Poiética do Acontecimento. Deleuze e Serres Fernando Machado Silva de Davidson, Kim e Lewis, das...

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Poiética do Acontecimento.Deleuze e Serres

Fernando Machado Silva

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Covilhã, 2010

FICHA TÉCNICA

Título: Poiética do Acontecimento. Deleuze e SerresAutor: Fernando Machado SilvaColecção: Artigos LUSOSOFIADesign da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2010

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Poiética do Acontecimento. Deleuzee Serres

Fernando Machado Silva∗

Índice

Na sombra da sombra do Guerreiro, um atrevimento 5Praxis do Acontecimento 8Acontecimento da Praxis, segundo atrevimento 15Poiesis do Acontecimento 17Da Poiesis 17Eventum Tantum 19Do Acontecimento e da Novidade 33Terceiro atrevimento 37Bibliografia 38

Resumo: Este breve ensaio versa sobre a dimensão poiética, ouseja, inventiva, heurística, do Acontecimento. Sendo este um con-ceito abordado quer pela Filosofia Analítica, quer pela dita Filoso-fia Continental, confrontam-se as duas posições a partir dos seusmais vivos intervenientes. Opomos, pois, as orientações práxicas

∗Doutorando em filosofia contemporânea pela Faculdade de Letras da Uni-versidade de Lisboa, bolseiro pela FCT – Fundação da Ciência e Tecnologia.Lisboa-Portugal.e-mail: [email protected]

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de Davidson, Kim e Lewis, das posições poiéticas de Deleuze eSerres. Contudo, filiando-nos na linha continental e entendendoque a linguagem, por ser uma própria construção humana, nãopossibilita o total acolhimento e o dizer do Acontecimento, sub-linhamos, como atitude mais profunda e afirmativa em relação ao“mistério” do Ser e do Acontecimento, a importância do pensa-mento filosófico deleuzeano e serreseano.

Palavras-chave: Acontecimento, Poiética, Praxis, Linguagem,novo/novidade

Na sombra da sombra do Guerreiro, umatrevimento

Uma estrela nasce a milhares de anos-luz da nossa Terra. Sabe-mos do seu surgimento muito tempo após esse rebentamento, quepoderá, ou não, vir a ter influência nas estruturas, nos movimentosmacro e microscópicos do nosso planeta, da nossa vida. Ao mesmotempo, porque não, uma estrela já morta definhe à vista nua numanoite de Verão, um bebé nasce, rebenta uma guerra, é descobertoum fóssil que desestabiliza conceitos dados como certos da pale-ontologia, da história, porque não, até mesmo da religião. Alguémcompõe uma sonata, ou uma sinfonia, cuja primeira nota de aber-tura nos enche, desde logo, com tamanha alegria, que milhares defontes irrompem no escuro de uma sala. Um livro é escrito, torna-se um best-seller – mas permitam-nos sonhar, desta vez, com umlivro que tenha tudo para não ser a maior venda e por magia, poracaso, se torna nisso – e todo o mundo fica igualmente rendido,um mundo mudo. Ou então, um homem atravessa uma rua, sim-

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plesmente isso, mas esse passeio normalíssimo, banal, rotineiro,modifica-o daí em diante...

O que afinal aconteceu? E o que é isso, o Acontecimento? Tudoo que acima foi dito, entre tantos exemplos possíveis, trata-se deacontecimentos, ou experiências, ou, ainda, acasos? O que há desingular, de único num determinado evento que o torna a manifes-tação de um Acontecimento – melhor, mais do que manifestação,designação ou expressão, ser ele Acontecimento – e não de umaexperiência? Ou, por outro lado, o que os aproxima, o que faz comque uma experiência se diga acontecimento, do acontecimento?

As definições são várias e todavia deslindam-se duas leiturasque logo se chocam, desde logo divergem. Por um lado, encon-tramos a expressão própria de um, nas nossas palavras, reducionis-mo, queremos dizer, a procura da definição de qualquer coisa re-duzindo essa coisa ao mais pequeno elemento adoptando-o comoexpressão da totalidade dessa qualquer coisa. O movimento é ex-plícito, claro, esclarecedor. Nada está isento de ser definido, deser nomeado, tudo pode ser dito, tudo deve ser colocado ao uso, àprática, não há lugar para sombras indefinidas, tudo razoável, ilu-minado. Não há monstros, não há abstracções, não há grandezas,não há mistério, tudo pode e deve ser premeditado. Monta-se ocampus1 da praxis. Do outro lado da barricada, construída pelosprimeiros – assim nos parece, pois nunca um lado se faz sem queum primeiro se imponha –, descobrimos a celebração, a poiesis, oacto poiético de dizer as coisas. Trata-se na realidade de um gestoem tudo semelhante ao movimento heideggeriano do Dasein: háuma vinda à presença que se mostra enquanto se oculta simultane-amente, é o des-velamento do mistério, do Ser, do Acontecimento.Há obviamente, uma vez que somos humanos, isto é, seres tem-porais dotados de linguagem, um processo de redução, aqui, como

1 SERRES, 1993, p. 130. “Chamar campus ao ambiente universitário é umacoisa tão literal dado que esse termo designava outrora o campo ocupado à noitepelos soldados de Roma antes do ataque ou durante a sua defesa.”.

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na frente práxica. Não há, ao invés da primeira, desta última, a re-dução pela redução, própria da pragmática, da analítica, da filosofiada linguagem. Digamos antes que, para a leitura poiética a reduçãose liga ao processo natural linguístico, à própria natureza da lin-guagem quando se propõe dizer o que aí está, o que acontece ouaconteceu. A linguagem aí conflui no jogo de excesso-falta. Oque acontece, o que é (d)o Acontecimento é da dimensão do ex-cesso, do deslumbramento, da revelação; a sua captação, o dizerpredicativo, a re-presentação, dá-se como uma falta, por uma im-possibilidade de dizer tudo do Acontecimento. Logo, a redução dasegunda frente, a redução poiética, dir-se-ia bem melhor no seio doacolhimento. Não colher, tirar, arrancar, pela violência, mas bemacolher, receber, nutrir, aconchegar, fazer chegar o acontecimento– uma mãe vê a sua criança cair e magoar-se, a criança chora ea mãe acorre, recebe-a nos seus braços, diz o acontecimento aopróprio acontecimento e à criança e ao mundo e de novo depositaa criança no chão e ela corre enxugando as lágrimas – e deixá-lo.O acolhimento é da dimensão da criação.

Uma vez que nos encontramos ao meio, que presenciamos estabatalha, escondidos entre os arbustos, tal como o duplo e falsoimperador de Kurosawa, abordaremos os dois lados, embora, talcomo a personagem do sol nascente, içaremos uma bandeira –desvelando o propósito do ensaio.

Teremos sido, talvez, demasiado duros para com a filosofia dalinguagem, com a leitura da praxis? Nós que ainda não temos qual-quer voz? É possível. Não negamos a beleza existente em algumasreduções, em algumas definições. Não negamos a beleza do §7do Tractatus Logico-Philosophicus – mesmo que tenhamos umapalavra a proferir sobre a impossibilidade de se dizer o que não sesabe guardando silêncio, não de todo num modo determinista e fac-tual como no próprio Wittgenstein, mas mais como uma suspeita,ou uma crença no que há de misterioso, de mágico, de imprevistopela sageza; não podemos negar a força do acaso que pode ruir

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a certeza ou os passos de dança da imaginação que muitas vezes,como um funâmbulo, caminha nesse lugar sujeito ao mutismo edescobre ainda o poder de dar um passo mais onde parecia nãohaver mais corda; mais ainda, não parecerá um paradoxo Wittgen-stein afirmar, nesse ponto, um limite, quando no §5.631 deduzindoque o sujeito pensante não existe e afinal é só dele que não se devefalar, uma vez que o “sujeito não pertence ao mundo mas é umlimite do mundo” (WITTGENSTEIN, 2008, p.116, §5.632)? Doque é que não se fala então, ou melhor, do que é que não se podede facto e de direito falar? Do limite. Mas não se fala sempreno limite? Mergulhar na filosofia, como dizia o filósofo austríaco,para dizer qualquer coisa da filosofia de facto e de direito, não éestar, aí, no limite, subir a escada e de lá falar depois de “deitarfora a escada, depois de ter subido por ela” (WITTGENSTEIN,2008, p.142, g6.54)? – ou a forma perfeita da equação da teoria darelatividade, de maneira que, traduzida na linguagem matemáticae traduzidos os termos (E, energia, m, massa, c2, velocidade daluz), não existe falha de comunicação, lugar para má interpretação,perda de sentido. Por um lado, quem não gostaria de dominar umalíngua que, no seu uso, dela não decorresse a incomunicação e to-dos se entendessem? Mas, por outro lado, o que aconteceria aomundo, à vida, ao encontro, ao deslumbramento? Teremos, neces-sariamente, de concordar com Michel Serres ao dizer-nos:

Quando todas as pessoas no mundo falarem, final-mente, uma mesma língua e comunicarem a mesmamensagem ou a mesma regra de razão, desceremosentão, pobres imbecis, mais abaixo do que os ratos,seremos mais estúpidos do que os lagartos. A mesmalíngua e ciência maníacas, as mesmas repetições dosmesmos nomes em todas as latitudes, a terra cobertapor simples tagarelas rabugentos. (SERRES, 1993,p.121)

Abraçar o Acontecimento e o Acontecimento da língua. Da

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nossa. De cada um. Abraçar o Acontecimento no instante de odizer, por dizê-lo, em dizê-lo. Mas ainda antes de o dizer, aindaantes de o percorrermos por uma lógica linguística, abraçar o A-contecimento, deixar correr a estupefacção, o imprevisto. Bom oumau, não há forma de o dizer quando ele acontece, só o dizer o dizqualitativamente, eticamente. O Acontecimento é sendo. Atrav-essa corpos. O nosso, todos. No reverso, dizer o Acontecimento édizer sempre outra coisa.

