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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X PILAR: IDEIAS PARA A VIDA Bianca Rosina Mattia 1 Resumo: A jornalista e Presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río, ultrapassa as páginas de dedicatórias nos livros de Saramago, seu companheiro durante os últimos vinte e quatro anos em que esteve vivo. À frente do legado literário do escritor, ela mostra que seu nome tem voz, voz da mulher que não se anunciou apenas como esposa, tampouco depois do falecimento de seu marido, como viúva dele. Nesse sentido, este ensaio tem por objetivo sugerir uma possibilidade de pensar, não só a produção literária do autor sob o viés da vida literária, mas, especialmente, em como a tradutora e jornalista, também esposa e dona de casa, Pilar del Río, assume-se diante da obra do escritor e do homem José Saramago. Com isso, o objetivo abrange, ainda, a proposta de uma nova perspectiva para o estudo da produção literária de um autor e, dessa forma, busca evidenciar uma invisibilidade que pode (e deve) se tornar visível porque se faz presente, com voz, ideias, atitudes e influências, sobretudo porque enquanto mulher do escritor, Pilar del Río não se apagou ao seu lado. Assim, voltar o olhar para a presença da mulher na vida literária de um escritor é um ato de insubmissão aos tradicionais registros históricos que, ou apagam a presença feminina na vida dos escritores, ou restringem as mulheres às funções de esposa e musa inspiradora. Palavras-chave: José Saramago. Mulher de escritor. Pilar del Río. Visibilidade. [...] estávamos em casa, e a Pilar... estávamos a conversar sobre várias coisas, e a Pilar a certa altura, perguntou: - Mas vamos lá ver, o que é que tu queres que eu faça? E eu, que nunca tinha pensado nisso, apesar de nunca ter pensado nisso, tive a resposta pronta e imediata: - Continuar-me. (José Saramago) A história literária, ao longo de seus registros, esteve pautada pelo protagonismo do escritor enquanto produtor da literatura. As investigações que passaram a abranger objetos até então desconsiderados para os registros históricos da literatura não datam de muito tempo. Dentre eles, a mulher do escritor confere uma nova visão aos estudos literários. Como observa Regina Zilberman (1994), embora o conceito de “mulher de escritor” não seja “expressão pertencente ao jargão da Teoria da Literatura, nem constitui categoria estética, ele não deixa de apontar para o funcionamento do sistema literário, colaborando para calibrar e balizar o lugar das personagens que fazem parte daquele.” (1994, p. 419). Elas, as mulheres de escritores, não se restringem a serem suas musas inspiradoras nem anjos do lar, mas são mulheres independentes, com identidades e que ainda antes de serem mulheres de escritores, são mulheres. Por unirem-se a eles, contudo, e 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: [email protected].

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

PILAR: IDEIAS PARA A VIDA

Bianca Rosina Mattia1

Resumo: A jornalista e Presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río, ultrapassa as páginas

de dedicatórias nos livros de Saramago, seu companheiro durante os últimos vinte e quatro anos em

que esteve vivo. À frente do legado literário do escritor, ela mostra que seu nome tem voz, voz da

mulher que não se anunciou apenas como esposa, tampouco depois do falecimento de seu marido,

como viúva dele. Nesse sentido, este ensaio tem por objetivo sugerir uma possibilidade de pensar,

não só a produção literária do autor sob o viés da vida literária, mas, especialmente, em como a

tradutora e jornalista, também esposa e dona de casa, Pilar del Río, assume-se diante da obra do

escritor e do homem José Saramago. Com isso, o objetivo abrange, ainda, a proposta de uma nova

perspectiva para o estudo da produção literária de um autor e, dessa forma, busca evidenciar uma

invisibilidade que pode (e deve) se tornar visível porque se faz presente, com voz, ideias, atitudes e

influências, sobretudo porque enquanto mulher do escritor, Pilar del Río não se apagou ao seu lado.

Assim, voltar o olhar para a presença da mulher na vida literária de um escritor é um ato de

insubmissão aos tradicionais registros históricos que, ou apagam a presença feminina na vida dos

escritores, ou restringem as mulheres às funções de esposa e musa inspiradora.

Palavras-chave: José Saramago. Mulher de escritor. Pilar del Río. Visibilidade.

[...] estávamos em casa, e a Pilar...

estávamos a conversar sobre várias coisas, e a Pilar a certa altura, perguntou:

- Mas vamos lá ver, o que é que tu queres que eu faça?

E eu, que nunca tinha pensado nisso,

apesar de nunca ter pensado nisso, tive a resposta pronta e imediata:

- Continuar-me.

(José Saramago)

A história literária, ao longo de seus registros, esteve pautada pelo protagonismo do escritor

enquanto produtor da literatura. As investigações que passaram a abranger objetos até então

desconsiderados para os registros históricos da literatura não datam de muito tempo. Dentre eles, a

mulher do escritor confere uma nova visão aos estudos literários. Como observa Regina Zilberman

(1994), embora o conceito de “mulher de escritor” não seja “expressão pertencente ao jargão da

Teoria da Literatura, nem constitui categoria estética, ele não deixa de apontar para o

funcionamento do sistema literário, colaborando para calibrar e balizar o lugar das personagens que

fazem parte daquele.” (1994, p. 419). Elas, as mulheres de escritores, não se restringem a serem

suas musas inspiradoras nem “anjos do lar”, mas são mulheres independentes, com identidades e

que ainda antes de serem mulheres de escritores, são mulheres. Por unirem-se a eles, contudo, e

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,

Brasil. E-mail: [email protected].

