SERRES, Michel. Filosofia Mestiça

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T odo aprendizado resulta de abertura para o outro. É mistura e mestiçagem.

Apesar disso, ao invés de construirmos um saber tolerante e amigo da diferença, há sé­

culos insistimos em buscar uma razão as­

séptica, que aspira à imobilidade de uma

perfeição ilusória. Ainda pretendemos ela­

borar filosofias da pureza, no fundo movi­

das não pelo desejo de conhecer, mas pela

compulsão a dominar.

A Michel Serres interessa a busca de um outro saber: uma filosofia mestiça. Por

mais judiciosa que uma idéia se apresente,

diz, ela se ~orna atroz se reina sem partilha. Nenhuma solução é única, nem dura para sempre; nenhuma ciência ou disciplina tem sentido se não se abre para o que lhe é

exterior. Por isso, desde o início deste livro,

o espírito do sábio não se cobre com o manto de Salomão, o compenetrado rei­sol que a tudo subordina, mas com o casa­

co furta-cor de Arlequim, o desengonçado

imperador da lua que se mistura com seus sóditos. Os ruídos, os desvios, as imper­feições da experiência integram, legitima­mente, o processo de conhecimento.

Para Serres, as grandes instituições universitárias não são capazes de propor esse aprendizado que valoriza a mestiça­gem. Cultivam condições contrárias ao exercício do pensamento, consomem re­dundâncias, repetem imagens velhas e vi­vem de impressos sucessivamente copia­dos. Ensinam ciências humanas que não falam do mundo e ciências naturais que si­lenciam sobre os homens. Não suportam a sutileza insinuante do saber dirigido para a invenção, que por isso se torna um saber solitário, no entanto imprescindível para combater a construção de um mundo ho­mogêneo, loucamente lógico e racional­

mente trágico.

-"

Filosofia Mestiça

Título original: Le Tiers-Instruit

© :E:ditions François Bourin, 1991

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

S51f

93-0158

Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 Tel. 286-7822 - Fax 286-6755

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Rio de Janeiro, RI

Revisão de tradução Evelyne Jacobs

Revisão tipográfica Tereza da Rocha

.: CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte . SindiÚto Nacional dos Editores de Livro~, RJ

··f Serres, Michel

Filosofia mestiça::: Le tiers-instruit / Michel Serres; tradução Maria Ignez Duque Estrada. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1993.

Tradução de: Le tiers-instruit ISBN 85-209-0405-X

1. Ciências sociais e filosofia. 2. Filosofia francesa. I. Título.

CDD - 194 CDU - I (44)

Para Anne-Marie.

Emmanuelle e Stéphanie

PUC-RGS

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CONSULTA LOCAl..

Philomuthos, philosophos pós. Philosophos, philomuthos pós.'"

Aristóteles

... Filomito, de certo modo, fIlósofo.

Filósofo, de certo modo, filomito.

~

Como aconteceu de as ciências humanas ou sociais não falarem jamais sobre o mundo. como se os grupos per­manecessem suspensos no vazio? Como as ciências ditas duras deixam os homens de lado? ( ... ) Como nossos principais saberes se perpetuam hemiplégicos? Fazê-los aprender a caminhar com os dois pés, a utilizar as duas mãos, me parece ser um dos deveres da fIlosofia: você sabe, .le tier-instruit designa os corpos completados de canhotos ditos contrariados; é o elogio dos mestiços e das misturas, que causam horror aos fIlósofos da pureza.

Michel Serres, Eclaircissements, 1992

r !

Sumário

Laicidade ............................................................................................ I

CRIAR ................................................................................................ 7

Homenagem ................................................................................ 9

Corpo ........................................................................................... 9

Sentido ......................................................................................... 12

Nascimento do mestiço .............................................................. 13

Aprendizagem ............................................................................. 14

Cérebro ........................................................................................ 17

Nascimento e conhecimento ...................................................... 18 Escrever........................................................................................ 20

Sexo .............................................................................................. 21

Quimera ....................................................................................... 25

Dobra e nó ....................................... c........................................... 28

Primeiras recordações ................................................................. 30 Rosácea ......................................................................................... 32

Trilha, música ............................................................................. 35

Dança: minueto do lugar mestiço ............................................ 37

Magnificência .............................................................................. 38

Alegria, dilatação, engendramento ........................................... 40

INSTRUIR .......................................................................................... 45

Dia ................................................................................................ 47

Noite ............................................................................................. 51

Claro-escuro ................................................................................ 52

! I

o lugar mestiço ........................................................................... 54

O terceiro homem ...................................................................... 57 60 Instruir ou engendrar ................................................................ .

A terceira pessoa: procedência .................................................. 62

A terceira mulher: concepção .................................................... 64 66 o mestiço instruído: ancestrais ................................................ .

O mestiço instruído, de nOVO: origem ..................................... 70 79 Engendramento na aurora ...................................................... o ••

O problema do mal ................................................................... . 81

Guerra por teses .......................................................................... 86

O estilista e o gramático ............................................................ 89

Paz sobre as espêcies .................................................................. 102

Núpcias da Terra com seus sucessivos senhores ........ , ............. 102

Paz e vida pela invenção. Encontrar ........................................ 106

Um outro nome para o mestiço instruído .............................. 117

O casal genérico da história. Morte e imortalidade ............... lI8

EDUCAR ............................................................................................ 131

Lei do rei: nada de novo sob o sol ................. ·· .. ················ .. ···· 133 O novo sob o sol, em outro lugar ............................................ 145

O novo sob o sol, aqui ............................................................... 152

Eu. Noite ...................................................................................... 165

Tu. Dia ......................................................................................... 178

A terceira pessoa: fogo ............................................................... 185

laicidade

De volta de uma inspeção às terras lunares, Arlequim, imperador,

aparece no palco para dar uma entrevista coletiva. Que maravilhas

viu, atravessando lugares tão extraordinários? O público está na ex­

pectativa de grandes extravagâncias.

- Não, não - ele responde às perguntas que o pressionam -,

em toda parte tudo é como aqui, em tudo idêntico ao que se pode ver

comumente sobre o globo terráqueo. Só mudam os graus de grande­

za e beleza.

Decepcionado, o auditório não acredita: lá fora, obviamente,

tem que ser diferente! Será que ele não conseguiu observar nada du­

rante a viagem? Primeiro mudos, estupefatos, todos começam a se

agitar, enquarito Arlequim repete doutamente a lição: nada de novo

sob o Sol, nada de novo na Lua. A palavra do rei Salomão precede a

do potentado satélite. Nada mais a dizer, sem comentários. Real ou

imperial, quem detém o poder só encontra de fato, no espaço, obe­

diência à sua potência, portanto à sua lei: o poder não se desloca. E,

quando o faz, a;::ança sobre um tapete vermelho. Assim, a razão s6

encontra a sua regra debaixo dos seus pés.

Altivo, Arlequim desafia a platéia com um desdém e uma arro­

gância ridículos.

No meio da sala, que se torna tumultuada, algum belo e maldoso

espírito se levanta e estende a mão para indicar o casaco de Arlequim.

- Hei! - grita ele - você aí, que diz que tudo em toda parte é

como aqui, quer que a gente acredite também que sua capa é feita de

uma mesma peça, tanto na frente como na traseira?

Atônito, o póblico não sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato,

a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composição

descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos, mil

formas e co·res variadas, de idades diversas, de proveniências dife­

rentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma

atenção às combinações, remendados segundo as circunstâncias, à

medida das necessidades, dos acidentes e das contingências, será que

mostra uma espécie de mapa-múndi, o mapa das viagens do artista,

como uma mala constelada de marcas? O lá-fora, então, nunca é

como aqui. Nenhuma peça se parece com qualquer outra, nenhuma

província poderia jamais ser comparada com tal outra, e todas as

culturas diferem. A pelerine-portulano desmente o que pretende o

Rei da Lua.

Vejam com seus próprios olhos esta paisagem zebrada, tigrada,

matizada, mourisca, recamada, entristecida, açoitada, lacunar, ocela­

da, multicolorida, rasgada, de cordões atados, de fitas cruzadas, de

franjas puídas, inesperada em todo canto, miserável, gloriosa, magní­

fica de cortar o fôlego e de fazer o coração bater.

Poderosa e banal, a palavra reina, monótona, e vitrifica o espaçoj

soberbo de miséria, o traje, improvável, deslumbra. O imperador

derrisório, que repete como um papagaio, se envolve num mapa do

mundo com multiplicidades mal ajeitadas. Verbo puro e simples,

roupa compósita e mal combinada, reluzente, bela como uma coisa:

que escolher?

- Tu te vestes como o roteiro de tuas viagens? - diz ainda o

belo espírito pérfido.

Todo mundo ri. Eis o rei apanhado e envergonhado.

Arlequim logo adivinha a única saída para o ridículo da situação:

basta tirar este casaco que o desmente. Levanta-se, hesitante, olha

boquiaberto os panos de seu traje; em seguida, com ar de bobo, olha

para o póblico e de novo para seu casaco, como que tomado de

vergonha. A platéia ri, um pouco abobalhada. Ele demora, se faz

esperar. O Imperador da Lua enfim se decide.

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r I

Arlequim se despe. Após muitas caretas e contorsões inábeis, acaba por deixar cair aos seus pés o casaco disparatado.

Um outro envoltório cambiante aparece então: por baixo do pri­

meiro véu, ele usa um segundo farrapo. Estupefata, a platéia ri de

novo. É preciso então recomeçar, já que o segundo envoltório, seme­

lhante ao casaco, se compõe de novas peças e de velhos pedaços.

Impossível descrever a segunda túnica sem repetir, como uma litania: tigrada, matizada, zebrada, constelada ...

Arlequim continua então a desvestir-se. Sucessivamente apare­

cem uma outra roupa mourisca, uma nova túnica recamada, em se­

guida uma espécie de véu estriado e ainda uma malha ocelada, mul­

ticolorida ... A sala explode, cada vez mais surpreendida. Arlequim

nunca chega ao último traje, enquanto o penúltimo reproduz exata­

mente o antepenúltimo: diversificado, compósito. rasgado ... Sobre

si, Arlequim traz uma camada espessa desses casacos de arlequim.

Infindamente, o nu recua sob as máscaras; e o vivo, sob a boneca

ou a estátua inchada de trapos. Decerto, o primeiro casaco deixa per­

ceber a justaposição das peças, mas a multiplicidade e o cruzamento

dos sucessivos envoltórios a mostram, enquanto também a dissimu­

lam. Cebola, alcachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de

escamar suas capas cambiantes, e o póblico não pára mais de rir.

De repente, silêncio. Seriedade e até gravidade descem sobre a

sala, eis o rei nu. Retirado, o último disfarce acaba de cair.

Estuporl Tatuado, o Imperador da Lua exibe uma pele multicor,

muito mais ~?r do que pele. Todo corpo parece uma impressão digi­

tal. Como um quadro sobre uma tapeçaria, a tatuagem - estriada, matizada, recamada, tigrada, adamascada, mourisca _ é um obstá­

culo para o olhar, tanto quanto os trajes ou os casacos que jazem no chão.

Quando cai o último véu, o segredo se liberta, tão complicado

como o conjunto de barreiras que o protegiam. Até mesmo a pele de

Arlequim desmente a unidade pretendida por suas palavras. Tam­bém ela é um casaco de arlequim.

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A platéia tenta rir ainda, mas não consegue: seria preciso talvez

que o homem se esfolasse. Assobios, apupos ... pode-se pedir a al­guém para arrancar a própria pele?

A platéia viu e fica em suspenso; poderia ouvir-se uma mosca a

voar. Arlequim não é imperador, nem mesmo derrisório. Arlequim

só é Arlequim, múltiplo e diverso, ondulante e plural, quando se

veste e se desveste: nomeado, condecorado porque se protege, se de­

fende e se esconde, múltipla e indefinidamente. Brutalmente, os es­

pectadores, juntos, acabam de esclarecer todo o mistério.

Ei-Io agora desvendado, entregue sem defesa à intuição. Arle­

quim é hermafrodita, corpo mesclado, macho e mulher. Escândalo

na sala, perturbada até as lágrimas. O andrógino nu mistura os gêne­

ros sem que se possam distinguir as vizinhanças, lugares ou bordas

onde terminam e começam os sexos: homem perdido na fêmea, mu­

lher mesclada com o macho. Eis como ele Ou ela se mostra: monstro.

Monstro? Esfinge, animal e donzela; centauro, macho e cavalo;

unicórnio, quimera, corpo compósito e misturado; onde e como dis­

tinguir o lugar da solda ou do corte, o sulco onde a ligação se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam os lábios, o da direita e o da esquer­

da, o de cima e o de baixo, mas também o anjo e a besta, o vencedor

vaidoso, modesto ou vingador, e a humilde ou repugnante vítima, o

inerte e o vivo, o miserável e o riquíssimo, o tolo cabal e o louco vivo,

o gênio e o imbecil, o senhor e o escravo, o imperador e o palhaço.

Monstro, é verdade, mas normal. Que semblante afastar, agora, para

melhor conhecer o lugar de junção? Arlequim-Hermafrodita serve-se das duas mãos, não como am­

bidestro mas como canhoto completado, destro até do lado esquer­do, viu-se claramente quando ele se despia, suas capas dando viravol­

tas nos dois lados. Encantos da infância e rugas próprias dos idosos,

misturados, levam a que se pergunte sua idade: adolescente ou an­

cião? Mas, quando apareceram a pele e a carne, todos descobriram

sobretudo sua mestiçagem: mulato, temperado, híbrido em geral, e

em que medida? Um quarto de sangue negro? Um oitavo? E se ele não

brincasse mais de rei, mesmo de comédia, daria vontade de chamá-lo

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l

de bastardo ou mestíçado, cruzado. Sangue misto, marrom, amar­ranzado, impuro.

Que nos poderia exibir agora o monstro comum, tatuado, ambi­destro, hermafrodita e mestiço sob a própria pele? Sim, o sangue e a

carne. A ciência fala de órgãos, de funções, de Células e de moléculas, para finalmente confessar: faz tempo não se fala mais de vida nos

laboratórios; mas ela nunca se refere à carne que, precisamente, de­signa, num dado lugar do corpo, aqui e agora, a mistura de músculos

e de sangue, de pele e de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas, que mescla aquilo que o saber pertinente analisa. A vida

joga os dados e embaralha as cartas. Arlequim põe à mostra, para terminar, a sua carne. Misturados, a carne e o sangue mestiço de

Arlequim parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim.

Há algum tempo, numerosos espectadores já tinham deixado a sala, cansados dos golpes teatrais frustrados, irritados com essa vira­

volta da comédia em tragédia, tendo chegado para rir, decepcionan­

do-se por ter que pensar. Alguns mesmo, especialistas eruditos sem

dúvida, haviam compreendido, por Sua própria conta, que cada por­ção do Seu saber parece também com o caSaco de Arlequim, cada um

trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras ciên­

cias e, às vezes, de todas, quase. Assim, Sua academia, ou enciclopé­dia, se aproximava formalmente da comedia dell'arte.

Quando todos já estavam virando as costas, quando os candeei­

ros davam si:'}ais de fraqueza e sentia-se que naquela noite a impro­

visação termInaria em fiasco, alguém lançou um súbito apelo, como

se algo novo estivesse acontecendo num lugar onde tudo, até então,

se repetira. O público inteiro se voltou de um só golpe e todos os

olhares convergiram para o palco, dramaticamente iluminado pelos últimos fogos moribundos dos projetores.

- Pierrôl Pierrô! - gritaram - Pierrô lunar!

No lugar exato do Imperador da Lua erguia-se agora uma massa

ofuscante, incandescente, mais clara que pálida, mais transparente

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que diáfana, liliácea, nevada, cândida, pura e virginal, inteiramente

branca.

- Pierrô! Pierrôl - gritavam ainda os tolos, quando a cortina se

fechou. Eles saíram perguntando:

- Como as mil cores do casaco podem se dissolver numa soma

branca?

- Assim como o corpo - respondiam os doutos - assimila e

retém as diversas diferenças vividas durante as viagens e volta para

casa mestiçado de novos gestos e de novos costumes, fundidos nas

suas atitudes e funções a ponto de fazê-lo acreditar que nada mudou

para ele, também o milagre laico da tolerância, da neutralidade in­dulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de invenção e, portanto, de pensamento.

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I

i

I 1 l .

Criar

Homenagem

Corpo

Sentido

Nascimento do mestiço

Aprendizagem

Cérebro

Nascimento e conhecimento

Escrever

Sexo

Quimera

Dobra e nó

Primeiras recordações

Rosácea

Trilha, música

Dança

Magnificência

Alegria, dilatação, engendramento

-" I •

i

Homenagem

Obrigado. Meu reconhecimento comovido dirige-se em primeiro lu­

gar ao falecido mestre, cujo rosto, voz e mãos permanecerão presen­

tes em minha memória até a morte; há algumas décadas, ele fez de

mim aquilo a que a maioria destra se refere, compassiva, como um

canhoto contrariado, mas que descrevo, alegremente, como uma me­

tade completada. Nenhum acontecimento esculpiu meu corpo com

maiores conseqüências, ninguém decidiu por mim mais revolucio­

nariamente o sentido.

Por uma vez, o corpo docente, que se ergue para discursar e

convencer, ou se inclina para escrever, apresenta-se a seu público em

sua ingenuidade nua: como um organismo, dando lugar à língua e ao

pensamento com certeza, mas antes de tudo modelado carnalmente

por um mestre anônimo, ao qual agradeço.

Corpo

Ninguém põe em dúvida a bondade da reforma que permitiu aos

canhotos, meus irmãos, escrever conforme sua mão. Contrariá-los os

teria lançado em uma população confusa de gagos, perversos ou neu­

róticos, diz a teoria. Em princípio, faço parte desse grupo tão doente,

ao qual hoje dou a palavra e represento. Estranha notícia: tudo cami­

nha da melhor forma no melhor corpo possível.

Como descrever um destro? Como um organismo cortado, so­

frendo de grave hemiplegia. A caneta, a faca, o martelo ou a raquete

se juntam numa só mão, enquanto a outra nada segura. Quentes e

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flexíveis, um lado do próprio corpo e sua extensão vivem arrastando

atrás de si uma espécie de gêmeo cadavérico, hirto e frio, desprezível

e impotente: inconsciente.

Eis somente a metade da verdade. Como descrever, por sua vez,

um canhoto? Como um organismo atravessado por uma rachadura,

paraplégico, doente. Lápis, garfo, bola, tesoura convêm à sua única

mão, enquanto a outra pende, adormecida. Alerta, suave, presente,

eis uma face do espaço e da vida, enquanto o meio-corpo puxa ou

empurra sem equilíbrio possível um duplo duro, ausente, morto,

peso sem força, massa inconsciente sem língua.

Feitas as contas, um vale o outro. Cada um, divorciado, se com­

põe de dois gêmeos, dos quais só um, seja qual for, de um lado ou do

outro, tem direito à vida, enquanto o segundo nem chegou a nascer.

E então, dar aos canhotos o direito de assim permanecerem equivale

a fazer com que se tornem destros: outros destros, do outro lado. A

liberação da esquerda me parece agora uma decisão de direita.

Os corpos hemiplégicos se reconhecem entre si e impõem a to­

dos a permanência na tola patologia da divisão.

Não, nós não somos um, somos dois. Canhoto ou destro, não

$e compõe o corpo de cada um de dois irmãos inimigos, gêmeos

idênticos embora enantiomorfos, isto é, ao mesmo tempo simétricos

e assimétricos, gêmeos concorrentes e contrariados, dos quais um

sempre foi morto pelo outro e leva seu cadáver a tiracolo, como esses

generais da antiga Roma arrastavam, em seu triunfo, os adversários

vencidos e escravizados? O uso de apenas a metade de seu corpo,

considerado universal por certos etnólogos, não remontará a ime­

moráveis práticas de sacrifício? Destro ou canhoto jamais toleram

um outro a seu lado, exceto morto ou natimorto.

Eu prego contra a pena de morte neste assunto, prego pelo corpo

reconciliado, pela amizade entre os irmãos; a favor, enfim, desta to­

lerância rara ou, quem sabe, do amor, que se regozija quando o ou­

tro, em sua vizinhança mais próxima, vive feliz e, para assim tornar­

se, tenha tido ao menos a chance ou o direito de nascer.

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o cérebro se divide em duas metades que, por feixes cruzados, se comunicam com o outro lado do corpo, respectivamente. A hemi­

plegia paralisa ao mesmo tempo ou o lado esquerdo do corpo e o

lado direito do cérebro, ou a esquerda deste e a direita do outro.

Parece-me melhor viver, falar ou pensar com todos os órgãos do que

amputar do seu conjunto uma metade negra. Ninguém dá valor a

esse princípio, a despeito de sua bela, harmoniosa e plena evidência:

COmo explicar a paixão da humanidade - em sua totalidade, parece

- por uma doença que obriga nosso meio-corpo a se colar a um cadáver, como num casamento repulsivo?

Portanto, obrigado, em primeiro lugar, àquele que me formou

na plenitude e na saturação próprias a um corpo completo.

Nada confere mais sentido do que mudar de sentido. Relatarei por meio de imagens a lembrança da mutação.

Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado só existe cb~

em uma piscina, território para pedestres em massa.

Parta, mergulhe. Depois de ter deixado a margem, você conti­

.. nuará durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra

à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para que seu corpo se

aplique ao cálculo e silenciosamente reflita que ainda pode voltar.

Áté um certo limiar, você conserva esta segurança: o mesmo que

dizer que ainda não partiu. Do outro lado da aventura, o pé confia na

aproximação, desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: você

está tão p~.óximo da margem que pode dizer que já chegou. Margem

direita oú'esquerda, não importa, nos dois casos: terra ou chão. Você

não nada, espera para andar, como quem salta, decola e atinge o chão, mas não permanece em vôo.

Ao contrário, o nadador sabe que um segundo rio corre neste

que todo mundo vê, entre os dois limiares, atrás ou à frente dos quais

quaisquer seguranças desapareceram: ali ele abandona toda a refe­rência.

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Sentido

A verdadeira passagem ocorre no meio. Qualquer sentido que o nado

tome, o solo jaz a dezenas ou centenas de metros sob o ventre ou a

quilômetros atrás e na frente. Eis o nadador sozinho. Deve atravessar,

para aprender a solidão. Esta se reconhece no desvanecimento das

referências. Num primeiro momento, o corpo relativiza o sentido: que im­

porta esquerda ou direita, desde que fique junto à terra?, diz. Mas, no

meio da travessia, mesmo o solo lhe falta, acabam os domínios. Então

o corpo voa e esquece o que é sólido, não mais na expectativa das

descobertas estáveis, mas como instalando-se para sempre em sua

vida estrangeira: braços e pernas entram numa fraca e fluida portân­

da, a pele se adapta ao ambiente turbulento, pára a vertigem da ca­

beça porque doravante ela s6 pode contar com seu próprio suporte;

sob pena de afogar-se, ganha confiança na braçada lenta.

O observador de fora facilmente acredita que aquele que muda

está passando de um domínio para outro: de pé em Calais como se

estivesse em Douvres, como se bastasse tirar um segundo passaporte.

Não. Isto seria assim se o meio se reduzisse a um ponto sem dimen­

sões, como no caso do salto. O corpo que atravessa aprende certa­

mente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala

outra língua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo qual

transita. Ele não andará mais nem se erguerá mais como quando só sabia

ficar de pé ou andar: bípede antes desse evento, ei-Io agora carne e

peixe. Não apenas mudou de margem, de linguagem, de costumes, de

gênero, de espécie; também conheceu o traço de união: homem-rã. O

primeiro animal desfruta de um domínio, o segundo bicho também,

mas o estranho vivente que um dia entrou no rio branco que corre

dentro do rio visível, e que teve que se adaptar, sob pena de morte, às

suas águas extravagantes, abandonou qualquer domínio. Por meio desse novo nascimento, ei-Io exilado de verdade. Pri­

vado de casa. Morto sem sepultura. Intermediário. Anjo. Mensagei-

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ro. Traço de união. Para sempre expulso de todas as comunidades,

mas um pouco, e levemente, em todas. Arlequim, já.

Nascimento do mesti~o'

Ele chega à outra margem: antes canhoto, agora você o encontra

destro; outrora gascão, hoje parece francófono ou anglomaníaco.

Você o acredita naturalizado, convertido, virado ao avesso, transtor­

nado. De fato, você tem razão. Em verdade, ele habita, embora dolo­

rosamente, a segunda margem. Você o considera simples? Não, com

certeza duplo. Tornado destro, ele permanece canhoto. Bilíngüe não

quer dizer apenas que fala duas línguas: ele passa incessantemente

pelas folhas do dicionário. Bem adaptado, mas fiel àquilo que foi.

Esqueceu, obrigatoriamente, mas mesmo assim se recorda. Acredita

que ele seja duplo?

Mas você não leva em conta a passagem, o sofrimento, a coragem

do aprendizado, os tormentos do náufrago provável, a rachadura

_ aberta no tórax pelo estiramento dos braços, das pernas e da líng~,

longo traço de esquecimento e de memória que marca o eixo longi­

tudinal desses rios infernais, chamados amnésias por nossos ances­

trais. Você o crê duplo, ambidestro, dicionário, e ei-Io triplo ou mes­

tiço, habitando as duas margens e vagando pelo meio, ali para onde

convergem os dois sentidos, mais o sentido do rio que corre e o

sentido do vento, mais as inclinações inquietas produzidas pelas bra­

çadas, e as numerosas intenções que provocam decisões; nesse rio

dentro do rio, rachadura no meio do corpo, forma-se uma bússola,

ou rotunefa, de onde divergem vinte sentidos ou cem mil. Você o

acreditara triplo?

Equivocou-se outra vez, ei-Io múltiplo. Fonte ou intercambiador

de sentido, relativizando para sempre a esquerda, a direita e a terra de

onde saem todas as direções, ele integrou um compasso em seu corpo

Tiers: terceiro, terço, outro, estranho, misturado, mestiço. Preferimos esta úl­

tima acepção, por fidelidade ao pensamento do autor. (N. da T.)

13

líquido. Pensava que ele estivesse convertido, invertido, virado ao

avesso, transtornado? Sim. Mais ainda: universal. Sobre o eixo móvel

do rio e do corpo, estremece, comovida, a nascente do sentido.

Aprendizagem

Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domínio da

margem à frente, ele acaba de aprender uma coisa mestiça. O outro

lado, os novos costumes, uma língua estrangeira, é claro. Mas, acima

disso, acaba de aprender a aprendizagem nesse meio branco que não

tem sentido para encontrar todos os sentidos. No ápice do crânio, em

turbilhão, se atarraxa o redemoinho da cabeleira, lugar-meio onde se

integram todas as direções.

-.U niversal significa: aquilo que, embora sendo único, ver!~

~~.?s os sentidos. O infinito entra no corpo de quem, por muito

tempo, atravessa um rio' perigoso e largo o bastante para oferecer

essas paragens distantes onde, seja qual for a direção que se adote ou

se decida, a referência permanece indiferentemente afastada. Então,

o solitário, vagando sem pertencer a nada, tudo pode receber e inte­

grar: todos os sentidos se equivalem. Terá atravessado a totalidade d~

concreto para entrar em abstra<[ão?

Perceberão os mestres que s6 ensinaram, no s~ntido plenoy _a-.9,ue­

~s aos quais contrariaram, ou melhor, kQID .... p.l~taram, aq~~les._<lue

obrigaram a atravessar?

De fato, nada aprendi sem que tenha partidoLD&r!!...~!1Jij~~i __ ~!n~

guém sem convidá-lo a deixar o ninho.

Partir exige um dilaceramento que arranca u~3_:e.<I:rt!.~0 ~.c:'rpo

à parte que permanece aderente à margem do nas.çil11:,t:.~to!.,A.Yizi­

-;hança do~rentesco, à casa e à aldeia dos usuáriQs~ .<L.f.~lt.~~a da

Ííngua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende.

Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te conde-- .. _~~---"--~--_. __ .-nem como um irmão de~~~rE.~do. Eras único e referenciado. Tor-

nar-te-ás vários, às vezes incoerente como o univer.~~ que_~?:o i~!s:!o, explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, ----.-:":-~----_.- - - -- '. ". -'.-

14

..!

Eelo menos a tua explosão em mundos à Earte. Tudo começa por este nada .

.Nenhum aprendizado dispensa a viagem. $ob a orientação de

um guia, a educaçã~_ emp~!ra r..~ra fora. Parte, sai. Sai do ventre de

tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa do pai e pelas pai­

sagens juvenis. Ao vento, sob a chuva: do lado de fora faltam abrigos.

Tuas idéias iniciais só repetem palavras antigas. jovem: velho papa­

gaio. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra grega pedago­

gia. Aprender lança a errância.

Explodir em pedaços para se lançar em um caminho de destino

incerto exige um heroísmo que sobretudo a infância parece capaz de

mostrar, embora ela deva ser seduzida para encetá-lo. Seduzir: con­

duzir para outro lugar. Bifurcar a direção dita natural. Nenhum gesto

da mão que segura uma raquete obedece a uma atitude que o cor­

po tomaria espontaneamente, nenhuma palavra em inglês emana de

uma forma que uma boca francesa esboçaria com facilidade, olhos

bem abertos não garantem a idéia da geometria, nem o vento e os

pássaros nos ensinam a música ... só resta tomar o corpo, a língua ou

a alma a contrapelo. Bifurcar quer dizer obrigatoriamente decidir-se \

por um caminho transversal qU~5:Q~duz_-ª- um.JugarjgrrQra_çlQ._ .So!?te- "* tudo: jamais tomar a estrada fácil, melhor atraves_~r o rio a nado.

_Partir. Sair. ~~~~~-se ?m dia sed~~ir. To~ar-se vário~~_~_7"~~!~­var o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estra­

nhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros l!l04~s~~e_

expor. Porque não há aprendizado sem exposição, às vezes ~!jg9.~)

,?-O outro. ,Nunca mais s~_~~ei g~em2.?!:.l:! ... <?~_~_e ___ c:.~_t?~, ~~_()_n4_~~~p_~Q..~ ~onde vou, por onde passar. Eu me exponho ao outro, às ~stranhezas.

Por onde, esta é a quarta questão, colocada com novos dispên­

dios. O guia temporário e o mestre conhecem o lugar para onde

levam o iniciado, que ainda o ignora mas a seu tempo o descobrirá.

Esse espaço existe, terra, cidade, língua, gesto ou teorema. A viagem

é para lá. Mas a corrida segue curvas de nível, segundo um desempe­

nho ou um perfil que dependem ao mesmo tempo das pernas do

corredor e do terreno que ele atravessa, chão pedregoso, deserto ou

15

mar, pântano ou parede. Ele não se apressa, de saída, em direção à meta, ao alvo, tenso em direção à sua finalidade. Não, o jogo da

pedagogia não é jogado a dois, viajante e destino, mas a três. O lugar mestiço* intervém aí como soleira da passagem. Ora, quase sempre

nem o aluno nem o iniciador conhecem o lugar e o uso des~~ po.:!~. Um dia, a qualquer momento, cada um passa pelo meio desse rio

branco, estado estranho de mudança de fase, que se pode chamar de

sensibilidade, palavra que significa a possibilidade ou capacidade em

todos os sentidos. Sensível, por exemplo, a balança oscila para cima

e para baixo ao mesmo tempo, vibrando, bem no meio, nos dois

sentidos; sensível também é a criança que vai andar, quando se lança

num desequilíbrio reequilibrado. Observe-a também quando mergu­

lha na fala, na leitura ou na escrita, desembaraçada e embaraçada

entre o sentido e o não-sentido. Quão hipersensíveis, afetados, rejei­

tando a afetação, fomos no momento de transpor todos os portais da

juventude. Esse estado vibra como uma instabilidade, uma metaesta­

bilidade, como um mestiço não excluso entre o equilíbrio e o dese­

quilíbrio, entre o ser e o nada. A sensibilidade habita um lugar central

e periférico: em forma de estrela.

Você já jogou alguma vez no gol de seu time quando um adver­

sário se preparava, bem de perto, para um chute direto? Descontraí­

do, como que livre, o corpo faz a mímica do particípio futuro, prepa­

rado para se distender: para o alto, rente à terra ou à meia altura, nos

dois sentidos, esquerda e direita; na direção do centro do plexo solar,

uma plataforma estrelada lança seus ramos virtuais em todos os sen­

tidos ao mesmo tempo, como um buquê de axônios. É este o estado

de sensibilidade vibrante, desperta, alerta, atenta, chamamento para

a fera que rasteja, espreita, espia, solicitação em todos os sentidos

para toda a admirável rede de neurônios. Corra para a rede, pronto

No original, tierce place. O tiers-point, em arquitetura, é o ponto de intercessão

de dois arcos; em perspectiva, é o ponto arbitrário para onde convergem as

diagonais. O sentido de tíerce place, portanto,~~ ~g~2_.das intercessões, _ das

I!lis~urél~1_c!~ __ mestiçagens. (N. da T.)

16

1

para o voleio: ainda no particípio futuro, a raquete se destina ao

mesmo tempo a todos os golpes juntos, como se o corpo, colocado

em deseqUilíbrio por todos os lados, apertasse uma bola de tempo,

uma esfera de sentidos, e liberasse a partir do tórax uma estrela-do­

mar. No centro da estrela se esconde o lugar mestiço, que outrora

chamei de alma, pressentida na passagem de um desfiladeiro dificil

de atravessar. Ele habita esse pólo da sensibilidade, dessa capacidade

virtual, ao mesmó tempo que se atira e se retém, quer dizer, se lança

pela metade, ao longo dos ramos flutuantes do astro que explora o espaço, como um sol.

Cérebro

Se o corpo ou a alma sabem disso, o cérebro não o ignora. Durante o

sono, como durante a vigília, ele vibra e salta em todos os sentidos ao

mesmo tempo, de modo que a curva complexa que deixa sobre o

plano do eletroencefalograma exprime ou imita a sua autonomia em

bola, em buquê, ou em bilhões de estrelas; sob a abóbada craniana

cintilam constelações. Multiplamente sensível, ele se aproxima da

rede para o voleio; ou, guardião exímio, prepara-se para receber bo­

las de todos os ângulos do espaço e em todos os momentos do tem­

po ... balança generalizada, criança audaciosa que se lança numa em­

preitada incerta, boca que vai gaguejar entre o barulho e a palavra,

entre sim e não, o claro e o escuro, a mentira e a verdade, língua,

lábios e palato abrigam este mestiço incluso. O cérebro se ativa para

esquadrinhar o espaço-tempo: como? Ao que tudo indica, estando lá

e cá ao mésmo tempo, contínua e descontinuamente. Saltando ou

cintilando, ele habita esse lugar mestiço, descoberto pelo nado que atravessa o rio.

Assim como a inteligência, a promessa de invenção ... permaneça

por muito tempo como esse jogador, essa criança, esse vigia, que

balança ou nada, essa virgem que se prepara para decidir. Corpo,

músculos, nervos, sentidos e sensibilidade, alma, cérebro e conheci­

mento, tudo converge para esse lugar mestiço, em forma de estrela:

17

cuid(;1do à esquerda, passe pela direita, atenção para o alto e corra por

baixo ...

,Ele, o lugar mestiço, se .~emeia no tempo e no espaço., No meio

da janela que atravessa, o corpo sabe que passou para fora, que acaba

de entrar em outro mundo. O espaço e nossas histórias são densos

em tais marcos: eixo do rio, do braço do mar que se ultrapassa ao

nadar. Aqui parece acabar a aventura, quando a viagem atinge um

estádio; mestiço incluso certamente, uma vez que aqui alguma coisa

termina e não termina ao mesmo tempo. Eis o local da parede, variá­

vel de acordo com o dia e com aquele que a escala, onde este desco­

bre, certa manhã, que passará, mesmo que a tempestade exploda.

Mestiço incluso: não chegou, porém conseguiu. Eis o momento de

trabalho em que, de sóbito, como por graça, tudo se torna fácil e não

se sabe por quê. Bem no meio, a obra se encaixa. Eis o instante em

que anos de treinamento, de vontade, de persistência, de repente

entram e se instalam no esquema corporal ou na naturalidade cate­

gorial; neste meio-dia, começo e termino ao mesmO tempo, sei que

falarei chinês mesmo que não o fale ainda, que resolverei as equações

do problema, recuperarei a saóde, terminarei a travessia. Tão real

este patamar, que às vezes engana: eis aí o cume onde começa a

corrida, enquanto o debutante crê que ela finalmente esgotou seus

obstáculos; falso meio, às vezes mestiço imaginário.

Nascimento e conhecimento

Não sei o que me leva a dizer que essaS q~atro provas ou exposições

maiores da pedagogia - estilhaçamento do corpo em partes, expul­

são para o exterior, escolha necessária do caminho transversal e para­

doxal, e enfim passagem pelo lugar mestiço -, nós já as suportamos

nas primeiras horas de noSSO nascimento, quando foi necessário, não

sem alguma efusão de sangue, ou esmagamento da cabeça, nos arran­

car de um corpo ao qual o nosso se integrava, pois vivíamos apenas

como parte do corpo materno, sofrer um empurrão irresistível para

18 r

o frio irrespirável do lado de fora, ter que tomar um caminho que

nenhuma opressão anterior previa, passar enfim por uma garganta

apertada e recentemente dilatada, pronta para se fechar de novo, sob

o risco de nos abafar, de nos estrangular, de apertar o cordão em

volta do pescoço, sufocar, morrer de asfixia no conduto obstruído,

estenosado, apertado, fechado ... de modo que, uma vez que está vivo,

cada um, como eu, sabe disso, de tudo isso, dessa agonia de nascer,

essa morte para viver em outro lugar" isto é, aqui, em outro tempo,

quer dizer, agora, e que, uma vez que está aí, de pé com o coração

batend~, arfando, já sabe e, portanto, já é possível adaptar-se, apren­

der: morrer-viver como mestiço incluso.

Nós todos já passamos por esse colo, esse lugar estranho e natu­

ral da montanha, onde o mais alto dos pontos baixos se iguala exata­

mente ao mais baixo dos pontos altos. Já aprendemos que o fim de

uma agonia podia de repente equivaler ao óltimo capítulo da vida.

Nascimento, conhecimento: que exposiçãO é mais terrível ao mais

imenso dos riscos?

No curso dessas experiências, o tempo não brota nem da posição

- nela está o equilíbrio das estátuas -, nem da oposição, segunda

estabilidade, da qual nada pode advir, nem da relação das duas, arca

ou arco estático de imobilidade perene, mas de um desvio do equilí­

brio que arremessa ou lança a posição para fora dela mesma, para o

desequilíbrio que a exclui de seu repouso, exatamente de um desa­

prumo: a língua usual o exprime expressamente pela palavra exposi­

ção. No eixo do rio cuja corrente se inflama, o nadador, como quem

enfrenta urri' risco qualquer, se expõe.

O tempo se expõe e, no espaço, brota de lugares onde não deve­

ria estar. No espaço se disseminam sítios de exposição onde o tempo

se estende.

EJicorregadio, o ,lugar mestiço expõe o passante. Mas nada se

passa sem este escorregão. Ninguém jamais se modificou, nem coisa

,3.1guma DO mundo, sem se recuperar de u~da. Toda evolução e

todo aprendizado exigem a passagem pelo lugar mesti50. De forma

19

que o conhecimento, seja pensamento ou invenção, não cessa de pas­

sar de um lugar mestiço a outro, se expondo sempre port~nto, _e

~quele que conhece, pensa ou inventa logo se torna um passante fl?es:

tiço. Nem posto nem oposto, incessantemente exposto. Pouco em equilíbrio, e também raramente em desequilíbrio, sempre desviado

do lugar, errante, sem moradia fixa . .-Caracteriza-o o não-lugar, sim,

o alargamento, portanto a liberdade ou, melhor ainda, o desaJ'rumo, -;'ta condição constrangedora e soberana da conduç~';;-~~rç!Jde.

Eis já quase descrito o mestiço instruído, cuja instrução jamais

termina: naturalmente, e também através de suas experiências, ele

acaba de entrar no tempo; deixou seu lugar, seu ser e seu ali, sua

aldeia natal, excluído do paraíso atravessou vários rios, consciente de

perigos e riscos; eis que agora decola da própria terra: habitará ele o

tempo? Não, ninguém habita o tempo, porque ele exclui os mestiços e

desaloja todo mundo imediatamente. É por isso que todos vivemos,

a partir de então, desalojados.

Escrever

Durante esta viagem de pedagogia, então, não aconselharei ninguém

a deixar que uma criança permaneça canhota à vontade, sobretudo

para escrever. Trabalho extraordinário, o escrever mobiliza e recruta

um conjunto tão refinado de músculos e terminações nervosas que,

em comparação, qualquer ofício manual fino, como a óptica e a re­

lojoaria, é grosseiro. Ensinar esta alta capacidade a uma população

torna-a, em primeiro lugar, uma coletividade de pessoas destras -

observe-se de passagem esta palavra, pela qual os mestres destros

fazem a sua publicidade para hemiplégicos. Eles poderão vir a ser

cirurgiões do cérebro, mecânicos de precisão, qualquer coisa; desco­

brir a alta precisão muscular e nervosa abre para a exatidão do pen­

samento.

Estrear neste mundo novo invertendo o corpo exige um abando­

no perturbador. Minha vida se reduz talvez à memória desse mo-

20 l'

menta lancinante em que o corpo explode em partes e atravessa um

rio transverso, onde correm as águas da lembrança e do esquecimen­

!o. l!ma parte é arrancaçla, ~utra permanece. Descoberta e abertura

cuja cicatrização diferenciada será descrita, a seguir, por toda uma vida profissional ligada à escrita.

Essa cicatriz seguirá com fidelidade a antiga sutura da alma e do

corpo? O canhoto dito contrariado se torna ambidestro? Não, mais

provavelmente um corpo cruzado, como uma quimera: continua ca­

nhoto para a tesoura, ° martelo, a foice, o florim, a bola, a raquete, para o gesto expressivo, salvo para a sociedade - neste caso, o corpo

-; nunca deixará de pertencer à minoria desajeitada, sinistra, como

se diz em latim - viva a língua grega que a diz aristocrata! Mas é des-

tro para a caneta e o garfo, aperta a mão certa ao ser apresentado _

aqui a alma -; bem educado p~ra a vida pública mas canhoto na ca­

-'rícia e na vida privada. A esses organismos completos, as mãos cheias.

/"---Como adquirir enfim tolerância e não-violência, senão colocan- - '\',

i do-se no ponto de vista do outro, sa~e~ do Outro lado?

""'------- Não aconselharei ninguém a privar uma criança dessa aventura,

da travessia do rio, dessa riqueza, desse tesouro que nunca consegui

esgotar, pois e!e _co~t~m virtualmente a aprendizagem~ o, universo da

t,?lerância e o cintilamento solar da atenção. Os chamados canhotos

contrariados vivem em um mundo que a maioria dos outros só ex­

plora pela metade, Conhecem limite e privação, enquanto eu sou completo: hermafrodita lateral.

Sexo

Apenas alguns viventes desfrutam de um sexo, enquanto tudo no

mundo, inerte ou vivo, é munido de um sentido. Este vai mais longe,

mais fundo, que aquele. Além disso, esquerda e direita se dizem mais

coisas do que macho e fêmea e separam mais universalmente do que a distinção por gênero.

Os astros giram e avançam orientados, como as partículas em

torno do núcleo do átomo, Cristais e moléculas são lateralizados,

21

com simetrias e assimetrias altamente refinadas. Sentido e orientação não têm origem nos homens nem em suas preferências, suas inclina­

ções, mas no mundo inerte antes do vivo, e no vivo antes da cultura.

As coisas se inclinam: campos de força, auroras boreais, turbulências,

ciclones, manchas sobre o planeta Júpiter ... o universo nasceu, diz-se,

de uma ruptura de simetria. O sentido percorre portanto a imensidão

do céu, entra na máquina do detalhe e cavalga a seta do tempo. De­

pois passa para as conchas, levogiros, dextrogiros, aos crustáceos que

ostentam uma pinça grande ao lado da outra, menor, nisto heter6ce­

los, em seguida a todos os corpos, aos nossos, aos olhos, às abas das

narinas, à raiz dos cabelos e ao equilíbrio algo rompido do peito fe­minino: o seio esquerdo sobrepuja o seio direito, pelo menos estatis­

ticamente. Atravessa nossos corpos e se coloca nos objetos fabrica­

dos. O canhoto se infiltra com dificuldade na floresta da tecnologia

destra. A orientação convém enfim a nossas preferências, a nossas divi­

sões culturais, os vermelhos no poder e os brancos como réus, ou ao

contrário, pelo hemiciclo das revoluções. A política, pequena, no fim

da fila, loucamente recomeça. Se o tribunal da sociologia me conde­

nasse por não ter dito que o mundo s6 se orienta pela projeção de

suas divisões ou pela imposiçãO de suas escolhas, acho que responde­

ria: e, contudo, ele gira. O mundo é lateralizado em toda parte; ele é

assim. A orientação vai do local ao global e do pequeno ao grande,

átomos e astros, da matéria inerte ao ser vivo, cristais e conchas, da

natureza à cultura, do puro ao aplicado, do espaço ao tempo, das coisas às línguas: atravessa tudo, até mesmo, sem dificuldade, as pas­

sagens que a filosofia considera as mais delicadas. Ora, a divisão por gênero diz respeito somente aos viventes se­

xuados, a alguns papéis sociais, às vezes à linguagem. Pouca coisa, em

suma. Todo mundo diz, sem saber o que repete, que a bússola, indi­

cando o norte, permite que nos orientemos. E se eu, aquitânio, cali­

forniano, habitante do sudoeste, decidisse me orientar pelo sul? Ou

22

.L

l'

então: vá sempre em frente, nos dizem, sem reparar que a retidão

recomenda dobrar a estibordo. Como pode a justiça se apresentar sob a imagem publicitária da balança equilibrada, quando o próprio termo 'direito' a faz pender sempre para uma mão? Neste caso, leva­

do pela inclinação, o dizer não é inclinado pelo gênero. Em suma, o sexo pesa menos que o sentido, ou o macho que a

direita. Costumamos viver mais mergulhados no turbilhão latera­

lizado que na emoção sexual. Esta comparação mostra a experiência

do canhoto, contrariado ou completo, no interior da primeira parti­

lha, como mais intensa e mais ampla que a experiência mítica, do

andrógino, no interior da segunda. O canhoto vai até o objeto, dos cristais às estrelas, aberto para o mundo, por conseqüência cognos­

cente. O hermafrodita se detém na carne, voltado sobre si, forçosa­mente narcisista.

Nada, então, na natureza inerte ou animada, nem na cultura da

linguagem ou da imagem, se refere a um espaço ou a um tempo

homogêneos ou isótropos, reversíveis, que se possa repartir à vonta­

de, de maneira perfeitamente equilibrada ou simétrica. Não existe

indiferença balanceada. Não há centro nem eixo, inencontráveis ou ausentes.

A orientação pode então ser considerada originária, invariante,

irredutível, tão constantemente física que se torna metafísica. Por

meio dela, universal, estabelecemos comunicação com o universo

que nasceu, repito, desse clinamen antigo, rejuvenescido por nossas

ciências cOI]:temporâneas sob a denominação de ruptura de simetria.

LeibnÍz chega a identificá-la com a razão de ser das coisas: elas

existem em vez de nada. Pode-se assim descrever o princípio da razão

como uma diferencial de sentido e desenhá-lo por meio de uma pe­

quena seta partindo do centro ausente e inencontrável para se dirigir

não importa para onde. Sua inclinação surge então como um raio, em lugares e tempos improváveis.

Donde se conclui que o ambidestro não tem razão de ser: nulo,

abaixo do sentido, no zero, indeciso, banal, não codificado, doente

23

de não ter carências. O destro ou O" canhoto vivem num semimundo

e deitam-se num sentido, de um lado, virados sobre uma metade.

Fracionários, mas justificados pela razão de ser: cegos, além disso,

para seu complemento morto, privados do liame virtual com o outro

sentido; o macho procura a fêmea que atrai, e o sexo brilha com o

desejo do instante somador, enquanto a partilha do sentido é despro­

vida disso. Nada permite à direita esperar um encontro com a es­

querda, o pontilhado até ela se apaga. O hermafrodita, raro, se en­

contra tão freqüentemente quanto os coitos mesmo frustrados, ou as

fêmeas grávidas ... enquanto o corpo completo dorme tranqüilo, pois

não pode virar do avesso, nem se converter jamais. Universo pleno,

um ou soma de metades.

O ambidestro: neutro; os outros dois: metades; só o canhoto

contrariado perfaz o pleno e a unidade. Zero; duas metades; um in­

divíduo indiviso. Um mundo, ou antes um universo, fragmentos ou

nada. Quem não é canhoto completo se vê constrangido à análise,

porque vive entre a divisão e a destruição.