Praxis do Acontecimento

[x, P, t] ecce Eventum.

Procurando o significado de Acontecimento na enciclopédiade filosofia virtual2 – um artigo que aborda somente a filosofiaanalítica, o que revela muito para o significado de enciclopédia– encontramos imediatamente a seguinte resumida descrição: “éum happening particular, uma ocorrência ou mudança”. Os exem-plos que se seguem dão-nos, por completo, o motivo da escolhados conceitos, como por exemplo, o Rob a beber café à tarde ou areeleição de Abraham Lincoln em 1864. Uma vez que, no enten-der da autora do artigo, Susan Schneider, existe, “metafisicamentefalando”, uma relação entre acontecimentos, o projecto de uma teo-ria do acontecimento é o de fornecer e estabelecer uma condição

2www.iep.utm.edu. Em inglês diz-se Event, mais próximo do etimologialatina. Mas uma vez que em português Acontecimento expressa melhor o queaqui se trata do que Evento, tão ligado aos encontros do dia-a-dia, ou da cultura,traduzimos o Event inglês por Acontecimento. Todas as citações, doravante,desta enciclopédia, apresentar-se-ão pelas siglas SCHNEIDER, embora não pos-samos fornecer a página a qual se refere, pelo qual, desde já, apresentamos asnossas sinceras desculpas.

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de existência bem como uma condição de identidade, isto é, não sópodermos designar isto ou aquilo como acontecimento mas, acimade tudo, definir o acontecimento partindo da igualdade de elemen-tos que dois acontecimentos partilham, partindo da sua identidade,reduzindo dois acontecimentos a um só, ou o inverso, questionandose não será um, no fim de contas, dois: “Por exemplo, se Brutusmata César apunhalando-o, existem dois acontecimentos, o apun-halamento e a morte, ou só um?” (SCHNEIDER. Tradução nossa).Estabelecendo, então, o problema do que é um Acontecimento apartir da sua existência e identidade, chegamos assim a esta singu-lar definição do filósofo americano de ascendência coreana, Jaeg-won Kim que encabeça este parágrafo. Repetimo-la:

[x, P, t]

Esta é a forma/fórmula de todo o Acontecimento. Estabelece acondição pela qual um Acontecimento existe, dá-nos como que umpadrão regulador para qualquer Acontecimento ser nomeado comotal. O seu significado é: o ímpar Acontecimento do objecto x de-tentor da propriedade P ocorre no tempo t. Mas o que significa estaexpressão? Para Kim, os Acontecimentos são estruturados, consti-tuídos por um único ou conjunto de objectos, uma propriedade ourelação e um tempo (ou intervalo de tempo). E o que faz com queum outro Acontecimento se diga o mesmo, ou por outras palavras,como nos apercebemos de que um outro Acontecimento é, afinal,não diferente mas o mesmo Acontecimento. O filósofo americanopropõe, portanto, uma segunda condição, a condição de identidadeou da não-duplicação, colocada assim nestes termos:

[x, P, t] = [y, Q, t’]

Isto é, para que um seja igual ao outro, para, propriamente fa-lando, apenas um Acontecimento existir, necessário é que todos oselementos constitutivos da condição de existência sejam idênticos

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aos outros elementos: se e só se x seja idêntico a y, P idênticoa Q e t idêntico a t’. Partindo destas duas condições, temos queum Acontecimento, de acordo com a teoria kimeana, é irrepetível,um particular concreto que inclui mudanças, diferentes estados econdições; ocupa um determinado espaço-tempo; é consubstanci-ado por uma única e essencial propriedade que o singulariza, isto é,“embora o acontecimento possa exemplificar um número qualquerde propriedades, só uma propriedade, a propriedade constitutiva,individua o acontecimento. As propriedades constitutivas não sãoexemplificadas pelo acontecimento, mas são exemplificadas pelasubstância constitutiva” (SCHNEIDER. Tradução nossa); essa pro-priedade constitutiva apresenta-se como o acontecimento genérico,o qual cria relações de prova-tipo (type-token) ou simbólicas entreacontecimentos; e por fim, o limite da expressão do acontecimentonão termina na condição de existência. Nada é especificado quantoao que são as propriedades – qual é a sua essência; serão univer-sais, tropos, ou outra coisa qualquer? – nem se são abundantesou escassas. Tudo isso delega Kim para as teorias científicas e dosenso-comum. Essas sim deverão dar resposta suficiente e con-tinuidade à moldura teorética proposta por Kim.

Obviamente as críticas são abundantes no seio da filosofia ana-lítica à teoria kimeana dos acontecimentos. Não exploraremos aquiessas mesmas críticas, uma vez que não é esse o propósito do nossotrabalho, como também se encontram muito bem trabalhadas pelaautora Susan Schneider. Contudo, não daremos já por terminada avolta ao campus analítico, pois interessa-nos ainda debruçar sobredois outros filósofos antes de atravessarmos a fronteira e tomarmosa bandeira do velho e poiético continente.

Dois grandes filósofos analíticos americanos contribuíram i-gualmente para a teoria do acontecimento, Donald Davidson e Da-vid Lewis. O primeiro, crítico ferozmente meticuloso de JaegwonKim3, atendendo às condições anteriormente descritas, propõe, por

3 Vd. SCHNEIDER

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sua vez, que um Acontecimento seja uma particular e irrepetívelocorrência, acrescentando à sua definição duas outras condições,um critério causal e um critério espácio-temporal. Afirma o pri-meiro critério a impossibilidade de dois acontecimentos manifes-tarem a mesma causa e efeito. Assim pois, dois acontecimen-tos serão idênticos se e só se ostentarem a mesma causa e efeito,tomando em consideração a condição de identidade, e só a defi-nição singularmente particular de uma causa e do seu efeito nosdá um Acontecimento. Numa palavra, um Acontecimento é umarelação de causa e efeito. Ora, uma questão que logo se poderiacolocar a Davidson é a de saber o que realmente distingue causae efeito. É o acontecimento só a causa? Um efeito não será porsua vez, e no desenrolar do tempo ou no mesmo instante do seuentendimento como efeito, uma causa (tal como os Estóicos nosfalavam de quase-causas em vez de efeitos)?

Descobrindo o carácter tautológico desse critério de causali-dade, Davidson avança, então, para o seu segundo critério, tra-tando-se ainda de uma condição de identidade: dois acontecimen-tos são idênticos se e só se ocorrerem no mesmo bloco de espaço-tempo. Mas serão realmente possíveis dois acontecimentos ocor-rerem no mesmo bloco de espaço-tempo? Parece-nos que estecritério nunca nos poderá fornecer uma resposta acerca da mesmi-dade de dois acontecimentos. Temos em mente, por exemplo, esseparadoxo de Zenão da divisão do tempo (e consequentemente doespaço, acrescentamos, à luz das teorias da física quântica) atéao infinito. Se o tempo e o espaço se sujeitarem a essa divisãoinfinita nunca dois acontecimentos coincidirão no mesmo bloco.Sempre um acontece antes ou depois de outro, embora num nívelmacroscópico pareçam ocorrer no “mesmo” bloco e manifestarema mesma relação de causa e efeito. É certo, não existe, para o Acon-tecimento, uma duplicação, ele é bem irrepetível, mas igualmentenão existe uma identidade, um “isto é assim”, um aspecto pessoal

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definitório do Acontecimento – veremos mais adiante porque re-cusamos, partilhando uma outra posição filosófica.