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partilharem uma vida comum, elas, de diferentes formas, fazem parte dos projetos literários dos

escritores com os quais se casam e, por isso, a importância da sua visibilidade na história da

literatura.

Em junho de 1986, a jornalista espanhola Pilar del Río e o escritor português José Saramago,

encontraram-se em Lisboa2. Desde então: Pilar e José, José e Pilar. Para José Saramago “foi um

mundo novo que se abriu” (2010 [1998], p. 82) e afirmou que “com 63 anos, quando já não se

espera nada, encontr[ou] o que faltava para passar a ter tudo.” (2010 [2003], p. 86).

Após ler O ano da morte de Ricardo Reis, – antes já havia lido Memorial do Convento; os

únicos dois romances de Saramago até então traduzidos para o espanhol – Pilar del Río decidiu ir

até Lisboa a fim de conhecer os lugares narrados no romance e pareceu-lhe “justo telefonar para o

autor para agradecer-lhe o livro e a emoção que [lhe] proporcionara.”3 (RÍO; ARIAS, 2004, p. 123).

A primeira impressão que lhe causou José Saramago, afirma a jornalista, foi a de “que não havia

diferença entre autor e obra. Que ele era como seus romances ou, melhor, que os romances eram

expressão dele”4. (RÍO; ARIAS, 2004, p. 132). Mudou-se para Lisboa e, em 1988, casou-se com

José Saramago. A mudança para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, ocorreu depois. Saramago dedicou-

lhe os livros e (com)partilhou a vida durante os últimos vinte e quatros anos em que esteve vivo.

Para o público leitor, o escritor a apresentou na primeira página de História do Cerco de

Lisboa, em 1989 e, como quem chega para ficar, assim o fez nos demais livros5 que publicou até

2010, ano de seu falecimento. As dedicatórias feitas a Pilar del Río compõem um forte paratexto na

2 “[Dezesseis horas] é a hora em que Pilar e eu marcamos um encontro pela primeira vez. Pilar é o centro da minha vida

desde que a conheci, há dezessete anos. Foi ideia minha parar os relógios da casa às quatro da tarde. Isso não significa

que o tempo ficou detido ali, mas que é como se o relógio marcasse a hora em que o mundo começou.” (SARAMAGO,

2010 [2003], p. 86). 3 Conta Pilar: “Acabei de ler o livro chorando compulsivamente porque tinha chegado ao fim, perguntando a mim

mesma: que é que eu vou fazer o resto da minha vida agora que o livro acabou? [...] Ainda em Sevilha eu consegui

localizá-lo [Saramago] e telefonei para lhe dizer que estava indo e que gostaria de cumprimentá-lo, se fosse possível.

Foi possível, nos cumprimentamos, nos encontramos e conversamos em Lisboa. Nas duas horas que passamos juntos,

visitamos inclusive o túmulo de Fernando Pessoa, no cemitério dos Prazeres, e juntos fomos a outros locais de Pessoa e

lemos alguns fragmentos do livro.” (RÍO; ARIAS, 2004, p. 132). 4 Em 2009, Pilar relata à jornalista Anabela Mota Ribeiro: “Quando nos conhecemos ele estava a escrever A Jangada de

Pedra. Está lá descrito o nosso encontro: de outra maneira, noutro sítio, mas há uma mulher, e de repente ele sabe que é

aquela a mulher, que tem de ser. Ele sabe que algo se passou, e ela sabe, não se verbaliza, mas ambos preparam as suas

vidas.” (RÍO; RIBEIRO, 2009) 5 História do Cerco de Lisboa, 1989: A Pilar; O evangelho segundo Jesus Cristo, 1991: A Pilar; Cadernos de

Lanzarote, 1993: A Pilar; Ensaio sobre a cegueira, 1995: A Pilar; Todos os nomes, 1997: A Pilar; A Caverna, 2000: A

Pilar; O Homem Duplicado, 2002: A Pilar, até ao último instante; Ensaio sobre a lucidez, 2004: A Pilar, os dias todos;

Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido, 2005: A Pilar, meu pilar; As intermitências da morte, 2005: A Pilar, minha

casa; As pequenas memórias, 2006: A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar; A viagem do elefante,

2008: A Pilar, que não deixou que eu morresse; Caim, 2009: A Pilar, como se dissesse água; O Caderno, 2009: Este

livro não necessita de ser dedicado a Pilar porque já lhe pertencia desde o dia em que me disse: “Tens um trabalho,

escreve um blog”.