Quem se sente pleno não vê, nem experimenta, o limite. Assim,

não compreende o corte, a falta, o desejo desenfreado de transgredir

uma fronteira inacessível que ele se pergunte por onde passa. Levei

muito tempo para compreender minha sorte inexprimível em não

conseguir compreender essas extravagâncias.

Como aquela que consiste, por exemplo, em repetir que todas as

sociedades se fundamentam na troca. Não: a seta simples, assimé­

trica, mais elementar, dá ao parasita, sem discussão, o primeiro lugar,

perigoso, trágico, expo~to. Precisa-se do direito, no mínimo, e da

moral, no máximo, para construir, pacientemente, a seta dupla das

trocas globalmente equilibradas. Em todo canto e sempre, a orienta­

ção começa; falta ainda construir os diferentes balanceamentos. A

troca, portanto, fica em segundo lugar.

Da escrita à pena, nossa época passa ao teclado. Nele, a quantos

compositores a mão esquerda faz falta! Esta acompanha, dizem eles,

serviçal, escrava, sombra da outra. Não: as mãos fazem amor, ao

24

entrelaçarem as notas; que barbárie tão habitual é deixar uma delas

quase passiva! Andróginas às vezes, em miraculosas partituras que nos fazem ouvi-las verdadeiramente bilateralizadas.

O próprio piano ilustra o corpo completo, bem plano, codifica­

do em toda parte, o corpo se assemelha mesmo a esta mesa. Teclados

cortados, mesas quebradas, dos quais só se podem ler os fragmentos

ou as análises, pianos baixos, cujo alto se perderia no cinza, apagado

pelas nuvens, instrumentos agudos, em que o baixo se perde na som­

bra profunda, eis os canhotos ou os destros. Ora, amanhã não escre­

veremos mais com esta única mão que segura o lápis ou a caneta

sobre uma página, orientados ou desorientados, mas com duas mãos

complementares sobre teclados ou outros consoles. A questão da es­

crita está mudada: quem sabe, teremos que formar também destros

completados por sua esquerda. Estamos saindo da civilização reta do

estilo para entrar na dos teclados, planária, volumosa e descentrada.

Isso nos mudará, corpos e almas, e isso transformará o tempo.

Quimera

Onde soa o centro do piano? Em torno do terceiro lá? Ouça o xis ou

o ixe da escala ascendente da esquerda para a direita, e encontre, nas

proximidades de algum meio, a cascata de notas escorrendo do alto

para o baixo; escute a quimera e o ponto de encaixe. Neste ponto da

escala, vernal, jaz a encruzilhada, sob a estátua de Hermafrodite; este

lugar primaveril se encontra no corpo, eu o conheço como dor e

como fonte, cicatriz e origem, tesouro e dobra secreta; uma atadura

por ele pasSa, como o curativo de um segundo caminho e deste como

ligadura do primeiro. Não rasgue a bandagem da quimera.

Nossos ancestrais procuravam justamente o lugar misterioso on­

de o corpo se ata à alma, os laços e as dobras desse nó.

O canhoto contrariado se parece com uma quimera que levasse

sua alma à direita, porque escreve do lado das obras de cultura, e séu

corpo à esquerda, porque ali segura a sua ferramenta de trabalho para

ganhar a vida; eis um mundo contínuo, passando por suas entranhas,

25

i , ,

que une o vivente à cultura pura, mão para trabalhar a terra ou catar

o grão, mão para escrever com estilo ou compor música, entron­

camento para o lugar vernal, onde o trabalho corporal encontra no

penso, como prolongamento normal, o pensamento altamente abs­

trato.

Esse monstro completo, quero dizer, normal, unicórnio, esfinge,

mulher-serpente ou sereia, constrói um universo conexo, passando

pelos encaixes do centro, que une a vida privada ao coletivo exterior,

mão para a carícia, lado para o sinal e a saudação, onde se tocam e se

misturam os espaços de jogo e a gravidade refinada, canhoto na bola

e destro na caneta, passagem pelo ponto decisivo, onde o sentido de

sensação se transforma em sentido de significação, onde a solidão se

abre, onde a atenção livre torna-se produtiva, onde o riso se mesclará

com lágrimas, onde o rigor se refina em beleza.

O canhoto contrariado-completado escorrega constantemente

sobre o penso ou a conexão, pratic,a,cem vezes por dia a escolha pela

qual o suor industrioso se dirige às singularidades da arte, pelo qual

o trabalho medíocre e insistente se expande em obra, pelo qual as

fermentações putrescentes da terra se extinguem no universal sob

forma pura. <Leogre' ou <tigroa', saído do tigre e ,da leoa, ou da tigreza

e do leão, mestiço, Arlequim, animal cruzado, alçado desde sempre à

destra acadêmica, continuando canhoto para a vida banal e de base,

ele liga, ata, costura, articula, cicatriza, harmoniza, teve que passar

por cem mortes e chegar aqui, dilacerado sob a bandagem derrisória,

alma-lago de lágrimas no centro do tórax, constrói seu jogo de duas

mãos, passando, repassando, acariciando e marcando este lugar do

meio curado, vernal, novo, sólido, sereno, mais jovem que a infância

envelhecida.

Deve-se fazer uma cruz para localizar um centro e um caminho

penoso para chegar nele. Uma só reta ou um só lado não bastam. É

preciso um corpo cruzado, passando pelos órgãos do centro, coração,

ventre, plexo solar, sexo, língua, nariz de sapiência e de sabor, atra­

vessando o reconhecimento dos lugares axiais, para que a língua co­

mece de verdade, para que apareça o sexo; como podem, um canhoto

26

ou um destro divididos, localizar seu centro, deitados como estão ao

longo do mesmo leito? Um leito, para os ventos, não forma uma rosa.

Precisa-se de muitos, e também que eles se cruzem no centro do

compasso, para que o sentido desabroche. Terão um sexo, uma lín­

gua, os infelizes, como será que eles ocupam a rosa multiplamente cruzada de seus cérebros?

Uma borda do corpo bem assinalada, tão fortemente existente que se toma como referência, atrai para si, faz perder o centro; pode­

ríamos chamá-la de borda de gravidade, sempre levada, como uma

bola descentrada, a tocar o solo do mesmo lado: ídolo budista senta­

do sobre as pernas cruzadas. Mesmo a massa global, forte e escura ali,

se desvanece pouco a pouco na neblina, à medida que nos afastamos

desse lado, até flutuar, quase ausente, seu peso leve, em tom desbota­

do. O lateralizado se parece com um estandarte tremulando ao vento.

Seu corpo tem terras raras, lugares desconhecidos, locais onde o ma­

pa ainda está em branco. Como dizer de outro modo, seja qual for a

iluminação ou o valor dados às nuances, que seu centro, claro-es­

curo, participa da consciência e do inconsciente? Língua entalhada,

sexo cortado. Ou o sexo é cortado, secção, ou ele é cruzado, intersec­

ção. Corpo cortado ou corpo cruzado não definem um centro equi­valente, nem sequer o mesmo animal.

As duas bandas ou caminhos se encontram no lugar de inter­

secção, mestiço, simples, duplo e cruzado: ausente, excluído, podero­

samente presente. O cérebro é simples, duplo e cruzado, como um

quiasma, como uma quimera: é através dela, modelo do corpo, que

pensamos, pelo menos organicamente. O canhoto contrariado tem

um corpo modelado por seu próprio cérebro, organismo completo

que remete continuamente ao modelo central, em cruz. E a todos os órgãos axiais.

Da mesma forma simples, duplo e cruzado, o sexo assim se no­

meia: secção, porque sua divisão deve fazer aparecer o claro e o es­

curo, o consciente lado forte e o inconsciente lado fraco, no caso

habitual das pessoas lateralizadas; ou então podemos entendê-lo no

27

sentido de intersecção, pela dupla orientação. A grande cruz da qui­mera desenha e produz essa intersecção que, mais ainda, quer dizer

produto. Descoberta luminosa: o sentido produz o sexo, os dois sen­

tidos são seus fatores. O desejo, no meio, é o encontro agudo, incisi­

vo, vivo, desses dois sentidos que formam o mundo e nos fazem

participar dele. O cérebro é simples, duplo e cruzado, intersecção e produto. O

sexo é simples, duplo e cruzado. A língua, no centro, é simples, dupla

e cruzada, sopra sempre dúvida, e tripla, feita para traduzir) cantar o

quimérico. Fendida, a língua se bifurca, fala com duas vozes, com

dois sentidos. Ela também é produzida pelo sentido. Baixa, aguda,

forte ou fraca, clara, obscura, verdadeira ou falsa, rigorosa, imaginá­

ria, mentirosa ou leal, estrangeira ou vernácula, atraente, repugnan­

te, sempre polarizada. Sensata, insensata. Mas, de repente, passando

de um sentido ao outro, e depois ao não-sentido, através de um lugar

mestiço.

Dobra e nó

Sei lá, mas sei o que se passa no centro. Conheço o envoltório, no­

meei-o penso ou curativo, cruz ou cruzamento. Qual faixa fica por

cima, qual por baixo? Essa pergunta elementar se coloca quando seguramos nas mãos

duas hastes e nos preparamos para fazer um nó, antiga prática de

marujos e tecelões, ou teoria dos grafos, esta bem nova. Por baixo,

por cima. É como se brincássemos de main chaude. '" Penélope, tecelã,

entrelaça as malhas assim. Direito, avesso. Todo nó complexo se des­

mancha em tantas dobras locais onde a mesma questão- se recoloca.

Por cima, por baixo. Outra maneira de ligar o esquerdo e o direito,

basta inclinar-se um pouco e logo se percebe isso. As duas mãos te-

Na brincadeira de main chaude, duas crianças testam seus reflexos, uma ten­

tando retirar sua mão da posição inferior e acertar um tapa na mão da outra,

originalmente colocada sobre a sua. (N. da T.)

28

"

_.

cem ou tricotam juntas, complementares, como ainda agora corriam

sobre o teclado. Simples e duplas, elas se cruzam: em que sentido?

Antes de ensinar as crianças a usar o console e o teclado, ensine-as a

tecer ou tricotar.

Ora então, caso sigamos atentamente a linguagem, o termo com­

plexo, vindo da dobra e do nó, designa e até mesmo descreve uma

situação um pouco mais entravada que a multiplicação. Dedica­

da somente ao número, esta não se importa com o lugar, enquanto

aquele o leva em conta. O complexo designa um conjunto de dobras

quando passa da aritmética, simples desconto, para a topologia, que

não despreza as dobraduras.

Afinal, o complexo sempre descreveu tal situação, e em física,

por exemplo, uma rede, elétrica ou de outra espécie, na qual nume­

rosos fios passam alguns por cima de outros, e outros por baixo de

alguns, portanto estes à esquerda ou à direita daqueles, como se quei­

rai desenho de topologia combinatória, nó generalizado, denomina­

do complexo pela primeira vez por J .R. Listing, em língua alemã, e

utilizado por Maxwell em sua teoria dos campos elétricos. Tal rede de

fios ou de forças, interceptada algumas vezes pelas resistências ou

pelas capacidades, é chamada comumente pelos físicos de ponto de

Wheatstone.

Quando esse ponto se equilibra entre dois bornes, nenhum apa­

relho de medição o consegue detectar. O complexo, então, é inobser­

vável: nem visto, nem conhecido. Existindo, porém, enorme e emba­

raçado às vezes, entravado, entrelaçado, entretanto mergulhado em;

por essa nulidade da diferença de potencial, ele só existe em potência,

como uma memória negra, a meio-caminho entre a presença e a

ausência, o esquecimento e a recordação, a energia local e a incapa­

cidade global. Ali descoberto, o inconsciente, rede admirável de ma­

lhas e de nós estranhos, faz parte da família lógica dos mestiços. Se

existe, jaz nas proximidades do meio e, como ele, tende a se perder no

negrume da memória, e depois a ocupar todo o espaço e todo o

tempo.

29

Primeiras recordações

Dia. Durante o dia, Penélope tece, compõe, monta a sua tapeçaria,

segundo o cartão perdido de que ninguém fala, mas que segue o

plano e mostra cenas da viagem, ilha de Circe, Nausícaa que joga a

bola na areia da praia. Palifemo cego no interior da caverna, as Se­

reias de seios nus cercando o estreito do encantamento ... peça após

peça, dia após dia, tear para a amante, etapa para o amante, ária para

o aedo ou o trovador, décima de versos para Homero, como se todos

os quatro produzissem juntos, sob a iluminação diurna: um, a sua

corrida à vela, a outra, a cena sobre a tela, o escritor sua página bem

alinhada, o cantor sua partitura de melodia, a cada um sua tarefa

cotidiana. Seguimos, escutamos, lemos, vemos os diferentes quadros, mer­

gulhados no encantamento da música: a feiticeira fatal, a jovem com

suas amigas, o monstro caolho e, enfileiradas sob o vento da melodia,

lábios abertos pelo vento silencioso das vozes, as mulheres-peixes de

busto alto elevado acima d'água, iluminadas pelo sol.

Noite. Ora, quando desce o crepúsculo, quando o marinheiro

empina suas velas e a lira se cala, quando a noite proíbe o gênio de

escrever e o leitor de ler e ver, diz-se que Penélope desfaz a peça

tecida, apaga Circe, depois sua ilha, a bola desaparece antes dos bra­

ços de Nausícaa, o Cíclope perde seu único olho: os fios se desatam,

o tecido desaparece, as notas musicais caem da pauta que se desfia. A

sombra carrega os fantasmas, a melodia involui para o silêncio ... não

se vêem mais as Sereias nem a boca áfona e musical nem os seios

sedutores representados acima da espuma. Esse desatamento significa que não precisamos nem de tela nem

de mapa nem de partitura gravada nem de poema escrito nem, por

certo, de memória. A vida nos basta e nossas negras entranhas. O que

foi tecido ontem, as cadências e as estrofes penetraram bem nítidas

na nossa carne e no esquecimento obscuro, enterradas vivas na som­

bra do corpo ou na penumbra da alma, na noite do tempo, sem

30 -"

tomar lugar, não mais embaraçosas que um braço ou um órgão qual­

quer. Pode-se desfazê-las sem dano. Elas continuam aí sem estar aí. A

noite se recorda do dia sem o conter; um nada lembra alguma coisa;

a memória, musical, não ocupa espaço. As vozes silenciam e então

trabalham, no escuro, para a clara inteligência.

Nossa flexibilidade contém a tapeçaria demolida, os cartões au­

sentes e a melodia tácita, sem outro estorvo além dos músculos, dos

nervos, do coração. Derretida, a recordação se faz carne: ela semi­

ressuscita, já vibrante, do mar negro.

Manhã. Creio jamais tê-las ouvido cantar, nenhuma velha avó

me contou sobre elas, vi somente uma vez esse perfil fugaz, li apenas

um resumo malfeito; entretanto, meu corpo, esta manhã, sem difi­

culdade, reconstitui, surgidas do mar e de suas grutas profundas, as

ovelhas que saem, enormes, do antro escuro do monstro caolho, a

inquietante Circe que faz emergir marujos de porcos imundos, a bola

que, dançante, descreve um arco, para fora do amontoado em que se

acotovelam as companheiras de Nausícaa, as Sereias mudas, de peito

alto sobre as ondas cantantes.

Todos ressuscitam do túmulo vazio, dos fios desmanchados, dos

versos apagados, do silêncio, de meus flancos, da ausência, da carne

calma e palpitante, de meu tórax sonoro saindo do mar negro.

Tu que escutas ou vês essas figuras surgirem da sombra sob a luz

refinada da música, da narrativa escandida ou do ritmo do tecido,

esquece-as sem hesitar, desfaz em ti esta noite sem pena os fios que as

aprisionam ou as notas e as palavras que as evocam, vais cantarolar

um dia p~á as tuas netas, compreendendo enfim, nessa noite, o que

aprendeste outrora cegamente: a fada mágica e uma mocinha ingê­

nua jogando bola, um caolho perigoso ou uma vítima cega e, tácitas,

as Sereias canoras de seios alvos acima d'água. De cor.

Esquecidas em nossos corpos, as Sereias se recordam; cantam o

poema. Sem espaço, a música prende a nós a ilha sem memória.

Diluído na carne, sem deixar qualquer traço, o lugar mestiço, em

torno do qual bate o ritmo e vibra a música.

31

I' !

Rosácea

Treme e vibra no tempo o que se passa no centro.

O voleador e o goleiro sabem esperar e preparar ao mesmo tem­

po e no instante preciso a queda baixa, o pulo fulgurante para um

ponto longínquo, o lance rápido e curto, o salto em altura, o desvio

brusco se o ataque vem de frente ... esquerda, direita, acima, abaixo,

como seus membros conseguem se desatar? Como, eu não sei dizer,

mas sei que o corpo sabe fazê-lo, porque dorme e vigia tranqüilo.

Ele se coloca em desequilíbrio, em desvio, por todos os lados.

Sabe, portanto, prestar atenção. Livre de sentidos. Suas hastes desata­

das, flutuando, com todos os nóS abertos e não cortados, braços e

pernas em branco, cabeça vazia; circular como uma rotunda, alto

como uma plataforma de causalidade nula, ele se torna, ouso dizer,

possível. Imóvel, com a potência de mover-se. A tapeçaria de ainda

agora se desfaz. Dir-se-ia a mancha clara, irradiada em todos os sen­

tidos, da rosácea de uma catedral. Atento, na espera, o corpo se coloca. Os filósofos chamam de

tese o ato de colocar: um objeto, um fato, uma afirmação verdadeira.

O corpo não se coloca como uma pedra ou uma estátua que se imo­

biliza segundo as leis da estática, repousando sobre seu pedestal e em

torno de um centro de gravidade, estável, equilibrada, abandonada às

regras do repouso. Há quem defina o movimento como uma série de

equilíbrios, como uma seqüência de repousos. O corpo parece estátua quando dorme e torna-se uma após a

morte. Nos dois casos, ele repousa, algumas vezes colocado sobre um

dos lados. Canhoto do lado esquerdo, destro do outro. A orientação

desempenha então o papel de uma segunda gravidade. De pé, sinto

minhas pernas pesadas e minha cabeça bastante leve. Pés de pele às

vezes calosa, idéias voando, palavras emitidas por um sopro. Como

se a sustentação produzisse por si só partilhas longamente disputadas

na arena dos filósofos. O espiritual participa do sopro, leve, o real do

pesado, volumoso. Não é por um vago sentimento do próprio corpo

que oS teimosos se batem?

32

I

l-I .

Ora, se O corpo parece estátua, por seu peso dirigido para baixo,

com essa estátua ele esculpe uma segunda, por sua lateralização para

a direita ou a esquerda. Ele repousa sobre seus pés, mas puxado para

um lado. Seria preciso desenhar uma componente oblíqua que daria

a vertical verdadeira do vivente permanentemente atraído por essa

diagonal, que formaria com a normal o ângulo da sua própria queda.

Tudo pende e se expõe do lado em que ele cairá.

Quando você é considerado realista, dizem que tem os pés na

terra. Os pés, não as mãos nem a cabeça. O importante jaz embaixo.

Esquecem-se de indagar que pé primeiro: esquerdo ou direito? Qual

dos dois, único e bem determinado, você já tem em sua cova? Aí está

com propriedade a estátua do corpo próprio, inclinada como um

colosso à moda antiga, uma perna projetada para a frente, para dar a

ilusão de andar. Aí está sua tese habitual: o repouso. Ele, aquele pé na

frente, dorme estirado de um lado. Aí estão as forças da morte.

Ao contrário, ele se levanta, desperta: atento, espera. Saído do

repouso, não mais se abandona: aberto a qualquer eventualidade. O

que virá pode chegar de qualquer direção no horizonte. Cuida então

de apagar todas as forças que faziam de si uma estátua colocada, uma

tese estática. Contudo, não se move, mas anula o ângulo de queda

fatal, apaga o melhor que pode sua gravidade; inundando de subjeti­

vidade sua elasticidade muscular, esquece rápido que se inclina num

sentido e se coloca diferente, o jogador de tênis subindo à rede para

o volejo, o goleiro em estado de alerta, vigilante. Preenche seu espaço

equivalentemente: alto, tanto quanto baixo, direita como esquerda,

deixa suas preferências e determinações, abandona suas pertinências

e tanto metllor o faz se muitas vezes atravessou o velho rio branco.

Ei-lo corpo completado.

Donde se vê que o teimoso, que grita pela esquerda ou pela direi­

ta, ou pelo baixo real ou pelo alto espiritual, carece verdadeiramente

de atenção. Ele não fica, como um filho um dia pediu ao rei seu pai,

à esquerda e à direita. O vigilante que espia, ou o pesquisador aplica­

do, em suspenso, torna-se logo um canhoto contrariado.

Este, ao invés, presta sempre atenção, pleno de virtualidade,

33

transbordante de possibilidade e de capacidade; todo em potência, ao

pé da letra, ele se expõe em todos os sentidos, como um pequeno sol.

Durante a sua paixão, apagou todas as suas determinações, ou me­

lhor, as completou. De nenhum modo anjo, nem fera, pois a dupla negação produz um neutro estúpido e nulo, mas anjo e fera juntos,

vagando sem pertinência, corpo misturado, ascendendo ao possível.

O existente é possível, em primeiro lugar. O corpO entra em posse de

sua capacidade. Exatamente, ele se eleva em potência, sobe a mon­

tante de toda passagem ao ato. Não falamos aqui do corpo indeciso,

embora este se ponha a montante de toda decisão, embora preceda o

corte. A indecisão exprime uma doença de jusante e a pré-decisão a

potência da nascente. Pré-eis, * diz-se na melhor linguagem: virgem.

O corpo atento embranquece como a neve virginal. A atenção e a

espera se voltam para a brancura. O corpo inteiro busca a vizinhança

do centro para se enovelar o mais possível. Impossível? Ele habita

esses pequenos modelos reduzidos: cérebro, sexo, língua, pequenos

corpos cruzados. Procura a dobra do cruzamento, lugar onde os sen­

tidos se trocam uns com os outros, como se fundidos, acorrentados.

Mude de direção, você será forçado à atenção. E isto se parece com o

sol de rosáceas: exposição em todos os sentidos.

Arle:quim se torna Pierrô.

O cérebro, o sexo, a língua expõem os possíveis à espera, sendo

eles próprios órgãos ou funções do possível. No ponto de cruzamen­to, a questão do nó, esquerda, direita, embaixo, em cima, não se

coloca mais, é antes a sua forma que se expõe. A encruzilhada, aberta,

descerrada, translúcida em seus caminhos, pertence a todas as suas

vias, de maneira estável e instável. Praça branca, rond-point estrelado,

flutuante. Tudo freme em torno do eixo ou do centro transparente e

em suas vizinhanças. O cérebro espera, imenso complexo de vigilân-

>I- O prefixo latino eis significa aquém. Pré-eis, portanto, é um neologismo que

poderia ser traduzido como "antes de aquém". Précis, sem hífen, significa pre­

ciso, fixo. (N. da T.)

34

cia, oscilando multiplamente, tremendo, vibrando no tempo como

seu próprio eletroencefalograma. O sexo hesita, branco de espera e de

capacidade; brilhando exatamente de potência, ele se agitai a língua

duvida e se embaraça, reticente, branca de possível, como uma plata­

forma de causalidade nula, oscilante como a música e os sons que a

transportam, faiscante.

Conjunto de tremores, marcas essenciais, e talvez segredo da

vida, cujo nascimento é reconhecido pelas palpitações, regulares no

caso do coração, caoticamente erráticas e complexas para a cabeça ou

o sistema nervoso.

Trilha, música

Voltemos à pequena seta diferencial, minúsculo desvio fundamental

de nossa razão de ser. Deitar do lado esquerdo ou direito, passi­

vos, afasta-nos muito desta seta. A inquietude, ínfima, tremula perto

do centro ausente: desvio originário do repouso. Destros e canhotos

dormem no fundo do leito com um sentido morto, como se diz a

propósito do leito do vento ou do braço morto de um córrego. É

preciso que o canhoto se exponha em direção à direita, e o destro em

direção à esquerda, para despertar de sua quietude animal ou de seu

sono mortal, para aquecer sua paralisia. Fazendo isso, eles passam

pelo centro.

Aquele que parte de uma margem e a deixa, mas a conserva para

tentar atingir a da frente e habitá-la, adotá-la, transita pelo eixo, de

modo que <: .. corpo experimenta a rasgadura no tórax, ou no ventre,

no meio da boca ou entre os olhos, feita pela seta originária. Esquar­

tejado por seu estiramento, exposto. Como anseia pelas margens da

esquerda e da direita ao mesmo tempo, deve atravessar sem parar.

Assim, sua vida, seu tempo e seu lugar naturais vibram, tremem, se

agitam, palpitam, vacilam, hesitam, duvidam em torno da falha in­

quieta, sempre desperta, soando como uma corda vibrante.

A orientação originária parte do centro ausente e inencontrá­

vel, como se ali se enraizasse: o raio que o assinala, e o esconde

35

com suas fulgurações e ocultações, pisca sobre tudo como um pe­

queno sol. Não encontramos o centro e nos inclinamos a deixá-lo. Volta­

mo-nos para a direita, para a esquerda, para nos afastar dele. Temos

medo? Não sabemos nem podemos habitar sobre esta falha, este eixo

ou dentro deste turbilhão: quem construiria sua casa no meio da

correnteza? Nenhuma instituição, nenhum sistema, nenhuma ciên­

cia, nenhuma língua, gesto ou pensamento se fundará neste lugar

móvel. Que é o fundamento último mas nada fundamenta.

Podemos apenas nos dirigir para ele, mas no momento de atingi­

lo nós o deixamos, impulsionados pelas setas que partem dele. Passa­

mos ali não mais que um instante infinitesimal. Tempo e lugar de

extrema atenção.

Voltamos para trás. Pelo mesmo esforço e com o mesmo elã, o

mesmo movimento, estamos nos dirigindo, mas em sentido contrá­

rio, para ele. E, novamente, carregados, o ultrapassamos no momen­

to de atingí-Io. Não permanecemos nele mais do que um breve lapso

de tempo. Então viramos para o outro lado. Retomamos, ao inverso,

o mesmo caminho. atraídos por essa ausência e indefinidamente re­

chaçados por ela. Voltamos mais uma vez. Atravessamos sem trégua

o rio, na oblíqua na diagonal ou na transversal, em todos os sentidos

possíveis do espaço e do tempo, volta, ida da direita para a esquerda,

de frente para trás, de alto a baixo, por cima, por baixo.

Assim nascem o ritmo, os balanços, as cadências, os acalantos, os

refrões, as cirandas, a música, os estribilhos, melopéias, a dois tem­

pos e a dois pés, a quatro pés e a três tempos, breves, longas, breves

novamente, rimas femininas, rimas masculinas, juntas ou alternadas,

a dança, a valsa, o par ou ímpar, os rodopios de vertigem, a cama no

mar quando o navio joga entre vagalhões turbulentos, as orações e os

ritos, o sino que toca com regularidade, todas as vibrações anteriores

à língua; todos os movimentos passam e repassam sobre este centro

ausente, onde coisa alguma jamais se detém, entre o nada e o ser,

pólo ou fundação última que só desviado de si suporta alguma coisa;

eis porque a experiência, a existência e o êxtase se exprimem pela

36

mesma palavra de exposição que fala do desvio da equivalência ...

embriaguês, deslumbramento, coroando o abalo geminado do amor.

Sol. Tudo acompanha, no duplo sentido, o lugar mestiço.

Dan~a: minueto do lugar mesti~o

Homens e mulheres dançam juntos frente à frente, mas suas linhas

respectivas são ligeiramente decaladas, de modo que cada mulher fica

diante do espaço vazio entre dois homens e só vê isso, ao passo que

cada homem responde à mesma lacuna entre duas mulheres. Toda

mulher finge gostar desse intervalo furado, enquanto os homens cal­

culam seu amor pela ausência de mulheres cercada de mulheres. As­

sim, cada qual se encontra só em sua suficiência morna e sua infeli­cidade.

Então, cansado de sofrer, cada um abre os braços, como faziam

outrora os suplicantes, e cada mão encontra uma mão à sua esquerda

e outra à sua direita: uma espécie de cadeia cruzada se forma, alter­

nada. Cada um entretrém uma relação amorosa com os dois cor­

respondentes que contornam o intervalo que ele compreende como

parte de seu destino, mas como as duas outras, elas também se rela­

cionam às duas sombras que tém em frente, que enquadram os seus

espaços, nenhum deles vê ninguém, nem fala a alguém, e ninguém

lhes responde: esta cadeia de súplicas produz a multiplicação da ne­

cessidade de suplicar. Duplo impedimento. Seguem-se daí as figuras

da dança, por estações e passagens, e suas substituições infinitas.

Malha elementar ou trama de relações humanas reais, nunca reta

mas em múttiplos arabescos, alças, laçadas ou hélices nos quartos ou

nas salas, nas praças, essa cadeia se parece um pouco com uma pauta

musical em que as notas tomariam aos poucos o mesmo lugar para

que se possa ouvir uma forma familiar num ritmo regular, galope,

tango, be-bop, minueto;- emana da linha, contínua desde que nosso

mundo é mundo, o rumor monótono que canta o indefinido mal de amor.

37

Figura central da dança. A filosofia mestiça ama os corpos mistu­

rados. Post coitum omne animal triste; isso define muito bem, de fato,

o animal: aquele que se entristece após o coito.

Portanto, é homem aquele que, após o coito, ri.

Magnificência

Reconheço em mim um ser-aí tranqüilo e estável, núcleo denso que

não se mexe, como se parecesse o meu centro de gravidade ou a ele se

unisse. Sujeito, é certo, pois nada se estende por baixo dele, colocado,

depositado no mais baixo. O próprio corpo se deita ou se encolhe em

torno dessa posição abaixada, mas ainda gira em relação a esse ponto

quando se ergue, se projeta, salta, anda, corre ou nada, passa a bola

ou avança, segura uma ferramenta ou observa, viaja ou presta aten­

ção, conhece, inventa.

Quem sou eu, primeiro? Esta pedra negra. Peso resultante e re­

baixado dos vetores da preguiça e de minhas passividades caseiras, ele

se dirige para o centro da Terra. Embora localizados diversamente, os

homens como um todo não desfrutam senão de um só ser-aí, que faz

seu gênero ou sua espécie, raiz única de vida e de signo que dá ao

homem o nome de húmus. Esta seta de gravidade se dirige para a

morte, comum, sem dúvida alojada no mesmo centro.

Alerta! Atenção! Tal acontecimento, tal estado de espírito, um

projeto ou o pensamento passam, exigem, solicitam: então sobrevém

um deslocamento. Exatamente o desvio da marcha: a criança vai em

busca de fortuna no mundo, avança um pé em relação ao outro co­

locado, enraizado, raiz dirigida para o centro da Terra, embora cubra

uma localidade.

Por um desequilíbrio sem preocupação nem certeza, com uma

inquietude incoativa, risonha e arriscada, o ser acaba de colocar o ali.

Ele se expõe. Deixa o abaixamento e se ergue. Acredita e estende sua

rama. Salta. Deixa o estável e se afasta. Anda, corre. Deixa a margem

e se atira. Nada. Abandona o hábito para experimentar. Evolui. Dá.

38

Oferece. Ama. Passa a bola. Esquece sua própria terra, sobe, viaja,

vagueia, conhece, observa, inventa, pensa. Não repete mais. Eu penso

ou eu amo, portanto eu não sou; eu penso ou eu amo, portanto eu

não sou eu; eu penso ou eu amo, portanto eu não estou mais aí. Zarpei do ser-aí.

Meçamos quantos palmos há entre o pé esquerdo e o direito, a

altura do salto, o desnível da corrida, largura de vistas, volume dos

conhecimentos, o espaço que a errância desenha, o mapa do deserto

atravessado. Essa distância separa animal e árvore, árvore e areia es­

tável. O ser-aí se enraíza deste lugar para o centro comum do mundo

e se apóia no mais baixo desse eixo, dir-se-ia um vegetal. Abrir O

espaço para esse equilíbrio imóvel projeta um segundo ponto ou

lugar que merece ser chamado de exposto: deslocamento que inventa

um espaço entre a posição e a exposição. Desvio ou deslocamento

não se referem mais ao centro da Terra nem à comunidade da inva­riância e do peso.

Quem sou eu? Primeiro esta indesenraizável posição estável. Ár­

vore ou vegetal, algum legume. Quem sou eu depois? Não estou mais

aí, não sou mais eu, exponho-me: sou essa exposição-aí. Estou no

outro passo, não mais no enraizamento, mas nas extremidades, mó­

veis com o vento, galhos, no cume da montanha, no Outro lado do

mundo onde parto, movimento animal, ondulação réptil, vôo, corri­

da ... sou também aquilo que conheço, interrogo ou penso, estátua, círculo ou tu, a quem amo.

Finalmente, quem sou eu, no total? O conjunto do volume entre

o ser-aí e o ponto exposto, entre a posição deposta neste lugar, tese

mais comtlmente baixa, e a exposição. Essa distância cobre no míni­

mo toda a árvore e, às vezes, um enorme espaço. Chamo a esta grande dimensão: alma.

Magni-ficat anima mea: essa grandeza, literalmente, produz,

constrói1 faz minha alma. Sempre proporcional à exposição. As almas

grandes se expõem muito, e muito pouco as pusilânimes. A alegria as

preenche, cumula-as, como podem aprofundá-las a miséria e a dor.

39

Chamemos magnificência o trabalho operado dentro do tórax

por esse desvio, cuja medida e volume são medíocres Ou amplos,

entre os dois pólos da posiçãO, de um lado ponto baixo e estável do

lugar ou do ali, colocado, descolocado, e ponto alto, não-lugar ou

alargamento da alma, risco e liberação, explosão. Não há ser animal,

ou animado, sem esses dois pontos, nem ser humano, mesmo mes­

quinho, sem viagem nesse deslocamento. A morte vem de retornar ao

ser-aí, embaixo.

Ao descrever na medida exata a construção da alma, no momen­

to mesmo em que ela se forma, por dilatação ou trabalho no útero de

um novo espaço sob a força de um vivente equivalente ao verbo, o

salmo nomeia esses dois pontos: a humildade da criada, para a parte

baixa, evocando assim o húmus, portanto o homem ao mesmo tem­

po que a terra; e para o Muito-Alto, a santidade de Deus. Não deixa

de ter sentido, com efeito, chamar Deus ao conjunto infinito de to­

dos os pontos de exposição. Em troca, ele faz em mim grandes coisas:

fecit mihi magna ... palavras que repetem o magni-ficat identicamente,

mas invertendo sua ordem. Deus magnifica minha alma; minha alma

magnifica Deus; desvio entre nada e tudo, a grandeza faz Deus e

minha alma.

Alegria, dilatasão, engendramento

Sobre essa escala ereta, a criada mede duas vezes o volume em forma­

ção: para baixo, por sua alegria, exultação, exaltação, nomes verticais

da exposição; para o alto, pelo olhar que o próprio Deus lança para

trás sobre sua humildade; altura, portanto, medida duas vezes, dire­

tamente e em sentido inverso. Resultado quase métrico: o espaço da

alma ocupa o desvio, exaltado ao pé da letra, da Terra a Deus.

A mais modesta experiência de alegria confirma que a alma en­

che com seu canto a glória dos céus ou, com seu nada, o mundo. E da

mesma forma para o tempo: a beatitude corre de geração em geração,

de modo que a alma beata habita a omnitude despojada do espaço e

da história.

40 t~

Acompanhada da alegria, a experiência abre seu espaço, que vai

dali para fora e pode ir da Terra a Deus, para construir ou dilatar a

alma, através do desbastamento ou da perfuração de uma passagem,

de um patamar, de uma porta, de um porto, pelos quais se acede a

um desses lugares expostos. A experiência os atravessa e se expõe.

Entre o nada e o tudo, ela estende um espaço e um tempo, como um

braço livre e flutuante. O êxtase exprime um fim dessa viagem, um

estabelecimento, temporariamente estável, ou, melhor, um desvio ao

equilíbrio em torno desse ponto exposto, em sua vizinhança, um diferencial de tempo.

Programado, o instinto bestial se fecha sobre si, colocado. O

animal é um ser-aÍ. Expondo-se pela experiência, o homem entra no

tempo e o abre. Não há humano sem experiência.

Chamemos alma à variedade de espaço e de tempo dilatável de

sua posição natal para todas as exposições. Assim o tórax, o útero, a

boca, o estômago, o sexo e o coração se dilatam e se preenchem: de

vento, de vida, de vinho, de canções, de bens, de prazeres, do Outro

ou do reconhecimento: da fome, da sede, da miséria e do ressenti­

mento também. O estiramento aumenta com a alegria e as desgraças.

Somos costurados com tecidos elásticos. O aprendizado abre no cor­

po um lugar de mestiçagens, para ser preenchido por outras pessoas. Ele se torna gordo.

Alegria. De volta ao vale, habito ainda o cume da montanha que

na última semana escalei, dilato-me daqui até o alto, sim, daqui de

baixo em direção ao Muito-Alto; minha alma, baixa, vagueia, em sua

variedade de tempo e de espaço, o cume do Gouter, o Mont Blanc e

a geleira dOs Grands-Mulets. Não, não me recordo, mas sua magni­

ficência, penetrada em mim, aqui permanece: meu corpo teve que

crescer, como se alargou outrora às dimensões do maciço do Everest. Et exaltavit humiles ...

Assim armei minha tenda, desde a mais frágil juventude entre as

idealidades matemáticas, lá no alto, e as longitudes longínquas, além

da água. Erro pelo mundo e pelo atrás-dos-mundos, a abstração ou­

sada, as paisagens, as culturas e as línguas, as castas sociais ... minha

41

alma se expõe em conhecimentos, como se arriscou e se arrisca ainda

deslizando nas geleiras. Abrir a porta, perfurar a parede, em última

instância se expor à morte. Uma vida de experiências abre a trilha,

curta ou comprida, estéril ou produtiva, do nada à morte, transitan­

do pela alegria, indefinidamente dilatada.

Não há humano sem experiência, sem essa exposiçãO que progri­

de até a explosão; não há humano sem essas dilatações.

De repente elas, em pleno meio do corpo, se preenchem com um

mestiço, que sou eu sem ser eu. Pelo aprendizado, o eu se engendra.

As grandezas sociais, falsas, aniquilam esse desvio: soberbos, ri­

cos e potentados se colocam eles mesmos sobre seus lugares próprios,

suas sedes, seus bens, seu poderio, sua glória e, afastando-os res­

pectivamente desses lugares, dispersos, de suas riquezas, vazios, e

de ,seu poder, derrubado, Deus de fato os aumenta, os magnifica ...

deposuit potentes de sede ... et divites dimisit inanes ... Somente então o

desvio se reproduz e eles se tornam grandes, grandes pela dispersão

ou pela inanidade, grandes porque depostos, três medidas verdadei­

ras de grandeza e de volume.

Experimentando, com fome no peito, estômago, útero e coração

(re-cordatus miseri-cordiae, eis ainda uma dimensão medida), o es­

paço imenso de minha alma exposta, recebo, humilde, no ponto bai­

xo do lugar terrestre, os bens espargidos do ponto alto, não-lugar de

Deus, que enchem até a borda ... esurientes implevit bonis ... esse mag­

nífico desvio a que chamamos eu.

O salmo da Virgem inventa a alma como a medida, em grande­

za e volume, dessa dilatação. Ontologicamente, a alma é grande; a

grandeza, metricamente, a produz. Psicologicamente, a alma é ale­

gria. Eticamente, ao contrário, a contração e o apequenamento a

destroem: pecado mortal de pequenez, de pusilanimidade.

Sem conhecer sentido nem direção, nossa errância vai do ser-aí

para a exposição, da humildade, verdadeira essência do humano, pa­

ra o não-lugar ausente e alto, nossa realização; e esse movimento cria

o desvio da exaltação, nossa grandeza e nosso ser, distância vazia ou

plena, miserável e jubilosa. A miséria e a alegria juntas preenchem a

42

I L

experiência fundamental que podemos ter do ser, da vida, do mundo, dos outros e do pensamento.

Ela se refere pouco a um lugar sujeito, mas sobretudo a esse

espaço cujo sujeito, humilde, constitui apenas o lábio ou o bordo

inferior, e cujo segundo lugar, exposto, marca a outra extremidade:

exatamente a borda do outro. Assim minha alma, no lugar mestiço,

equivale a essa grandeza que limita, embaixo, o eu local da terra e, em

cima, uma multidão de outros de toda ordem.

Nesses lugares altos, expostos, sem os quais não somos nada­

um eu sem alegria -, mora o próprio Deus, apelação omnivalente,

universal, integral, soma cujas versões indefinidas se nomeiam suces­

sivamente cimo do Gouter, tal idealidade, este aeroporto do outro

lado do mundo, tu a quem amo e que me amaste, o mundo cuja

beleza me maravilha e ao qual me dou, o objeto que observo e que me

enche de informação, o pensamento que desenvolvo e a linguagem

que jorra sobre mim, a multidão doce desses em torno dos quais

gravito, tu, vocês, estrangeiros ou familiares ... não há portanto ho­

mem sem Deus, sem essa função- Deus, sem a criação e a experiência

desse abismo exposto, do qual sou apenas a margem baixa, um lábio

local e terroso, sem esse espaço alto e grande, dilatável, que experi­

mento aqui e agora em meu tórax, meu coração, meu estômago, meu

útero, minha alma ... sem essa abertura para a soma da alteridade.

O espaço dilatado pela aprendizagem é preenchido pelo outro

com um ser, um terceiro, eu e não-eu, ao qual um dia não darei à luz.

No sujeito, primeira pessoa, os outros engendram uma terceira pessoa, finalmente bem educada.

Manhã. Trevas. Silêncio. Despertar. Pequenos gestos já vivos. Ei­

la pronta, a força nOva. Armada a bomba. Oferecida a alegria. Que

fazer? Sim, empreender e, decerto, com grandeza. Partir além dos

mares, construir, descobrir ... O entusiasmo traz, na madrugada, a

volta ao mundo, ele e eu de volta à manhã da criação. Onipotência:

tudo se torna possível. Magnificência: esta potência tende à grandeza.

43

Qual? Onde, como e por quê? Então, no momento de decidir, na

lembrança da história, que só promove as grandes coisas por meio

dos mortos, dos pés aos olhos e de um ombro ao outro, meu corpo,

feito por ela, chora a grandeza. Presente, nele, evidente, invasora ...

sem uso.

Nada de social ou de histórico, salvo através de crimes e de men­

tiras, nem a vitória que pisoteia mil vencidos, nem a excelência que

depõe a coorte dos medíocres, nada a forma, a mostra ou a dá.

Ora, com a experiência garantida desde minha infância, violenta,

pesada, exigente, jaz e se dilata em mim a grandeza. Todos os dias,

então, ela desperta uma energia pronta, isso já há várias décadas, para

se precipitar ao primeiro chamado, vigilante atento, servidor fiel,

devotado até a morte, mas só a ela obediente.

Tal onipotência matinal livre, tal exigência imensa, pode se es­

gotar em uma obra; mas esta raramente atinge a grandeza, e sem

dúvida anonimamente, pois não se trata de mim, mas dela, que pro­

duz e engravidará de mim. Então, a potência sem uso continua in­

tacta, juvenil e fresca até na velhice. Exatamente virginal. Ela canta o

Magnificat.

Ora, nada pode fazer dessa experiência uma exceção. Cada um,

sem dúvida, pelo menos um dia, passa por essa dilatação formidável

do ser, em volume, força e virtualidade explosivas, essa brisa livre,

essa grandeza desempregada, virgem a despeito do que se faça, a in­

finita punição de ficar à margem: a possibilidade infinita de aprender.

Por que teimar em não chamar de alma a essa intensidade vagan­

te, mundo e pensamento possíveis em pleno meio do corpo, como

uma rosácea ou um pequeno sol?

44

_.

Instruir

Dia

Noite

Claro-escuro

O lugar mestiço

O terceiro homem

Instruir ou engendrar

A terceira pessoa: procedência

A terceira mulher: concepção

O mestiço instruído: ancestrais

O mestiço instruído, de novo: origem

Engendramento na aurora

O problema do mal

Guerra por teses

O estilista e o gramático

paz sobre as espécies

Núpcias da Terra

Paz e vida pela invenção. Encontrar

Um outro nome para o mestiço instruído

O casal genérico da história

-"

Dia

Nem o sol nem a Terra situam-se no centro do mundo. A filosofia

glorificou outrora a revolução copernicana por ter expulsado nosso

planeta desse posto, mas Kepler descobriu que o movimento geral

dos astros segue órbitas elípticas, que se referem, é certo, quando em

conjunto, ao doador solar de força e luz. Mas cada uma, além disso,

tem um segundo foco, do qual não se fala nunca, tão eficaz e neces­

sário quanto o primeiro, uma espécie de segundo sol negro. Ao sol

branco, brilhante e único, correspondem vários focos obscuros que

podem ser reunidos numa espécie de zona de forma anelar, exposta,

quer dizer, colocada à margem do sol.

Além disso, nenhum desses dois pólos se encontra no meio.

O centro real de cada órbita jaz exatamente em um lugar mesti­

ço, justamente entre seus dois focos, o globo fulgurante e o ponto

obscuro. Não, nem o sol nem a Terra se encontram no meio, e sim

uma zona perdida, mestiça, da qual se fala ainda menos do que de

seus parceiros solares.

Da mesma forma, um afastamento mensurável separa, do sol do

conhecimerito, um segundo foco negro, pelo menos tão ativo, embo­

ra escuro. Termo de uso corrente, a pesquisa, cuja raiz latina vem do

círculo, assim como enciclopédia, palavra erudita que o douto Rabe­

lais recopiou, em grego, da precedente, falam juntas da gnoseologia

circular, centrada unicamente num dispensador de luz. Ao falar em

centro de pesquisa, a língua, redundante, tresvaria e se atrasa, porque

existem, em nossos saberes, segundos focos afastados do primeiro,

que encurvam os ciclos perfeitos de maneira excêntrica. Sim, o co-

47

nhecimento funciona elipticamente, como Kepler disse outrora a res­

peito do sistema planetário. Os fracos e os simples, pobres ou analfabetos, toda a suave mul­

tidão tão menosprezada pelos doutos, que não a vêem senão como

objeto de seus estudos, os excluídos do saber canônico se orientam

com freqüência por esses pontos negros, sem dúvida porque eles não

OS cegam nem os sufocam, ou porque os sustentam assim como o sol

deslumbra os filósofos. Além do mais, reconheceriam os próprios

sábios os momentos solares, os momentos de conhecimento potente,

se não os misturassem às longas horas de sol negro? A verdadeira

intuição se acompanha de uma indispensável fraqueza? E o que deve

a ela? Pela claridade, o conhecimento se descentra, como o mundo,

mas, como ele, em seu elã, na energia de seu movimento. Ignoramos

o que nos incita a deixar a ignorância, motivações e finalidades, e

mais ainda para onde se dirige o saber. A motricidade se encontra

dividida entre a fonte ofuscante de luz e um segundo ponto obscu­

ro. O não-saber contorna o saber e a ele se mistura. Una, concer­

nente ao mesmo mundo e aos mesmos homens, a pesquisa gira, se­

gundo seus objetos, em torno de um centro igualmente distante dos

dois focos. Medir o desvio constante desses dois pólos, considerar o que a

estrela flamejante deve ao ponto cego, e este à primeira, buscar as

razões de uma tal distância, avaliar a produtividade da zona obscura

e mesmo a fecundidade desse par, e não mais simples comando ou

regulação atrativa - o que perderia uma sem a outra? -, eis o pro­

grama da Instrução Mestiça, segundo a lei de Kepler.

O que dizer dos novos centros? No passado, chamava-se centão a

um poema cujos versos, ou fragmentos de versos, eram tomados de

diversos autores. Por extensão, deveríamos chamar assim toda espé­

cie de obra, literária, histórica, musical ou teórica, fabricada com

peças e pedaços copiados. Transcreva um modelo e você será acusado

de plágio. Copie cem, e será doutor. Exemplo: esse estudo das raízes

48

.I.

greco-latinas da palavra centro se reduz a um centão. Palavra pouco

usual, na verdade, enquanto o pot-pourri que ela descreve se apresen­

ta com freqüência.

A língua latina, então, já conhecia a palavra e a coisa, já se com­

punham essas salsadas também chamadas de sátiras, donde se vê que

a preguiça não tem idade. Mas antes de designar uma tal antologia,

para declamar, cantar ou citar, ela chamava cento ao pano feito de

pedaços remendados, um trapo de tecido compósito. Eis de volta o

casaco de Arlequim, comediante situado no centro do palco e deste livro.

O termo francês, cujo desaparecimento no meio da abundância

de objetos que deveria designar eu deploro, remete, como seu equi­

valente em latim, ao grego kentrôn, que traduz exatamente cento e o

centão, poema feito de pedaços tirados de diversas fontes e casaco

remendado, um desempenhando o papel de imagem do outro. Mas,

antes e em primeiro lugar, kentrôn designa o aguilhão com o qual o

lavrador estimulava, antigamente, a parelha de bois da charrua, a

arma no ventre da abelha ou na traseira do escorpião, mas também

um chicote de pregos, instrumento de tortura.

