leitura minuciosa desses documentos, Foucault

    coloca em questo toda uma srie de prticas que emergem no Ocidente e

    difundem por seus territrios tecnologias de subjetivao, que so centrais para

    compreendermos a histria da arte de governar (Foucault, 2004).

    Na anlise do autor sobre as tecnologias de governo, uma das questes

    centrais para pensarmos a possibilidade de formao de um Estado so as

    produes discursivas que emergem em torno da rea de saber do Direito,

    especialmente no que se refere s leis que visam regular vidas. Tal

    compreenso nos permite analisar a forma como a PNAS, as polticas de

    educao e o Programa Mais Educao, contemporaneamente, colocam em

    exerccio regulamentos jurdicos que se articulam no entrecruzamento de

    polticas que tm como objetivo o gerenciamento da populao atravs das

    racionalidades que estabelecem.

    De acordo com Foucault (2004), as relaes forjadas entre o Estado, o

    direito e a economia, a partir do sculo XVIII, evidenciam como determinadas

    prticas vo se intensificando no que se refere preocupao sobre o

    regramento da vida. Essas aes de regulamentao do cotidiano, que o autor

  • 13

    tambm intitular de governamentalizao da vida, so bases que tornam

    possvel a composio da ideia que temos de Estado. Dentre diversos fatores,

    teremos o Direito e as leis como centrais para a existncia de um Estado.

    Foucault (2004) compreende que as racionalidades em torno das

    prticas de governo das vidas adentram o territrio ocidental como um todo.

    Visando identificar algumas especificidades que se referem ao contexto

    brasileiro, neste momento, julgamos necessrio nos aproximarmos das leis que

    emergem ao longo da constituio do Brasil como Estado e tornam possvel a

    emergncia do sujeito de direito educao no pas. Para conseguirmos

    realizar uma anlise mais prxima de nosso objeto de estudo, faremos um

    recorte das leis criadas em torno do campo da educao buscando identificar,

    atravs de uma breve passagem pelas sete Constituies Federais j

    formuladas para o Brasil, como a educao vai se tornando dever do Estado e

    direito da populao.

    A anlise desses documentos parte da premissa de que as produes

    dos enunciados jurdicos se formulam em razo de relaes de poder, sendo o

    discurso que eles veiculam uma produo histrica e politicamente datada, j

    que palavras so tambm construes; na medida em que a linguagem

    tambm constitutiva de prticas (Fischer, 2001, p.199).

    3. Educao no Brasil: direito da populao, dever do Estado

    Para compreendermos como foi se produzindo as racionalidades

    jurdicas em torno do sujeito de direito educao, julgamos necessrio

    adentrar no processo histrico brasileiro destacando cenas que tornaram

    possveis a composio dessa noo.

    Freitag (1986), na tentativa de produzir um entendimento didtico sobre

    o processo histrico da educao no Brasil, formula a existncia de trs

    perodos: 1) De 1500 a 1930, abrangendo a Colnia, o Imprio e a Primeira

    Repblica; 2) De 1930 a 1960 aproximadamente; 3) De 1960 em diante. No

    primeiro perodo o autor d destaque chegada dos padres jesutas, que ele

    considera como os responsveis pela instituio da base de um imenso

    sistema educacional no pas. Com a expanso do territrio da colnia, a Igreja

    Catlica colocada como a responsvel, por mais de dois sculos, de divulgar

  • 14

    o Cristianismo e a cultura europeia nos seminrios e colgios dos jesutas,

    facilmente atingindo os ideais da colonizao portuguesa de adequar a

    populao colonizada aos objetivos do imprio.

    A estrutura social da poca era formada principalmente por escravos,

    senhores de engenho, grandes latifundirios e funcionrios da coroa. Os

    objetivos da poltica portuguesa eram obter grandes lucros e as vias principais

    se davam pelo modelo agroexportador, tendo o acar, o ouro, o caf e a

    borracha como base da economia. A funo do Brasil, ainda no considerado

    um pas independente, estava organizada em produzir e exportar para o

    comrcio europeu. Nesse perodo, era inexistente uma poltica educacional de

    origem estatal, j que o sistema educacional servia a uma elite, e no havia

    interesse em ampli-lo para o acesso das classes consideradas subalternas

    (Freitag, 1986).

    Dias (2007) destaca que uma referncia emblemtica para

    compreendermos a constituio da educao como direito a Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado, emitida pela Conveno Nacional Francesa

    em 1793, cujo Art. XXII afirmava que: A instruo a necessidade de todos.

    A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligncia

    pblica e colocar a instruo ao alcance de todos os cidados (Assembleia

    Nacional Francesa, 1793). Apesar de no ser um documento produzido dentro

    do Brasil, importante ressaltarmos a racionalidade que ele prope ao ser

    formulado, j que a relao comercial entre as fronteiras daquela poca

    possibilitavam a ida e vinda de propostas e aes visando atingir os objetivos

    dos pases em jogo. Dias (2007) afirma que essa declarao central para

    compreendermos a constituio da educao como direito, j que ela vem

    instituir a lgica do direito fundamental que eleva a educao condio de

    nico processo capaz de tornar humano os seres humanos. Isto significa que a

    educao no apenas se caracteriza como um direito da pessoa, mas,

    fundamentalmente, seu elemento constitutivo (p.441).

    Quinze anos aps a emisso da Declarao na Frana, em 1808, a

    famlia real e a corte de Portugal se transferem para o Brasil devido

    ocorrncia de uma invaso a seu pas. Neste momento se instala o governo

    portugus na colnia e isso altera todo o quadro poltico, econmico e cultural

  • 15

    da regio. Inicialmente, a funo do Brasil era enriquecer seus colonizadores

    que no habitavam suas terras e que, a partir desse momento, passaram a

    residir no pas. Essa mudana acarreta o declnio do poder de Portugal sobre a

    colnia, a ampliao do comrcio atravs da abertura dos portos, a indstria

    tornou-se livre, e a economia modernizou-se (Piana, 2009, p.62).

    Com a vinda de D. Joo VI, foram inauguradas diversas instituies

    educativas e culturais, surgiram cursos superiores de Direito, Engenharia,

    Medicina, mas ainda no universidades. A necessidade de formao tcnica e

    administrativa, que o contato com outros pases atravs da abertura dos portos

    produziu, ampliou a fundao de escolas e academias: a Academia Real da

    Marinha, a Academia Militar, o Curso de Cirurgia, Anatomia, o Curso de

    Medicina, de Economia, Agricultura, Botnica, Qumica Industrial, Geologia e

    Mineralogia, entre outros. Cabe destacar que grande parte dos cursos ainda

    eram iniciantes em sua organizao e estrutura, pois se focavam apenas no

    processo de profissionalizao das classes economicamente favorecidas

    (Freitag, 1986).

    Em 1822, novos ideais surgem aps o processo de Independncia do

    Brasil. A Assembleia Constituinte discute a relevncia da educao popular e,

    em 25 de maro de 1824, na Constituio Poltica do Imprio do Brazil,

    instituda pelo Imperador Dom Pedro I, a educao colocada como dever do

    Imprio apenas no que se referia garantia de Direitos Civis, e Politicos dos

    Cidados Brazileiros... XXXII. A Instruco primaria, e gratuita a todos os

    Cidados. XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde sero ensinados os

    elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes (Constituio Politica do

    Imperio do Brazil de 25 de maro de 1824). Mesmo no documento sendo

    garantido o direito de acesso escola a toda populao, a educao ainda era

    um hbito direcionado a seletos grupos.