De modo ligeiramente diferente, atraindo mais duras críticaspelas posições atrevidas no campus práxico, se expressou DavidLewis. Segundo o filósofo americano, um Acontecimento é umapropriedade de regiões espácio-temporais. Mas o que são as pro-priedades? São classes, isto é: “Por propriedade quero dizer sim-plesmente a classe. Ter a propriedade é pertencer à classe. Todas ascoisas que possuem a propriedade, quer actual ou meramente pos-sível, pertencem... A propriedade que corresponde a um evento,então, é a classe de todas as regiões, ao máximo de um por mundo– onde o acontecimento ocorre” (LEWIS cit.in. SCHNEIDER).Em termos analíticos, para Lewis uma coisa é um Acontecimentose e só se fôr uma classe de uma região espácio-temporal quer destemundo (thisworldly) e de outro mundo (otherworldly).

À primeira vista, esta teoria assemelha-se com a teoria david-soniana, na forma como se concentra na relação causal da regiãoespaço-tempo. Também esta teoria se estrutura de acordo comcondições de identidade: dois acontecimentos serão diferentes(parcialmente distintos, diz Susan Schneider) se pelo menos ummembro de uma classe de um acontecimento não se encontrar naclasse do outro; logo, serão idênticos se partilharem por completotodos os membros da classe. O facto de Lewis salientar na suateoria, quer o mundo actual, concreto, em que vivemos, quer umoutro mundo (ou vários outros), como mundos possíveis a par deste– este será o melhor mundo possível, o que não significa ser oúnico, pretende-se ler aí com Lewis – alarga a dimensão da ocor-rência do Acontecimento quer para um macrocosmo quer para ummicrocosmo, mas igualmente para uma questão muito próxima deDeleuze, a do actual e do virtual. Um mundo para Lewis é “umenorme objecto contendo todos os objectos que lá existem comosuas peças” (LEWIS cit.in. SCHNEIDER). Assim, um mundopossível é qualquer outro mundo que apresente um objecto que

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exista neste, concreto, mas de outra forma, por exemplo, animaisque falem, uma lua que mostre as suas fases no mesmo instante,noivos chagalleanos flutuando pela força do amor, etc. E é exacta-mente neste ponto onde recai a maior porção das críticas analíticas,negando de imediato o conceito de “mundo possível” e debatendoo significado das regiões.

Ora, o próprio David Lewis não define claramente o que é umaregião, apenas declara que nenhum Acontecimento ocorre em duasregiões diferentes de um mundo, bem como que um único Acontec-imento ocupa uma região inteira – embora não o tenhamos referido,já a Davidson lhe foi apontado que o uso de predicados que de-screvessem o Acontecimento como ocorrer e ocupar levantariama questão de saber se um objecto pode ser um Acontecimento; con-cordamos com a autora do artigo quando assevera que os objectosocupam os espaços e os Acontecimentos desvelam-se/revelam-se(unfolds)4 nesses espaços. A condição principal torna-se, então,para Lewis a seguinte: “as regiões são indivíduos que são peças demundos possíveis”5. Dá-se, portanto, como que uma duplicação,ou melhor, uma folheação, uma vez que as propriedades se podemagrupar em conjuntos de várias dimensões, em classes maiores oumenores, partilhando mais ou menos propriedades e regiões nesteactual mundo ou no outro mundo.

Por fim, quanto ao último ponto da teoria lewisiana, deparamo-nos com a redução do que parecia ser uma abertura na filosofiaanalítica. Se, até agora, a sua teoria fundava-se sobre uma de-scrição geral do que poderia ser um Acontecimento, e a críticaprocurava mais a definição de um único acontecimento que pudesse

4 SCHNEIDER: “Existe uma distinção intuitiva entre ocorrência e ocupação– vemos os acontecimentos a desvelarem (we see events unfold) e os objectosocupam espaços – mas é importante notar que muitos, incluindo Lewis e Kim,consideram os acontecimentos, como categorias metafísicas, de modo a incluiralguns não-eventos (non-happenings) ou não-ocorrências assim como todos oseventos (happenings).”. Tradução nossa

5 SCHNEIDER: “Regions are individuals that are parts of possible worlds”.

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expor-se como a sua base definitória mais correcta, Lewis sujeitatoda esse seu pensamento, como já foi dito, à relação causa-efeito.Deste modo, recusa o Acontecimento como sendo uma estruturaconstituída essencialmente por um tempo, um objecto e uma pro-priedade, como foi proposto por Jaegwon Kim, sendo, ao invés,essencialmente uma mudança se e só se para cada região algumacoisa muda em si6. Uma vez que a sua teoria do Acontecimento nãoera bem recebida entre os seus correligionários analíticos, Lewispretendeu estabelecer uma análise contrafactual, isto é, o que temosvindo a afirmar como o processo reducionista filosófico, recorrendoa exemplos do dia-a-dia, deduzindo por fim que um Acontecimentonão é causa necessária de outro, ou por outras palavras, que doisacontecimentos vistos como sendo diferentes, embora não distin-tos, não se colocam em relações de causalidade.

Acontecimento da Praxis, segundo atrevimento

Parece-nos então que, quer Kim, quer Davidson, e até mesmo Le-wis, nas suas formulações das condições e critérios de existên-cia e de identidade, ou da não-duplicação, do Acontecimento, queprocuravam não a diferença, a singularidade, a unicidade do que é oAcontecimento, mas antes o que nele é passível de ser repetido, re-duzido, generalizado, des-singularizado, por assim dizer, pende afi-nal para o oposto dos seus desejos. Há uma resistência no Acontec-imento. O Acontecimento resiste à redução linguística, analítica.Exemplo disso é a atenção dada, na crítica filosófica analítica, naprocura quase cirúrgica da falha nas teorias de Kim, de David-

6 LEWIS cit. In. SCHNEIDER: “um acontecimento ocorre essencialmentenuma região espácio-temporal R se e só se cada membro for ou R ou uma con-traparte de R, e por aí adiante”. Tradução nossa.

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son e Lewis. Que falhas? Não a teoria em si, aos argumentos econtra-argumentos pensados pelos filósofos, mas como ela é dita,buscando sempre a prova factual, essa redução ao facto, a um em-pirismo frio, ressentido, cinzento, adulto, burocrático, essa reduçãoa uma língua desértica, seca, que aponta o erro, por exemplo, nosmodificadores linguísticos, entre nominais perfeitos e imperfeitos,nas formas lógicas de dizer o Acontecimento, etc. Mas o que éque se diz? O Acontecimento? Ou diz-se o dizer do Aconteci-mento? E serão a mesma coisa, dizer e dizer o dizer? Quando osanalíticos dizem o Acontecimento, dizem afinal o quê? Parece-nosque resistem. E talvez o percam. Pois que voltando os olhos aum dos pais da filosofia analítica, Wittgenstein, e ao seu Tractatus,de facto parecerá cruelmente certa a afirmação de Alain Badioude que os analíticos leram mal o seu predecessor.7 Há qualquercoisa que falta na filosofia analítica e que Wittgenstein compreen-deu perfeitamente e que se prende com o místico, com uma certaparte de sombra, de qualquer coisa inexprimível mesmo no mundodos factos:

6.44 O que é místico é que o mundo exista, nãocomo o mundo é.6.45 A contemplação do mundo sub specie aeterni é asua contemplação como um todo limitado.

7 ŽIŽEK, 2008, p. 9. “Assim que uma filosofia exerce uma influência pro-funda sobre uma outra, esta última funda-se em geral sobre uma incompreensãoprodutiva – toda a filosofia analítica não terá nascido de uma leitura errónea doprimeiro Wittgenstein?”. Tradução nossa. Embora Zizek cite Badiou, temosuma impressão que quem afirmou isto mesmo, pelo menos o texto integral e nãosó este parágrafo, terá sido Deleuze. Todavia, não o podemos seguramente pre-cisar, uma vez que não encontrámos esse trecho. O parágrafo de que falamosdiz o seguinte: “E todos os grandes «diálogos» da história da filosofia são comoque mal entendidos: Aristóteles não compreendeu Platão, Tomás de Aquino nãocompreendeu Aristóteles, Hegel não compreendeu Kant e Schelling, Marx nãocompreendeu Hegel, Nietzsche não compreendeu Cristo, Heidegger não com-preendeu Hegel... Assim que etc.”.

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Místico é sentir o mundo como um todo limitado.6.522 Existe no entanto o inexprimível. É o que serevela, é o místico. (WITTGENSTEIN, 2008, p. 140-141. Sublinhado do autor)

Ora, é certo que arriscamos ao defendermos o carácter místicoou inexprimível que sentimos existir no mundo, concordando como filósofo austríaco. Arriscamos porque, logo de seguida, nos dizque o método correcto da Filosofia é o de dizer somente o quepode ser dito (vd. §6.53). Nesse sentido, o trabalho analítico segueà risca a prescrição. À risca, mas não arrisca, nem se atreve a serarisca. E Wittgenstein sabia sê-lo.