Ora, a mesma palavra designa o instrumento de punição e aquele

que a sofre ou a merece, a vítima. O centro, portanto, acaba por

indicar o miserável, condenado às esporas ou ao aguilhão mortal, e

descreve o seu lúgar. Kentrôn então traduz o centro do círculo, o

ponto agudo, a singularidade situados em seu meio. O lugar do pal­

co, onde Arlequim se despiu. Não me lembro mais em que cidade de

minha infância a praça central era chamada com esse nome: praça

dos CentõeS.

Sozinha, sem trabalho, a língua fala com várias vozes e conta sem

primeira pessoa o desfolhar do prelúdio. Eis o casaco, centão remen­

dado, mais o relato simplesmente aditivo e compósito da queda das

folhas sucessivas do traje ou das páginas que narram o desvestimen­

to; eis, também, o Imperador da Lua no centro, alvo da caçoada do

público e logo seu saco de pancadas, sob as vaias e os apupos; eis,

enfim, o que Arlequim traz no centro de seu centro, no interior de

49

todas as dobras de suas vestes, ou por baixo de todas as suas roupas

de baixo: o que ele é, um e vários. Ele é o ponto central onde estiver, reunião multicor, em um

pcinto de interseção indivisível, direções I e mundos em toda volta. O

casaco desse pavão vaidoso cintila com os olhos daqueles que o

olham, olhares azuis e negros, olhadas verdes e castanhas. A palavra

centro por si só descreve ao mesmO tempo o um e o múltiplo, o um

por seu sentido espacial patente, intersecção, e o outro, reunião, pe­

las raízes lingüísticas ocultas; os dois, enfim, em geometria. Segundo a história das ciências, a língua conta que o centro do

círculo ou o centro em geral, esta idealidade pura, longe de designar,

no começo, o lugar calmo onde se discute em plena igualdade demo­

crática serena, descreve o traço deixado pelo aguilhão, o estímulo sob

um estilo distinto, mas também o prego e O chicote do supliciado, o

local do suplício e lugar do rei ridicularizado: a geometria chega por

último, carregando atrás de si esse passado, como uma negra cau­

da de cometa, atrás do coração brilhante. Algum São Sebastião criva­

do de flechas está cravado ali, perfurado, flagelado, atrás ou sob a

transparência desse puro conceito de centro, cuja limpidez esconde,

melhor do que uma tela, esses resíduos de alta formação arcaica. A

história das ciências dá lugar, incorpora, uma antropologia da geo­

metria como esta, pura, esquecida. Surge o segundo sol negro, distante do brilhante; nosso deslum­

bramento especulativo diante do centro do círculo oculto. Há som­

bra nas vizinhanças desta luz e, sob esse conceito sereno, há dor. No

centro jaz o centão: recoberto de peças, composto de pedaços. É nesta

singularidade, no limite pontual e quase ausente, que o mundo intei­

ro se reúne e se encontra, se justapõe muitas vezes, às vezes se funde.

No centro jaz o sujeito, jogado sob essas peças, receptor de infor­

mação e de dor. Criação, instrução, educação formam esse sujeito central, à ima­

gem do centro do mundo. Brilhante e sombrio, o mundo converge

para ele.

50

L r

Noite

A imagética astronômica, cujos faustos correm de Platão a Kant e

mais além, para canonizar as relações do saber e da luz, do mundo e

do sujeito, raramente repara quanto os observadores, noctâmbulos,

trabalham, quase sempre à noite.

Não só o conhecimento se descentra e reclama apoio junto aos

segundos sóis negros, como o próprio centro, meio-lugar quase nulo,

se dissemina subitamente no universo, meio imenso onde o mundo

terrestre, solar e planetário se reduz a um cantão. No curso de longas

noites sombrias observam-se, mescladas, essas luzes e trevas originá­

rias de milhões de sóis brilhantes e com buracos ditos negros.

Canonizado pela massacrante realeza do dia, nosso saber erigiu

indevidamente o sistema solar, local, em lei generalizada. Ora, meio­

dia não significa mais que o pequeno principado de uma anã próxi­

ma. Nós recebemos de longe a luz de outros sóis, alguns deles gigan­

tes, mas afogados na sombra.

Não só, segundo a revolução kepleriana, o sol deixou o centro,

mas existem miríades de sóis. Ausente ou quase da primeira figura, o

centro se reproduz, multiplicado, pela totalidade do universo. Seu

quase-nada é disseminado indefinidamente. A revolução astrofísica

perdeu a conta do número de vezes.

Existem sujeitos por toda parte, entre a luz e a sombra.

Traduzidos do espaço para a temporalidade, a nostalgia ou o

narcisismo, que sonham com um sujeito no centro de tudo, engen­

draram a ..estranha idéia de que existem dois análogos desse centro

no tempo, o começo e o agora, este último continuamente opti­

mizado como o momento em que sabemos melhor o máximo de

coisas.

Por que, de fato, como o espaço, o tempo não semearia em si, ele

também, uma infmidade de centros ou instantes capitais? Quantos

começos e fins terão verdadeiramente lugar neste momento? Sim, o

agora sempre começa um novo destino, ou fecha uma era, ou perma-

51

nece gentilmente indiferente. Escolha entre essas três verdades equi­

valentes. Mestiço de dois pólos, brilhante e sombrio, o centro passa de

parte nenhuma a toda parte, espaço ou tempo, e de nada se torna

múltiplo.

Ele não dá somente a luz, mas também a força, graças a seu papel

de atratOr. Desde Kepler, cada planeta não se encontra atraído exclu­

sivamente pelo sol, mas também pelo outro foco negro. A partir daí

passamos a conhecer uma multiplicidade de atratores de formas di­

versas, produzindo ordens caóticas. A pesquisa ou enciclopédia dos conhecimentos, antigamente

considerada redonda, segue uma história semelhante; torna-se elípti­

ca ou com dois focos atrativos, já em Augusto Comte constituídos

pelas ciências exatas e as ciências sociais, física e sociologia, antes de

se dispersar hoje e desfrutar, também ela, de vários centros ou atra­

tores; mudam a forma e o conceito da antiga enciclopédia, mas não

podemos, mesmo assim, denominá-la caopédia! Isso não significa que se abandonem as leis, maS que a previsão

baixe até uma relativa imprevisibilidade. Isso aproxima as ciências e

as próprias coisas, pois ninguém sabe nem pode prever a invenção

das leis, ainda que elas habitassem o cúmulo da razão e do deter­

minismo. Em ambos os casos, do saber e do universo, existe a histó­

ria, através dessa mistura de previsão e de imprevisibilidade; inversa­

mente, conceber a história a partir daí torna-se fácil, uma vez que

não cessa em nenhum lugar esse encontro entre a razão determinada

e o caos. Uma certa desordem favorece a síntese.

Claro-escuro

o sol perde a senhoria sobre o conhecimento: ele não é mais seu

último fim e seu primeiro começo, mas se reduz a um pequeno cone

de poeira clara, saído de uma rachadura na caixa negra do espaço. O

52 T

meio-dia produz apenas um ofuscamento oblíquo. Não saímos das

nossas ignorâncias e das nossas limitações. A luz não inunda mais o

volume, não ocupa o espaço, não garante para si o lugar inteiro,

como um deus sob o reino daquilo que nunca será novo, mas nos

chega, como um raio projetado entre miríades, em singulares cores

espectrais. Vinda de um sol, cada faixa interrogada, multicolorida,

tigrada, irisada, zebrada, fornece informações diferenciadas. O casa­

co de Arlequim, Imperador da Lua, representa também este saber de

noite.

Sob o sol único e total resplandecia a unidade do conhecimento.

Na aurora, sua luz extingue a multiplicidade incontável de estrelas

diferentes. Desde o leste, nada de novo. Nada de novo desde que esse

fogo nos ilumina, desde as idades da luz: desde o sol grego, o Deus

único e a ciência clássica, desde Platão, a sabedoria de Salomão, Luís

o Grande e a Aufklarung, esse saber de dia perdera o tempo. Nenhum

desses nomes, dessas eras, ditas novas, nunca mudaram o regime,

sempre o mesmo, da luz, única e intemporal.

Eis o novo. Não mais ingenuamente oposta ao dia, como a igno­

rância ao conhecimento - que bela chance é o ritmo nictemeral para

aquelas simples e cruéis divisões entre o erro e a verdade, a ciência e

os sonhos, o obscurantismo e o progresso! -, mas semeada de cores

e de negro, a noite faz a soma dos próprios dias do conhecer. Assim,

arlequina e cromática, a mestiça instrução, como as precedentes, vem

dos noctâmbulos dos observatórios do espaço, que misturam ao dia

a noite que, por sua vez, integra os dias das galáxias às noites dos

buracos negros; essa mistura engendra uma terceira luz.

Deixamos para trás o Bem platônico, a idade das Luzes, a vitória

exclusiva da ciência clássica, a história unitária de nossos pais. Nunca

as religiões triunfantes, os políticos em glória, a ciência que se acre­

ditava no apogeu quando apenas começava, a história sem falsifica­

ção, toleraram imagens de uma tal discrição ou retenção, nem a mis­

tura da qual o tempo nasce.

Eis que chega a idade dos luzires. O conhecimento clareia o lu­

gar. Tremulante. Colorido. Frágil. Mesclado. Instável. Circunstancial.

53

Penumbroso. Atravancado. No raio de claridade, furta-cor, saturado

de partículas, dançam os átomos. O Rei Sol vê seus louros pulveriza­

dos. Longe de iluminar o universal, ele pisca sob quantidades de pó.

Eis a idade dos clarões e das ocultações locais, a idade do cintila­

mento. Daqui para diante, preferiremos talvez o cromatismo da luz à

sua unidade, a velocidade à claridade?

Mas, novamente, de onde vem essa sombra necessária, tão mis­

turada à luz, na mestiça instrução?

Vem da dor, como aquela que o centro ocultava?

o lugar mestiço

Toda elipse tem um centro e dois focos: aí está um trio, um conjunto

de três. Mas a que chamamos mestiço, neste caso? Um terceiro lugar,

um terceiro homem, a terceira pessoa?

Como mestiço no meio dos outros, alguém pode se encontrar

em posição delicada e ambígua, se não está envolvido - ou se o está

demais - com a situação. Portador, por exemplo, de boas ou más

notícias, intérprete, ele se aproveita, às vezes imensamente, de uma

situação que, com freqüência, se inverte; então pode ver-se impiedo­

samente escorraçado, excluído como parasita. Aproveitador ou men­

sageiro, muito bem ou muito mal situado, o terceiro, no centro, sofre

ou abusa, entre os dois outros. Expulso por interferir demais, inter­

ceptar, intrometer-se.

E aquele que ocupava lugar demais o perde.

De duas pessoas que se contradizem espera-se que uma esteja

errada e a outra certa: não há terceira opção possível; diz-se que o

Mestiço está excluído; ou melhor: não existe um meio. De verdade?

Notável a esse respeito, a língua francesa o define como um ponto ou

um fio quase ausente, como um plano ou uma variedade sem espes­

sura nem dimensão e, contudo, inesperadamente, como a totalida­

de do volume no qual vivemos; nosso ambiente. Nova inversão: do

meio-lugar, pequena localidade excluída, não concernida, prestes a

desvanecer-se, para o meio, como universo em torno de nós.

54

I

L ! .

E o que não tinha mais lugar o ocupa todo.

Como uma corda vibrante que soa, o mestiço não cessa de osci­

lar - de cintilar - entre as boas notícias e as más, entre a vantagem

e o desprezo, a indiferença e o interesse, a informação e a dor, a

morte e a vida, o nascimento e a expulsão, o tudo e O nada, o zero e

o infinito, o ponto do qual jamais se fala, entre os dois focos, solar e

negro, e o universo que ele semeia.

No século V antes de Jesus Cristo, alguns anônimos sábios gre­

gos descobriram, em geometria, a demonstração apagógica, isto é,

pelo absurdo. Medindo a diagonal de um quadrado de lado igual a

um, eles perceberam que seu comprimento não podia ser expresso

nem por um número par nem por um ímpar. Desta contradição, o

mestiço devia ser excluído. Mas, com isso, não existiria a dita diago­

nal; ora, ela existe, formando um xis, decorando, justamente, o meio­

lugar do quadrado que ela separa em dois sem meio, impondo-se à

intuição. Ela existe, portanto, mas é inefável. Dizia-se que era indizí­

vel, irracional, diferente. Ora bem, uma multiplicidade de situações

semelhantes apareceu, subitamente, nos números e nos grafos: a ál­

gebra dos reais, a verdadeira, a grande matemática acabava de nascer.

Ela surgiu do mestiço excluído, desta impossível situação: nem

isto, nem o seu contrário; desta fonte indecidível, do absurdo que

acua a diagonal do quadrado, nem par nem ímpar, ausência de meio

entre essas duas impossibilidades de dizê-la. A partir daí, a descober­

ta dos reais, jorrando como um gêiser desta falha ausente, impôs a

todos os outros números conhecidos, pelo menos naquela época, a

redução a ~asos-limite dessa nova forma, de início um meio-lugar

absurdo, portanto nulo, em seguida invasor, meio quase total. Logo

só se encontrará por toda parte esse mestiço, tão depressa quanto foi

proclamada a sua exclusão. Ele não era nada, e eis que se torna tudo

- ou quase. Absurdo quer dizer surdo: o tumulto que o Gênesis diz

ter precedido a criação não terá vindo depois de semelhante silêncio?

Quem ocupava lugar demais o perde; quem não tinha nenhum o

ocupa por inteiro; o nada pode tornar-se tudo, que, por sua vez, pode

55

desmoronar no nada. Lei de transformação com bifurcações impre­

visíveis.

O parasita a segue, pequeno animal que, 'multiplicando-se para

mudar de escala, produz epidemias, levando à morte conjuntos gi­

gantescos de animais enormes, mas que, desta forma, se expõe a de­

saparecer; o próprio Hermes* a reproduz, em sua conduta habitual

de intermediário, através da qual se espera que transmita mensagens

como um vidro transparente, portanto nulo, mas que transforma

toda a paisagem cultural a cada informação, meio-lugar se fazendo

meio: animal e deus odiosos e indispensáveis, anjos bons e maus

juntos, mediadores, operadores da mudança.

Assim enunciada, a dita lei, lição de antigos livros, governa as

transformações reais e os engendramentos. Poderá também produzir

o tempo, não aquele dos relógios, mas o nosso, o das nossas almas, de

nossos conhecimentos, o tempo das coisas e da história?

Da história, será? Aqueles que não pertenciam nem à nobreza

nem ao clero, eram agrupados pelo Antigo Regime numa terceira

classe: o terceiro estado. ** Ele não era nada, não concernido, fre­

qüentemente excluído, e quis tornar-se alguma coisa, com o sucesso

que conhecemos. Hoje, da mesma forma, levado por seu crescimento

demográfico gigante e sob o risco econômico de morrer, o Terceiro

Mundo*** pede para se desenvolver. Que acontecerá?

Ora, no saber e na instrução existe também um terceiro lugar,

posição que hoje é nula entre duas outras, a ciência exata, formal,

objetiva, poderosa, e do outro lado o que chamamos de cultura, mo­

ribunda. Donde a criação de um terceiro homem, o mestiço instruí-

,. Na Grécia antiga, Hermes era padroeiro dos viajantes, mensageiros e merca­

dores ambulantes, além de mediador entre deuses e homens. (N. da T.)

,.,. O tiers état. Aqui, em vez de "mestiço", usamos "terceiro" por força da ex­

pressão consagrada pela história. Preserva-se, no entanto, a idéia de mistura

e mestiçagem. No Antigo Regime francês, o terceiro estado designava todos

aqueles que não pertenciam nem à nobreza, nem ao clero. (N. da T.)

**" Tiers Monde.

56 l'

do, que não era nada; aparece hoje, torna-se alguma coisa e cresce.

Ele nasce dentro deste livro, no qual lhe desejo, como pai, longa vida.

Eis um apólogo que distingue os dois lugares: será que você so­

nha em conquistar, algum dia, o Prêmio Nobel em medicina, econo­

mia ou ciências físicas? Trabalhe então em uma rica universidade de

língua inglesa. Mas, para a literatura, tendo em vista a mesma recom­

pensa, vale mais escrever e viver no Terceiro Mundo. Essa tripla dis­

tância - geográfica, de fortuna e de especialidade - mostra a di­

mensão do desprezo no qual incorre hoje a estima outrora conferida

às letras: culturas da miséria e miséria da cultura.

Será possível retardar o inevitável confronto entre o Norte, feliz,

sábio, afortunado, e o Sul miserável, com a invenção dessa cultura

mestiça? Há nisso, ao mesmo tempo, sabedoria, na esfera intelectual,

justiça, em matéria econômica, a Terra a proteger, assim como a paz, nosso bem supremo.

A epistemologia e a pedagogia encontram, como vimos há pouco

com o centro, a exclusão, a dor, a violência e a pobreza; o problema

do mal se cruza com o saber. Eis a sombra.

Como Kepler nos ensinou, acreditamos que no centro comum

do mundo brilha o sol universal do saber e da razão, mas que a

sombra se dispersa nos segundos focos dos diferentes planetas; acon­

tece-me hoje pensar, ao contrário, que o problema do mal passa por

uma involução no centro comum de todas as culturas e que mil sóis

de saberes diversos cintilam no meio comum dessa dolorosa sombra universal.

Sofro: isto se diz em toda parte desde sempre; nós pensamos: este

cogito, especialista, só concerne às comunidades raras.

Temos que nos instruir sobre o lugar mestiço, situado entre esses dois focos.

o terceiro homem

A terceira pessoa povoa nOSsas palavras e nossas línguas. Dialogue­

mos, falemos, que o deus Hermes de novo circule entre nós; confie-

57

mo-nos, portanto: eu converso contigo, vocês se dirigem a nós, o do­

micílio lingüístico de nosso domínio abriga a primeira e a segunda

pessoas, entendidas no singular ou no plural. Tão bem-definida e

fechada que permanecemos surdos a tudo, salvo ao que se passa den­

tro dela; essa esfera inclui o mesmo e o outro, enquanto exclui os

terceiros, ausentes, nulos ou ridículos.

No decorrer do diálogo, ele ou ela, aquilo, elas ou eles designam,

justamente como terceiros, a exclusão ou o exterior do conjunto fe­

chado de nossa conversa, a não-pertinência à nossa comunicação,

lugar mestiço portanto, mais precisamente aquele, aquela, aquilo,

aquelas e aqueles sem os quais, sem o que, ou de quem e de que nós

falamos, mestiço excluso e incluso.

Essas terceiras pessoas gramaticais, geralmente derivadas de pro­

nomes ou adjetivos demonstrativos, são então, exatamente, demons­

trativamente, esses mestiços dos quais já conhecemos os avatares ló­

gicos, geométricos e sociais precedentes. Passamos os braços pelas

janelas do domínio, para mostrá-los ou designá-los com o dedo, lá

fora. Ora, para esses terceiros, novamente, a mesma lei implacável

descreve uma mesma transformação: o nada pode tornar-se tudo,

que pode desmoronar no nada. A terceira pessoa, excluída, mal situa­

da sobre o fio do meio-lugar, raramente leva o nome de uma pessoa,

já que empresta o seu a um demonstrativo. Mas pode tornar-se o

meio de tudo e, em particular, de nós, que nos debruçamos sobre a

linguagem, meio objetivo e intersubjetivo no qual mergulham, desde

sempre, nossas línguas. Além disso, e ainda, essa relação do nada com

o tudo revela o segredo do engendramento, do devenir e do tempo.

A partir do mestiço excluso ou da terceira pessoa, as figuras não

mais percorrem o espaço lacunar dos exemplos precedentes, cuja

origem poder-se-ia atribuir ao acaso de rubricas diversas. Mas, ao

contrário, elas preenchem, saturam o universo ontológico. Da mes­

ma forma, neste livro, o retrato do mestiço instruído, eu na primeira

pessoa, tu, qualquer outro, na segunda, de repente é abundante e

engendra um, dois, dez modelos, tantos mestiços quantos se desejar.

58 i-c

O ensino é esta semeadura.

Eis, portanto, a terceira pessoa tornada totalidade do coletivo social que cerca aqueles que falam dela; neste caso, ela se nomeia: a

gente ou cada um ou todos ou os outros. Ou cheia ou expulsa. Em se­

gundo lugar, ela se torna o conjunto dos objetos ou da objetividade

em geral; em torno de nós, sem nós, o este, isto, aquilo que indicamos

com o dedo. Em terceiro, o mundo como tal, ou físico, o impessoal,

exatamente denominado na terceira pessoa: chove, troveja, neva; as

intempéries designam de novo, e em profundidade, o operador tem­

poral. Em quarto, o próprio Ser: a expressão francesa do ser-aí, il y a,

traduz, palavra por palavra, usando justamente a terceira pessoa e seu

locativo, o dasein alemão. Finalmente, a moral: é preciso, imperativo tão impessoal quanto o objetivo chove.

A terceira pessoa acompanha, portanto, o contorno ou a síntese

do saber e de seus objetos. Quem até hoje teria sonhado com uma tal

soma? Em segurar com uma só mão os fios de uma tal totalidade?

O Mestiço e sua lei vibrante de exclusão e de inclusão fundamen­

tam assim as ciências, exatas e humanas, as primeiras regulando-se

apenas pela demonstração rigorosa, baseada no princípio do mestiço

excluso (vemos, comprovadamente e, sem dúvida, pela primeira vez,

quão fácil é passar do demonstrativo lingüístico, pronome e adjetivo,

simples gesto do índice estendido que mostra o lado de fora, o amea­

ça ou admira - o iste latino de desprezo torna-se ille de glória _, à

demonstração que conclui decididamente a favor do funcionamento

sob controle cerrado da exclusão), e as segundas baseadas no devenir

global da exclusão local, que define ou designa, antes de tudo, um

determinado,.indivíduo, e depois, subitamente, a totalidade da inclu­

são social; t;ata-se, nos dois casos, do mesmo fundamento e, mais

ainda, eles se fundam um ao outro. Da exclusão social e humana,

passa-se ao mestiço excluso que, por sua vez, torna rigoro,sa _ belo

duplo sentido - a conduta coletiva e o conjunto de suas conseqüên­

cias. Eis finalmente descoberta uma passagem do Norte-Oeste, onde

se nasce com Os dois sentidos, onde os começos se substituem um pelo outro e portanto se engendram um ao outro.

59

Eles fundamentam metafisicamente a física, ao mesmo tempo

ligando-a à demonstração, dando à natureza sua objetividade geral

e fazendo funcionar os fenômenos naturais independentemente da

intenção das pessoas envolvidas no discurso e em seu domínio.

Fundamentam a ontologia do próprio ser e, além disso, o tempo e

a história, fornecendo o operador das transformações. Finalmente,

fundamentam a moral, descobrindo uma lei de conduta não re­

ferenciada a nenhuma vontade particular, exterior à esfera da comu­

nicação. A terceira pessoa - única e universal, fora de todo sujeito na

primeira e na segunda pessoas - funda então todo o real exterior,

confere objetividade ao seu conjunto. Eis, fora de qualquer logos, a

razão do realismo, filosofia indemonstrável sem essa terceira pessoa,

e agora, graças a ela, mais do que demonstrável, pois está presente na

raiz de todas as demonstrações. Eis o objetivo e o fim da filosofia da comunicação que leva a

mensagem de Hermes, mestiço entre a primeira e a segunda pessoas,

circulando entre suas relações: nem ela nem seu d~us podem dispen­

sar o que não é ela nem ele.

Instruir ou engendrar

Donde o conhecimento, a experiência e a instrução. Antigamente

chamava-se pedagogo ao escravo que conduzia à escola o filho da

nobreza. Hermes os acompanhava também, às vezes, como guia. O

pequeno deixa a casa da família; saída, segundo nascimento. Todo

aprendizado exige eSsa viagem com o outrO em direção à alteridade.

Durante essa passagem, muitas coisas mudam. Amai a língua que faz do escravo o senhor, e, portanto, da via­

gem uma escola em si mesma, e dessa emigração uma instrução. O

escravo conhece o estar fora, o exterior, a exclusão, o que significa

emigrar; mais forte e adulto, ele chega a se equiparar ao infante mais

sortudo, em uma igualdade temporária que torna possível a comuni­

cação. Vagueando na floresta, Branca de Neve também encontrou

60

,

velhos anões; ancestrais porque velhos, mas crianças pelo tamanho,

quase-igualdade que lhe permitiu ficar protegida e tornar-se proteto­

ra; sempre criança e já madura; mãe, logo, e filha, ainda; ela vai,

portanto. renascer de si, deles, da floresta, em si mesma e de outra

forma, filha e mãe de si mesma. Não há ensino sem este auto-engen­

dramento. Assim, do alto, a criança rica fala ao pobre escravo adulto

que lhe responde, do alto de sua estatura; talvez eles enlacem as mãos

de repente, no vento e na chuva, forçados a buscar abrigo sob a

fronde de um carvalho sobre o qual troveja a terceira pessoa: neva,

faz frio. Diferente e vivendo dolorosamente a alteridade, o escravo

conhece o exterior, viveu fora.

Então, o mundo entra no corpo e na alma do pequeno sabichão:

o tempo impessoal e também a singularidade do excluído, iste,

escravo desprezado, e logo o do professor, ille, longe ainda, ao fi­

nal da viagem. Antes de chegar, ele não é mais o mesmo, re-nascido.

A primeira pessoa torna-se terceira antes de ultrapassar a porta da

escola.

O apren~izado consiste numa mestiçagem assim. Estranha e ori­

ginal, já misturando os genes de pai e mãe, a criança só evolui por

novos cruzamentos; toda pedagogia recomeça o engendramento e o

nascimento de uma criança: canhoto nato, aprende a se servir da mão

direita, permanece canhoto, renasce destro, na confluência dos dois

sentidos; nascido gascão, ele assim permanece e se torna francês, de

fato, mestiço; francês, viaja e se faz espanhol, italiano, inglês ou ale­

mão; esposa e aprende a cultura deles, sua língua, ei-Io mestiço de

quarta ou oitava geração, alma e corpo mesclados. Seu espírito se

assemelha.ao casaco furta-cor de Arlequim.

Isto vale tanto para adestrar o corpo como para instruí-lo. Neste

caso, o que foi misturado chama-se mestiço instruído. Cientista por

natureza, atraído pelo foco solar, ele entra na cultura. A razão co­

mum remete os focos negros, diferentes, para seus particularismos

culturais. Ora, por uma estranha simetria, o problema do mal -

injustiças, sofrimentos, violência e morte -, culturalmente univer­

sal, ocupa toda a zona do foco de sombra, de onde ele aprende a ver

61

as razões claras, assim como as soluções racionais, variáveis e separa­

das. Então O espírito muda seu leque de cores. Isto vale finalmente para a conduta e a sabedoria, para a educa­

ção. Já outro, o acompanhante conduz ao encontro de uma segunda pessoa _ experiência dura e exigente, sob o vento e os relâmpagos

_, onde o mesmo engendra em si, sem abandonar sua própria pes­

soa nem sua unidade, uma terceira pessoa.

Ama o outro que engendra em ti o espírito.

A terceira pessoa: procedência

Presente em toda parte do universo, mas ausente a ponto de ninguém

poder encontrá-lo, tanto ele se esconde, tudo e portanto nada, nada

mas tudo, Deus compreende, além do mais, a lei da encarnação que

faz com que o tudo, no mundo e no tempo da história; se torne nada,

humilde filho de carpinteiro nascido no interior de um estábulo mi­

serável, condenado à morte e crucificado como um escravo, encon­

trando, desposando, assumindo o problema do mal, finalmente tor­

nando-se tudo de novo, sentado, ressuscitado, à direita de seu Pai, ou

seja, a segunda pessoa; a terceira pessoa, o Espírito, procede das duas

primeiras. Representa-se o Pai, onisciente, sentado no trono do poder e da

glória, estável. No total, ele teria trabalhado oito dias. Desde então,

descansa em paz. O Filho desce à Terra e, mais baixo ainda, aoS In­

fernos, para afinal ressuscitar e depois, na Ascensão, voltar aos céus,

onde irá julgar, nO dia derradeiro, os vivos e os mortos. Os dois mo­

vimentos do Deus que se encarna resultam, ao todo, num equilíbrio:

não apenas estático, mas compensado pela redenção ou a reparação.

Segunda estabilidade: invariância por variações, compreendendo de

passagem uma solução trágica para o problema do mal. Eis a sombra

e a luz, o sofrimento e a onisciência. Terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo toma a forma

de um pássaro, de uma pomba, e às vezes a aparência de uma língua

de fogo ou de um sopro impetuoso: ele venta, ele troveja, ele produz

62 '1-·

relâmpagos. Brisa, ruído ou chama, o Espírito se propaga onde e

quando e se assim o quer; cai sobre nós, aqui, ontem ou amanhã, de

repente, como as intempéries, o raio que bifurca no céu ou a chuva ...

e os voláteis só se sustentam graças às turbulências que se formam

sob as suas asas. Nem no vôo nem nos ventos turbilhonantes se en­

contram traços de equilíbrio, de estabilidade, de compensação. A

semeadura do espírito depende do calor e do ar, portanto do tempo

que faz, bastante aleatório, e não do tempo contado, regular; ele pe­

netra no mundo em turbilhões. Nada, tudo; tudo, nada. Um minús­

culo pedaço de língua no interior de uma sala fechada, todas as lin­

guagens do mundo conhecido em praça pública, eis, novamente, a lei

vibrante, neste caso a do Pentecostes.

Nem o vento, nem o fogo, nem os pássaros em vôo conhecem

repouso. A terceira pessoa procede das duas outras e se torna uma na

procissão. Esta última palavra descreve um passo à frente, com um pé

erguido, que se expõe. O Espírito se expõe fora do Pai e do Filho sem

quebrar sua unidade. Nenhum texto diz que essa procissão pára, que

esse passo lançado encontra seu lugar: donde as figuras da asa e do

vôo, que nunca encontram apoios definitivos nos fluidos voláteis.

Como, em definitivo, a escora sempre cede, deve-se sempre recome­

çar a buscar apoio naquilo que sempre cederá. O Espírito procede de modo absoluto: deixa em definitivo as estabilidades, inclusive aque­

las do movimento equilibrado da história circular, para se aventurar

nas instabilidades movediças dos desvios de equilíbrio. Isso quer di­

zer que ele não pára de se expor. Evolui e viaja. Donde sua excen­

tração, independente das estabilidades das duas primeiras pessoas;

donde o sal).er, donde o tempo. Donde a aprendizagem.

Esse tempo real do vento e do fogo, dos elementos e do clima, o

tempo do espírito, equivale àquele da criação, da instrução, da inte­

ligência inesperada e do conselho constante, das transformações sem

retorno, das línguas e da ciência, das viagens, das invenções e desco­

bertas, da paz improvável além das vinganças, da prescrição, das mis­

turas inesperadas, das ligas ... Entre as duas pessoas estáveis em sua

conversação infinita, entre a onisciência e a exposição ao mal -

63

uma, fogo brilhante, a outra, ardente - estende-se o tempo caótico

do espírito, terceira pessoa. Inversamente, o terceiro homem que nasce em mim, no decorrer

da aprendizagem, é espírito. Numa soluçãO de proporção ou razão irregulares, o tempo da

história mistura um tempo circular, físico e legal, aquele dos dias do

calendário, que se encarna nos trabalhos, e o tempo errático e impre­

visível do espírito. A história procede, ela também, do espírito.

O mundo procede de fato das duas pessoas. Eis a criação objetiva

e a redenção, ou recriação pela redenção. Mas como o espírito proce­

de também delas, o resultado é que o mundo real é a terceira pessoa,

como se viu, ou o próprio espírito, ou que o espírito é o próprio

mundo ou a soma do objetivo, aquilo através do qual este último

pode ser conhecido, de modo que juntos eles são o tempo, belas

coisas que eu queria não só demonstrar, mas que nascem junto com

a demonstração. Pessoa mestiça, o conhecido se constrói enquanto o cognoscente

se instrui.

A terceira mulher: concepção

Os sábios usaram a palavra "fenomenologia" primeiro em mecânica

celeste, para descrever o movimento dos planetas, suas aparências e

sua razão; depois em física geral, antes que a filosofia se servisse dela

para os avatares do espírito ou o reconhecimento de estabilidades

imersas em perfis volúveis. Traduzindo vernaculamente esse vocábu­

lo grego e erudito, pode-se dizer: "a aparição fala", frase às vezes

balbuciada, sem saber, pelos excentrados do conhecimento. A pri­

meira expressão é solar, a segunda é cega, para um mesmo sentido.

Eis um segundo foco. Numa gruta sombria em Lourdes, a uma pastora analfabeta,

apareceu a Santa Virgem para declarar sua concepção imaculada,

como se se tratasse da sua própria procissão. Toda a cena piedosa e

ingênua: Ana, a mãe, ausente, evocada, Maria, filha e mãe, que surge,

64 I

meio presente, e que fala, e Bernadete, filha, silenciosa, visível, carnal,

presente ali, camponesa ignorante, constituindo-se numa trindade

feminina nova, pelo menos inesperada numa cultura na qual os deu­

ses ou Deus, brilhantes como sóis, se engendravam ou procediam

ainda do masculino. As mulheres, afinal, procedem de si mesmas.

Buracos escuros da terra e simples de espírito que marcam uma

distância em relação ao saber, na matéria do mundo ou na alma dos homens. Sim, o mito - como dizer? - vive hoje em um desvio

constante em relação à ciência e até mesmo às instituições da teologia

maior; e os racionalistas riem. Os sofistas gregos teriam desprezado

tanto o texto da República pela página em que ele evoca o mito de

Giges, outro pastor em êxtase numa caverna semelhante? Platão se

dava o direito de falar do sol além da geometria e da dialética, mas

seu texto também fala do camponês em sua gruta escura. Sua peda­

gogia se produz em dois focos, ou consente com uma excentração

que nós recusamos, embora ele tenha pensado antes e nós escreva­

mos depois da revolução kepleriana.

Nós toleramos a antropologia, mas com a condição de que se

dirija aos outros, aos pobres do Terceiro e do Quarto Mundo, àqueles

que se mantêm como objetos de nossos saberes.

Sim, em Lourdes e na Iugoslávia hoje, a pastores ou a crianças

ignorantes, em cavernas, as aparições falam: fenomenologia da qual

nós próprios não ousamos falar. Ora, a palavra culta e a frase popular

dizem uma única e mesma coisa - que, recolhidas, as aparências

parecem falar -, tendo uma origem no foco solar ofuscante e a outra

no buraco ~egro.

Das dúas locuções, diga depressa qual a mais atraente e mais

clara.

A procedência masculina do Espírito imita o engendramento, da

mesma forma que a concepção feminina, virginal ou imaculada; eis

dois bons modelos antropológicos da instrução, da produção pelo

outro, em mim, de um mestiço, verbo ou espírito.

Em mim, o espírito procede ou se concebe virginalmente.

65

o mestiço instruído: ancestrais

Mestiça no espírito ou na língua, a semeadura do saber científico na

narrativa ou na meditação vem de uma alta tradição. De Rabelais a

Valéry, passando por Moliere, Voltaire ou Balzae, dez escritores mais

ou menos dominaram a ciência de seu tempo. Ela clareia, fortalece as

obras deles que, em troca, a iluminam e a reforçam. As sombras e as

forças vêm juntas de duas fontes que engendram a obra. A divisão

que distingue os ignorantes cultivados e os instruídos incultos, nos

quais a noite sucede ou se justapõe ao dia, aparece numa data bem

recente. O caso mais simples de uma distribuiçãO tão comparável ao céu

concerne a um corpo idêntico: mesmo autor, mesma invenção em

domínios que apenas nossa estreiteza separa. Pascal deixou somente

uma obra e, como ambidestro, ou melhor, corpo completo, a escre­

veu com as duas mãos: Triângulo aritmético e Memorial, Cônicas e

Provinciais, Roleta e Pensamentos procedem juntas de uma mesma

busca, justamente a do centro, inacessível neste mundo infinito, mas

que o espaço sobrenatural faz aparecer. Da mesma forma, Leibniz,

Diderot, Goethe ou Robert Musil, que apenas as nossas limitações

apresentam como exceções monstruosas, deixaram atrás de si mil

textos mestiços: mecanismo metafísico, escreve o primeiro, enquanto

o segundo conta o determinismo rigoroso; o seguinte fala do amor e

suas afinidades, tema igualmente em moda tanto na mecânica ou na

geometria das elipses quanto na química nascente, e o último prevê

as probabilidades de uma meteorologia da história. Obras de corpo

completo. Como se espantar com o fato de que a paixão da pedagogia tenha

de tal forma dominado corpos dotados de tanta completude? Amam

engendrar aqueles que amaram seu próprio engendramento. Mode­

los de modelos. Platão, Aristóteles, Montaigne ou Rabelais fecundam

sua cultura com todo o saber do tempo, para modelar, por meio

dessa mistura, o homem que viria. Talvez a dupla educativa, Ménon­

Sócrates, jovem Telêmaco, velho Nestor, ignorante e sábio, forme o

66

l

corpo duplo da instrução; será possível saber-se exatamente o que o segundo deve ao primeiro?

Exímio nos saberes tradicionais esmaecidos pelo tempo, o velho

sacerdote egípcio do Timeu trata os gregos como crianças, no que eu

leio a perpétua juventude das ciências, sua maneira metódica de im­

pedir Seu trigo de crescer. A pedagogia conhece o nó apertado desses

dois tempos. No sentido usual de sua circulação, dos velhos para os

jovens, transmitem-se as humanidades, arcaicas; deve-se avançar em

idade para compreender sua sabedoria. No sentido exatamente con­

trário, das crianças para as pessoas maduras, faz-se a passagem das

ciências exatas. Homero representava o avô desde a aurora de dedos

róseos do terceiro milênio, enquanto Teeteto, Pascal, Abel ou Evaris­

te Gallois, crianças inventoras de teoremas, morreram sempre na flor

da idade. Os avós de olhos vendados passam cegamente os conteúdos

da cultura, quase sempre obscuros, enquanto lhes chega o aval das

mensagens claras vindas dos jovens de olhar brilhante. Ensino inter­

rogativamente a minhas netas uma bonomia cuja elevação ainda me

domina, mas, em troca, elas me ensinam os recentes progressos e os

desempenhos das ciências e das técnicas. Um saber em amadureci­

mento se comporta como um bom vinho enquanto, primaveril, o

segundo se torna cada vez mais verde. Prêmio Nobel das ciências

juvenis ao lado dos patriarcas condecorados pela literatura.

Portanto, deve-se aprender, ao mesmo tempo, aquilo que se

compreende e aquilo que não se compreende: no primeiro caso, a

duração vivida desaparece, enquanto o último a produz. O obscuro

projeta um,.tempo que o claro encurta, o claro-escuro faz o próprio

tempo. Crianças, aprendei Homero e La Fontaine de cor - inabor­

dáveis nas vossas idades, eles amadurecerão lentamente no centro de

vossos corpos - e a matemática com discernimento.

Esses dois vetores inversos do tempo e da inteligência afastariam

para sempre de todo ensino os dois corpos da dupla, ignorantes um

do outro, senão para pensar Ou desenhar o turbilhão real do tempo

ou as turbulências do espírito. O que é da vida sobe, o que é da

entropia desce. No seio dessa turbulência, enfim na idade adulta,

67

onde o tempo se ata, sobe, cai e parece parar - dir-se-ia uma galáxia

_, o Mestiço Instruído projeta o tempo ingênuo da ciência adiante,

e atrás as experiências da cultura, mas anula incessantemente, atrás,

o tempo pelos curtos-circuitos da distinção científica e constitui,

adiante, o tempo longo da humanidade pela lenta digestão dos con­

teúdos tradicionais. Adulto: jovem-velho com a vantagem combina-

da das duas idades. Estaremos engendrando finalmente a idade da razão?

Em um outro casa mediano, sem dúvida mais freqüente, o autor

produz com uma só mão, enquanto apenas se informa com a outra:

Zola descreve a família Rougon-Macquart e, ao fazê-lo, discorre so­

bre a genética de sua época; mas, ao contrário da expectativa, ele

inventa autenticamente as condições físicas naS quais se colocam os

problemas da reproduçãO. A chama que anima o descobridor salta os

aceiros. Romancista, ele canta a gesta de uma tribo e as tribulações de seuS membros, mas, ao descrever minuciosamente os elementos do

genoma, adota o gesto preciso dos cientistas que os descreverão.

Se as especialidades se dividem, o inventiva continua uno. Na

fornalha da Souléiade, o doutor Pascal, geneticista, desvia-se para a

termodinâmica, sem que Zola abandone a narrativa por um só ins­

tante. A literatura diz a ciência, que se encontra com a narrativa que,

de repente, se antecipa à ciência. Eis, ao vivo, o processo de engen-

dramento. Este casa mediano se liga então de maneira fulgurante ao primei-

ro, de modo que os saberes não se delineiam como continentes cris­

talinos ou sólidos fortemente definidos, mas como oceanos, viscosos

e sempre batidos: dez correntes, quentes ou frias, os atravessam e

neles produzem gigantescos turbilhões. Nenhuma história das ciên­

cias nem história em geral, nenhuma instrução possível, nenhuma

transformaçãO sem esses turbilhões fluidos. A .pena no começo em sua melhor mão, Zola, pouco a pouco,

aprende a escrever com a outra. Ele atravessou o rio; sem o saber,

engendra em si um sábio desconhecido.

68

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o caso mais difícil, no fim desse caminho, mas mais interessante,

dificilmente distinguível, raro, fulminante, leva o escritor à antecipa­

ção. Não falo dos relatos recentes, catalogados sob essa denominação

e freqüentemente medíocres, mas das intuições súbitas, presentes e

ocultas, perdidas mesmo, em páginas cuja mensagem parece falar em

outro tom, de lagos de premonição, de bolsães de sabedoria infundi­

da nos momentos mais preciosos da literatura.

Às vezes, um desses relatos - um conto ou um poema - soma,

sem o saber, diversos conhecimentos. Gostaria de dar a cada um

desses textos o título autêntico de obra-prima desconhecida, mais

ainda, inconsciente, pois o conjunto das ciências para ela converge

com uma transparência através da qual o olho circula sem nada ver;

assim como as cores do arco-íris se mesclam na limpidez branca da

luz diurna, também os conhecimentos se fundem em uma palavra

que se pretende banal. Diderot parece ter compreendido que se devia

chamar de sonhos a tais empreendimentos, quando eles se constroem

intencionalmente, e que se deve acalmar um sábio filósofo, adulto,

sob os olhos e a atenção de um médico filósofo e sábio, igualmente

homem feito.

Mas o poeta não acalenta nenhum projeto desse tipo quando por

sua vez adormece, irritado ou embalado pelo zumbido de uma vespa

em torno de sua cabeça. Tanto O sonho de D'Alembert, sonho falso

sem dúvida, afetado, desenhado premeditadamente, projeta a extra­

polação a partir de curvas exatas e reconhecidas pela verdadeira ciên­

cia da época, e faz brilhar as diferentes cores que o prisma do texto

desdobra, quanto Verlaine, em seu soneto Sagesse, "A esperança

brilha como' um pedaço de palha no estábulo", ignora tudo de um

saber por vir, quase adormecido, o cotovelo sobre a mesa, o calor

escaldante da hora, durante a siesta meridiana, os pés dentro das po­

ças de água fresca que inundam o piso, mas assim mesmo vê um raio

de luz que sai de um buraco e se esfarinha. Quando soa o meio-dia e

a luz do sol platônico penetra só com parcimônia em seu quarto, ele

descreve, como se noite fosse, o ruído de fundo da cinestesia invadin­

do o ouvido enquanto adormece, e o ruído de fundo do mundo

69

paralelo ao do corpo, vôos de vespas, poeiras que dançam, hastes de

palha no estábulo. O que ainda não é sonho e se prepara para tornar­se um permite observar, em claro-escuro, um caoS indeterminado,

cuja presença constante nos acompanha, organismo quente e univer­

so ruidoso de multiplicidades de zumbidos, onde a ciência, assim como a vida, a língua, assim como a poesia, vão buscar seuS começos.

Intuição vaga mas rigorosa de um saber e de uma epistemologia fu-

turos. Aí estão os ancestrais ou os pedagogos, já desde muito tempo

reconhecidos, do mestiço instruído. Eis a descriçãO de um segundo engendramento, que parte de

uma segunda excentricidade, de outros conteúdos de saber, nãO mais

proveniente das ciências exatas, mas da história e das línguas.

o mestiço instruído. de novo: origem

"Se não me amas, eu te amo ... " Quem não saberá cantar o refrão de

Georges

Bizet? Todo mundo viu Carmen, a ópera mais representada

na história. Por outro lado, quem terá lido a novela de Prosper Me­

rimée? Além disso, sabe-se de fato como ela começa? Por um monumento de erudição. Nela, a lingüística se combina

com a geografia, a história e a arqueologia ... e questões precisas e

sutis são colocadas: quem escreveu, paralelamente à Guerra da Gália, a Guerra da Espanha? Mesmo tendo sido em ambas o principal ator,

Júlio César nãO foi, pelo que se diz, o autOr. Então? Algum romano, um espanholl E onde se travou, por exemplo, a batalha decisiva de

Monda, na qual o fim das guerras civis foi decidido entre os dois

filhos do grande pompeu? Em Munda ou Montilla? A filologia, pre­

tensiosa, luta com a toponímia da Andaluzia montanhosa, entre Cór­doba e Granada. É preciso, para compreendê-las, tê-las estudado,

saber ler os mapas antigoS e os Comentários latinos. Merimée chega a se referir na obra a um artigo erudito sobre" as

inscrições romanas de Baena", que de fato aparecerá na ediçãO de junho de 1844 da Revue Archéologique. Nada mais distante dos amo-

70

res ciganos e das saias rodadas. Sim, Carmen começa pela ciência. As

notas ao pé do texto, que tanto desfiguram os volumes, e os algaris­

mos ou asteriscos cujas linhas os críticos surrupiam, remetem, com

arrogância, às páginas finais, para onde às vezes eles as relegam, até o

incipitda novela. Tola movimentação, que mal consegue captar a boa

intenção.

Eis portanto o bravo Merimée trabalhando entre os livros, com­

parando os textos e os mapas, na biblioteca do duque de Osuna ou na

dos dominicanos de Córdoba. Vai ficar ali? Vai sair? Talvez encontre

mulheres fatais dançando em meio às estantes ou entre os incuná­

bulos?

Uma moral para a história, tão cedo? Que é preciso freqüentar as

bibliotecas, é certo; convém, com certeza, tornar-se erudito. Estude,

trabalhe, sempre ficará alguma coisa. E depois? Para que exista um

depois, quero dizer, algum futuro que ultrapasse a cópia, saia das

bibliotecas e corra para o ar puro; se continuar lá dentro, nunca

escreverá nada além de livros feitos de livros. Tal saber, excelente,

contribui para a instrução, mas o objetivo desta é alguma coisa que

não está nela mesma. Do lado de fora você tem outra chance. Qual?

Volte ao início de Carmen.

Eis Merimée por dentro: arqueólogo, cartógrafo, lê, copia, toma

notas, publicará assim o artigo erudito. Agora o vemos do lado de

fora: fiz uma excursão - diz - para esclarecer minhas dúvidas sobre

a localização do combate travado por Júlio César, tendo como única

bagagem algumas camisas e os Comentários; seguem-se ainda assim

alguns restos de biblioteca.

Parece.:percorrer o país andaluz contornando as margens do

Guadajoz. Mas, quanto a mim, duvido muito que essa excursão não

se tenha limitado a um excursus, mais erudito ainda que as anotações;

tanto as descrições do planalto de Crachera e as dos pântanos próxi­

mos repetem com seus erros e defeitos de impressão, dicionários,

catálogos, elzevires. Eu o pego com a mão na botija: mentiroso! Tam­

bém conheço geografia, e por isso vejo que carregas o fora para o

dentro do dentro, num pedantismo disfarçado: finges contar um pas-

71

seio, mas posso mostrar que transcreves um manuscrito! Quando

chegaremos às ciganas e às danças? Quando passaremos do artigo à

novela que impede de dormir as jovens e os belos oficiais?