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obra de Saramago. Em uma dedicatória, como observa Gerard Genette, há sempre dois

destinatários: um deles é o dedicatário, mas há outro que é o próprio leitor, uma vez que a

dedicatória é um ato público que convoca o leitor a ser sua testemunha6. (2009, p. 123). Mais do

que testemunhar a demonstração de José Saramago, que está “a serviço da obra, como argumento

de valorização [...]” (GENETTE, 2009, p. 123), as leitoras e os leitores acolheram uma nova

identidade do escritor7, porque a partir de então, não era apenas José Saramago, mas havia também

a Pilar.

A presença de Pilar del Río ultrapassa a primeira página dos romances e se firma ao lado do

escritor e do homem José Saramago. Pensar na identidade de um, especialmente para nós leitoras e

leitores, passou a ser pensar na identidade dos dois. Não raras vezes, porém, uma dessas identidades

se obscurece diante da outra. A figura do autor homem ganha maior visibilidade que a da esposa

mulher. Contudo, uma vez que homem e mulher se encontram, a relação “é dialogal, circular e auto-

implicativa”8 (BOFF; MURARO, 2002, p. 62) e é nesse sentido que se torna possível pensar um

José Saramago que já é outro desde seu encontro com Pilar del Río.

Neste ensaio, minha proposta é a de, a partir da presença e da voz de Pilar del Río na vida de

José Saramago, sugerir uma possibilidade de ler e perceber a produção literária do escritor tendo

como fio condutor – em contraponto ao que tradicionalmente é registrado na história da literatura –

a vida literária, especificamente, em como a esposa e tradutora, também jornalista, dona de casa e

Presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río, assume-se diante da obra do escritor e do

homem José Saramago e de seu legado literário.

Nascida em Sevilha em 1950, filha de Carmem e de Antônio, Pilar del Río é a mais velha de

quinze irmãos. Com personalidade forte, Saramago afirma que ela sempre foi veemente e diz: “Eu

creio que ela nasceu veemente, não há nada a fazer contra isso. Nem há qualquer interesse em fazer

algo contra isso, ela é assim como é.” (SARAMAGO; MENDES, 2012, p. 71). Ao ser indagada

6 Conforme Genette, “‘Para Fulano’ comporta sempre uma parte de ‘Por Fulano’. O dedicatário é sempre, de alguma

maneira, responsável pela obra que lhe é dedicada, e à qual ele leva, volens nolens, um pouco de seu apoio e, portanto,

de sua participação. (2009, p. 124, grifos do autor). 7 Em um determinado momento no filme-documentário de Miguel Gonçalves Mendes, José e Pilar, mostra-se uma

entrevista com José Saramago na qual o entrevistador afirma perante o escritor: “Hay dos Josés Saramagos: un José

Saramago antes de conocer a Pilar e un José Saramago después de conocer a Pilar.” (JOSÉ e Pilar, 2010). 8 “Um representa um ‘pro-posta’ ao outro, que sente a necessidade de dar uma ‘res-posta’. Deste jogo auto-implicativo

entre ‘pro-posta’ e ‘res-posta’ nasce a responsabilidade de um para com o outro e o cuidado da relação recíproca. [...] a

reciprocidade supõe a independência e a capacidade de relação de cada parceiro. Independência, para que cada qual

tenha a sua identidade. Relação, para que haja troca a ser feita sempre em duas mãos e em base igualitária. Diferentes

mas equivalentes.” (BOFF; MURARO, 2002, p. 62-63, grifos do autor).

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sobre o fato de ser mulher de José Saramago, Pilar não hesita em afirmar que apesar de todas as

demais funções que ocupa, é Pilar del Río:

Pois sou a mulher de Saramago e a irmã de Nacho del Río e a mãe de Juanjo e... Quer dizer,

sou muitíssimas coisas, mas, sobretudo e basicamente, sou Pilar del Río. Num período de

minha vida sou filha, num período de minha vida sou mãe, num período de minha vida sou

esposa A e em outro período de minha vida sou esposa B. Mas é que Saramago... Bem,

Saramago é um mito ou uma lenda para quem o vê de fora; para mim é meu marido. E o

objeto de meu trabalho. (RÍO; MENDES, 2012, p. 61).

A maneira direta de falar o que pensa e como pensa o fato de ser esposa de José Saramago

não se dá só em entrevistas, mas em acontecimentos públicos. Como foi o caso da cerimônia que

deu seu nome a uma rua em Azinhaga, terra natal de Saramago. Em seu pronunciamento, Pilar del

Río assim anunciou(-se):

Quero agradecer de todo coração esta distinção. É a primeira, provavelmente será a última.

E, sim senhor, está muito bem... Há uma rua José Saramago que já cá estava. A propósito,

não sei se a placa estará na mesma, porque há 20 anos viemos vê-la e dizia: “José

Saramago, escritor”. Agora cruza-se, a dada altura, com a rua Pilar del Río. Espero que não

tenham escrito “esposa”9. (JOSÉ e Pilar, 2010).