Uma errância em busca do erro ou da certeza. Um desertoestende-se adiante, um homem tem de o percorrer e no fim dizera viagem. Para isso terá de estar completamente desperto, vivo,em escuta com todos os sentidos. O homem nunca dirá o deserto,falará antes de um deserto ou de um deserto que ao ser revisto,dito, redito, visto, irá, aos poucos e poucos, expandir-se até co-brir todo o deserto, aproximar-se dele, do deserto. Cria o deserto,mapa de Borges. Muita coisa se perderá, é certo, mas se ele sepropor a dizer o deserto grão a grão? Se logo no primeiro passoele questiona o passo, questiona a questão, o grão do passo, o grãoda questão, não no que há de mágico, singular, irrepetível no grão,mas o modo como foi dito grão e como poderia ser dito ou o quenão poderia ser dito ou ainda, talvez, porém, do grão. Onde estáo deserto, afinal? O homem do grão diz o deserto como o outro.Porém, na mesma errância, um encontrou a resistência do deserto,o outro resistiu ao deserto. O deserto ainda lá está, entre eles.

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Poiesis do Acontecimento

Da Poiesis

Voltemos à questão de fundo, após o processo quase cirúrgico daanalítica. O que é um Acontecimento? Não poderá o Aconteci-mento fugir aos protocolos do facto, do que é factual? É o mundo,no fim de tudo, um conjunto de factos? O céu, um facto; o nasci-mento de uma criança, um facto; uma guerra, um facto; todas ascausas naturais manifestadas, quer nas suas formas macroscópi-cas, quer nas suas dimensões microscópicas, factos? As forças,os fluxos, os movimentos de átomos, electrões, iões, ou os ele-mentos mais ínfimos que se têm vindo a descobrir na física ou naquímica, os choques, as trocas, os encontros dessas partículas, fac-tos? Os imprevistos, os acasos, factos? Ou, dito de outro modo,motivados pelas reduções matemáticas da linguagem, poderá a lin-guagem ser capaz de reduzir tudo a uma fórmula que possibilite,permita a previsão? Pode a “simplicidade” de uma fórmula dizertoda a possibilidade de um facto, do Acontecimento? [x, P, t] –esta expressão tão próxima da palavra usada pelas crianças parasignificar uma coisa difícil, um objecto ou mecanismo da mais fu-tura engenharia electrónica, o topo do topo de gama, XPTO, queigualmente significa, em grego, Cristo – e as suas adendas signifi-cam, simbolizam, dizem o Acontecimento, o imprevisto, inesper-ado, inadvertido, surpreendente, assustador, pleno, universal, sin-gular, misterioso do Acontecimento? Não haverá outra forma deaceder ao Acontecimento?

Já prestes a terminar o seu volume sobre a instrução, a apren-dizagem, o crescimento, a formação de uma pessoa, de toda a pes-soa, Michel Serres dá-nos uma resposta assaz elucidativa à nossadúvida:

Dedicados à procura da verdade, nem sempre aí

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conseguimos chegar e, se realmente chegamos, não éatravés de análises ou de equações, experiências ou ev-idências, por vezes mesmo através de tentativas. Masquando tal não se conseguir diga-se o que se faz, deresto, se se quiser; de resto, porque se a meditação fra-cassa, não se deverá tentar a narrativa? Porque é que alinguagem há-de permanecer sempre destra ou macha,hemiplégica e limitada a uma das partes? Aristótelesdizia de forma excelente: o filósofo, enquanto tal, de-screver muito bem, mas logo acrescentava que aqueleque narra de algum modo revela ser filósofo. (SER-RES, 1993, p. 155)

Por um lado, deparamos aqui com uma crítica, embora talveznão propositada, à filosofia analítica, que intenta, de modo a cum-prir o desiderato wittgensteineano, traçar o caminho correcto dafilosofia “através de análises ou de equações, experiências ou ev-idências”. Por outro lado, entendemos este “tentar a narrativa”como a expressão do método poiético de se debruçar sobre umaquestão. Realmente, o pensamento mítico tal como o pensamentofilosófico (ou de uma certa filosofia que ascende aos pré-socráticos,passando por Platão até Nietzsche e alguma filosofia contempo-rânea) descobrem na narrativa poética uma forma de aproximaçãoreveladora dos problemas, queremos dizer, como que um mod-elo criativo de abordar um mistério, um segredo, um problema,uma questão, uma coisa, um processo que deambula aos lados, porcima, por baixo ou mergulhando num caos até alcançar uma estávelordem. Não a resolução, o limite, antes uma, um, sujeitos sempre auma nova reavaliação, a uma nova interpretação. A escada nunca seencontra já lá, constrói-se à medida que se vai subindo. A escaladade uma montanha envolta por nevoeiro faz-se sempre palpando ocaminho, criam-se os modos, os gestos de se chegar ao topo. Este éo método poiético, criativo; humilde mesmo no seu enunciado mais

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duro, mais intransigente8. Este é o método, ou estilo adoptado porGilles Deleuze e Michel Serres.

Eventum Tantum

Desde a sua dissertação de doutoramento, o belo e difícil Diferençae Repetição, que Deleuze tem dado atenção ao conceito Acontec-imento. Mas onde encontramos um maior aprofundamento no seuentendimento é na Lógica do Sentido9 (a segunda parte da sua on-tologia da diferença principiada, exactamente, com a sua disser-tação), tratando a filosofia estóica e a obra literária de Lewis Car-rol, e na obra posterior dedicada a Leibniz e o Barroco, Le Pli (ADobra). Por essa mesma razão faremos uma leitura a dois tem-pos, descortinando o Acontecimento numa e noutra obra, tentandoperceber se há diferenças, se alguma coisa mudou o Acontecimentono tempo que medeia as duas leituras deleuzeanas.

Para Deleuze, o problema do Acontecimento – e o Acontec-imento é em si problemático10 – recobre múltiplos conceitos, aoponto de pensar a questão da moral nos Estóicos, a qual, de facto,está intimamente unida ao Acontecimento. Tentaremos, pelo nossolado, tecer uma linha que passe pelo mais problemático. Assim,sigamos, por agora, a escrita de Deleuze.

No capítulo que corresponde à nona série de LS, argumenta,embora de forma inversa, que uma singularidade é um aconteci-

8 Neste sentido entendemos igualmente a hermenêutica como um processopoiético de se pensar filosoficamente.

9 Indicada, doravante, por LS.10 DELEUZE, 1974, p.57. “O modo do Acontecimento é o problemático. Não

se deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentosconcernem exclusivamente aos problemas e definem as suas condições. (...) Oacontecimento por si mesmo é problemático e problematizante.”.

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mento ideal, para, logo de seguida, expandir o conceito de acon-tecimento para que este se constitua por um conjunto de singulari-dades, tais como os pontos de uma curva matemática, “um estadode coisas físicas, uma pessoa psicológica e moral” (DELEUZE,1974, p.55). Portanto, não só a Singularidade é um Acontecimento– ideal, uma vez que, mais adiante, derivando de uma reflexão deNovalis, Deleuze declare que o acontecimento se pode dar tantocomo ideal ou como acidental, isto é, a sua efectuação espácio-temporal11 – como igualmente é formada por outras mais singular-idades.

A singularidade é um ponto intensivo (a sua extensão são assuas próprias linhas intensivas que ligam a diferentes singulari-dades). As singularidades, pelo que se depreende de Deleuze,diferem entre si por diferenças de potencial, aliás, todos os adjec-tivos e substantivos que qualificam e caracterizam a explicação dofilósofo são dotados de vibrações energéticas, dispêndios de forças,variações de intensidade. Todavia, o que melhor caracteriza, ou oque realmente determina a “natureza” de uma singularidade é asua origem ou domínio à qual pertence: é neutra, é do lado da neu-tralidade. Um nó, um ponto vibratório, intensivo, “essencialmentepré-individual, não-pessoal, aconceitual. Ela é completamente in-diferente ao individual e ao colectivo, ao pessoal e ao impessoal,ao particular e ao geral – e às suas oposições” (DELEUZE, 1974,p.55). Talvez possamos equivaler sempre Acontecimento e Sin-gularidade. Um acontecimento é sempre uma singularidade. Ouentão, uma singularidade só se torna acontecimento quando nãoexpressa pela linguagem. Pensamos, porém, que, contrariamente aDeleuze, se o acontecimento é um efeito incorporal e sendo ele de-pendente da linguagem; e sendo ela igualmente a grande fixadorade limites e a grande criadora de realidades – embora também ca-paz de eliminar esses mesmos limites que estabelece – deduzir oacontecimento como equivalente ao paradoxo, de identidade in-