    A Constituio de 1824 foi a que teve maior permanncia de todas as

    Constituies Federais da histria do Brasil, permanecendo em vigncia at a

    Proclamao da Repblica em 1889. De acordo com Saveli e Tenreiro (2012),

    o ensino primrio afirmado como direito apenas a partir de 1934, pois na

    Constituio de 1824 apenas a gratuidade estava explicitada. Aps a

    Proclamao da Repblica em 1889, a educao excluda da Constituio de

  • 16

    1891. Nesse documento, que institui a Repblica dos Estados Unidos do Brasil,

    a educao no colocada como responsabilidade do Estado e nem

    relacionada a formas de organizar a conduta da populao (Constituio da

    Repblica dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891).

    Em 1925, pelo Decreto n. 16.782-a de 13 de janeiro, organizado o

    primeiro Departamento Nacional do Ensino, que prope a reforma do ensino

    secundrio e o superior, dando outras providncias. Nessa poca, o

    Departamento Nacional do Ensino se constituiu diretamente subordinado ao

    Ministrio da Justia e Negcios Interiores (Decreto n. 16.782-a, de 13 de

    janeiro de 1925). Em 1930, logo aps a chegada de Getlio Vargas ao poder,

    regulamenta-se o Ministrio da Educao e Sade Pblica, que desenvolvia

    atividades pertinentes a vrios ministrios, como sade, esporte, educao e

    meio ambiente (Decreto n. 19.402, de 14 de Novembro de 1930).

    Dentre os vrios embates educacionais desse perodo, Mendona

    (2006) destaca o modo como o movimento de Higiene Mental emergente na

    dcada de 1930 contribuiu na formulao de teorias e ordenamento de ideias

    que deram fundamento a prticas com crianas em escolas pblicas

    brasileiras. Segundo a autora, o movimento de higienizao do escolar partia

    da iniciativa de intelectuais preocupados com o que eles nomeavam de futuro

    da nao. Para eles, a compreenso das crises sociais era atribuda m

    formao moral e orgnica do indivduo. Correntes tericas da Psicanlise so

    colocadas como saberes centrais para a formulao das ideias sobre higiene

    mental do escolar, especialmente no que se refere s teorias normalizadoras

    do comportamento que apresentavam propostas de higienizar o esprito das

    crianas atravs de aes da famlia e das prticas escolares (Mendona,

    2006, p.41).

    nesse mesmo perodo que se cria a Liga Brasileira de Higiene Mental,

    que se fez presente de meados dos anos 1920 aos anos 1950 em uma

    instituio sede localizada na Avenida das Naes, no Rio de Janeiro, onde se

    situavam Embaixadas, Consulados e outros importantes rgos estatais

    (Fontanelle, 1925). As condies de possibilidade para a criao da Liga no

    Brasil esto atreladas emergncia da urbanizao como um problema social,

    decorrente das grandes mudanas pelas quais passou o pas a partir do final

  • 17

    do sculo XIX, com a Abolio da Escravatura, a instaurao da Repblica e os

    primeiros movimentos para a industrializao.

    Presente entre as duas grandes guerras mundiais, a Liga resultado do

    entusiasmo da burguesia brasileira em consolidar-se como uma nao

    desenvolvida. Os ideais ufanistas e nacionalistas encontram-se com as

    concepes de mundo e de homem, com forte apelo ao indivduo e

    hereditariedade como princpios de uma nao saudvel. Os problemas

    mentais da populao, apesar de suas explicaes individualizantes, eram

    identificados como obstculos ao progresso coletivo da nao. Internamente, a

    Liga dividia-se entre correntes distintas com relao s respostas aos dilemas

    nacionais, variando entre propostas de esterilizao e outras de cunho moral

    (Junior & Boarini, s/d).

    Freitag (1986) destaca que o segundo perodo do processo histrico da

    educao no Brasil, entre 1930 e 1960, marcado por diversas reformas

    educacionais, pelo surgimento de intelectuais da educao, criao das

    primeiras universidades brasileiras e caracterizado pela ampliao do sistema

    escolar como um todo. O sujeito de direito educao dessa poca ainda

    muito voltado lgica da cultura do bacharelismo. De acordo com Piana

    (2009), essa cultura identificava o ttulo de doutor como possibilidade de

    ascenso social e estratgia de enriquecimento. Muito presente em meio

    classe mdia, esse sonho confirmava o grande distanciamento que ainda havia

    entre educao e trabalho, j que a principal fonte de riqueza do Brasil da

    poca era a agricultura. Com a crise mundial dos anos 30, o Brasil passa por

    um perodo de srias dificuldades, principalmente em relao superproduo

    do caf. As mudanas nos acordos econmicos torna possvel a emergncia

    da industrializao no pas, fazendo com que a agricultura viesse a ser apenas

    mais um meio de desenvolvimento da economia.

    No incio dos anos de 1930, tendo por influncia todo um movimento

    intelectual em prol da higiene mental e da eugenia, veremos na Constituio

    Federal de 1934, que a noo de famlia e de moral torna-se parte da

    estratgia do governo brasileiro atravs das leis vinculadas a educao.

    Contextualizando as Constituies anteriores, veremos em 1824 a noo de

    famlia ser colocada principalmente no Captulo III, que descreve sobre os

  • 18

    direitos da Familia Imperial, e sua Dotao (1824, Capitulo III), na qual so

    definidas as regras que se referem manuteno da herana Imperial, seus

    dotes e repasse de bens entre familiares. A moral, nessa Constituio,

    aparecer no Art. 8 em que ao cidado brasileiro Suspende-se o exercicio

    dos Direitos Politicos I. Por incapacidade physica, ou moral. (1824, Titulo 2).

    Assim como, no Art. 126. Se o Imperador por causa physica, ou moral,

    evidentemente reconhecida pela pluralidade de cada uma das Camaras da

    Assembla, se impossibilitar para governar, em seu lugar governar, como

    Regente o Principe Imperial, se for maior de dezoito anos (1824, Capitulo V).

    Na Constituio de 1891 ser mantida a no integridade moral como

    possvel de suspender os direitos do cidado e, vinculada s prticas

    religiosas, sero aceitas todas as formas de cultos e ritos Art. 72 (...) desde

    que no offendam a moral publica e as leis (1891, 5). Nesse documento,

    por suspenso do antigo regime Imperial e instituio de um regime livre e

    democrtico, a ideia de famlia como estratgia poltica no aparecer em

    nenhum artigo, pargrafo ou alnea da Constituio de 1891.

    Ento, em 1934, na Constituio Federal da Era Vargas, a educao

    ser vinculada declaradamente famlia e moral, juntamente economia.

    Como descreve o Art. 149, a educao:

    ...direito de todos e deve ser ministrada, pela famlia e pelos Poderes

    Pblicos, cumprindo a estes proporcion-la a brasileiros e a estrangeiros

    domiciliados no Pas, de modo que possibilite eficientes fatores da vida

    moral e econmica da Nao, e desenvolva num esprito brasileiro a

    conscincia da solidariedade humana (Constituio da Repblica dos

    Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934).

    No documento, a famlia obter destaque na proteo do Estado como,

    por exemplo, no Art. 144 A famlia, constituda pelo casamento indissolvel,

    est sob a proteo especial do Estado; no Art. 113 34) A todos cabe o

    direito de prover prpria subsistncia e de sua famlia, mediante trabalho

    honesto; e a famlia emergir como alvo de uma poltica com carter

    assistencial no Art. 138 que, Incumbe Unio, aos Estados e aos Municpios,

    nos termos das leis respectivas: d) socorrer as famlias de prole numerosa.

  • 19

    A noo de moral, alm de sua incluso na definio do direito

    educao, aparecer em trs estratgias polticas nessa Constituio. No Art.