A relação com o marido – e, por ser ele também o objeto de seu trabalho –, a relação com o

trabalho, acontecem simultaneamente em um mesmo ambiente: a casa, “um espaço pleno para a

afirmação da identidade individual.” (GOLIN, 2002, p. 78). Considero aqui a casa construída em

Lanzarote, nas Ilhas Canárias (Espanha), para onde se mudaram em 1993 e onde construíram “A

Casa”10. Neste local também, em 2006, foi empreendida por Pilar del Río a construção da

Biblioteca José Saramago.

Neste ambiente da casa, que mistura lar e trabalho, a figura da mulher evidencia-se e, no

caso de Pilar, não só como esposa, dona de casa, mas também com seu ofício de tradutora e

jornalista. Assim também para Saramago, pois é na casa que escreve e, como aponta Cida Golin, “a

criação dá-se sob as condições de um lugar onde a presença feminina tem uma influência

determinante na organização espacial e do ritmo cotidiano.” (2002, p. 80). O que, no caso de José

Saramago e Pilar del Río, é possível perceber especialmente no filme-documentário de Miguel

Gonçalves Mendes, intitulado José e Pilar: os dias de José Saramago e Pilar del Río (2010) no

qual muitas das cenas são o registro do cotidiano do casal no ambiente da casa. Cenas que

demonstram a dedicação de Pilar também à organização dos compromissos de Saramago. Porém,

quanto a isso, ela destaca à jornalista Anabela Mota Ribeiro: “não sou agente literária de Saramago.

9 Na placa consta: Rua Pilar del Río “A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.”. Que corresponde à

dedicatória escrita por José Saramago em As pequenas memórias. 10 Ao lado da porta de entrada para a casa em Lanzarote está escrito na parede, em azulejos brancos e azuis, cada um

leva uma letra: “A CASA”.

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Posso ter sido importante na vida pessoal de Saramago, mas não na literária.” (RÍO; RIBEIRO,

2009).

Pilar del Río afirma de forma prazerosa a parte de seu dia com os afazeres domésticos, que

para ela é “gostosíssimo, e além disso me parece fundamental, pois como eu dizia qualquer pessoa

que não suja as mãos com a matéria, que não cozinha, que não engoma, que não se dá conta de que

tem que tirar o pó numa casa, provavelmente essa pessoa vai se distanciando da vida real.” (RÍO;

MENDES, 2012, p. 53). Na casa, justamente pela função que assumem11 de donas de casa,

organizadoras do lar e do ritmo da rotina, por ser também o local de trabalho do escritor e marido,

as mulheres “apresentam-se como figuras ativas no cotidiano literário, seja pela interferência direta

na obra de arte, seja pela simples organização prática do ambiente criativo, proporcionando

isolamento ao escritor. [...].” (GOLIN, 2002, p. 78).

Em sua primeira entrevista sobre seu relacionamento com José Saramago, Pilar fala da

opção de abandonar o emprego, a carreira, a cidade e, mais do que acompanhar o marido, trabalhar

com ele e por ele:

Hoje faço o mesmo que fazem, e que sempre fizeram, todas as mulheres. Acontece que eu o

fiz por opção, tendo outras possibilidades. Não fui educada para me casar, nem para viver à

sombra de um marido protetor. Nasci e me preparei para ser independente, como o fui

durante muito tempo, e um dia resolvi deixar outras coisas de lado, abandonar um emprego,

uma carreira e uma cidade. Decidi o que queria fazer da minha vida. Mas não quero dar

maior importância a isso, nem transformar isso num ato heroico. (RÍO; ARIAS, 2004, p.

126).

A opção, por ter sido feita livremente, deixa-a segura e demarca um ato de independência.

Além disso, Pilar assevera que o fato de estar com Saramago não lhe alterou as posições ideológicas

e, nesse sentido, afirma:

Acho também que não me aburguesei, no sentido que a palavra tem de claudicação. Não

claudiquei. Continuo a ter as mesmas bandeiras, não porque seja inflexível, não, mas

porque nos reforçamos mutuamente no diálogo e na análise. Nós nos conhecemos

participando de uma mesma posição vital e ideológica, e estes anos de convivência nos

reforçaram, trouxemos argumentos e sentimentos novos um ao outro. (RÍO; ARIAS, 2004,

p. 127)

Quanto ao processo de criação literária de Saramago no ambiente doméstico, Pilar conta que

acompanhava diariamente e que ao final de cada dia Saramago lia para ela o que acabara de

escrever. Sente-se privilegiada, mas ressalta ser “uma ouvinte totalmente muda” (RÍO; ARIAS,

2004, p. 129), o que para ela é uma postura de total respeito com o processo de criação que, destaca,

11 Uso no plural porque me refiro ao trabalho de Cida Golin (2002) em Mulheres de escritores: subsídios para uma

história privada da literatura.

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é solitário. Por parte do autor-marido, dá-se da mesma forma perante o ofício da jornalista-esposa,

como conta:

O mesmo acontece com José em relação a mim, quando tenho que escrever alguma das

minhas bobagens.

- Que bobagens?

- Nada. Artigos para revistas, colaborações variadas, coisas sem maior importância.