Dia. Entretanto, tudo começa de fato. Dir-se-ia mesmo que o

erudito caminha e sofre. Não, ele não copia mais. Queimado pelo sol,

extenuado de cansaço, morre de sede - isso não acontece quando

está com o nariz nos livros -, e logo irá beber, deitado sobre o

ventre, como os maus soldados de Gedeão. Para ter o mérito de es­

crever um verdadeiro livro - neste caso, a Bíblia - é preciso deixar

o Egito e enfrentar a dureza do deserto. sem outra proteção fora o céu

e outra parede fora o horizonte. Mas antes de conseguir matar a sede, Merimée busca ... e enCon­

tra um pequeno charco, cheio de sanguessugas e rãs. Esta anotação

não pode noS enganar. Sim, tudo está dito aí. Diante de um pântano

onde sanguessugas-vampiras se alimentam com os livros de outrem,

poder-se-ia deduzir que, dirigindo-se a montante, algum riacho que

alimente o pântano, em troca, conduzirá à nascente, mais pura e sem

parasitas. Em outras palavras, o arqueólogo, o historiador, o latinista eru-

dito, o cartógrado, o filólogo ... muito habitualmente procuram suas

fontes. A terrível massa de livros revela e oculta o riacho e suas

origens: gosto de dizer que as fontes atraem os sábios porque estão

livres de sábios! Se quisesse passar por douto, chamaria tudo isso de

Quellenforschung. * Eis então o viajante subindo corrente acima. Estupor maravilha-

do da descoberta: ao pé de uma escarpa, numa depressão tranqüila,

sombreada, de uma beleza soberba, está a fonte, que jorra borbu­

lhante em uma bacia de areia branca. Perto dela, sobre a relva fina e

lustrosa, um homem dorme.

:;. Em alemão no original. Quellenforschung quer dizer "o princípio da nascente".

(N. da T.)

72

I \ J.

Merimée não nos estará pregando a mesma peça de Tito Lívio

que, subindo em direção às fundações de Roma, descobre de repente,

sobre igual relvado macio, o próprio Hércules adormecido, enquanto

pastam as ovelhas que roubou de Gerião, depois de ter-lhes matado

o dono? Ladrão, assassino como ele, e como ele adormecido perto da

fonte descoberta por Merimée, no papel de historiador ou por estar

sedento, neste lugar paradisíaco no qual se abre a estreita garganta

por onde corre esse riacho, don José mantém uma espingarda ao

alcance da mão, como o outro conservava a sua maça, enquanto os

cavalos ao longo do desfiladeiro a jusante se respondem relinchando,

chamados sem sentido que retomam como eco os mugidos surdos

dos bois de Tito Lívio. Fato curioso, um quadro semelhante se ofere­

ce a montante, no início das duas histórias, similarmente romanas.

Trata-se de uma cena originária na vizinhança mais próxima das

origens?

Merimée se exporá, daí em diante, ao sol, à sede, ao deserto, à

violência, à privação, aos percevejos dos albergues mal-afamados, às

traições e à morte - em suma, ao mal e à realidade - ou, ao contrá­

rio, ainda mentiroso, continuará copiando, mas agora sem nos dizer,

o próprio pai da história romana? Deve-se ainda hesitar? Por que

desenhar no começo uma paisagem análoga, riacho e fonte, povoada

por análogos atores, deus ou bandido, assass~nato e roubo, sono pro­

fundo e animais irracionais, vozes animais privadas de sentido? Tra­

ta-se de história, de um mito, de uma narrativa?

Onde buscar as fontes desta cena perto das nascentes? Nos limi­

tes da Quellenforschungparece que se deva pensar em algo como uma

auto-referência: a fonte primeira devia brotar naturalmente; diz-se

mesmo que ela corre da nascente, que ela é evidente. Entretanto,

inúmeras visitas às nascentes do Garonne, do Vienne e de outros rios

e riachos comprovam bem depressa que o ponto de origem se reduz

a uma coletânea, na qual a bacia reúne ou coleta mil pequenas entra­

das d'água separadas, que vêm de montante, de montanhas geladas

ou prados úmidos, do gelo ou das chuvas. Sempre e em toda parte, a

origem se reporta portanto a um ponto que corre de um fluxo qual-

73

quer, como na reta orientada em geometria; entre esses lugares co­

muns, alguns simplesmente formam uma barragem.

Comparemos as duas histórias. Ladrão e assassino, perseguido

pela justiça, o bandido basco tomou o lugar de um assassino ladrão, substituição sem muita diferença. Hércules desperta e mata Cacus;

don José não mata ninguém ao acordar.

Embora seja apanhado, ou quase, em flagrante delito de assas­sinato, alguém desculpa Hércules: um certo Evandro, que naquele

tempo desempenhava o papel de governador; encarregado do pro­cesso judiciário, ele faz crer que julga o herói, mas logo o poupa,

reconhecendo-o como divino; Hércules matou à nossa vista e à nossa

vista beneficia-se da impunidade. O assassinado, Cacus, tinha má

reputação ... De repente, Evandro faz a história se bifurcar para o

mito, e o judiciário para o religioso. Em lugar de enforcar o assassino,

este será honrado nos altares. Deus em lugar de condenado, outra

substituição quase sem diferença. Merimée trata da mesma forma o

banido, com humanidade, enquanto o seu guia se apressará a entre­

gá-lo à justiça; eles constituem, ambos, o personagem de Evandro, de

modo que as duas cenas tratam os homens de maneira equivalente.

Também o narrador, aqui, faz a história então se bifurcar, libe­

rando-a do judiciário: don José continuará a viver livre por um tem­

po, pois os carabineiros, alertados pelo guia, chegarão tarde demais

para prendê-lo. Toda a narrativa se faz enquanto ele está livre: entre

sua evasão, não longe das nascentes, e sua captura, seguida de sua

execução em Córdoba.

Eis Hércules e don José libertados - filhos da boemia, terão jamais reconhecido a lei? -: mas livres de quem ou de quê? Nos dois

casos, dos juízes, da justiça, da sentença. Deixemos o latim e a língua

espanhola e falemos grego por um momento: os dois homens se li­

bertam do julgamento, quer dizer, da crítica. Em direção às fontes, a

crítica depõe as armas.

Em Tito Lívio, o religioso e o mítico se bifurcam do judiciário;

partindo da ciência crítica, a narrativa literária se bifurca, em Meri­

mée: nas duas ocasiões, no mesmo instante, nas mesmas circunstân-

74

I

r

cias e na mesma proximidade da origem. Em outras palavras, o mito

é para o judiciário o que a narrativa é para a crítica; e a crítica é para o judiciário o que o mito é para a narrativa.

Don José fala antes que o carrasco o enforque, Merimée adota,

para começar, o traje e o gesto do crítico, o conduz, depois o perde,

no caminho da erudição; poder-se-ia quase dizer que o semeia. Ele o deixa perto das fontes e bifurca bruscamente.

As duas histórias - mítica, literária - têm em Comum essa libertação do judiciário. Mas como?

No lugar do acusado, do assassino, Evandro coloca um deus; e

Merimée substitui o bandido por um herói. No lugar preciso da bi­

furcação, na ocasião do julgamento, sobre uma balança em equilí­

brio, no instante em que se deve cortar o nó decisivo, a substituição

ocorre. Hércules e don José saem do tribunal para subir aos altares ou ao palco. No começo está a substituição.

Um deus e um herói se mostram assim no lugar de dois cele­

rados, no alto das arquibancadas e dos degraus, entre os véus do

tabernáculo ou as cortinas do palco. No começo está a representação.

Em toda representação, alguém substitui um outro: um carneiro

substitui Isaac, um ator o papel-título, um texto uma ação. Aí es­tamos.

Quem opera a substituição? Evandro no primeiro caso, Merimée no segundo: o escritor ou o erudito.

Na verdade, não conhecemos ainda a vítima de don JOSé: Car­

mencita, que ele amava, que o amava ... se não me amas, eu te amo, e

se eu te amo, cuidado contigo ... Carmencita, eis aquela a quem don

José matoti. Ora, no mito sem amor, Evandro, o do bom nome, que

diviniza o mais forte e prejulga mau o mais fraco, tem por mãe _ ou mulher - Carmen ta.

Carmen: Carmencita, Carmenta ... as duas histórias, no montan­

te de sua origem, indo além da própria nascente _ mãe ou amante

do juiz, causa de exílio -, se atam no mesmo nome, no mesmo

corpo, na mesma pessoa. Teremos chegado a uma nascente comum? Sim, cherchez la femme.

75

Evandro, filho de Hermes, inventara a escrita, diz-se, ou pelo

menos a trouxera de Arcádia, às margens do Tibre. Quanto a Car­

menta, sua mulher ou mãe, ancestral das Sibilas, ela canta magi­

camente. Escrever, falar, cantar, representar, operações de invocação ou

de encantamento que substituem pelo software, suave, o hardware,

duro. Ou pelo deserto árido uma biblioteca climatizada ... a guarda

que chega pela guarda que sai. Merimée, erudito, sobe em direção à nascente; enfeitiçado, des­

ce, recitando. Ele teve que passar por um ponto de intercessão. >I-

Noite. Da nascente brota o Guadajoz, sem dúvida, ou um peque­

no tributário desse afluente do Guadalquivir. Desçamos agora o rio

principal, deixando-nos ir de montante a jusante, seguindo a corren­

te, como dizem os marinheiros, das origens pelo fio do tempo e da

história, intervalo que mede a duração da liberdade de don José ...

então, no cais da margem direita, em Córdoba, ao crepúsculo, depois

de soar o ângelus, as mulheres se banham, nuas, e do alto da margem,

nesta hora em que todos os gatos são pardos, ninguém consegue

distinguir entre uma velha vendedora de laranjas e uma jovem e bela

rapariga. Você tomaria uma pela outra. Saída desta cena obscura e da

beira do rio - será que ela o atravessou a nado? -, pela escada que

serve o cais, perto do autor, de súbito, chega a jovem cigana de saia

negra. Como Afrodite, ela nasce das ondas. A quem substituía essa

Vênus anadiomena? Carmen, morta e invisível sob o sol ardente das nascentes, Car­

men em pleno meio do riacho, num momento engendrada, ali senta­

da, visível em plena noite, bem ao lado do autor, presente, viva, fatal,

bela, poderosa, embriagadora, atraente, malvada, feiticeira, terrível

Carmen. Fonte de vida e causa de morte. Eis-nos na origem enfeitiçada da história, romana, espanhola,

pouco importa ... de qualquer história - assinalemos que esta pala-

* Tiers-point. Ver N. da T. à página 16.

76

~.

• _.

vra evoca a um só tempo uma ciência humana e uma bisbilhotice sem

importância -, da palavra, do canto, da ópera, da escrita, da ciência

e da narrativa em geral. Carmen diz tudo ao mesmo tempó', como um

curinga.

Relinchos, mugidos desprovidos de sentido, cavalos e bois ... can­

tos mágicos, feitiçarias, bom e mau olhado, voz com dois sentidos

opostos ... julgamentos iníquos ou justos, amores deliciosos e fatais,

duplo sentido sucedendo ao barulho insensato dos animais ... um

único sentido enfim para a narrativa que começa e para o riacho que

corre ... Eis que nasce um corpo, nu, nadando, inacessível e contudo

ali, das nascentes até Córdoba, nas águas do Guadalquivir. Anterior

e fora de qualquer lei, maga, quimera, tirando as cartas vermelhas e

negras, lendo as linhas bifurcadas na escrita natural da mão, anterior

à língua, cantora e dançarina, Carmen conserva só para si esta ge­

nealogia.

Toda obra-mestra conta o engendramento de sua própria arte. É

por isso que desfruta desse título: mestra.

A erudição e a arqueologia, a história e a filologia levam, perto de

uma nascente, a uma substituição cuja causa, a montante ainda, se

chama Carmen; deixando-se descer agora para jusante, ei-Ia nua,

banhando-se nas águas saídas desta nascente, como se o rio a tivesse

engendrado. Para os livros sobre as origens daquelas ciências, um

curso d'água serve de condutor, e seu movimento, acompanhado no

sentido inverso, não conduz nem à biblioteca, nem ao artigo erudito!

Dir-se-ia que um fluxo se bifurcou. Morto, o artigo erudito engendra

a novela viva.

O engendramento concerne também ao escritor. Ele renasce du­

plo, erudito e narrador, mestiço, como esta mulher atraente e fatal,

como o herói, homicida mas divinizado, como o rio cujos galhos se

desenham sobre a terra.

N eja o duplo foco. A ciência deixa sua clarividência e a narrativa,

cega, se inicia, ao cair da noite. Tateante, a ciência leva a uma hiper­

vidência, e a literatura brilhante começa. Quem prevalecerá? Existirá

uma claridade suplementar na ciência crítica e uma obscuridade no

77

relato, uma vez que ela discorre sobre ele e não ele sobre ela; ora, aqui

o relato fala e parte da crítica e a abandona, como se existisse nele

uma claridade capaz de relegar a ciência à sua cegueira: extralúcida

Carmen. O que aconteceu com aquele claro-obscuro alternado?

Eruditos, não incluais notas ao pé das páginas de Carmen, pois o

início da novela extraiu delas a própria essência do que elas podem

dar; deixai a estória em paz, pois ela diz, melhor do que qualquer

ciência, exatamente o que a ciência jamais saberá dizer de si própria

nem dos textos nem dos homens nem do mundo. Desenhando redes de bifurcações, Carmen ensina de modo ex­

celente o mestiço instruído, ao mesmo tempo que uma filosofia da

criação. Subindo o curso de um rio ou do vale em direção à monta­

nha, encontram-se tantos confluentes quantos se queira. E, para des­

cer, deve-se escolher: ou se toma a direita, do lado das Inscrições e

das Belas Letras, ou a decisão é pela esquerda, em direção à estória

narrada. Mas em um momento, e mesmo a todo instante, pois as

bifurcações abundam, a aventura se torna mestiça, em equilíbrio,

numa origem corrente, entre os julgamentos, o amor e a morte, a

ciência e a literatura, a erudição e a bisbilhotice. A novela descreve a passagem de um patamar ou de um estreito:

aí a ciência sobe e a narrativa desce. Prova exata de que a nascente

brota exatamente na passagem do ponto de intercessão: na depressão

tranqüila, de relva macia e areia branca ... Nesse lugar, aonde remon­

tamos hoje, dorme o mestiço instruído. A lição de Merimée mudará nossa vida: erudito, ele sai e não sai

da biblioteca, e nessa hesitação copia seu artigo científico; mas, ao

anoitecer, cansado dos trabalhos especializados, desce ao cais do rio,

entre tanoeiros e operários, e ali encontra aquela que, remontando às

nascentes, inspira desde sempre o que sempre ultrapassa infinita­

mente o erudito: a narrativa fascinante. Como o curso d'água, o cor­

po do autor se bifurca: com a mão esquerda, Merimée se põe verda­

deiramente a escrever e esquece a ciência, recopiada com a direita.

Ele descobre sua origem corrente, enuncia o título e desenvolve

a realização.

78 -" ! •

Dir-se-ia que a literatura consegue passar por onde a perícia encontra um obstáculo. Como se, afogado na densidade do sentido, o não-saber soubesse aquilo que, transbordante de informações, o saber não saberá jamais. Da mesma forma, se a filosofia consistisse

em esclarecer proposições e transformá-las em objeto de debate, ela

seria uma réplica da ciência. A estória passa, cegamente compreendi­

da, enquanto a filosofia repete e não sai do lugar. Mas só ela pode ir fundo o bastante para demonstrar que a litera­

tura vai ainda mais fundo que ela.

Vejo que o saber claro contém uma cegueira pelo menos tão

grande quanto é profundo o saber obscuro contido na ignorância. Às

vezes só se compreende sob a condição de diluir sua ciência na nar­

rativa leal das circunstâncias. As soluções não estão sempre onde as

procuramos. Para ver melhor, é preciso sempre que se pague, portan­

to que se aceite saldar por qualquer cegueira essa mudança de lugar.

Engendramento na aurora

Empesteada pelo bodum dos ovinos machos, respingada de leite ta­lhado em volta dos queijos que escorrem nas peneiras, a obscura

caverna onde dorme o Cíclope se protege contra os olhares: mas ele,

o gigante hirsuto e selvagem, vê mais e melhor, porque só tem um

olho no meio, do qual sai um raio laser. Não adianta aos gajeiros de

Ulisses se esconder nos cantos. As patas peludas do monstro os de­

sencavam e os carregam, arfantes, para seu outro buraco, a boca san­

guinolenta.

Quem cauterizará esta luz implacável? Quem fechará este segun­

do poço saliente em sua cara? Um homem chamado Ninguém. Va­

gando desde muito tempo por mares e ilhas, ele perdeu tudo, e seus

navios, suas sandálias, sua túnica, seus projetos, até seu próprio no­

me o abandonam hoje também. Ele não é mais levado em conta.

o monstro caolho superlúcido, que consegue ver até mesmo

dentro daquele lugar negro, e forte como a montanha sob a qual

79

dorme, tem um nome que exprime vários ao mesmo tempo: Polife­

mo. Isso quer dizer: o que fala muito, de quem se fala em toda parte,

aedo, ilustre e fértil em argumentos. Ele é levado em conta por mui­

tos. Toda sua glória vem do olho. Mais ainda: seu nome comum de

Ciclope significa: circular, que ocupa todo o espaço, incontornável.

Distinguindo tudo sob a luz de seu olho circular e exercendo sua fala

através da boca devoradora, ele vive cercado por ovelhas e carneiros,

discípulos, admiradores, lugar-tenentes, súditos, escravos, mensagei­

ros fiéis, aos quais é vedada a inteligência.

A luminosidade exclusiva emanada de um buraco alimenta o

segundo, ávido.

Ninguém, o caminhante, não tem nome: o enciclopedista Palife­

mo dispõe de cem mil palavras explosivas ou rigorosas.

Mas quem fala sem parar, quem canta nos banquetes, negocia,

discute, maquina, ganha, perito incontestável nas línguas? Ulisses. E

de quem se fala desde a guerra de Tróia? Dele, cem vezes mais do que

dos vencidos e dos cíclopes. Quem circunavega, visita todos os mares

e terras conhecidos? O próprio. Quem não pode nunca dispensar os

companheiros, os rivais, a corte? Ulisses.

Quem, portanto, é senhor do nome do Ciclope Polifemo? O pró­

prio Ulisses.

Quando o navegador cauteriza o olho gigantesco, bem no meio,

com sua estaca pontuda, ele cega a si próprio. Fura seu olho verdadei­

ro, entre os dois olhos já extintos: a sombra sucede à luz no meio dos

dois focos. Ele apaga Polifemo, seu próprio nome literário, seu belo

nome de prestígio, não para adotar um outro apelido, mas para re­

nunciar a todos: ei-Io, invisível, Ninguém. Abandona a glória e o

poder, o fogo e a montanha, os cordeiros balindo, e foge do antro sob

o ventre de um carneiro lanudo, sem que o agarrem ou o vejam. Não

é visto quando renasce do buraco negro da caverna, de um parto

invisível e animal.

Ele abandona a lucidez integral, a ciência circular e total, o do­

mínio da linguagem, o império feroz sobre os homens, os títulos

80

I

\

I -" I •

pomposos, perde a força para ganhar a humildade: mais que bicho,

sob o bicho de quatro patas e com a cabeça baixa. Ninguém. Ei-Io

enfim escritor, criador, artista, pelo menos no caminho austero que conduz a esse ofício.

Hirsuto, insaciável, nutrido de carne ovina e humana, pérfido,

vaidoso, inextinguivelmente dominador, o primeiro duplo de Ulisses

arde sob a embriaguês da glória, semideus poderoso sustentando a

montanha, mais que olímpico. O novo depõe estes andrajos cegos

para renascer da caverna mortal sob um segundo nome apagado:

Polifemo tornado Ninguém, eis o autor autêntico, buraco ausente da

obra bela. Não é mais levado em conta.

Furou seu olho do meio.

Ulisses, então, acaba de assinar a Odisséia.

Diz-se que Homero não enxergava. Que espeto ardente, que pe­na afiada, furaram seus olhos?

Diga: quem pode reconhecer que a cor rósea da aurora acaricia

como dedos? Quem, a não ser um cego clarividente?

o problema do mal

Em direito universal, de um modo amplo, a ciência parece se opor a

tal cultura, abrangente e enraizada, de fato, num lugar. Um único

foco brilhante, vários escuros. Mas, de modo amplo, todo homem

sobre a Terra vive sua própria cultura, sem a qual não sobreviveria; aí

está ela, de direito, universal, oposta por um movimento inverso à

ciência, que, dividida em tais e tais especialidades, torna-se, de fato,

abrangente e local, algumas vezes incapaz de ter acesso a problemas

globais. Um único foco obscuro, vários claros. A Terra integra o

conjunto das localidades singulares; a ciência, o universo das regiões especializadas.

Universal, a ciência percorre o círculo do que se chamava de

enciclopédia. Por que desenhar este ciclo? Sem dúvida, em razão da

ordem e da homogeneidade que se atribuem à razão. Ora, em certos

momentos, uma espécie de engrenagem encurva a órbita perfeita na

81

qual aparece uma excentricidade, como se o ciclo perdesse sua super­

fície lisa ou sua pureza. Acidentes, o da física, no momento de Hiro­

shima, da biologia hoje, ou das ciências da Terra, interrompem o

otimismo. Trata-se de crises internas à ciência?

A razão cruza a violência, a guerra, as doenças, a morte, se depa­

ra com o problema do mal, tradicional em filosofia. Erudito, Meri­

mée, subindo em direção às origens, descobre, no lugar das nascen­

tes,.o matador de Carmen; o espeto ardente entra no olho do cíclope,

espinha do círculo; os buracos negros se disseminam de súbito no

céu estrelado; diante do sol de meio-dia surge o segundo foco negro;

nenhum dos textos mestiços acima evocados, dos romances de Zola

aos Pensamentos de Pascal, carece deste cruzamento, deste encontro

súbito da ciência com o mal, o sofrimento, a injustiça e a dor.

Que relações a razão, prejulgada simplesmente luminosa, man­

tém com esse problema engendrador das trevas? Uma ligação de origem. A razão ocidental não se depara com a

morte nem em Hiroshima nem por ocasião dos importantes riscos

técnicos dos nossos dias, mas a encontra desde o paraíso terrestre; a

árvore do conhecimento ou da ciência induziu nossos primeiros pais

a um pecado original tornado trans-histórico, desde o alvorecer se­

mítico de nossa história, que, sob céus conjuntos, nasce das pirâmi­

des do Egito, tumbas, da guerra de Tróia, carnificinas, ou das tragé­

dias gregas, violência e expulsãO. Ao contrário dos indianos e, depois,

dos árabes, de todos os nossos vizinhos próximos ou distantes, que

também colocam esse problema mas lhe dão uma solução totalmente

diferente, o Ocidente começa junto com o problema do mal e trava

contra ele um diálogo e um combate consubstanciais. O trágico é a

base de sua história, de sua razão e da história de sua razão.

Esta não permite a aclimatação do mal, mas o exclui. A ciência

ocidental nasce dessa exclusão. Ela emerge do trágico. Daí provêm as

suas categorias fundamentais: pureza, abstração, rigor, mestiço ex­

cluso ... Repetitiva, sua história conta os processos de exclusão e suas

polêmicas mal definidas com a religião e o direito, que se debatem,

ambos, com o problema do mal.

82 ~.

Ela se orienta por um sol claro que se purga de todas as sombras.

Mas, de súbito, se orienta também pelo segundo sol negro. Sim, a

razão ascende ao universal, mas, diante dela, existe um universo cul­

tural induzido pelo problema do mal. Nós somos mestiços instruídos

de base.

Bem ou mal, nessa questão a ciência depressa ocupa o lugar de

Deus ou o substitui. Outrora acusávamos a este último, todo-pode­

roso e onisciente, de produzir o sofrimento e a infelicidade. A Teo­

dicéia de Leibniz chega a fazê-lo comparecer ao processo fundamen­

tal do destino humano. Ora, só sabemos e somos eficientes graças à

nossa ciência, daqui para a frente. É então nela e por ela que o univer­

sal não circular da ação e do pensamento reencontra hoje, como na

origem, o escândalo do mal.

E ali descobre a cultura, antes de qualquer julgamento. Nada na

ciência ajuda, de fato, a suportar a finitude, nem a pensar a morte das

crianças, a injustiça que atinge os inocentes, o triunfo permanente

dos violentos, a felicidade fugidia do amor nem a estranheza do sofri­

mento ... enquanto para isso colaboravam culturas cujo enraizamento

local deixava, de maneira fácil ou incômoda, a sabedoria entrar na

carne singular.

Nem Leibniz nem seus sucessores assumiram esta revolução ke­

pleriana que consiste em colocar dois focos para regulamentar o co­

nhecimento, assim como o mundo, dois sóis universais, a razão e a

dor.

A ciência vagueia, a cultura se enraíza. A primeira não conhece

lugares singulares, e sim espaços inteligíveis; colhe, e por conseguin­

te, viaja. Réda. Prosper Merimée busca a verdade local das informa­

ções livrescas e as obras de arte abandonadas. A ciência universal vai

e vem em busca das fontes, das raízes, de sua fundação.

Oh maravilha, eis o lugar paradisíaco onde a relva verde atrai o

caminhante ao sono e o cavalo ao pasto, onde a fonte fresca extingui­

rá sua sede, cuja beleza favorece o repouso. Finalmente, uma pausa.

Não: o guia, inquieto, fareja o perigo, pois já um homem ocupa o

sítio. Todos os sítios estão sempre ocupados: não foi por essa razão

83

que a ciência iniciou sua errância, porque os homens, os cães ou os

exércitos em pé de guerra ocupavam desde sempre os paraísos possí­

veis? De fato, este homem, mesmo aqui, dorme não longe da sua

espingarda, velho e temível fuzil. No paraíso perdido das nascentes e

da relva verde, o saber universal descobre o mal singular, injustiça,

amores frustrados, violência, crime, fome.

Do lado da engrenagem, onde o singular toma o lugar do ciclo

universal e uniforme, a dor local grita sua estória. Desde que nasceu,

a literatura lamenta a miséria e o sofrimento. A ciência ainda não

aprendeu a linguagem desse soluço. Neste lugar trágico começa a

razão instruída com mestiçagem.

O sofrimento e a desgraça, a dor, a injustiça e a fome se encon­

tram no ponto onde o global toca o local, o universal o singular, a

ciência a cultura, a potência a fraqueza, o conhecimento a cegueira,

ou o próprio Deus a sua encarnação.

O general observa a batalha de longe, com binóculo, e assim

raramente perece; os sábios descrevem ou cuidam da dor, longe de a

lastimarem; nem o global nem o universal sofrem e, se a ciência e o

pensamento se referem a temas coletivos ou formais, apenas o local

carrega o peso do mal. Lançado para baixo, o sujeito o suporta. Eis

porque ele tem esse nome.

Donde dois cogitos. Nós pensamos e sabemos. Eu sofro.

A ciência encontra a cultura quando ela se encarna e descobre ou

produz dor, mal e pobreza. Esse tempo não acaba, pois traz consigo

o mundo e a história.

Primeiro foco: a razão científica universal e clara, sol faiscante;

segundo foco, ardente: todo indivíduo encarnado singular sofredor e

que agoniza sob a dureza dos homens, ecce homoj a filosofia não evita

o centro ou a periferia, pessoa instruída com mestiçagem, procedente

ou engendrada pela universalidade racional e pela singularidade do­

lorosa, pela universalidade dolorosa e pelas singularidades racionais,

espírito que, ao mesmo tempo, faz ou segue a excentricidade legal do

mundo e que se semeia, multiplicado, no universo. Eis o segredo do

conhecimento: ele funciona como o mundo.

84 l~

o conhecimento nos vem pelo patético e pela razão, insepará­

veis, ambos universais, um no foco da ciência e a outra no das cultu­

ras; nós pensamos porque eu sofro e porque. assim é.

Então o ápice do universal atinge o singular, aqui ou ali, tal herói

ou este exemplo; aquele da abstração é lido e é visto na paisagem, o

do saber se debruça sobre o concreto; o ápice da crítica ou da teoria,

na narrativa; o do monoteísmo, no regime do espírito e da vida do

encarnado; o ápice da ciência chega ao conhecimento da fraqueza e da fragilidade.

Donde a idéia - nova - de um ciclo de instrução próprio a

preencher o lugar das ciências que expiram porque não avançam

mais e que não avançam porque não formam ninguém e porque não

se forma ninguém sem as ciências exatas, sem a história das ciências,

a tecnologia de um lado, e, do outro, sem o direito nem a filosofia,

sem a história das religiões e as literaturas. Em suma, dentro do rela­

tivo e sem a razão de dois focos universais.

O mestiço instruído deve sua criação, sua instrução e sua educa­

ção, seu engendramento enfim, à razão, sol brilhante que preside os

saberes científicos, assim como à segunda razão, a mesma sem dúvida,

mas ardente no segundo foco, que não surge apenas do que pensa­

mos, mas do que sofremos. Esta razão não pode ser apreendida sem

as culturas, os mitos, as artes, as religiões, os contos e os contratos.

As ciências humanas morrem por se terem esquecido dos dois

modos fundamentais da razão, o das ciências e o do direito, aquele

vindo do pensamento assim como este, sendo da mesma forma uni­

versal, sob mspiração do problema do mal: injustiça, dor, fome, po­

breza, sofrimento e morte, e que produziu os artistas, os juízes, os consoladores e os deuses.

Só existe uma razão autêntica. Ela clareia e mobiliza sob duas

formas: sem a primeira, clara, a segunda seria irracional, mas sem a segunda, quente, a primeira seria insensata.

A igual distância das duas, o mestiço instruído é engendrado pela ciência e pela compaixão.

85

Guerra por teses

Palavras. A dor, inefável, ultrapassa o exprimível. Evitemos dizer que

não podemos dizer: o indizível, clichê monótono. A volta ao dado bruto, paisagem singular, por abandono da lin­

guagem caracteriza ou a ingenuidade fingida ou a tolice verdadeira.

Flexível, e de fato tortuosa, lábil, onipresente, a língua se vinga ante­

cipando-se tranqüilamente ao idiota patético ou vaidoso que, en­

quanto pretende ultrapassá-la, repete, quase sempre mal, as mesmas

palavras repisadas. Cuidemos para não confundir o inefável e a insu­

ficiência de vocabulário: qualquer banco supera, em opulência, os

magros trocados que cada pessoa física deposita semana após sema­

na; as uvas da França prometem melhores vinhos que minha despen­

sa obscura; o sol aquece um espaço muito maior que nossos três

cacos de antracito. Muito cara, mais do que dispendiosa, exorbitante, a verdadeira

ingenuidade coroa, ao contrário, a longa paciência do escritor. De­

pois de abandonar sua própria fala, faz muito tempo ele armou sua

escrivaninha em pleno dicionário. Quanto mais rica a sua língua,

mais leal o seu trabalho. Assim como, para falar de modo honesto do mar, deve-se tê-lo desbastado em todos os sentidos, também para

falar na sua língua convém ter visitado os seus meandros. O escritor

só tem acesso ao estilo depois dessas travessias probatórias, da mes­

ma forma que um filósofo atinge o pensamento depois de longos

périplos pelo país da enciclopédia. Nenhuma economia, mesmo teó­

rica, o dispensa dessas instruções. O pensador deve começar por

aprender tudo, mas uma vez que ele pensa em sua língua, deve tam­

bém tornar-se escritor, e para isso atravessar em todos os sentidos a

sua capacidade. Como um marinheiro só está feito depois de ter

sentido seu colchão balançar sobre todos os oceanos, formados ou

não de mares locais, assim o pensador experimenta o pensamento

banhando as ciências regionais e assim, também, faz o teste de sua

língua, sem escrúpulos de escrever a do trabalhador manual, do ma­

landro, do carpinteiro, do monge, dos sábios, em sua língua amoro-

86 t

sa, pintor ou músico, do técnico; dessa forma, passa pelas páginas das

enciclopédias e dos dicionários, vai além da ciência e das narrativas;

sim, a metafísica vem depois da física, a filosofia começa depois dos

saberes e das literaturas: não só dos conhecimentos, duros ou suaves,

exatos e inexatos, rigorosos e flexíveis, vivos e humanos, mas também

das palavras, porque não se medita sem elas, de todas as palavras

possíveis, porque só se pensa bem com numerosas palavras. Múltiplo

o périplo do pensador, que não deve se contentar com os saberes

canônicos nem com a prova justa, e sim lançar-se nos mitos, contos

e literaturas.

Denominemos jargão à linguagem que usa um pequeno número

de palavras: lagoa gelada, perdida no meio de uma floresta. Quem

escreve num registro tão limitado pode refletir sobre a língua? Encer­

rado em um idioma especial, poderá falar, por exemplo, de átomos,

de barcos a vela, de música ou de amor, mas de língua! Ora, eu temo

que as ditas filosofias da linguagem só utilizem, de fato, muito poucas

palavras. Será que o que se perde em extensão se ganha em refina­

mento ou rigor?

Não diga: faça, mesmo quando você disser. Conquista-se o sen­

tido caminhando. Há discurso demais, atos demais, no próprio dis­

curso. Crítica em excesso: quantas obras! O que é chamado teoria

oferece sempre o máximo de facilidade com o mínimo de vocabulá­

rio. Trabalho paciente do escritor que navega em longo curso na sua

língua total e que, não tendo medo de nenhuma paragem, a escreve,

e então a descreve, em suas ribeiras mais distantes, e tenta esgotar as

suas capaddades. Quase sempre a língua cochila, salvo uma pequena

parte, assim como dormem os nossos neurônios. Infelizmente, as

ferramentas ou as testemunhas de inteligência permanecem adorme­

cidas no que é virtual, à espera daquele que escolhe como tarefa

despertá-las, definir sua língua até nas falhas, convocá-la inteira e

pessoal, fazê-la pensar ou existir colocando-a num falso equilíbrio;

combine, experimente, longas cadeias de sinônimos, todas comple­

xas e incômodas, convergindo de súbito para a perda extrema de uma

87

nuance. E ali encontre aquela que a língua não é capaz de abarcar. Ei­

lo, finalmente, ingênuo. Acuado a olhar, a tocar, ouvir ou saborear,

forçado à paciência e à sagacidade.

Saber-se-á, pelo exemplo mais trivial, que o homo sapiens, pelo

menos em sua espécie de língua francesa, não usa adjetivos para de­

signar os perfumes, e entretanto sapiens quer dizer em primeiro lugar

cheirar e sentir sabores e fragrâncias? Azul e não cor do céu, amarelo

e não tonalidade de mel, isso vale para a visão, muito bem aprovisio­

nada, mas por que cheiro de rosa ou gosto de pêra? Cruel penúria de

epítetos! Mesmo a estátua de Condillac não percebe essa falta, ela que

parece começar, justamente, pelo odor, sem jamais abandonar as pa­

lavras.

Eis, portanto, o estilo: vibração singular nos confins da língua.

Lá, uma variedade perdida de verde, que é vista, requer uma palavra

nova ao velho dicionário, que não lhe dá mais do que as trinta nuan­

ces vizinhas, vibração do sentido e do mal dito, lugar extremo onde

a língua, como uma vela, se agita, no limiar. Nada se parece mais com

um pensamento novo do que esse tremular, à maneira da solda der­

retida, da junta quebrada, da falha da linguagem.

Assim, um dia qualquer de sizígia, Bougainville emboca pela

concha fora do mapa, onde as orcas e as jubartes, amontoadas diante

do seu tombadilho, o impedem de aportar.

Mergulhar o mais rápido nos dados singulares do mundo, esque­

cidos de uma língua apenas aprendida, não nos levará jamais à inge­

nuidade. Apenas restitui sentimentos usados, falso banho de juven­

tude de onde saímos senis; mais vale singrar a língua, um pedaço de

mundo novo poderá aparecer num canto do portulano. Com este

evento o novo ingênuo se torna velho.

Toca, ouve, saboreia, respira e sente, vê, não fala dos cinco sen­

tidos senão ao fim dos périplos comprovantes nas ciências e nas estó­

rias. Tarde, bem tarde. Depois de virada a última página das enciclo­

pédias e corpus. Sim, a metafísica ou a filosofia vêm depois das físicas

e das poéticas. Lá chegada, sua cabeça embranqueceu nos conheci-

88

L lO

mentos, e ele usou sua língua em mil palavras. Velho estradeiro dian­te das ilhas virgens, ele pagou o alto preço da ingenuidade.

Ele pode instruir porque tem a alma branca das crianças. Idoso,

o verdadeiro ingênuo instrui o falso ingênuo, jovem. Eis, novamente,

a dupla educativa: duas ingenuidades não geminadas, a velha autên­

tica, adquirida, sapiente, verdadeira - juvenil -, e a jovem falsa,

tola, fresca, alegre, nativa - decrépita. Procurai o mestiço. Ao trabalho.

o estilista e o gramático

Por que o filósofo não escreveria? Em nome do que ele deve reduzir

sua meditação aos elementos da gramática? Com que direito lhe re­cusar o direito ao estilo?

O estilo e a gramática, evidentemente distantes, exploram ambos

a língua, com meios diferentes. A dupla visita o mundo, o conheci­

mento e os sujeitos, às vezes Deus, partindo da língua, por métodos

que se pode desejar complementares, cuja oposição causa espanto,

uma vez que um não existiria sem o outro, a gramática por falta de

material, o estilo por falta de regras. Ela descreve, analisa, procura

fundamentar, às vezes legisla; ele experimenta. A gramática se quer

teórica e o uso experimental. A filosofia, portanto, deveria reservar para si a gramática e rejeitar o estilo?

Conhecemos essa distância que separa ou separou a tradição

acadêmica - nascida nas universidades da Europa durante a Idade

Média, sobre os fundamentos gregos lançados por um certo Platão e

pela escola de Aristóteles, conservados pelos padres latinos, tradição

que perdurou sem interrupção notável até os nossos dias em todos os

países ocidentais, inclusive a França - e uma outra linhagem, menos

estável, mais rara, pouco profissionalizada porque ligada a alguns

talentos individuais inimitáveis, sem escola nem discípulos, prova­

velmente surgida na França, de Montaigne ao século XVIII, mas tam­

bém na Alemanha, de Goethe a Nietzsche. A grandeza de Platão e o

89

posto que ele ocupa, na origem da bifurcação, resultam do fato de ter

unido em sua obra o debate do gramático e a exploração do estilista,

por ter escrito o Teeteto e O banquete.

Essas duas metades da filosofia, progredindo sobre duas verten­

tes, têm pouco desejo de se reunir e, em lugar de se amar, rivalizam

e se cobrem de anátemas e de sarcasmos. Em certas obras, entretanto,

elas se desejam e se encontram, hermafroditas, não compreendendo,

no momento da fusão, por que a análise matemática expulsaria a

linguagem refinada, por que o escritor, jamais ascendendo por direi­

to ao título de filósofo, ridiculariza quando tem oportunidade Ho­

norius, Marphurius e Janotus de Bragmardo, raciocinadores desvai­

rados.

Poder-se-á conceber, com tranqüilidade, que tal divisão se torne

complementar? O matemático conhece melhor o mundo e mesmo a

sua própria linguagem se adere à física; o físico conhece melhor as

coisas e suas próprias ferramentas se se aproxima da técnica; o técni­

co, se aprende o artesanato; e o artesão, se chega à obra de arte. O

filósofo gramático conhecerá melhor a língua e o conhecimento e o

mundo se tolera o estilo e se abre às suas proezas. Inversamente,

concebe-se o progresso do artista quando ele se volta para o artesana­

to; o do artesão, quando ele se faz técnico; o do técnico ... e assim por

diante, em direção às matemáticas e à lógica. Estrada de mão dupla

para o filósofo. E assim, como complemento, o estilista sequer escre­

ve sem prévia obediência à gramática, sem lógica e sem regras do

sentido, sintaxe e semântica. Se escreve, é porque as aceita de fato.

Mas ele não explicita nem as regras nem as leis. O gramático, por

sua vez, nunca desenvolve a língua, sobre a qual fala, entretanto, com

finura e pertinência. Um se opõe ao outro: a proeza, o desdobramen­

to, implicam a regra que implica toda uma filosofia; mas a gramática

supõe uma língua que só conseguiu existir por suas odisséias. O fato

precede o direito, mas o direito precede o fato. A obra antecipa sua

lógica em um tempo da história, e a filosofia se ergue quando chega

a noite, mas as regras antecipam sua aplicação no tempo ideal e lógi­

co do saber, e o filósofo desperta com a aurora.

90

Ora, se o estilista raramente tem necessidade da gramática e po­

de transgredi-la em seu gesto refinado de invenção, se o gramático

nunca se abandona ao estilo entre suas delicadas minúcias de análise,

o filósofo, presente nas duas frentes, tem necessidade de conhecer o

gesto de ambos e deve tornar-se, se possível, um e outro. Meio-dia.

Em nome de que princípio ablativo Se reduziria ele à teoria dos ele­

mentos, uma vez que o trabalho positivo da língua consiste também

em acompanhá-la a seus confins e em direção a seu futuro?

Em razão de seus conteúdos confusos ou obscuros - em todo

caso, encobertos - o mito, a poesia e a literatura foram expressa­

mente banidos pelo gramático analista, que busca o claro e distinto,

o explícito, e suscita o debate entre posições diferenciadas. Na sua opinião, a narrativa não sabe o que diz.

O estilista zomba do gramático, Rabelais de )anotus, Moliere de

Marphurius, Marivaux de Honorius e Musset de Blazius, a literatura

ri da academia ou esta dos universitários por ressentimentos mesqui­

nhos que espalham o terror em casos de guerra implacável, por meras

tolices, em virtude sobretudo do imobilismo. O analista esclarece,

mas não se mexe, explicando indefinidamente, argumentando sem

pausa. A gramática filosófica de nossa era chegará mais longe que no

século XVIII, este terá ultrapassado as teorias medievais, e estas terão

ido além da Antiguidade? Não. Nesses lugares fascinantes, a filosofia

descobre uma espécie de ponto de acumulação, do qual extrai debate

sem trégua como quem extrai água de um poço, sem poder caminhar

mais que Zenão, estável em passos largos. Isto ilumina, é certo, mas

não se moye. Certamente esclarece, mas ao preço de uma linguagem

técnica limitada, precisa, fechada, que depressa passa ao algoritmo,

logo inacessível a quem não a fala, como outrora a escolástica, como

se a escola afastasse, desdenhosa, todos aqueles que não têm condição

de participar da conversação. Será, então, que ela esclarece, sendo o preço a obscuridade mais espessa?

Como se o obscuro tornasse tudo igual, como se o que está em

questão dissesse respeito a todo o mundo. Como se a linguagem se

91

vingasse nos dois casos. Deve-se sempre pagar na proporção daquilo

que se deseja ganhar. Quereis analisar? Não deixareis de fazê-lo sem

sair do mesmo ponto, como se tivésseis tomado posse de um poço

inesgotável, de onde a dicotomia renasce dela mesma. Procurais es­

clarecer? Não cessareis de trazer a luz, até a extinção dos fogos. Que­

reis explicar? Não vos detenhais: a implicação retorna inelutavelmen­

te. Quereis debater? O debate se engendra de si próprio, porque a

guerra não gera senão a guerra, passando sobre o ventre dos proble­

mas e das mortes, o pé calcando sempre o mesmo lugar. Assim, por

força da tecnicidade, as filosofias rigorosas da comunicação tornam­

se incomunicáveis. Os esforços ou trabalhos do gramático e do estilista se asse­

melham, na mesma medida em que se opõem. Entregues ao enco­

brimento como a uma vertigem, desenvolvem o obscuro, um na

compreensão, na exatidão e na profundidade, o outro na extensão,

amplitude e movimento. Essas explicações expostas custam caro: nos

dois casos deve-se pagar, embora todos acreditem que não pagam

nada. Ora, tudo se paga - mesmo o progresso, mesmo as liberdades

democráticas, mesmo o ateísmo -, e às vezes muito caro. Além dis­

so, a despesa a aceitar deve ser contada na moeda em curso no mer­

cado em que se fazem os negócios: em dinheiro vivo no âmbito do

comércio, em ternura na troca amorosa, pelo lacre nos contratos

legais, em outros casos às vezes com o sangue ou a vida. Se é sempre

preciso gastar ou pagar para conhecer, deve-se por conseguinte acer­

tar a dívida, no caso, pela moeda do conhecimento. A claridade é

paga com a estreiteza; a elevaçãO das opiniões, com a imprecisão. O

esclarecimento é pago com a paralisação e a esterilidade; a invenção

e a rapidez, com a confusão e a obscuridade. Até em filosofia nin­

guém jamais conseguiu obter a manteiga e o dinheiro da manteiga ao

mesmo tempo. A cada qual, seus riscos. Um aceita tropeçar nos ca­

darços, o outro se dispõe a tocar o chão apenas de leve. A marcha e a

corrida despendem e perdem um pouco de luz, a análise abandona a

fecundidade. Questão de escala: o que dissipam e o que ganham o

microscópio e o telescópio, o detalhe e o plano total? Da mesma

92

_.

forma, a liberdade faz seu câmbio em obrigações, e com certas regres­

sões o progresso é pago. É preciso ver o saldo, eis tudo.

Cada um conta com a falência do outro ao lhe declarar amavel­

mente: não compreendo nada do que você diz. O gramático ao esti­

lista: fora daqui, mente confusa e irracional. O estilista: tens sempre

razão naquilo em que progrides e propões, concordo. Mas, e depois?

Ardiloso, prudente, rigoroso, circunspecto, progrides meio milíme­

tro em um século. Enquanto isso, desatento, corajoso, intuitivo, criei

o sentido, sim, o sentido da vida, o mundo, o trágico, o próprio

conhecimento, o amor, as relações com o vizinho e as andorinhas

trazendo a primavera nas asas. Com o sacrifício da clareza, faço a

língua viver. Tu esclareces sacrificando a vida. Se, na hora de correr,

eu analisasse o movimento dos meus ossos, músculos e neurônios,

minhas intenções e objetivos, razões e proporções, jamais sairia do

lugar. O gramático diz: tu não sabes nada. Tu não fazes nada, respon­

de o estilista.

Tanto um como outro estão certos. O filósofo sabe, mas também

faz, trabalhando nos dois canteiros em escala média.

A análise recorta, distingue para reconhecer os elementos, da

língua por exemplo. Mas a dicotomia ou a separação não detêm a

exclusividade na busca do elementar. Outras operações são possíveis,

em todas as ciências ou pesquisas, como na química: a pesagem, a

mistura de um corpo no outro ou o contato dos dois, as reações, o

exame ou o controle das variações de um funcionamento ou processo

etc, respeitam laços e conexões destruídas pela divisão e permitem

reconhecer a presença de um metal, a autenticidade de uma liga, o

bom quilate, em outras palavras, dita a verdade sobre a análise: mé­

todos necessários se ela fracassa, desejáveis mesmo quando ela se

mostra agressiva, pois seccionar as ligações não deixa as coisas como

eram antes. Assim se passa na filosofia e com a língua: O filósofo

escritor ensaia.

Ele prova, experimenta. Ele testa, ensaia: dois verbos antigos da

velha química, da própria alquimia, que voltam ao uso corriqueiro.

O francês emprega ainda nos laboratórios a palavra têt, antigo ca-

93

dinho ou pote de argila refratária que servia para o ensaio ou teste do

ouro; mas não conhece mais o ensaio, no sentido da pesagem.

O filósofo escritor experimenta enquanto constrói a língua, as­

sim como o gesto do artesão continua, prolonga a linhagem de sua

arte, pauta musical ou direção de sentido e, na medida em que pode,

progride. O analista se detém, rompe, teoriza; o escritor persegue,

guarda as ligações, fabrica, porque acredita que não se conhece nada

sem o ter praticado profissionalmente. O jargão dá um conhecimen­

to estéril de coisas mortas. Saber a língua exige também que se a faça.

Que ela seja testada e ensaiada. Um ensaio honesto produz às vezes, até com freqüência, um

resultado negativo, oposto, destituído de sentido. Os objetos se vin­

gam assim como a língua, como a terra quando não é trabalhada. Eles

nos reservam o inesperado, não reagem como previsto. A tentativa

comporta um risco, do imprevisível, do desconhecido. A gente se expõe quando faz, ou se impõe quando desfaz.

Quando se desfaz, com efeito, nunca há engano. Não conheço me­

lhor meio para ter sempre razão. Não creio conhecer, em troca, me­

lhor definição do homem do que o velho ditado errare humanum est,

ao qual acrescento: humano é aquele que se engana. Ele pelo menOS

tentou. Frágil, nu, sem prumo, o escritor só confia num talento que nun­

ca tem a solidez de um método: sem escola para o proteger pelo diá­

logo e a posição referenciada no grupo, sem imitador nem mestre, ele

explora sozinho. Pode, portanto, falhar, se enganar ou se extraviar.

Ele carrega esse erro possível e eSsa queda eventual como se fossem

ferimentos no flanco de sua obra. Dor, coragem da errância para

pagar a novidade. Pois todas as manhãs se apresentam formas estra­

nhas, imprevisíveis, tão atraentes e belas que ele se levanta apressado,

ao amanhecer, entusiasmado diante das paisagens a cruzar, ansioso

para retomar a viagem num mundo raramente familiar, quase sem­

pre extraordinário. Não sabe nunca quem vai entrar na página se­

guinte. Tanto pior para a queda, ele testa! Se perde, não terá feito mal

a ninguém, e se ganha, se regozijará. Ao diabo com os erros, ensaia.

94

I

I' II

Tereis a audácia de falar do mundo, mesmo se jamais o tiverdes

percorrido? Assim como as coisas diferem imensamente do que delas

dizem os discursos, livros, jornais, revistas, representações, a língua

não tem nada a ver com o que dela diz quem não a pratica em toda

a sua extensão.