    122, pargrafo nico, a definio do Presidente para a constituio dos

    Tribunais do Trabalho e das Comisses de Conciliao ser de livre

    nomeao do Governo, escolhido entre pessoas de experincia e notria

    capacidade moral e intelectual; no Art. 138 Incumbe Unio, aos Estados e

    aos Municpios, nos termos das leis respectivas: e) proteger a juventude contra

    toda explorao, bem como contra o abandono fsico, moral e intelectual e f)

    adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a

    moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeam a

    propagao das doenas transmissveis (Constituio da Repblica dos

    Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934).

    Na Constituio de 1934 ser institudo, pela primeira vez, o carter de

    obrigatoriedade frequncia no ensino primrio, inclusive para adultos. De

    acordo com Horta (1998), as discusses sobre a obrigatoriedade escolar

    sempre foram pautas defendidas por intelectuais desde o Imprio, mas nunca

    foram suficientes para consagr-las como prticas governamentais nas

    Constituies Republicanas. A gratuidade e a laicidade foram includas nas

    Reformas educacionais desde 1890, mas a obrigatoriedade s emerge,

    novamente, em Minas Gerais no Artigo 33 da Reforma Artur Bernardes em

    1920. A multa, a quem no cumprisse, inclua o pagamento de 10 mil ris aos

    infratores e, na falta de dinheiro, priso durante trs dias. Assim, nesse

    perodo, Reformas Estaduais permitiram a aplicao da obrigatoriedade em

    algumas regies e, segundo Horta (1998), isso tornou possvel preparar todo

    um caminho para que se introduzisse o principio da obrigatoriedade do ensino,

    a seguir, na Constituio de 1934.

    Tomando forma legal na Constituio de 1934, o direito a educao e

    sua obrigatoriedade foram possveis tambm pela influncia do Manifesto dos

    Pioneiros da Educao Nova (1932) (Azevedo et al., 1932). Produzido por

    intelectuais da poca, o manifesto colocava diversas exigncias em relao

    educao do brasileiro, a qual era compreendida com uma finalidade

    biolgica (p.194) que afirma o direito biolgico que todo ser humano tem a

    educao (p.44). Junto a isso, o documento coloca que o Estado no pode

  • 20

    tornar o ensino obrigatrio, sem torn-lo gratuito (p.194) e a obrigatoriedade...

    deve se estender progressivamente at uma idade concilivel com o trabalho

    produtor, isto , at os 18 anos (p.194).

    O interessante do Manifesto que seu argumento da educao, como

    necessidade biolgica do ser humano, surgia junto preocupao sobre uma

    poltica educacional de Estado que desse conta do novo modo de

    funcionamento econmico da sociedade brasileira. A industrializao faz

    emergir a preocupao sobre uma educao escolar ativa. A Escola Ativa,

    tambm conhecida como Escola Nova, foi um movimento intelectual que

    acreditava que a educao deveria acompanhar o desenvolvimento econmico

    do pas, preparando a populao para as demandas do mercado. A educao

    popular e o ensino pblico passam a ganhar destaque nessa poca, j que a

    mo de obra no qualificada para as demandas do mercado no era mais

    suficiente manuteno da economia.

    Nas prticas de governo, em 1937, para conseguir permanecer no

    poder, Getlio Vargas estabelece um golpe de Estado, tornando-se ditador.

    Sua ao justificada como algo extraordinrio, que viria a proteger a

    sociedade brasileira de uma suposta ameaa comunista. O regime implantado,

    de clara inspirao fascista, ficou conhecido como Estado Novo, sendo

    marcado pela criao de uma nova e imposta Constituio Federal. Na

    introduo desse documento, fica claro o contexto da poca:

    O PRESIDENTE DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO

    BRASIL, ATENDENDO s legitimas aspiraes do povo brasileiro paz

    poltica e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de

    desordem, resultantes da crescente agravao dos dissdios partidrios,

    ...colocando a Nao sob a funesta iminncia da guerra civil;

    ATENDENDO ao estado de apreenso criado no Pas pela infiltrao

    comunista... diante dos perigos que ameaam a nossa unidade e da

    rapidez com que se vem processando a decomposio das nossas

    instituies civis e polticas; Resolve assegurar Nao a sua unidade,

    ...decretando a seguinte Constituio, que se cumprir desde hoje em

    todo o Pais (Constituio dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de

    novembro de 1937).

  • 21

    Em relao educao, neste documento, dentro de uma lgica que

    objetivava estabelecer uma unidade nacional entre seus membros, vai se

    definir que:

    Art. 15 - Compete privativamente Unio: IX - fixar as bases e

    determinar os quadros da educao nacional, traando as diretrizes a

    que deve obedecer a formao fsica, intelectual e moral da infncia e da

    juventude; DA FAMLIA Art. 125 - A educao integral da prole o

    primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado no ser estranho a

    esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiria, para

    facilitar a sua execuo ou suprir as deficincias e lacunas da educao

    particular; Aos pais miserveis assiste o direito de invocar o auxlio e

    proteo do Estado para a subsistncia e educao da sua prole. Art.

    131 - A educao fsica, o ensino cvico e o de trabalhos manuais sero

    obrigatrios em todas as escolas primrias, normais e secundrias

    (1937).

    A Constituio de 1937 absorve grande parte das discusses pautadas

    pelas reformas educacionais da poca. Ela tambm introduz nas legislaes do

    Estado o ensino profissionalizante e torna obrigatrio, para a indstria e os

    sindicatos, a criao de escolas que formem em sua especialidade os filhos de

    seus operrios ou associados. O foco nesse perodo se torna preparar futuros

    operrios para a indstria e, tal racionalidade, torna possvel fazer emergir em

    seguida o Servio Nacional de Aprendizagem Industrial [Senai] e o Servio

    Nacional de Aprendizagem Comercial [Senac], voltados parcela mais pobre

    da populao (Piana, 2009).

    Ser tambm na Constituio de 1937 que a educao ter sua primeira

    apario como dever das famlias, ou seja, nela que se descreve o carter

    obrigatrio do processo educativo para os responsveis pelas crianas. Apesar

    de ser a primeira constituio brasileira que evidencia a obrigatoriedade dos

    parentes de educarem suas crianas, esse vnculo obrigatrio no se refere

    insero dos jovens especificadamente em um servio escolar. Em

    compensao, Mouro (1959) discute que na poca do Imprio a prtica de

    obrigar os responsveis pela criana a inseri-la na escola j era recorrente no

    pas como, por exemplo, na Lei n. 13 de 28 de maro de 1835, que

  • 22

    determinava o pagamento de multas para os responsveis pelos menores que

    no estivessem fazendo-os frequentar a escola ou dando-lhes instruo.

    Naquela poca, para instituir a obrigatoriedade aos pais, ficava ao encargo do

    Juiz de Paz fornecer uma lista dos meninos da regio cuja idade fosse de oito a

    quatorze anos.

    A obrigatoriedade da educao no lar e na escola vai ser imposta aos

    responsveis aps o governo de Getlio, momento no qual se busca superar o

    perodo de ditadura e instaurar um sistema de regime representativo, em que

    emerge uma nova ordem constitucional. A Constituio de 1946, promulgada

    em 18 de Setembro, apresenta a educao no Ttulo VI - Da Famlia, da

    Educao e da Cultura. Captulo II - Da Educao e da Cultura. No Art. 166, a

    educao ser descrita como direito de todos e ser dada no lar e na escola.

    Deve inspirar-se nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade

    humana. interessante destacar que nessa Constituio, no Art. 167, se

    oficializa o livre ensino de diferentes ramos iniciativa particular, respeitadas

    as leis que o regulem (Constituio dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de

    setembro de 1946).