11 Vd. DELEUZE, 1974, p.56.

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finita, não estará inteiramente correcto, quando são as singulari-dades que são infinitamente anónimas. Não é o acontecimento umparadoxo; é o dizê-lo pela e na linguagem. E se o acontecimentoequivale ao paradoxo, se ele é paradoxal, assim é pelo que o con-stitui, pelas singularidades. Consideramos, pelo nosso lado, queo acontecimento da linguagem que diz o Acontecimento, isto é, apromoção dessa efectuação, é ele próprio instaurador de bom sensoe de senso comum, os quais se opunha Deleuze através do seu LS eDiferença e Repetição. Ora, mas se assim é, acontecimento e sin-gularidade já não se equivalem, já não são sinónimos? Não serãoquando o acontecimento é efectivado, quando é, como vimos, aci-dente. A diferença existente, então, entre acontecimento ideal eacidente, é do campo da linguagem, partilham a natureza do dito edo não-dito. Dizer um acontecimento, sonorizar em significantes esignificados as vibrações das suas singularidades, é individualizá-lo, torná-lo pessoal, dotá-lo de conceitos. Ora, isso é o acidente.É o acidente que acontece ao Eu, ao Me, ao Mim, a ele, ao Outro.É uma apropriação, quando o Acontecimento é "indiferente", talcomo o exemplo da batalha no início da décima quinta série:

(...) A neutralidade, a impassibilidade do acon-tecimento, a sua indiferença às determinações do in-terior e do exterior, do individual e do colectivo, doparticular e do geral, etc., são mesmo uma constantesem a qual o acontecimento não teria verdade eterna enão se distinguiria de suas efectuações temporais. Sea batalha não é um exemplo de acontecimento entreoutros, mas o Acontecimento na sua essência, é semdúvida porque ela se efectua de muitas maneiras aomesmo tempo e que cada participante pode captá-laem um nível de efectuação diferente no seu presentevariável. (DELEUZE, 1974, p.103)

Ora, parece-nos realmente que este é um dos pontos essenciais

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da leitura deleuzeana oposta à filosofia analítica, isto é, esta difer-ença entre acontecimento ideal e acidente, que se desdobra noutraquestão, o que separa a expressão e a representação. O pensamentoanalítico, na sua resolução de busca do facto, discorre sobre o aci-dente, a efectuação espácio-temporal do acontecimento, isso que,pelo próprio facto de ser significado, representado, reduz o acon-tecimento a uma fórmula. Pelo contrário, Deleuze pende para olado ideal do acontecimento, a sua expressão, o seu sentido que nãose reduz a um este ou aquele, mas ao neutro. Compreende-se issose analisarmos, abreviadamente, um dos problemas da linguagem,a proposição, o sentido e o paradoxo.

Diz Deleuze que somos proposições analíticas infinitas (infini-tos no que exprimimos mas finitos na expressão, “na sua zonade expressão corporal”) (DELEUZE, 1974, p.12), como tambémproposições sintéticas finitas (finitas na definição mas indefinidasna sua aplicação). Contudo, aquilo que nos faria completar umacorrespondência plena entre uma génese ontológica e uma géneselógica falta-nos, isto é, não há equivalência para o terceiro ele-mento proposicional, mas antes um salto de uma proposição parauma instância material: “(...) da génese lógica à génese ontológica,não há paralelismo, mas antes uma mudança que comporta todo otipo de desníveis e de misturas” (DELEUZE, 1974, p.124).

Deleuze define três relações distintas na proposição: a desig-nação ou indicação (a associação de palavras a imagens que devemrepresentar o estado de coisas), a manifestação (a relação entre aproposição e o sujeito que fala ou se exprime) e a significação (a re-lação da palavra com os conceitos universais ou gerais, bem comodas ligações sintácticas com as implicações do conceito). Entreestas três funda-se a Verdade e o Falso, isto é, a designação estab-elece a relação entre o verdadeiro e o falso. A manifestação produza veracidade e a falsidade, enquanto a significação, como demon-stração, é a condição de verdade. Todavia, esta última, não pode

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fundamentar a verdade sem instituir a possibilidade, não do falsomas, do erro:

“A proposição condicionada ou concluída pode serfalsa, na medida em que designa actualmente um es-tado de coisas inexistentes ou não é verificada directa-mente. A significação não fundamenta a verdade semtornar ao mesmo tempo o erro possível. Eis porque acondição de verdade não se opõe ao falso mas ao ab-surdo: o que é sem significação, o que não pode serverdadeiro nem falso” (DELEUZE, 1974, p.15).

De seguida, Deleuze descobre que, quanto ao primado que sepossa estabelecer entre cada um destes elementos da proposição,nos enredamos numa aporia, que somos conduzidos ao “círculoda proposição” senão acrescentarmos uma quarta dimensão, a dosentido, isto é, o acontecimento puro, o expresso da proposiçãoincorporal na superfície das coisas. A questão, agora, é, “podeo sentido ser localizado numa destas três dimensões, designação,manifestação ou significação?” (DELEUZE, 1974, p.18). Quanto àprimeira, Deleuze nega por absoluto afirmando que o sentido “nãopode consistir naquilo que torna a proposição verdadeira ou falsa,nem na dimensão onde se efectuam estes valores” (DELEUZE,1974, p.18). A manifestação, que se refere a um Eu que fala,que encarna os seus desejos e crenças, poderia albergar o sentido,não estivessem essas crenças e desejos garantidos pela permanên-cia de certos significados que, se perdidos, derrocados, destruí-dos, abalariam a própria identidade pessoal do Eu que fala, “(...)Deus, o mundo e o eu tornam-se personagens indecisos do sonhode um alguém indeterminado” (DELEUZE, 1974, p.19). Logo,só poderíamos identificar o sentido com a significação, uma vezque esta é condição de verdade. Todavia, Deleuze descarta igual-mente esta hipótese. É que a condição de verdade não é mais doque uma forma de possibilidade da proposição que conduz, exac-tamente, à tal aporia, “perpetuamente remetidos do condicionado à

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condição, mas também da condição ao condicionado” (DELEUZE,1974, p.20). Para que a condição de verdade escape a este movi-mento será necessário, pois, dispor de um quarto elemento distintodo condicionado, sendo este o sentido, o expresso, apresentadocomo neutro, completamente indiferente ao universal e ao singu-lar, ao geral e ao particular e ao pessoal e ao impessoal. Ora, osentido não se encontra fora da proposição, pois é o seu expresso,mas na sua superfície; é a fronteira entre as proposições e as coisas:

É este aliquid, ao mesmo tempo extra-ser e in-sistência, este mínimo de ser que convém às insistên-cias. É neste sentido que é um “acontecimento”: com acondição de não confundir o acontecimento com a suaefectuação espácio-temporal num estado de coisas.Não perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acon-tecimento: o acontecimento é o próprio sentido. Oacontecimento pertence essencialmente à linguagem,ele mantém uma relação essencial com a linguagem,mas a linguagem é o que se diz das coisas. (DELEU-ZE, 1974, p.23. Sublinhado do autor)

E é exactamente no dizer das coisas que se descobrem ou serevelam os paradoxos. O paradoxo opõe-se à doxa, ao bom senso– não uma só direcção de sentido mas sentido múltiplo (duplo oumais) – e ao senso comum – não uma generalidade mas singular-idades, não um bloco identitário inamovível mas uma identidadeinfinita.

Talvez possamos agora abordar o Acontecimento pelo lado damoral estóica, a qual problematiza a expressão e o sentido do Acon-tecimento.

Segundo Deleuze, a moral estóica “consiste em querer o acon-tecimento como tal, isto é, em querer o que acontece enquantoacontece” (DELEUZE, 1974, p.146). Mas como indica logo deseguida, é necessário relacionar o acontecimento “à unidade das

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causas como Physis” (DELEUZE, 1974, p.146). Ora, os estói-cos alteraram a relação causal, tal como apresentaram dois planosdo Ser, um profundo e outro de superfície. O que há por todo olado são corpos e misturas de corpos que se relacionam, por suavez, com uma dupla leitura simultânea do Tempo12. Mas de queforma alteraram a relação entre causa e efeito? Há duas espéciesde coisas. Existem, por um lado, os corpos (“com as suas tensões,as suas qualidades, as suas relações, as suas acções e paixões”)(DELEUZE, 1974, p.13) e os seus “estados de coisas” correspon-dentes que são determinados pelas misturas entre corpos; estesvivem no tempo presente extensivo crónico; são as causas, mascausas sem efeitos, causas de causas13. Por outro lado, existemos incorporais, as tais causas das causas, não efeitos mas quase-causas; são atributos lógicos ou dialécticos, verbos no infinitivo,devir ilimitado, os resultados das paixões e das acções, vivendo no

12 Por razões de economia não iremos abordar a dupla leitura do Tempo,Cronos e Aion, embora cientes da importância do mesmo para o Acontecimentoe da deficiência que trará ao estudo. Apresentamos, apenas e muito resumida-mente, as suas linhas mestras. Cronos, o tempo de Cronos, é o presente, sóo presente existe. Um presente extensivo, no qual o passado e o futuro fazemparte de um presente mais vasto, o presente de deus, queremos dizer, o que paranós é passado ou futuro é sempre presente para deus, em deus. O nosso tempocrónico é uma sequência de presentes limitados num presente maior, infinito.E este presente é corporal, é o tempo das misturas, da acção e das paixões (opassado e o futuro serão, assim, o resto de uma paixão no corpo). Mas sobreeste tempo outro tempo insiste, sobre o presente crónico insistem um passadoe um futuro. O Aion é, pois, do instante que subdivide o presente; e é bemassim, nesta perversão do presente, que o Aion se diz dos acontecimentos in-corporais que preenchem o presente. Catadupa de acontecimentos, mal um sedá logo outro se lhe segue, porque é do acontecimento o duplo sentido. O Aionpreenche o presente crónico de instantes na sua superfície circular, é uma linharecta finita mas ilimitada. Reenviamos ao leitor para a vigésima terceira série deLS: 167-173.