Também leio para ele, digo o que pensei ou o enfoque que penso dar. Mas ele nunca

interfere. Se eu tenho duas ou três opções, ele nunca me diz: pegue por aqui. Só uma vez,

que eu não sabia como terminar uma coisa, precisava de uma frase forte e não a encontrava,

ele me sugeriu uma que, naturalmente, usei para o final e também como título. Mas

normalmente isso não acontece. (RÍO; ARIAS, 2004, p. 130).

O trabalho de Pilar del Río não se restringe ao de jornalista e de dona de casa. Ela também é

tradutora dos romances de José Saramago e, quanto a isso, observa:

[...] José, ou Saramago12, escreve em cima (aponta para o andar de cima), porque em cima,

na glória, está o autor, e o trabalho do tradutor é sempre um trabalho oculto. É um trabalho

silencioso. É curioso, porque é o único trabalho para o qual a perfeição absoluta consiste na

anulação absoluta de quem realiza o trabalho... O melhor tradutor é o que menos se nota em

sua passagem pelo texto. Segundo meu critério, não sei... Então, Saramago escreve lá em

cima, nunca mais de duas páginas por dia. E quando acaba o dia me passa as duas páginas,

eu as leio, releio, volto a lê-las e as deixo dormir. E no dia seguinte as traduzo. E assim

vamos... Se no dia seguinte Saramago emenda, pois então eu emendo a tradução. Ele

retoma, eu retomo. E assim vamos. Normalmente, no final do trabalho, acelero para acabar

no mesmo dia. Quando ele acaba, então me lanço às pressas na tradução para que, se

Saramago acabar um livro às quatro da tarde, eu o acabe às oito. Para ter a mesma data em

nossas agendas, porque depois a data não figura em nenhum lugar. Mas assim é o processo.

(RÍO; MENDES, 2012, p. 55, grifos do autor).

É possível perceber o lugar onde Pilar del Río se coloca em relação a José Saramago e que,

em certa medida, é o mesmo que transporta para as demais funções assumidas. Quando fala dos

artigos que escreve no ofício de jornalista, usa a expressão “minhas bobagens”; sobre o trabalho de

tradutora, destaca-o como oculto e silencioso. De certa forma, assim analisado, não foge de algum

obscurantismo no qual a maioria das mulheres são postas nas funções que desempenham e que

acabam por assumir introspectivamente no ato da fala.

12 Sobre o tratamento nominal, é interessante perceber a distinção que Pilar faz. Ela explica neste trecho da entrevista

concedida a Miguel Gonçalves Mendes: “Quando a Pilar fala do José, diz sempre ‘Saramago’, não diz ‘o José’. Mas

quando estamos a sós, juro por Deus, que nunca na vida o chamo de Saramago. Posso lhe dizer mil coisas, mas

Saramago, não (ri). Se calhar também existe o personagem José Saramago. Será que às tantas não se confunde... Não

sei se há alguém que confunde ou não confunde. Eu, claro que não. Sei perfeitamente quem é Saramago. Acho que

poucos escritores, e isso quem o leu com atenção e o conhece perceberá, são tão eles em sua obra. Há poucas diferenças

entre o autor do livro, a voz do narrador e o que expressa o livro. Quer dizer, o autor está se expressando continuamente

no livro e não são duas pessoas distintas, isto é, este não é um fruto de meu trabalho, de minha imaginação, não, não, o

autor está dentro do livro e ali se encontra, vamos o encontrando página por página, linha por linha. Não há uma

construção do narrador. É o autor. E esclarecendo a coisa de antes, se digo Saramago é porque sou uma profissional do

jornalismo, e quando tenho que falar dele, evidentemente, não vou dizer ‘meu marido’. Falo do autor. [...].” (RÍO;

MENDES, 2012, p. 60, grifos do autor).

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Contudo, o público, seja ou não leitor de Saramago, mas claro que em maior número os

leitores de seus romances, coloca-a ao lado do escritor, sem apagamento, antes o contrário. Nas

redes sociais não é raro encontrar menções aos romances e demais falas e feitos de José Saramago

reportando-se ao casal e não só a ele, como se, de fato, fossem um, responsáveis ambos pela mesma

literatura.

Se nas entrevistas Pilar del Río demonstra uma postura mais contida ao falar de sua relação

com o marido e escritor José Saramago, sua veemência fica evidente nas atitudes a frente da

Fundação, da qual é Presidenta. Instituída em 29 de junho de 2007 e oficialmente reconhecida no

Diário da República de 25 de fevereiro de 2008, a Fundação José Saramago, com sede na Casa dos

Bicos, em Lisboa, e com centros em Azinhaga (Golegã, Portugal), terra natal de Saramago, e em

Lanzarote (Ilhas Canárias, Espanha), dentre outros, tem por princípios o compromisso com a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A intenção de José Saramago, como se pode

depreender da Declaração de Princípios13 da Fundação, volta-se, sobretudo a questões políticas e

sociais e ele não tem dúvidas de designar a presidência da Fundação a Pilar del Río. Em 15 de

março de 2009, escreveu em seu blog, cujos escritos posteriormente foram compilados e publicados

no livro O Caderno, sob o título de Presidenta:

[...] Hoje, por coincidência dia do seu aniversário, o meu tema é Pilar. Nada de

surpreendente para quem quiser recordar o que sobre ela tenha dito e escrito em já quase

um quarto de século que levamos juntos. Desta vez, porém, quero deixar constância, e

supremamente o quero, do que ela significa para mim, não tanto por ser a mulher a quem

amo (porque isso são contas do nosso rosário privado), mas porque graças à sua

inteligência, à sua capacidade criativa, à sua sensibilidade, e também à sua tenacidade, a

vida deste escritor pôde ter sido, mais do que a de um autor de razoável êxito, a de uma

contínua ascensão humana. Faltava, mas isso não podia imaginá-lo eu, a idealização e a

concretização de algo que ultrapassasse a esfera da atividade profissional ou que dela

pudesse apresentar-se com seu prolongamento natural. Foi assim que nasceu a Fundação,

obra em tudo e por tudo obra de Pilar e cujo futuro não é concebível, aos meus olhos, sem a

sua presença, sem a sua acção, sem o seu génio particular. Deixo nas suas mãos o destino

da obra que criou, o seu progresso, o seu desenvolvimento. Ninguém o merecia mais, nem

sequer de longe. A Fundação é um espelho em que nos contemplamos os dois, mas a mão

que o sustém, a mão firme que o sustém, e a de Pilar. A ela me confio como a qualquer

outra pessoa não seria capaz. Quase me apetece dizer: este é o meu testamento. Não nos

assustemos, porém, não vou morrer, a Presidenta não mo permitiria. Já lhe devi a vida uma

vez, agora é a vida da Fundação que ela deverá proteger e defender. Contra tudo e contra

todos. Sem piedade, se necessário for. (SARAMAGO, 2009, p. 218-219).

Saramago não hesita em atribuir a obra da Fundação a Pilar del Río. Aqui, não se trata de

uma dedicatória, mas do reconhecimento de uma obra “em tudo e por tudo obra de Pilar”. À frente

da Fundação, especialmente depois que José Saramago faleceu, Pilar del Río também assumiu

ativamente o desejo do escritor pela proclamação da Carta dos Deveres Humanos. Desejo este

13 Disponível em: https://www.josesaramago.org/declaracao-de-principios/.

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anunciado quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, no discurso pronunciado no

Banquete Nobel a 10 de dezembro do mesmo ano, data também do cinquentenário da Declaração

Universal dos Direitos Humanos. Saramago manifestou sua crítica ao não cumprimento desta

Declaração14 e asseverou que da mesma forma que não há cumprimento dos direitos, não há dos

deveres, razão pela qual, ressaltou a necessidade de se reivindicar “também o dever de nossos

deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.” (SARAMAGO, 2013

[1998], p. 90). Como Presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río está ativa na busca pela

efetivação da Carta dos Deveres Humanos.

Desde o falecimento de José Saramago, Pilar assumiu novos afazeres diante da obra do

escritor, da Fundação, da casa, dos ofícios de jornalista e de tradutora. Talvez a partir disso é que

tenha afirmado em 2013, na abertura da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), em

Olinda, Grande Recife, que é uma “militante de Saramago”. (RÍO, 2013b). O que Pilar assume

agora é o pedido de Saramago de que lhe dê continuidade.

No que diz respeito à produção literária de José Saramago, Pilar del Río afirmou que “tudo o

que produziu, foi e será publicado. Saramago não tinha originais; não há papéis como na casa de

Fernando Pessoa...” (RÍO, 2013a). E, nesse sentido, continuou com seu trabalho de tradutora. Em

2014, com a publicação do romance inédito e inacabado de José Saramago, intitulado Alabardas,

alabardas, Espingardas, espingardas, e que foi encontrado em seu computador, Pilar assumiu os

lançamentos e as entrevistas sobre a edição e publicação do inédito. Além disso está à frente de

projetos de reedições e adaptações da obra de Saramago.

A militância de Pilar del Río busca integrar a produção literária de Saramago no sentido de

efetivar o que ele mesmo entendia pela tarefa de escritor, qual seja, a de que “um escritor é também

um cidadão. [A tarefa do escritor é a de] intervir na sociedade como cidadão que é.” (JOSÉ e Pilar,

2010). E isso fica visível nas suas intervenções, especialmente quando se reporta aos romances de

Saramago, como se pode perceber da sua fala sobre o congresso no México15 a respeito da Carta

dos Deveres Humanos:

José Saramago morreu em 18 de junho de 2010, aos 87 anos, combativo e lúcido como

poucos. Até os últimos dias de vida escreveu. Esteve às voltas com a história de um

14 “Nestes cinquenta anos não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que,

moralmente, quando não por força de lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades

agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar

instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de

pessoas.” (SARAMAGO, 2013 [1998], p. 90). 15 Nos dias 24 e 25 de junho de 2015, na Cidade do México, a Universidade Autónoma do México (UNAM) e a World

Future Society Capítulo Mexicano A.C., com o apoio da Fundação José Saramago, organizaram um congresso para

discutir a proposta da elaboração da Carta dos Deveres Humanos.