    Nesse documento, as leis que produzem o sujeito de direito educao

    se colocam vinculadas noo de famlia e de cultura no mesmo Ttulo. A

    educao, como prtica que deveria ocorrer em casa, pautada por ideais de

    liberdade e solidariedade, orientam os princpios educativos propostos pelo

    governo. Horta (1998) coloca que a educao nessa Constituio direito da

    populao, mas ainda no afirmada como dever do Estado. Assim, se

    mantem a lgica no documento de 1946 o que j era afirmado na Constituio

    de 1937, no Art. 171, que Os Estados e o Distrito Federal organizaro os

    seus sistemas de ensino (1946), mas no um dever deles garantir a

    existncia de vagas, acesso ou permanncia (Brasil, 1946).

    Em 1953, pela Lei n. 1.920 de 25 de julho, veremos o desmembramento

    do Ministrio da Educao e Sade que passa a denominar-se Ministrio da

    Educao e Cultura. Essa ao regulariza de forma mais estratificada as aes

    do Ministrio da Educao e Cultura, ampliando os objetos de interveno

    governamental, assim como, desmembrando os saldos de dotaes

  • 23

    oramentrias destinados s reparties de cada Ministrio (Lei n. 1.920, de

    25 de julho de 1953).

    Na dcada de 60, na passagem do governo Castelo Branco para o

    Costa e Silva, vemos uma Constituio que emerge em um contexto no qual

    predominava o autoritarismo e o arbtrio poltico. Na Constituio de 1967,

    teremos a educao e cultura continuando vinculada noo de famlia no

    Ttulo IV - Da famlia, da educao e da cultura: Art. 168 - A educao

    direito de todos e ser dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de

    oportunidade, deve inspirar-se no princpio da unidade nacional e nos ideais de

    liberdade e de solidariedade humana. Nesse documento, se ampliar o apoio

    s iniciativas privadas de ensino, inclusive, atravs do amparo tcnico e

    financeiro dos Poderes Pblicos, incluindo a oferta de bolsas de estudos. A

    educao, a partir do ensino das cincias, letras e artes, so colocadas como

    livres, sem nenhuma jurisdio que as censure (Constituio da Repblica

    Federativa do Brasil de 1967).

    De acordo com Freitag (1986), o terceiro perodo que marca a educao

    no Brasil, de 1960 em diante, pautado por discursos sobre a

    redemocratizao do pas. O surgimento de um Estado populista

    desenvolvimentista produz novos movimentos e reformas, principalmente no

    que se refere exigncia de uma escola pblica, gratuita e universal. Os

    movimentos sociais se destacavam pelo engajamento de polticos, intelectuais

    e estudantes que estimulavam a populao no processo de participao

    poltica e de tomada de conscincia sobre os problemas vividos pelo Brasil na

    dcada de 1950. O sujeito de direito educao passa a ter uma afirmao

    maior de seu carter universal, j que os processos educativos tornam-se

    estratgia para a ordem e progresso do pas, quando vinculados ao dispositivo

    da obrigatoriedade.

    Ser no incio da dcada de 1960 que se retomar o Anteprojeto de Lei

    de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, o qual discutia o dever de educar

    e a obrigatoriedade escolar, discorrendo sobre seus critrios (Almeida Jnior,

    1949). Depois de demorada tramitao, a Lei de Diretrizes e Bases

    promulgada em 1961 e passa a estender os critrios de obrigatoriedade,

    incluindo o Poder Pblico como assegurador desse direito. Essa Lei afirma a

  • 24

    obrigatoriedade por parte do Estado para que garanta servios de educao

    bsica populao, mas, na Constituio dessa poca, a obrigatoriedade para

    o Estado ainda no colocada (Lei n 4.024, de 20 de dezembro de 1961).

    O ano de 1960 marcado por diversos conflitos econmicos, sociais e

    polticos. Os governantes do Brasil buscavam recursos face ruptura da

    Repblica agroexportadora, o crescimento urbano que emergia e os militares

    que desejavam construir suas prprias armas. A Era Vargas havia possibilitado

    negociaes com os americanos, que exigiram o apoio do Brasil aos Aliados da

    Segunda Guerra Mundial, em troca de benefcios que tornaram possvel a

    crescente industrializao do Estado brasileiro daquela poca. A incorporao

    poltica de grupos com interesses voltados ao setor industrial, possibilitou a

    emergncia da indstria como modelo hegemnico do capital e do trabalho nos

    anos posteriores a 1960. O Brasil era um pas dependente, marcado pela

    internacionalizao do capital que direcionava os jogos polticos aqui

    colocados. A chamada burguesia nacional aliava-se aos interesses de pases

    internacionais buscando investimento para reproduzir suas estratgias de

    interveno social, as quais davam segurana e manuteno a seus poderes

    polticos e projetos societrios (Cunha e Ges, 1996).

    De acordo com os autores,

    ...os intelectuais orgnicos da classe dominante atuavam no Congresso

    Nacional, formavam opinio pblica atravs dos meios de comunicao

    de massas, da escola, de parte das Igrejas, de organizaes tipo IPES

    (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de

    Ao Democrtica), instrumentalizando conceitos ideolgicos de

    civilizao ocidental crist, corrompendo com o dinheiro da embaixada

    americana (eleies de 1962) com o objetivo poltico de conservao

    das estruturas, contra as reformas ou qualquer mudana (Cunha e

    Ges, 1996, p.9).

    Em 1969, Ministros da Marinha de Guerra, do Exrcito e da Aeronutica

    Militar formulam uma Ementa Constitucional que edita o texto da Constituio

    Federal de 1967. Essa ao, declaradamente imposta, marca a oficialidade do

    regime ditatorial por parte dos militares no Brasil. A nova e editada Constituio

    de 1967 vai apontar diversas modificaes, principalmente no que se refere a

  • 25

    alteraes jurdicas que potencializaram o cerceamento da conduta da

    populao e ampliaram o poder de controle do Estado, no apenas em relao

    ao territrio, mas tambm sobre a vida dos brasileiros.

    A educao da poca, marcada por um regime imposto, foi pautada por

    acordos que privilegiavam os interesses de quem estava no poder.

    Destacamos aqui o acordo entre o Ministrio da Educao e a United States

    Agency for International Development (USAID) que, sob justificativa de

    prestao de assistncia tcnica, tornou possvel a interferncia norte-

    americana na educao nacional brasileira. Foram institudas diversas

    mudanas de planejamento, assessoria, fornecimento de material e de

    execuo das propostas pedaggicas, normalmente camufladas sob a

    justificativa de modernizao do ensino.

    Os movimentos de educao e cultura popular foram encerrados a partir

    desse acordo MEC-USAID e muitos de seus educadores foram cassados,

    presos ou exilados. A principal medida no campo da educao pelo governo

    imposto no golpe de 1964 foi a represso. Todos os funcionrios ou materiais

    que eram suspeitos de divulgar prticas ou pensamentos considerados

    comunistas eram demitidos, suspensos ou apreendidos. Muitos reitores e

    professores foram demitidos de universidades, programas educacionais

    tiveram suas verbas cortadas e materiais incinerados. A educao passou a

    ser vista como um grande negcio, com isso, emergiram os defensores do

    privatismo que exaltavam as escolas privadas como fonte de obteno de

    capital, em detrimento do ensino pblico gratuito (Cunha e Ges, 1996).

    interessante destacar que a Constituio de 1967, editada em 1969,

    mantm a educao como direito de todos, assim como outras clusulas que

    incluem o regramento sobre o ensino. Apesar do regime de governo dessa

    poca ser ditatorial, muitos dos argumentos jurdicos utilizados pelos ditadores

    continuaram sendo os mesmos desenvolvidos por regimes que acreditavam ser

    democrticos. Uma diferena importante que a Ementa Constitucional do

    regime ditatorial institui a obrigatoriedade, por parte do Estado, em prover a

    educao. Assim, seguindo a lgica da Lei de Diretrizes e Bases promulgada

    em 1961, teremos o Art. 168 previsto na Constituio de 1967 apagado e

    substitudo pelo Art. 166 que descreve: A educao, inspirada no princpio da

  • 26

    unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, direito de

    todos e dever do Estado, e ser dada no lar e na escola (Emenda

    Constitucional n 1, de 17 de outubro de 1969, sublinhado nosso).