Quem não o experimentou, acredita de bom grado que não exis­

te diferença entre um discurso sobre o Margaux e o Margaux; pegue

e beba; deguste-o; saboreie-o; teste. Se acredita que um bom atlas

sobre o deserto substitui a vida entre os tuaregues do Saara, parta, vá

até lá. Que tudo se reduz à descrição do jornal. Tire a roupa, desça,

brinque sobre o gramado. Crítica fácil, arte difícil. Não, o amor não

se comprova por palavras nem por cartas de amor. Chega de pala­

vras: atos. A história dita nunca substitui a história feita, embora ela

traga mais glória e dinheiro com fadiga infinitamente menor, e assim

as estratégias são avaliadas na prática. Em todo caso, experimente.

Caso contrário, você estará mentindo. Mesmo se o que disser for

verdade, mentirá, desde que se contente em dizer. Viva, prove, parta,

jogue, faça, não copie. Diante do ensaio, a própria mentira acaba

recuando.

Acredita-se habitualmente que a língua analisada pela gramática

e pela filosofia vale a língua viva inventada pela escrita. Não. O gra­

mático, o professor, o filósofo não escrevem o bastante para saber.

Você já observou, nas salas de aula, nas escolas, nos anfiteatros, a

ausência do verdadeiro exercício? O examinador ou juiz nunca soli­

cita um poema, uma novela, romance ou comédia, jamais quer me­

ditação, mas sempre crítica ou história, cópia das cópias. Por quê?

Porque ele.l1ão saberia redigir um modelo de dissertação. Ao invés,

exige história, crítica, análise. Por quê? Porque pode e sabe copiar.

Por quê? Pela facilidade. O fazer explora, o desfazer explode. Não

minta, escreva. Toda a verdade, mas só ela.

Atenção: ela é mortal.

Sócrates, analista, exige um discurso conciso. Interrompe retóri­

cos e rapsodos, grita, caçoa deles e os despedaça. Suas perguntas cor-

95

tam ° discurso em frases curtas de diálogo, e sua dicotomia leva a

proposição à extensão minimal de uma palavra. Por que escreves "exigir", com que sentido, de que exigência

falas? Que discurso, por que um discurso, comprido, curto, que diá­

logo, por que um diálogo, que perdes ao cortar tudo? Seja quem for

pode aplicar a Sócrates os golpes que ele dirige a Protágoras ou a seja

quem for. Com que direito impões, aqui e agora, esse tipo de argu­

mentação? Sob que condições? Que queres? Contra quem te bates? A

extensão dos prêambulos e das condições requeridas, antes que apa­

reça a fera em qu'estão, dá a medida da perversidade. Sócrates, como

amas a contenda e a vitória; terás uma alma tão baixa? Quem então

te nomeou advogado geral, procurador implacável da humanidade?

Por que tomas o lugar daqueles que nos condenam e que, algum dia,

te julgarão? Que ressentimento te leva à acusação perpétua de todos

com quem te encontras? Com que direito te dás o direito de perseguir

e denunciar? Um terceiro Sócrates, se quisermos, pode nascer, por

sua vez, de tais questões colocadas por Sócrates para Sócrates, e assim

por diante. Eis aberto o poço sem fundo do debate. Armado com uma espada curta, o infante avança em direção ao

cavaleiro para combatê-lo de perto, corpo a corpo, como anseia. Em­

baraçado com sua montaria, sua carapaça e seu manto, o sofista es­

critor cai por terra, desmontado, ele que tem o hábito de galopar a

cavalo e não de lutar com os pés no chão, armado de um arco cuja flecha voa longe, ou de uma lança que ele arremessa. Ei-lo aplastado

na terra, frágil, grudado à terra. Sócrates o esmaga. Movido por que

ódio e com que direito? Um atomiza o texto por meio de um pequeno clique de esgrima

que corta com precisão a ampla rede de sentidos entrecruzados pelo

outro, e sobre os quais as atrações a longa distância brincam desde o

exórdio até o final e reciprocamente, sutis. O mirmidão de sabre curto, protegido por uma couraça pesada,

quitinoso inseto, enfrenta, no círculo fechado, o retiário leve, nu,

com sua rede móvel, pássaro volúvel. Combate singular o do infante

estático e sólido contra o volteador ágil e envolvente: os romanos

96

1 I

apreciavam em outros tempos esses gladiadores, miniaturas da cava­

laria com suas manobras fulgurantes e da infantaria com sua resis­

tência teimosa, enraizada no solo, que se enfrentam na batalha cole­tiva, em linha e no campo aberto.

A espada rasga, fura, corta a rede, corta malha por malha nas

falhas do falso sentido. O retiário faz ondular a rede, manta que se

transforma em gaiola, plano e esfera, muro e prisão, superfície oblí­

qua e volume móvel: na dimensão zero, ponto ou bola enrolada no

punho do gladiador; na dimensão um, comprida cadeia de razões,

desdobrada sobre seu ombro; dois, trabalho de capa desdobrada

diante do mirmidão, como um engodo que um touro encara; três,

onipresença, em torno do corpo, de laços cruzados que o amarram,

o apertam, o abafam e o levam à morte.

Analisada, desfeita pelo sabre, frase por frase, letra por letra,

palavra por palavra, a língua conservará o mesmo alcance, uma se­

melhante função ondulante, móvel, conexa, ligada, mudando sem

cessar de aparência, flutuante com sua composição local, sempre glo­

bal e mesmo densa como a pedra na mão? Não terá ela, nos dois

casos, um estatuto polêmico ou guerreiro?

Sócrates infante desmonta o cavaleiro, Sócrates mirmidão estra­

çalha a rede do retiário, Sócrates avante de primeira linha, arremes­

sador, imóvel, pescoço de touro para a frente, imerso no túnel negro

do amontoado, artelhos enraizados na lama até o calcanhar, resiste a

todas as ofensivas, imobiliza até lhes cortar o fôlego os que correm na

terceira linha ou três-quartos que enganam todo o dispositivo pesado

com uma mudança de andamento imperceptível. O avante luta cor­

po a corpei, o médio de abertura, mudando de pé, reorienta toda a

trama do jogo do lado fechado para o aberto com um leve ou invisí­

vel desvio do equilíbrio, os zagueiros enganam-se nos contrapés.

Quando o analista distingue direita e esquerda, segundo o prin­

cípio do mestiço excluso, o estilista já pousou sobre a poeira, como

que acariciando a terra, uma terceira pata de pomba, despercebida,

que faz a rede estourar na direção das tribunas populares, quando o

lado presidencial a esperava. Combate curto ou longo: mudança de

97

escala. Um avante de primeira linha avança passo a passo, metro após

metro de terra custosamente conquistada, uma torsão nos rins, fin­

gida, ou um repuxão nas costas, um pontapé na bola e a jogada pula

para sessenta metros dali. Sobre que vazio te debruças aqui, analista,

a questão repercutiu tão distante sobre as longas geodésicas da lin­

guagem ... Ergue a cabeça acima do amontoado, enxerga alto e longe.

O touro míope, pescoço baixo sobre a areia acre, arremessa suas

toneladas e seus chifres, em órbita retilínea, em direção ao toureiro

em traje mortuário de luz, em viravoltas por trás de adereços verme­

lhos, ancas altas, finas, frágeis, trêmulas, virilha e arcada crural ex­

postas, punho inteligente para a mínima solicitação. Quando e para

onde a inclinação, em milímetros, em meio segundo quase? Qual dos

dois, infante quadrúpede ou corredor de pé ágil, vai morrer, na cele­

bração de um momento decisivo na história da besta humana. qual

dos dois, pata ou contrapé, vai matar, nesta comemoração do instan­

te em que o coletivo passou, sem o saber ou decidir, do sacrifício

humano ao sacrifício animal? Sócrates touro, olhos salientes, fronte calva, focinho de fauno,

feio de meter medo, desmonta com uma cabeçada o fantoche sofista

desarticulado. Que instante ele comemora neste parricídio odiento?

Que momentos desaparecidos comemoramos quando o avante der­

ruba o três-quartos, quando o retiário estrangulava, apertando junto

à terra, o mirmidão vencido, quando o infante desmontava o cavalei­

ro, quando o analista convence o filósofo escritor de seu não-senso?

Embora passemos do assassinato ao espetáculo, da guerra à ginástica,

do rito à linguagem, do sangue derramado à filosofia, as condutas

continuam estáveis, bem como as paixões.

Não há engano possível sobre o que distingue corpos ginastas e

naturezas atléticas, dizem os bons treinadores. Estas correm, saltam,

jogam, enquanto aqueles lutam ou se equilibram em aparelhos, como

outrora os mestres gajeiros. Nenhum atleta se sente à vontade num

trapézio ou nas barras, poucos ginastas descem à pista ou ao campo.

Musculatura curta, encolhida, força nos braços e na cintura escapu-

98 r'

lar, ou então forma longilínea e força no alto das coxas, mola. O re­

crutamento militar apreciava, acredito, estas duas populações. Cons­

crito, Sócrates sobressai entre os ginastas.

O professor, bom treinador de inteligências, não se engana, ele

também, quanto à mesma diferença do lado do conhecimento. Ob­

serva as duas populações paralelas: trabalhadores persistentes, de

vontade empedernida, horizonte curto e idéias raras, eficazes e está­

veis, ganhadores, voltando incansáveis ao mesmo assunto, fixos e

obsessivos, javalis; intuitivos rápidos de olfato sutil, numerosas idéias

passageiras, inventores prolíficos destituídos de domínio sobre sua

própria fecundidade, ineficientes, instáveis, enamorados da beleza,

raposas. Exploradores realistas e aristocratas arruinados. O inseto

cavador e o pássaro migrante, o gramático e o estilista. Dom Quixote

e Sancho Pança. Hoje em dia, Pança faz fortuna na ciência, e na

literatura ordinária Dom Quixote arrasta a sua miséria.

Sócrates e Platão. Não há filosofia sem esta dupla em paz, sem

este par unido que nunca existiu. Sempre em duelo, em resumo.

Platão - mas por onde então andava ele, medroso, na hora da morte

de seu mestre, o grande ausente do Fédon? -, Platão escreve, passado

° processo, sobre ° cadáver de Sócrates, hirto e frio, depois das aná­

lises sutis da alma; Platão droga Sócrates com cicuta para escrever

muito e bonito, mergulha no torpor o próprio torpedo, administra­

lhe um narcótico para que ele próprio não seja torpedeado, imobili­

zado, incessantemente forçado à dicotomia exaustiva e tão infinita

em seu gênero quanto o discurso mais diluído. Que grande oportu­

nidade é manter a gramática à distância sem os latidos do gramático,

seguir a lei":depois da morte do jurista, mas que tristeza trágica é

comemorar sempre o mesmo combate para a mesma execução.

Quando escreve, o touro está morto. Mas ele nunca escreveu

porque Sócrates nunca pôde escrever: esgotado pela análise.

Velha filosofia selvagem, em que a paz não pode intervir senão

entre um Sócrates derrisório, sentado sobre seu asno, e um belo Pla­

tão abatido, encara pitado num rocim, dando rédeas às idéias puras,

Dom Quixote e Sancho Pança. BIBLIOTECA CENTR.",c.

PU-C - RS.

99

Se o escritor der à gramática o seu demônio e a ironia leve, a

altura da visão, a amplitude de campo, se o analista emprestar ao

estilo uma solide~ sem falha, renascerá a filosofia. Garantir seu pé na

vizinhança imediata, mas prever de longe: ninguém orienta seus

passos na montanha, seu cavalo numa estrada, seu corpo, e em geral

sua vida, sua alma, sua família, seu orçamento, nem seu carro, seu

pensamento, dispensando este preceito simples e necessário, que reú­

ne em uma única olhada o local e o global, o universal e o singular,

mas cuja disjunção produz uma tolice única e risível, queda ou imo­

bilidade, Quixote nos moinhos e o abatimento, Sancho cultivando a

banalidade.

Não há filosofia sem essa dupla apaziguada, rindo dos combates

inúteis e que se tornaram apenas rituais, pela comemoração. Mas

agora que nos lembramos dos cadáveres que jazem entre nós, o do

galo sacrificado sobre o de Sócrates condenado, do touro ou do ma­

tador, do retiário e do mirmidão, do infante e do cavaleiro, agora que

lembramos do pecado original das disputas linguageiras, da execução

arcaica, para que serve o ritual da comemoração? Para que fazer com

que combatam na arena da linguagem o estilista e o gramático?

Se a filosofia, amiga da sabedoria ou, mais gramaticalmente,

portanto com mais elegância de estilo, sábia em amor, tem por obje­

tivo o que pretende com seu título, ela dirá amanhã, de uma só vez,

a língua, e pedirá apoio, mais ainda que à análise e à retórica juntas,

aos mitos e às religiões, às técnicas e às ciências, ao mestiço incluso.

Nesse dia, a aventura recomeçará.

Uma recordação da juventude: Leibniz conclui seu Discurso so­

bre a conformidade da fé e da razão com os funerais de Bayle. Meu

adversário, diz, agora vê Deus face a face - e vê que eu tenho razão.

Um pouco antes, ele citara grandes predecessores, entre os quais

Abelardo, que sofreram na carne o preço de suas discussões. Leibniz

vence, porque Bayle está morto. O tribunal anuncia a condenação e

enfim compreende-se o peso da pena: dantesca. A Divina Comédia se

vinga post mortem, nos três espaços sobrenaturais distinguidos pela

100

sentença. A vingança da escrita e da filosofia, Como a bomba atômica, supermata.

Não apenas mata. Ainda após a morte, condena ou salva. Nas ciéncias, as teorias mudam, não pelo maravilhoso poder de suas ver­

dades, mas porque os detentores das teorias contrárias recuam, mor­

rem para os colóquios e para a administração; e sempre se encontra

algum historiador para desenterrar os cadáveres e de imediato con­

denar este ou aquele inventor esquecido a errar sem descanso no

inferno do erro e das sombras decepcionantes. História: poço de res­sentimentos.

Aqui, o que está em jogo no discurso - a conformidade da razão

e da fé - se acerta após a morte. Porque se a razão raciocinadora e

belicosa acua o adversário até a morte, a fé, por sua vez, nos revela o

que acontece depois dela. Portanto a conformidade, quero dizer a

coisa e a causa que têm em comum a fé e a razão, ainda é a morte. Do

ponto de vista especulativo, bem-entendido, mas também na práti­

ca, na discussão escrita entre Leibniz e Bayle, até os esplêndidos fune­

rais do segundo, imolado na entrada do tribunal da Teodicéia. Por

trás do tribunal, ao qual o próprio Deus comparece como acusado, está aquele onde o filósofo, escritor, triunfa.

Leibniz, então, constrói o pretório e nele defende a causa di­

vina. Tem os pés - e se apóia - sobre o túmulo de Bayle, ele o fi­lósofo santo e sensato que vai resolver a questão e obter a sentença

favorável. Assim como Platão se ergue sobre os funerais e o túmulo

de Sócrates. Essa posição estará próxima à de todos os filósofos? A

razão filosófica terá sempre necessidade de um assassinato para to­mar pé?

Recentemente ocorreu uma alteração importante: meus pés não

se apóiam sobre o túmulo - cheio - de nenhum corpo particular,

mas sobre o cenotáfio - vazio - do gênero humano em sua totali­

dade, desde "a Tanatocracia", Estátuas e o Contrato natural. No tri­

bunal da razão e da ciência, hoje em dia, o filósofo defende a so­

brevida dos homens e da Terra pela longa vacuidade da abominável caixa negra.

101

Nenhuma execução singular, mas a exigência da vida específica:

não nos batemos mais senão contra nós mesmos. Não estamos, nem

uns nem outros, em oposiçãO uns aos outros. Vivemos todos como

mestiços.

Uma certa história termina. Será que uma nova está começando?

Paz sobre as espécies

Uma estrada contorna a Universidade de Stanford; no interior do

cinturão, quinze mil mulheres e homens escrevem, lêem, pesquisam,

imprimem, calculam, se reúnem para falar, com freqüência, e pen­

sam às vezes, voltados para as línguas e os códigos. Fora do limite,

crestadas quase sempre, eventualmente verdes, três suaves colinas

servem de refúgio a passeantes que, se ficarem em silêncio e pisarem

levemente, podem ali encontrar gaios azuis e falcões, raros crótalos e

algumas serpentes inocentes, um milhafre e uma enorme tarântula,

além de um rebanho de novilhas, réplica tácita dos alunos e pesqui­

sadores dali de baixo.

Não se vê nada mais do que o solou a lua, a baía ao longe, a falha

de Santo André bem próxima. Só se ouve o vento, o piado canônico

de um pássaro tão fácil de imitar que o cantor responde imediata­

mente, complacente; a gente se comunica de uma forma que dispensa

as línguas: será esse um dos lugares de um outro saber?

Recusando transportar a língua de um para o silêncio do outro,

° passeante solitário tentaria, ao invés, levar o último, antigo, àquela,

nova; discípulo de São Francisco, ele fala aos pássaros, mas sobretudo

os escuta.

Eis então que os animais se calam.

Núpcias da Terra com seus sucessivos senhores

Retardatários, deslumbrando ainda a Terra com sua juventude, desa­

jeitados, afetados, engomados, sua idade não ultrapassando alguns

milhões de anos, portanto mal adaptados, vaidosos de sua ciência

102

miúda, os hominianos se acreditam os primeiros, porque chegaram

por último. Matéria inerte, flora e fauna quase sempre mais velhas do

que eles. Parecem ignorar que sua história, nova e recente, repete mil ciclos antes encerrados.

Assim é. Logo que cada uma das espécies vivas veio à luz, as

outras a viram tentar ativamente a conquista de toda a Terra, a flora

e a fauna, em geral, presentes e passadas, o espaço, o tempo, a ener­

gia, todo o alimento, o sol nas entranhas do globo.

Plantas, peixes, répteis, pássaros, insetos, mamíferos, cada um a

seu turno e a seu tempo, por vagas sucessivas, arrancaram à vida o

domínio e o império, segundo seus respectivos meios e por sua estra­

tégia, tamanho, potência, força, número, astúcia e maldade, até o esgotamento da potência e da glória.

E todos, sem exceção, do verme ao touro, da samambaia à se­

quóia, do mosquito à vaca, da serpente à baleia, era após era, torna­

ram-se reis: o lobo, o rato, o ocelote, o cervo ... Se nos aproximarmos

deles, ainda reconheceremos hoje, sob sua vestimenta ou seu tronco,

por seu porte ou por sua estatura, a majestade do reino e sua antiga dignidade. Ei-los no auge.

Então, de repente, foi preciso decidir. Cada espécie, especializa­

da, tendo chegado aos limites extremos da apropriação, fez oscilar o

inerte, ° geral, em sua estreiteza oblíqua. O novo senhor invadiu a

Terra inteira: a superfície do globo se viu de súbito fervilhante de

bilhões de lagartos ... nada de novo sob o sol; a reprodução racional

recobre o real múltiplo e profuso; ou ainda, segundo quem assume a

supremacia, no cupinzeiro único e generalizado, a térmita só encon­tra para comer uma térmita idêntica.

Atingido seu cume, essa espécie elimina todas as outras e destrói

a Terra, colocada em desequiíbrio e em risco de morte por essa sim­

plificação; esta última, então, por sua vez põe a espécie reinante sob

risco de extinção, em virtude mesmo de seu triunfo, excessivo. Quan­

do não existir mais do que ratos, com efeito, como os ratos poderão continuar a existir apenas entre ratos?

Neste patamar vertiginoso, no decurso dos tempos e de milhões

103

de milênios, uma a uma, de cada vez, se apresentaram as espécies: e

a Terra as julgou. Aqui e ali, no universo, outras terras talvez desapareceram neste

desafio, nesta sua luta final contra o senhor temporário, mas a pre­

sença constante e hiperarcaica de nossa Terra, cá embaixo, mostra

que neste patamar temporal, incessantemente repetido em nossa

evolução, ela tem sempre a última palavra.

Cada reino recuou diante da Mãe. Espécies desapareceram e outras se humilharam, ao pé da letra.

Aquelas que subsistem ficaram porque renunciaram ao domínio ex­

clusivo, à potência e à glória, à concorrência temível, diante do anún­

cio da morte coletiva que sucederia de imediato à vitória definitiva.

Então, para sobreviver, em si mesmas e por si mesmas, elas tomaram

esta decisão muda, tacitamente impressa em seu código genético.

Nisso está a marca de sua humildade. Sim, elas se humilharam diante da Terra, deixaram o cume e

entraram nela: obedientes a suas exigências, mergulharam para se

fundir nas profundezas dos mares, -ou deslizaram sob sua superfície

sem a perturbar, conformando-se às vagas, furaram galerias escuras

no húmus ou nos rochedos, desapareceram nas turbulências das altas

regiões do ar ou se ligaram, imóveis, em uma rede inextrincável de

lianas e de galhos, para formar a massa das florestas pluviais ou equa­

toriais ... todas enfim dissolvidas, mescladas, fundidas na natureza,

assim denominada porque dava nascimento, silenciosamente, comu­

nitariamente, àquelas que recém-abandonavam para sempre a arro­

gância de seu antigo destino, o projeto paranóico de tomar a Terra

inteira só para si; renunciando à sua alta estratégia para aderir à

sabedoria subordinada do instinto, dobra harmoniosa sem falha da

Terra-Mãe, que, então, as salvaguardou. Diante do homem, hoje, o animal parece inclinar-se, humilhado.

Nosso esquecimento induz a esta ilusão estúpida. A obediência refle­

te, em todos os lugares e tempos, a imagem do comando.

Jovens demais, retardatários, mal chegados a alguns milhões de

anos, nunca adquirimos a memória dos reinos anteriores: a era da

104

L I'

liana, a da aranha, do escaravelho, O reino do mamute, da mosca ou

da vaca. Mas a língua se recorda: pois o nome que o homem recebeu

vem da humildade.

Orgulhoso, arrogante, enamorado da potência e da glória ou

tendendo ativamente para elas, homo humilis parece ignorar q~e seu

destino, escrito em sua denominação, da mesma forma que a decisão

inicial, final e definitiva das plantas e dos animais se inscreveu, muda,

no genoma das espécies, o levará um dia a se humilhar. A se fundir,

a se mesclar, a se esconder no húmus, nosso primeiro pai, diante do

risco da morte e do sepultamento. Inclinados demais a comandar,

inclinar-nas-emas todos, quando chegar a nossa vez, diante desta

Terra que tem o mesmo nome que nós.

Contrariando nossas ilusões, se os animais se humilham, a cabe­

ça na terra e os olhos baixos, eles nos indicam deste modo que, tempo

após tempo, também desempenharam, cada qual a seu turno, o papel

de homens. Humilhados, todos os viventes se chamaram homens um dia.

Foram homens. Desfrutaram do apogeu, reis, lançaram o desafio viril

da supremacia, antes da retirada definitiva. Nossa língua o repete, o

olhar da foca o exprime, é contado nas raias da pelagem do tigre, lido

na mancha vermelha da viúva-negra ou decifrado na sinuosidade

calma da anaconda.

Todos os humanos, antes de sua dissolução no húmus e no ins­

tinto, conservam atrás de si seu verdadeiro pecado original, estabili­

zado para sempre em seu genoma: terem sido homens, portanto reis,

novos, gloriosos, poderosos e tão loucamente competidores que se

esqueceraI11 da Terra. Obedientes agora por terem comandado tanto,

eles abandonaram essa inteligência em prol da animalidade. Selva­

gens e sábios.

Todos conservam este pecado, fixamente, por trás, e toda a sua

existência instintiva continua a se catalogar em sua memória - mas

nós o temos à frente, como nosso projeto coletivo. De fato, nada

original: terminal. Próximo, final: mas não primitivo.

105

I· !

Eis-nos aqui, por nossa vez, os últimos, no apogeu da potência,

no minuto exato em que cometemos o erro. Deixaremos o paraíso?

Devo dizer a meus netos que me lembro ainda de uma infância

num campo tranqüilo que dava frutos deliciosos e fartos.

Escolher: o império ou a Terra? Esta vem ganhando até hoje.

Busco um caminho médio entre a inteligência real arrogante im­

becil e o instinto harmônico polido humilhado, obedecendo com

simplicidade animal por ter comandado com desvario.

Então, não abandono mais a estrada - mestiça - que segue a

crista entre as instituições de ciência e as colinas do silêncio.

Paz e vida pela invenção. Encontrar

Aprendizado, esquecimento. Colocados à parte os casos raríssimos,

menos de dez, certamente, nos quatro milênios de história conheci­

da, cujos nomes assinam quase sempre obras de matemática e de

música, duas linguagens de mil valores porque privadas de sentido

discursivo, não se encontra um gênio natural, imediato e selvagem.

Quem espera pela inspiração nada produz além de vento, e ambos

são aerofágicos. Tudo vem sempre do trabalho, inclusive o dom gra­

tuito da idéia que surge. Entregar-se, aqui e agora, de repente, a seja

o que for, sem preparação, leva à arte bruta, cujo interesse se restrin­

ge à psicopatologia ou à moda: bolha efêmera, para teatros de feira e

saltimbancos. Obra de arte, examinemos a palavra. A obra tem como autor um

operário de formação artesanal, que se tornou especialista em sua

própria matéria, formas, cores, imagens, para alguns, em língua, no

meu caso, mármore ou paisagens em outros. Antes de pretender pro­

duzir pensamentos novos, é preciso, por exemplo, ouvir as vogais:

um operário, um artesão da escrita as distribui na frase e na página

como um pintor faz com os vermelhos e os verdes, ou um composi­

tor com os metais sobre a percussão, nunca de qualquer maneira.

Igualmente as consoantes ou as subordinadas: tarefa árdua sobre o

106

_.

papel furado como o tonel das Danaides, tão infinita que nela se

passa a vida. Criar: não se dedicar senão a isso, da aurora à agonia.

O que pressupõe a melhor saúde: devorando o corpo com seu

abrasamento, a criação esgota até a morte e mata na flor da idade

quem não lhe resiste com força tenaz: Rafael, Mozart, Schubert, por

volta dos trinta anos, Balzac e São Tomás de Aquino, pelos quaren­

ta. Antes de lançar-se à rima, o velho Corneille se despia e se enro­

lava, completamente nu, sob cobertas de burel que o faziam suar

abundam ente, como numa sauna: a obra genial transpira do corpo

como uma secreção. Sai das glândulas. Dezenas de quilômetros, to­

dos os dias, caminhavam Rousseau e Diderot. As idéias novas ema­

nam dos atletas. O apelido Platão significa, em grego: ombros lar­

gos. Deve-se imaginar os grandes filósofos como jogadores de rugby.

Através do cordame do veleiro na rota de Saint-Malo a Baltimore,

Chateaubriand suplantava os gajeiros na ginástica acrobática e no

volteio.

Perguntava-se a Malebranche como e por que Ele criara o mun­

do, com seu cortejo de penas e tormentos, de crimes e iniqüidades,

esse Deus infinito que tão facilmente teria podido descansar, desfru­

tando eternamente de sua inteligência e de felicidades renovadas; a

isso tinha o filósofo o costume de responder que ninguém cria senão

através de um suplemento de potência: assim, o universo nasce do

excedente de potência do seu Criador. Na prática, nada mais verda­

deiro. Sendo a força maior, a obra vem; mas da fraqueza, nada.

Por isso encontramos poucos gênios doentes, drogados, fracos

ou melancólicos. Desconfiados, sim; patológicos, não. Muitos êmu­

los estérei,.:foram produzidos pela publicidade romântica e mentiro­

sa em favor do inventor louco, fora dos eixos ou desequilibrado, cuja

obra é movida pela neurose ou pela química: nada sai de uma injeção

nem de uma garrafa de álcool. Ou melhor: supondo que o operário

comece, fraco e abatido, a obra, pequena e crescente, esta logo fun­

ciona para ele como um apoio, e sem cessar lhe dá forças. A obra

mora na força, depois a potência se aloja na obra; uma se nutre da

outra, que nela tem seu repasto, de modo que as duas, em simbiose

107

,. ! ,

espiralada, crescem uma por meio da outra, enquanto aumenta a

resistência de ambas à atração da morte. O que se chama de imortalidade das obras-primas resulta sim­

plesmente desta voluta positiva que se alimenta e se amplia renun­

ciando a si, como um turbilhão ou uma galáxia. A saúde vital produz

por si própria, em seguida o produto repercute sobre a vida, até

vencer tanto a morbidade quanto a mortalidade. Assim vive ainda

intensamente o que nasceu faz dois mil anos. Se a obra tem necessi­

dade do operário, num dado momento este tem necessidade só dela:

por lhe dar seu corpo e sua vida, ela retribui com benefícios. Donde,

em última instância, tem-se a vitória sobre a morte.

Existe portanto uma higiene, sim, uma dietética da obra. Os des­

portistas de alto nível vivem como monges; como eSses atletas, os

criadores. Quer inventar ou produzir? Comece pela cultura física, as

sete horas regulares de sono e o regime alimentar. A vida mais severa

e a disciplina mais exigente: ascese e austeridade. Resista ferozmente

aos discursos em volta que afirmam o contrário. O que debilita, este­

riliza: álcool, fumaça, noitadas e farmácia. Resista não só às drogas

narcóticas mas sobretudo à química social, de longe a mais forte e,

portanto, a pior: às mídias, aos modismos. Todo mundo diz sempre

a mesma coisa e, assim como O fluxo da influência, desce junto o

maior despenhadeiro. A obra de arte constitui uma barragem diante desse desmorona­

mento. Vitória sobre a morte, ela se identifica à vida, e a única vida

conhecida é a individual. Singular. Original. Solitária. Teimosa. A

obra faz uma espécie animal só para si, pois sua árvore filogenética

produz frutos ou botões individuados, livros, músicas, filmes ou poe­

mas. Ela vem, então, da disposição única dos neurônios e dos vasOS

sanguíneos. Jamais da banalidade coletiva. Inverso da moda, inverso

do que se diz, ela resiste por definição às mídias, ou melhor, à média.

A meta da instrução é o fim da instrução, quer dizer, a invenção. A

invenção é o único ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligen­

te. O resto? Cópia, impostura, reprodução, preguiça, convenção, ba-

108

,

_.

......

talha, sono. Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se

pensa de verdade a coisa que se pensa, seja qual for esta coisa. Penso,

portanto invento; invento, portanto penso: única prova de que um

sábio trabalha ou de que um escritor escreve. Para que trabalhar, para

que escrever, se não assim? Nos outros casos, eles dormem ou se

batem e se preparam mal para morrer. Repetem. Só O sopro criativo

dá vida, pois a vida inventa. A ausência de invenção prova, pela con­

traprova, ausência de obra e de pensamento. Aquele que não inventa

trabalha em outro lugar que não a inteligência. Burro. Em outro

lugar que não a vida. Morto.

As instituições de cultura, de ensino ou de pesquisa, aquelas que

vivem de mensagens, de imagens repetidas ou de impressos copiados,

os grandes mamutes da Universidade, das mídias ou da edição, os

ideocratas também, cercam-se de um amontoado de artifícios sólidos

que impedem a invenção ou a quebram, a temem como o pior peri­

go. Os inventore~ lhes fazem medo, como os santos punham em

perigo suas igrejas, cujos cardeais, por se sentirem constrangidos, os

expulsavam. Quanto mais as instituições evoluem para o gigantismo,

melhor se formam as condições contrárias ao exercício do pensa­

mento. Quereis criar? Estareis em perigo.

A invenção, leve, ri do mamute, pesado; solitária, ela ignora o

gordo animal coletivo; suave, evita o ódio que mantém unido esse

coletivo; eu admirei durante toda minha vida o ódio à inteligência,

que produz o contrato social tácito das instituições ditas intelectuais.

A invenção, ágil, rápida, sacode o ventre flácido do lento animal; sem

dúvida, a thvenção dirigida para a descoberta carrega consigo uma

sutileza insuportável para as organizações inchadas, que só podem

perseverar em seu ser sob a condição de consumir a redundância e

proibir a liberdade de pensamento.

Chama-se informação a uma quantidade proporcional à rarida­

de. Exatamente científica, esta definição surpreende a quem vê a ou­

tra informação se expandir e difundir até a redundância. Ora, aí está

109

o contra-senso: o que se propaga e se torna provável, fazendo curvar­

se a nuca dos obedientes, se chama entropia; inversamente, a neguen­

tropia cresce como o improvável. A informação, neguentrópica e

portanto pouco provável, sobe o curso irreversível da entropia, que

então desmorona para a desordem e a não-diferenciação. Este último fluxo desgasta o relevo, nivela-o, dissolve as rochas

de todos os tipos e as mistura, o rio carrega para o mar, misturada a

águas cada vez mais lentas e amareladas, a areia indistinta, enquanto

a barragem, rara, cria a diferença; ela resiste à descida que a língua

antiga designava pelo verbo avaler, despencar para jusante. Nessas

barragens se juntam todas as nascentes conhecidas. Porque a inven­

ção, como se diz, corre naturalmente; é preciso que essa resistência

intervenha, em qualquer tempo e em qualquer lugar; sem dúvida,

isso é o bastante. A entropia desce, a informação sobe, a primeira em

direção ao mais provável, a segunda para o raro. Resistir. À correnteza, à queda, à dissolução, à desordem, ao

tempo. O punhado de açúcar não pode se defender da água que o dissolve, mas que não danifica o diamante. O trabalho poderia ser

perfeitamente definido como o conjunto de operações que permiti­riam tirar o açúcar, extraí-lo e cristalizá-lo a partir da água na qual ele

tivesse entrado em solução: dissolvê-lo na água, ao contrário, faz ver

o inverso do trabalho. No primeiro caso, a energia é necessária, mas

não no segundo. Como se diz, isto se faz por si mesmo.

Uma vez que obra e operário pertencem à mesma família que a

palavra energia, que obra o operário faz? Um banco de energia, um

depósito de potência como um lago a montante de uma barragem,

uma mina de carvão, um lençol de petróleo, um capital qualquer. Em

todos esses casOS: o tempo acumulado. Saturada de informação, inu­

sável, a obra de arte não só resiste ao tempo que passa, mas também

o remonta. Mede-se sem dificuldade a diferença temporal entre a obra de

arte e o objeto de luxo, por exemplo: este custa muito carO no mo­

mento em que a moda o introduz, mas alguns anos depois é revendi­

do a duras penas e a preço vil; seus quadros, em troca, não salvaram

110

, I

J.. I

I

nem Van Gogh da indigência, nem Gauguin da miséria mais terrível, mas cem parasitas os disputam desde então, ao peso do ouro ou do

yen. Na equação em que o tempo vale dinheiro, uma sobe e o outro desce.

Aí se define um mundo diferente daquele em que vivemos: a

Terra e os astros nele giram em sentido inverso. A cada dia Moliere

rejuvenesce e faz minhas netas rirem, e a nova ópera da Bastilha,

antes de nascer, apresenta um feio ar envelhecido. Resistir não basta,

pois nunca houve uma ponte que num dia de calamidade não fosse

carregada por um rio, nem virgem assustadiça que não cedesse à

insistência de um fauno bem peludo. O tempo não pára o seu traba­

lho de erosão, de modo que, para enganá-lo, é preciso correr rio

acima. Vinda da nascente, a água faz subir o nível do lago da barra­

gem, sem descer a jusante.

Você reconhecerá a obra e o operário autêntico por este sinal

infalível: ambos parecem rejuvenescer. Morrerão crianças, como re­

sultado de sua corrida para a origem do mundo. Criar significa ir

para as mãos do operário divino no alvorecer das coisas. Inverter o

tempo.

No sentido da raridade, a informação corre portanto na direção

oposta à da informação no sentido da difusão. Ou então: a ordem

que compõe o cristal, o pentágono das rosáceas, a célula geminada de

onde nasce um projeto de homem inverte a ordem que faz se curva­

rem paralelamente todas as nucas obedientes. Como se certas coisas

remontassem um curso por onde descem as ordens que os homens se

dão. Uma exige energia, trabalho e potência e a outra cai por si mes­

ma. Dois mundos, dois fluxos ou rotações de astros, dois tempos: o

da obra de arte acompanha a vida, o outro tomba com a morte e a

história. Nós reencontramos os dois focos.

Em virtude da invariância, resistir não basta; é preciso inverter o

sentido, ato de movimento.

Ame, se procura criar: as nascentes, as cascatas, as pedras precio­

sas, os altos cumes das montanhas, as cascas da cebola, as folhas de

alcachofra, o olhar da foca, as células germinais, as crianças, empan-

111

turradas a ponto de estourar de informações como as supergigantes

azuis. E fuja dos pródigos das cestas furadas: os jornais, o que é cha­

mado de notícia, o boato que se espalha.

Entretanto, certas obras fizeram sucesso: para conquistar de re­

pente este favor, devem ter acompanhado o gosto mais provável. Sim

e não, e, afinal, provavelmente não.

Para resistir às pesquisas de opinião, distingamos dois tipos de

sucesso. Sim, o primeiro segue a moda e de fato logo o comprova,

transformando-se no dia seguinte em fiasco. Em geral, não resiste um

mês, às vezes nem uma semana, em geral não resiste ao tempo. Quan­

tos livros, ontem em voga temporária, amontoam-se hoje nos cestos

de saldos? O sucesso não acarreta a sua sucessão.

Ao contrário, como por milagre, o outro mergulha até o fundo

das obras vivas no momento, adivinha-as, domina-as, desperta-as,

liberta-as, suscita-as. Este segundo triunfo perdura. Eu o desejo a

todos. Mas não se engane: nada é mais difícil do que descobrir em

que consiste o presente de nosso tempo. O que todo mundo diz,

longe de o esclarecer, o recobre e esconde. Não se esqueça de que as

mídias repetem o que aqueles que as controlam hoje diziam quando

tinham vinte anos: estão, portanto, com um atraso de uma geração,

senão de duas. É preciso então buscar apaixonadamente o que você é,

e não o que dizem que você é. Não escute ninguém. Resista à torren­

te, às influências, às condecorações.

Eis o único modo de libertar o presente, que se define justamente

pelo encontro, raro, miraculoso, saturado de informação, da obra e

das forças vivas latentes que a condicionam, mas que somente ela

pode desencadear. O momento contemporâneo é criado pela obra de

arte mais ainda do que esta é fabricada por ele. O tempo, que sempre

dorme, desperta pela criação, como Deus suscitou Eva cujo sonho

palpitava sob a costela de Adão. Então o sucesso garante e engendra

a sucessão: a do tempo acompanha a da obra, e não o inverso.

Achar o contemporâneo, coisa difícil. Descobrir o que se é, in­

venção mais rara ainda.

112 t

Parece-me que só se pode criar no fio reto da cultura que se

encarna na carne de sua carne. Eu me atrapalho ao falar numa língua

que não seja a minha, enquanto minha exatidão busca e encontra

para dizer em francês qualquer coisa que meu corpo carrega desde

milênios em minha língua materna, meio entre o espanhol e o ita­

liano, as duas outras folhas de um trevo com pedúnculo latino, mas

desabrochado em terra celta, mais a oeste que a leste, portanto mais

inglês que mediterrâneo. Eis a imagem que ilustra meu brasão, a

tatuagem de minha pele, a marca de meu código genético, mestiço.

Não se inventará nada de novo que não saia das mais profundas

raízes? Como um relâmpago, a idéia presente conecta a terra negra e

esquecida à irrespirável estratosfera do porvir. Será preciso então fa­lar da nossa especificidade.

Na ordem da raridade, a tradição francesa, exigente, irônica e

sutil, erudita porém frívola, reservada sob lítotes, a altitude e o segre­

do, mantém sempre a dianteira sobre Suas rivais ou êmulas, mas é um

primado quase sempre ignorado, em virtude de sua natureza dura,

mais exatamente de Sua quantidade de informação oculta sob a reser­

va. Roma, Florença ou Veneza se abrem mais facilmente que Paris,

cidade mais sublime do que amável e difícil de compreender. Da

mesma forma, Couperin e Corneille, infinitamente árduos, são ouvi­

dos muito menos facilmente que Beethoven e Shakespeare, que não

hesitam diante de qualquer meio espalhafatoso de captar a compla­

cência. Recusamos acordos e comodidades, de forma que passamos

por inabordáveis e, às vezes, por arrogantes. O pudor se mostra orgu­

lhoso, eis o nosso paradoxo! Assim, sempre em risco de deixar o

sucesso para os sedutores mais rápidos e mais seguros, a França se

arrisca, mortalmente, a se esquivar aos próprios franceses, cuja cultu­

ra vive sob incessante ameaça de ruína por causa deste excesso ou

deste desvio. Quando a debilidade torna-se moda, nossa língua, por

exemplo, rara, exigente, artista, perde. A Coca-Cola sempre derrota o Sauternes. De modo arrasador.

Além disso, nos criticamos a nós mesmos até a exasperação e a

exclusão, de forma que num século em que a publicidade nunca es-

113

pera que alguém mais o elogie, nós lutamos contra nós mesmos em

todas as competições, agora mundiais. Não concerne apenas às belas-artes esta altivez inverossímil que

nos torna a vida tão dificultosa: não amamos as meias medidas em

nada. Nossas equipes jogam o futebol e o rugby divinamente, ou em

geral se afundam quando os raríssimos talentos faltam. Tanto nos

estádios como em outras praças, uma cultura deixa ver a sua nature­

za. A nossa, a mais difícil, exige uma austeridade que mil outras

dispensam, em troca de sua satisfação. Nada portanto mais difícil do que criar na França, mas estamos

condenados a produzir com essa diferença. Resista então às importa­

ções, em geral podres. Você terá sempre mau desempenho nas con­

trafações. Mestiço, sim; falsificado, não.

Para criar, deve-se saber tudo e, portanto, ter trabalhado imen­

samente; esta condição necessária agora não é mais suficiente. Por­

que o peso da ciência ou do passado esmaga e esteriliza: ninguém

produz menos que um historiador, ou professor, ou, pior ainda, que

um crítico. Analisar ou julgar, eis a maneira própria dos impotentes,

que, em conjunto, desfrutam de todos os poderes. Então, com todo seu corpo, sua paixão, sua cólera e sua liberda­

de atada, quem quer criar resiste ao poderio do saber, tanto das obras

já realizadas como das instituições que as parasitam. Isto significa,

em suma: abandona tudo o que dá segurança, arrisca-te ao máximo.

É preciso instruir-se o mais possível, no começo, para se chegar à

formação: tudo vem do trabalho; aprende e fabrica sem descanso.

Tomo agora uma tangente para afirmar o contrário. Ter tudo compreendido, decerto; mas, em seguida, para não sa­

ber nada. Duvidar para criar. Resisto então, para terminar meu dis­

curso precedente.

Tenho vontade de falar sobre a boa aventura, a única aventura

ainda possível em nossos tempos contemporâneos, o grande jogo de

quem perde ganha e de quem ganha perde com freqüência. Não, o

114

filósofo que busca não dispõe de nenhum método; o êxodo sem ca­

minho continua sendo sua única morada e seu livro branco. Ele não

caminha nem viaja seguindo um mapa que repetiria um espaço já

explorado. Escolheu errar. A errância comporta os riscos do erro e do

extravio. Aonde vais? Não sei. De onde vens? Procuro não lembrar.

Por onde passas? Por todos os lugares e o mais possível, enciclope­

dicamente, mas tento esquecer. Declino tuas referências. Há poucos

pontos de referência num deserto. A filosofia vive e se desloca nesta

paisagem austera e desértica onde todo um povo vagou durante uma

geração que esperou e não avistou a terra prometida. Ela não procura

uma nascente, um poço, montanha ou estátua, invenções ou desco­

bertas locais, mas um mundo global, habitável por seus sobrinhos.

As ciências positivas dispõem de métodos e de resultados: sem­

pre sabe o que está fazendo aquele que matematiza, que programa e

realiza qualquer manipulação num laboratório, ou que se lança nu­

ma pesquisa de opinião; e quando não sabe, às vezes inventa.

Então, quando as línguas maldizentes afirmarem que eu quase

nunca sei o que faço ou vou pensar quando me devoto à filosofia,

creiam nelas sob palavra, eu suplico. Basta que siga um método ou

uma escola, o filósofo morre no enrijecimento do dogma ou porque

as palavras de um mestre vitrificaram seu pensamento; se ele obtém

resultados locais, sua disciplina, por felicidade, torna-se uma ciência,

perdida para sempre para a filosofia.

Que agora devo definir: a filosofia se dedica a uma antecipação

do saber e das práticas a vir, globalmente. Um cientista descobre ou

inventa, nas lacunas de um método, os insucessos de uma experiên­

cia, a incompletude dos resultados ou a oscilação de uma teoria, mas

o filósofo não dispõe nem de uns nem de outros, e portanto ainda

menos de suas falhas e avessos. O primeiro, sempre reconhecível,

marca seu tempo; reconhece-se o segundo pelo que tenha ou não

trazido o futuro: que lhe falte isso e ele não existirá. A filosofia, rarís­

sima, existe se e somente se libera e prepara um espaço onde a histó­

ria habitará, como a Idade Média habitou uma espécie de Aristóteles

agostinianizado, o Renascimento habitou Platão, e os tempos moder-

115

nos Descartes, Leibniz ou Bacon. A obra de um filósofo, se e quando

acontece, instaura um solo que fundará as invenções locais por vir.

Ela traz consigo a generalidade, a terra ou a atmosfera da própria

história das ciências e a liberdade das artes, a abertura do saber e a

casa da compaixão. Longe de ser produtiva, como infelizmente é

hoje, pelas divisões do saber antigo e comO uma entre elas, a fIlosofia

tem como função engendrar o próximo saber, em sua cultura global,

aquilo que a faz sonhar, esta manhã, com a instruçãO mestiça.

Assim, esta invenção e sua esperança atraem para uma aventura

sem volta, que pode ser descrita em termoS de êxodo e não de méto­

do, de nascimento e de mestiçagem, de errância mais do que de itine­

rário ou de currículo, e de deserto destituído de referências mais do

que de disciplina como espaço orientado. São termos perigosos e

arriscados, que podem ser entendidos como mitos ou poemas para

serem excluídos do pensamento, quando se faz a viagem por cami­

nhos mais seguros, mas que valem como elementos de uma antropo­

logia da descoberta ou de uma ética, melhor ainda, de uma simples

higiene para aqueles que se lançam nesta loucura sem esperança de

recompensa. Cristóvão Colombo inventa as Novas índias; não volta

sobre seus passos; erra, privado de guia, em uma vastidão ao largo,

sem referência: resiste à pressão de seus pares; seu êxodo ignora que

ele vê finalmente uma g1obalidade, à qual se dará o nome de um

outro. Que importa. Ele engendrou um tempo. Há vários séculos, os filósofos clássicos se aplicaram a Regras,

imitadas das dos mosteiros, mas para dirigir o espírito. Ousaria eu

reescrevê-las, para depois perdê-lo, ou para perturbar os jogos do

sujeito ou da linguagem publicitários, da ambição na cidade ou dos

sistemas dominantes? Aprende tudo, primeiro; depois, no momento

certo, lança ao fogo tudo que possuis, inclusive teus sapatos, e segue

simplesmente como estás. Só inventa a inocência mestiça. Se queres

perder tua alma, trabalha para salvá-la, porque a salva, finalmente,

aquele que pareceu perdê-la. Só descobre quem jogou a partida mais

arriscada, mais absurda, mais mortal, partida na qual quem perde

sempre acaba ganhando um outro mundo - o das próprias coisas.

116

,. ,

T

Em qualquer área, os homens de todas as culturas só inventaram

porque sabiam que iam morrer e porque souberam viver e pensar na

sua vizinhança, nossa limitação última e nascente extrema. Lugar

terrível de onde vem toda vida.

A criação resiste à morte reinventando a vida: isto se chama res­

surreição.

Um outro nome para o mestiço instruído

Eu não procuro, acho - e só escrevo se acho. Nada nos meus livros,

em lugar nenhum, é algo de fora, reformado. O que há de mais vivo,

nas pequenas horas da madrugada, do que o inesperado improvável,

tão alerta para o tempo, o achado?

Que aborrecimento é mais maçante que o raciocinador repetiti­

vo que copia ou parece reconstruir, substituindo constantemente o

mesmo cubo? Que economia ruminar o passado! Que preguiça faz

repetir um método! O método procura mas não encontra.

Contudo, leitor, como é bom quando te reencontras num texto,

porque sempre estás recomeçando o mesmo o texto: ao retomá-lo,

pensas compreender, enquanto, caduco, estás sempre coçando o

mesmo lugar. Ao invés disso, quem ouve aquele que encontra?