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empregado de uma fábrica de armas, um sujeito pacato e apagado, que nunca disparou uma

arma, que vive entre papéis e carimbos, e que de repente vê-se diante da possibilidade (ou

seria do dever?) de insurgir-se, de levantar-se, de dizer não. Em "Alabardas, Alabardas,

Espingardas, Espingardas", livro publicado postumamente, o autor que já havia feito com

que, a partir de uma cegueira branca, enxergássemos e reparássemos no próximo, desta vez

assalta a consciência dos leitores com a possibilidade de construção de um futuro distinto

edificado sobre um não. "Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário

dizer não. O não é a única coisa efectivamente transformadora, que nega o status quo.

Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de

autoridade. É o momento em que é necessário dizer não", declarou em entrevista a esta

Folha em 1991. (RÍO, 2015).

Pilar del Río cada vez mais faz ouvir sua voz, voz de mulher na militância de uma causa, a

“causa Saramago”. Recentemente recebeu o Prêmio Luso-Espanhol de Arte e Cultura pelo

reconhecimento de seu trabalho à frente da Fundação e sobre tal distinção afirmou:

Acho que é o reconhecimento aos que chamamos a José Saramago de nosso e que sabemos

que sua inteligência e sensibilidade são patrimônio dos leitores, sem bandeiras nem

fronteiras. Alegra-nos que se sabia que os leitores da Península Ibérica somos produtos de

culturas misturadas, diversas e plurais. Compartilhamos o prêmio com portugueses e

espanhóis que trabalham na Fundação e em José Saramago. (RÍO, MATTIA, 2017)

A militância de Pilar del Río não teve seu início com a Fundação. Ainda antes de conhecer a

Saramago Pilar já assumia sua postura no mundo. Sobre isso, relatou ao jornalista Juan Arias:

[...] penso que o mundo precisa de muita insubmissão. [...]. Em qualquer lugar onde eu

trabalhe, tenho de poder dizer o que penso, seja ou não oportuno. Isso eu aprendi com o

cristianismo, e depois foi reafirmado com o comunismo, minhas duas militâncias. No

cristianismo me disseram que devíamos dizer sempre o que pensamos, ou seja, ver, ouvir e

não calar. Eu vejo, ouço e não calo, porque se você não diz o que pensa nesse momento,

não volta a recuperar esse momento para exercer a sua liberdade. Quando sinto que tenho

obrigação de dizer algo, eu digo. Nenhum conchavo pode me calar. (RÍO; ARIAS, 2004, p.

128-129).

Na produção literária de José Saramago, as mulheres são destaque e o próprio autor

confirma que suas personagens mulheres são mais fortes e detentoras de um poder transformador

que se dá pelo seu tão só aparecimento nos romances. Relata Saramago que em determinada ocasião

lhe perguntaram por que sempre escolhe uma mulher, ao que ele respondeu: “‘Acredita que tudo o

que essa mulher fez um homem faria?’. Claro que não. Sempre há uma mulher a sustentar cada um

de meus romances: [...].” (2009 [1996], p. 265).

O caminho literário percorrido por José Saramago foi elocubrado por ele em 1998, durante

uma conferência na universidade italiana de Turim, no colóquio Dialogo sulla Cultura Portoghese:

Letteratura-Musica-Storia, na qual o autor usa a metáfora da estátua e da pedra. Afirma Saramago

que durante anos esteve a trabalhar na construção da estátua, até perceber que tal ofício estava

acabado. Para o autor, não havia mais o que acrescentar à estátua, mas

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deveria penetrar mais a fundo na singular matéria da estátua, que devia escavar a pedra com

que tinha construído a estátua. [...] chegara o momento de descer ao fundo do edifício e de

o escavar até encontrar a água e o sangue, até fazer sangrar a minha própria matéria, a

minha própria carne. Da fase da Estátua passei à da Pedra.” (SARAMAGO, 2013, p. 22-

23).

O marco divisório, segundo Saramago dá-se com a publicação do Evangelho segundo Jesus

Cristo, em 1991, cinco anos após conhecer Pilar e sendo apenas o segundo romance publicado

depois do encontro com ela. O que pode indicar a influência da chegada de Pilar em sua vida16.

Depois do Evangelho, Saramago escreveu ainda oito romances; publicou os diários, os registros do

blog, uma peça de teatro e deixou mais um romance inacabado, que foi publicado em 2014. A

pedra, que pouco a pouco foi descobrindo no escavar diário da estátua, deu-se ao lado e com a

presença de uma outra pedra, pilar em sua vida, como escreveu na dedicatória “A Pilar, meu pilar”.

Uma mulher com voz que até ao último instante com Saramago perguntou-lhe se ele a estava a

ouvir17.

Ao me propor percorrer parte de uma trajetória da vida literária de José Saramago, sob o

olhar e a voz de Pilar del Río, propus-me o desafio de desviar a rota tradicional da história literária.

Trata-se de (re)escrevê-la a partir das invisibilidades que podem (e devem) se tornar visíveis porque

estão aí, existem, têm voz, ideias, atitudes, influências. É um ato de insubmissão, do qual o mundo

precisa, como apontou Pilar del Río.