    Anteriormente considerada como uma prtica livre, a educao a partir

    do ensino das cincias, letras e artes continuar sendo livre, desde que no

    infrinja o disposto no pargrafo 8 do Artigo 153:

    8 livre a manifestao de pensamento, de convico poltica ou

    filosfica, bem como a prestao de informao independentemente de

    censura, salvo quanto a diverses e espetculos pblicos, respondendo

    cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer (...) No sero,

    porm, toleradas a propaganda de guerra, de subverso da ordem ou de

    preconceitos de religio, de raa ou de classe, e as publicaes e

    exteriorizaes contrrias moral e aos bons costumes (1969).

    O regime militar no Brasil durou 21 anos e termina em 1985 junto com o

    mandato de Joo Baptista Figueiredo. Em 14 de maro de 1985, no Decreto n.

    91.144, se cria o Ministrio da Cultura desmembrando o at ento Ministrio da

    Educao e Cultura em duas instituies distintas. A justificativa governamental

    de tal ao se pauta pelo argumento de que:

    CONSIDERANDO que o crescimento econmico e demogrfico do Pas,

    a expanso da rede escolar e universitria, a complexidade cada vez

    maior dos problemas ligados poltica educacional, nas suas diferentes

    funes no desenvolvimento nacional, bem como o enriquecimento da

    cultura nacional, decorrente da integrao crescente entre as diversas

    regies brasileiras e da multiplicao das iniciativas de valor cultural,

    tornaram a estrutura orgnica do Ministrio da Educao e Cultura

    incapaz de cumprir, simultaneamente, as exigncias dos dois campos de

    sua competncia na atualidade brasileira (Decreto n. 91.144, de 15 de

    Maro de 1985).

    Destacamos nessa justificativa governamental o vnculo que vai se

    estabelecer entre crescimento econmico, demogrfico e o aumento de

    servios na rea da educao, que torna possvel o surgimento do Ministrio

    da Educao no pas. De acordo com Lockmann (2013), ser entre 1985 e

    1990 que podemos pensar na emergncia de uma racionalidade neoliberal no

  • 27

    Brasil. O discurso da redemocratizao nacional surge entre embates polticos

    que evidenciam uma forma mais intervencionista de governar e outra mais

    liberal. O Brasil, quando comparado a outros pases como Alemanha ou

    Estados Unidos no que se refere a um modo neoliberal de governar a

    populao, apresentar suas especificidades. No podemos dizer que h uma

    prtica homognea de governamento dos sujeitos no pas, mas sim, se

    mantm as disputas, tenses, contradies e disparidades dos jogos de poder,

    tendo como centralidade o manuseio dos direitos dos governados, o livre

    mercado, a economia, as leis, entre outros, como formas de estratgia poltica.

    No campo da educao, ser a partir da Constituio Federal de 1988

    que o conceito de educao ganhar um captulo especfico e, afirmado

    enquanto direito social, ser descrito no Art. 205 como direito de todos e

    dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao

    da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para

    o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho (Constituio da

    Repblica Federativa do Brasil de 1988).

    interessante perceber a transformao dos jogos discursivos que

    ocorrem na descrio da educao ao longo do sculo XX. Famlia, moral,

    unidade nacional, solidariedade, liberdade, lar e escola so termos que

    apareceram repetidamente desde a primeira Constituio, sendo centrais para

    a jurisdio educacional do Brasil. Na Constituio de 1967, famlia, educao

    e cultura estavam no mesmo Ttulo IV e nela a educao era dever da famlia,

    mas no do Estado. Na reformulao dessa Constituio por parte dos

    Militares, se manter no mesmo Ttulo, mas agora o Estado afirma seu dever

    de garantir a educao. Na Constituio de 1988, se desmembrar o vnculo

    do Ttulo anterior entre famlia, educao e cultura, mas a famlia entrar como

    membro ao lado do Estado que agora tem o dever de garantir a educao de

    seu afiliados. O documento marca um importante elo do sujeito de direito

    educao com a famlia, a sociedade e o trabalho, que anteriormente no

    estavam previstos em regulamentao.

    A Constituio de 1988 o ltimo regime proposto no Brasil at ento.

    Desde l, muitas Leis, Decretos, Programas, entre outros, surgem no campo da

    educao visando elaborar seu regramento. Freitas (2008) evidencia, atravs

  • 28

    da discusso sobre a Lei n. 9.394/1996 [LDB] (1996), a forma como, com base

    na Constituio de 1988, passa a emergir a ideia de educao bsica no

    contexto nacional. Para a autora, o significado de bsico passa a condicionar a

    finalidade do ensino brasileiro. Dentre as mudanas que a terminologia institui,

    possvel perceber a introduo do vnculo entre a proposta de educao

    escolar bsica diretamente atrelada ao campo do trabalho e da manuteno de

    determinadas prticas sociais (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996).

    Na Constituio de 1988 a educao torna-se discursivamente

    produzida como obrigatria para crianas e adolescentes, tendo como

    responsveis as suas famlias, a sociedade e o Estado. A esse ltimo caberia

    eliminar os obstculos que emergem para a efetivao desse direito j que

    3 - Compete ao Poder Pblico recensear os educandos no ensino

    fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsveis,

    pela frequncia escola (Constituio da Repblica Federativa do Brasil de

    1988).

    De acordo com Freitas (2008), no Brasil, as polticas educacionais de

    Estado afirmam o carter de obrigatoriedade educacional apenas ao nvel do

    ensino fundamental. Dessa forma, dever da Federao, dos Estados e

    Municpios garantir vagas e acesso populao nessa modalidade. Ao menos

    formalmente, o ensino fundamental precedido pela educao infantil,

    incluindo creche e pr-escola, sendo sucedido pelo ensino mdio. Pelo carter

    de obrigatoriedade, as polticas pblicas brasileiras atuais seguem atribuindo

    prioridade nas aes que incidem na esfera do ensino fundamental, por isso,

    torna-se interessante destacar que nesse campo que a educao integral,

    atravs do Programa Mais Educao, ser inserida.

    O arranjo que se estabelece nessa relao direito/obrigatoriedade um

    jogo central para pensarmos os dados que iro emergir atravs da execuo

    dos processos de pesquisa. Alm disso, conceitos como famlia, moral,

    unidade nacional, liberdade, solidariedade, trabalho, entre outros, so

    operadores centrais para a discusso posterior dos materiais. Atravs deles,

    ser possvel complexificar e abranger o entendimento sobre como se constitui

    a garantia do direito de acesso educao nas aes que se estabelecem

    entre o campo da Poltica de Assistncia Social e o Programa Mais Educao.

  • 29

    A assistncia social, ao propor prticas de garantia de direitos, coloca a

    educao como uma poltica complementar s suas aes. O Estado, ao

    instituir obrigatoriedades e condicionalidades a essas polticas, adentra no jogo

    de garantir/obrigar sob o argumento da afirmao do sujeito enquanto humano

    e, por isso, com direitos.

    O Programa Mais Educao, ao propor a educao integral nas escolas

    pblicas como ferramenta de garantia de direitos e produo de cidadania,

    emerge nessa trama complexa Estado/direito/obrigatoriedade, produzindo

    determinados efeitos. Nossa proposta poder evidenciar alguns desses efeitos

    na constituio do sujeito de direito educao atravs deste Projeto de

    Pesquisa, mas, para isso, inicialmente retomaremos alguns pontos histricos

    sobre a educao integral no contexto brasileiro. O intuito dessa ao fazer

    emergir alguns discursos e rupturas que tornaram possveis o surgimento do

    Mais Educao na contemporaneidade, buscando compreender que condies

    de possibilidades criam-se atravs desse Programa que tornam possveis sua

    conectividade com a assistncia social nos dispositivos atuais de governo.