Porque ele exige muito de si mesmo e de quem o pratica: novo a

cada linha, seu texto não se apóia em nenhuma retomada. Arte mais

difícil do que aquela da melodia infinita que se lança e se arrisca,

errando sobre o caminho que ela mesma inventa e que jamais volta

atrás, cujo salto não se sustenta senão em sua in quietude, exposto,

explorando sem cessar um outro fragmento de terra, tremulando

como o contorno de um estandarte ao vento, seguindo adiante sem

benefício nem ajuda, sempre em estado nascente, alegre, despren­

dida, tortuosa, torturante, estranha ao ouvido, emanada das raízes do

corpo como um vôo de pássaros em torno da ramagem de uma ár­

vore, prolífica, divergente, êxodo aberto que padecem e cantam

aqueles que vão rapidamente de novidades para achados, trovadores,

achadores.

117

Nascido sob um nome secreto, enfim reencontrei meus ances­

trais: escrevo desde sempre COmo um trovador.

o casal genérico da história. Morte e imortalidade

A despeito de seu nome glorioso, a potência que lhe é atribuída e sua

atitude teatral, a criação não pode sobreviver por si mesma. Ela mor­

re sem mecenas e s6 vive graças a ele: Estado, Igreja, empresa ou

particular bem-sucedido. Se ele se desinteressar, ela desaparece.

Donde se tira imediatamente a sua definição: ela caminha mori­

bunda. A filosofia distingue habitualmente a natureza e a cultura,

compreendamos enfim por quê: sempre prestes a nascer, a primeira

se opõe àquilo que não cessa de perder suas forças, enquanto a cultu­

ra luta por sua existência e mOrre de criar. Definição tão justa e tão

profunda que, se por acaso a encontrardes, aqui ou ali, poderosa,

rica, honrada, plena, dominante e gorda, certamente não se tratará

dela, mas de seu simulacro ou contrafação. Em boa saúde ela não

cria, e, pelo contrário, para o fazer, dá a sua vida. Encontrá-Ia-eis por

este sinal que não permite engano: uma perda sem remédio. A cultu­

ra criadora é essa criança frágil que expira entre nós, recém-nascido

em agonia desde o começo do mundo.

Contudo, sobrevive. Melhor, não conhecemos Mecenas senão

por aquele que abrigou, sob seu teto, esta imortalidade em estado

nascente. A criança delicada liberta da morte histórica o mortal afor­

tunado que a salva. E não apenas sobrevive, como não há duração

longa nem mesmo história sem ela, que sozinha detém o segredo de

subsistir.

Eis o doador e o beneficiário: um certamente faz viver o outro,

que faz improvavelmente sobreviver o primeiro. Inútil definir o ge­

neroso sem o recipiendário, nem este sem aquele, porque os dois

formam uma dupla indissociável. Ligados de fato e de direito pelo

dom, mas de maneira assimétrica, um representa o longo termo e o

segundo o curto, este com toda certeza e aquele nos azares mais

raros.

118 r

Virgílio certamente viveu graças a Mecenas e La Fontaine graças

a Fouquet, mas a probabilidade de que os dois sobrevivessem à histó­

ria, graças à fábula ou à epopéia, era muito baixa. Numa dupla assim

reunida e estável no tempo, para o comum e para o raro, um assegura

a passagem presente e como em tempo real, enquanto o outro conta

com a continuidade em seu longo período. Qual deles e como?

De fato a dupla, unida, joga o tempo curto, COm toda certeza,

pelo longo, inesperado. Diante de sua ligação e seu jogo conjunto,

aparece então a morte, ou individual e corporal, ou coletiva, no es­

quecimento das gerações futuras. De mútuo acordo eles lutam contra dois apagamentos.

De fato, aquela dupla não esclareceria a história, uma vez que

compõe a prosopopéia de duas caras com as suas condições: aqui a

fortuna e lá o gênio, nos casos positivos, uma inencontrável e mais

rara ainda a outra, ali a generosidade, aqui a criação, uma insólita, a segunda ainda mais excepcional?

Eis então a cultura e a economia, eis seu laço realizado, em dom

e contra-dom: que experiência crucial, que nos permite observar as

condições elementares da história a partir de um exemplo singular, e

oh maravilha, decidir sobre eles!

Outrora, e não há muito tempo, alguns colocaram a economia

na infra-estrutura da história, enquanto aí nós vemos que ela consti­

tui sua condição apenas imediata. Indestrutível pelo tempo, enquan­

to a economia o decompõe em termos curtos, a cultura fornece a

única e prottmgada infra-estrutura, porque ela e somente ela, por sua fraqueza, a obriga a durar.

Donde a nova pergunta: como pode ser que aquilo que entre nós

se revela como o mais fraco, e mesmo infantil, mesmo moribundo,

em uma perda irremediável, fique e permaneça, teimoso, invariante,

quando nossos corpos se corrompem, nossos bens e nossos poderes

desaparecem da superfície da terra? Como pode ser que a cultura

criadora funde o longo termo da história e sua continuidade, que,

119

paradoxalmente, o software fundamente e condicione o hardware, que o suave sustente o duro? O hardware, duro, fundamenta o soft­ware, suave, para o presente imediato, mas uma vez que o termo curto deixe seu lugar para a longa duração, a relação se inverte: o duro não dura, s6 perdura o mais suave.

Mas antes: por que essa madrinhagem, pela instituição ou por homens ricos, desta suave criança fraca e moribunda? Como explicar

a improvável generosidade - exceto pelo imposto de renda? É que,

deixada a si mesma, a fortuna tende a se reproduzir em fortuna au­

mentada e constrange a não pensar senão em si, porque o comando

só sabe engendrar a hierarquia, a guerra só gera o conflito e a concor­

rência a rivalidade; enfim, essas leis que encadeiam o tempo monóto­

no da história por reproduções idênticas embotam mesmo as peles

mais espessas. Nada de novo sob este sol de ouro. O que se paga

rapidamente aborrece. Compre então dez casas, domine cinqüenta

engraxates, ostente vinte anéis preciosos, instale-se em tal lugar céle­

bre, que interesse terá em conquistar mais um? Não encontrará senão

o mesmo, ou quase. A facilidade rumina por enfado da repetição e,

embora infinit~ a vontade de poder, que nada produziu além da

desgraça dos homens, só encontra diante de si a repugnante obediên­

cia, relação que nos leva de volta ao lado dos animais. Eles comem no

zôo, os grandes deste mundo. Donde a busca de algo bem diferente

do ouro ou da dominaçãO, produtores exclusivos de monotonia.

Novamente, o que é a cultura criadora? Com freqüência, de ma­

nhã, Mecenas recebia Virgílio, que lia para ele, em voz alta, o que

escrevera na véspera, um e outro de súbito vivendo essa novidade. A

criação inventa as notícias contando hoje o que ignorava ontem -

meu 'ofício consiste em escrever e dizer não o que sei, cansativo,

morto e passado, mais que perfeito, mas, ao contrário, o que não sei

e que me espantará - e o mecenas no alvorecer corria para as notí­

cias, não para aquelas gritadas todos os dias, irritando nossos ouvi­

dos, outros crimes mas sempre os mesmos, outros escândalos, guer­

ras, catástrofes, tomadas de poder, ainda e sempre os mesmos, velhas

120

repetições monótonas de um mundo dedicado à dominação itera­

tiva, mas exatamente para o imprevisível do artista, o inesperado e, rigorosamente, o improvável.

Nem Mecenas nem, sobretudo, Virgílio sabiam na véspera o que seria dito no dia seguinte.

Durante todo o tempo, essa dupla produziu um tempo inédito.

A cultura criadora vive no novo e pode se definir: a possibilidade a

mais baixa, logo a perda irremediável, a maior raridade. Nada menos

monótono nem mais inestimavelmente precioso: sempre em estado nascente.

A velha língua francesa, sob esse aspecto mais vivaz e robusta que

aquela que usamos desde então, chamava trouveur rachador] a esse

produtor de improvável novidade: trouvere no Norte, no Sul trou­

badour. Que lástima! Não conhecemos nada mais que chercheurs

['buscadores']. O criador não procura, que diabo!, ele encontra; e se

não encontra, que faz então aqui, poluindo a cultura com seus res­sentimentos?

Essa imprevisível invenção se chama paz, que segue a invenção e a condiciona. A paz, mas também a vida.

O mecenas faz o artista viver no mundo oposto àquele em que o

artista faz sobreviver o mecenas. Quero que sobreviver não signifique

apenas prolongar a existência, mas também transfigurá-la. No reino

do pão e da água que o generoso dá ao criador, o tempo vai da

esquerda para a direita, do nascimento para a morte normal, em

direção à probabilidade maior, à certeza única do fim; no outro mun­

do criado pela obra que o 'achador' entrega ao doador, o tempo vai

da direita para a esquerda, da morte para o nascimento, em direção

ao improvável, à maior das raridades, à espantosa novidade. O artista

e o mecenas se encontram na intersecção desses dois tempos.

Eis porque eu disse: a criança. O criador, morrendo, vai em dire­

ção ao nascimento e à infância, num outro sentido do tempo. Eis

porque a obra não se gasta e resiste à monotonia da história, cujo

fluxo Corre em direção às grandes probabilidades da potência, da

121

glória e da morte. Indo para a infância e o nascimento, ela está sem­

pre prestes a nascer, como a natureza geórgica e bucólica, cujo parto

Virgílio anunciava a Mecenas todas as manhãs. Eis como a cultura se

torna uma segunda natureza.

O criador nasce velho e morre jovem, ao contrário daqueles,

realistas, que, tendo, como se diz, os pés sobre a terra, sabem nascer

crianças e morrer caducos, como todo mundo. Um dá ao outro o dia

que passa, e o outro lhe devolve a juventude indestrutível.

Esses dois mundos que giram em sentidos diferentes e esses dois

tempos se ignoram e se apreciam raramente. Eles s6 têm como lugar

comum e improvável essa dupla contingente, unida pelo dom.

É tão difícil receber quanto dar, pois todas as culturas exigem,

expressamente ou de forma tácita, um contra-dom. Prefiro chamá-lo

de perdão. Como retribui aquele que devemos chamar de parasita a

quem o mantém, que lhe oferece abrigo, um teto e de comer? Pala­

vras vãs, vento, essas coisas que nada valem, e que, por isso, não se

compram.

A troca se solda então pelo desequilíbrio: tudo contra nada; eis

um contraste leonino. Ou melhor: pelo desvio do material e da infor­

mação. O balanço é feito então, à medida que se avança em moder­

nidade, e nele aprendemos a estimar esta última, que a teoria define

justamente pela improbabilidade, a maior raridade.

Mas existe a informação corrente e a informação rara. Tudo é

jogado, então, naquilo que eu chamaria risco de raridade. Para dom

raro, contra-dom inencontrável; encontram-se poucos mecenas, é

verdade; mas criadores, menos ainda.

A pesquisa de maior repercussão faz então fracassar, com toda

certeza, qualquer tentativa de mecenato: o que faz mais barulho se­

gue sempre a moda e não saberia precedê-la; ora, o que anuncia um

novo tempo chega sempre como um sopro sutil de vento, suavemen­

te, sem grande estardalhaço.

DO?de este resultado perigoso: o interesse propriamente cultu­

ral, poderosamente criativo, é com freqüência - nem sempre -

122 .I..

I

1

inversamente proporcional às paixões do momento e às vezes - nem

sempre - corresponde àquilo que não apresenta nenhum interesse.

A análise se equivale, tanto em relação à obra de arte como à pesquisa

científica: pode acontecer que se recuse inteiramente o crédito a de­

terminado físico, aparentemente envolvido com assuntos sem inte­

resse, que, dez anos antes, recebeu o prêmio Nobel por uma invenção

ímpar, justamente no mesmo domínio. Não existe garantia nem cer­

teza para a criatividade; mas, inversamente, quando ela é bem-suce­

dida, reembolsa mil vezes a garantia e o seguro, por um longo prazo, ao doador, eventualmente já morto.

Assim, o contra-dom se reporta a um desafio quase sempre per­

dido, mas que compensa infinitamente, mais que nenhum outro,

quando se chega a ganhá-lo. Esse ganho pode se definir muito rigo­

rosamente como o de um seguro de sobrevida, pois se trata de uma

outra vida, da vida transfigurada, que tenho tendência a considerar

como a única vivível, pois se trata da imortalidade; volto, por meio

dela, à continuidade da história. Virgílio tornou Mecenas imortal e o

carrregará na sua garupa enquanto a humanidade sobreviver; dez mil

mecenas salvaram cem mil maus rimadores da fome que eles merece­riam abundantemente.

Mas que importa a celebridade! Só conta o tecido da história que

ela mostra e constitui. Eis porque, quando a dupla entrou em cena, chamei-a de genérica.

Ao longo da continuidade assim tecida, tratemos do nosso tem­

po. Daqui para diante, cadeias deterministas fornecem à sociedade

dita de cq,nsumo os produtos cujo valor freqüentemente colapsam

num intervalo de tempo fulminante: nOve décimos, em volume e em

peso, do que acabamos de comprar no supermercado vão diretamen­

te para o lixo, e neste encontram o jornal e a quase-totalidade do que

recebemos pelo correio a cada dia. Consumo ou consumição deno­

tam essa deriva viva do valor. Assim, quanto mais um país hoje pros­

pera e se desenvolve, mais depressa ele nos envia quinquilharias des­

tinadas aos detritos. A um objeto que circule, pergunte por quanto

123

você o liquidará amanhã ou em cinco anos. Estamos perdendo a

raridade. E, portanto, o longo termo, pelos mesmos atos e ao mesmo

tempo. O Império Romano durou dois mil anos, a Idade Média desde a

Cristandade um milênio, o dominium britânico sobre o mundo me­

nos de cem anos, o reinado americano começa na última guerra e

iniciou seu declínio já há uma década. Quanto tempo governarão os

cinco dragões da Ásia? Devemos pensar o mecenato em meio às con­

dições reais que a história e a economia impõem ao valor. Estas so­

frem uma erosão proporcional à rapidez das circulações: uma e outra

crescem verticalmente. Donde esses rendimentos decrescentes.

Proponho que se conserve a denominação de mecenato para os

auxílios culturais puros, os dons concedidos àqueles que a sociedade

atual, nem menos nem mais que as precedentes, sempre priva de

todos os bens até que morram; e que se denomine apadrinhamento

ou, pior, sponsoring, aos dons que recaem, por uma troca rápida, em

publicidade, em nomes próprios sobre bandeirolas, para o esporte

ou a ciência, atividades nobres mas quase tão ricas quanto os doa­

dores, uma vez que, pela inovação, a pesquisa precede e pilota a

própria economia. O contra-dom ultrapassa mesmo e em tempo

real o dom quando o veleiro ganha a corrida ou quando a descober­

ta acelera a produção esgotada. Nesse momento de deriva viva para

a quinquilharia, a publicidade, contra-dom informacional, com fre­

qüência vale mais dinheiro que o mau produto por ela elogiado in­

solentemente. Um dom para um contra-dom mínimo, eis o que é o mecenato.

Só esse mínimo sobe a corrente poderosa que perde a raridade. As

palavras francesas gré [agrado], grâce [favor] ou gratuité [gratuida­

de 1 exprimem esta seta simples da troca sem espera ou exigência de

retorno. A lógica do gré difere daquela da troca. Determinista, esta

segue a circulação rápida e a baixa fulminante que acabo de evocar.

Aquela espera e joga com a raridade. A troca calcula e procura ga­

nhar, o dom gratuito brinca de quem ganha perde e de quem perde

ganha.

124

,

A regra do mecenato se assemelha bastante àquela que sigo em

meu trabalho cotidiano, aquela que todas as pesquisas respeitam, que

leva a todos os achados. Ei-la: quem quer salvar sua alma aceita per­

dê-la, e se tudo o que queres é salvá-la, por certo a perderás. Dupla

aposta contrária à prudência, visando ao poder e à glória. Uma se

debate na troca e a outra se lança para o dom e seus puros acasos.

Destes dois espaços de jogo diferentes, subitamente os dois tempos

vão nascer e bifurcar-se.

O mecenas encontra um abade Delille, pobre rimado r, ou Vir­

gílio, imortal, um pintor de domingo ou um Braque ou um Rafael. O

númerO dos gênios morrendo desesperados, comparado ao dos im­

potentes glorificados, mostra que a escolha, difícil, é como loteria, da

qual se tira esta raridade que perdemos. A busca aleatória de uma tal

improbabilidade, com o máximo de informação, me parece o papel

atual e o trabalho positivo do mecenas, que restitui então a nosso

mundo, às voltas com o banal, o improvável esquecido.

Então, estocasticamente, o dom pode se inverter: o pagador sal­

da em trocados, em moeda de rápido desgaste, uma obra de duração

trans-histórica. E o mecenas conserva seu nome unicamente pelo

artista. Por acaso ou loteria, o contra-dom vence o dom, infinita­

mente.

Esta inversão da troca e do gré inverte o próprio tempo que, ao

invés de se gastar, de ter o valor corroído, o faz crescer verticalmente.

Pergunta: que valor nos parece hoje, nestes tempos sem cultura e de

criação quase nula, o único que resiste a qualquer inflação e que, ao

contrário, aumenta? Em que objeto investir? Resposta unânime dos

especialistas: a autêntica obra de arte. É o que eu queria demonstrar.

Mas para a autenticidade em tempo real, aqui e agora, você não

encontrará nenhum avaliador. Trabalhe, então; arrisque-se: loteria

para o audacioso, para quem, diz-se, a verdadeira fortuna às vezes

sorri.

Imagino que Virgílio, um belo dia, recitou diante de Mecenas a

página de seu poema em que Enéas desce aos infernos. Quando o

125

silêncio substituiu a música do dístico, o ministro perguntou se era

preciso que o herói morresse para entrar no outro mundo. _ E depois - acrescentou - como conseguiu escapar? Achas

que ele ressuscitou? _ Não sei - respondeu Virgílio - se ele morreu ou não mor­

reu com este golpe, mas certamente o risco terrível desta visita infer­

nal condiciona a existência e a beleza das obras. Não pode haver

criação verdadeira sem uma viagem assim, dentro do subterrâneo

negro. _ Explique-me. então! - exclamou Mecenas, angustiado.

_ Aquele que consegue se safar da sombra, como eu não sei -

retomou o autor da Eneida -, chame-o de Enéas, como eu fiz, ou talvez Homero, que aqui recordo, e cuja Odisséia fez Ulisses descer

aos mesmos lugares. Evocamos suas sombras pela magia do ritmo:

Enéas enfim escapa do abismo, Homero dele sai, Ulisses também e

ainda Orfeu, e antes deles seu ancestral milenar, o arcaico Gilgamesh,

o primeiro, no Crescente Fértil, pelo menos para nossa memória,

partiu com passo leve em busca da imortalidade. Da caixa negra em

que decidiram um dia afundar, eles se libertam, um após o outro,

enfim imunizados contra o esquecimento, renascentes, ressuscitados,

os únicos verdadeiramente imortais, em virtude de seu suplício. Eis

como, pela recriação heróica, a cultura se torna segunda natureza, a

verdadeira, aquela que compreende o que é nascer, isto é, sair ver­

dadeiramente do nada. Só a obra bela nos conduz à juventude e s6

a beleza chama a humanidade para seu presente, vivendo sempre

recriada. _ Mas - continua o ministro -, que quer dizer esta cena ou

esta série múltipla, que significa esta sucessão, paralela à história de

nOSSOS saberes, longa teoria de nomes ilustres desenrolada antes de

Enéas nos séculos dos séculos, Gilgamesh, Orfeu, Ulisses, sem esque- '

cer Hércules e reseu, semideuses que, não na história mas para a

lenda, se aventuraram também nesses subterrâneos inomináveis?

_ Que se o gênero humano não teme a morte em seu conjunto

e sua história - diz Virgílio com paixão -, deve isso aos raros heróis

126

1. r

que a enfrentaram de perto, para dela voltar e soldar aS gerações

umas às outras; podemos chamá-los de nossos passeiros: um pouco

como cada um de nós faz a travessia do sexo para que os filhos des­

pertem após o seu desaparecimento. Assim como o amor tece nosso

vínculo local e individual, corpo a corpo e na genética, a arte realiza

essa transmissão sobre a mais longa duração, pela aceitação de uma

morte pessoal que funda a história, da mesma forma que a nossa

própria condiciona o nascimento de nossos descendentes. Sentimo­

nos vivos e unidos, no tempo, pela e na obra bela, aquela que, por um

lado, integra todo o saber e, por outro, não teme o confronto com o

mal, a dor, a injustiça e a morte.

Mecenas, de pé, entusiasmado com esta visão longínqua, per­

gunta então:

- Mas, depois de nós, depois de ti, que tiras do nada esta página

memorável?

- Imagino - continua Virgílio - e espero ou profetizo que a

passagem não se interrompa; quem sabe se o futuro não assistirá o

advento de uma religião (esse entusiasmo diligente que resiste à ne­

gligência) fundada em parte sobre essa idéia que ninguém jamais

criou sem se submeter ao mais grave perigo; ela se encarnaria num

homem que se poderia chamar de divino e que renasceria depois de

ter aceito morrer pelas mãos dos mais poderosos entre seus contem­

porâneos. Depois dele, as obras de música, pintura, os poemas, as

estátuas celebrarão durante milênios sua ressurrreição, que começará

a história de sua era, a era da boa nova, que consiste em colocar nos­

sa morte não mais à nossa frente, como suportada, mas finalmente

atrás, verdadeiramente esquecida. Porque também ele sairá dos In­

fernos.

- Eu queria - é ainda Virgílio quem fala - que um gênio que

vai nascer na Itália, não longe daqui, faça, mais tarde, com que eu

mesmo desça com ele a esses lugares abomináveis, em companhia de

uma mulher tão feliz com essa viagem que será chamada de Beatriz.

Eu o ajudarei a entrar, mais uma vez, loucamente, depois a sair,

promotor de uma obra bela. Não, acrescentou, sonhador, não posso

127

conceber que essa sucessão heróica se interrompa. Nossa história

fundamental segue a dos nossos predecessores, que mostram a via

mais difícil e a exigência radical. A arte sai da tumba. Se a semente

não morre, não trará belos frutos. Não te estou falando de nada mais

que de uma lei da vida: mas as leis da mais longa não são enunciadas

como as da mais breve, a dos nossos corpos limitados. Sem dúvida

existe na carne vivente um programa para esta lei, e eu escrevo na

minha linguagem, com aqueles outros, as atas da história.

E Virgílio finalmente se calou.

Quem o sucedeu? Em nossos museus, multidões comemOram a

ressurreição de Van Gogh ou de Gauguin, mortos de miséria e fome,

sem nenhuma ajuda, e celebram esses viventes, espantosamente pre­

sentes, com mais intensidade e fervor que aos grandes que persegui­

ram a glória, ricos, poderosos, conquistadores, ou decapitados entre

o troar que anuncia os tambores do poder, parcos de obras e de

posteridade. Sem o formular, ela sabe, ela sente que descende, de

fato, de convencionalistas ou de marechais, mas mais ainda de um

indigente perdido nos arquipélagos do Pacífico, como lean Valjean se

perdeu nos esgotos de Paris, em busca da meSma beleza que aquela

suscitada por esses nomes e esses corpos que sustentaram o tempo.

Nós ignoramos o nome do miserável que, nesse mesmo momen­

to, dá sua vida à obra que nossos netos consumirão para sobreviver:

porque se o apetite de pão às vezes se acalma, esta fome, espero,

nunca se apaziguará. O que é a cultura, finalmente? A ressurreição

irregular e regular daqueles que desafiaram a morte para criar, que

retornam para costurar a tradição de ontem à vivacidade de hoje.

Sem eles, não há continuidade, não há imortalidade da espécie hu­

mana. Sem seu renascimento não há história.

A quem, então, chamar mecenas? Na junção onde a longa dura­

ção encontra a vida breve, nos lugares raros onde a história se projeta

sobre o instante, alguém empurra a pedra tumular para que um fan­

tasma renasça ou retorne, aquele que nos visita hoje, como Ulisses e

Gilgamesh visitaram Mecenas pela voz de Virgílio, como este visitou

128

Dante e lhe deu o ramo de ouro, como a sombra de Beatriz flutuou

sobre nós por um momento, fantasma evanescente, indefinível, pres­

tes a desaparecer entre as lufadas de ar leve, mas que sozinho tem a

qualidade, vigor generativo e capacidade de nos reunir, na transmis­

são humana global e para a semeadura inesperada de criações fortes, nesses dias sombrios.

Ei-Io, incandescente; reengendrado pela sabedoria e pela morte

dos homens, ei-lo, espírito, língua de fogo, semente de sóis.

129

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lei do rei: nada de novo sob o sol

A temperatura é apenas uma variável do clima de um lugar. Mil

outros elementos ali mudam juntos, ligados entre si: o relevo e a

altitude, a umidade, a espessura do manto de terra arável sobre a

rocha, a riqueza e a densidade da flora e da fauna ... Equilíbrios locais,

estáveis ou lábeis, somam-se a esses fatores. Suponhamos que uma

das variáveis, a temperatura, decresça ou se eleve fortemente, exaspe­

rada por qualquer motivo.

O frio advém e ganha: caso se torne terrível, dir-se-á que ele

reina. Ganha e reina. Ele não transforma moderadamente o equilí­

brio frágil alcançado pela fusão composta dos numerosos fatores,

mas mata ou recobre sua diversidade. O inverno ganha a batalha: rei

a partir de então, sozinho comanda os ventos, detém as águas, nivela

o relevo, cobre a terra e os mares, expulsa ou rarifica a flora e a fauna,

impõe certas espécies, embranquece totalmente o espaço e o volume:

uma única lei vitrifica a imensidão; nada será jamais novo sob essa

luz distante e gelada, ao longo dessas planícies pálidas. A monotonia

não se repete diante de um olho indiferente, fonte de luz sem chama

diante da qual o inédito desapareceu. Quando a uniformidade apare­

ce, um sol todo-poderoso, ausente ou presente, a produziu, de fato.

Frio. Nada de novo sem o sol.

Que se inverta a tendência: ganha, reina o calor, que desertifica

o espaço, expulsa ou deixa famintos os animais e as plantas, cobre a

terra de areia e evapora as águas do mar, arrasa as colinas e preenche

os vales, dita sua lei única aos ventos. A chama destrói, com sua

ardência, o volume: na imensidão, sua ordem comanda.

133

Reina a lei do frio nos países do Norte, a da chama governa o Sul,

nada de novo com solou sem ele. A sabedoria de Salomão coloca-o

tão distante que ele observa, indiferente, a dissolução que a insolação,

entretanto, produziu. Será que ela ocorreu sob seu olhar? Decerto,

mas ela se faz sobretudo por sua ação. Basta que ele se retire para que

os bancos de gelo avancem; basta que exploda. e o deserto acre se estenderá no espaço. Inversamente, quando faz falta o novo, procure,

se você não está morto, o sol não faz mais do que se ausentar.

Nada de novo pelo sol.

Nos países temperados, onde a temperatura se suaviza, a aurora

se põe e o crepúsculo se prolonga, sob o pudor da manhã. Ressur­

gem em massa os outros fatores: faz tempo bom e fresco, seco e

úmido, calmo e ventoso, luminoso, claro-escuro, surgem pinheiros,

palmeiras, fauna em quantidade: tudo se mostra ao mesmo tempo.

A temperatura não atinge o máximo, o espaço nunca se liga a uma

única e excessiva coação. Essa mistura variável poderia ser chamada

de tempo, palavra que significa a mistura ou temperamento e com a

qual se qualificam os países ditos temperados, que, por esse motivo,

eu o adivinho, em troca inventaram a história, ou melhor, uma

seqüência temporal - temperada, como uma gama - de aconte­

cimentos.

A novidade irrompe se o sol se retém. Se as águas se retêm. Com a cheia, o dilúvio começa e comanda,

até que tudo se abisme sob o tecido de luto das águas. Mais uma vez

uma única lei: a transgressão marinha, reinante, engole qualquer de­

talhe sob o nível uniforme da água sedosa.

Se uma espécie ou uma variedade viva se retém. Imagine a Terra

coberta de milhões de lagartos mais ou menos idênticos ou uma praia

interminável sob caranguejos cinzentos movendo-se sem deixar e$­

paços vazios, todos no auge do crescimento vertical da reprodução.

Ou, ainda, o espaço invadido por uma rede inextrincável de lianas

entrelaçadas, de uma única família, ou de ratos com certo odor ou de

formigas com certos hábitos políticos. O que comerão esses ratos,

esses lagartos, quando tiverem ganho a famosa guerra pela vida, de

134

modo que passarão a viver num ambiente exclusivo de ratos ou de

lagartos? Comerão lagartos?

Se os homens se retêm. Nós arrumamos o mundo só para nós,

animais daqui para diante exclusivamente políticos, inexoráveis ven­

cedores da luta pela sobrevivência, encerrados para sempre na cidade

construída sem limite, coextensiva ao planeta: quem ainda poderá

sair da cidade chamada Japão ou da estufa chamada Holanda? Catás­

trofe: quando as estufas cobrirem a terra. Entre as pedras e o vidro, os

homens não terão mais que o vidro e as pedras debaixo deles para

construir e, diante deles, para viver, um mundo finalmente vitrifi­

cado, submetido às suas próprias leis. Vivendo de relações, não co­

mendo nem bebendo nada além de seus próprios laços, voltados fi­

nalmente para a política e só para ela, enfim sós, longas lianas em

redes atadas de comunicação, grandes colônias de formigas agitadas,

lagartos aos bilhões. A espécie homem ganha, vai reinar, não descon­

fia de si própria, não se retém nem reserva seu poder, sua ciência ou

sua política. A hominidade deve aprender essa retenção, pudor e ver­

gonha; e sua língua deve aprender a lítotes; e sua ciência deve apren­

der a reserva. Perseverar incessantemente em seu ser ou em seu pode­

rio caracteriza a física da inércia e o instinto das feras.

Sem dúvida a humanidade principia com a retenção.

Se Deus se retém. Deus é o único ser ao qual uma aventura assim

já sucedeu. O monoteísmo tinha destruído os deuses locais; não escu­

tamos mais as deusas rirem entre as fontes, nem vemos os gênios

aparecerem sob o arvoredo. Deus esvaziou o mundo, o grande Pan,

parece, morreu. Quando o sol apareceu do lado do Oriente Médio, as

estrelas empalideceram, a profusão de colorido se fundiu no braseiro

da unidade. A partir daí, nada mais pode aspirar à novidade sob a

tocha (Ia omnitude: poço total dos pensamentos verdadeiros, condi­

ção toda-poderosa e criadora, pré-formação de todo o possível, en­

cerramento sob a lei, Deus não se retém.

Engano. Deus se retém de qualquer eternidade. Limitado - lhe

é possível? - pelo poder do mal, dual, portanto, e trino, cercado de

135

múltiplos mensageiros, serafins e arcanjos, potências e dominações,

sobrecarregado dia após dia pela pequena glória dos homens que

atingem a beatitude ou a santidade, estorvado pelos mártires, pelas

virgens e pela Virgem, Deus se reserva ou, por si mesmo, retém seu

poder. A história santa de Deus não fala da sua solidão e mostra, ao

contrário, sua retenção, sua suspensão, nossas liberdades. Daí sua

benevolência, sua tolerância, sua doçura ... e se Deus não aderisse ao

monoteísmo estrito? Que diabo, Ele criou o mundo e, por isso, muita

gente aspira ao comando! Talvez Satã manifeste a clemência de Deus. Talvez o mal existen­

te demonstre a sua bondade. Talvez a existência de demônios malva­

dos, como a dos anjos e querubins, como a dos santos, da sagrada

família, bons e maus espíritos na mesma linha enfim, e pelo menos

uma vez com a mesma função, talvez a existência de todos estes im­

pedimentos que Deus tolera ou que nós impomos à sua ubiqüidade,

inclusive a sua própria encarnação, cantem-nos sua benevolência e

sua misericórdia, todas as latitudes que ele oferece. Temos a agrade­

cer a Deus pelo muito que se reteve aquém do monoteísmo. Nossa

sobrevivência se deve talvez a esta reserva. Quem sabe Deus só criou

o mundo graças à sua abstenção? Que importância teríamos se ele

não se retivesse? Comovido pela tradição, acreditei durante muito tempo que o

monoteísmo houvesse morto os deuses locais. Chorava a perda das

hamadríades, pagão como todos os camponeses meus pais. A solidão

em que se encontravam as árvores, os rios, os mares e os oceanos me

dilacerava, eu sonhava em repovoar o espaço vazio, ansiava dirigir­

me aos deuses destruídos. Abominava o monoteísmo por esse holo­

causto das divindades, que me parecia uma violência integral, sem

perdão nem exceção. Incapaz de pensar no mais recente, por est~r

ligado à batalha milenar dos deuses, a essa gigantomaquia que nos

servia de modelo. Vejo, ao contrário, que Deus acolhe os deuses, que não desce seu

braço sobre o diabo, uma vez que Satã, evidentemente, sempre se

apropria de todos os poderes do mundo e Ele nunca protesta; obser-

136

1 l

vo que se deixa importunar pelos anjos e aceita a concorrência da

suave multidão de santos, que até mesmo desaparece no tumulto de

asas, auréolas e mantos, que mal podemos distingui-lo entre as pal­

meiras. Descubro que Deus é bom e talvez, quem sabe, infinitamente

fraco. Ele se retém, com pudor e vergonha. Um dia até se deixou

matar sem resistência apreciável. Na mesma hora, passei a rir da

velha gigantomaquia dos pequenos deuses locais, sempre, como nós,

em pé de guerra. Sinto-me agora um pouco menos pagão.

Uma lei única, pretensamente geral, resulta da expansão forçada

de um elemento local que perde a contenção, se algum dia a teve, que

esquece a medida, se é que a aprendeu, com a intenção de fazer que

o resto desapareça.

A madrugada apaga as estrelas, nada no céu será novo depois

dela. Ora, o sol é apenas uma anã amarela cuja aurora esconde as

gigantes azuis. Contudo, as supergigantes continuam girando, as ga­

láxias também. Tão mais gigantescas, ardentes e coloridas. A anã

perdeu a medida e esqueceu a contenção. E, contudo, as outras gi­

ram.. A expansão da lei única de uma estrela muito pequena se chama

aurora.

Os gases ocupam por si mesmos o volume que se oferece diante

de sua pressão expansiva. Ninguém jamais viu um gás manifestar

contenção, deixando uma parte do espaço vazio. A barbárie segue a

lei única. A lei da expansão. A dos gases. Eles se propagam. O bárbaro

se espalha. A violência espalha o sangue, que se espalha. A pestilência,

a epidemia, os micróbios se propagam. O ruído, o estrondo, os ru­

mores se espalham. Assim a força, o poder, assim os reis. Assim a am­

bição. Assim a publicidade. É preciso dizer o nome de todas as coisas

que se espalham tão amplamente como um gás, de todas as coisas que

se expandem, que ocupam o espaço, que ocupam o volume. O mal

corre, eis sua definição: ele excede os seus limites.

E se o sábio solar se reduzisse a um anão amarelo? Desses peque­

nos, que se exibem com ruído para ocultar os supergigantes, azuis e

silenciosos?

137

Quem, ao contrário, cantará o pudor da cultura, a vergonha da

verdade, a lítotes da bela língua, da sabedoria a contenção? Passa e

falta a excelente qualidade: não há belo decote sem defeitos no om­

bro. Faltas e defeitos exigidos pela verdade, pela beleza, pela bonda­

de, decerto, mas também pela vida:

Nós a devemos à contenção de Deus, criados que fomos nas

margens de Sua reserva. Nós a devemos também ao conjunto de

faltas deixadas pelos outros viventes, a terra, a atmosfera, as águas e

as chamas, que por sua vez devem a existência às reservas marginais

que nós lhes deixamos. A morte impõe sempre a lei. O nascimento esconde seu estábulo

nas margens do não-direito. O próprio da natureza é a contenção.

Nada de novo nasce se algum sol exasperado o impede.

A obra nasce numa cavidade retida.

A moral exige primeiro essa abstenção. Primeira obrigação: a

reserva. Primeira máxima: antes de fazer o bem, evitar o mal. Abster­

se de todo mal, simplesmente se reter. Porque também, como o sol,

ao expandir-se, o bem se transforma depressa em mal. Essa primeira

obrigação condiciona a vida, cria uma área de emergência de onde

virá a novidade.

O novo pode nascer sob esse claro-escuro.

O homem gentil se retém. Ele reserva alguma força para reter a

sua força, recusa em si e em torno de si o poderio brutal que se

propaga. O sábio desobedece então a lei única de expansão, não per­

severa sempre em seu ser e pensa que erigir sua própria conduta

como lei universal define tanto o mal como a loucura.

Assim, a razão busca não mais se submeter a um império, em

particular àquele de sua própria expansão. Ela reserva alguma razão

para reter a sua razão mesma. O homem gentil e racional pode por­

tanto desobedecer à razão, para que nasçam margens em torno dele,

com vistas à novidade. Ele inventa a boa nova. Achador.

Se o sol, se as águas se retêm, se as espécies vivas reservam sua

potência, se freamos a expansão de nossas razões. Deus se absteve.

138

,

L I

1

Senão, ele teria ficado só. Como ele mal se distingue na densa multi­

dão de santos e anjos, quem O encontrou O busca ainda, fragmenta­

do ainda na Trindade. Ele se esconde e se deixa invadir. Sua ausência

no espaço e na história significa sua contenção.

A boa nova nasce à meia-noite: sem sol.

Deveríamos nos dissimular um pouco sob as árvores e os juncos,

abrir nossas políticas aos direitos do mundo. Deveríamos nos reter,

cada um, sobretudo nos abster juntos, investir uma parte da potência

na suavização de nossa potência.

Humano é quem não desce sempre o seu braço sobre os fracos,

com dureza, ou sobre os fortes, com ressentimento, mesmo sobre

os que são ostensivamente maus. A humanidade torna-se humana

quando inventa a fraqueza - a qual é fortemente positiva.

Perseverar sem trégua em seu ser, ir mesmo além de sua perseve­

rança completamente desenvolvida, ultrapassar conservando-a, eis a

conduta da loucura. A paranóia poderia mesmo se definir pela ex­

pansão de um traço local exasperado, vitrificando o espaço mental

para não deixar nenhum espaço ao crescimento de uma outra variá­

vel. Presente, um psicótico erradica qualquer outra presença, da mes­

ma forma que a psicose tudo nele desbastou. Real, imperial, solar, ele

persevera em seu ser, se expande, converte tudo o que o cerca. A pro­

pagação da patologia ultrapassa tudo aquilo que encontra diante dela

e o absorve enquanto se conserva. Nada de novo sob essa loucura.

Temos dificuldade em suportar essa psicose quando imposta por

um indivíduo, mas às vezes lhe damos as nossas vidas quando ela se

torna coletiva. Nossas condutas sociais traduzem com freqüência

doenças em modelos gigantes ou adicionam muitos átomos ou ele­

mentos que, tomados separadamente, se reduzem ao mórbido. A

loucura, a grande, sempre parece, mais ou menos, com a conduta de

quem quer ser rei e passa a se identificar com o sol. O louco que se

toma por Napoleão não engana o povo. Ora, nunca foi dito que se

engana aquele que acredita em si. Foi mesmo preciso que um dia um

geômetra corso acreditasse nisso até o fim. O coletivo se reúne e se

139

reconhece em torno do potentado que procura ser visto como verda­

deiro. Se consegue, ei-Io coroado imperador; se fracassa, é chamado

de louco. f: bem fina a parede que separa esses dois momentos deci­

sivos. Eis, em todo caso, uma variável singular, que tenta se expandir

para fora de seu pequeno nicho, que persevera com todas as suas

forças ou se ultrapassa, enquanto se conserva. Para definir a loucura,

não tema empregar as palavras metódicas da filosofia.

A loucura se desenvolve segundo a mesma lei de expansão que

aquilo a que aspiramos sob o nome de razão. Esta quer invadir o

lugar da mesma forma que qualquer outra variável, ou qualquer ou­

tra desrazão. Razoável significa a contenção, aquém da capacidade,

da própria razão, de modo que se chama assim ao indivíduo que nem

sempre nem em todo lugar tem razão e que não se aproveita disso em

relação àqueles que nunca têm razão nem àqueles que, a rigor, po­

dem ter razão algumas vezes. ínfima e vizinha de zero é a probabili­

dade de ter sempre razão sobre tudo e sobre todos.

O pensamento começa sempre quando o desejo de saber se de­

pura de toda compulsão a dominar. Criemos nossos filhos na vergo­

nha da razão, para que eles sintam pudor dessa compulsão. Entenda­

mos como razão a proporção: ela mede a quantidade ou o volume de

um elemento misturado em uma solução. Quanto há de água neste

vinho puro? Nome que se dá também ao coeficiente de propagação

em uma seqüência ou série, a razão se veste de proporção. Uma não

anda sem a outra; ora, não há razão nem proporção sem mistura; a

razão razoável rirá então da razão pura, como de um oximoro, tanto

ao mergulhar nos corpos misturados, como ao nos ensinar que tudo

não é, e está longe de ser, sempre e em toda parte como o que ela

conta. Como podemos fazer dela uma idéia expansiva e homogênea,

que a torna uma loucura, exatamente o oposto de uma proporção?,

Se a razão se retém. Ela nasce sob a denominação grega de logos,

relação ou proporção, quando Tales descobre, ao pé das pirâmides,

que as grandes se equivalem à pequena seguindo uma mesma relação.

Queops e Quéfren, faraós imponentes, pela primeira vez se retêm

diante de Miquerinos, que por sua vez se reserva diante do corpo do

140

,

,

_.

geômetra, de pé, livre e orgulhoso, cuja estatura insignificante proje­

ta, sob o sol, uma sombra semelhante sobre as três sombras enormes,

seg'undo a mesma razão. Tales inventa a ciência na penumbra, fora

das loucuras solares dos reis.

Eis o novo à sombra do sol.

Então a novidade se ergue a cada minuto do dia ou da noite: esta

fecundidade ininterrupta do tempo, inesperada no deserto seco e

ardente, nós a chamamos história das ciências, que equivale à das retensões da razão.

Se a ciência racional se retém. Organizamos meticulosamente

um mundo onde apenas o saber canonizado reinará, espaço que cor­

re o risco de se assemelhar de muito perto a uma terra coberta de

ratos. Unificada, louca, trágica, a ciência ganha, logo reinará, como

reina e ganha o inverno. Excelente o saber, decerto, mas como o frio:

quando se mantém fresco. Justa e útil a ciência, certamente, mas

como o calor: se permanece suave. Quem nega a utilidade da chama

e do gelo? A ciência é boa e até mesmo, estou seguro, mil vezes me­

lhor do que outras coisas também boas; mas se pretende ser única e

completamente boa, e se age como se fosse assim, então ela entra

numa dinâmica de loucura. A ciência torna-se sábia quando se retém

a si própria de fazer tudo o que pode fazer.

Por mais judiciosa que uma idéia se apresente, ela se torna atroz

se reina sem partilha. Seria perigoso que as ciências duras se fizessem

passar pela única forma de pensar. Ou de viver. Poder-se-ia conceber

que as ciências se tornassem sábias. Bastava-lhes aprender a lítotes, a

reserva, a retenção; o conteúdo de uma idéia importa um pouco

menos do que sua conduta, o valor da ciência é avaliado por seu

desempenho tanto quanto por sua verdade; que um julgamento tem­

pere o outro. Sim, o que importa o rigor de um teorema ou sua

profundidade, se ele acaba por matar os homens, ou faz pesar sobre

eles um poder excessivo?

A sabedoria dá a alna de medida. O temor da solução unitária

significa o começo da sabedoria. Nenhuma solução constitui a úni-

141

ca solução: nem tal religião, nem tal política, nem tal ciência. Resta

a única esperança, de que esta última possa aprender uma sabedo­

ria tolerante que as outras instâncias jamais souberam aprender e

nos evite um mundo homogêneo, loucamente lógico, racionalmente

trágico. A verdade, de direito, não deve adquirir o direito de se expandir

no espaço. A sabedoria acrescenta a retenção ao verdadeiro, aos cri­

térios do verdadeiro a reserva. A partir daí, não julgarei mais verdade

o que não pode nem sabe reter sua conquista.

Loucura da verdade solar. Se a ciência e a razão se retêm, se a filosofia se retém. Amo a

filosofia porque traz em si essa palavra de amor que eu amo, essa

sabedoria que tardei a descobrir; não conheço nada melhor do que

ela, nada maior, mais quente, mais profundo nem mais extensivo,

luminoso, nada que torne mais inteligente, nada que compreenda

melhor as coisas do mundo, os meios da história, da linguagem e do

trabalho, que permita viver melhor e ascender à rara beleza; dei-lhe

minha vida, meu corpo, meu tempo, meus prazeres, minhas noites e

minhas aventuras, até meus amores, ela os colheu e mos devolveu

magnificados, mas, tão certo como a amo, sei que não se deve pro­

movê-la nem dar-lhe poder, mas, bem ao contrário, impedi-la de

adquiri-los. Muito perigoso. Amante da filosofia, jamais me tornarei

seu zelador. Nada faço para expandir sua potência.

A filosofia deve engendrar homens de obra; desejo-a estéril de

homens de instituição e de poder. Estéril, a instituição persevera em

seu ser, avança, cega e teimosa. A obra, tímida, fraca, frágil, desgarra­

da, espera ser tomada, brilha suavemente como um pedregulho em

seu buraco, não se expande por si, felizmente. Por si, a obra se retém.

Há algo novo em seu claro-escuro. Se a filosofia, esquecendo-se da obra, se apropriar em algu~

lugar da potência, ela reinará imediatamente sobre os cemitérios. A

história não dá nenhum exemplo inverso. Muito perigosos, os filóso­

fos. Mais terríveis que os políticos, os padres e os eruditos, eles mul­

tiplicam um pelo outro os riscos dos outros. Não confiramos o poder

142

!

\ ,L.

1

às idéias porque elas multiplicam o alcance da potência. Muito peri­

gosas, as teorias. Como se expandem no vazio, logo milhões de ho­

mens desfilarão com passo cadenciado por milhares de quilômetros

desde seu lugar de emissão, diante de retratos gigantes daqueles que

as promoveram. Propagação única e solução final. Acredita-se sem­

pre que uma idéia só é perigosa porque é falsa. Que ela exprima a

verdade, na hora certa; evitemos dar-lhe publicidade.

A sabedoria adequada à filosofia vem da retenção. Se ela constrói

um mundo universalizante, a arte o borda com uma margem de be­

leza reservada. Filósofos, fazei vossa obra com exatidão e suportai em

silêncio que vos chamem de poetas: aqueles que em geral são ex­

cluídos da cidade. É melhor assim. Construí uma grande obra onde

se encontrem, precisamente localizadas, as coisas do mundo, rios,

mares, constelações, os rigores da ciência formal, modelos, estrutu­

ras, vizinhanças, as exatitudes aproximativas da experimentação, tur­

bulências ou percolação, as flutuações da história, multidões, tem­

pos, pequenos desvios, as fábulas da língua e as narrativas do bom

povo, mas a construí tão bela que sua própria beleza a retenha; a

retenha como singularidade; a defina; a preserve de qualquer excesso.

Por felicidade e por definição, o inimitável não encontra imitadores

e portanto não se expande nem se propaga.

Inteiramente belo, inteiramente novo.

O belo contém o verdadeiro, quero dizer, o retém, limita sua

expansão, fecha o rastro, quando ele passa, sob a forma de traços. O

verdadeiro exige um limite e a demanda de beleza.

Quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza, não corre­

remos maiS risco. Bela, a filosofia afasta todo perigo.

Belo, o verdadeiro se esquece de avançar no espaço. O belo é o

verdadeiro em paz consigo: a verdade contida.

Se a língua se retém. Nada, o sei com certeza, é tão belo quanto

minha língua, secretamente musical; nada se esconde com tamanha

discrição, precisa e clara sem o ostentar, nenhum modo de expressão

se aproxima tanto da lítotes, nada também tão puro quanto o gosto

143

I •

!

francês, excelente, refinado, despojado, tão ausente como Deus sob a

onda de querubins ou o lilás por trás da pêra e da maçã secas num

velho Yquem, nada também conseguiu se aproximar tanto da beleza,

mas eu não poderia suportar que por toda a parte e sempre só se

falasse a minha língua.

Eu sofreria muito, acho, se tivesse que falar inglês hoje em dia,

quero dizer) como lingua materna. Pena) ela não se retém mais. No

entanto, como foi bela!

Quando todas as pessoas do mundo falarem finalmente uma

mesma língua e transmitirem a mesma mensagem ou a mesma nor­

ma de razão, nós desceremos, débeis imbecis, mais baixo que os ra­

tos, mais idiotamente que os lagartos. Mesmas língua e ciência ma­

níacas, mesmas repetições dos mesmos nomes sob todas as latitudes,

terra coberta de papagaios barulhentos.

Quando os poderosos e os ricos só falarem inglês, eles descobri­

rão que à língua dominante no mundo falta a palavra pudor. Eles

terão deixado, com desprezo, os outros dialetos aos pobres.