13 DELEUZE, 1974, p.13: “Não há causas e efeitos entre os corpos: todosos corpos são causas, causas uns em relação aos outros, uns para os outros. Aunidade das causas entre si chama-se Destino, na extensão do presente cósmico”.

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tempo intensivo e instantâneo do Aion; são, os incorporais, na ver-dade, acontecimentos. Se em Aristóteles as categorias se diziamem função do Ser e daí decorre a relação causal entre a substância,como causa e sentido primeiro, e as categorias, como efeitos e aci-dentes, os Estóicos, operando essa cisão no Ser, vêem os estados decoisas como sendo não “menos seres (ou corpos) que a substância;eles fazem parte da substância; e, sob este título, opõem-se a umextra-ser que constitui o incorporal como entidade não existente”(DELEUZE, 1974, p.8). Mais ainda, “O termo mais alto não é poiso Ser, mas Alguma coisa, aliquid, na medida em que subsume oser e o não-ser, as existências e as insistências” (DELEUZE, 1974,p.8). Assim pois, tal como diz Deleuze, tudo agora sobe à su-perfície e o problema do Acontecimento passa-se exactamente nafronteira entre as coisas e as proposições (“Os acontecimentos sãocomo os cristais, não se transformam e não crescem a não ser pelasbordas, nas bordas”) (DELEUZE, 1974, p.10).

É nessa unidade da Physis, um enorme Cosmos de corpos e demisturas, corpos-acções e corpos-paixões, que a moral estóica dizo Acontecimento. Mas aceder ao Acontecimento requer uma adi-vinhação14, uma leitura das superfícies dos corpos profundos, daslinhas e pontos singulares intensivos. Essa moral, pois, prendida auma adivinhação, oscila, de acordo com Victor Goldschmitt, entredois pólos: uma vontade de participar numa visão divina que reúnea profundidade de todas as causas físicas entre si na unidade deum presente cósmico, e aí encontrar a adivinhação de um aconteci-mento resultante dessa união (causas e unidade), por um lado e poroutro, querer o acontecimento, qualquer que ele seja, sem recorrerà interpretação, mas fazendo uso das representações que a efectu-

14 DELEUZE, 1974, p.146. “A interpretação adivinhatória, com efeito, con-siste na relação entre o acontecimento puro (não ainda efectuado) e a profun-didade dos corpos, as acções e paixões corporais de onde ele resulta. (...) Aadivinhação é, no sentido mais geral, a arte das superfícies, das linhas e pontossingulares que nela aparecem.”.

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ação do acontecimento dá.15 Esta oscilação é um caminho que todoo estóico – acrescentamos, todo o ser humano – deveria intentar,proceder, que vai de um tempo cósmico, crónico, do acontecimentoanterior à sua efectuação, a um tempo aiónico, do acontecimentopuro na sua efectuação. Isto é, ligar o acontecimento às suas causascorporais, e ligar o acontecimento à quase-causa incorporal. Maseis que aí surge um problema, a diferença entre representação e ex-pressão, uma diferença que se refere ao próprio sentido do Acon-tecimento e aponta, por seu turno, a essoutra diferença, sublinhadapor Deleuze, entre ideal e acidente. É que a representação aludea uma relação extrínseca de semelhança ou similitude com um ob-jecto, enquanto o seu carácter interno refere uma expressão que nãoconsegue representar16: “A representação deve compreender umaexpressão que ela não representa, mas sem a qual ela não seria elamesma «compreensiva», e não teria verdade senão por acaso e defora” (DELEUZE, 1974, p.148).

Ora, o grande Acontecimento estóico, ou o Acontecimento de-leuzeano em LS, encontra agora a sua expressão máxima. Não háAcontecimento, a efectuação do Acontecimento, sem a sua contra-efectuação, sem o desejo de que aconteça, a incorporação, a en-carnação do Acontecimento em nós, não ser indigno daquilo queacontece, que nos acontece, nenhum ressentimento, nenhuma res-ignação. Significa isto, abraçar o Acontecimento, provocar umamudança na nossa vontade, um salto da vontade orgânica para umavontade espiritual no querer o Acontecimento. Mas isso não querdizer, literalmente, querer o que acontece, bem pelo contrário, équerer alguma coisa no que acontece, ou segundo as palavras deDeleuze: “O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele éno que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera”(DELEUZE, 1974, p.152). Contra-efectuá-lo, seja o que for o

15 Vd. DELEUZE, 1974, p.146-147.16 Esta impossibilidade comparamo-la à resistência que falámos anterior-

mente quanto ao dizer o Acontecimento.

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Acontecimento, uma guerra, uma inundação, uma catástrofe. E éexactamente por isso que Deleuze liga a contra-efectuação ao actor,que não só representa como incorpora o sentido do acontecimento,expressão do sentido, expressionismo corporal; como igualmenteao humor. “Always look on the bright side of life” diziam um doscrucificados parceiros de Brian, o duplo de Cristo.

Não podemos esquecer o que acima foi já referido da singulari-dade. Este Acontecimento que Deleuze fala não se reduz à particu-laridade, ao facto, ao pessoal. O Acontecimento é o Eventum Tan-tum que se esquiva a todo o presente, é impessoal, pré-individual,neutro, é o on das singularidades e “é por isso que não há acon-tecimentos privados e outros colectivos; como não há individual euniversal, particularidades e generalidades. Tudo é singular e porisso colectivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nemindividual nem universal” (DELEUZE, 1974, p.155), como a morteblanchotiana.

Contudo, embora tenhamos esta posição poiética quanto aoAcontecimento – a contra-efectuação é bem um gesto criativo –,em Le Pli Deleuze dá-nos uma leitura mais próxima da filosofiaanalítica, pela sua descrição formal, partindo da obra do filósofobritânico Whitehead.

Como o próprio Deleuze diz, mesmo sendo Whitehead um filó-sofo analista, a sua filosofia, pelos contornos heterodoxos, foi mes-mo esquecido pelos seguidores de Wittgenstein e isso é legível noseu tratamento do Acontecimento e por, segundo ainda Deleuze,ser um sucessor de Leibniz. A questão principal, para o filósofobritânico, era a formulação das condições de um acontecimento:quais são os elementos que aferem o acontecimento, para que tudoseja acontecimento? E onde se cria, se produz o Acontecimento?Ora, o Acontecimento produz-se no seio de um caos, numa “mul-tiplicidade caótica”, onde intervém uma grande peneira. Da pas-sagem desse caos, esse puro Many, pela peneira, resta um One,uma singularidade qualquer, um artigo indefinido. É preciso, aqui,

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ter em conta, uma vez mais, o que já foi dito sobre as singulari-dades, bem como o que Deleuze esclarece sobre a formação dasestruturas e as três condições que a constituem: 1) é sempre for-mada por, no mínimo, duas séries heterogéneas, uma significante ea outra significada; e nunca por uma só série; 2) cada série é for-mada por “termos”, que correspondem a singularidades ou acon-tecimentos ideias, cujos valores ou sentidos apenas existem atravésde relações que estabelecem entre si, isto é, entre singularidades;assim, cada série é uma história, uma gigantesca rede ou malhade singularidades que ligam as duas séries; 3) o que liga as séries,aquilo que emite e estabelece as comunicações entre singularidadesé o elemento diferenciante; um elemento paradoxal que circulapelas singularidades e de série para série; detentor de estranhaspropriedades, tais como “(...) estar sempre deslocado em relaçãoa si mesmo, de «estar fora do seu próprio lugar», de sua própriaidentidade, de sua própria semelhança, de seu próprio equilíbrio”(DELEUZE, 1974, p.54). Tendo isto em conta, poderíamos sug-erir que o caos é uma estrutura cujas séries pontilhadas por sin-gularidades ainda não se encontram sujeitas ao movimento orde-nador do elemento diferenciante, ainda não passadas pela grandepeneira. As séries, nesta estrutura, são os conjuntos de possíveisleibnizianos e o elemento, que estabelece a comunicação entre sin-gularidades, a peneira que deixa passar a melhor combinação decompossíveis. Mais ainda, se tomarmos em conta que numa singu-laridade pode passar mais de uma série, que para além de ser umaintensidade é também ela uma extensão (a sua extensão são as suaspróprias linhas intensivas que ligam a diferentes singularidades) oua construção dos indivíduos e dos mundos descrita na décima sextasérie da LS (Da Génese Estática Ontológica)17, compreendemosmelhor a primeira condição de todo o Acontecimento: a extensão.