    4. Discursos sobre educao integral em contexto brasileiro

    Para que possamos analisar as transformaes nas racionalidades que

    pautaram o tema da educao integral no Brasil, destacando algumas cenas do

    processo histrico do pas. Adentrar em um processo de pesquisa atravs de

    uma perspectiva inspirada nos estudos do filsofo Michel Foucault demanda

    relevar que a produo de discursos nos levam a compreender as

    racionalidades de uma poca. Assim, procuraremos abordar como foi se

    produzindo o tema da educao integral no Brasil, entendendo que os saberes

    emergidos sobre o assunto forjavam sistematicamente os objetos dos quais

    falavam. Compreende-se que todo discurso uma ao, uma prtica, j que

    conduz vontades, intenses estratgicas e articula de maneira variada

    exerccios de poder, sendo indispensveis na sua sustentao e atuao eficaz

    (Foucault, 2010).

    Ao realizarmos esse exerccio, no buscamos constituir uma linearidade

    de fatos ao longo das pocas. Nossa tentativa objetiva tornar visvel questes

    que foram ditas sobre a educao integral, de onde foram falados, a quem se

  • 30

    destinavam, quais efeitos foram produzidos atravs desses discursos e quais

    regimes de verdade embasaram suas formulaes. Dessa forma,

    compreendemos que a relao entre a Poltica de Assistncia Social e o

    Programa Mais Educao evidenciam a produo de jurisdies as quais

    fazem parte de jogos de disputa, jogos de poder, jogos discursivos, nos quais

    regimes de condutas so propostos atravs de diversos cdigos. O Mais

    Educao e sua proposta de educao integral, assim como todas as polticas

    das aes humanas, so aqui tomados para anlise como ferramenta de

    reproduo de racionalidades e, consideravelmente, produtores de sujeies e

    constituidores da noo de Estado.

    No Brasil, para compreendermos a emergncia da noo de educao

    integral, no campo de disputa do sujeito de direito educao e nas prticas da

    assistncia social, necessrio nos remetermos ao estudo da racionalidade

    educacional da dcada entre 1920 e 1930. Naquela poca, a ideia de integral

    era interpretada tanto como uma educao escolar ampliada em suas tarefas

    culturais e sociais, aumentando significativamente o tempo de permanncia na

    escola ou nos seus processos educacionais, quanto em relao funo da

    educao que formaria, ou no, um sujeito integral. As discusses, apesar de

    terem como foco propostas de intervenes sobre as populaes mais pobres,

    se limitavam a abordar o carter funcional da educao, sem compreender

    explicitamente essa como uma prtica de assistncia ao social (Cavaliere,

    2010).

    De acordo com Cavaliere (2010), em meados de 1920 as correntes

    polticas educacionais elitistas e autoritrias entendiam a insero da

    populao na educao integral como uma potente estratgia de controle

    social e de distribuio criteriosa das massas de forma hierarquizada. O

    extremo dessa perspectiva evidenciado a partir da proposta de educao

    integral presente no discurso da Ao Integralista Brasileira [AIB], que previa o

    envolvimento do Estado, da famlia e da religio para sua efetividade. De cunho

    moralizador, os valores da educao Integralista eram sacrifcio, sofrimento,

    disciplina e obedincia (p.250). Era evidente que, a argumentao em torno de

    um homem integral, referia-se a um processo educativo voltado a servio do

    Estado, que abria espao para o privatismo, ao defender o ensino em torno da

  • 31

    instituio famlia e da religio como orientadores dos processos educacionais

    (Cavaliere, 2010).

    A questo central para tal corrente era a tomada da noo de sujeito

    integral no sentido de sujeito ntegro. Focada diretamente nas populaes

    pobres, a poltica da Ao Integralista de atuao no social propunha um

    aumento de permanncia na escola, no apenas como uma ao educativa

    incidente sobre as massas, mas como uma proposta poltico-filosfica de

    interferir na cultura da populao, alterando seu fsico, seu intelecto, questes

    cvicas e espirituais. Todas essas estratgias se pautavam pela lgica de que

    elas elevariam o nvel moral dos sujeitos, regenerando a sociedade e o

    indivduo (Cavaliere, 2010).

    De acordo com Fagundes (2012), 07 de outubro de 1932 um marco no

    calendrio poltico dos integralistas. nessa data, dentro do tradicional Teatro

    Municipal de So Paulo, que eles leem e celebram abertamente a publicao

    do Manifesto de Outubro. O ms de outubro torna-se uma referncia nas

    aes dos integralistas, que passam a realizar diversos ritos e eventos, sempre

    que o ms se aproxima. A Ao Integralista Brasileira se inspirava nas

    organizaes facistas, sobretudo da Itlia, que seguiam uma srie de normas e

    rituais. Militantes do partido vestiam sempre uma camisa verde e gravata, seu

    smbolo era representado pela letra do alfabeto grego sigma (), que na

    matemtica utilizada para realizar o clculo integral, numa aluso

    necessidade de integrar todos os brasileiros (Fagundes, 2012, p.890).

    O partido se organizava em milcias, nome genrico dado a

    organizaes militares ou paramilitares compostas por cidados comuns,

    armados ou com poder de polcia, que teoricamente no integram as foras

    armadas de um pas. Utilizavam-se da palavra anau, de origem tupi-guarani,

    como forma de saudao, que deveria ser realizada com o brao direito

    estendido. Para divulgao das ideias do movimento, formavam os ncleos da

    AIB, sendo 1933 um marco no crescimento e divulgao da organizao a nvel

    nacional (Fagundes, 2012). No campo das propostas de educao integral,

    operava a lgica de moralizar a populao por essa via, no restringindo o

    processo educativo apenas alfabetizao.

  • 32

    J em outro vis poltico, predominava o entendimento da educao

    integral como um percurso necessrio para o desenvolvimento da democracia.

    Nesse perodo, Ansio Teixeira teve papel central na elaborao tcnica e

    terica objetivando ampliar as funes da escola e seu fortalecimento

    institucional. As ideias presentes em seus livros como, por exemplo, Educao

    para a democracia, Educao no privilgio e Educao um direito,

    foram bases terico-filosficas para a construo do seu projeto de reforma

    educacional brasileiro. Sua proposta de educao integral vinculada

    democracia tinha como centralidade o ideal de que sujeitos integrais seriam

    pessoas intencionalmente cooperativas e participativas, pois compreenderiam

    sua importncia junto sociedade e natureza (Cavaliere, 2010).

    Em meados de 1929, aps duas viagens de estudos aos Estados

    Unidos, Ansio retorna ao Brasil permeado pelo pragmatismo americano e por

    propostas europeias, que se pautavam em uma concepo de educao

    escolar ampliada. Junto a isso, o processo de urbanizao e de crescimento

    das indstrias no contexto brasileiro acarretam a produo de desigualdades

    sociais e mazelas cada vez mais visveis, fazendo emergir na classe intelectual

    e poltica um intenso apelo para a transformao da educao escolar como

    forma de lidar com as mudanas decorrentes da poca (Cavaliere, 2010).

    Dentre suas diversas ideias, Ansio Teixeira apontava a importncia da

    educao integral como possibilidade de superar os ndices de evaso escolar.

    Para ele a evaso ocorria pois o ensino escolar priorizava uma formao

    elementar voltada para preparar o aluno para o ginsio e a faculdade e no

    formar o indivduo. De acordo com suas ideias, resta toda a obra de

    familiarizar a criana com os aspectos fundamentais da civilizao, habitu-la

    ao manejo de instrumentos mais aperfeioados de cultura e dar-lhes segurana

    de inteligncia e de crtica para viver em um meio de mudana e transformao

    permanentes (Teixeira, 1997, p.85).