Se os mais fortes se retêm, se os melhores se retêm. Os cidadãos

livres de Atenas, de Tebas, os revolucionários parisienses do ano 11,

os potentados do Ocidente, hoje pesados de tantos dólares, inventa­

ram ou praticam, segundo dizem, a democracia, enquanto ela lhes

servia ou serve ainda de publicidade ou biombo para esconder que

esmagavam os escravos e os metecos, que iam tomar o lugar dos

nobres decapitados ou que exploram até a morte o Terceiro Mundo.

Qual a melhor forma de governo?, perguntam constantemente

os teóricos. Assim enunciada, a questão antecipa: a aristocracia. O

governo dos melhores é a melhor forma de governo, a única que o

Ocidente conheceu desde a aurOra de seu tempo.

Sempre e por toda parte em nossa cultura, os aristocratas se

consideraram iguais, irmãos em armas submetidos à dura lei dos

duelos, equivalência das fortunas para uma concorrência selvagem,

concursos impiedosos entre os especialistas de mérito ... deve-se sem­

pre formar ou imitar o ideal do homem, isto é, o melhor possível:

144

• 1-r

bem-nascido, rico ou inteligente. Quando só se conhecem exemplos

e só se age segundo modelos, como evitar a competição, isto é, a aristocracia e a desigualdade?

Optimiza-se, então, uma tendência escolhida: crescem as armas,

as riquezas ou os méritos, começa a corrida, para que a força domine,

ou a fortuna, ou o talento. Por que as melhores coisas deveriam se reter?

Ora, descobrimos agora esta nova, porém antiga, evidência de

que a Terra não pode dar a todos os seus filhos o que dela hoje arrancam os ricos. Existe a raridade.

Enquanto nossos modelos aristocráticos permanentes majoram

ou optimizam esta ou aquela tendência para que ela invada o espaço,

a verdadeira democracia, aquela pela qual espero, minora ou mini­

miza a mesma e referida força. Desfrutar de uma potência e não fazê­

la prevalecer, eis o começo da sabedoria. Da civilização.

Filosofia política da retenção: a única igualdade pensável daqui

em diante supõe, não como falta de riqueza, mas como valor positi­vo, a pobreza.

O Terceiro Mundo nos precede.

Partamos.

o novo sob o sol, em outro lugar

Durante a batalha do Pacífico, uma das mais duras da última guerra

mundial, um navio, cujo nome e bandeira calarei, recebeu na mesma

hora tal chuva de torpedos e projéteis que se encheu de água numa

quantidade:equivalente à sua tonelagem. Não afundou, entretanto:

navios podem flutuar mesmo em condições extremas.

Sem máquina nem timão, privado de qualquer contato pelo rá­

dio, envolvido st:1bitamente pela bruma, carregado pelas correntes e

pelos ventos quando a neblina se levantou, desamparado, entregue

aos meteoros sem poder agir, ele vagou sozinho durante duas ou três

semanas por sobre a extensão deserta do mar, depois de ter se perdi­

do de Sua esquadra que, acreditando-o afundado já há bastante tem-

145

po, cessara todas as buscas. Como as obras vivas e mortas desapare­

cem debaixo d'água, a tripulação quase inteira ocupou as partes mais

altas, mastros e vergames, para todos os olhos procurarem algum

sinal no horizonte. Os sobreviventes contaram que naqueles momen­

tos acreditavam ter deixado o mundo dos homens.

E de repente, numa bela manhã, milagre. Terra! Terra! Ilumina­

do pelo sol nascente aparece, bem à frente, um banco de coral, encer­

rando uma laguna tranqüila, de águas verdes, de onde se estende uma

longa faixa lisa de areia e, por trás desta, altas falésias se empenacham

de palmeiras e cascatas. Dir-se-ia a ilha Coco, uma das mais belas das

terras pacíficas e das mais típicas, porém situada a milhares de milhas

para leste. A onda tranqüila empurrou navio, corpos e bens para a primeira

ponta de terra, onde ele colidiu e naufragou em dois minutos, como

se houvesse esperado vinte dias, em equilíbrio, por esse momento

fulgurante. Mas os botes salva-vidas e balsas, lançados ao mar bem

antes, levavam para a margem os marujos e oficiais em uma desor­

dem esfaimada que se pode imaginar e na esperança louca de sobre­

viver. Nenhum morreu afogado.

De todos os pontos da costa surgiram então longas pirogas,

guarnecidas de remadores, e arautos que os chamam, ajudados por

gritos e gestos, cantos e tambores. Cada barco de salvamento é abor­

dado. Como os marinheiros nada compreendem dessas demonstra­

ções, não sabem que decisão tomar: defender-se de um ataque ou

abraçar aqueles que os acolhem. De repente faz-se silêncio: o chefe ou rei aparece, quase nu, em

majestade, manda chamar o capitão. Este se levanta, comparam-se as

aparências. O encantamento desce sobre a cena. Os nativos mudam a

direção de suas embarcações, uma a uma, e conduzem à terra aque1es

que, de sopetão, se tornam seus hóspedes.

Nada faltou durante longos meses para a felicidade completa dos

náufragos. Os sobreviventes contaram que acreditavam naqueles mo-

146

mentos ter tocado o paraíso terrestre. Trocas que satisfaziam as duas

partes, jogos e risos, festins deliciosos em torno desses fornos poli­

nésios cavados na terra e de onde os cozinheiros retiravam bolos

suntuosos feitos de batatas docesj alguns, como nos séculos passados,

arranjaram uma mulher, outrOS limpavam um canto de jardim para

plantar algumas sementes salvas do desastre.

Uma vez resolvidas as coisas da vida, começaram a discutir inter­

minavelmente: os deuses de cada um, comparando-se seus desempe­

nhos, as regras seguidas de muitas maneiras por cada uma das duas

comunidades, suas vantagens e inconvenientes; primeiro por meio

de gestos complacentes, depois numa língua progressivamente clara

e dominada.

Os nativos nutriam uma paixão estranha pelas palavras: pediam

a tradução exata de seus vocábulos e davam explicações interminá­

veis. As assembléias se multiplicavam e não terminavam mais entre

brincadeiras e bom humor. Foi preciso falar do amor, da religião, dos

ritos, da polícia e do trabalho, com os mínimos detalhes. Eles se

esgotaram nos paralelos: as restrições diferiam, mas cada qual era

oprimido em seu país por normas igualmente complicadas, incom­

preensíveis até fazer rir o interlocutor, mas sem jamais negligenciá­

las, nem de um lado nem do outro. Em suma, sob diferenças muito

espetaculares, todos juntos acabaram reconhecendo grandes seme­

lhanças, e isso os aproximou.

O tempo passava, o horizonte continuava virgem. Para os nati­

vos, nunca deixara de estar assim. Os antigos contavam, entretanto,

que seus antigos contavam, e assim por diante, que em tempos muito

distantes povos pálidos já haviam chegado ali, mas nunca mais desde

então. Os tripulantes do navio de guerra, quanto a eles, não se lem­

bravam de que seus mapas mostrassem a existência de uma ilha na­

quele lugar.

Alguns a chamavam de ilha Nula, mas como não se dividiam

mais, como a bordo, para o serviço, em bombordeses e estibordeses,

outros se puseram, de brincadeira, a chamar de ilha Mestiça essa

147

terra bendita, como uma embarcação imóvel com equipagem sem

divisão. O tempo passava.

Como havia o risco do tédio mesmo nessas comparações, ape­

sar da felicidade e da saciedade, organizaram-se campeonatos de

futebol. Primeiro espectadores desses jogos ou lutas cuja pompa se

desenrolava sobre terrenos tabus, os insulares, talentosos, depressa

aprenderam, com os pés descalços, a conduzir a bola correndo, a

defender e a atacar, a multiplicar os passes e a chutar para gol.

Seus goleiros, sobretudo, eram peritos em acrobacias muito extra­

vagantes. Seguiram-se disputas cruzadas, em que se opunham equi­

pes distintas de cada comunidade ou os ilhéus e seus hóspedes. Nas cabanas, à noite, discutiam-se, bebendo cerveja de raiz, as estraté­

gias e os treinos. O tempo se refugiou nesses encontros. Os sobre­

viventes contaram que ali perdiam toda a lembrança de sua antjga

vida.

Que, entretanto, voltou, uma bela noite, sob a forma de um por­

ta-aviões surgido de repente sem que ninguém o tivesse visto sair de

qualquer ponto do horizonte. Dizia-se mesmo que sua balsa tocara a

terra antes de o terem percebido parado, ancorado, gigantesco, dian­

te do banco de coral. O almirante que comandava o navio convocou

o capitãO a bordo e decidiu repatriar imediatamente o grupo gentil

que não tinha projetos além de futebol sob os trópicos, paraíso e vida

de sonho. Separações, lágrimas, desespero de parte a parte, adeuses

patéticos, promessas, presentes, cantos e melopéias, os marinheiros

do porta-aviões, em guarda ao longo da entrada, preparados para

zarpar, não acreditavam nem em seus ouvidos nem em seus olhos.

Levantou-se a âncora ao som melancólico do clarim. Falésias e casca­

tas desapareciam na círculo do mar. Cada um de seu lado, em alguma unidade nova, retomou as

hostilidades, o Almirantado tendo tido grande cuidado em separar o

grupo. Vários morreram, outros não, segundo a sorte. Depois a guer­

ra acabou, como se sabe, em Hiroshima. Fim do primeiro ato.

148 T

o segundo e último principia numa cidade ocidental cujo nome

e língua omitirei. Dois dos sobreviventes ali se encontram, por acaso,

em um bar, uma igreja ou um mercado, quem sabe, talvez na saída de

um estádio. Calorosas palmadas nas costas, evocam os antigos com­

bates e logo começam a falar no paraíso perdido. Um deles, mais

entusiasta, projeta voltar lá. Por que não?, diz o outro. Cada um

procura os antigos companheiros, encontra alguns, agora espalhados

por aqui e por ali na sociedade, no espaço e na fortuna. Finalmente,

os ricos pagam menos que os pobres, e organiza-se a viagem. Quando

não há uma linha regular de um ponto do mundo a outro, torna-se

preciso fretar uma embarcação ...

... cuja modéstia surpreende os nativos, que só tinham visto o

enorme porta-aviões, além do casco cheio d'água cujos destroços rapidamente soçobraram.

Eis O triunfo da volta: novos festins deliciosos em torno dos mes­

mos fornos, trocas que sempre enchem de felicidade as duas partes,

cantos e melopéias, entrecortadas de exclamações: o rei está ficando

velho, como as meninas e os meninos cresceram; mas as mulheres

continuam belas e é preciso se inclinar diante do túmulo dos mortos

antes conhecidos, que não se teve oportunidade de rever ao voltar.

Tudo isto feito e sobretudo dito, as diversões recomeçam e volta-se

em massa ao estádio, sob a direção do rei ancião. Todo mundo se

acomoda e a gritaria começa.

No encontro defrontam-se a equipe do Leste e a do Oeste, duas

cidades da itha. Soberba, dramática, elegante, ela termina com o re­

sultado de três a um, ao final de noventa minutos. Os marinheiros

então se preparam para abandonar o espetáculo e ir dormir. Já era

noite. Mas não, não, brada a multidão, fazendo com que se sentem

novamente, ainda não terminou.

A partida recomeça com maior ímpeto e, sob as tochas ardentes,

prolonga-se pela noite. O tempo passa e os antigos marinheiros não

compreendem mais nada: extenuados, sem fôlego, os jogadores caem

149

uns após os outros, as pernas tomadas de câimbra. Mas, insistente, a

partida continua. Cada equipe vai fazendo gols e, já quase amanhe­

cendo, chega-se a oito a sete. Começa a ficar monótono.

De repente, o povo se ergue, agita os braços e as mãos, berra de

alegria, e tudo acaba: o gol de empate acaba de ser alcançado por um

artilheiro que é carregado em triunfo em volta do terreno. Todos

gritam: oito a oito, oito a oito, oito a oito! Cheios de sono, estupefa­

tos, incapazes de perceber claramente o que se passa, os marinheiros

voltam depressa a suas palhoças para repousar.

Algumas horas depois, as palavras recomeçam. Estratégia, tor­

neios, resultados, retomam-se as mesmas conversações de outros

tempos. E pouco a pouco a verdade se esclarece.

Os nativos jogavam o mesmo jogo que antes, com equipes com­

preendendo o mesmo número de homens e em terrenos com o mes­

mo formato, mas tinham mudado uma regra, uma única e pequena

regra. - A partida acaba - dizem nossos marinheiros - quando uma

equipe ganha e a outra perde, e só nesse caso! É preciso haver um

vencedor e um vencido.

- Não, não - retrucam os ilhéus.

- Como desempatar então as suas equipes? - perguntam os

marinheiros. - Que quer dizer essa palavra no seu dialeto?

- Uma diferença de gols.

- Não compreendemos essa sua idéia. Quando você corta um

bolo de acordo com o número dos que estão sentados em volta do

forno, você não o divide? ..

- Claro.

- ... e cada um come uma parte, não é?

- Com certeza.

- Você algum dia teve a idéia de desempatar esse bolo?

- Ora, isso não faz nenhum sentido - protestam os marinhei-

ros por sua vez, os resolutamente bombordeses ou estibordeses de

sempre.

150

- Mas sim, como no futebol. Alguém come ele inteiro e os

outros não comem nada, se você desempatar.

Os caras-pálidas, desconcertados, se calam.

- Por que as equipes têm que desempatar?

- Nós não compreendemos isso, porque não é justo nem huma­

no, já que um vence o outro. Então nós jogamos o tempo de jogo que

vocês nos ensinaram. Se no fim o resultado é um empate, a partida

termina numa verdadeira partilha.

- Se não, as duas equipes, como vocês dizem, estarão desempa­

tadas, coisa injusta e bárbara. Para que humilhar os vencidos, se que­

remos parecer, como vocês, civilizados? Então, é preciso recomeçar,

por muito tempo, até que a partilha retorne. Acontece às vezes a

partida durar semanas. Já houve jogadores que chegaram a morrer

em campo!

- Morrer? É verdade?

- Por que não?

- Agora a cidade de Oeste se alegra e festeja tanto quanto a

cidade de Leste, assim como as do Norte e do Sul. Os festins, que a

partida do empate interrompe durante um tempo às vezes longo,

podem recomeçar em torno dos fornos de onde se tiram os bolos.

Entre os ventos que os conduziam de volta às suas cidades e suas

famílias, no meio do balanço regular das macas, em doce equilíbrio

no berço das ondas, os marinheiros pensavam naquela terra singular,

ilha nula oU mestiça, ausente dos mapas marítimos. Eles discutiam,

deitados, as mãos sob a nuca:

- Diga, na última guerra, nós ganhamos, não foi?

- Claro.

- Em Hiroshima?

- Ganhamos mesmo?

- Você está querendo conhecer os verdadeiros vencedores? -

151

ripostou o segundo, que passava pelo corredor. - Eu os conheço

muito bem, porque às vezes os transporto em meu barco ... Etnó­

logos, sociólogos, não sei que título têm, mas estudam os nativos das

ilhas ... e em geral os homens são o sujeito de seus estudos, quer dizer,

o objeto. Eles cantam vitória: o que podemos conceber acima desses

que explicam e compreendem aqueles outros que, sob esse ponto de

vista, jamais serão seus semelhantes e menos ainda seu próximo?

o novo sob o sol, aqui

Mas ele - escriba, douto, legislador -, querendo mostrar sua justi­

ça, disse: "E quem é meu próximo?"

Jesus respondeu: "Um homem ia de Jerusalém a Jeric6 e foi ata­

cado por bandidos que, depois de despojá-lo e espancá-lo, foram-se

embora, deixando-o quase morto. Aconteceu que um padre vinha

pelo mesmo caminho; ele viu o homem e passou longe. U fi levita

também chegou ao lugar, mas viu o homem e passou longe. Mas um

viajante samaritano chegou perto do homem: ele o viu e foi tomado

de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas feridas vertendo sobre

elas óleo e vinho, carregou-o em sua própria montaria, conduziu-o a

uma estalagem e cuidou dele. No outro dia, separou duas moedas de

prata e deu-as ao estalajadeiro dizendo: 'Cuide dele, e se gastar mais

alguma, eu mesmo te reembolsarei quando regressar.' Qual dos três,

na tua opinião, se mostrou como o próximo do homem que foi ata­

cado pelos bandidos? O legislador respondeu: 'Aquele que demons­

trou bondade para com ele.'"

Evangelho Segundo São Lucas, 10: 29-38.

Toca a sineta. A porta da sala de aulas abre para os colegiais ,um

pátio vazio e feio que eles invadem berrando nas horas ditas de re­

creio: primeira divisão criteriosa do espaço e do emprego do tempo

oferecida ou imposta, em nossas latitudes, às miniaturas de homens

colocadas em grupos, para que ali construam seus reflexos. Dentro,

do alto de sua estatura, o professor dita a ortografia e o cálculo garan-

152

te a ordem das fileiras e das cadeiras, a hierarquia; da soleira para

fora, a disputa expande os gritos e a fúria, as batalhas, o caos sem esperança, logo que a sineta toca.

Filho do povo, garoto das ruas e do campo, minha infância ou

inferno transcorreu, no pátio debaixo do terror dos tapas e vinganças

sem fim de bandos comandados por jovens assassinos, galos de briga

ou chefetes, arrogantes e briguentos. Bastava-lhes ter mais três pole­

gadas de altura para jogar ao chão sem discusSão, com um golpe de

quadril, de ombros ou de calcanhar, quem quer que os desafiasse. No

pátio coberto, entre os troncos de árvore, ao longo dos banheiros

repugnantes, nas nuvens de poeira, selva ou floresta primitiva, os

mais fortes supliciavam sem cessar os mais fracos, por puro prazer, e

os sopapos eram sempre desferidos contra os mesmos. Mas o mais

musculoso ou vociferador só tinha sua vitória assegurada se recrutas­

se uma guarda, mais poderosa em conjunto que qualquer outro che­

fete, e até mais batalhadora e rude que o primeiro galo. Donde a

formação, simultânea, de uma milícia desobediente às ordens do no­

vo inimigo, e assim como ele, munida de guarda-costas ou ministros.

Os combates começam entre as gangues logo que toca o recreio.

Lembro-me muito claramente de meu desprezo, menor por es­

ses jovens chefes orgulhosos de seus bíceps do que por aqueles lugar­

tenentes, babando de obediência servil, buscando o poder sem dispor

dos meios, executores de segunda mão, pivetes, e por isso ainda mais

implacáveis com a tropa humilde e anônima, pacífica mas dobrada

pelo vento da força. Aqueles comissários sem dúvida macaqueavam

seus pais: vivíamos então a ignóbil época em que a França perdia sua

alma colaborando com os nazistas. Nenhum recreio terminava sem que o sino anunciasse alguma ignomínia.

Os adultos chamam de acidentes escolares, cobertos pelos segu­

ros, verdadeiros crimes perpetrados conscientemente, sob a aparên­

cia turbulenta dos jogos, por menores irresponsáveis. A próxima si­

neta tocava portanto na hora da vingança ou da revanche, como se

dizia nos jornais a propósito da guerra dos grandes, batalha prepara-

153

da pelo lado inimigo por meio de sinais e mensagens que circulavam

entre a classe de mão em mão, nas carteiras, sob o olhar paterno e

cego do professor. Quando a porta se abre após a sineta, o berreiro

generalizado, que os adultos acreditam exprimir um legítimo alívio

por se afastar dos cadernos brancos e do quadro negro, significa sim­

plesmente a reabertura das hostilidades.

Quando ouço a sineta trepidante que escande as horas nas insti­

tuições ditas de ensino, sei que ela treme de terror.

De volta à casa, o tempo civil e familiar se ritmava da mesma

forma: sirenes de bombardeios, alertas diversos, noticiário anuncian­

do a cada hora, depois do prefixo musical, a abertura de novas carni­

ficinas. Entre a RevoluçãO Espanhola de 1936, a Segunda Guerra

Mundial e seu fim somatório em Hiroshima, que criança teria perce­

bido a diferença entre aquelas execuções gigantes e as vendetas sem

perdão, opondo os lobinhos, filhos e futuros pais de lobos, através do

eterno retorno do mesmo sinal ritmando as horas, lei morna de nossa

história pequena ou grande, sineta do reflexo para os cães.

Toca finalmente a sineta. Quem não teria apreciado o sossego

silencioso e um certo ar de paraíso, dentro da sala de aula, quando a

porta bloqueava as tempestades do pátio e o bom mestre ditava duas

quadras sobre vindimas idílicas, das quais o autor certamente não

participara, pois a querela não cessava nem entre as vinhas, essas

vacas cujas tetas são uvas, nem durante a pisoagem, quando os sexos,

cruelmente, se entrechocavam: o que, nos poemas, é chamado de

tranqüila felicidade bucólica? Acreditei por muito tempo, pelo me­

nos até os nove anos, na paz ideal do intelecto, nas pastorais, na

utopia das figuras e dos números, até o momento, sete vezes bendito,

em que compreendi de repente que eu os amava porque o professor

me distinguia como primeiro da classe e me protegia com sua som­

bra: deste lado do muro eu me encontrava, portanto, sob o mésmo

vento de uma outra força, dura e arrogante, galo, portanto briguento,

chefe de gangue ... Horror, enorme desgosto, adivinhando já então o

luzir servil em certos olhares e a curva das costas. Tomou-me uma

vergonha que nunca mais cessou, paixão secreta que me leva agora a

154 r

falar de nós mesmos, de nossas intrigas especulativas e de seu infor­

túnio essencial, escondidos em um outro espaço, utopia intelectual, e separados no tempo por algum sinal sonoro.

Passei grande parte da minha vida em navios de guerra e anfi­

teatros para dar meu testemunho à juventude, que já o sabe, de que

não há diferença entre as maneiras puramente animais, isto é, hierár­

quicas, do pátio de recreio, as táticas militares e as condutas acadêmi­

cas: reina o mesmo terror sob o telhado do pátio, diante dos lança­

torpedos e no campus, esse medo que pode passar por uma paixão

fundamental dos trabalhadores intelectuais, sob a veste majestosa do

saber absoluto, esse fantasma sempre de pé por trás daqueles que

escrevem em sua mesa. Eu o pressinto e o adivinho, nauseabun­

do, colante, bestial, lembrando regularmente como a sineta tocava,

abrindo e fechando os colóquios onde a eloqüência vocifera para aterrorizar os que em volta conversam.

Ao invés de nos aproximar da paz, a ciência e a inteligência nos

afastam dela mais do que o músculo, a cara feia ou a alta estatura. A

cultura continua a guerra por outros meios - pelos mesmos, talvez.

Encontram-se nas gangues teóricas os mesmos chefetes, de fato, os

mesmos lugar-tenentes, babando de obediência servil, e semelhantes

legiões pacíficas, curvadas humildemente sob o vento da força, que às

vezes elas consideram ser a moda, ou, pior, que mais comumente

pensam ser a verdade. Chamar de campus a área das universidades,

que achado literário, uma vez que essa palavra significava antigamen­

te o campo fortificado durante a noite pelos soldados de Roma, antes

do ataque ou para defesa. Os especialistas sabem, de fato, a que fac­

ção, a que gangue pertence este ou aquele campus e qual é o grupo de pressão que nele promove colóquios.

Ora, os recursos da linguagem, intelectuais, teóricos, eruditos,

para 'travar uma guerra não se comparam aos golpes do galo e do

chefete do pátio: mais refinados, tortuosos, globais e transparentes

até a irresponsabilidade inocente da especulação pura. O mais forte

boxeador do mundo não apresenta senão um corpo lastimável, com

seu swing ou seu uppercut, parece um santo no paraíso, se o compa-

155

rarmos com o físico teórico cuja equação pode fazer a Terra explodir

ou com o filósofo que submete povos inteiros durante gerações - ou

com a seita que o imita durante sua carreira. Até hoje produzimos

filosofias tão globais que erradicam toda a história e fecham as portas

do futuro, estratégias tão poderosas que atingem a mesma capacida­

de de dissuasão que uma arma atômica e que decidem um genocídio

cultural perfeitamente eficaz.

Eis definido o infortúnio próprio a nossos trabalhos: como um

coeficiente, a inteligência multiplica por tanto quanto se queira a

vingança, e dá a impressão de anulá-la ao se dissimular. Por mais

vingativa que seja a sua ação, a violência cresce pouco e lentamente,

pelos punhos e pelos pés, mas ela sobe até o céu e invade o tempo e

a história, uma vez que a razão assuma o comando. Assim, as teorias políticas da tradição, como as ciências atuais

dos jogos de estratégia, supervalorizam seriamente o papel pacifica­

dor do conhecimento racional: esse contra-senso faz a autopubli­

cidade daquelas disciplinas. A razão gira sempre em torno da propor­

ção e da dominância. Lança, portanto, uma ponte entre a sala de aula

e o pátio dito de recreio. Por que, ao contrário, a filosofia faz questão de ser chamada

assim? Porque ela não pede o amor à inteligência, nem ao saber ou à

razão, mas a Sofia, a sabedoria. Que sabedoria?

O conhecimento pacificado.

Sem se dar conta, o saber se aplica a um ofício arriscado, para

nós eruditos e para os outros, um perigo que só descobrimos nos

momentos de tensão ou de crise. Filósofo universitário francês de

p,6s-guerra, sobrevivi com dificuldade a dez terrores diferentes, infli­

gidos por teóricos servos de ideologias políticas ou acadêmicas, galos

e chefetes novamente, príncipes diretores de grupos que mantinham

sob sua pressão o espaço do campus, as nomeações e as notas de pé

de página, proibindo a todo custo qualquer liberdade de pensamen­

to, terrores cuja responsabilidade não atribuo a este ou àquele indi­

víduo nem seita, pois isso equivaleria a me vingar, mas ao próprio

156

)

;

funcionamento da inteligência na instituição, e desta na primeira, a

implicação recíproca da ciência na sociedade.

Assim, por higiene de vida e de espírito, tive que imaginar, para

meu uso pessoal, algumas regras de moral ou de deontologia:

Depois de um exame atento, não adotar nenhuma idéia que con­

tenha, comprovadamente, qualquer traço de vingança. O ódio às ve­

zes passa por pensamento, mas sempre o amesquinha;

Jamais lançar-me na polêmica;

Evitar qualquer pertinência: fugir não só de todos os grupos de

pressão, mas também de qualquer disciplina científica definida, de

um campus local e erudito na batalha global e societária ou de um

entrincheiramento setorial dentro do debate científico. Nem mestre,

portanto, nem, sobretudo, discípulo.

Essas regras não definem um método, mas bem exatamente um

êxodo, uma corrida caprichosa que parece irregular, mas coagida

apenas pela obrigação de evitar os lugares especulativos, garantidos

pela força e, em geral, vigiados por cães de guarda. Um passeio no

campo adota uma trajetória semelhante, inesperada e recortada, uma

vez que você se veja atacado, e logo perseguido sem descanso, de

fazenda em fazenda, por dez molossos que se sucedem e dos quais

você procura fugir.

Dispomos de ferramentas, noções e eficácia em bom número;

falta-nos, em troca, uma esfera intelectual virgem de toda relação de

dominância. Muitas verdades, muito pouca bondade. Mil certezas,

raros momentos de invenção. Guerra contínua, nunca a paz. Só os

animais apreciam a .hirarquia e as batalhas incessantes que a orga­

nizam. Faltam-nos homens de intelecto simplesmente democrático.

Definamos esta esfera com a noção de prescrição .

Nenhum conceito tem valor se não for pacífico.

A vingança produz uma justiça aparente, a equivalência distri­

butiva do talião. A língua corrente toma uma pela outra, quando

aconselha, por exemplo, a vítima de uma agressão a fazer justiça pelas

157

próprias mãos: rende-te então. O castigo absolve ou redime a ofensa

que uma balança equilibra: este por aquele. Não se diz lei do quan­

tum, que suporia uma igualdade na ordem da grandeza, mas lei de

talião, cuja origem latina (tal... qual) indica uma distribuição mais

sutil, qualitativa, essencial: um dente não vale um olho.

Esta invariância vindicativa desencadeia um processo que ne­

nhuma razão saberia interromper, visto que a própria razão equivale

à reparação plena e integral, satisfazendo o ofendido que exige razão

da injúria e a obtém. A causa plena se encontra, em quantidade, em

qualidade, no efeito inteiro: lei racional, tanto da justiça como da

mecânica. Isso é suficiente: a injustiça consistiria em um excesso ou

uma falha na reparação. Aquilo que chamamos razão: de modo al­

gum igualdade quantitativa, mas proporção exatamente adaptada

aos queixosos e à queixa; consideram-se os pesos colocados nos dois

pratos da balança, mas também as relações de comprimento sobre o

travessão da balança, que fornece assim a justiça estrita.

O princípio da razão ou, antes, de dar razão (principium red­

dendae rationis) não funciona de outra forma: nada, diz ele, existe

sem ela. Este nada vem de res, termo do direito romano que designa

o caso judicial que um processo debate e decide: a causa. Antes de

significar causalidade, esse último termo refere-se à acusação. É pre­

ciso dar razão, como em uma reciprocidade, como se ela viesse em

segundo lugar. Nada sem razão ou nenhuma coisa sem causa expri­

mem menos absurdo ou contradição que um desvio de equilíbrio na

balança da justiça: a esse nada, a essa coisa, como que suspensos no

ar, sem apoio, é preciso, como compensação, acrescentar ou subtrair

uma tara que recoloca o travessão no horizonte, a tara na razão. Nós

não sabemos pensar uma coisa isolada, pendurada sem ligação ou

flutuando sem gravidade: o verbo pensar, ele próprio, deriva de pen­

der e da pesagem, desta compensação. Como pensar sem a compen­

sação, sem a tara racional? Assim a razão dá justiça à coisa, assim a

causa lhe dá razão. Eis um princípio que deve se chamar de equivalência, ou de

eqüidade.

158 1

Que exista, igualmente, alguma coisa em lugar de nada ou isto,

qualificado tal qual, em vez de aquilo. Eis dois enunciados que des­

crevem dois desvios de equilíbrio para os quais se requer, contra a

injustiça, uma tara que os devolva à posição justa, horizontal e plana.

O que colocar no outro prato para redimir os danos feitos a esse nada

que não chegou à existência e àquilo, qualificado diferentemente, que

ficou na virtualidade ou em mundos possíveis? Compensando o pos­

sível ou o nada, a razão justifica a existência do que é. Medida ou

pesada com esta alna, a existência, cujo nome, inquieto, indica ainda

um desvio do equilíbrio, equivale à razão acrescentando-se ao nada,

rigorosa equação. Inversamente, a igualdade matemática se reduzirá

também à lei de justiça?

Então, a que chamamos pensar? Compensar o que não é por um

recurso da razão, usar a tara racional entre a existência e o nada ou o

possível, como se a razão estabelecesse a relação do ser com o não­

ser, ou justificasse o que é, a partir do que não é. Ela aflora, então, a

uma criação quase divina e supõe uma familiaridade mortal com o

nada ou o possível. Esse pensamento racional, essa pesagem ou pro­

porção compensatória preenchem exatamente a ausência ontológica.

A razão vinga o nada.

Dando eqüidade à existência, o princípio de razão põe a ontolo­

gia sob a lei universal do direito. Preenchendo a ausência ontológica,

a razão faz com que a ciência inteira, que dela decorre, decorra do

equilíbrio justiceiro.

InventGt do princípio da razão suficiente, Leibniz chama leis de

justiça as regras de invariância e de estabilidade, pelas quais se com­

pensam as coisas e os enunciados. Esta razão reparadora conservará

na ciência ou no racionalismo algum traço do talião vingador?

Por que chamar de justos, no sentido judiciário, na astronomia

medieval ou renascentista, os equilíbrios longos do universo ou a

economia, entendida como legislação positiva do mundo físico, jus­

teza ou justiça, aparecendo através das invariâncias ou estabilidades,

159

voltas e compensações circulares do tempo cósmico? As leis da natu­

reza, reduzidas a tais harmonias, se reportam ao princípio da razão

suficiente. Dar ao fenômeno a sua razão consiste em compensá-lo,

tornando-o, desta forma, pensável. Núcleo de vindita pública no

mundo e no pensamento, ou sua ordem respectiva?

A invariância distributiva da vingança desencadeia um processo

que nada, sem razão, poderia deter: assim os equilíbrios longos do

mundo se contam ao longo do retorno eterno. Ao obter razão da

injúria, o ofendido inflige ao ofensor um dano exatamente igual e de

natureza equivalente, para fazer deste último um homem mestiço e

ofendido, exigindo, por sua vez, o equilíbrio ou razão suficiente: a

vendeta não cessa e a história conspira e consente na volta ritmada

das constelações assim como das regras do pensamento submetido à

pesagem. Tudo está em ordem: o cosmo e o tempo soam, trazendo a

hora das compensações. Eis o motor imóvel de nossoS movimentos, a razão no mundo e

na história, gêmea da vingança e imitadora de suas compensações ou

reparações, como os doutos que cultivam o pensamento nas paredes

da sala de aula imitam os moleques que brigam no pátio quando toca

a sineta. Do nosSO lado, nós, racionalistas avançados, iluminados pelas

leis mais profundas que reinam sobre o mundo dos átomos, chama­

mos tudo isso, às vezes, de equilíbrio do terror. Sempre é a mesma

ordem que governa o mundo. A vingança e sua aparente justiça, fundando o retorno eterno,

guardam intacta a memória integral da razão exata, pelo tempo re­

versível e cíclico. Elas ignoram a duração, esse tempo irreversível, que

segue numa direção sem jamais poder voltar atrás. No espaço da

duração sobrevém o esquecimento, onde a anamnese jamais restitui

nem compensa a memória exata ou intacta, jamais o efeito integral

vale pela razão plena e inteira; esse tempo novo traz uma falta à

suficiência, uma falha ou um excesso da razão.

E novamente as teorias políticas da tradição ou as ciências atuais

160 l'

dos jogos e estratégias mergulham em um tempo passivo e não em

uma duração em que todas as coisas mudam. Elas permanecem no

tempo do retorno eterno, o confortam e talvez mesmo o produzam.

Esta falta, excesso ou falha recebe em direito francês o nome de

prescription (prescrição).

Ela se define, no direito civil, como meio legal de adquirir pro­

priedade através de uma posse não interrompida e se denomina aqui­

sit6ria, neste caso, ou de libertar-se de um encargo, por exemplo uma

dívida, quando o credor não exige a execução; chama-se então ex­

tintiva ou liberatória. Em direito penal, conta-se um prazo para a

expiração, depois do qual a ação pública nada mais pode empreender

contra o criminoso ou o delinqüente.

Em suma, a prescrição admite a ação essencial do tempo. O usu­

capião vale como direito de propriedade, como se a duração, por si,

apagasse os direitos de qualquer outro, em particular os do eventual

predecessor. Da mesma forma, quando o credor não pede nada e a

promotoria pública não ataca ninguém, o tempo, por si, suspende a

ação ou a modifica.

O tempo passa e não corre de modo passivo; aO contrário, ele

esquece ou apaga os atos. Ele não volta para pedir razão. Ligada ao

retorno eterno e às invariantes estáveis, a vingança volta, astronômi­

ca, como as constelações e os cometas.

Diz-se que o rio Esquecimento corre nos Infernos: a prescrição o

traz para a Terra, cujos filhos, sentados à beira dos riachos, perdem

com freqüência a memória ao mesmo tempo que a razão. Não há

mundo mais atroz do que este onde a natureza se entrega ao retorno

eterno e que empurra para os Infernos o esquecimento e o perdão. A

prescrição o inverte ou o repõe sobre seus pés: real e doce, o mundo

onde os rios correm para os estuários do esquecimento e que empur­

ra para os Infernos a verdade recorrente: a aletéia, congelada, não

corre jamais.

No fato físico, quando os planetas voltam sobre si mesmos, a

erosão já os gastou um pouco, e as gigantes vermelhas do céu explo-

161

dem com o advento de sua supernova. As grandes invariantes deri­

vam, o mundo perdeu o retorno eterno. . Em posição mestiça c:;ntre o direito e o não-direito, a prescrição

cai, por definição, no domínio irreversível da história e opõe seus

lapsos de tempo, de um ou trinta anos, às regras invariáveis e invio­

láveis. Mais do que limitá-las, anulará então as leis em vigor envol­

vendo os encargos, as dívidas, a propriedade, oS delitos e os crimes.

De repente, tudo se passa como se tu não devesses mais nada, como

se jamais tivesses roubado ou matado, o tempo te inocenta, como um

rio batismal. A prescrição traça na direito o limite do não-direito, sua

fronteira do lado da história. Esta, como sabemos, apaga os traços,

subtrai os restos, rói os atos e os feitos, esquece e acaba por se calar,

assim como o tempo zomba do princípio da contradição.

Por seus códigos e seus textos, o direito é parte integrante da

memória do computador social. Ele se empenhou em construí-lo.

Luta contra a erosão da história. Eis por que seu emblema desenha

uma balança, ao mesmo tempo pela simetria do espaço, a equivalên­

cia dos encargos e o retorno regular do tempo. Eis por que, do lado

da vingança, ele continua racional. Eis por que sempre se manteve

mais ou menos ligado, do outro lado, em seu limite ou fronteira do

lado do intemporal, com o direito natural, que, justamente, se diz

imprescritível. Neste marco, o tempo não tem, por si próprio, qual­

quer ação, e a razão, estável diante desse tempo passivo, continua

invariante à sua passagem. Com dificuldade, heroicamente, o direito se mantém entre duas

zonas, duas tentações: uma ocupada pelo direito natural, universal e

invariante, não escrito e portanto imprescritível, intemporal, e a ou­

tra invadida pela história e pelos esquecimentos multicoloridos de

seus trapos. Segundo as épocas, em suma, de uma borda ou da outra,

em relação ao direito máximo ou ao não-direito, alguns falariam da

razão rigorosa ao caos, outros de um fantasma idealizado à apreensão

complexa do concreto. Assim como repusemos o tempo sobre a Terra e sobre seus pró-

162

prios pés ao inverter o antigo mapa-múndi dos Infernos e do globo,

pois de tudo receber o rio Letes acaba escoando como o Amor e seus

esquecimentos, assim também é preciso inverter esse espectro de

ponta a ponta, para que a prescrição se torne a única lei universal e

imprescritível. Só existe invariante sob a condição de jogar-se no

variável; é nos movimentos que mais pensamos os equilíbrios.

A razão vinga o nada e a ciência racional conserva em si traços

desse direito primitivo, dito natural, sem se interrogar sobre essa

natureza que permanece alheia à obra do tempo. Para os direitos os

mais positivos, nossos atos mergulham no tempo, mas para a prescri­

ção, eles se fazem e se formam de tempo, sua verdadeira matéria­

prima. A duração os amarra, os exalta, os desata, os apaga. Ela os faz

nascer e desaparecer. Eis chegada a natureza: o que vai nascer, sim ou

não. A natureza corre ou escoa de bifurcações a bifurcações, de con­

fluentes turbulentos e vivos a braços de rio mortos e esquecidos, do

esquecimento a recordações e de memórias a perdas totais. Ela não

pode passar nem por definitivamente estável nem por loucamente ou

irracionalmente instável.

Assim como faz nossos atos, o tempo real faz o direito e, se o faz,

também o desfaz, e isso é o natural, que vai nascendo ou que se

arrisca a não nascer. Ele faz o direito, o conforma, o transforma e

portanto o fundamenta. A jurisprudência, flutuante como se sabe,

cria o direito do lado da história, mas o direito o reconhece ao reco­

nhecer a ação do tempo, pela prescrição. Eis a abertura do direito pa­

ra seu próprio fundamento, isto é, para o direito que, como os Anti­

gos, chamo de natural, ou seja, para a natureza física. Fazendo-o

variar, anulando-o, a prescrição, entretanto estável, o fundamenta. O

direito natural, no sentido mais profundo do termo, não se encontra

então do lado onde se esperava, mas do outro, separado do primeiro

por toda a formidável imensidão do céu. A prescrição faz parte do

direito natural; com isso, fundamenta o direito; com isso, permanece

imprescritível. O único ato que não podemos apagar nem anular é o

ato de anular ou de apagar. Não se esquece o esquecimento, ato de

qualquer forma inesquecível.

163

Isso se refere ao direito, mas também à moral, à política e à

teologia: o perdão fundamenta a ética, a clemência fundamenta a

potência, a retenção ou misericórdia cobre a justiça e desce sobre o

destino.

Como o termo indica, e como significava no direito romano, a

prescrição é escrita no começo, como preâmbulo ou preparação, co­

mo epígrafe de todo texto. Quando você escrever pela manhã, muito

cedo, sobre teoria ou literatura, direito, ciência, matemática ou

amor, saiba que antes da página em branco, na sua margem superior,

a prescrição o precede sempre. Por definição, ela só existe antes. Es­

crita no alto da página mas dela apagada e deixando-a intacta, livre,

virgem, branca, inocente. Em posiçãO mestiça: inscrita, retirada.

Depois de dois milênios, pelo menos, cada um se lembra mas

todo mundo esqueceu que os samaritanos tinham o pior dos papéis,

como inimigos execráveis, implacáveis, irreconciliáveis. A parábola

do Bom Samaritano enuncia uma contradição: um homem assim

não pode passar por bom. Todo mundo se lembra, cada um o esque­

ceu: a prescrição existe mesmo e conseguiu vencer. Ela pede o esquecimento, mas já escreveu a memória, pois dei­

xou seu traço. Ela se lembra como escrita, mas prescreve esquecer.

Ela nem equivale à conservação nem se identifica à perda total; in­

venta novamente, de forma mestiça, a memória-esquecimento, a

recordação conservada ao abrigo mas ao mesmo tempo apagada, in­

telectualmente invariante dentro da caixa negra da história, mas pas­

sionalmente, existencialmente, historicamente, sabiamente perdida:

nova invariante por variações, estabilidade por instabilidades, fun­

dação do direito muito mais forte que o morno retorno eterno, imó­

vel como um saco de chumbo ou tilintante como uma sineta.

Para não escrever senão na beleza ou no amor da sabedoria, só

escreveremos filosofia por prescrição.

Quando. se puder ler sem escândalo uma narrativa em que o

homem mais abominável se conduzirá depois como o melhor, então

164

o Messias voltará. Mas ele já chegou, pois escreveu esse texto do qual

eu não sou o autor.

Eu. Noite

o autor? Quem é ele, quem sou eu?

Admiravelmente indicado, o sujeito, pudico ou aterrorizado, se

encerra, se esconde, se lança por trás ou por baixo da sucessão de trajes, jogado sob capas e casacos, inencontrável como Arlequim,

cujo desfolhamento sempre e em todo lugar mostrou a mesma coisa,

com algumas pequenas variações, do colorido, caso se trate da roupa,

da pele, do sexo ou do sangue, finalmente da alma - minh'alma de

mil vozes que o deus que adoro pôs no centro de tudo como um eco

sonoro -, cujas facetas justapostas, como as de um cristal ou de um

olho de mosca, refletem, embora íntimas, a multiplicidade ruidosa

dos acontecimentos externos, como se o número destes correspon­

desse ao das paredes interiores que os emitem. Pode-se procurar mais

longe? Um comparativo: o interior no superlativo: o íntimo? Existirá

o mais íntimo ainda? Aquilo que jaz por baixo se parece sempre com

o que se pode ver na superfície?

Na falta do sujeito, posso dizer o adjetivo. Se o primeiro se joga

por baixo, a menos que outros não o joguem, o segundo é jogado de

lado. À pergunta "quem sou eu?", ou substituo pela pergunta "quem

é ele?", ou o pudor exige que eu procure s~mpre responder de lado.

Portanto, com alguns adjetivos.

Quem sou eu? Dizem que sou gentil, adjetivo muito apreciado

em meu pa~, onde se amam as velhas palavras de nobreza, gentil,

portanto atencioso, flexível e adaptado, cortês. No outro, logo adivi­

nho as qualidades, positivo, e abro um sorriso, mas não sei suspeitar

dos vícios, ingênuo. Rapidamente os adjetivos superabundam. Apre­

cio de bom grado o encontro, deixando galhardamente a oportuni­

dade à contingência, confiante. Tímido ou temeroso, parece, não

desconfio, pode-se então dizer corajoso? Minha estima inicial pelo

outro, que o encoraja e freqüentemente o fortalece, me faz sempre

165 I· ,

colocar o comando acima de mim, aliás de saída acho-o melhor que

eu: generoso? Talvez, mas eis que de repente des·cubro que me jogo

por baixo, e por isso eis-me um pouco sujeito; no mínimo subjugado.

Defino o eu através dos contatos, das vizinhanças, encontros e rela­

ções: sim, na comunicação eu me construo, jogando-me imediata­

mente sob quem está à minha frente. Afinal sujeito? Mas me dou conta: a palavra sujeito também já não foi um adje­

tivo, que tardiamente se tornou um substantivo? Primeiro depen­

dente, submisso, coagido, exposto, exatamente obrigado como eu

poderia dizer à pessoa com que falo: agradecido, obrigado ... antes de

se tomar como ponto de partida de um enunciado lógico e gramatical

no qual esse ser individual torna-se uma pessoa e o suporte de atos e

conhecimentos. Adjetivo tão menosprezado que exprimia o dócil e o

obediente e que, de súbito, tomou o lugar principal e, ao substanti­

var-se, expulsou os outrOS adjetivos para fora do centro no qual, em filosofia, sua majestade passou a reinar? Deve-se reconhecer, no su­

jeito, um sujeito que teria tomado indevidamente o lugar central, um

rei de comédia, como Arlequim, Imperador da Lua, ou de tragédia e

então supliciado, crivado de flechas no centro? Quem sou, então, quando assim me jogo por baixo? Admirativo,

até entusiasta daquele que se revela inventiva e bom, respeitoso de

quem trabalha, surpreso com o generoso, violentamente desobedien­

te com quem ordena e troveja ou dita a lei, docemente irônico diante

do pavão, comovido pela beleza do corpo ou do talento, gelado para

com a grandeza do estabelecido, depressa rompendo com o vaidoso,

apresento minhas homenagens às criadas; por nascimento pertenço à

família dos humildes e raramente me curvo diante da alta roda, se­

gundo o personagem e o ambiente, eloqüente, taciturno, falante, ca­

loroso, reservado, ausente ou totalmente entregue ao outro. Quem

encontraste então, tu que me amas ou me odeias, para quem me

torno hostil ou indiferente? Um homem jovial ou modesto, selva­

gem, distraído, ao contrário, concentrado ... Afinal, tudo é verdade: diga-me, eu lhe peço, o que se deve en­

tender por mentira? A relação produz a pessoa, não acredito absolu-

166

tamente nas máscaras. Enterrado, lançado vivo sob o "nós" movedi­

ço da intersubjetividade, o eu, como se diz, faz o que pode: se adapta,

assujeitado aos laços da comunicaçãO. Mestiço, cruzado, hermafro­

dita, ambidestro, tatuado, vivo sob mil camadas de casacos remenda­

dos, posso me desembaraçar delas sem problema, isto não muda

grande coisa. Não acuse de máscaras os perfis que os outros dese­

nham em mim.

Servidor de mil amos, Arlequim se veste de seus súditos-especta­

dores, porque ele vive entre o público e faz parte dele; eis porque é

apenas um imperador de comédia, enquanto Salomão, exterior e dis­

tante, sobrecarregado com sua loucura solar, torna-se um verdadeiro

rei de tragédia. Em chamas, o trágico, sozinho, forja a unidade da

pessoa ao mesmo tempo que as de ação, de lugar e de tempo - o

sujeito do próprio saber, pelo menos no Ocidente, se fundamenta

nesse trágico -, ao passo que o cômico as deixa em sua multipli­

cidade. Assujeitado a seus sujeitos, o Imperador da Lua usa as cores

e os fraques deles. Implacavelmente, reconheço o teatro essencial do

doente mental no trágico ator solar: o comediante, normal, se encon­

tra em toda parte.

Quem sou eu então?, pergunto novamente. Solitário e social,

tímido e corajoso, humilde e livre, ardente, penumbroso, animal da

fuga e do amor, nunca uso pó-de-arroz nem maquiagem, nem más­

cara sobre o rosto, nem título sob minha assinatura ou no meu cartão

de visitas; sinto a roupa sobre a pele como um homem nu recoberto.

Sou por demais numeroso para jamais ter precisado mentir.

Sou então, na realidade, todos aqueles que sou dentro e através

dos relacion-amentos sucessivos ou justapostos nos quais me vejo em­

barcado, produtores do eu, sujeito adjetivado, sujeitado ao nós e livre

de mim: que o leitor por favor me perdoe: s6 falo de tudo isso (de

mim, de verdade?) para procurar com a maior lealdade do mundo o

que é dele. Então o eu é um corpo mesclado: constelado, manchado,

zebrado, tigrado, ocelado, mourisco, ao qual a vida vai se ajustar. Eis

que volta o casaco de Arlequim, costurado por adjetivos, quero dizer,

por palavras colocadas uma ao lado da outra.