Saramago queria mais tempo e vida18, mas esteve e agora já não está – como ele assim

definiu a morte19 – e o pedido que fez a Pilar foi o de que ela o continuasse, não a escrever seus

romances, mas a viver, porque como disse: “Yo tengo ideas para novelas y ella tiene ideas para la

vida. Y yo no sé que es lo más importante.” (JOSÉ e Pilar, 2010), desta vez em espanhol, na “voz”

dela.

Referências

16 Talvez aqui caiba recordar a passagem de Virginia Woolf em Um teto todo seu: "Olhei para a estante de novo. Ali

estavam as biografias: Johnson, Goethe, Carlyle, Sterne, Cowper, Shelley, Voltaire, Browning e tantos outros. E passei

a pensar em todos esses grandes homens que, por uma razão ou por outra, admiraram certas pessoas do sexo oposto,

buscaram-nas, conviveram com elas, fizeram-lhes confidências, dormiram com elas, escreveram sobre elas, confiaram

nelas e demonstraram o que só pode ser descrito como uma necessidade e uma dependência delas." (2014 [1929], p.

124). 17 Pilar conta à escritora colombiana Laura Restrepo que nos últimos instantes de vida de José Saramago, perguntou três

vezes a ele: “- José, me ouve? – José, me ouve? – José, me ouve? E a última coisa que José lhe disse na vida foi: “- Sim,

te ouço.”. Sorri para a entrevistadora e conclui: “- Romântico!” (RÍO; RESTREPO, 2013). 18 “Tempo e vida para continuar com meu trabalho, com minha mulher e para viver como tenho vivido até agora e isso

faz parte do modo como eu me vejo e para continuar a alimentar-me e viver e fazer frutificar a felicidade que é minha e

a felicidade que é nossa.” (JOSÉ e Pilar, 2010). 19 “Morte: ter estado e já não estar.” (JOSÉ e Pilar, 2010).

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BOFF, Leonardo; MURARO, Rose Marie. Feminino e masculino: uma nova consciência para o

encontro das diferenças. 5.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia, São Paulo: Ateliê

Editorial, 2009 (Artes do livro: 7).

GOLIN, Cida. Mulheres de escritores: subsídios para uma história privada da literatura. São Paulo:

Annablume: Caxias do Sul: Educs, 2002.

JOSÉ e Pilar: os dias de José Saramago e Pilar del Río. Realização: Miguel Gonçales Mendes.

Produtores: Agustín Almodóvar; Bel Berlink; Esther García; Fernando Meirelles; Miguel

Gonçalves Mendes. Produção: JumpCut; El Deseo; 02 Filmes. Lisboa: JumpCut, 2010. (DVD 1:

125min; DVD 2: 160min).

JOSÉ e Pilar: fragmentos I. Fundação José Saramago. Realizador: Miguel Gonçalvez Mendes.

Lisboa: 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nFLeoM9Nvzo>. Acesso em:

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originalmente no Público em 2009. Disponível em: <http://anabelamotaribeiro.pt/pilar-del-rio-

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SARAMAGO, José. O caderno: textos escritos para o blog. setembro de 2008 – março de 2009.

São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

______. As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias e políticas. Seleção e

Organização de Fernando Gómez Aguilera. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______; MENDES, Miguel Gonçalves. José e Pilar: conversas inéditas. Tradução das falas de Pilar

em espanhol por Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

______. Da estátua à pedra e discursos de Estocolmo. Belém: EdUFPA; Lisboa: Fundação José

Saramago, 2013.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução de Bia Nunes de Sousa e Glauco Mattoso. São

Paulo: Tordesilhas, 2014.

ZILBERMAN, Regina. “Mulheres de escritores” – sujeitos da história. In: MORGANTI, Vera

Regina. Confissões do amor e da arte. Organização de Regina Zilberman e Maria da Glória

Bordini. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994. (Série Depoimentos). p. 415-422.

Pilar: ideas for life

Astract: The journalist and President of the José Saramago Foundation, Pilar del Río, goes beyond

the dedicatory pages of Saramago’s books, as she was his companion over the last twenty-four

years of his life. At the forefront of the writer’s literary legacy, she demonstrates that her name has

a voice, the voice of a woman who did not merely announce herself as wife, or widow, after her

husband’s death. In this sense, this essay aims to suggest a possibility for considering not only the

author’s literary output from the perspective of literary life, but more particularly, how the translator

and journalist, also wife and homemaker, Pilar del Río, positions herself in relation to the work of

the writer and man, José Saramago. As such, the objective further encompasses the proposal of an

innovative approach to the study of an author’s literary output and, in this light, seeks to highlight

an invisibility that can (and must) become visible because it is indeed present, through voice, ideas,

attitudes and influences; above all because, as the writer’s wife, Pilar del Río did not fade away

alongside him. Thus, turning the gaze to the presence of the woman in the literary life of an author

is an act of defiance in the face of the traditional historical records that either erase the female

presence in the lives of male writers, or restrict the women to the functions of wife and inspirational

muse.

Keywords: José Saramago. Writer's wife. Pilar del Río. Visibility.