    Ansio compreendia a educao integral como uma via de ampliar as

    funes da escola, que anteriormente cabiam apenas famlia e sociedade,

    no que se referia formao do indivduo para a democracia. Essa formao

    referia-se habilitar os sujeitos para a tarefa econmica, ensinando-os a

    participar da vida coletiva, capacitando-os para serem sujeitos cidados, com

  • 33

    direitos plenos, educao no simplesmente preparao para a vida, mas a

    prpria vida em permanente desenvolvimento (Cavaliere, 2010, p.254). Na

    busca por romper com uma viso meramente utilitarista da escola, referindo-se

    ao processo de alfabetizao, Ansio alia a proposta de educao integral a

    projetos sobre cuidados da sade, higiene da escola, artes, artes industriais e

    domsticas, recreao, jogos, entre outros. Destacamos ateno para o fato

    dos textos de Ansio sempre terminarem com profundas discusses sobre a

    condio humana do sujeito aprendiz, correlacionando diretamente educao e

    civilizao (Cavaliere, 2010).

    No embate de perspectivas sobre a educao integral, Cavaliere (2010)

    argumenta que existem trs principais correntes histricas no Brasil,

    contraditrias e paradoxais, que se apresentam atravs das seguintes

    questes: 1) Mobilizaes que se referem ao desejo de uma educao

    radicalmente liberal e elitista, que propunha certa domesticao e cura das

    classes populares. Nessa viso, predominava a perspectiva higienista-

    educacional que pretendia libertar o povo da ignorncia, compreendendo a

    ignorncia como doena, os analfabetos como seres que vegetavam, a

    formulao do povo-criana a ser educado e preparado para transformar-se

    em povo- nao (p.251); 2) A corrente defendida tambm por Ansio

    Teixeira, utilizava-se de argumentos como, por exemplo, relacionados funo

    formativa da escola e da educao como modo de ampliar a cultura da

    populao. Usa-se termos como, desenvolvimento humano, cultura, crtica e

    democracia para fundamentar suas discusses e exigncias; e 3)

    Especialistas que reivindicam a expanso dos sistemas escolares, dando

    urgncia ao crescimento quantitativo, ao invs do qualitativo. O foco nesse vis

    instituir a alfabetizao em massa da populao.

    A noo de educao integral, nesse embate de perspectivas, central

    na busca por tencionar a proposta em torno do aumento quantitativo dos

    servios escolares, questionando a alfabetizao seriada dos brasileiros

    desvinculada da preocupao tica do processo formativo. O intuito da

    expanso dos servios evidenciado atravs, por exemplo, da Reforma

    Educacional elaborada pelo diretor da Instruo Pblica do Estado de So

    Paulo, Sampaio Dria, o qual estabeleceu uma medida que visava o

  • 34

    crescimento rpido do nmero de alfabetizados. Dria props a reduo do

    Ensino Primrio de quatro para dois anos, afirmou a obrigatoriedade e

    gratuidade do ensino e reduziu a jornada escolar, justificando que tempo

    compacto e turmas seriadas aumentariam a qualidade e abrangncia do

    trabalho desenvolvido pelos educadores (Dria, 1923).

    A centralidade na alfabetizao fez emergir a proposta de educao

    integral quase como um contraponto aos movimentos de serializao escolar.

    Para muitos intelectuais e polticos da poca, a reduo do tempo de ensino,

    conhecida tambm como o movimento de fetichismo da alfabetizao, foi

    compreendida como um retrocesso ao ensino (Carvalho, 1988). Assim, a

    exigncia de uma educao ampliada torna-se bandeira dos movimentos que

    idealizavam o ensino como algo alm do processo de alfabetizao. Um dos

    resultados dessas mobilizaes o Manifesto dos Pioneiros da Educao

    Nova (1932), no qual intelectuais reformistas defendiam uma escola com

    funes ampliadas.

    Esse documento, que j havamos discutido brevemente ao tratarmos no

    captulo anterior sobre a educao como direito, prope a educao integral a

    partir do reconhecimento da educao pblica como um direito do indivduo,

    que alargaria os limites e raios de ao do processo educacional. A educao

    integral no colocada apenas em relao ao tempo de permanncia na

    escola, mas tambm, vinculada a uma concepo de desenvolvimento

    integral (p.196) e de formao da personalidade integral do aluno (Azevedo,

    F. de et al. 1932, p.198).

    No mesmo ano de publicao desse documento, e sendo um dos

    autores que o assinaram, Ansio Teixeira apresenta o plano de parques

    escolares, que viria a adotar mais tarde na Bahia e em Braslia,

    respectivamente nos anos 1950 e 1960. A educao integral proposta nesse

    projeto consistia em compreender que a escola deveria ser uma reproduo

    em miniatura do que a vida na comunidade. De acordo com Cavaliere (2010),

    o Centro Educacional Carneiro Ribeiro construdo na Bahia lembraria uma

    universidade infantil e ofereceria s crianas um retrato da vida em sociedade

    (p.256).

  • 35

    Escola como miniatura da comunidade, cidades-escolas, parques-

    escolares e outros termos so referncias quando se fala das propostas de

    educao integral de Ansio Teixeira. Suas ideias, sempre justificadas pela

    produo de um sujeito da democracia, cidado participativo e integrado

    comunidade, tinham como base lgica de que a educao que produz

    civilizao (Teixeira, 1997, p.84). Apesar de no ser declaradamente membro

    da Ao Integralista Brasileira, Ansio apresentava argumentos muito

    semelhantes no que se referia educao como via de progresso e como

    forma de manuteno da integridade moral humana. Civilizar um termo

    central para compreendermos a concepo de educao que se vincula o

    autor.

    No percurso do presente estudo, nos chama a ateno para o fato de

    que a noo de civilizar, como um dos objetivos da educao, ser retomado

    na atualidade em torno dos discursos de pesquisadoras na rea da educao

    integral. Jaqueline Moll, em entrevista a TV Supren, discorre sobre o fato de

    que na contemporaneidade no presumvel pensar a cidade sem pensar na

    educao. A pesquisadora acredita que no mais possvel educar as

    geraes s na escola, preciso que a escola se conecte com o que est no

    seu entorno (Moll, 2012, 4:20min). Inspirada em Paulo Freire e em outros

    autores como, por exemplo, Ansio Teixeira, Jaqueline Moll percorreu sua

    trajetria de professora e pesquisadora, incluindo sua participao no Ministrio

    da Educao, encarregando a tarefa de dirigir a Diretoria de Educao

    Integral, Direitos Humanos e Cidadania e de coordenar esforos para

    concretizao do Programa Mais Educao, meta do Plano de

    Desenvolvimento da Educao do governo brasileiro (Moll, 2012a, p.27).

    O Programa Mais Educao um marco no regime da educao integral

    no Brasil, j que institui os esforos do governo em fomentar a educao

    integral em escolas pblicas (Portaria Normativa Interministerial n. 17, de 24

    de abril de 2007). Resultado de um longo percurso de discusses, como

    apresentamos anteriormente, desde a dcada de 1920 at a atualidade o Mais

    Educao torna possvel a concretizao de ideais de intelectuais e polticos no

    campo da educao. interessante ressaltar que, ao invs de utilizar termos

    como moralizar ou civilizar, quando referindo funo da educao, o

  • 36

    Programa Mais Educao ter o aporte da palavra socioeducar como base

    estratgica para suas aes: o Programa... visa fomentar, por meio de

    sensibilizao, incentivo e apoio, projetos ou aes de articulao de polticas

    sociais e implementao de aes socioeducativas oferecidas gratuitamente a

    crianas, adolescentes e jovens (Brasil, 2013, p.5).