167

Assim o infeliz desperta em mim o velho cristão de sono leve,

e dele faz nascer um novo, sobre um monte de palha, o poderoso pa­

ra ali conduz ° antigo cátaro, sempre presente, embora um autên­

tico holocausto os tenha erradicado a todos - não tenho mais bisa­

vós _, o dogmático empedernido ergue o zombeteiro que dorme e o

tolo desperta o inextinguível riso dos deuses, o violento suscita o

pacífico, e a beleza faz todos eles se ajoelharem. Serei então, por causa do relacionamento, um palco, um perfil

fugaz apagado diante de um horizonte decepcionante e mentiroso?

Não, eu sou a soma desses adjetivos, recém-substantivados (assim

comO se diz dos noVOS ricos), a iconografia dessas silhuetas, integral,

inquieta e flutuante, mergulhada no ruído e na disputa, no meio das

gritarias, no caos dos parasitas que gravitam em torno desse eu, exí­

lio banhado no dom dos choros, tórax afogado sob um lago de lá­grimas, uma total solidão líquida, em estado instável, solução sem

exclusão onde o fluxo do abandono de repente atravessa o espaço

variável da coragem, onde a camada aI1).arelada do despertar se es­

garça e se lança nO volume negro dos esquecimentos, onde alguns

jatos súbitos de orgulho se fundem sem amanhã numa enseada de humildade oleosa ... Sim, os adjetivos mergulham por si mesmos uns

dentro dos outros e brincam sem parar de sujeito: aglomerado onde cada qual a seu turno e às vezes todos juntos vão para o centro, mas

onde eles ocupam todos os lugares e todas as direções do espaço,

todos os sentidos. Quem eu sou, a partir daí, se exprime sem dificuldade: uma

mistura, um aglomerado bem ou mal temperado, exatamente um

temperamento. A palavra dizendo a própria coisa, eu sou, conse­

qüentemente, feito de tempo, deste tempo derivado da temperatura

ou da temperança. Como ele, a mistura é contraditória: de ontem até

amanhã, tudo pode virar ao contrário; ou, nO mesmo lugar e no

mesmo tempo, tudo se mistura. Contraditórios, a mistura e o tempo o são, como minha alma,

nebulosa, variável, ondulante, nuançada, aquitânia. Minha alma, a mistura e o tempo não podem ser ditos nem por substantivos, dema-

168

siado estáveis, nem por adjetivos, demasiado justapostos, mas se des­

crevem de modo mais preciso pelo conjunto de preposições: antes e

depois constroem sua fluidez viscosa, com e sem as partilhas hesitan­

tes, sobre e sob o sujeito falso e verdadeiro, para e contra as paixões

violentas, atrás e diante das hipocrisias covardes e as corajosas leal­

dades, dentro e fora das claustro fobias corporais e teóricas, sociais e

profissionais, entre e além da vocação metafísica de arcanjo-mensa­

geiro, de e através e até minha paixão por viajar ... topologia delicada

que exprime da melhor forma os lugares e as vizinhanças, os dilace­

ramentos e as continuidades, as acumulações e as raridades, as posi­

ções e as situações, os fluxos e as evoluções, a liquidez dos solventes

e dos solutos.

Não, eu não sou um problema; ao pé da letra, sou uma Solução.

E não tolerarei escrever títulos em meu cartão de visitas, a menos que

por isso se entendam as diversas relações das substâncias que se dis­

solvem nela, suas densidades na liga. Quem sou? Uma fusão de ele­

mentos que formam a liga, mais capazes de provocar coalizão do que de estar coalizados.

De temperamento aquitânio, portanto temperado como o clima

de minha paisagem natal, melancolicamente alegre, entusiasta e de­

sesperado, com nuances suaves, em doses instáveis e teores móveis,

segundo o minuto e os bons e maus encontros, qualquer parte ou

suspensão podendo de repente ver-se erguida, levantada, acordada

ou destacada sob o facho cruzado das circunstâncias ou das inter­

secções, pela exigência súbita de uma relação poderosa e pontual.

Uma espécie de pseudópode se projeta. Ele se estica. Ele se retrai.

Quem sabe, --nunca mais reaparecerá. Ou vai se tornar um axônio.

Que inventarei esta manhã, sob a ação de que talismã? Que proprie­

dade inédita surgirá desta nova mistura? Que fresca Afrodite nascerá,

gotejante, desta centrifugação inesperada?

Legião, eu tenho um oitavo de sangue negro. Carrego portanto

em mim, no mais íntimo de mim, ia dizer por baixo de mim, o

andrajo compósito dos tecidos que vestem minha vizinhança real e

169

virtual, o trapo onde mal se justapõem mil mímicas que o meu tempo

costurou e depois fundiu todas juntas, farrapo destroçado, é verdade,

mas farrapo transformado em minha própria carne, meu sangue lí­

quido misturado: quebequense da ilha dos Coudres no meio do rio

Saint Laurent, africano das margens do Níger, chinês do Yang-Tsé,

brasileiro, de Belém aos confins da Amazônia, os adjetivos locati­

vos por sua vez superabundam, meu sangue corre sob as margens

do Garonne, do Mackensie e do Yukon, minha carne sai do alu­

vião do Garonne, do rio Amour, do Ganges e do Nilo, eu descendo

do Garonne, do Huang, do Elba e do Mississippi, vim à luz nas nas­

centes do Garonne, do Tibre, do Pactolo e do Jordão, marinheiro de

mar na confluência dos rios da Terra, meu cartão de visitas é pareci­

do com os meus encontros, com um mapa geográfico. Mestiço, eu

sou legião, eu não sou o diabo, eu sou mapa-múndi e todo mundo ao

mesmo tempo.

E todo mundo, creio, é uma mistura como eu, sangue cortado

em mil teores e partes, correndo de todos os riachos em conjunto,

exceto, talvez, daqueles que leram e acreditaram nos livros que expli­

cam o princípio de identidade, cuja abreviação permite reinar. Mun-.

do, eu sou legião; não, isso não é uma doença.

Nunca os africanos acreditaram que eu era um toubab; os chi­

neses me imaginavam saído de uma minoria nacional qualquer, por

toda parte imigrado mais que emigrado; um índio da América che­

gou a me perguntar, durante um pow-wow, a que tribo eu pertencia.

Creio, no fundo de mim, que a pertinência faz mal ao mundo, na

razão da exclusão. Eu a trato pela intersecção de cem mil pertinên­

das, mestiço.

Camponês, sim, aprendi a trabalhar a terra; merceeiro, vendi

azeite e sal; marinheiro, decerto; quebrado r de pedras e pedreiro,

terei feito outra coisa do curso de minha vida; vagabundo, talvez;

monge, certamente; eis que há pouco tempo me tornei montanhês

noviço; em busca da santidade, apaixonadamente; escritor, sim, es­

pero; filósofo, choro de emoção e de esperança diante da idéia de que

poderia tornar-me um ... Sim, todos, eu os compreendo a todos.

170

_.

~

Que eu não sou? Touro, serpente, lince, cão, lobo, gaivota? Sou

e compreendo toda a arca. Do dilúvio fluido e da aliança derretida.

Que animal não me serviria de totem? Raposa? Não, eu vivo como

um animal sem espécie. Sem gênero, sangue misturado, sem per­

tinência: livre, livre, no espaço irisado de misturas, animal de tempe­

rança e de temperamento, ser de tempo.

Quem sou eu, líquido, entre as lágrimas ocultadas? Quem sou

eu, topológico e temporal? Quando o silêncio, enfim, e a noite insu­

larizam a solidão, quando se cala a língua que mantém a guarda

contra os outros em mim - como amordaçar o bico desse tagarela

irremediável? - erguem-se as vozes, a tonalidade musical funda­

mental que me acompanha desde a mais alta infância, contínua sem

ruptura, ruptura contínua, armação ou armadura que me contém e

cuja tessitura indica minha modalidade própria, sons puros privados

de sentido, eu sou, eu ouço a flauta e q violoncelo, a balada e o canhão, a mandara e a tuba, viela e rabeca, as serenatas e os balés,

cavatina e rigodão, soprano, baixo cantante, em mim carrego os

grandes órgãos, minhas delícias e amores: bordão, nasardo e flauta

rústica. Mas, novamente, essas peças ou instrumentos se misturam,

às vezes em harmonia, com freqüência ruidosas, lamentando-se sem­

pre, desordem, charivari, acúfenos atonais de onde emergem rara­

mente as Afrodites gotejantes dos achados musicais. Ou um puro grito de dor.

No fundo do fundo jaz e se move a música, fluxo e rio homogê­

neo e turbulento, que leva e é levado pelo tempo; no fundo do fundo flutua o ruído de fundo.

Ali eu me lanço no mundo das coisas, que se lança sobre mim.

Eu: barulho violento. Eu: nota longa. Eu: pronome, quando a

língua, enfim, se mistura às misturas, para esquecer, única mentira

verdadeira, e apagar a multiplicidade das peças. Eu: terceira pessoa,

cada um, os outros, todos, aquilo, o mundo, e a terceira pessoa im­

pessoal das intempéries temporais: chove, chora, venta ... e se lamen­

ta; troveja, grita ... música, ruído; de repente, é preciso, e eis-me aqui,

ético, reunido, de pé, no trabalho, desde a madrugada.

171

A filosofia clássica aconselha passar os modos e atributos, cir­

cunstâncias, para a substância; os adjetivos, volúveis e inconstantes,

para o substantivo estável e fixo: mas a palavra sujeito, eu já disse, foi

um adjetivo antes de se transformar em substantivo. Trapaceiro! Dir­

se-ia que o volúvel, depois de ter vivido, se fixou.

Ao ouvir ou compor variações sobre um dado tema, você às

vezes não se pergunta se o próprio tema não se desenvolve como uma

variação entre outras? Mais simples, sem dúvida, mais puro, mais

curto, decerto, mas por que separá-lo delas? Há tanta distância entre

essas últimas quanto entre elas e o tema, que nada impede, então, o

que chamo de variação sobre uma das variações. Por que o prejulgar

mais estável e mais bem centrado do que a elas? Sim, o tema é apenas

uma das variações.

Da mesma forma, o rei também é um sujeito, um homem entre

tantos outros, dois pés, dez dedos, no melhor dos casos, e seus pontos

de apoio sobre a mesma terra que eu. A prova é que, desde que a

guilhotina o acolheu, todos os seus sujeitos de outrora, com raras e

sábias exceções, sonham em tomar o seu lugar ou o preparam para

receber o rei temporário, que não deixa de ser sujeito, e mais ainda

que os primeiros, no sentido político, uma vez que o número de

atentados dirigidos contra ele ultrapassa de muito o número daque­

les tramados contra seja quem for. Ei-Io derrubado: deve saber que

deve seu lugar de rei ao fato de ser o mais sujeito dos sujeitos.

Adjetivo substantivado, tema-variação, rei-cidadão; assim, tam­

bém o sol central é apenas uma estrela marginal, anã amarelada e

medíocre, sem verdadeira grandeza, no imenso concerto das super­

gigantes, vermelhas como Betelgeuse ou azuis como Rigel. O rei Sa­

lomão, de volta entre nós, diria: nada de novo sob a galáxia do Cisne?

Já faz muito tempo que a revolução astrofísica nos ensinou a não

mais centrar ° céu nem o universo. Ouve-se até dizer que o ponto

original do big bang não teve lugar nem tempo.

Assim, o centro não é senão uma colcha de retalhos, conjunto

numeroso de peças compósitas. Ao Imperador da Lua, você pede que

172

'I

T I

se dispa para mostrar o que esconde: ora, ele não dissimula nada.

Tudo é de fato sempre e em toda parte como aqui, com graus de

grandeza e de perfeição próximos; quero dizer que tudo é casaco de

Arlequim, mesmo a substância, mesmo o tema, mesmo o sujeito,

mesmo o eu, mesmo o sol, meSmo os substantivos. A singularidade se

dispersa, a unidade se multiplica.

Mesmo Deus? Mas não é ele um dos segredos que eu desvelo:

único e triplo, múltiplo, adjetivo e substantivo, divino e divindade,

rei e sujeito, supergigante em sua glória central e anã perdida em um

estábulo da periferia, universal e singular, lei criativa, encarnação

trágica prestes a morrer, terceira pessoa por toda parte propagada?

Absurdo, impossível, inadmissível: não ousei dizê-lo; não, nunca

tive a coragem de expor aquilo em que creio.

Antes de tudo: não sei se creio, ignoro o que é crer, não sei que

pensamento, que ato ou que sentimento acompanham a crença ou a

fé. Sei, um pouco, o que é saber, eu sei o que sei, quando sei, como fiz

para sabê-lo, conheço a ignorância e a dúvida, a procura e a pergunta,

conheço o conhecimento, sua felicidade e seus objetos, seus cami­

nhos múltiplos, sua busca entusiasta e seus dese!tos, sua profunda

humildade, seu esquecimento raro e necessário da razão dominado­

ra. E reconheço o que sinto, arrumado para sempre dentro da caixa

preta do pudor. Será à mistura de um conhecimento incerto e de um

certo patético largado o que chamamos de crença? Não sei. Ou sei

que isso me é indiferente. Que me importa conhecer de onde vem

aquilo que JlOU ousar dizer: já estou bastante velho, quer dizer, bas­

tante forte para ter a coragem.

Não sei se creio em Deus. Sei que com freqüência não pude crer

em Deus: sou ateu em três quartos da minha duração. Contudo, por

fulgurações intermitentes, sei que o divino está aí, presente, na mi­

nha vizinhança, e que ele reina sobre o universo. Reinar, aqui, não se

refere absolutamente a um rei, mas a este modo de construção de que

fala um ladrilheiro quando diz, a propósito de um ladrilho hexagonal

173

e vermelho, que ele reina em todas as peças de uma mesma casa. Por

toda parte no universo, o divino constitui o tecido, outros diriam a

lei, eu prefiro descrever sua matéria ou sua carne. Disto tenho certe­

za, não agora, mas às vezes, raramente, de maneira extática. E quan­

do a longa ocultação se sucede ao breve raio intuitivo, eis-me certo de

que Deus não é: hipótese envelhecida e desnecessária. Talvez então

ele me abandone, sem dúvida me danando, relegando minha inteli­

gência a esta miséria. Deus nos terá abandonado a todos depois do

dia não muito distante em que nós o abandonamos?

Eu não creio, eu creio: isso não se decide, isso prossegue. Des­

crente místico, minhas raras certezas mergulham na morna incredu­

lidade. Ou durante os instantes em que creio, eu creio no Deus único,

muralha contínua do universo, fundamento, fundação e cumieira,

presença inevitável, vizinhança constante e sentido ... mas não posso

deixar por muito tempo os bosques sem hamadríades, o mar sem

sereias e as guerras das nações sem seu sagrado horror, as cidades sem

os templos da diferença e suas habitações sem os manes dos an­

cestrais: o ar se povoa de arcanjos que passam, de mensageiros in­

contáveis; sim, eis-me verdadeiramente pagão, o confesso, politeísta,

camponês filho de camponês, marinheiro filho de marinheiro; às ve­

zes vi os deuses fugirem quando desembarcava em uma ilha, ou apa­

recerem em toda a sua glória, já os escutei zombar, cruéis, abominá­

veis, nas encarnações de todas as potências, ouvi muitas vezes as

legiões de demônios soltos no trovejar dos canhões, sim, fui aterrori­

zado pelo próprio diabo - quem não percebeu seu corpo monstruo­

so desenhar-se, real, por trás das nuvens do clarão atômico? -, mas

vi também passar uma deusa clara entre os sorrisos, palavra de filó­

sofo, eu Os percebi, e testemunho.

Creio, às vezes, no Deus de meu pai, ateu convertido de chofre

no meio dos obuses no campo de Verdun, creio, freqüentemente, nos

deuses de meus mais velhos ancestrais, sei muito bem, dentro de

mim, que eles enchem o espaço, que eles constituem o mundo, so­

bretudo: que eles soldam a sociedade.

Desde Nagasaki, sinto-me cada vez mais seduzido por minha

174

ascendência cátara: multidão de deuses reduzida a dois, dos quais

um, o do mal, mantém-se como mestre inconteste de tudo a que os

homens denominam poder e glória, a história, enquanto aquele da

bondade se esconde e desaparece na palha de um estábulo, tão afas­

tado, comum, apagado, que se torna inacessível. Tudo para o primei­

ro, nada para o segundo, desfigurado, derrotado, improvável.

Eu creio, creio acima de tudo, creio essencialmente, que o mun­

do é Deus, que a natureza é Deus, cascata branca e riso dos mares; o

céu variável é o próprio Deus: naveguei em Deus, voei no meio de

Deus, recebi sua luz verdadeira sobre as costas nos corredores de gelo

da montanha alta, quando alvorecia, até mesmo já escrevi, algumas

vezes, sob sua inspiração, traçando ingenuamente meu caminho de

humildade sobre a página divina, e, em virtude desse ofício, nunca

cessei de sobreviver por ele, com ele e nele ... mas, acima de tudo, você

é Deus, tu a quem amo e tu que me odeias, tu que passas e que não

conhecerei jamais, vocês que me excluíram, tu de cujos lábios recebi

flores primaveris, vocês, finalmente, que fazem o barulho, o caos de minha vida carnal e categorial...

... mas de quebra eu estou certo, absolutamente certo acima de

toda esperança, de que existe um buraco, uma falha bizarra nesse

panteísmo maciço e denso, uma exceção estranha, fonte de toda dor,

de que eu e apenas eu, nesse concerto divino atravessado de rumor,

não sou Deus; somente esta falha feita do nada não é Deus; novo

sentido, muito agudo, da velha palavra ateu. Aqui, sem Deus. Aqui,

somente, Deus fica ausente. Minha parte do destino é esse lugar de ateísmo.

Tudo é peus, exceto aquele que o escreve, que larga a pena no meio do choro.

o um. O centro. O sol. O tema. A substância. Deus. O nome próprio: Salomão, Arlequim, o autor deste livro.

O múltiplo. A periferia compósita. As estrelas de todas as magni­

tudes. As variações. Os atributos, o casaco em frangalhos. Os adjeti­

vos múltiplos: gentil, cortês, tagarela, taciturno ... Mais adiante: a

175

mistura fundida, a música, o tempo, o ruído de chocalho que os

moinhos fazem, as almas e o mar.

O múltiplo e a unidade se apresentam, na realidade, como singu­

laridades limites em uma variação. Eis aqui uma imagem simples

disso. Suponhamos um mosaico: ele justapõe milhares de elementos

de formas diversas e cores variadas, cujos limites desenham uma es­

pécie de rede. Eis o múltiplo: mapa-múndi, casaco de Arlequim, cen­

tão de textos diversos.

Seja um quadro pintado a óleo sobre uma tela, representando a

mesma cena que o mosaico: a rede desaparece, as vizinhanças se fun­

dem, os elementos, apagados, dão lugar a uma camada contínua de

formas e cores mescladas. La belle noiseuse, obra-prima desconhecida

de um pintor sem nome, faz emergir um pé soberbo de um caos de

tonalidades.

No grafo de geometria correspondente, mergulhado num espaço

homogêneo e isótropo, as curvas se desdobram segundo leis e são

determinadas graças a retas, verticais e horizontais; os pontos não

têm partes, as linhas e os planos não têm espessura: o reino de um

sucede neste caso ao do múltiplo em mosaico e à mistura das cores

líquidas sobre a tela.

Podemos, por um lado, tirar o mosaico do quadro, fazendo re­

cortes, depois um jogo de quebra-cabeças ou de paciência a partir de

seus traços, ou região por região. A mistura tende então para o múl­

tiplo, partes extra partes. O descontínuo emerge da continuidade, co­

mo os números inteiros sobre a reta real. Os elementos fundidos na

mistura se separam bem ou mal. O mosaico mostra os grãos. A rigor,

seria verossímil dizer que se fosse possível ver La belle noiseuse infi­

nitamente de perto, encontraríamos nela essa disposição granular.

Pode-se imaginar, ao invés, uma mistura tão infinitamente diluí­

da que as cores se esmaeceriam para deixar aparecer a homogenei­

dade. Uma gota de mel, um pingo de leite, um pinta de sangue no

mar Mediterrâneo não poderiam perturbar sua cor uniformemente

avinhada. Então as volutas complicadas se simplificam ao extremo,

todo detalhe se anula e os objetos se vitrificam: a aproximação cede

176 ,-I

lugar à precisão, a mescla tende infinitamente ao puro e a pintura à

geometria. Fazendo um balanço, o múltiplo e o um tornam-se singularida­

des limites da mistura. Esta não cessa nunca, perma~e}:e ali, nos cerca

e nos banha; talvez devamos chamá-la realidade, que conseguimos

pensar com a ajuda de duas singularidades opostas: seu limite do lado

do um, e seu outro limite sobre as faces do múltiplo, Arlequim ves­

tido em seu casaco, Salomão e seu sol. O monismo e o pluralismo são filosofias limites construídas

abstratamente sobre um fundo real de mistura. A primeira o geo­

metriza, enquanto a segunda propõe fazer dele um mosaico, recor­

tá-lo num jogo de paciência, uma imagem na tela de um receptor de

televisão. Como falar da mistura? Por meio, novamente, das preposições.

Se devêssemos descrever La belle noiseuse ou o casaco de Arlequim,

deveríamos nos abastecer incessantemente em sua lista ou rubrica:

tal cor ou tal forma se encontra dentro ou fora, antes ou entre, além

e contra, sobre ou sob, segundo ou até esta ou aquela outra: eis a

topologia que volta. Ora, existe uma topologia do primeiro grafo de geometria-, uma

do mosaico, finalmente uma outra do quadro. A descrição rigorosa

que ela propõe, ou a que utiliza as preposições, vale portanto para os

três esquemas em conjunto. O que eu queria demonstrar. Mas, para passar da mistura ao múltiplo e deste à unidade, nós

atravessamos um espaço ou um tempo que vibra e treme como a

cortina de chamas iluminando a rampa do teatro onde Arlequim se

despiu. Às vezes percebemos o um, segundo distingamos o múltiplo

ou nos banhemos no aglomerado. Porém, posso descrever ainda, da mesma forma, a dança do fogo

que nos ilumina, por fagulhas contínuas, rasgadas, curtas, longas,

longínquas, vizinhas, sobre e sob, fora e dentro, diante, atrás, após,

antes, além e entre ... O que eu queria demonstrar.

177

Fogo. Imagino uma pirâmide, um prisma, absolutamente trans­

parente. Quando a luz branca do dia, ela mesma invisível, mas capaz

de fazer tudo ser visto, se lança a uma face desse prisma cândido, vai

ressurgir adiante num arco-íris de cores fundidas e distintas: não

falta uma sequer. Espectro das estrelas, casaco de Arlequim. Quem

sou? Ninguém, absolutamente falando. Nulo. Tão pálido e diáfano

que perco a existência. Espectro lívido e desfeito, prestes a se dissol­

ver no ar. Nada, a rigor. Saído do branco, do invisível, do cândido e

do transparente. Zero. Sólido puro entregue inteiramente à luz, de

onde ela venha, alta e baixa, brilhante, discreta, firme e irregular.

Nenhuma s6 parte de ser, nada além do nada.

Então, tudo. A luz branca sobre a pirâmide translúcida explode

segundo o leque, mais que multicor, da pancromia. Nada, portanto

tudo. Nulo, portanto possível. Ninguém, portanto . todos. Branco,

portanto todos os valores. Transparente, portanto acolhedor. Invisí­

vel, portanto produtivo. Inexistente, portanto indefinidamente apto

ao universo. Eis de novo a lei.

Universalmente, portanto, porque o homem não é nada, ele po­

de: infinita capacidade.

Eu sou ninguém e não valho nada: capaz portanto de aprender e

de tudo inventar, corpo, alma, entendimento e sabedoria. Desde que

Deus e o homem morreram, reduzidos ao puro nada, sua potência

criadora ressuscita.

Eis porque pude e tive que escrever este livro: porque a apren­

dizagem, da qual aí está o fundamento, é a essência branca da ho­

minidade.

Tu. Dia

Homenagem. Meu amigo Hergé não queria nome, suponho, porque

assinava com as iniciais de seus primeiros nomes, Rémi e Georges. '*

* R.G., em francês ér-gê = Hergé, autor da série de livros infanto-juvenis em

quadrinhos, cujos heróis são Tintin e seu cão Milou. (N. da T.)

178

Uma sigla assim mostra e esconde que ele começava apenas a ser ou

existir, como uma criança. O pudor libera o essencial e o reserva.

Tintin também não tem nome, nem mesmo um apelido, apenas uma

onomatopéia. Nós evocamos essas duas sombras, nós não as chama­

mos pelos nomes.

Quem era então, traço por traço, aquele que alegrou a nossa infância?

Georges era branco: luminoso, diáfano, deslumbrante porém

calmo. Adepto ou inventor da linha clara, * no trabalho, habitava

uma casa de cores suaves e um corpo límpido e puro. Lembro-me

dele como de uma transparência; sua inteligência levitava, e quando

estávamos juntos eu sabia que estava lidando com um anjo. Tintin

parece-se com Hergé, mas sobretudo Raio Sagrado.** Nas altas re­

giões do Tibete descobrem-se todas as chaves do segredo: a neve

branca, o monge em êxtase, o amigo perdido e o bom abominável. '*** Não mais malvados sacrificados nem punidos, O mundo atroz de

derrotas e vitórias finalmente aplainado, a grande conversão, exata­

mente oposta à que lhe aconselhavam. A linha clara desvela o con­

junto de suas incandescências.

Georges, então, ou Hergé, que assinava com um nome em bran­

co, amou uma colorista.

Trinta raios convergem para o ponto radial, diz a sabedoria chi­

nesa, pois o pequeno vazio bem no meio confere força, coerência e

função à roda. Mais de vinte álbuns das aventuras de Tintin brilham

como uma madrugada a partir desta vida, mas como chamar a luz

cristalina, transparente e branca que deu nascimento - através de

que prisma't:- a essas imagens em que milhões de crianças e adultos se reconhecem já há tanto tempo?

Como encontrar-lhe um nome? Gênio? Sim, entre os notáveis e

as glórias conseqüentes que pude encontrar em minha vida, creio

* Desenho de traço contínuo e colorido uniforme. (N. da T.)

,.,. Raio Sagrado é outro personagem da história. (N. da T.)

*,.,. Referência ao "abominável homem das neves" em Tintin no Tibete. (N.da T.)

179

poder dizer que Georges se destacava como o único gênio verdadeiro.

Cite então uma obra lida continuamente desde mais de meio século

por várias gerações, cada uma delas a relendo, ao mesmo tempo que

a seguinte a descobre. O gênio não é definido apenas por esse reco­

nhecimento crescente, mas sobretudo pela relação secreta que man­

tém com as duas manifestações positivas da vida: o cômico e a crian­

ça. As sobrinhas frescas e o tio de cabelos brancos riem juntos com

Moliére e Aristófanes, que ninguém sobrepuja em força e vigor. Os

altos momentos das culturas começam por essas grandes explosões

de alegria juvenil: a criatividade ri.

Hergé perde nas neves do Himalaia os últimos valores negativos,

de modo que sua obra diz um imenso sim, único e raro num século

que amou, em suas artes e por suas ações, a destruição e as ruínas e

que se compraz na esterilidade. O que anuncia, para nós, crianças até

os 77 anos diante das nossas obras a realizar, este sim ingênuo, nati­

vo, confiante, vivo, vital, risonho e novo? Transparente, cândido.

o dominó branco vale por todas as cores, virtualmente: segundo

seja colocado aqui ou ali, ei-Io um, dois ou três. Ele deve esse desem­

penho à sua brancura: zero e reunião de todas as cores, esta as con­

tém e as apaga, tudo e nada. A luz branca se decompõe no espectro

do arco-íris e o absorve, como a cauda de um pavão se fecha após

formar uma roda. Se você quer se tornar tudo, aceite não ser nada.

Sim. O vazio transparente. Essa abstração suprema e esse distancia­

mento equivalem à polivalência. Embranquecido, compreenderás tu­

do e estarás aqui, à vontade, peixe, planta, flor, arcanjo ou luminar.

Hergé, assinando com as iniciais de seus primeiros nomes, sem

sobrenome, apenas existente, desenha, primeiro em preto e branco,

um personagem quase anônimo, designado por uma onomatopéia,

redondo como uma lua, a cabeça apenas marcada, sabendo tudo e

podendo tudo, capaz de todo o possível e reunindo em torno dele o

peixe Haddock, a flora Girassol e Castafiore, Serafim Lampião ... O

dominó branco produz e compreende a série de todos os dominós. O

centro criador, a cabeça de Tintin ou o gênio de Georges brilham,

180

J. I' !

incandescentes, como a neve ou as geleiras do Tibete. Trinta raios, o

mundo inteiro, Ásia, América, as ilhas da Oceania, incas, índios e

congoleses, convergem para o cubo, onde a roda inteira recebe coe­

são e plenitude, existência e perfeição unicamente do redondo vazio

e transparente do meio, do centro cândido, cabeça de Tintin, alma

angélica de Georges, ar sob os pés de Raio Sagrado, banco de gelo, infância, tudo o que diz sim.

As circunstâncias vitais, encontros, esperas, viagens, mudanças e

ausências, trabalho, labor sobretudo, trabalho massacrante, maciço e

denso, invadindo os dias e as horas, ocupando as noites, deixando o

corpo e a alma ao mal dos tempos, todos os detalhes de uma vida

entregue à obra, convergem juntos, no centro, para um homem, meu

amigo, ao qual faço publicamente testemunho de que, transfigurado

por ela, seu rosto se iluminava como o sol, branco. Como desenhar

seu retrato no meio da rosácea, uma vez que a luz originada dele

produzia todos os desenhos, todos os retratos explodindo sobre o

contorno do vitral, vinhetas múltiplas que nos fascinam desde nossa amarga infância?

E que nos fascinam porque a mancha branca, a cabeça inofensiva

e quase inexpressiva, infantil, indeterminada, de Tintin fura a página

ou abre sobre o quadrinho uma dessas janelas pelas quais, nos par­

ques de diversões e nas festas populares, quem quiser sua foto como

herói, vedete ou rei, pode escorregar seu rosto ou seu peito e reapa­

recer, do outro lado, num cenário de floresta virgem, de palácio ou

de ópera. Mas pode acontecer também que uma máscara de touro lhe

caia por cima da cabeça e sobre os ombros e que ele se vá, titubeante, com seus acessórios ...

Cada leitor enfia então seu corpo na abertura deixada por essa

ausência branca e diz para si mesmo, evocando-o: Tintin sou eu. O

aventureiro, por sua vez, qualquer que seja seu nome, se identifica

pela mesma razão e participa de mil indivíduos diversos, de todas as

classes, etnias, culturas, latitudes, dos personagens desta enciclopédia

em elipses ou parábolas que faz de Hergé o Júlio Verne das primeiras ciências humanas.

181

Remontando dessa multidão, agitada e suave para seu animador

ou seu criador, ascendemos à luz clara e calma, quase ausente, da

qual uma série de transparências produz, em troca, as espessuras.

Quem já andou por Shangai, o Tibete, a Escócia ou o Oriente

Próximo não pode deixar de dizer: reconheço esta paisagem que se

parece estranhamente com a que vi na minha infância através dos

olhos de Tchang ou do filho do emir. Como pode ser que, bloqueado

pela guerra em uma volta do Garonne, eu tenha viajado tanto, apren­

dido tantas coisas sobre os homens? As coisas viram pelo avesso,

como por encanto: o mundo imita os quadrinhos memoráveis, os

modelos refletem a imagem, a vida passa a seguir os sortilégios da

arte. Existem até mesmo aqueles que não lançariam um olhar sequer

para as flores do campo, se antes não tivessem visto papoulas num

quadro qualquer de Renoir; não conheciam a Ile-de-France antes de

Corot. Essa experiência banal, que diz muito a respeito da experiên­

cia, tem sua origem no próprio autor, que obedece a esta lei bizarra

que inverte a ordem e a disposição das coisas: ele se submete e a

comanda. O homem de arte introduz corpo e bens, sangue, alegria e lágri­

mas em sua obra que passa a produzir por si mesma a vida como ela

vai e o mundo como ele se mostra, e portanto em particular este

homem que um dia pôs mãos à obra. Círculo encantado que alimen­

ta um com a outra e uma com o um, o homem e a obra, espiral que

não termina senão na hora da morte: não saberemos jamais se O

quadrinho torna-se branco porque o desenhista morre ou se ele mor­

re porque Tintin, dessa vez, não será bem-sucedido; círculo de fervi­

lhamento que faz nascerem, a partir do castelo de Moulinsart, como

de uma cornucópia da abundância, todas essas histórias sem frontei­

ras: prova de que muita gente e muitas coisas ali se escondem, nas

armaduras ou nas dependências. Vigie quem sai ou deixa traços: ali

está o tesouro. Diamantes, rubis, colares cujo valor explode longa­

mente durante o percurso aberto desta hélice invasora até os astros,

mas que volta sobre si para se alimentar dos antípodas no castelo, no

182

, ....

fetiche, no porão, na estátua, no próprio corpo do autor, desta forma

produto e produtor.

Georges cintilava com a luz branca de um diamante desse tesou­

ro. Ele tinha sempre o ar de sair desse castelo, que O assombrava ou

onde habitava. O círculo se ergue de não sei onde e sobe como uma

espiral opulenta que vai às duas extremidades do mundo e o encanta,

mas que sempre volta à vertical por si: Rameau conta medidas que

nascem naturalmente da própria música, cujas medidas produzem a

música de Rameau, e finalmente do próprio Rameau, que compõe as

medidas. Georges não parava de entrar ou de sair nesse moinho.

Assim, o retrato do homem se reduz ao olho da obra como se diz

a propósito do olho do ciclone, espaço calmo e ensolarado, lugar do

tesouro onde Georges brilhava, tranqüilo e diáfano.

Nas horas felizes em que nos esperava na soleira de sua casa,

braços abertos, olhos e rosto iluminados pelo sorriso e a bondade, eu

nunca passei pelo caminho de Dieweg sem que minha emoção sobre­

pujasse o reconhecimento para com aquele que alegrou minha infân­

cia. Eu adivinhava, por entre as minhas lágrimas, o enfeitiçador.

Bombardeios, deportações, guerras e crimes em massa esmaga­

ram a nossa infância, dentro do desespero e da dor, da vergonha

pelos homens, salvo o único encantamento que nos deram a China e

a Amazônia, luzindo por trás da linha clara e o perdão perturbador

do monstro abominável, desprezado por todos, e que se tornou, visto

de perto, misericordioso e bom, conversão no meio do deserto ima­

culado. Únicas luzes no seio das trevas. Para que serve viver, se nada

mais dá encanto ao mundo? Como e onde habitar, se não existe ne­

nhum lugar encantado no meio das destruições? E se tivéssemos so­

brevivido, naqueles tempos e naqueles lugares invivíveis, apenas pela

graça de tais utopias? Ainda o olho do ciclone, único espaço onde um

barquinho nada arrisca, silêncio branco no meio dos gemidos.

Entre o paraíso e a paisagem morna, entre o vale amargo e o

reino, o Messias e o homem da rua, a diferença, infinitesimal, brilha

como uma pequena lágrima.

183

As coisas e os corpos encantados parecem mergulhar numa água

límpida sob a qual cintilam como os diamantes ou as pérolas: trans­

figurados pela laca, um oriente ou uma aurora cuja natureza ignora­

mos, seu nimbo nos maravilha e nos protege.

Para fazê-los fulgurar assim, nos contentamos quase sempre em

imergi-Ios na transparência da língua ou no brilho do estilo, e às

vezes temos sucesso: nós os vemos luzir por trás das palavras claras,

ou se contrair, e se alinhar por trás do seu rigor quando não se con­

torcem sob a feiúra ou a secura dos termos. "As árvores e as plantas",

dizia La Fontaine, "tornaram-se em minha casa criaturas que falam;

quem não acreditaria ser isso um encantamento?" Aqui conversam

igualmente o girassol e a flor casta, plantas, mas também o hadoque,

peixe, com o cachorro, animal que normalmente late. Para realizar o

milagre, podem-se mergulhar uma a uma as palavras e as línguas no

sortilégio do canto, de onde vem a palavra encantamento.

As coisas imergem na palavra e esta mergulha na música: dupla

transfiguração pela obra poética, entrada de Wagner que sobe e desce

as gamas no espaço ou na escada de Moulinsart.

O desenhista não o entende assim. O encantamento, para ele,

dispensa o canto: a cantora ridícula executa de modo atroz a ária das

jóias e perde as suas, que se acredita terem sido roubadas, enquanto

elas brilham calmamente no ninho do quadrinho.

A história em quadrinhos abre um caminho original, diferente

do da linguagem, do ritmo e do som, e deixa que os seres e as coisas

fulgurem por suas próprias formas e em sua água singular: muda

poesia da linha clara. As vinhetas substituem as rimas e os pés caden­

ciados do fabulista clássico por cem ações diferentes, cujo cenário é o

universo. E eis que encontro o nome daquele que não queria um: eis

que a fonte dá a imagem da água brilhante e tranqüila.

Os retratistas, outrora, contornavam as cabeças santas, mártires,

virgens ou arcanjos, com uma auréola cuja luz indicava sua transfi­

guração. Riam de quem ri disso: a maioria das culturas, modernas ou

antigas, tem um nome especial para designar a glória que às vezes faz

184

os corpos explodirem, em uma explosão de energia ou de amor, bon­

dade, êxtase e de sua atenção fervorosa. Por esse sinal, reconhece-se

que a pessoa pensa: a idéia flui ou emana de seu corpo através de um

luzir dourado.

A glória social apenas imita pobremente esta auréola real que sai

do rosto. Os grandes pintores, dotados de um olho acurado, a viam.

Ou então eles projetam, em sua obra pintada, sua experiência e sua

atenção divinas ao reproduzirem as coisas do mundo tais como são

no minuto mesmo em que nascem das mãos de seu criador: infantes,

iniciais, pré-nomeadas, apenas começando.

Eu não sei mais o que escolher: a auréola descreve a luz que

emana do modelo ou do desenhista, ou será que ela fixa a fonte da luz

que os ilumina a ambos, ou ainda devemos vê-la como o olho que

verdadeiramente vê?

Para concluir este livro que diz e descreve as circunstâncias da

vida do mestiço instruído, como uma roda de raios em torno de seu

eixo, projetei traçar o retrato de meu amigo, um dos perfis desta vida.

Apenas pré-nomeado, eis o que é: vazio no meio desse círculo fulgu­

rante, brilhância branca, luzir da aurora, auréola clara, olho do pin­

tor e do ciclone, faiscante e calmo, tal como o conheci, como o amei,

pudico, reservado.

A terceira pessoa: fogo

Quando umJlOmem passa a nado um rio largo ou um braço de mar,

assim como um autor ou um leitor, lendo ou escrevendo, atravessa

um livro e o termina, um momento se apresenta em que ele ultrapas­

sa um eixo, um meio, igualmente distante das duas margens. Ali

chegado, continuar sempre em frente ou voltar atrás serão atitudes

equivalentes? Antes desse ponto, um pouco aquém desse instante, o

campeão não deixou ainda o seu país de origem, enquanto depois,

além, o exílio ao qual ele se destina já o submerge.

185

Fio emocionante, fino e delgado como uma aresta, esse limiar

decide a viagem e toda a aprendizagem, da qual apenas se percebe

esse lugar raro, tão abstrato que se poderia considerar inexistente, e

entretanto tão premente e tão concreto que estende sua natureza e

sua cor sobre a totalidade do trajeto, que consiste em ultrapassá-lo.

Toda a largura do rio ou do adestramento - do livro e, no meio

deste, do mundo - recebe tal influência, como se reproduzisse, am­

pliado, este fio. O limite de uma fronteira desenha, do lado de cá, as terras fami­

liares, e se faz mestiço na divisão, mas a viagem puxa e carrega esse

lugar mestiço através de todo o espaço assim partilhado. Antes dele,

já menos em casa que de costume, o noviço nada ou se desloca para

o que lhe é estranho; depois dele, quase chegado a outro lugar, ele

continua vindo de casa; meio inquieto, a princípio, e cheio de espe­

rança; já nostálgico, em seguida, e logo meio arrependido. Como

então um lugar singular pode parecer raro e, no entanto, se difundir

por toda parte, sobre o solo e dentro da alma, permanecer abstrato,

utópico, e contudo tornar-se panóptico ou pânico? Entenda-se por

isso a expansão em todos os lugares desta singularidade.

Embora nascido canhoto, escrevo com a mão direita, e a felicida­

de de viver num corpo assim completado nunca me abandonou, de

modo que suplico ainda aos professores, não para contrariar, como

se diz hoje, meus colegas de bombordo, mas para dar-lhes uma imen­

sa vantagem e harmonizar seus corpos, obrigando-os a segurar o

lápis com a mão direita, complementar. E, em prol da simetria, com­

pletar da mesma forma os destros. Como a maioria dos contemporâ­

neos abandona a caneta pelo console do computador, seu teclado

requer sobretudo dedos conjugados. Não sei por onde passa a linha que separa a esquerda e a direita

- e a fêmea e o macho -, se no meio do organismo, tão geométrica

e formal, sem dúvida, quanto a fronteira ou o eixo sobre o rio ou o

estreito, mas o corpo inteiro muda e se transforma segundo gire para

a direita ou para a esquerda, hemiplégico em ambos os casos, ou

segundo aceite se aventurar para o outro bordo, hermafrodita, navio

186

,

1 lO

de dois bordos, para a realização e o acordo. Ainda um golpe, e a

posição mestiça, rara, invade o sistema por completo: a pessoa inteira

se diz destra ou canhota - ou completa. Então anula-se em memória negra ou dilata-se em alma o lugar

mestiço: aberto, dilatado, ele se enche de pessoas mestiças. Aprender:

tornar-se gordo dos outros e de si. Engendramento e mestiçagem.

Como a terceira pessoa é espírito, o casaco e a carne de Arlequim se

semeiam de espíritos coloridos: fogos.

Um batimento, uma pulsação, um tremor como se vê numa cor­

tina de chamas que explode e aumenta de repente para clarear até o

horizonte e logo involui para não iluminar mais do que uma vizi­

nhança estreita e limitada ou anular-se na obscuridade, uma cinti­

lação palpitante animam, neste livro, a descoberta, em muitas re­

giões, de lugares mestiços e raros, finos como limites, agudos como

arestas, singularidades que podem ser consideradas fora do comum,

ambidestras, hermafroditas na que concerne às pessoas, mensageiros

que pertencem a dois mundos porque se põem em comunicação, tal

como Hermes, o deus dos tradutores, voando de uma margem para

outra, mas que se pode pensar em encontrar também sobre a terra ou

no mar, em ilhas ou caminhos; esses lugares mestiços dão a carne

viva e visível, quente e tangível na vida ou no espaço assinalável sobre

o mapa, do projeto mais intelectual, sábio ou cultural, e eticamente

tolerante, da instrução mestiça, meio harmônico, filha, entre duas

margens, da cultura científica e do saber tirado das humanidades, da

erudição e~pecialista e da narrativa artística, do coletado e do inven­

tado, conjúnto conjugado porque na realidade não se pode separar a

única razão da ciência universal e do sofrimento singular. Porque a

urgência o impõe hoje em dia, a história alcança este projeto, antes

raro. E, de súbito, engendramento multiplicado: essas singularidades

espaciais, carnais ou pedagógicas, sem que nada haja previsto, se dis­

seminam por toda parte, sobre todo o corpo, através do leito do rio,

no espaço intelectual, até desenhar uma síntese ou indexar um uni-

187

versal. A pequena chama explode. De nada a tudo; da soma, para trás,

a zero. Da comunicação fechada entre as duas primeiras pessoas, no

singular ou no plural, ao conjunto dessas terceiras que se anulam ou

tornam-se o todo da sociedade, do universo, do ser e da moral. Ja­

mais eu teria esperado tanto da luz viva, embora, a despeito de seus

fulgores, ela tolerasse a sombra negra, pelas incessantes divisões de

sua vibração.

Baixa, a chama clareava as vizinhanças; o fogo, alto, ilumina o

mundo. As páginas flamejam como um pedaço de lenha, onde a dan­

ça, curta ou ampla, das labaredas logo lambe o local, clareia o global

e súbito retorna à treva: dia, noite, manhã, claro-escuro. Ver: o fogo

clareia; mal: a chama queima. Dois focos, de uma vez: ciência fais­

cante, dor ardente.

Entre as circunstâncias improváveis e difíceis, guerra, tempes­

tade, acasos e insucessos do mar, nós abordamos uma ilha nula per­

dida na imensidão do Pacífico, onde os nativos se aplicavam a con­

dutas estranhas, mas onde aprendemos que a regra constantemente

seguida por todos os nossos semelhantes, dos quatro cantos da água,

se reduzia a uma exceção, sem dúvida monstruosa, de um univer­

sal somente refletido e descoberto por acaso naquela singularidade

abandonada. Como se uma opinião preconcebida tivesse conquista­

do todo o volume, enquanto a prudência humana e ponderada se

refugiava em localidades isoladas. O oblíquo conquistou o geral. O universal tem seu nicho no

singular.

Cintilação das chamas: anã amarela, o sol clareia menos o mun­

do que um canto do universo e este não se deixa ver em majestade

senão por ocasião de intuições breves e fulgurantes, evidentes e pro­

blemáticas, mas noturnas. A teoria do conhecimento nunca deixou

de tomar como modelo a emissão ou a expansão da luz. Esta repou­

sava nas trevas e devia triunfar no espaço e na história. Os contempo­

râneos, logo tornados relativistas e modestos, e a partir daí pruden-

188

, •

T

tes, se interessam vivamente em fixar sobre o detalhe um feixe lu­

minoso quase pontual, fino e aguçado como um raio laser. Nós tí­

nhamos abandonado a síntese unitária para nos reencontrar ou nos

perder deliciosamente nas delicadezas do ínfimo, esquecidos do uni­

versal em prol das singularidades prenhes de sentido. Confesso de

bom grado ter preferido por muito tempo o local que pode se abrir

agradavelmente a um global pretensioso, sempre suspeito de excesso:

e nadava para o meio de tal rio ou me interrogava gravemente sobre

minhas mãos ou as ilhas, atento a esses pequenos detalhes frívolos.

Definido por delimitação e especificidade, o ideal do conheci­

mento passa então das leis gerais para o debate detalhado, até uma

fragmentação infinitamente dispersa. Surpresa: em alguns lugares ou

vizinhanças, o universal se abrigava. Ou, extraordinariamente reno­

vado, ele não pede nem para se estender nem para reger; ele exige, ao

contrário, sua volta à localidade próxima e fina, adamantina, onde

foi detectado. A chama, minúscula, torna-se imensa, e volta ao nível

do solo.

Irregularmente, do local ao global, bate, dança, treme, vibra, cin­

tila esse conhecimento, como uma cortina de chamas. No centro da

síntese, o sol clareia o conjunto; ora, esta anã marginal se encontra

jogada aí, em alguma parte do universo. Essas duas proposições, a

universal e a singular, para um único sol, se mantêm verdadeiras ao

mesmo tempo. Diante dele, tão universal quanto a ciência, a questão

do mal e do sofrimento, da injustiça e da fome, tenebrosa, ocupa o

segundo foco ou o negro do universo, assim como a existência singu­

lar do homem indigente e dolorido.

Esse batimento não diz respeito apenas ao saber claro ou ao mal,

portanto aos princípios de toda aprendizagem e à amplitude do co­

nhecimento: haste de palha acariciada por um raio de luz emanado

de uma fissura, ou firmamento em seu conjunto sob o reino do meio­

dia, costumes e leis, mas diz respeito também à qualidade deles, ou

seja, à sua expressão.

Devotados à busca da verdade, nem sempre chegamos a ela, se e

189

quando chegamos, por análises e equações, experiências ou evidên­

cias formais, mas pelo ensaio, às vezes, e, quando o ensaio não pode

ir adiante, que o conto vá, se ele pode; se a meditação fracassa, por

que não tentar a narrativa? Por que a linguagem se manteria sempre

destra ou masculina, hemiplégica e limitada a uma metade? Aris­

tóteles dizia muito bem: o filósofo, enquanto tal, também narra; mas

acrescentava: aquele que narra, de alguma forma se mostra filósofo.

Criado nessas chamas irregulares, instruído, educado, ele engen­

dra em si pessoas mestiças ou espíritos que salpicam as suas formas e

os seus fulgores sobre seu corpo e sua alma, assim como as peças e

pedaços que compõem os fogos coloridos do casaco de Arlequim ou

o fogo branco que os soma.

Espírito: luz clara, pudica e retida, multicolorindo o corpo e a

alma como os milhões de sóis da noite consteIam o universo.

Re-nascido, ele conhece, tem compaixão.

Finalmente, pode ensinar.

190

1980-1990

, 'I

r

Este livro foi impresso na cidade de Aparecida, em março de 1993, pela Editora Santuário

para a Editora Nova Fronteira do Rio de Janeiro. O tipo usado nos títulos foi Gill Sans

e, no texto, Minion 10/14.

Os fotolitos do miolo foram feitos pela Scritta. O papel do miolo é off-set 75g,

e o da capa, cartão supremo 250g.

Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso Postal à

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 - Rio de Janeiro

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