17 E não haverá no Ritornelo de Mille Platôs uma continuação da filosofialeibniziana? Essa passagem do Caos com as suas cadências, aos ritmos e destesàs melodias, ao Ritornelo, ao caosmos? Cremos bem que sim.

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Existe extensão desde que um elemento se estendesobre os seguintes, de tal maneira que ele é um todo,e os seguintes, as suas partes. Uma tal conexão todo-partes forma uma série infinita que não possui últimotermo nem limite (se se negligenciar os limites dosnossos sentidos). O acontecimento é uma vibração,com uma infinidade de harmónicos ou de sub-múlti-plos, tal uma onda sonora, uma onda luminosa, oumesmo uma parte de espaço cada vez mais pequeno aolongo de uma duração cada vez mais pequena. Porqueo espaço e o tempo são, não limites, mas coordenadasabstractas de todas as séries, elas mesmas em extensão.(DELEUZE, 2008, p. 105. Tradução nossa)

O segundo componente do acontecimento é as propriedadesintrínsecas das extensões, das séries extensivas, isto é, as inten-sidades, as gradações: altura, intensidade, um tom, um timbre,uma saturação, etc. Transforma-se o artigo indefinido em pronomedemonstrativo. E por fim, a terceira condição, o indivíduo, o pro-nome pessoal, uma criatividade, formação de um Novo. Este in-divíduo é a concreção desses elementos; é, segundo Deleuze, umapreensão (préhension). A preensão é a unidade individual. Mas oque é a preensão? Deleuze explica-nos da seguinte forma: “um el-emento é o dado, o «datum» de um outro elemento que o preende”(DELEUZE, 2008, p.105. Tradução nossa), sendo que todas ascoisas preendem os seus antecedentes e os seus concomitantes,mais a mais até preenderem o mundo. Numa palavra, ou por umexemplo mais simples, o olho preende a luz, mas também a MonaLisa preende o visitante. À luz desta última condição o Acon-tecimento traduz-se como o “nexus das preensões”. Como as-sim? A preensão vai do mundo ao sujeito, do que é preendidoao preendente. Os dados de uma preensão são, segundo Deleuze,elementos públicos, e desse modo o indivíduo, o sujeito, o preen-dente, é o elemento privado dessas preensões, de todas as preen-

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sões, exprimindo-se pela imediaticidade, a individualidade, a novi-dade. Mas, por outro lado, os “datum”, os preensíveis, são já pre-existentes ou coexistentes e assim cada preensão é já uma preensãode uma preensão. O movimento vai então da objectividade para asubjectividade, do público ao privado:

“Cada preensão recente devém datum, ela devémpública, mas por outras preensões que a objectivam;o acontecimento é inseparavelmente a objectivação deuma preensão e a subjectivação de uma outra, é à vezpúblico e privado, potencial e actual, entrando no de-vir de um outro acontecimento e sujeito do seu própriodevir. Existe sempre qualquer coisa de físico no acon-tecimento” (DELEUZE, 2008, p.106. Tradução nossa)

Ora, Deleuze chama a atenção ao caso das apreensões, ao factode elas se depreenderem por três características: 1) a subjectivi-dade é a forma pela qual o sujeito exprime o datum, ou a forma pelaqual ele preende activamente o datum, é o feeling; 2) o que a sub-jectividade visa assegura a passagem de um datum a um outro poruma preensão, ou de uma preensão a outra num devir, colocando o“passado num presente pleno de futuro” (DELEUZE, 2008, p.106.Tradução nossa); 3) a fase final da preensão pela subjectividadetoma a forma de um auto-comprazimento, um self-enjoyment que“marca o modo como o sujeito se enche de si (remplit de soi),agarrando-se a uma vida privada cada vez mais rica, quando apreensão se enche (remplit) dos seus próprio data” (DELEUZE,2008, p.107. Tradução nossa).

Mas eis que chegamos ao ponto, à condição última do Acon-tecimento em Whitehead, mas igualmente ao problema filosóficoque assombrou o filósofo britânico (bem como Bergson, no-lo dizDeleuze): “não como esperar o eterno, mas a quais condições omundo objectivo permite uma produção subjectiva da novidade,quer-se dizer uma criação?” (DELEUZE, 2008, p.107. Tradução

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nossa). A resposta de Whitehead coincide com essa última condi-ção: o Objecto Eterno ou ingressões (“ingressions”). As ingressõessão permanências. De facto, segundo Deleuze e Whitehead, asextensões deslocam-se, ganham ou perdem partes suas nas movi-mentações, pelo movimento, as coisas alteram-se, até as preen-sões entram e saem nas várias composições, movimento do de-vir que percorre tudo (“os acontecimentos são fluxos”). É dev-ido a essa mudança permanente, a esse contínuo devir, que White-head/Deleuze implicam no próprio Acontecimento uma permanên-cia. Recorremos ao exemplo proposto por Deleuze em Le Pli paramelhor explica essa permanência. Há um duplo movimento quese joga na preensão, a preensão de uma constante mudança nascoisas ao longo do tempo, digamos à superfície (mesmo se aonível microscópico, por exemplo a degradação de moléculas) eigualmente, digamos um pouco mais profundamente, uma estru-tura que se mantém, que perdura: “A grande pirâmide significaduas coisas, uma passagem da Natureza ou um fluxo, que perde eganha moléculas a cada momento, mas também um objecto eternoque permanece o mesmo ao longo dos momentos” (DELEUZE,2008, p.108. Tradução nossa). Deste modo – e não haveriamos filósofos analíticos renegar Whitehead: onde estão as fórmu-las, as equações, os factos? – estes objectos eternos, estas in-gressões, dizem-se puras Possibilidades, bem como puras Virtuali-dades, umas realizando-se nos fluxos, as outras actualizando-se nasapreensões, “os objectos eternos compõem ingressões nos acon-tecimentos” (DELEUZE, 2008, p.108. Tradução nossa). Eles sãoassim Qualidades, Figuras, Coisas e a criatividade num mundo ob-jectivo surge deste modo. É que a sua permanência joga-se noslimites do fluxo e nas actualizações, o objecto eterno incarna aprópria novidade e encontra sempre novas condições para o novono mundo.

A interpretação do Acontecimento de Whitehead por Deleuzepromove realmente uma leitura poiética do Acontecimento, pelo

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modo como contradiz qualquer estabilidade do Acontecimento queo regule ao modo analítico, mantendo-se sempre aberto ao acasodas possibilidades e às actualizações do virtual, mas por outro ladopensamos ser necessário admitir a leitura estóica deleuzeana, istoé, apenas há uma efectuação (no sentido de realização) poiéticado Acontecimento se à extensão, à intensidade, à preensão e à in-gressão, ou objecto eterno, a contra-efectuação. Cremos que sóa contra-efectuação nos conduz a toda a poiesis, a toda a criação.Mas o que nos dirá Michel Serres?

Do Acontecimento e da Novidade18

“As coisas e os corpos encantados parecem mer-gulhados numa água límpida sobe a qual cintilam co-mo diamantes ou pérolas: transfigurados pela laca,um oriente ou uma aurora de que desconhecemos a na-tureza e a origem, nimba-nos e protege-nos com a suaprópria luz. Para assim as fazer irradiar, contentamo-nos muitas vezes em fazê-las emergir na transparên-cia da linguagem ou no brilho do estilo e por vezesconseguimos: vemo-las reluzir através das palavrasclaras ou obstinar-se e regular-se dentro do seu rigorquando não se enrugam sob a fealdade ou a securados próprios termos.”SERRES, 1993, p. 151

18 Duas palavras terão de ser ditas. Primeiro, este parágrafo não se pretendeexaustivo, embora sabendo quer da importância de Michel Serres para a questãodo presente trabalho, quer o seu aspecto desequilibrado no corpo, comparati-vamente ao estudo dedicado a Deleuze. Desde já apresentamos as nossas maissinceras desculpas ao pensamento de Michel Serres. Segundo, abordamos so-mente duas obras do filósofo: Ramos e O terceiro instruído.

