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Mar de setembro
Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves - só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.
Eugénio de Andrade, in Mar de Setembro
Ilustração de Cathy Delanssay
O sol o muro o mar
Ilustração de Brenda Montes
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto de
escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do lugar
sagrado.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ilhas
Do lado do verão
Ilustração de Liu Ye
Vinha do sul ou de um verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
Eugénio de Andrade, in O outro nome da terra
Soneto de Eurydice
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.
Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.
E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.
Sophia de Melo Breyner Andresen, in No Tempo dividido
Ilustração de Alice Guicciardi
Inscrição
Ilustração de Jeffrey Larson
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
Sophia de Mello Breyner Andresen
Como o rumor
Ilustração de Maki Hino
Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das coisas
Amar
Ilustração de Sigrid Martinez
Bastava-nos amar. E não bastava o mar.
Joaquim Pessoa
Na praia
Ilustração de Angela Morgan
Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?
Ruy Belo, "Verão", in Todos os Poemas, Assírio & Alvim
Lua
Ilustração de Victor Nizovtsev
Entre a terra e os astros, flor intensa.
Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mala de viagem
Começa por guardar um sonho dourado
pelo sol, por onde corra o vento mais quente; põe
sobre ele o silêncio que acompanha o desejo
dos amantes, limpando-o das sombras
do inverno; protege-os com a negra foice
do destino, de lâmina embainhada na geada
matinal, cujo brilho anuncia já o céu
do meio-dia. Esvazia o búzio da madrugada
do seu recheio de amor, para que se possa ouvir
o mar sem o eco nocturno dos porões. Por
cima, põe as conchas do oráculo de rosto
apagado pelo degelo das estrelas. Lembra-te
que a casa que vais deixar não pode ficar
fechada; e que a chave do sono ficou entre
os seios nus da memória. Só assim
terás um rumo, e de cada vez que chegares
a mala estará pronta para a viagem.
Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável
Ilustração de Шлыков Геннадий- Gennady
Atravessara o verão para te ver
dormir, e trazia doutros lugares
um sol de trigo na pupila;
às vezes a luz demora-se
em mãos fatigadas; não sei em qual
de nós explodiu uma súbita
juventude, ou cantava:
era mais fresco o ar.
Quem canta no verão espera ver o mar.
Eugénio de Andrade, in O Peso da Sombra
Ilustração de Mariana Kalacheva
Apenas um rumor
Ilustração de Vincent Gibeaux
E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.
Eugénio de Andrade, in Os Amantes do dinheiro
Rapariga descalça
Chove. Uma rapariga desce a rua.
Os seus pés descalços são formosos.
São formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.
A chuva em abril tem o sabor do sol:
cada gota recente canta na folhagem.
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.
Uma gaivota passa nos meus olhos.
E a rapariga – os seus formosos pés –
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.
Eugénio de Andrade
Ilustração de Mariana Kalacheva
A Figueira
Ilustração de Eugenia Gapchinska
Não tenho mãos para o azul.
Sonho com o mar
que não está longe mas não vejo
arder.
Só a sombra parece estar em casa
debaixo dos meus ramos:
canta baixinho enquanto se descalça.
Eugénio de Andrade, in Com o sol em cada sílaba
Mar sonoro
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dia do Mar
Ilustração de Quentin Gréban
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dia do Mar
Ilustração de Jeffrey Larson
Praia
Ilustração de Anton Gorcevich
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua
E a curva do seu bico
Rói a solidão.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Coral (1950)
Ilustrações de Roel Obemio
Pescador da barca bela
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador!
Pescador da barca bela,
Ainda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Oh pescador!
Almeida Garrett
O mar. O mar novamente à minha porta.
Vi-o pela primeira vez nos olhos
de minha mãe, onda após onda,
perfeito e calmo, depois,
contra falésias, já sem bridas.
Com ele nos braços, quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo
seu coração de vidro bater no escuro,
até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.
Este mar, que de tão longe me chama,
que levou na ressaca, além dos meus navios?
Eugénio de Andrade, in Branco no branco
Ilustração de
Mariana Kalackeva
Fundo do mar
No fundo do mar há brancos pavores
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas
redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruídos vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada
coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Mar
Ilustração de Ani Castillo
Foi no mar que aprendi
Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma
Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia
Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Búzio de Cós e outros poemas
Praia
Ilustração de Adrienne Trafford
Na luz oscilam os múltiplos navios Caminho ao longo dos oceanos frios As ondas desenrolam os seus braços E brancas tombam de bruços A praia é longa e lisa sob o vento Saturada de espaços e maresia E para trás fica o murmúrio Das ondas enroladas como búzios.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido (1954)
As meninas as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.
a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.
e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.
Vasco Graça Moura
Ilustração de Arthur de Pins
Cena bíblica
No meio da praia deserta, uma baleia morta. O céu
estava cinzento. As ondas rebentavam em brancas
explosões. Dois ou três pescadores, e outras tantas
crianças, andavam à volta da baleia, tapando o nariz.
Nada a fazer por ela. Mas o vento levava o cheiro
para longe, e ao aproximar-me perguntava-me se
não seria de a abrir e ver se, por acaso, não haveria
um jonas no seu ventre. O pescador mais velho
afastou-me: «E se ali estivesse alguém, o que
teria para nos dizer?» Não soube o que responder:
que mensagens de um deus antiquíssimo? Que
recordações de um tempo de guerras e desastres?
Que memórias da mulher amada, de quem não
restam ossos nem imagens? No dia seguinte,
com um tractor, a baleia foi enterrada bem fundo,
numa cova ao seu tamanho. Dizem que nenhuma
planta cresceu ali, desde então. E ainda hoje me
arrependo de não ter ouvido o apelo de jonas,
e de não o ter tirado do ventre da baleia.
Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável
Ilustração de Carmen Arvizu
estou deitado sobre a minha ausência, como poderia estar deitado se existisse. amanhã as ondas imitar-me-ão na praia.
José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas
Ilustração de Svjetlan Junakovic
Ilustração de Kristyna Litten
Tal como nós temos coração, intestinos, rins, fígado…
…o mar tem peixes.
Afonso Cruz, “2 de Julho”, in O livro do ano, Alfaguara