    O Mais Educao, inicialmente, era uma poltica criada via Ministrio da

    Educao, sem conexo com as aes da Poltica Nacional de Assistncia

    social. No documento da PNAS de 2009, descreve-se que a assistncia Social,

    enquanto poltica pblica, deveria se articular aos servios intersetoriais,

    principalmente os de Sade, Educao, Cultura, Esporte, Emprego,

    Habitao (Brasil, 2004, p.42). Nas aes da poltica de assistncia, o

    documento descreve que caberia ao Estado apoiar as famlias na educao de

    suas crianas e adolescentes, mas ele no cita a vinculao dos usurios a um

    Programa em especfico. Com a criao do Programa Bolsa Famlia em 2004,

    se constitui o vnculo entre as prticas de assistncia social e de educao

    atravs das condicionalidades impostas aos beneficirios, como o caso da

    frequncia escolar exigida s crianas e adolescentes de famlias beneficiadas.

    Em 2011, se afirma o vnculo do Programa Mais Educao com o Ministrio do

    Desenvolvimento Social e Combate Fome buscando ampliar o acesso de

    beneficiados do Bolsa Famlia poltica do Mais Educao. Assim, a educao

    integral passa a fazer parte das estratgias de governo da populao propostas

    pelas prticas da assistncia social.

    Antes de apresentarmos o Programa Mais Educao e sua descrio

    juridicamente oficial, julgamos necessrio, por uma questo tica, no ignorar

    os termos que frequentemente acompanham os objetivos das propostas sobre

    educao integral emergentes no Brasil. Moralizar, civilizar ou socioeducar? Na

    busca por ampliarmos a compreenso sobre essas noes partimos de um

    dispositivo discursivo que emerge na entrevista da TV Supren, com Jaqueline

    Moll. Nela, em meio apresentao do Programa Mais Educao, discorrendo

    sobre sua abrangncia nacional e influncia de rgos internacionais na sua

    formulao, o entrevistador pergunta pesquisadora: ainda dentro desse

    mbito internacional, , o mundo inteiro j respira o clima da educao integral

    n, h duzentos anos os Estados Unidos, h 190 na Coria do Sul, a Europa, o

  • 37

    Japo, enfim, uma agenda que chega no Brasil, mas que o mundo civilizado

    todo j adota, isso? (Moll, 2012, 6:34min).

    A relao que se estabelece entre a educao integral e a constituio

    de um mundo civilizado, atravessada por termos como moralizar, civilizar e

    socioeducar, quando colocados em anlise atravs das discusses de Michel

    Foucault, so importantes analisadores para este Projeto. Foucault prope um

    processo de anlise que desnaturalize os universais em torno do campo de

    pesquisa (2004). Dessa forma, partimos do princpio de que a educao e a

    educao integral no existem a priori, ou no seriam a nica forma de

    constituir uma realidade, para ento fazermos a pergunta: qual , por

    conseguinte, a histria que podemos fazer desses diferentes acontecimentos,

    dessas diferentes prticas que, aparentemente, se pautam por esse suposto

    algo que a educao e a educao integral em relao com as prticas de

    assistncia social?VI.

    Visando complexificar a compreenso sobre as prticas de educao

    integral em torno da constituio do Estado brasileiro, tendo como dispositivo

    as produes discursivas que emergem sobre ela, apresentaremos a seguir

    alguns pontos histricos sobre a constituio do Brasil como Estado-nao.

    Essa ao visa ampliar nossa anlise sobre o objetivo atual da educao e da

    proposta de educao integral que circundam as discusses sobre o sujeito de

    direito a educao no Brasil.

    Quando nos referimos no captulo anterior sobre a educao como

    direito, que o primeiro perodo do processo histrico da educao no Brasil, de

    1500 a 1930, abrangia a Colnia, o Imprio e a Primeira Repblica, no

    estvamos falando de um tempo no qual o embate de foras no estava

    colocado. De acordo com Freitag (1986), a chegada dos jesutas, a expanso

    da Igreja Catlica e a disseminao do Cristianismo e da cultura europeia nos

    seminrios e colgios, marcam um perodo de instituio de todo um sistema

    escolar marcado pela imposio dos objetivos da colonizao portuguesa. Sua

    inteno principal era alcanar grandes lucros por meio da exportao para o

    VI Fazemos aqui uma meno ao processo de desnaturalizao dos universais que Michel Foucault prope em torno da loucura (Foucault, 2004, p.5).

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    mercado externo, que se dava pela explorao e extrao de riquezas dos

    territrios hoje entendidos como pertencentes ao Brasil.

    Segundo Galeano (2014), o descobrimento das terras brasileiras marca

    o encontro de espanhis e portugueses com uma vasta e abundante natureza.

    A escravizao dos ndios que habitavam essas terras foi central no processo

    de colonizao portuguesa. Obrigados a trabalharem na extrao de riquezas,

    principalmente da madeira, da cana-de-acar, do ouro, caf, tabaco, cacau,

    borracha, banana, entre outros, milhares de ndios foram exterminados nos

    processos de trabalho, tanto por causa da exausto por horas ininterruptas de

    esforo, quanto por intoxicao, homicdio ou suicdio. Muitos indgenas se

    antecipavam ao destino imposto por seus opressores brancos, matando seus

    filhos ou se suicidando em massa. H relatos que, na Amrica Latina, ndios

    tomavam veneno para no trabalhar e outros que se enforcavam com as

    prprias mos (Fernndez de Oviedo, 1959).

    Junto ao processo colonizador vieram as doenas como, por exemplo, a

    varola, o ttano, tracoma, tifo, lepra, febre amarela, cries e, assim, os ndios

    morriam em massa ou ficavam debilitados e incapazes de esforos. H relatos,

    que na Amrica Latina somava-se a existncia de 70 milhes de ndios antes

    da chegada dos estrangeiros, sendo um sculo depois reduzidos to s a 3,5

    milhes. Com a instaurao da Coroa, os ndios se viram obrigados a pagar

    tributos, at pelos seus parentes mortos. O evangelho era aplicado nos ndios

    agonizantes tanto quanto o chicote. Sob a justificativa de ampliar o reino de

    Deus sobre a terra e propagar a f crist, muitos ndios foram submetidos ao

    processo de catequizao (Galeano, 2014).

    interessante destacar que, ao se depararem com a cultura

    diferenciada dos ndios, os colonizadores passaram a trat-los como libertinos,

    j que o trabalho mensurado por uma produo no era um valor cultural

    indgena. Junto a isso, referiam-se a eles como bestas de carga, portadores de

    uma maldade natural, pecadores por suas idolatrias e, por isso, eram uma

    ofensa a Deus e mereciam o trabalho forado como forma de absolvio. Os

    ndios possuam muitas crenas, que passaram a serem usadas de forma

    estratgica no processo de catequizao. Padres e missionrios espalhavam

    fantasias vernculas como, por exemplo, de que os cavalos usados por

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    representantes da coroa eram de origem sagrada e no poderiam ser mortos.

    Outro argumento era de que os deuses vingativos agora repreendiam os ndios

    atravs de montadores em armaduras, escudos, raios mortferos e fumaas

    irrespirveis como forma de acertar contas com os povos que se negavam ao

    trabalho (Galeano, 2014).

    O medo, a imaginao e o convencimento atravs de ideias

    manipuladas com as prprias crenas dos povos, eram utilizados como

    estratgias discursivas na catequizao dos ndios. Os mesmos acreditavam

    que a terra era sagrada e, por isso, deveria ser usada para a produo como

    forma de valorizar a riqueza do solo. Esse argumento era empregado por

    representantes da coroa como forma de ju