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Em Serres encontramos, parece-nos bem, todo o carácter e odizer poiético do Acontecimento. Certo é que Deleuze, a forçasdas palavras e do pensamento de Deleuze, nos deslumbra e existe,como bem vimos, uma leitura criativa que apela à nossa própriaacção poiética quando o Acontecimento acontece no mundo equando o tomamos, quando lhe respondemos na contra-efectuação.Ora, em Serres descobrimos um outro tipo de deslumbramento eque se sugere aí, no que acima foi dito, na narrativa, como métodode pensar filosoficamente. Daí, também, inscrevermos epigrafica-mente esses dois parágrafos que exemplarmente mostram o estilonarrativo de um pensamento poiético, pois é bem com a línguaque possuímos, bela e feia, prolífera e seca, rigorosa e dúctil, filhosadâmicos que somos, que des-vendamos e nomeamos o mundo. Enão por acaso afirma Serres que “nunca ninguém mudou nada, nemcoisa nenhuma do mundo, sem ser através de uma queda” (SER-RES, 1993, p.27. Sublinhado nosso). A queda do Acontecimentono mundo e em nós, queda da língua em nós, queda, também, nosentido bíblico, porque sem a transgressão apresentada nos mitos,sem a quebra da lei, não há mudança, não há novidade19.

De que modo, então, é tratado o Acontecimento por MichelSerres? O que de novo, traz Serres? Ora, tal como um xamãque, no acto curativo, se empreende numa narração que ascendeà criação até ao tempo da doença que atinge o seu paciente, Serresabre o quarto capítulo de Ramos narrando uma catástrofe naturalno estreito de Bósforo que se poderá ligar à história de Noé. É umacontecimento do passado, escrito no passado. Mas o que há nesseacontecimento que se transporta para o nosso presente e o nosso fu-turo? Não havia maneira de prever então e muito menos há, hoje,nestes tempos de evolução tecnológica assombrante, capacidadesde previsão e de evitamento de catástrofes. Nada foge ao acaso,

19 SERRES, s.d., p. 117. “(...) na maior parte das vezes, a novidade mantémuma determinada relação com um uso que a precede e que ela modifica. Um paidita a lei; o seu filho desobedece-lhe.”.

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à contingência. A ordem, no fim de contas, não é mais do que aharmonização provisoriamente estável de elementos em constantemovimento, em ruptura. E o acontecimento é essa ruptura intensa,contingente, rara, que “rasga os velhos formatos” (SERRES, s.d.,p.110). É uma queda, uma quebra no tempo; marca sempre umafronteira entre um antes do acontecimento e um depois do acontec-imento. Mas será sempre assim, desta forma como temos vindo adizer, isto é, catastroficamente? Não se dará o acontecimento igual-mente no pequeno, no microscópico, na dimensão pura do humano– pois a catástrofe é da dimensão da Natureza, bem acima, mesmose mergulhados nela, do humano). Claro que sim, diz-nos Serres,o acontecimento depende mormente de um interesse, de uma in-terpretação do que acontece; basta lembrar o interesse que a quedade uma maçã provocou num inglês e que mudou por completa afísica e a relação do homem com o seu mundo. O Acontecimento,portanto, é da dimensão do Pequeno e do Grande, do Universal edo Singular, do Público e do Privado.

Ora, se o Acontecimento é uma mudança, que rompe com aleitura do tempo, isto significa que está sujeito a relação causal,que há uma causa provocante e um efeito provocado. Assim é;contudo, como definir a causa? E como definir o efeito? E haveráuma relação imediata entre uma e outro, dimensional e temporal-mente, queremos dizer, para grandes causas grandes efeitos e parapequenas causas pequenos efeitos, e como um tic-tac de um reló-gio? Essa relação é constantemente reduzida ao humano, ao quehumanamente muda, para o bem e para o mal do acontecimento,como afirma Serres: “Consequências globais e culturais seguiram-se ao acontecimento físico e local: de um formato para o outro”(SERRES, s.d., p.111). É que o acontecimento bifurca-se, seguesempre dois caminhos, de natureza e de alcance. O acontecimento,por ser contingente, é inesperado, quer a causa quer o seu efeito enão há forma de os avaliar. Mesmo dependente de uma interpre-tação que potencie a previsão, as causas, os efeitos, não há forma

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de reter, de compreender, o movimento inaugurado pelo acontec-imento quando este se lança para o futuro. Só uma coisa não seconsegue evitar no nosso comportamento humano em relação aoacontecimento, a generalização:

“O conceito de acontecimento torna-se universal.Quando parecia tão insignificante e circunstancial...que para exprimir estas qualidades dizíamos: «acon-tecimental», eis que perde o seu carácter de excepçãopara se juntar, senão a uma regra, pelo menos a umamultidão. Este livro celebra o acesso ao universal dassingularidades contingentes. A narrativa junta-se àlei.” (SERRES, s.d., p.116)

A novidade surge com o interesse demonstrado por um acon-tecimento. Mas não será o acontecimento sempre o novo? Inter-pretando Serres, poderíamos afirmar que nessa diferença no acon-tecimento, nessa ramificação própria do acontecimento, descobre-se na natureza do acontecimento uma capacidade de redução domesmo à dimensão da experiência, isto é, que a experiência é emsi acontecimento. É o que há de empírico no acontecimento que fo-menta a sua generalização, a sua escrita no livro da lei, que diminuio efeito do acontecimento, formata o acontecimento à esfera do ci-clo, do hábito, do tédio que apaga o acontecimento, pois “cadadescendência adopta regras monótonas, sempre decalcadas a partirdo mesmo formato de poder e morte. Coisas previsíveis antes dese produzirem e que constituem sequências necessárias, sem infor-mação. Desta maneira, metódicas, dominam. A força mata, poréminventa pouco.” (SERRES, s.d., p.123). Mas eis que na norma dalei, no acontecimento que parece repetir-se, no acontecimento pre-visto o observador se interessa e repara no imprevisto contido nanorma, um efeito ignorado, até que o interesse pelo acontecimentolhe “inspira a esperança de agir, a decisão alegre, a liberdade dodestino. Através da inabilidade que me concede, a contingência

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suscita uma alegria inesgotável de querer, de pensar, de empreen-der.” (SERRES, s.d., p.119) E, acrescentamos, de criar.

Terceiro atrevimento

Essa é a magnificência do Acontecimento e do Homem. O que éo Acontecimento senão uma magnificência, não isto nem aquilo,mas uma grandeza que faz o Homem. O Homem está intimamenteligado ao Acontecimento pela inevitável capacidade humana decontra-efectuar toda a experiência. E “nada de humano pode ex-istir sem a experiência, sem essa exposição que se avança até àexplosão, nada de humano pode haver sem essas dilatações” (SER-RES, 1993, p.44). Se Serres declara que o Homem não existe semDeus, sem a função-Deus, pelo nosso lado afirmamos que essafunção é o Acontecimento, “a criação e a experiência desse abismoexposto de que não sou senão a margem mais baixa” (SERRES,1993, p.45) e a partir da qual experiencio o mundo, experimentoo mundo e o meu corpo e a criação, a experiência poiética. OHomem é o kentrôn do Acontecimento, vítima do seu aguilhão, dador e da sua informação. Mas para que toda a magnificência doacontecimento aconteça o homem tem de assumir e levar ao fim asua aventura e a divisa sublinhada pelo homem-Cristo via Serres,amai-vos todos uns aos outros; tem de se deslocar para o kentrônporque há muito que se desviou. Ser o terceiro20.

20 E não será este terceiro o neutro deleuzeano? Não terá o homem de se“neutralizar”, de se pôr em terceiro lugar para que verdadeiramente se cumpra amagnificência do acontecimento e haja criação?

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BibliografiaDELEUZE, G. Lógica do Sentido, São Paulo: Editora Perspec-

tiva, 1974. (col. Estudos).

– Le Pli, Leibniz et le Baroque, (1988). Paris: Les Éditions deMinuit, 2009. (col. «Critique»).

DAVIDSON, D., KIM, J.; LEWIS, D. in SCHNEIDER, S. Events,the Internet Encyclopedia of Philosophy, 2005, http://www.SCHNEIDER.utm.edu/events/

SERRES, M. O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget, 1993.(col. Epistemologia e Sociedade)

– Ramos, Lisboa: Instituto Piaget, (s.d.). (col. Pensamento eFilosofia).

WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico e InvestigaçõesFilosóficas, 4aedição (s.d.). Lisboa: Fundação Calouste Gul-benkian, 2008. (Serviço de Educação e Bolsas).

ŽIŽEK, S. Organes sans Corps, Paris: Éditions Amsterdam,2008.

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